Revista Atitude Nº 09

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Revista Atitude Nº 09
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
REVISTA ATITUDE – Construindo Oportunidades
Periódico da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre
- Ano V - Nº 9 - Janeiro a Junho de 2011
Porto Alegre - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre.
ISSN 1809-5720
A REVISTA ATITUDE - Construindo Oportunidades tem por finalidade a produção e a divulgação do conhecimento nas áreas das ciências aplicadas produzido particularmente pelo seu
corpo docente e colaboradores de outras instituições, com vistas a abrir espaço para o intercâmbio de ideias, fomentar a produção científica e ampliar a participação acadêmica na comunidade. O Conselho Editorial reserva-se o direito de não aceitar a publicação de matérias que não
estejam de acordo com esses objetivos. Os autores são responsáveis pelas matérias assinadas.
É permitida a cópia (transcrição) desde que devidamente mencionada a fonte.
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Porto Alegre, 2011
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
Revista Atitude - Construindo Oportunidades – Revista de Divulgação Científica da Faculdade
Dom Bosco de Porto Alegre
Ano V, Volume 5, número 9, jan-jun 2011 – ISSN 1809-5720
Diretor/Director
Prof. Dr. Pe. Marcos Sandrini - [email protected]
Editor/Editor
Prof. Dr. Marco Antonio Fontoura Hansen - [email protected]
Comissão Editorial/Editorial Board
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Prof. Dr. Marco Antonio Fontoura Hansen - [email protected]
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Pesq. Dr. Manoel de Araújo Sousa Jr. (INPE-CRS/Santa Maria, RS)
Prof. Dr. Pe. Marcos Sandrini (FDB/Porto Alegre, RS)
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Prof. Dr. Osmar Gustavo Wöhl Coelho (UNISINOS/São Leopoldo, RS)
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Prof. Dr. Stefano Florissi (UFRGS/Porto Alegre, RS)
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Profa. Ms. Viviani Lopes Bastos (UCS/Caxias do Sul, RS)
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Revisão:
Cristiane Billis – MTb 26.193
Os artigos e manifestações assinados correspondem, exclusivamente, às opiniões dos respectivos autores.
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Sumário
Apresentação ...................................................................................................................... 7
CIÊNCIAS SOCIAIS E APLICADAS ................................................................................... 9
1. Educação: da unidimensionalidade à complexidade, um desafio premente ........ 11
Marcos Sandrini
2. Sair da rua: fácil falar, difícil fazer! Um estudo sobre a Rede de Apoio Social a
crianças e adolescentes em situação de rua moradia na Região Central de Porto
Alegre ............................................................................................................................ 19
Cristiane Vieira Chagas, Letícia Horn Oliveira, Jacqueline Costa da Silva, Carlos Alberto
Kalinovski Hoffmann e Cristiane Saraiva Marins
3. Universidade, ética e direito ....................................................................................... 27
Osvaldo Biz
4. Reflexões críticas sobre o Instituto do Concubinato no Direito Brasileiro ........... 35
Roberta Drehmer de Miranda
5. Aspectos da nota promissória ................................................................................... 51
Alessandra Martins Belmiro, Caroline Silva Bianchi, Elves Luciano Ferreira de Paula,
Rafael Cardoso Cazara e Tatiana Vargas Bittencourt
6. A convergência da auditoria independente brasileira aos padrões internacionais
de auditoria .................................................................................................................. 61
Cláudio Morais Machado e Fernanda Pucurull
7.
Diferenciação ou necessidade na Certificação ISO 9001: uma análise em duas
empresas agroindustriais ........................................................................................... 79
Alexandre de Melo Abicht, Alessandra Carla Ceolin, Augusto Ormazabal de Faria Corrêa Paulo, Rodrigo Ramos Xavier Pereira e Tania Nunes da Silva
CIÊNCIAS TECNOLÓGICAS .............................................................................................. 91
8.
Avaliação das características do Lago Guaíba realizada na ETA José Loureiro da
Silva, em Porto Alegre, RS.......................................................................................... 93
Carlos Atalla Hidalgo Hijazin e Adriene Maria Sampaio Pereira
9.
Comparação entre dois sistemas de energia termossolar para aquecimento da
água: convencional e alternativo de baixo custo .....................................................105
Andréa Souza Castro, Aline Tonial Simões e Maiara Cecchin
10. Aplicação de testes não paramétricos e do método de Gumbel à série de cotas
máximas anuais do lago Guaíba ................................................................................111
Andréa Souza Castro e Alex Soares de Mello
11. db4objects: um sistema gerenciador de banco de dados orientados a objetos ...117
Adriana Paula Zamin Scherer, Anderson Corbellini e Willian Hart Oliveira
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Apresentação
REVISTA ATITUDE – Construindo Oportunidades chega ao seu número 9. Há nove
anos nascia a Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. O projeto vai-se solidificando... Nosso grande objetivo é construir uma Faculdade empenhada e compromissada com a defesa
e promoção da vida. Em todas as páginas desta revista você encontrará uma pitada de
amor pela vida.
Esta Faculdade foi concebida, projetada e realizada pelos Salesianos de Dom Bosco.
Presentes em 132 países do mundo, procuramos levar adiante o sonho de Dom Bosco, de
construir uma sociedade mais justa e fraterna formando pessoas capazes de levar para a
frente este projeto. Estamos em sintonia com as IUS – Instituições Salesianas de Educação
Superior, presentes em cerca de 60 países.
Neste número estão presentes todos os cinco cursos da Faculdade. O curso de Engenharia Ambiental e Sanitária está presente com três artigos. A novidade é que eles foram
construídos participativamente numa interação professor-aluno. Direito também está presente com três artigos. Igualmente há a presença de acadêmicos. O curso de Ciências Contábeis
está presente com um artigo abordando aspectos da nova integração com a contabilidade
internacional. De Sistemas de Informação há um artigo fruto de iniciação científica com a
participação de uma professora e dois acadêmicos. O curso de Administração se faz presente
com um artigo de jovens professores. Também o INSAPECA (Instituto Salesiano de Pesquisa sobre a Criança e o Adolescente) apresenta um artigo com o resultado de uma pesquisa
envolvendo um grupo de pesquisadores do Instituto sobre crianças e adolescentes de Porto
Alegre em situação de rua. Há, igualmente, um artigo abordando aspectos da educação nos
dias de hoje.
Como se vê, nossa revista não é monotemática nem unidimensional. Ela aborda a realidade de diferentes ângulos numa dimensão de complexidade. Não queremos contribuir para
a construção de um mundo que não é capaz de olhar a tudo e a todos numa visão de complementaridade e reciprocidade. O amor pela vida requer isto.
O Sistema Educativo de Dom Bosco está focado em três palavras – Religião, Razão,
Bondade. Ninguém constrói um Sistema apenas com uma dimensão da realidade e com uma
visão de mundo. A unidimensionalidade mata, destrói, exclui. Razão demais, mata. Emoção
demais, mata. Religião demais, mata. A Revista não só traz diversos assuntos, mas eles
abordam a realidade a partir desta visão de complexidade. Para nós não é importante apenas
a interdisciplinaridade, mas a transdisciplinaridade. O que adianta fazer uma leitura interdisciplinar da realidade numa visão unidimensional? Interessa-nos uma leitura interdisciplinar da
realidade mas numa visão de complexidade.
Agradecemos aos articulistas pela confiança e pontualidade na entrega dos artigos e
aos leitores pelo apoio e incentivo.
Porto Alegre, 16 de agosto de 2011.
196º Aniversário do Nascimento de Dom Bosco.
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Ciências Sociais e Aplicadas
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Educação: da unidimensionalidade à
complexidade, um desafio premente
Marcos Sandrini1
Resumo: Dois conceitos perpassam este artigo: pensamento forte e pensamento fraco. Estamos numa mudança de época. Talvez a maior característica desta
mudança seja a passagem do pensamento forte para o pensamento fraco. Forte
é o pensamento com vontade de dominação, de poder e de potência. Forte é
o pensamento totalitário, que não admite o outro. Pensamento fraco não é não
ter pensamento, mas significa pensar sem vontade de domínio. Na história da
humanidade sempre se privilegiou um pensamento como hegemônico excluindo
ou matando quem pensa diferente. No mundo ocidental o pensamento dominante é masculino, branco, adulto, ocidental e cristão. O outro é o não masculino,
não adulto, não ocidental, não cristão, não branco. Talvez esteja raiando um
mundo com pensamento fraco, livre de prepotências e de totalitarismos.
Palavras-chave: Pensamento Forte. Pensamento Fraco. Bullying. Complexidade. Unidimensionalidade.
Abstract: Two concepts are covered in this paper: strong thought and weak thought. We have been through changing times. Maybe the greatest feature of this
transformation is the passage from strong thought to weak thought. Strong is the
thought willing to dominate, to have power and potency. Strong is the totalitarian
thought which does not admit the image of the other. Weak thought does not revolve around the absence of thought, but it means thinking without the eagerness
for domain. In the history of humanity it has always been privileged a thought as
hegemonic in order to exclude or kill those who think differently. In the western
world the prevailing thought is male, adult, western and Christian.
Keywords: Strong Thought. Weak Thought. Bullying. Complexity. Unidimensionality.
A humanidade está cercada de cruzes
e de sofrimentos inúteis e cruéis por todos
os lados. Uma criança abandonada e violentada, um adolescente explorado por traficantes de droga, um jovem cerceado em seus
sonhos e utopias, um adulto sucateado, um
idoso excluído são personagens de nosso
dia a dia. Conta-se que, quando Einstein visitou a Índia, encontrou-se com um Mestre de
Espírito que lhe perguntou à queima-roupa:
“em que sua ciência está ajudando a tirar
o sofrimento do mundo?”. Independentemente da resposta do cientista, esta é a
pergunta fundamental que se deve fazer a
qualquer cientista e a qualquer acadêmico.
De que adianta uma ciência e uma técnica
se não conseguem tornar as pessoas mais
felizes?
Um dos grandes avanços da ciência é
o reconhecimento da complexidade de tudo
e de todos. A que se remonta esta palavra e
ao conceito que ela indica? Seguramente se
refere a duas realidades. A primeira delas é
a incompletude de toda a realidade. Não há
nada completo, inclusive os conceitos.
Atualmente tende a se impor a palavra
“complexidade”; ela designa o estudo dos
Doutor em Educação pela PUC/RS. Diretor da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre/RS.
E-mail: [email protected]
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guesa (gramática, redação, literatura), língua
espanhola, língua inglesa, matemática, física,
química, biologia, educação física, educação
artística, sociologia, filosofia, história, geografia, ensino religioso. O que se foi fazendo foi
seccionar, fracionar o currículo escolar sem
um diálogo interdisciplinar
Reconhecer a incerteza,
Cada
vez
mais
as numa visão holística. Durante
o caos e dialogar com eles
pessoas, sobretudo as a semana, um desfile de dez
é a primeira atitude de qualnovas gerações, estão a quinze professores passa
quer cientista, sobretudo dos
se convencendo de que diante de um grupo de quaprofissionais da educação. A
o grande mal do mundo renta adolescentes sem uma
segunda diz respeito à imposé a unidimensionalidade. visão de totalidade e de diálosibilidade de se aproximar de
Olhar o mundo apenas a go científico.
qualquer realidade e de qualpartir de um único ponto,
Mais ainda. Em diáloquer conceito apenas com
de uma única disciplina, go com um jovem calouro
uma ferramenta epistemolóde uma única ciência, traz universitário
perguntei-lhe
gica. Daí brota a necessidaconsequências terríveis. onde fizera o ensino médio.
de da interdisciplinaridade e
Indicou-me uma determinada
da transdisciplinaridade. É
escola. Causou-me espanto
tempo de humildade. A soberba científica não
porque pensava tratar-se apenas de um curleva a lugar nenhum, apenas multiplica os soso pré-vestibular. Como aconteceu este ensifrimentos e as dores dos mais desvalidos.
no médio? Esta escola não tem pátios, não
Cada vez mais as pessoas, sobretudo
tem música e canto, não tem esportes, não
as novas gerações, estão se convencendo de
tem laboratórios. Trata-se de um prédio de
que o grande mal do mundo é a unidimensiotrês andares unicamente com salas de aula. A
nalidade. Olhar o mundo apenas a partir de um
imagem que me vem à mente é a de uma caúnico ponto, de uma única disciplina, de uma
beça ambulante que recebe noções as mais
única ciência, traz consequências terríveis. Aldiversas. De fato, todo o assim chamado conguém poderia perguntar: é possível unidimenteúdo é ministrado em dois anos. O terceiro
sionalidade com tantas especialidades? Aí é
ano é uma grande revisão dos dois primeiros
que reside o perigo. Um paciente, por exemanos. É o assim chamado terceirão.
plo, pode ser tratado por diversos profissionais
Esta escola unidimensional continua pasda saúde, cada um em sua especialidade,
sando ao largo da complexidade. Para refletir
mas sem ter uma visão de sua complexidade.
educação faz-se necessário enfrentar esta
Aí o estrago pode ser maior do que se tivesquestão. Nenhuma pessoa é simples e nem
se sendo tratado por apenas um profissional
complicada. Nenhuma esconuma visão mais holística do
la tem que simplificar e nem
Visitando
escolas
de
ensino
mundo. A palavra holística, de
complicar seus alunos e sua
médio,
qualquer
gestor
origem grega, significa o todo.
missão. A escola é complexa
de
educação
pode
se
dar
Uma visão holística significa,
porque a vida é complexa.
conta
de
que
submetemos
então, que o todo está nas
De vez em quando esnossos
adolescentes
e
partes e a parte está no todo.
cuta-se notícia de processos
jovens
a
uma
ladainha
de
Visitando escolas de
judiciais contra pais que queensino médio, qualquer ges- disciplinas sem diálogo
rem educar seus filhos apeentre
si
e
todas
ministor de educação pode se dar
nas em casa. Reportagem
tradas
por
especialistas.
conta de que submetemos
da Folha de São Paulo em
nossos adolescentes e jovens
06/03/2010, Caderno C1, dá
a uma ladainha de disciplinas
a seguinte manchete: “Juiz condena pais por
sem diálogo entre si e todas ministradas por
educar filhos em casa.” Como subtítulo afirma:
especialistas. Se não, vejamos: língua portu12
sistemas dinâmicos situados em algum
ponto entre a ordem na qual nada muda,
como pode ser o caso das estruturas cristalinas, e o estado de total desordem ou
caos como é o caso da dispersão da fumaça (MORIN, 2003, p. 46).
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“sentença prevê multa e fala em ‘abandono
intelectual’ dos jovens de 15 e 16 anos, tirados da escola há quatro anos, em Minas”. A
reportagem também afirma que este método
chamado de homeschooling reúne cerca de
1 milhão de adeptos só nos EUA, embora organizações de aprendizado escolar domiciliar
sugiram que o número real possa ser o dobro.
Este fato nos pode levar a duas reflexões antagônicas. A primeira delas é que
pela forma como a escola está organizada, e
os resultados que a sociedade espera dela,
pouca diferença faz aprender em casa como
aprender na escola. A unidimensionalidade
da escola, educando apenas a cabeça das
novas gerações, é que leva muitas famílias
a refletir a partir da homeschooling. A teoria
da complexidade coloca em xeque este tipo
de escola unidimensional. Se a escola é assim, é porque a visão que se tem de ciência é
assim. Ela não é capaz, hegemonicamente,
de ter uma visão mais holística da realidade.
este paradigma. Num de seus escritos, relatando seu projeto missionário em relação à
Patagônia, na Argentina, afirma:
Trata-se de levar àqueles indígenas os nossos costumes, o nosso saber, a nossa maneira gentil de viver, entre o povo que não
tem costume, está fora da lei, é ignorante
das coisas mais necessárias da vida, entre um povo que jamais teria uma religião,
uma literatura, uma cultura que o colocasse entre as nações mais desenvolvidas do
planeta (apud BRAIDO, 1984, p. 32).
Se analisarmos atentamente este texto do século XIX percebemos que se trata
da aculturação dos “selvagens” entendidos
como “reductio ad ecclesiam et ad vitam civilem”. Nada de bom se encontra nos outros.
É preciso levar a civilização, a religião, os
bons costumes, as leis, a cultura. Aqui entra fortemente a visão da histórica como progresso linear dos povos, sendo que alguns
estão numa fase mais avançadas e outros
precisam ser levados para este estágio de
civilização para serem colocados entre os
países mais desenvolvidos do mundo. Existem países desenvolvidos e países em vias
de desenvolvimento.
Todas as guerras de conquista são colocadas nesta perspectiva, neste paradigma.
Há os civilizados e há os selvagens. Aliás, a
história ocidental tem grande dificuldade de
incluir o outro. Ele só é incluído quando há
projeção e prolongamento do mesmo. A modernidade trabalha com inclusões e exclusões. É preciso sempre uma escolha e ela foi
feita. Nossa sociedade é branca, ocidental,
cristã, masculina e adulta. O diferente disso
não existe.
É importante a condenação da Idade
Média. Mas também é importante uma condenação da Idade Moderna. Ambas são trevas porque unidimensionais e exterminadoras do outro, do diferente. Quem mata não é
a religião, mas o excesso de religião. Quem
mata não é a razão, mas o excesso de razão.
Aliás, na célebre frase de Descartes – penso,
logo existo – nos preocupamos sempre com
o verbo penso. É importante, porém, que focalizemos o pronome. Quem pensa? Eu! Eu,
A unidimensionalidade na história
As idades históricas vão-se sucedendo,
umas criticando as outras, uma superando
as outras, mas umas fazendo as mesmas
coisas que as outras. Por quê? Por causa
desta unidimensionalidade. A Idade Moderna criticou fortemente a Idade Média. Superou-a? Avançou em muitos pontos, mas
certamente reproduziu o que há de mais
negativo naquela. A modernidade é a época da história única, dos colonialismos, dos
grandes conglomerados econômicos, das
nações hegemônicas com seus exércitos organizados sempre em ordem de batalha, da
militarização do mundo, das nações centrais
e das nações periféricas.
As sociedades “centrais” do hemisfério
norte se apresentam como totalidades fechadas, intolerantes e autoritárias, porque se entendem como portadoras exclusivas dos critérios do que é bom ou ruim e do que agrada
ou desagrada, do que é civilizado diante da
barbárie. Nesta visão, não há histórias, mas
história única, linear rumo ao progresso e à
civilização identificada como a dos países
centrais. São João Bosco (1815-1888) também foi perpassado por este espírito e por
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quem? Este eu se identifica com o europeu
ilustrado. Só quem pensa, existe. Quem não
pensa (como o europeu central), não existe.
Isto não estaria na base do extermínio dos
indígenas ou na sua redução à insignificância? Antes da chegada do europeu à América, se se perguntasse a um de seus habitantes: quem é você? Ele responderia: “eu
sou uma pessoa humana?” Após a chegada
do descobridor a resposta mudou: “eu sou
um índio”, isto é, já não sou eu mesmo, mas
tenho minha importância porque tenho minerais preciosos e terra. Hoje, após séculos de
colonização, a mesma pergunta é feita e a
resposta é outra: “eu sou um bugre, isto é,
já não tenho mais nada, nem terra e nem minerais, sou um despojado.” Quem despojou
e matou o índio da América não foi a Idade
Média, mas a modernidade e seu “eu penso”
que se transformou em “eu conquisto”.
Idade Média e Idade Moderna têm fundamentos sólidos e únicos. Só há mudança
de fundamento, unidimensional e, por isso,
não consegue a inclusão do outro, de qualquer outro.
síveis criticam fortemente a unidimensionalidade da civilização com a preponderância da
razão, da ciência positiva e da técnica. O futuro está em risco quer pela energia nuclear,
quer pela crise ecológica e social. O progresso científico e tecnológico tem condições de
melhorar a vida na face da terra e cada vez
mais se arma para destruir e matar. Temos
futuro? Neste sentido, o importante mesmo
é construir o presente, fruí-lo, saboreá-lo. A
emoção é a bola da vez. Assim como a Idade
Média entronizou a religião, a Idade Moderna
entronizou a Razão, a nova época entroniza
a emoção. Todas as unidimensionalidades
matam. O novo também mata e é terrível.
Também a emoção unidimensional mata.
A segunda seria não mais uma troca de
fundamento, mas a quebra de todo e qualquer fundamento. Não há fundamento. Cada
um é seu próprio fundamento. Foge-se do
fundamentalismo e se erige o relativismo
mais puro, mais legítimo e mais radical. A
pessoa humana é o único fundamento de si
mesma. Isto é terrível, mas também é deslumbrante porque, pela primeira vez na história, o ser humano tem a vida em suas mãos.
Não há mais necessidade de terceirização.
Cada pessoa constrói o seu futuro a não ser
com o paradigma que cria para si mesma.
Não há lei divina e nem lei natural. O direito natural não existe, existe apenas o direito
positivo. O jusnaturalismo é substituído pelo
consenso entre os povos. Nem heteronomia,
nem teonomia, mas a mais radical autonomia e autossuficiência.
A terceira e última perspectiva de época seria a descoberta da dimensão perdida
que, junto com as duas outras dimensões, é
capaz, finalmente, de reconstituir a pessoa
humana integral. Não mais a unidimensionalidade quer da razão, quer da religião, quer
da emoção. Estas três dimensões juntas podem reconstruir uma pessoa mais holística,
pluridimensional, complexa, aberta... Religião, razão e emoção são as dimensões da
completude da pessoa humana.
As encruzilhadas do novo
Há autores que afirmam estarmos vivendo uma nova mudança de época. Estaria
havendo uma mudança de paradigma. Estaria nascendo um novo tipo de percepção da
realidade, com novos valores, novos sonhos,
nova forma de organizar arquitetonicamente
os conhecimentos, novo tipo de relação social, nova forma de dialogar com a natureza,
novo modo de experimentar a última realidade e nova maneira de entendermo-nos a nós
mesmos e de definir nosso lugar no conjunto
dos seres.
Esta mudança de época, que alguns
chamam de pós-modernidade e outros de
época sem nome, pode desembocar em três
diferentes perspectivas.
A primeira delas seria a recuperação da
dimensão perdida, ou seja, da emoção, do
sentimento, do mistério. Há acontecimentos
dramáticos que marcaram a segunda metade do século passado. O maior deles foi
o lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki em 1945. Pessoas sen-
Também a educação é holística
Estas três perspectivas abrem horizontes
diferentes para a educação. Tenho consciência
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de que quando se fala em pós-modernidade
quer-se referir, sobretudo, ao seu nível mais radical que é a quebra e a negação de qualquer
fundamento. No entanto, nenhum educador
pode e precisa aceitar este radicalismo. Por
isso, vamos trabalhar, sobretudo com a última
concepção acima explicitada, ou seja, a da
descoberta da dimensão perdida.
Sou relativo sem ser relativista. Tenho fundamento sem ser fundamentalista.
Podemos partir de um dado religioso para
nossa argumentação. Os cristãos no mundo
são 33% e destes, os católicos representam
17% da população mundial. Todo cristão coloca o fundamento da sua vida em Jesus Cristo.
Para ele, isto é fundamental, não é relativo. Já
para um budista, por exemplo, Jesus Cristo
Pensamento forte e pensamento fraco
não é fundamental, não é o fundamento de sua
Estas noções se devem a Gianni Vattimo, vida. Para ele, Jesus Cristo é relativo. O que
filósofo italiano. Ele é considerado o filósofo do é fundamental para um, é relativo para outro
pensamento fraco (pensiero debole). Por pen- e vice-versa. Isto não quer dizer proclamar o
samento fraco não se deve entender um pen- relativismo e nem o fundamentalismo. Para o
samento insignificante, de segunda categoria, cristão, Buda é relativo e Jesus é fundamento.
sem argumentação e sem consistência. Trata- Proclamar que existe fundamento não significa
-se de um pensamento sem
necessariamente viver o funvontade de poder, sem vontadamentalismo.
Toda sala de aula é um
de de dominação. Há uma paAgora podemos voltar ao
espaço de convivência
lavra muito utilizada hoje que
movimento homeschooling.
com os diferentes. A
é a metanarrativa. MetanarraNo Brasil, até hoje, pelo que
escola é um ambiente de
tiva é um relato, uma narração
nos consta, nenhum juiz deu
atitude e de socialização e
abrangente, tão abrangente
ganho de causa para qualnão apenas um lugar onde
que não aceita outra perspecquer pai que quis educar seus
se ensina conhecimentos
tiva e outro paradigma que
filhos em casa, sem passar
gerais. Mesmo que os
não seja este. Combina com
pela escola. Isto é compreenpais pudessem passar
a metanarrativa o pensamento
sível porque a escola não é a
os conteúdos em casa
único, a história única, a ética
continuação da família. Pelo
para seus filhos, eles não
não aporética e não ambivacontrário, ela é a ruptura com
conseguem passar uma
lente, a ciência linear.
a família. As novas gerações
visão plural da sociedade,
Deixando de lado arguprecisam ser educadas junto
mais que isto, uma vivência
mentações teóricas, podecom outras crianças numa soplural
da
sociedade.
mos nos debruçar em uma
ciedade pluralista. Ela não é
reflexão muito prática. Num
um condomínio fechado. A esmundo em que há hegemonias econômi- cola é um desenho do que é a sociedade. Toda
cas, políticas, culturais, religiosas, militares, criança precisa encontrar-se com crianças com
quem garante que a visão de mundo, os pa- outras concepções de vida de todos os tipos:
radigmas que contam não sejam determina- políticas, culturais, religiosas, econômicas, sodos pela força e o poderio? As ideias são ciais. Como uma criança vai ter noção de etnia
compradas e são vendidas. As verdades, as se não convive com as diferentes etnias? Como
consciências, as opiniões são determinadas pode ter uma noção de gênero se não convipelos poderosos do centro hegemônico. ve com o gênero diferente? O professor não
Num mundo em que grande parte da popu- é um computador ambulante, ele não é uma
lação mundial está em condições de misera- enciclopédia ambulante. Certamente que todo
bilidade, analfabeta, subnutrida, refugiada, professor passa, transmite os assim chamados
violentada por guerras colonialistas, quem é conteúdos. Uma boa escola tem que fazer isto.
o eu penso de Descartes? Os letrados do No entanto, todo professor é mais que isto. Ele
centro, os acadêmicos da burocracia, os é um mediador cultural. Toda sala de aula é um
economistas do FMI e do Banco Mundial, os espaço de convivência com os diferentes. A esclérigos aburguesados, o aparelho militar?
cola é um ambiente de atitude e de socialização
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e não apenas um lugar onde se ensina conhecimentos gerais. Mesmo que os pais pudessem
passar os conteúdos em casa para seus filhos,
eles não conseguem passar uma visão plural
da sociedade, mais que isto, uma vivência plural da sociedade. Escola é mais que um prédio de dois andares com sala de aula. Escola é
mais que uma sala de aula, um computador e
uma biblioteca.
Por isso também é que se deve repelir
a escola única. Há um pluralismo de escolas. O financiamento da educação deveria
ser único. Há países que fazem assim. No
Chile, por exemplo, há diversidade de escolas: tanto as mantidas pelo estado quanto as
mantidas por grupos organizados. Agora, o
financiamento da educação é sempre competência do estado. Todas as escolas são
gratuitas, tanto as do estado quanto as dos
grupos organizados. Aí, sim, há possibilidade
de opção de ensino. No Brasil, infelizmente,
esta realidade nos parece difícil para não
dizer impossível de acontecer. Há os estatizantes que afirmam que “dinheiro público são
para escolas públicas”, identificando público
com estatal. Há, além disso, os privatizantes que dizem que as escolas mantidas por
grupos organizados não devem receber dinheiro do Estado porque precisam inserir-se
no mercado e submeter-se às suas regras.
A consequência desta visão é óbvia. A escola mantida pelo poder público estatal continua não recebendo os recursos necessários
destinando-se quase que exclusivamente às
camadas populares, sobretudo na educação
básica. Por outro lado, lançadas no mercado,
as escolas mantidas por grupos organizados
só podem ser frequentadas pelas classes
mais abastadas ou pela sofrida classe média. Até quando esta visão deve prevalecer?
Os impostos são pagos por todos os cidadãos. Portanto, onde está o cidadão aí está
o estado e também os recursos do estado.
Não é possível uma boa escola particular se
não houver boa escola pública.
desejo de não aceitar a unidimensionalidade.
Não há pensamento único, cultura única, economia única, religião única, ética única. Assim
caminha a humanidade. Infelizmente estas
questões estão tão arraigadas na sociedade
e nas pessoas que é difícil reconhecê-las presentes. A maioria das pessoas se acham isentas de preconceitos e conceitos. No entanto,
até sua linguagem atraiçoa este bom desejo.
Coube-me fazer uma pesquisa com dez
adolescentes numa escola particular de Porto Alegre sobre a presença da violência na
escola através da palavra. Dentre as muitas
questões apresentadas a eles, uma delas
questionava se já tinham sido vítimas de violência através da palavra por parte de colegas. Todos afirmaram que sim. Mais ainda,
todos afirmaram que também tinham agredido verbalmente seus colegas de escola. Solicitamos que indicassem as palavras mais
utilizadas para esta agressão verbal. Foram
apresentadas 58 palavras diferentes, uma
vez que cada um poderia apresentar “apenas” dez palavras.
Surpreende que os adolescentes veem
no corpo um elemento de discriminação. A
obesidade, a altura, pequenos defeitos físicos são ressaltados. O corpo que deveria
ser um elemento de agregação e de comunicação se torna elemento de discriminação.
Acontece que nossa sociedade, sobretudo
através dos MCS, seleciona um determinado corpo como modelo e quem não obedece
a este padrão está fora de cogitação. Num
país de pobres que não conseguem ter uma
alimentação equilibrada e nem os cuidados
mínimos com a saúde a consequência é a
marginalização. Há crianças que nunca sorriem porque não podem cuidar adequadamente de seus dentes, já se dando por felizes quando não têm dores.
Os portadores de necessidades especiais também são considerados anormais,
excepcionais negativos. Em Porto Alegre, por
exemplo, é muito comum agredir verbalmente
as pessoas chamando-as de “mongolóides”.
Até os pobres entram na dança da agressão.
Um xingamento comum é o de “vileiro”, criminalizando a pobreza e os pobres. E o que
dizer dos adolescentes homossexuais? Há
A favor da diferença contra toda
desigualdade
Uma das consequências da assunção
do pensamento fraco (pensiero debole) é o
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pesquisas que afirmam que muitos deles e
delas faltam com frequência às aulas porque
não suportam a pressão que lhes é feita.
O que está por detrás desta realidade?
É o pensamento forte, o pensamento único,
a visão de que a diferença se identifica com
a desigualdade. Há um padrão de ser humano estandardizado e único que deve servir
de metro para o julgamento das pessoas. O
grande desafio para a educação é descobrir
este currículo oculto verdadeiro e forte para
enfrentá-lo adequadamente. Há pessoas que
dizem que só a educação é capaz de salvar e
desenvolver um país. Até aqui todos estão de
acordo. No entanto, é importante se perguntar
qual o tipo de educação necessária para um
país como o Brasil que tem uma das maiores
concentrações de renda do mundo. Há pessoas que tiveram acesso a todos os estudos
possíveis e, no entanto, continuam defendendo uma sociedade livre sem ser justa o que,
convenhamos, é uma grande impossibilidade.
Pesquisa realizada pela FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), a
pedido do Ministério da Educação, demonstrou que quanto mais preconceito e práticas
discriminatórias existem em uma escola
pública, pior é o desempenho de seus estudantes. Entre as experiências mais nocivas
vividas por esses jovens está o bullying, que
é a humilhação perante colegas por motivo
de preconceito. A Folha de São Paulo de 18
de junho de 2009, C3, traz importante e ilustrativo resumo desta pesquisa. Foram entrevistadas 18.500 pessoas entre alunos, pais,
diretores, professores e funcionários de 501
escolas de todo o Brasil. Entre os estudantes, participaram da pesquisa os que cursam
a sétima ou oitava série do ensino fundamental, a terceira ou quarta série do ensino
medido e o EJA. Do total de estudantes entrevistados, 70% têm menos de 20 anos.
Esta pesquisa revela que praticamente
todos os entrevistados (99,3%) têm preconceito em algum nível. Sobre contra quem eles
admitem ter preconceito, os alunos por ordem
de preconceito revelaram: homossexual, deficiente mental, cigano, deficiente físico; os
funcionários: deficiente mental, cigano, homossexual, morador de periferia ou favela; o
corpo técnico: deficiente mental, cigano, homossexual, deficiente físico e morador de periferia ou favela; pais: deficiente mental, cigano e homossexual, deficiente físico e pobre,
morador de periferia ou favela e índio.
Repetimos mais uma vez que, enquanto
a educação não enfrentar estas questões, o
que está acontecendo em nossas escolas é
apenas uma transmissão de conteúdos, um
verniz colorido que não penetra o âmago, a
consciência e o coração das pessoas. O que
mais impressiona na pesquisa é que o volume de excluídos apontados pelos pais é muito
maior que o dos estudantes. Talvez esteja aí
também uma mudança de rumo na convivência social rumo à inclusão.
Zygmunt Bauman escreveu um livro sobre Modernidade e Ambivalência. Aí denuncia
a prática do estado jardineiro. Assim como um
bom jardineiro faz uma seleção das melhores
mudas e elimina as ervas daninhas, o mesmo
deve acontecer no cultivo dos humanos. Politicamente isto significa expurgar a ambivalência, ou seja, eliminar a diversidade.
Primeiro e antes de qualquer coisa, porém,
significa expurgar a ambivalência. No reino
político, expurgar a ambivalência significa
segregar ou deportar os estranhos, sancionar alguns poderes locais e colocar fora da
lei aqueles não sancionados, preenchendo,
assim, “as brechas da lei”. No reino intelectual, expurgar a ambivalência significa acima
de tudo deslegitimar todos os campos de
conhecimento filosoficamente incontrolados
e incontroláveis. Acima de tudo, significa
execrar e invalidar o “senso comum” – sejam
“meras crenças”, “preconceitos”, “superstições” ou simples manifestações de “ignorância” (BAUMAN, 1999, p. 34).
Morin (2003, p. 51-59) apresenta seis
características do pensamento complexo. A
primeira delas, e é sobre ela que queremos
nos deter, é que “o estatuto semântico e
epistemológico do termo ‘complexidade’ não
se concretizou ainda” (p. 52). E continua: “o
discurso sobre a complexidade é um discurso
que se generaliza cada vez mais a partir de
diferentes vias, já que existem múltiplas vias
de entrada a ela” (idem, ibidem). Isto nos leva
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a admitir que, hoje, se trava
uma batalha entre o pensamento linear, forte, único e o
pensamento complexo, fraco,
plural. As questões de gênero, deficiência, étnicas, raciais
e de geração fazem parte do
currículo escolar.
quebrar esta unidimensionalidade. O universo não é
mais visto como uma máquina ou um relógio, mas
como um todo dinâmico,
indivisível, cujas partes estão essencialmente inter-relacionadas e só podem ser
entendidas como modelos
de um processo cósmico. O
mundo está ameaçado porque a vida está ameaçada. A
pessoa humana, ao mesmo
tempo que é parte de todo
este processo, é também estranha a ele. Ela
sofre suas consequências, mas ao mesmo
tempo interfere em suas causas. Dentro do
princípio da retroalimentação, ela é causa e
efeito, ao mesmo tempo. Sofre e faz sofrer,
mas também ama e é amada.
É preciso denunciar para as novas gerações o serviço de jardinagem que existe
no mundo produzido pelo mito da razão,
pelo pensamento forte, pela história humana linear, pela ética do contrato, da reciprocidade e do propósito... O seu contrário é
que é capaz de gerar uma sociedade onde
caibam todos.
A unidimensionalidade é uma
distorção presente no mundo
e que precisa ser combatida
com políticas e ações
concretas e adequadas. Os
problemas sociais são tão
grandes que nenhuma ciência
tem todos os pressupostos
epistemológicos para enfrentá-los. O mesmo se diga
a respeito das forças de
gênero, de etnia, de geração...
Concluindo
A unidimensionalidade
é uma distorção presente
no mundo e que precisa ser
combatida com políticas e
ações concretas e adequadas. Os problemas sociais são tão grandes que nenhuma
ciência tem todos os pressupostos epistemológicos para enfrentá-los. O mesmo se
diga a respeito das forças de gênero, de etnia, de geração...
O mesmo Edgar Morin (2003, p. 111)
apresenta magistralmente seis princípios de
esperança no meio da desesperança. São
eles: princípio vital, princípio do inconcebível,
princípio do improvável, princípio da toupeira,
princípio de salvação e princípio antropológico.
Princípio antropológico é a constatação
de que o homo sapiens/demens usou até
o presente uma pequena porção das possibilidades de seu espírito cérebro. Isso
supõe compreender que a humanidade
se encontra longe de ter esgotado suas
possibilidades intelectuais, afetivas, culturais, civilizacionais, sociais e políticas.
Nossa cultura atual corresponde ainda à
pré-história do espírito humano e nossa civilização não ultrapassou a idade de ferro
planetária (MORIN, 2003, p. 111).
Referências
BAUMAN, Z. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
BOFF, L. Virtudes para um outro mundo possível – Vol. 1: Hospitalidade: direito &
dever de todos. Petrópolis: Vozes, 2005.
BRAIDO, P. O projeto operacional de
Dom Bosco e a utopia cristã. São Paulo:
Salesiana Dom Bosco [Cadernos Salesianos, 35], 1984.
A ciência moderna com sua linearidade de causa-efeito restringiu por demais as
possibilidades humanas. Não resta dúvida
que contribuiu sobremaneira para o progresso técnico e tecnológico. No entanto, não
conseguiu criar perspectivas éticas para a
humanidade, que não fossem a de dominação e de exploração em grande escala. O
pensamento complexo, ao contrário, vem
MORIN, E; CIURANA, E. R.; MOTTA, R.
D. Educar na era planetária – o pensamento complexo como método de aprendizagem
pelo erro e a incerteza humana. São Paulo/
Brasília: Cortez/UNESCO, 2003.
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Sair da rua: fácil falar, difícil fazer!
Um estudo sobre a Rede de Apoio Social a
crianças e adolescentes em situação de rua
moradia na Região Central de Porto Alegre
Cristiane Vieira Chagas1
Letícia Horn Oliveira2
Jacqueline Costa da Silva3
Carlos Alberto Kalinovski Hoffmann4
Cristiane Saraiva Marins5
Resumo: O artigo aborda pesquisa realizada pelo grupo de estudos do Instituto
de Pesquisa a Criança e Adolescentes (INSAPECA) que investigou as estratégias da Rede de Ação Social no atendimento a crianças e adolescentes da Região Central de Porto Alegre para refletir sobre as políticas públicas de enfrentamento à questão das crianças e adolescentes em situação de rua moradia. Nos
resultados qualitativos alcançados, pode-se verificar que a desestrutura familiar
seguida da ausência de um adulto ou instituições significativas são pontos importantes para a saída de casa e ida para o espaço desprotegido da rua. O fator drogadição surge ou como motivo de afastamento familiar e/ou indicador de refúgio
para suportar a situação de vulnerabilidade, facilitando inclusive o agregamento
nas ruas. Como indicativo final, a Rede de Proteção é considerada de suma importância para os adolescentes, pois significa resgate dos vínculos fragilizados,
acolhimento e esperança para as possibilidades de transformação.
Palavras-chave: Adolescente. Rua moradia. Rede de Proteção. Família. Drogadição.
Abstract: The article discusses the research conducted by the study group named
INSAPECA that investigated the strategies of the Network of Social Action in the
care of children and adolescents in the Central Region of Porto Alegre and reflect
on the public policies for addressing the issue of children and adolescents Street
residence. In qualitative results achieved, we can see that family dysfunction, in
addition to the absence of a significant adult or institutions are important points for
leaving home and going to the unprotected area of the street. The addiction factor,
is either familiar ground for expulsion and / or indicator of refuge to support the
life of vulnerability, including facilitating the aggregation on the streets. Finally, the
Protection Network is considered very important for teenagers because it means
rescuing the lost links, shelter and hope for transformation.
Keywords: Teenage. Street housing. Safety Net. Family. Drug Addiction.
Mestre em Educação. Coordenadora do Instituto Salesiano de Pesquisa sobre Criança e Adolescente (INSAPECA).
E-mail: [email protected]
Mestre em Psicologia
(3)
Assistente Social
(4)
Mestrando em Administração
(5)
Bacharel em Administração pela Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. E-mail: [email protected]
(1)
(2)
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tro da família e interação com outros membros” (STANHOPE, 1999, p. 492).
Introdução
O grupo de pesquisa do Instituto Salesiano de Pesquisa sobre a Criança e o Adolescente (INSAPECA) estudou a realidade
da criança e do adolescente em situação de
rua moradia, sentindo-se instigado a compreender o motivo pelo qual crianças e adolescentes permanecem nas ruas da Região
Central de Porto Alegre. E ainda, conhecer
e entender como se dá o funcionamento das
Redes de Atendimento a esses adolescentes e jovens. Dessa maneira, investigou se
há um trabalho estruturado para garantir a
convivência das crianças e dos adolescentes
com sua Rede Primária e buscou vivenciar o
funcionamento destes processos.
Nesta perspectiva, através da pesquisa,
se buscou conhecer a Rede de Assistência,
para entender quais as medidas necessárias
para garantir uma maior transformação desta
realidade e a efetiva proteção integral. Apesar
dos pesquisadores saberem da profundidade
e seriedade do trabalho que já vem sendo desenvolvido, entende-se que o olhar de um grupo que não está diretamente envolvido com as
ações possa auxiliar ainda mais nos processos
instituídos. Pensar nestas questões amplia o
campo de análise e crítica social, fazendo com
que se reflita como fazer para que se cumpra a
normatização legal, a ética e os princípios básicos dos direitos da criança e do adolescente.
Assim, diante do exposto, pergunta-se:
como ocorre a recorrente permanência da
situação de rua de crianças e adolescentes
face à rede de apoio social existente na Região Central de Porto Alegre?
Na contemporaneidade há várias definições a serem consideradas e são diversos
os paradigmas que sustentam estes diferentes conceitos.
As definições clássicas de família parental, nuclear e outras vêm sendo substituídas por conceitos que entendem família
enquanto núcleo de convivência, não necessariamente consanguínea.
“A família deve, portanto, se esforçar em
estar presente em todos os momentos da
vida de seus filhos. Presença que implica
envolvimento, comprometimento e colaboração. Deve estar atenta a dificuldades
não só cognitivas, mas também comportamentais. Deve estar pronta para intervir da
melhor maneira possível, visando sempre
o bem de seus filhos, mesmo que isso signifique dizer sucessivos ‘nãos’ às suas exigências. Em outros termos, a família deve
ser o espaço indispensável para garantir
a sobrevivência e a proteção integral dos
filhos e demais membros, independentemente do arranjo familiar ou da forma
como se vêm estruturando.“ (KALOUSTIAN, 1988).
Nesta pesquisa, percebe-se que crianças e adolescentes deixam muito cedo o
convívio familiar já que este espaço apresenta-se como um lugar que carece de relações
interpessoais construtivas estando impregnado de violência, drogas e trabalho infantil.
“... Eu não me dou muito bem com a minha
mãe... Era ruim ficar em casa...” (Adolescente 1).
“... Desde pequenininho trabalhava direito, honestamente, só quando fui entrar
na adolescência que foi cruel... Cortava
grama, limpava a piscina, passava óleo
de peroba nos móveis em uma casa que
trabalhava.” (Adolescente 2).
“... De casa eu saí com seis anos... Não me
dou com a minha mãe... Não conheço meu
pai...” (Adolescente 3).
1. Família
O conceito de família, que vem se constituindo ao longo da história, nem sempre
apresenta o estereótipo que hoje está estabelecido, pois esta Instituição Social já cumpriu diversos papéis.
a família deverá ser encarada como um
todo que integra contextos mais vastos
como a comunidade em que se insere.
De encontro a esta afirmação, JANOSIK e
GREEN referem que a família é um “sistema de membros interdependentes que
possuem dois atributos: comunidade den-
São crianças e adolescentes totalmente desprotegidos, que saem de casa sem
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rumo, abrigando-se ao relento e vivendo com
grupos de crianças ou adultos significativos,
que se tornam referência de proteção e acolhida. Para estas crianças, o espaço da rua é
mais aprazível que sua casa e sua família. É
um espaço que promove visibilidade e uma
sensação de liberdade.
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao lazer,
à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a
salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão (Const. Federal, art. 227).
É proibido o trabalho infantil e aos adolescentes com menos de 16 anos, salvo na
condição de aprendiz a partir dos 14 anos
(ECA, art. 60).
As crianças de rua estão envolvidas em sua
rotina buscando meios para sobreviver. Vivem geralmente em pequenos grupos pela
necessidade de segurança e aconchego.
Dormem em calçadas, praças, casas abandonadas, possuem uma linguagem própria,
cheia de símbolos e significados. Criam
regras particulares para manutenção e proteção do seu grupo. Geralmente cometem
pequenos furtos ligados a questão da sobrevivência (CUNHA, 2000, p. 27).
Compreendendo e aceitando com plenitude o que nossas constituições determinam,
não poderíamos deixar de considerar de que
família trata a lei. Ora, trata de famílias vítimas
do descaso deste estado que também não garantiu a elas os direitos previstos. Logo, estas
crianças e adolescentes em situação de rua
tornam-se vítimas deste sistema de forma hereditária, pois são fruto de uma família igualmente desassistida.
Considerando a multiplicidade de fatores implicados neste quadro social, pode-se
citar a droga como um aspecto desagregador. Os relatos dos adolescentes demonstram e comprovam:
A conceituação do autor pode ser percebida através do relato de outro adolescente entrevistado, quando este descreve em
detalhes sua saída para a rua:
Estava com problemas na minha casa.
Minha mãe bebia e meu pai batia. Então,
peguei minha mochila, peguei o ônibus e
fui embora. Encontrei uns guris que começaram a me perguntar quem eu era, para
onde eu ia e eu falei que não sabia. Eles
me convidaram para ir com eles, para a
casa deles. A gente ficava na rua durante
o dia e eu só puxava as bolsas. Eles roubavam. Com este dinheiro ajudava a tia a
comprar comida (Adolescente 4).
“Tinha muita situação ruim na minha casa
quando era pequeno, minha mãe e meu
pai brigavam e eu sentia aquilo ruim e não
tinha como ajudar a minha mãe. E também
meu padrasto tinha uma situação com a
minha irmã e ela saiu de casa, daí eu senti
falta dela e também saí de casa com 13
anos.” (Adolescente 4).
“Quando fui procurar a minha irmã ela disse o que tu quer aqui; por que tu não volta
para casa. Daí ela me levou para casa...
Daí eu conversei com a minha mãe e ela
não deu em mim, mas depois quando ela
se chapou (álcool) e começou a encher o
saco. Daí a mãe pediu para eu ir ao armazém e eu fui e não voltei.” (Adolescente 4).
O fator trabalho é outro ponto que determina a situação de permanência ou moradia
rua. A criança ou o adolescente que vai para
a rua busca ajudar a prover melhores condições de vida para seus familiares. O menino,
na ausência do pai, que muitas vezes está
preso ou é desconhecido, se vê responsável
em auxiliar esta mãe e os irmãos. E outras
vezes é a própria família que facilita a ida
das crianças para a rua, o que resulta em diminuição nos custos de manutenção do lar.
Estes aspectos tão comuns na sociedade
porto-alegrense e brasileira ferem a Constituição e o Estatuto da Criança e do adolescente que determinam respectivamente:
A vulnerabilidade que acomete as crianças e adolescentes em situação de rua é proveniente na maior parte das vezes da falta
de afeto no meio familiar. Sendo assim, as
crianças acabam procurando a rua pela fal21
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ta de perspectiva quanto às A
vulnerabilidade
que tência da Região Central de
condições de moradia, estu- acomete as crianças e Porto Alegre:
do, alimentação, lazer e pelo adolescentes em situação
envolvimento com situações de rua é proveniente na “... na maioria das situações são
como o tráfico de drogas, vio- maior parte das vezes crianças e adolescentes que
lência doméstica (abuso físi- da falta de afeto no meio não estão na rua por acaso, tem
muitas situações de violência
co e sexual).
familiar.
Sendo
assim, doméstica, de doença mental,
O vínculo familiar muitas as
crianças
acabam de uso e tráfico dentro da famívezes não é quebrado de for- procurando a rua pela falta lia...” (Profissional 1).
ma abrupta e sim de maneira de perspectiva quanto às “Então, nós já fizemos todo um
gradual, pela necessidade de condições de moradia, trabalho para convencer um mepertencer a um grupo. Se a estudo, alimentação, lazer nino, todo um trabalho de concriança não consegue a dis- e pelo envolvimento com vencimento para ele sair da rua e
ponibilidade de outros recur- situações como o tráfico de quando conhecemos a fundo esta
sos de apoio na comunidade, drogas, violência doméstica família descobrimos que a mãe
e o padrasto eram traficantes e
como a escola, por exemplo, (abuso físico e sexual). usavam ele, que era menor de
acaba buscando o apoio mais
idade, para entregar os produtos
atrativo.
e ele não queria mais isto. Daí tu
Portanto, o que se deve considerar é
te dá conta de que como tu vai convencer
uma criança a voltar para casa para ela ser
que, em geral, as crianças e adolescentes
traficante...” (Profissional 2).
em situação de rua são privadas por longos
períodos do convívio com um ambiente de
3.2. O uso da droga nas ruas: estar
referência onde as relações interpessoais
nas
ruas
muitas vezes é sinônimo de passar
sejam afetivas, estáveis e de confiança. O
dificuldades
quanto às necessidades básipróprio Estatuto da Criança e do Adolescencas,
isto
é,
passar
fome e frio. Assim, para
te assegura à criança o direito de ser criada
muitas
crianças
e
adolescentes,
a droga sere educada no seio de sua família. Porém, os
ve
como
um
recurso
que
ameniza
esta convínculos frágeis e a ausência de uma verdadição
de
vulnerabilidade,
inclusive
os encodeira família levam muitas crianças a buscarajando
após
usar,
a
furtar
e
se
prostituir.
rem o espaço da rua.
3.3 O uso da droga enquanto fator
agregador: a vida nas ruas é sinônimo, em
um primeiro momento, de desproteção, por
isto a necessidade de um grupo de acolhida.
Muitas vezes nestes grupos há o uso da droga como fator socializador e de agregamento.
Considerando estes três fatores percebemos a problemática forte da drogadição
como um agravante e/ou como fator que
contribui para esta permanência nas ruas.
A Rede de Proteção por diversas vezes
citou a problemática de encaminhamento
destas crianças e adolescentes para tratamento, seja em função da dificuldade do convencimento do ir tratar-se, da burocratização
do sistema que exige diversas etapas anteriores à internação e a ausência de vagas
nas instituições públicas ou conveniadas.
Assim relatou um profissional da Rede
3. Drogadição
Conforme referido na categoria anterior,
a droga aparece na pesquisa como um dos
fatores que levam as crianças ou adolescentes a sair de casa, ou ainda que se torna a
companheira de muitos meninos e meninas
neste período em que vivem nas ruas.
A fim de melhor analisar a presença das
drogas no contexto das ruas, dividiremos em
três os motivos que levam ao consumo.
3.1 O uso da droga na família: muitas crianças entrevistadas justificam a droga
como causa de sua saída de casa, já que
agregado ao uso está presente a violência e
o delito. Estes fatores levam a criança a recorrer às ruas como válvula de escape a esta
situação de vulnerabilidade. Conforme indica
um profissional que atua na Rede de Assis22
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quando discutiu-se os desafios de buscar espaços de internação...
balização seria: unir o “todo” diversificado e
transformá-lo em algo “único”, massificado.
“... o que as Instituições não sabem é que
estas crianças em situação de rua não
esperam este atendimento, elas somem,
morrem ou desistem” (Profissional 3).
Vivemos sob o império dos princípios de
disjunção, de redução e de abstração cujo
conjunto constitui o que chamo de o “paradigma de simplificação” (MORIN, 2006, p.11).
4. Rede de Proteção
O homem é um ser social. Desde a
Pré-história à Pós-modernidade, o homem
só consegue desenvolver-se enquanto ser
social, na convivência com o outro. Nossos
antepassados das cavernas organizavam-se
em grupos, assim moravam, caçavam, alimentavam-se e, se necessário, deslocavam-se juntos para um novo território e ali iniciavam nova convivência coletiva. Em grupos,
conectados, formavam uma rede de sobrevivência e, dentre outros aspectos, fortaleciam
a garantia da manutenção da espécie.
A vida social acaba sendo um espectro desta condição humana de coexistência,
pois através da história e das sociedades
percebemos evoluções e involuções que se
estruturam em uma rede de relações.
A sociedade atual, ao mesmo tempo em
que compreende a necessidade da vida coletiva para que as ações sociais tornem-se mais
eficientes e eficazes, tende a usar desta Rede
de Ação como algo que massifica e uniformiza, desconsiderando as individualidades.
... o pensamento simplificador é incapaz
de conceber a conjunção do uno e do múltiplo (unitat multiplex). Ou ele unifica abstratamente ao anular a diversidade ou, ao
contrário, justapõe a diversidade sem conceber a unidade (MORIN, 2006, p.12).
Neste cenário social emergem as REDES DE AÇÃO em diversas frentes.
Uma estrutura em rede (...) corresponde
também ao que seu próprio nome indica:
seus integrantes se ligam horizontalmente
a todos os demais, diretamente ou através
dos que os cercam. O conjunto resultante é
como uma malha de múltiplos fios que pode
se espalhar indefinidamente para todos os
lados, sem que nenhum dos seus nós possa
ser considerado principal ou central, nem representante dos demais. Não há um “chefe”,
o que há é uma vontade coletiva de realizar
determinado objetivo (WITHAKER, 1998).
Corte um fio da rede elétrica, rompa o elo de
uma corrente, descosture os pespontos de
uma roupa, abra um buraco na trama da rede
de pesca. Você terá uma pequena amostra
do que significa o trabalho em rede (ou a ausência dele) (REICHEL in Türk.2001).
Com o advento do Capitalismo e do
Neoliberalismo, a mesma lógica de organização social que buscou a abertura das
fronteiras, a socialização das culturas e a
coresponsabilização dos atos sociais trouxe
consigo efeitos nocivos à individualidade e a
equidade. A luta por uma realidade social que
consiga equilibrar os aspectos opressores da
globalização, sem fechar as possibilidades
abertas pela conectividade entre realidades
distintas e distantes, ainda está travada.
Edgar Morin com a Teoria da Complexidade traz uma reflexão instigante quanto à
redução da complexidade humana, ou seja,
a tendência pós-moderna em tornar aquilo
que é diverso e diversificado em algo único
e simples. Transpondo para questões de glo-
Dançando entre a Evolução Científica e
a Involução Ética, vive-se em um mundo que
funciona, ou quase, através das Redes. Após o
período Moderno onde se entendia que o centro de todas as respostas para a satisfação e
evolução humana estaria em si próprio, a partir
da própria razão pessoal, entramos em uma era
pós-moderna que resgata a essência humana
da ação em rede. Assim, todos os processos,
hoje, buscam funcionar em rede, entrelaçando
cada vez mais os fios e formando uma malha
de corresponsabilidades e cointeresses.
Em se tratando de Rede de Proteção
podemos citar Brancher:
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definidos e autorganizável; estabelece-se
por relações horizontais de cooperação
(COSTA et al,. 2003, p.73).
Quando se fala em “Sistema de Garantia
de Direitos”, melhor se tem em mente a
compreensão teórica, abstrata e estática
do conjunto de serviços de atendimento
previstos idealmente em lei, enquanto a
expressão “Rede de Proteção” expressa
esse mesmo sistema concretizando-se dinamicamente, na prática, por meio de um
conjunto de organizações interconectadas
no momento da prestação desses serviços
(2000 p.131).
A Rede de Proteção precisa desenvolver-se como espaço de articulação entre estes atores sociais e também de entendimento
que os mesmos têm, sobre ocupar, fazer parte da rede, percebendo-se “peça” importante
para as possibilidades de mudança, contribuição na realidade sociofamiliar dos atores
principais, pois:
Assim, a Rede de Proteção compõe
uma teia que envolve Serviços Governamentais e não governamentais e Órgãos que a
partir do mesmo ideário buscam garantir os
direitos previstos em lei, garantindo políticas
públicas e/ou medidas de proteção especial.
Logo, a Rede de Proteção à Criança e
ao Adolescente deve ser um espaço de aplicação de estratégias e instrumento profissional necessário à garantia do que confere a
Constituição de 1988 em seu artigo 277, de
reconhecer as crianças e os adolescentes
brasileiros como sujeitos de plenos direitos.
E ainda o ECA (Estatuto da Criança e do
Adolescente), que contempla o sistema de
garantia de direitos incorporando tanto os Direitos Universais quanto a proteção especial
no caso de violação de direitos.
... para que a transferência e, consequentemente, o compartilhamento da informação e do conhecimento sejam sucesso,
faça-se uso da linguagem comum, sem
a qual as pessoas não se entenderão e
tampouco confiarão umas nas outras, bem
como a necessidade, às vezes, do contato
face a face (SANTANA et al, 2005, p. 138).
Neste sentido, o perfil e participação
nesta Rede, a conexão entre estas relações e
o conhecimento de como movimentar-se nos
espaços é extremamente importante à medida que o grupo que o compõe deve oferecer
confiança e não só conhecimento, pois:
O conhecimento é inerente às pessoas.
Consequentemente o agenciamento dos
relacionamentos e a confiança entre os
indivíduos nas organizações têm papel
determinante (...). Para compartilhar o conhecimento pessoal, os indivíduos devem
confiar que os outros estejam dispostos a
ouvir e a reagir às suas ideias (SANTANA
et al, 2005, p. 135).
Da perspectiva organizacional, o sistema
ancora-se na integração interdependente
de um conjunto de atores, instrumentos e
espaços institucionais (formais e informais)
que contam com seus papéis e atribuições
definidos no estatuto. Quanto à gestão, o
sistema de garantia funda-se nos princípios
da descentralização político-administrativa
e da participação social na execução das
ações governamentais e não-governamentais de atenção à população infanto-juvenil
brasileira (AQUINO, 2007, p 328).
Esse compartilhamento de conhecimento, informações e espaço, resultará em
ideias e práticas que contribuirão para a
construção de fluxos e processos legítimos
de defesa de direitos, através do processo
de instituir aprendizagem.
Consequentemente, a cultura aprendida, o agir profissional, ocorrerá como engrenagem, onde uma ação tem início a partir
da demanda, mas que tendo esse ponto de
partida deve estar conectada a outra, até que
se tenha plano traçado e executado para determinado atendimento.
Muitos são os desafios para o trabalho
em Rede, por isto é importante definir os princípios que qualificam os resultados desta ação.
São eles: comunicação; interação; objetivo comum; dinamismo; confiança e cooperação.
A rede é uma estrutura não linear, descentralizada, flexível, dinâmica, sem limites
24
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
Ainda que estes espaços sejam constituídos, formados por profissionais, é imprescindível a compreensão de que o público em
atendimento são crianças, adolescentes,
bem como suas famílias.
Desta forma, compreende-se pessoas
não só “em” atendimento, mas “para” este
atendimento, no que se refere à importância do perfil dos profissionais que o compõe,
assim como a acolhida nos locais de atendimento. Estas pessoas, podemos entender
como capital, não financeiro, mas social.
O grupo de pesquisa se refere aqui,
minimamente, ao processo de vinculação,
tão vital aos resultados esperados dos atendimentos mas que, sem o processo de humanização, não constituirá o trabalho em
Rede, tampouco de Proteção, uma vez que
depende da interação de todos os atores sociais, visando contribuir para a construção
de novas possibilidades de uma vida em sociedade. A Rede deve ser ainda significado
de cuidado.
Considera-se a Rede enquanto espaço
invisível onde concretizam-se as ações, intervenções, reuniões, contatos, enfim, as relações sociais e/ou profissionais que “costuram” o fazer profissional, a conexão entre os
serviços que compõem este espaço, perpassando entre os atores sociais, com um objetivo comum: defesa e garantia de direitos das
crianças e dos adolescentes.
soas e instituições sociais são alguns dos
motivos que separadamente, ou aliados, justificam a ida às ruas.
No espaço da rua, a droga é presença
constante, mas a Rede de Proteção é o sinal
da possibilidade da mudança. Nesta rede,
através do diálogo, da escuta acolhedora,
do olhar, muitos adolescentes conseguem
vislumbrar uma nova realidade, senão junto a sua família pregressa, com a próxima
família que irá construir. Através do estudo
da formação cultural e humana é resgatada
a autoestima, que leva estes jovens a pensar em futuro. Os números daqueles que
entram na rede não é tão grande quanto poderia ser, mas o trabalho realizado é efetivo
e eficaz.
Para transformar mesmo, e evitar a instalação deste quadro, é necessário trabalhar
preventivamente. Garantir a estas crianças
uma família acolhedora, uma escola encantadora, que preserve a infância e seus direitos. Além, é claro, de continuar lutando por
políticas públicas e por melhorias nos atendimentos públicos e conveniados de qualidade, que efetivamente resolvam situações e
mudem vidas.
Referências
AQUINO, Luseni M.C. de. A rede de
proteção a crianças e adolescentes, a medida protetora de abrigo e o direito à convivência familiar e comunitária: a experiência
em nove municípios brasileiros. IPEA, Brasília, 2007.
5. Considerações Finais
A recorrente permanência da situação
de rua de crianças e adolescentes face à
Rede de Apoio Social existente na Região
Central de Porto Alegre ocorre em função
de questões sociais, políticas e econômicas
que ao longo da história brasileira deixam
à margem as famílias pobres, bem como
crianças e adolescentes de periferia. Sem
o intuito de minimizar a complexidade dos
fatos, podemos considerar que ocorre um
ciclo de ações e reações sociais de desfavorecimento e vulnerabilidade que em muitos
casos, reflete na ida de crianças e adolescentes para as ruas.
Violência familiar, abuso, drogadição,
trabalho infantil, poucos vínculos com pes-
BRANCHER, Leoberto N. Organização
e gestão do Sistema de Garantia de Direitos da Infância e da Juventude In: KONZEN
et alii. Pela Justiça na Educação. Brasília:
MEC, 2000.
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Federativa do Brasil: promulgada em 5 de
outubro de 1988. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
BRASIL 2. Estatuto da Criança e do
Adolescente. LEI N° 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990.
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
COSTA, Larissa et al. (Coord.). Redes:
uma introdução às dinâmicas da conectividade e da auto-organização. Brasília: WWF-Brasil, 2003.
SANTANA, Juliana Prates et al. Os adolescentes em situação de rua e as instituições de atendimento: utilizações e reconhecimento de objetivos. Lusociência, 1999.
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MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita:
repensar a reforma, reformar o pensamento.
Bertrand Brasil, 2006.
26
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
Universidade, ética e direito
Osvaldo Biz1
Resumo: “Não sabe direito quem só sabe Direito” é uma frase bem aceita no
mundo da Academia. De fato, é preciso ter uma cultura bem fundamentada para
compreender os fenômenos e as condições que ajudam a contextualizar realidades que nos afetam. Daí, a importância da Universidade, das disciplinas de
humanidades, como Filosofia, Sociologia, História, e a necessidade do diálogo
entre Ética e Direito.
Palavras-chave: Universidade. Ética. Estado de Direito. Utopia.
Abstract: “Those who only know Law do not know things the right way” is a
well accepted sentence in the academic world. In fact, it is necessary to have a
well-grounded culture to understand the phenomena and conditions which help
contextualize realities that affect us. Hence the importance of the university, the
humanities courses such as Philosophy, Sociology, History, and also the significance of a dialogue between Ethics and Law.
Keywords: University. Ethics. Rule of Law. Utopia.
Missão da Universidade
As Universidades desempenham funções de ensino, investigação e prestação de
serviços. Elas enfrentam desafios como o de
detectar tendências e necessidades que surgem no interior da sociedade. Sua missão:
procurar respostas; ensinar a pensar. Tendo em vista este objetivo, deve ser possível
oferecer ao mundo acadêmico e à sociedade instrumentos adequados para que seja
viável ampliar seus horizontes e lutar pelas
transformações que o nosso país exige.
Para concretizar projetos de mudanças, a
Universidade não pode perder sua capacidade de questionar, de investigar, de incomodar
e de criar soluções para os novos desafios de
ordem tecnológica e social. Isso representa a
necessidade do pluralismo de ideias, acompanhado de universalismos, solidariedade, ética,
excelência, tolerância. É certo que sem pluralismo não existe o cultivo do espírito crítico.
Tolerância não é indiferença. É paixão
pelas ideias. Porém, não é nada fácil ser tolerante. Como aceitar ideias intoleráveis para
destruir a intolerância? Quando não há respei-
to pela diversidade, implanta-se a tirania. Essa
foi a caminhada do Nazismo, cujas funestas
consequências são do conhecimento de todos.
A tolerância é fundamental no convívio
social. No entanto, a intolerância continua
presente no mundo, basta ver a destruição
de povos, ontem e hoje, desde os indígenas
até as minorias espalhadas nas diversas partes do mundo, as rivalidades entre as tribos
africanas, não esquecendo os conflitos com
as grandes religiões do Oriente. Ora, todos
têm direito à defesa da vida e à preservação
de sua cultura. A tolerância e a aceitação das
diferenças são princípios de uma democracia. A liberdade de expressão é um direito.
Cabe à Universidade, com sua constante interpretação e reinterpretação da
sociedade, prestar um serviço valioso para
a formação da consciência crítica e para a
consolidação de uma Nação democrática,
que conviva respeitosamente e com firmeza,
que se posicione em defesa do dissenso, da
tolerância e da pluralidade de informações,
combatendo a uniformização. Assim o fazendo, posicionar-se-ia em favor do povo, da so-
(1)
Bacharel em Comunicação Social, Jornalismo. Licenciado em Filosofia, Geografia e História. Mestre em História. Doutor em Comunicação pela PUCRS. Acadêmico de Direito da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. E-mail: [email protected]
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ciedade, cumprindo sua missão e dispensan- ideias. No entanto, podem ser apontadas redo a necessidade de explicar as razões de servas quanto ao trabalho de muitos deles,
sua existência, justificando-se por si mesma. uma vez que, deixando de ser críticos, acaO que pode acontecer de ruim é que, bam justificando a ordem estabelecida.
quando os intelectuais da Universidade, vista
Inexiste um receituário acabado quando
como uma instituição da sociedade, intervêm o assunto é Universidade, afirma Marcovith.
somente em momentos esporádicos, sem Mas é importante que prevaleça a insistência
propostas concretas e de forma mais soli- em relação aos dois eixos: missão acadêmitária do que solidária, sem questionar o po- ca e compromisso social. Estes dois preceider, os resultados acabam sendo ineficazes. tos serão sempre atuais, enquanto a UniverReforça-se, então, a cobrança da postura sidade for Universidade.
dos intelectuais, uma vez que todos somos
responsáveis pelo silêncio e pela indiferença
Ética e Direito
frente aos fatos locais.
A visão de uma ética crítica e propositiva
O produto pode vir do trabalho da elite, permite alguns desdobramentos. Um deles é a
mas o seu uso deve estar a serviço das gran- constatação de que a realidade mostrada não
des massas e dos excluídos. Em suma, ao é algo acabado, pronto, absolutizado, invariálado dos que não têm voz.
vel, desenraizado do passado. Há que descarA Universidade, uma instituição originá- tar, conforme afirma Wolkmer (1996, p.139),
ria da Idade Média, tanto ontem como hoje
todo o extremado rigorismo que envolve a
tem a mesma função, qual seja, a busca do
lei como axioma acabado, porquanto esta
conhecimento. Ensinar a pensar, no sentido
não deve ser vista como a única e exclude indicar o que fazer com as informações,
siva fonte do Direito. Crer unicamente nas
uma vez que as mudanças no campo das
convicções ideológicas de um leideias são as mais difíceis.
gislador é esquecer que existem
É sagrada a continuação da Fala-se em falta de ética. outros pressupostos, tanto ou
sua tarefa em defesa do po- Mas quando nós aceitamos mais incisivos que a própria letencial sócio-político-cultural. esta disparidade social gislação formal. É profundamenA vida intelectual e a re- existente em nosso país, te incorreto prestar reverência a
concentração
de uma lei que já não responde a
cusa para assumir ideias não esta
renda,
estes
milhões
de
uma justa e ética necessidade
combinam. Conforme o falesocial.
compatriotas
classificados
cido Geógrafo Milton Santos,
como
miseráveis,
evidenciaesse é o traço que diferencia
Fala-se em falta de étio verdadeiro intelectual da- mos nosso comportamenca.
Mas
quando nós aceitato
antiético
diariamente.
quele letrado que não quer
mos
esta
disparidade social
ou não pode mostrar que
existente
em nosso país,
pensa. Não há dúvida de que será de apenas
esta
concentração
de
renda,
estes milhões
uma parte da classe dos intelectuais que saide
compatriotas
classificados
como miserárão propostas de mudança. Daqueles que,
veis,
evidenciamos
nosso
comportamento
através de suas pesquisas, derrubam aquilo
que é aceito como obviedade, sem nenhum antiético diariamente.
A ética é uma realidade aberta, sujeita
questionamento.
a
mutações.
Através do empenho, é possível
Os modelos de sociedade resultaram da
escrever
o
roteiro
de nossa própria história,
imposição de determinados grupos e, por isso
cada
um
tornando-se
sujeito, e não mero esmesmo, não são inexoráveis. A tendência, ao
pectador.
A
ética,
segundo
Márcio Fabri dos
refletir sobre a realidade, é provocar uma interAnjos
(1996,
p.
12),
venção, ou seja, trabalhar por uma sociedade
mais justa, diminuindo a desigualdade entre
deve ser assumida como instância crítica e
ricos e pobres. O compromisso do intelectual
propositiva sobre o dever ser das relações
é radicalizar a crítica, já que ele trabalha com
humanas em vista de nossa plena realiza28
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
gar o outro para tomar o seu lugar. Não se
pode falar em ética de relações justas se o
sistema é egocêntrico e avança tendo como
pressupostos práticas injustas, não dialógicas. Fabri dos Anjos (1996, p. 172) trata de
uma ética emancipatória:
ção como seres humanos. Entre seus critérios fundamentais está a convicção de que
o outro, o semelhante humano, merece a
respeitabilidade que se dá ao ‘eu’.
A Ética propositiva de Fabri dos Anjos indica que as instituições humanas evoluem, não
são completas, podem crescer, fazendo surgir
novas exigências e desafios. Daí a importância da busca de novas atitudes. Necessário
se faz, então, pesquisar a fundamentação de
ações e relações, objetivando dar respostas a
uma nova visão de homem, de sociedade, do
agir humano e de suas transformações.
A instância Ética, na formação social, é
a libertação dessas classes populares, como
afirma Timm (1999, p. 97),
No panorama global, os números da pobreza socioeconômica são traduzidos em
fome, precariedade de saúde, moradia e
educação. De fato crescem; como cresce também a distância excludente entre
ricos e pobres. A tentação será considerar os pobres cada vez mais uma massa
anônima e manipulada. Mas pelo vetor da
cultura, ao contrário, se encara a pobreza
de forma menos massiva, considerando as
diferentes capacidades de cada grupo em
resistir e criar alternativas. Sem isto, empobrecemos conceitualmente ainda mais
os pobres. Dessa forma, os conceitos de
alteridade e gratuidade tão caros à ética de
libertação ganham novos contornos pela
consideração da cultura.
não se trata só de um conjunto bem-acabado de preceitos utilitaristas ou de prescrições universais mais ou menos inócuas,
mas fundamento último e primigênio do
real. Compreender o mundo, nesse sentido, não significa embriagar-se com a potência do logos em seu desdobramento,
mas sim, significa construir humanamente o próprio sentido do mundo (...). Que a
oportunidade que temos para tal construção Ética – a nossa vida e o chamamento
à responsabilidade pelo futuro – não seja
em vão, e que a era da “igualdade” dê finalmente lugar ao tempo da dignidade da
diferença ética.
A ética se afina com a dialética, justamente porque esta é essencialmente crítica
quanto aos pressupostos do conhecimento
sobre as estruturas socioeconômicas, que
marginalizam amplas camadas da sociedade.
Dialética, etimologicamente, vem do grego,
trazendo o sentido de dialogar, discursar, conversar, ou seja, representa uma intervenção
nas ideias, em que uma proposta é defendida
ou contestada. O conhecimento é alcançado
através de perguntas e respostas. Essa abertura para o outro – a do diálogo – pode significar a possibilidade de mudança nas próprias
convicções, resultando daí um avanço. Sem
isso o conhecimento seria mumificado. De
acordo com Konder (1985, p. 7):
Todavia, só é possível entender a dignidade dentro de um princípio que inclua a
construção histórica, o que se contrapõe a
algo pronto, acabado. O caminho a ser adotado é o do diálogo, entendido não como o
domínio de uma pessoa sobre a outra, mas
como uma situação de igualdade, dentro de
uma dimensão relacional.
Aí, então, é possível falar sobre ética de
relações justas, pois ninguém pode ser ético
sozinho, assim como não existe uma cidadania solitária. Somos cidadãos quando em
conjunto. Sob o império do Neoliberalismo,
essas posturas éticas e a dimensão relacional são incompatíveis. O realce é para o individualismo e o egoísmo presentes na vida
econômica e política, componentes da lógica
capitalista. Vale a competitividade, o esma-
Dialética era, na Grécia Antiga, a arte do
diálogo. Aos poucos, passou a ser a arte
de, no diálogo, demonstrar uma tese por
meio de uma argumentação capaz de definir e distinguir claramente os conceitos
envolvidos na discussão.
A dialética busca desvendar o que se
esconde atrás das aparências e fenômenos.
É a antítese em relação ao que está institucio29
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
nalizado, colocado e pensado como imutável,
ou seja, a tese. Com a negação da afirmação
chegamos à síntese, uma visão da totalidade que, pelo próprio método, está sujeita a
novas transformações, já que não é uma estrutura invariante, absolutizada. A dialética é
um dos métodos mais apropriados para fazer compreender a realidade histórico-social.
Busca, na parte, a relação com o todo.
Pergunta-se: outro Direito é possível?
Sabemos da ambiguidade do Direito (Mascaro, 2003) ao mesmo tempo em que é extremamente conservador e reacionário, é
também contestador e transformador. Existem muitas interpretações do e sobre o Direito, com destaque para o viés positivista e
a perspectiva crítico-dialética, como alerta
Wolkmer (1996, p. 126):
Estado de Direito é incompatível com o Estado de miséria, uma vez que a exigência ética
básica é incondicional e abrange todas as dimensões humanas.
Outro aspecto inerente à instância crítica é a não aceitação da imparcialidade da
Ciência, uma vez que o pesquisador não é
um sujeito isento, sem ponto de vista pessoal
e desligado de valores morais. A injustiça social é aceita como um parâmetro normal. Daí
decorre a indiferença em relação à brutalidade do desemprego, das condições de trabalho
e das demais injustiças sociais já mencionadas. Buscando um contraponto, temos o Direito Alternativo, cujo fundamento é a ética da
alteridade (Wolkmer,1996). Ele se inspira na
situação histórica de estruturas socioeconômicas marginalizadas até hoje.
O Direito Alternativo se propõe a gerar
uma prática pedagógica libertadora, a fim de
emancipar os oprimidos e excluídos. Conforme
Wolkmer (1996), não se trata de desconsiderar a importância da legalidade, ou de atribuir
ao juiz um poder indiscriminado. Mas, antes,
trata-se de visualizar o Direito como instância
de construção de uma sociedade mais justa.
Como, então, prestar reverência a uma
lei que já não responde a uma legítima e ética
liberdade social? Superar o legalismo, analisando a vida dos envolvidos nas lutas sociais,
é o que pode ser chamado de Direito Vivo. É
preciso transformar todo o Direito em ação,
tornar a nós próprios instrumentos de ação,
demarcar um novo sentido para a utopia.
O sociólogo português Boaventura de
Souza Santos (Folha de São Paulo, 21 de
maio de 2001, Caderno A, p.07) afirma que
sociedades democráticas convivem com um
novo fascismo, que não é um regime político,
mas um sistema de relações sociais muito
desiguais. Ele explica sua posição: a extrema
polarização da riqueza em muitos países, e
o Brasil é bom exemplo disso – está criando
uma forma de convivência semelhante à produzida pelas sociedades fascistas tradicionais.
A convivência com o medo e o colapso
total das expectativas se traduz por uma vida
sem certeza de continuidade, sem certeza de
emprego, sem garantia de liberdade. Este tipo
de rotina fascista, no entanto, não está sendo
Certamente que o Direito na sociedade
moderna está fundado na adequação com
a forma burguesa de sociedade, com a
culminância de um processo de produção
capitalista, com a hegemonia legitimadora liberal-individualista e, finalmente, com
o modelo de organização institucional de
Estado burocrático-nacional. É como instrumental sociopolítico, normativo, assentado na institucionalização centralizadora
do poder estatal, que o Direito moderno se
impõe obrigatoriamente, materializando,
coercitivamente, as condições de ação dos
estratos e dos segmentos sociais.
A ética no Direito depende também de
outras instâncias, assinaladas nas práticas
cotidianas, como sustenta Fabri dos Anjos
(1996, p. 14),
não são suficientes os códigos marcados
pela ética. São indispensáveis também
as atitudes e posturas éticas, e estas não
apenas assumidas por indivíduos, mas
principalmente por boas instituições, para
que tenha sustentação e executoriedade
das boas leis.
O filósofo Manfredo de Oliveira (1995,
p. 13) pergunta como podemos considerar
nosso país um Estado de Direito, enquanto
a violência e as arbitrariedades sistêmicas
regem as relações econômicas. Para ele, o
30
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
produzida por um Estado fascista. O Estado é
Além de a ética representar uma insdemocrático, em que há partidos, há assem- tância crítica, ou seja, um pensamento que
bleia, há leis, há instituições públicas. Porém, reconhece que há sempre algo por fazer,
existe nele uma população, cada vez maior, ela precisa ser propositiva em relação aos
que não tem acesso aos seus benefícios.
padrões éticos universais a serem adotados
O Artigo 5º da nossa
para as atitudes. É necesConstituição diz que todos Além de a ética representar sário um ethos global, um
são iguais perante a lei, uma instância crítica, ou novo código que proponha,
um
pensamento por exemplo, passar de uma
sem distinção de qualquer seja,
natureza. Entretanto, Boa- que reconhece que há sociedade de exclusão para
ventura Souza Santos, na sempre algo por fazer, ela uma de inclusão, pois todos
abertura do II Fórum Mundial precisa ser propositiva os indicadores demonstram
de Juízes, em Porto Alegre, em relação aos padrões a marginalização crescente
(janeiro de 2003) alertou so- éticos universais a serem dos desfavorecidos. A ética
bre a dificuldade de se fazer adotados para as atitudes. da alteridade deve ser consjustiça frente à exclusão sotruída, o que confirma a vicial. Muitos cidadãos estão
são de Fabri dos Anjos como
excluídos do seu direito mínimo, muitos não propositiva. No dizer de Wolkmer (1966. p.
existem socialmente. Entretanto, temos uma 144), essa ética da alteridade não se prenConstituição que garante direito a todos.
de a engenharias “ontológicas” e a juízos “a
Trata-se do universal. A igualdade pe- priori” universais, mas reduz concepções varante a lei rompeu com a desigualdade ab- lorativas que advêm das próprias lutas, consolutista (mas impede a visão das diferenças flitos e interesses de sujeitos históricos em
estruturais da sociedade). Em nosso país, permanente afirmação.
que ostenta uma sociedade da opulência e
De acordo com Fabri dos Anjos (1994),
outra da miséria, servirá o Direito para uma pelo menos em nossa experiência da Amétransformação social em favor do oprimido? rica Latina, a vitrine da necessidade que teQuestiona Mascaro (2002, p. 12):
mos de ética são os números absurdos da
fome e da miséria. Mas, por mais absurdos
Para o sentido comum jurídico, o direito é o
que sejam os números, a ética não emerge
elemento de concórdia, é o fim do conflito,
porque tocamos as raias da insuportabilidae a justiça social é imparcial. De antemão é
de. Em outros termos, a ética não emerge na
preciso rejeitar esta frágil e tosca perspecsociedade pelo canal da indignação. Antes,
tiva jurídica. O direito, em quinhentos anos
parece que ela tem chance de se mostrar
de Brasil, foi a forma pela qual o dominador
pela verificação de que a pobreza produzida
organizou a colônia para a exploração, e, depela própria ordem econômica incomoda-a
pois, a forma pela qual se organizou a sociedade dos donos de escravos e, depois, a forprofundamente, ao mesmo tempo em que tal
ma pela qual se organizou a sociedade dos
ordem se mostra impotente para reprimi-la,
exploradores sociais contra os explorados.
domesticá-la ou erradicá-la.
Em nossos dias, muito se fala da imporUm dos critérios da ética é reconhecer tância da ética em relação aos políticos. Pouno outro um semelhante humano, e não al- co se fala de sua falta em muitas organizações
guém cuja existência é inútil ou desneces- e no modo de produção de capitalista, em que
sária. A dimensão ética deve subjazer todo a corrente liberal sequer problematiza o fato
projeto que visa a construção de um novo de que o econômico não pode ser pensado
modelo de sociedade, não permitindo que totalmente fora da esfera ética. Isso acontece
os grandes desafios do nosso tempo sejam porque, segundo Oliveira, (1995, p. 65),
deixados ao sabor do livre jogo das forças do
desde seu nascimento na modernidade,
mercado. O econômico não pode ser pensamas sobretudo, a partir dos economistas
do fora da esfera da ética.
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à globalização econômica, diante do menosprezo da ética em relação a grupos humanos
sem nenhuma expectativa de melhoria em
sua condição econômica e social, é urgente
que o Estado e a Sociedade Civil repensem
suas práticas, em favor dos desafortunados.
A ética é uma reflexão teórica que tem
condições de gerar análise e crítica a certos
fatos apresentados pela mídia, os quais reNo entanto, a economia deve estar a sultam da manifestação do ser humano, que
serviço das necessidades básicas dos seres é inacabado, imperfeito, limitado, em contíhumanos. Não se trata apenas de regras téc- nua busca por mudanças. Por isso, ela pernicas para o perfeito funcionamento do sis- mite o questionamento sobre atitudes, regras
tema econômico. Ora, o neoliberalismo, com e ações humanas.
Isso significa também que as instituiseu efeito sedutor, com suas peculiaridades
de exaltação do individualismo, com sua éti- ções humanas evoluem, não são completas,
ca da eficiência, com suas ideias de que bas- podem crescer, fazendo surgir novas exigênta competir para vencer, com o livre merca- cias e desafios e, por consequência, a busca
do como instituição perfeita, representando de novas atitudes. Por isso a ética não é esa solução de todos os problemas, beneficia tática, mas propositiva, assim como o direito.
Necessário se faz, então, através de
somente os empreendedores, os inclusos no
sistema. A aceitação desta postura significa ações e relações, dar respostas a uma nova
visão de homem, de sociedade, do agir huuma ação ética conservadora.
Para Volkmer (1996, p.147), a ética mano e das suas transformações. Chegadeve se propor a gerar uma prática pedagó- mos, então, a uma ética propositiva: a prátigica libertadora capaz de emancipar os su- ca de uma ética que se compromete com o
jeitos históricos oprimidos, injustiçados, ex- gênero humano, que denuncia a dominação,
a manipulação travestida de
propriados e excluídos. Esta
A universidade deve assumir, defesa do interesse de todos.
prática será possível muito
dentre seus vários objetivos,
A dimensão ética não é
mais facilmente com base
a responsabilidade social. Os pensada como algo pronto.
em razões éticas do que em
conhecimentos acumulados Ela está para se posicionar
interesses políticos. Afinal, a
por seus agentes devem sobre a evolução dos fatos.
dimensão ética é a dimenser aplicados na solução À medida que a sociedade
são propriamente humana
dos problemas sociais. apresenta novos desafios,
da existência.
a ética deve buscar respostas, sem renunciar ao que é irrenunciáConclusões
A universidade deve assumir, dentre vel. Certas exigências da ordem social, do
seus vários objetivos, a responsabilidade so- atendimento às necessidades básicas do
cial. Os conhecimentos acumulados por seus ser humano, não podem ser negociadas,
agentes devem ser aplicados na solução dos ao contrário, são exigências prioritárias até
problemas sociais. Não se pode permanecer mesmo para o funcionamento de uma orapenas na vertente economicista e produti- dem democrática.
A economia deve estar a serviço das nevista, tendo em vista somente os problemas
mundiais. A preocupação, hoje, deve voltar- cessidades básicas dos seres humanos. Não
-se para os problemas nacionais e locais. Afi- se trata somente de regras técnicas para o
nal, os cidadãos são mais importantes que perfeito funcionamento do sistema econômico. A aceitação desta postura significa uma
os mercados.
Frente ao momento histórico, em que ação ética conservadora. A ética propositiva,
há destaque para o capital financeiro, frente por seu turno, significa que as instituições
neoclássicos, a ciência econômica levanta a questão de articular-se, como saber,
dentro do paradigma do conhecimento da
modernidade, ou seja, como um conhecimento isento de valores. Daí a tese da
separação entre economia e ética. A tarefa
fundamental da ciência econômica é explicar o sistema econômico, abstraindo da
questão ética de sua justiça ou injustiça.
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humanas evoluem, que surgem novas exigências e desafios e, por isso mesmo, há a
necessidade de novas atitudes. Esta constatação deixa visível a nossa incompletude, a
necessidade contínua do “de vir”, na busca
de um projeto comum de sociedade eticamente regulada.
rência no III Fórum Social Mundial, Porto
Alegre, Janeiro de 2003.
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Reflexões críticas sobre o Instituto do
Concubinato no Direito Brasileiro
Roberta Drehmer de Miranda1
Resumo: O presente trabalho tem por finalidade demonstrar a ausência, no direito brasileiro, de uma clara distinção entre o concubinato, a união estável e o
casamento. Embora tenha havido significativa evolução doutrinária e jurisprudencial sobre os institutos, culminando com o advento do Código Civil de 2002
que sobrepõe o instituto do casamento sobre o concubinato e a união estável,
ainda podem ser vistos e julgados, principalmente no Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, que dão aos concubinos status de casados, concedendo efeitos
patrimoniais próprios do direito de família, manifestamente ilegais e antijurídicos.
Por meio de uma análise histórico-sociológica, o presente artigo elucida que somente o casamento constitui comunhão plena de vida, como família, sendo a
união estável apenas considerada pelo Direito como equiparada ao matrimônio e,
por fim, o concubinato, como situação fática antijurídica, não aceita pelo Direito,
resultando tão-somente em efeitos patrimoniais cíveis, como sociedade de fato.
Palavras-chave: Concubinato. União Estável. Relações Interpessoais. Direito de
Família: Brasil.
Abstract: This work proposes to demonstrade the absent, in the brasilian law, of
a clear distinction between common-law marriage, “união estável” and marriage.
Though has been an significative evolution of the doctrine and the jurisprudence
about the subject, wich culminate in the begining of the 2002 Brazilian Civil Code
that overrides the marriage above common-law marriage and the “stable union”,
still we can see precedents, specially in the Rio Grande do Sul Court, that gives to
the concubines an couple status, like marriage, and a series of family law patrimonial efects, wich are clearly ilegal and against the law. Through an historical and
sociological analisis, the presente article elucidates that only marriage can make
a family, and the “stable union” is only considerades by the law as treated like a
marriage, and, at last, the common-law marriage, as a fatical situation against
the law, and not acepted by the law, wich results only in patrimonial efects, as a
common-law society.
Key-words: Common law marriage. “União Estável”. Interpersonal relations. Family law: Brazil.
reito, na medida em que foi no seio das relações familiares que as primeiras convenções
positivas tornaram-se gerais e aplicáveis a
todos, no âmbito social.
O surgimento da família está intimamente ligado à religião. A preocupação com
Introdução
As relações humanas, no decorrer da
história, sempre nos trazem surpresas e mistérios. Muito mais quando diz relação com a
origem e evolução da família, ponto de partida de toda civilização política e do próprio di-
(1)
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Direito Público
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutoranda em Sociologia do Direito pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Professora da Faculdade de Direito Dom Bosco de Porto Alegre. E-mail: [email protected].
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a descendência e com a existência de uma
prole definida fez com que os povos primitivos – mormente os que viveram transitoriamente uniões livres – procurassem
estabelecer relações monogâmicas fixas,
celebradas com ritos religiosos, que tivessem uma exterioridade duradoura e constante. Esta, portanto, é a origem da família
fundada sob o casamento.
Em paralelo a essas uniões duradouras constituídas por um casamento, algumas uniões, que poderíamos cunhar “extraconjugais” (que não eram, repita-se, o caso
central, pois não tinham respaldo algum na
religião doméstica), não tinham reconhecimento moral nem sociopolítico. A concubina
era alguém subordinado ao chefe de família, mormente para manter somente relações
sexuais, e não participava socialmente nem
patrimonialmente do status do chefe, em
igualdade com a esposa. A concubina permanecia nessa situação e assim aceitava,
por circunstância cultural.
Portanto, as situações sociais, do
ponto de vista jurídico, sempre foram muito claras. Havia a separação nítida entre a
esposa e a concubina. Por isso ser entendível que a maioria das legislações então
vigentes assim disciplinassem as relações
familiares fundadas no casamento e as extraconjugais, nesta se enquadrando a concubinária (livre ou impura).
Contudo, podemos dizer que foi a partir
das ideias renascentistas, liberais, modernas,
que, em verdade, são o fundamento dos movimentos contemporâneos de liberdade moral
e sexual da contemporaneidade (a partir dos
anos 60 e 70), que o padrão histórico-jurídico
da família fundada sob o casamento passou a
ser questionado. Em primeiro lugar, pela posição tomada pela Igreja Católica no sentido
de considerar como família verdadeira aquela fundada sob o casamento em seu sentido
sacramental, inadmitindo, pois, a separação
judicial e o divórcio. Levando em conta que
há um grande número de casais autointitulados “católicos” que estavam, em verdade,
buscando o divórcio por falência da relação
pessoal conjugal (e, portanto, forçavam um
aval da Igreja) ou que se casaram por con-
veniência (e, portanto, não viam mais razão
de viverem sob o mesmo teto), obviamente a
posição católica foi a primeira a ser combatida e, do ponto de vista do direito positivo, foi
derrotada, pois hoje a maioria das legislações
estatais admite o divórcio. Em segundo lugar,
as uniões livres, que assim o eram, pois havia
alguma circunstância social ou legal que impedia tal relação, passaram a ser a primeira
opção, já que numa sociedade de individualismo extremado e de livre concorrência, a
desconfiança acaba por imperar em todas
as relações pessoais.
Dessa forma, houve uma gradativa alteração do próprio termo “concubinato” que,
antes considerado como união livre (lícita ou
ilícita) não jurídica, passa a ter relevância jurídica sob dois aspectos: quando existente
entre duas pessoas, livres, desimpedidas,
com relação constante e duradoura (então
chamada “união estável”, união de fato que
não necessita de alguma celebração especial ou rito de comunhão esponsal); e quando existente entre duas pessoas, sendo uma
delas com algum impedimento decorrente de
obrigação ou convenção esponsal. A primeira tem abrigo sob o direito; a segunda (o antigo concubinato impuro), o tem apenas sob
o ponto de vista patrimonial, como se fosse
constituída uma sociedade de fato.
O presente ensaio tem por objeto trabalhar as seguintes questões: quais os efeitos do concubinato, se existente? Ou: é lícito
ou em conformidade ao direito (tomado aqui
também como tradição) considerar o concubinato como família? Ainda: qual o limite entre o concubinato e a união estável, e se há
possibilidade de transformação do primeiro
no segundo? Tais questionamentos são candentes na prática jurídica, e são vistos na jurisprudência com frequência, sendo missão
do jurista delimitar devidamente os institutos,
sob o ponto de vista da tradição jurídica e da
lei positiva, a fim de que nem um nem outro seja esquecido ou subjugado a terceiro
plano, o que levaria, sem dúvida nenhuma, a
um subjetivismo ou decisionismo bem como
a um relativismo extremo do próprio direito.
O trabalho está dividido em duas partes.
Na primeira parte, abordar-se-ão algumas
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noções fundamentais acerca do concubinato, seu conceito, origens e o tratamento legal
disciplinado pelo sistema positivo brasileiro,
mormente pelos Códigos Civis de 1916 e o
atual, de 2002. Na segunda parte, analisar-se-ão alguns elementos dogmáticos e práticos da relação concubinária, a evolução
normativa e jurisprudencial, buscando fixar,
em conformidade com a tradição jurídica, o
correto espaço e tratamento deste instituto
no direito civil e familiar.
rada à família formada pelo casamento (REALE, 2004), exatamente por ter características e
finalidade semelhantes ao deste último.
Essa definição de concubinato pôde ser
vista mais nitidamente, na história do direito,
com os romanos, que baseavam fundamentalmente a família sob o casamento, pois havia a preocupação de transmissão, à prole e
aos demais membros da família, o encargo
do culto religioso e da administração do patrimônio1. Não havia família sem casamento;
as uniões livres não eram ilícitas (sob o ponto
2. Noções fundamentais acerca da
de vista criminal, inclusive), desde que consrelação concubinária
tituídas por pessoas livres que não estivessem em situação contrária ao direito (como o
2.1 Conceito e origens da relação
adultério) ou pelo pater que quisesse manter
concubinária
sob sua égide mulher para manutenção de
Do ponto de vista etmológico, “concu- relações transitórias (tanto no casamento
binato” vem de concubans, concubantis, cum manu como sine manu).
significando o que dorme ou se deita com
Beviláqua faz rico comentário sobre a
(RIZZARDO, 1985, p. 218). Exprime, pois, a relação entre os esponsais e os concubinos
ideia de comunidade de leito. Num sentido (1905, p. 219). Nos povos antigos, a mulher
comum, é a união entre um
sempre fora considerada inhomem e uma mulher sem Num
sentido
estrito, ferior moralmente e incapaz
os vínculos do matrimônio.
concubinato é a união juridicamente; tinha total deEssa união pode se permanente
entre
um pendência para com o marimanifestar de duas formas. homem e uma mulher, com do e, na sua morte, para com
Num sentido mais amplo, é características semelhantes os filhos ou outros parentes
a união transitória entre um à convivência more uxório designados para sustentáhomem e uma mulher, num do casamento, só que sem o -la. Não tinha patrimônio prómesmo teto ou em tetos dife- vínculo formal deste. É uma prio e apenas administrava
rentes, visando manter rela- união de fato que não visa poucas atividades do lar e
ções sexuais e afetivas com tão-somente relação afetiva, cuidado e educação com os
o parceiro, sem o vínculo do mas uma comunhão de vida filhos. O marido tinha o dever
matrimônio – sendo estado a prolongar-se no tempo. de sustento, de afeto e, em
alguns povos, até de fidelidaintermédio entre a relação
de; mas também tinha o difugaz e o casamento.
Num sentido estrito, concubinato é a reito de punir, sendo comum o homicídio em
união permanente entre um homem e uma casos de adultério (gérmen talvez da legítimulher, com características semelhantes à ma defesa da honra).
Contudo, o direito hebraico já concedia
convivência more uxório do casamento, só
que sem o vínculo formal deste. É uma união as raízes do tratamento entre esponsais do
de fato que não visa tão-somente relação afe- Ocidente, posto que a mulher tem papel relevante e fundamental na família judaica. O
tiva, efêmera a prolongar-se no tempo.
Obviamente, o segundo sentido enqua- marido cerca a mulher de intensa consideradra-se ao que hoje se chama “união estável”, ção; tem o direito de cominar penas a quem
considerada pelo direito como entidade equipa- a ofender fisicamente, a quem seduz uma
No mesmo sentido, comentando a formação da família a partir da religião, pela celebração do casamento, o estudo de Fustel Coulanges (1998, p. 37- 52).
1
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virgem, a quem maldiz sua mãe. Há reciprocidade de deveres entre o marido e a mulher,
esta tendo inclusive direito à participação
nos ritos familiares religiosos (ainda que em
público deva comparecer à sinagoga em separado). Ainda que não exista uma igualdade
plena, há, evidentemente, uma evolução no
relacionamento intrínseco entre os esponsais, sendo alguns os casos de concubinatos
ou relacionamentos passageiros (na Bíblia, é
conhecido o exemplo de Salomão, mas pouco falado o caso de Moisés).
Em Roma, as formas conjugais jurídicas do período pré-clássico (confarreatio,
coemptio, usus) atribuem ao marido uma
autoridade máxima (manus) sobre a mulher,
considerada como filha do pater, ou marido,
sem direito a patrimônio, aquisição ou venda
de bens próprios. Era a regra.
Com a introdução, no período clássico, do
casamento livre (sine manu), ainda que mantido
o direito de julgar a esposa (inclusive cominando com a morte), em situações consideradas
graves como o adultério, homicídio, magia, embriaguez, o patrimônio da mulher permanecia
dela, bem como sua submissão, em termos de
autoridade, ao pater precedente ou primeiro; o
casamento, então, era constituído sob o regime
dotal; a mulher passou a ter uma individualidade maior na família, inclusive na educação dos
filhos; passou a ser partícipe nos ritos religiosos familiares; participa das honras e do status
social do marido. Todas as características que
não eram vividas ou estendidas à concubina,
considerada, faticamente, como uma serva ou
escrava do pater.
Do ponto de vista do cidadão romano,
todos buscavam a constituição de família
pelo matrimônio; alguns mantinham como
concubinas normalmente servas ou escravas, e, se mulheres cidadãs romanas, apenas com fins de relações sexuais. A escolha
pelo concubinato trazia problemas com relação à filiação, já que esta dependia do consentimento do pater se extraconjugal. Para
evitar problemas com a filiação, a partir do
Imperador Constantino, o direito procurava
incentivar a transformação do concubinato em casamento, não sendo apenas uma
questão de formalidade, mas sim de constituição mesma da família, sob o aspecto dos
direitos e das obrigações.
Foi com Justiniano que o concubinato
(como união livre de fato, e não entre um homem ou mulher casado e outro ou outra livre)
alcançou status jurídico, sendo reconhecido
como união lícita, contudo, sem o vínculo da
affectio maritalis e honor matrimonii, próprios
do casamento (PETIT, 1970).
No direito canônico o concubinato é
definido como a relação entre o homem e
mulher com vistas à constituição de relações sexuais sem o propósito de formação
de uma comunidade fundada na mútua respeitabilidade exigida pelo sacramento. Não
é negada a característica de estabilidade e
constância, tampouco a finalidade de vida
em comum; o que acentua a Igreja é a ausência do compromisso marital exigido pelo
sacramento e dos requisitos intrínsecos que
dele advém, como a castidade no período do
namoro e do noivado.
Como o critério, in casu, é religioso (e
objetivo), deve-se entender a prescrição canônica sob o ponto de vista do pecado (infidelidade de um com o outro) e da elevação do
casamento à categoria de sacramento (instituído por Deus, mediante Cristo, e dado pelos
esponsais, perante a autoridade eclesiástica
ou outra devidamente autorizada para tanto,
como o diácono, que não é sacerdote)2.
A prescrição canônica influenciou o
direito positivo ocidental após a queda de
Roma sob o ponto de vista dos requisitos
para constituição da família pelo casamento.
A colocação da relação concubinária como
não familiar lícita, se união livre, e como ilícita, se algum dos concubinos for impedido,
encontra origens na regra canônica da fidelidade e compromisso público e formal dos
esponsais. De onde a ideia de consideração
da união livre como sociedade de fato (já que
é lícita, mas não é família) que, portanto, traz
efeitos civis patrimoniais próprios deste insti-
Sobre o direito canônico, e suas correspondentes regras sobre a família e o casamento, a lição de Carlos Silveira Noronha (1999,
p. 58-62).
2
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tuto, além da famosa “indenização por serviços prestados”.
Aos poucos, alguns efeitos sucessórios
foram dados, culminando com a modificação
do instituto para a “união estável”, então considerada como entidade familiar equiparada
à família constituída pelo casamento.
cunhada “união estável” e a então concubina,
o termo “companheira” – cujo sentido é elevar a posição da mulher que permanece muito tempo em estado marital com o homem,
diferenciando-a daquela que permanece em
estado de transitoriedade sem manter características semelhantes ao casamento.
O precedente jurisprudencial que definiu
2.2 O concubinato sob a égide dos
a questão foi o RE 83.930, no qual o Supremo
Códigos Civis brasileiros de 1916 e 2002
Tribunal, reiterando duas decisões no mesmo
Segundo Alvaro Villaça Azevedo, o con- sentido anteriores, consolidou a orientação de
ceito de concubinato leva em consideração a distinguir juridicamente “concubina” de “comexistência de duas espécies dessa relação: o panheira”, esta sendo aquela que vive em conpuro e o impuro (AZEVEDO, 1987, p. 24). O vivência more uxório com o homem separado
primeiro é, efetivamente, aquela relação es- judicialmente ou de fato, enquanto que aquela
tável e duradoura, em que há comunhão de seria a mulher com quem o cônjuge adúltero
vida e finalidade de constituição de família, tem encontros periódicos fora do lar, ainda que
sem o vínculo do casamento (hoje caracteri- garanta um mínimo de sustento a ela (RIZZARzada como união estável). Portanto, trata-se DO, 1985, p. 164).
de união entre solteiros, viúvos, separados juA legislação pátria tem tradição de sedicialmente e não impedidos A evolução jurisprudencial, parar o concubinato do cade nenhuma forma pelo casa- acompanhando a própria samento, tendendo a não
mento ou outra relação (mes- transformação social, foi conceder efeitos jurídicos
mo concubinária, também).
modificando o status do àquele, nas duas modaliO segundo – impu- concubinato
puro,
até dades. A evolução jurispruro – advém de relação ilícita culminar na legislação dencial, acompanhando a
(prescrita em lei, normal- específica que disciplina própria transformação social,
mente), mormente externada a posição jurídica da foi modificando o status do
pelo adultério, incestuoso ou companheira (Lei da União concubinato puro, até culmidesleal (relativamente a outra Estável) e, por fim, no Código nar na legislação específica
união de fato), como de um Civil de 2002 (BRASIL, 2003). que disciplina a posição juríhomem ou mulher casado ou
dica da companheira (Lei da
concubinado, que mantenha,
União Estável) e, por fim, no
paralelamente ao seu lar, outro de fato. Para Al- Código Civil de 2002 (BRASIL, 2003).
varo Villaça Azevedo, deste tipo de relação não
Seguindo o histórico esboçado por Alvapode advir nenhum efeito jurídico sequer, a não ro Villaça Azevedo, observamos que as Ordeser nos casos de concubino de boa-fé, situa- nações Filipinas apenas disciplinavam a união
ção, portanto, análoga ao casamento “putativo” conjugal pelo casamento, prevendo, inclusive,
(AZEVEDO, 1987, p. 66).
a possibilidade de reivindicação, pela esposa,
Desta forma, a fim de precisar a termi- de bens que seu marido tivesse doado à sua
nologia jurídica, procurou-se no direito atre- concubina, ou qualquer mulher que, esporalar o termo “concubinato” apenas às relações dicamente, manteve relações sexuais (AZEilícitas (impuro) e àquelas passageiras ou VEDO, 1987, p. 68). Os tribunais, nos casos
transitórias sem vínculo marital ou com ca- de concubinato puro, chegavam a presumir
racterísticas de união duradoura com comu- o casamento entre eles para, assim, dar-lhes
nhão de vida, a fim de esclarecer a limitação efeitos jurídicos.
de efeitos patrimoniais e pretensamente faEsta prescrição foi reproduzida na Conmiliares de tais relacionamentos.
solidação das Leis Civis de Teixeira de FreiA união livre, constante, duradoura, com tas, que previa, em seu art. 147: a reivindifinalidade de comunhão de vida, passou a ser cação de bens pela mulher casada doados à
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concubina; anulação das doações pela espo- nefício, desde que tenha sido mencionada
sa e também por seus descendentes ou her- como beneficiária em ato solene (carteira
deiros necessários; a mulher, mesmo sepa- profissional ou livro de registro de emprerada, poderá anular doações Com
a
inserção
do gados); posteriormente, foi
ou vendas fictícias feitas pelo divórcio pela Lei 6515/77, o previsto o direito ao seguro à
ex-marido à concubina (AZE- concubinato puro passa a companheira, indicada pelo
VEDO, 1987, p. 68).
ser considerado de forma companheiro. Mais tarde,
Com relação aos filhos, mais relevante pela ordem a legislação previdenciária
estes eram considerados na- jurídica (inclusive para fins passou a garantir os direitos
turais quando não houvesse de reconhecimento pleno de pensão por morte à comentre os pais impedimento de filhos) (BRASIL, 2003). panheira, bem como sua inpara casar. No tocante à heserção como dependente do
rança, se filhos extraconjucompanheiro
(AZEVEDO,
gais de não nobres (peões), todos sucederão 1987, p. 79).
igualmente; se filhos de nobres, apenas suCom a inserção do divórcio pela Lei
cedem os “legítimos”. Assim, a legitimidade 6515/77, o concubinato puro passa a ser
condizia muito mais para fins de herança do considerado de forma mais relevante pela orque por filiação, por si só, já que inclusive aí dem jurídica (inclusive para fins de reconheos filhos eram considerados naturais, mes- cimento pleno de filhos) (BRASIL, 2003). Já
mo que por relação ilícita (os chamados “fi- não se tinham mais dúvidas acerca da ilicitulhos espúrios”, fruto de adultério, incesto e de do concubinato impuro; mas a discussão
sacrilégio), aos quais era garantido o direito residia nas formas como o direito poderia rea alimentos e à própria investigação de pa- cepcionar esta outra espécie de concubinato
ternidade. A vedação sucessória legítima era que passou a ser vivida por uma expressiva
expressa, salvo a testamentária, em que os quantidade de casais.
filhos espúrios poderiam ser instituídos herNa jurisprudência pátria já se reconhedeiros (RIZZARDO, 1985, p. 185).
cia os efeitos jurídicos do concubinato puro,
O Código Civil de 1916 não regulamen- como já fora explanado, instituindo a diferentou o concubinato, mas também não o proi- ciação entre companheira e concubina, o que
biu (BRASIL, 2003). O caso exemplar era o de fato foi reconhecido pelas Leis 8971/94 e
casamento e, portanto, a regulação era toda 9278/96. Mas foi com a Constituição de 1988
dirigida a este.
que a dita união foi reconhecida como entiCom o acréscimo do adjetivo “comuns”, dade familiar, à luz do caput do art. 226, que
a possibilidade de reivindicação de bens pela dispõe acerca da família como célula nuclear
esposa permaneceu denotando que ela não da sociedade (BRASIL, 2003).
podia interferir em doações de bens próprios
O Código Civil de 2002, nessa mesma
feitas pelo marido à concubina (AZEVEDO, linha, consagrou como família nuclear aque1987, p. 78). Outros efeitos civis permane- la formada pelo casamento, já que nesta
ceram os mesmos, apenas com uma carga há, pela escolha feita entre os esponsais,
maior ao concubinato adúltero, que parece a presunção da finalidade da comunhão
ser a situação ventilada na maioria dos dis- plena de vida e da constituição de núcleo
positivos do Código de 1916 (BRASIL, 2003).
familiar, pelos filhos. Equiparado ao casaAlgumas modificações passaram a ser mento, o Código regulou a união estável (o
consideradas, diante da evolução social, então concubinato puro) em seu art.1723,
pela legislação posterior esparsa. Um dos considerando-a como entidade familiar e
casos é a lei de acidentes do trabalho (De- outorgando-a as mesmas prerrogativas e
creto-Lei 7036 de 44) que estabeleceu que deveres dos casados. Definitivamente, o
a companheira mantida pela vítima tem os Código consagrou a diferença entre concumesmos direitos do cônjuge legítimo, caso binato adulterino (impuro) e união estável
este não exista ou não tenha direito ao be- (concubinato puro) (BRASIL, 2003).
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3. Aspectos dogmáticos e práticos
da RELAÇÃO CONCUBINÁRIA
Abordam-se: os efeitos do concubinato
no direito pátrio atual, tanto civis quanto patrimoniais, e a posição do concubinato entre
as entidades familiares.
cos do concubinato puro, hoje tratado como
união estável tendo, portanto, efeitos civis
próprios do direito de família, e não do direito
das obrigações (inclusive, sem necessidade
de prova do esforço comum).
A affectio societatis é elemento basilar
definidor do concubinato (RIZZARDO, 1985,
p. 171). Mesmo sendo a relação amorosa
fruto de infidelidade e adultério de um dos
concubinos (ou de ambos), não há que se
negar a intenção de permanência de uma
sociedade, com interesses e finalidades comuns pois, se fosse o contrário, a união seria considerada como “livre” ou passageira,
sequer podendo ter algum tipo de reconhecimento jurídico válido. O concubinato que
enseja efeitos civis obrigacionais é o que se
mantém no tempo, apesar dos impedimentos
legais existentes na relação; e se há formação mínima de patrimônio, este se divide em
conformidade com a contribuição de cada
um, ou, na ausência de estipulação ou em
dificuldade probatória, o critério geral de metade para cada parceiro.
No que se refere à posse do estado
de casado, talvez seja o elemento que traz
maiores discussões e dúvidas, normalmente
resolvidos em consonância com o caso concreto e no conjunto probatório. Em tese, o
concubinato não admite a posse do estado
de casado, pois há na relação um ilícito civil, como já se disse; contudo, situações em
que o concubino(a) se encontra em processo
de separação de fato, ou que permanece no
estado de boa-fé (sem ter o devido conhecimento dos impedimentos do outro), o status
de casado pode ser reconhecido e, assim, os
efeitos serão disciplinados pelo direito de família, resguardando, por óbvio, os interesses
e direitos da família legítima (formada pelo
casamento ou união estável).
Mesmo essa orientação – hoje admitida por boa parte da jurisprudência pátria –
guarda contrariedades jurídicas. Ainda que
o concubino(a) esteja de boa-fé, a divisão
patrimonial em conformidade com o direito
de família traz dificuldades intransponíveis,
como na aplicação de regime de bens ou, inclusive, em caráter sucessório. Ter-se-á, inevitavelmente, uma dupla partilha (aplicável
3.1 Efeitos civis e patrimoniais do
concubinato no direito pátrio atual
O artigo 1.727 do Código Civil definiu
o concubinato como “as relações não eventuais entre homem e mulher, impedidos de
casar [...]” (BRASIL, 2003). A partir da conceituação de cada um dos institutos, percebe-se que o que separa a união estável do
concubinato é a conversibilidade ou não da
relação em casamento.
Ora, o Código vigente manteve o direcionamento definido no Estatuto Civil anterior, no sentido de reservar ao concubinato
o tratamento de sociedade de fato sem o intuito de constituir família, tendo em vista que
surgiu em meio a ato ilícito grave, que é o
adultério. Diante disso, a impossibilidade de
conversão em casamento ou de reconhecimento de status de companheira à concubina – já que verificável, na situação concreta, os impedimentos para constituição do
casamento e da união estável, previstos no
Código – leva ao reconhecimento jurídico de
efeitos civis patrimoniais obrigacionais, bem
como dos elementos constitutivos então dispostos pela teoria geral comercial, um deles,
o esforço comum na formação do patrimônio
(BRASIL, 2003).
Rizzardo nomina alguns elementos de
identificação da sociedade de fato definida
pelo concubinato: a affectio societatis (o ânimo ou intenção de associar-se); a posse do
estado de casado(a); a conjugação de esforços e interesses; a notoriedade do relacionamento; a conduta dos concubinos; o dever
de fidelidade; a habitação comum; a convivência more uxório; a continuidade da união;
a unidade do casal; a dependência recíproca dos concubinos (RIZZARDO, 1985, 171179). Por óbvio que alguns aspectos elegidos (mormente a conjugação e comunhão de
vida, a notoriedade, unidade e constância da
união e a convivência more uxório) são típi41
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
à família anterior, formada pelo casamento à entidade familiar. A(O) concubina(o) que
ou união estável, e o concubinato posterior), manteve relacionamento afetivo, por certo
sem contar a indefinição acerca de qual re- período de tempo, com outrem em estado de
gime de bens será aplicável ao concubinato, impedimento legal para contrair nova união
pois não há previsão legal ou sequer contra- lícita (casamento ou união estável), e que
to privado entre os concubinos que assim o tenha formado com este patrimônio em coestipule (por óbvio, pois, se existiria, em con- mum, pode ter direito à pretensão indenizaformidade com a lei civil, seria um contrato tória não só pelo período dedicado à relação
típico de união estável).
(eventuais trabalhos e dações concedidos
No caso da sucessão, igualmente não gratuitamente neste lapso temporal) como
encontraria guarida a orientação de aplicar-se também a título de danos morais (vergonha
ao concubinato regras de direito de família, e humilhação sofridos), se de boa-fé e alheia
pois, o direito sucessório segue regras positi- à situação de casado(a) do(a) concubino(a).
vas próprias e peculiares, as quais não admiDessa forma, a honra e a dignidade petem, por exemplo, o reconhecimento de outros rante a sociedade por parte do concubino(a)
herdeiros necessários, além dos previstos no de boa-fé são devidamente resgatadas e
art. 1.829, nem da concubina(o) como herdei- protegidas pelo direito, sem a correspondenra testamentária, em consonância com a ve- te necessidade de ferir a legislação positiva,
dação do art.1.801 (BRASIL, 2003).
numa postura equivocada de eventual recoPor isso, a posição mais razoável – que nhecimento de família ou de efeitos jurídicos
não fere a lei, nem o costume jurídico, e nem aplicáveis somente ao casamento e à união
a situação ventilada no caso concreto – é a estável. Dita orientação deve ser seguida inde reconhecer, sempre que possível, o concu- clusive por outros ramos do direito, como o
binato como sociedade de fato, cujo patrimô- previdenciário (proibição de reconhecimento
nio seja dividido e resolvido em conformidade de concubina como beneficiária, ainda que
com o direito das obrigações, estando neste exista jurisprudência decidindo em sentido
campo os demais efeitos civis resultantes.
contrário), a fim de não resultar em contrarieDentre tais efeitos cidades insanáveis em todo o
vis, pode-se apontar o que Dessa forma, a honra sistema jurídico.
se cunhou “remuneração” ou e dignidade perante a
O direcionamento a ser
indenização à concubina “por sociedade por parte do seguido, pois, deve sempre
serviços prestados”. Até en- concubino(a) de boa-fé são ser o da legislação positiva,
resgatadas mormente o Código Civil
tão, era uma solução jurídica devidamente
e
protegidas
pelo
direito, (BRASIL, 2003). As hipótedirecionada a respeitar a lei
sem
a
correspondente
positiva civil que não previa a
ses de impedimentos para o
aplicação de regras do direi- necessidade de ferir a casamento – que delimitam
to de família ao concubinato, legislação positiva, numa as situações de concubinapor não se tratar de relação postura equivocada de to, como o adultério – estão
amorosa originária da família eventual reconhecimento de arroladas no artigo 1.521.
ou ao menos lícita e legítima. família ou de efeitos jurídicos Dessa forma, percebe-se
somente
ao que todos os relacionamenContudo, atualmente, tais ex- aplicáveis
casamento
e
à
união
estável.
pressões são consideradas
tos que se encaixem nas sicomo “retrógradas”, “ofensituações previstas no artigo
vas”, “machistas”, preferindo-se a adoção de 1.521 podem ser considerados como concuuma terminologia mais neutra, como “esforço binato, pois assim estipulou o legislador, na
comum” e “contribuição”.
finalidade de resguardar a família fundada
No entanto, o caráter indenizatório deve no casamento, em primeiro lugar, e na união
permanecer quando a situação concreta for estável, equiparada a este.
o concubinato, sendo indevido o mesmo traDesse modo, permanece, indubitaveltamento à união estável, hoje equiparada mente, no atual Código a orientação de con42
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siderar o concubinato impuro como ilícito,
cujos efeitos civis resolvem-se por meio do
direito das obrigações, seguindo, como já
dito, jurisprudência anterior já consolidada,
bem como a tradição jurídica pátria (BRASIL, 2003).
Necessário repetir que, apesar disso,
outros efeitos civis foram reconhecidos pela
jurisprudência, inclusive anteriores ao Código
Civil atual. A primeira situação concreta reconhecida foi a separação de fato, que muitas
vezes existe mesmo com o casal ainda residindo juntos. Depois, os efeitos patrimoniais
foram ventilados em outros campos do direito
civil, como o possessório, em que a composse da concubina foi reconhecida, mesmo em
situação de adultério, devido à inexistência de
direito de habitação ou propriedade da então
esposa sobre o imóvel constituído individualmente pelo esposo, até porque, em verdade,
o casal estava separado de fato há mais de
dez anos (MALHEIROS; MALHEIROS FILHO, 1995, p. 296).
Os casos concretos foram aumentando
e as diversidades de elementos fáticos e de
circunstâncias particulares foram relativizando as prescrições legais de impedimento de
constituição de nova família. In casu, as situações mais comuns eram de doações em
dinheiro por parte do cônjuge adúltero à concubina; constituição de moradia e de convivência more uxório entre os concubinos; instituição de relações estáveis em concomitância
ao casamento. Tais fatos contribuíram para a
construção de critérios jurídicos pela jurisprudência para delimitar as situações, de modo a
não interferir nem prejudicar a família legítima,
então primordialmente protegida pelo direito.
Malheiros e Malheiros Filho referem decisão judicial que reconheceu a validade de legado em testamento do homem casado à sua
concubina, com a condição de que não prejudicasse a família legítima (acórdão nº 585026743,
da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul, julgado em 04/02/1986),
em claro reconhecimento de situação fática
caracterizável como união estável, e não concubinato (MALHEIROS; MALHEIROS FILHO,
1995, p. 297). Em outro aresto, anulou-se a
ação reivindicatória do espólio contra a compa-
nheira do falecido, sob a alegação de que há
distinção nítida entre concubinato e união estável, estendendo àquela os direitos inerentes à
propriedade de bens móveis constituídos com o
então companheiro na convivência permanente e duradoura (MALHEIROS; MALHEIROS
FILHO, 1995, p. 297).
O direcionamento jurisprudencial, pois,
parte de duas premissas: a existência de separação de fato (falência, pois, da comunhão
plena de vida do casal) e a convivência estável e duradoura dos concubinos que, por essa
circunstância, são reconhecidos, juridicamente, como companheiros, não incidindo os impedimentos legais previstos no Código nem a
imputação de adultério. Dito critério tem por
finalidade seguir a orientação finalística da lei
civil de proteção à família formada pelo casamento, mas também de resguardo das situações não alheias ao direito que denotam uma
quebra da situação conjugal não prevista pelo
casal ao unir-se sob o mesmo teto.
Isto quer dizer que tanto a tradição jurídica pátria, quanto a lei civil (pelos Códigos
de 1916 e 2002), elegem a família legítima
como aquela formada pelo casamento, e
colocam como principal ilícito civil a infidelidade conjugal (MALHEIROS; MALHEIROS
FILHO, 1995, p. 299), manifestada pelo adultério, passageiro ou repetitivo (este caracterizador do concubinato). Na ocorrência de
concubinato, os efeitos civis são os previstos
em lei – resolvidos pelo direito das obrigações – e, nos casos de evidência de separação de fato, são equiparados ao casamento,
resultando na consequente caracterização
da união estável, que possui efeitos patrimoniais próprios.
3.2 Posição do concubinato entre as
entidades familiares
Em consonância com a lei civil, o concubinato sempre fora considerado situação
contrária ao direito, cujo reconhecimento
jurídico limitou-se aos efeitos patrimoniais
oriundos de uma sociedade de fato. Evolução jurisprudencial, no entanto – com clara
intenção de “acompanhar” ou “respaldar”
costumes sociais contemporâneos, nem
sempre conformes à lei e à justiça – passou
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a conferir um novo status ao concubinato impuro, qual seja, o de entidade familiar, mesmo na circunstância patente e irrefutável de
adultério ou infidelidade.
Desde o antigo Código Civil de 1916, a
hostilidade ao concubinato é notória. A possibilidade de ação reivindicatória da mulher
casada em relação aos bens comuns da sociedade conjugal transferidos ao marido adúltero (ou vice-versa); da anulação de doações
em caso de adultério; da proibição de legado em testamento do cônjuge infiel para seu
concubino(a); são determinações legais que,
como visto, foram mantidas pelo atual Código,
com vistas a proteger a família formada pelo
casamento ou união estável.
A lei civil brasileira, pois, mantém-se
na linha de severidade necessária com a
infidelidade e seus efeitos (MALHEIROS;
MALHEIROS FILHO, 1995, p. 293). Contudo, situações como a do(a) concubino(a) de
boa-fé ou de verificação de uma separação
de fato do casal (mesmo que mantendo uma
certa visibilidade de casamento, mormente
vivendo sob o mesmo teto) levaram a jurisprudência (principalmente a do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul) a reconhecer
efeitos civis não previstos no Código, contudo, sem elevar o concubinato à condição
de família equiparada à união estável ou no
mesmo patamar que o casamento.
Malheiros e Malheiros Filho referem dois
leading cases que iniciaram a relativização interpretativa da lei civil positiva: decisão que reconheceu a condição de seguro social a pecúlio instituído pelo cônjuge adúltero à concubina
com quem conviveu por mais de vinte anos
(acórdão nº 24.753, da 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, julgado
em 28/08/1975); e acórdão que definiu como
legítima a indicação de concubina à condição
de beneficiária de seguro de saúde, pelo cônjuge adúltero, devido ao rompimento da comunhão de vida com a então esposa e a consequente separação de fato do casal, situação
que inviabiliza a caracterização do adultério
(decisão nº 29.953, do 2º Grupo de Câmaras
Cíveis do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul, julgado em 15/12/1978) (MALHEIROS;
MALHEIROS FILHO, 1995, p. 295).
A partir dessa nova orientação, o Tribunal passou a considerar efeitos civis mais
abrangentes ao concubinato impuro, desde
que houvesse algum tipo de separação de
fato ou rompimento da comunhão plena de
vida entre o casal, e que a relação adulterina
não fosse passageira ou transitória, assemelhando-se à união estável.
A proteção jurisprudencial dada ao concubinato puro (união estável), construção
jurídica que culminou na disciplina dada ao
instituto no Código atual, visou responder a
uma demanda insurgente das próprias práticas sociais, fundadas sob a relativização total do casamento e da família constituída por
este. Sobre este fenômeno, acertadamente
Athos Gusmão Carneiro asseverou:
O que constantemente vemos na prática é
o espetáculo de cônjuges voluntariamente separados e cada qual com uma nova
união irregular e que somente se recordam
do vínculo do seu casamento para pedir a
nulidade do legado feito pelo seu cônjuge
a favor da concubina que o acompanhou
por longos anos e lhe prestou assistência
na sua enfermidade e velhice até a morte.
O legado que o testador poderia legalmente fazer a qualquer pessoa não lhe seria
lícito fazê-lo em benefício de sua concubina ainda que provassem assistência e
serviço de natureza não sexual; tudo em
homenagem a uma pessoa voluntariamente omissa e totalmente separada do seu
marido e do seu casamento (CARNEIRO
apud MARENSI, 1990, p. 58).
O espetáculo que fala o eminente Ministro é, exatamente, a falência dos casamentos
e, quem sabe, a inaptidão dos próprios casais
de assumirem compromisso importante de
fidelidade e, com base nesta mútua doação,
buscar uma espécie de reconciliação ou entendimento. A ordem jurídica dá especial proteção ao casamento não por ser conservadora, ou “retrógrada”, mas sim por ser o instituto
que mais exige de cada cônjuge, muitas vezes renúncias e mudanças que já, de antes,
um não estaria disposto a fazer pelo outro.
Dessa maneira, com razão lembra Carneiro (apud MARENSI, 1990) que a prática
corriqueira social são as separações de fato,
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
com consequentes novos relacionamentos
posteriores, estes caracterizadores do concubinato puro (união estável). E é certo que
vários(as) esposos(as) acabam por recordar
do seu vínculo (ainda mantido “no papel”),
estão desfeitos faticamente, quando afetam
algum interesse jurídico particular ou quando visam algum benefício post mortem (seja
por herança, seja por pensão previdenciária
ou de qualquer outro seguro). O erro, pois,
não está na instituição casamento, mas nas
decisões humanas, que devem ser, quando
preciso, devidamente corrigidas pelo Direito,
o qual é, em síntese, o instrumento que mantém a ordem das relações sociais.
Em outras palavras, não pode o Direito
normatizar ou proteger toda e qualquer medida humana, pois assim estaria superveniente
a um sociologismo que parte do pressuposto
de que as decisões sociais são sempre corretas e devem seguir o seu devir “livremente”. Se assim o fosse, períodos totalitários
como o nazismo alemão não deveriam ser
criticados, posto que, na época, o Direito
fez exatamente o que vem procurando fazer
hoje, dar respaldo jurídico a toda e qualquer
decisão humana – a diferença é que naquele
período, a ditadura era estatal (governamental), e, hoje, a ditadura é social.
Essa nova visão do Direito – que ganhou
força a partir do desenvolvimento de teorias
contemporâneas da interpretação jurídica –
permeia o círculo dos Tribunais e das decisões
judiciais. Em matéria de direito de família isso é
ainda mais latente. Os juízes passaram a ser a
fonte primeira das regras familiares, diante do
fenômeno da judicialização, quer dizer, do aumento de demandas sociais (até então resolvidas fora do Judiciário), ensejando um afastamento da aplicação principal do Direito, que é
a exercida por meio da lei.
Nesse sentido, Rejane Filippi, ao comentar a união estável, chega a dizer que a
tarefa de definição do instituto foi outorgada
aos juízes, e não refere em nenhum momento à importância da lei escrita, a qual, primeiramente, a Constituição concede tal tarefa:
que provavelmente cometeu ao Judiciário
o mister de enriquecê-lo, ampliá-lo, e de
todo o modo, em cada caso concreto, dizer
onde está e onde não está a união estável
(FILIPPI, 1991, p. 171).
Ora, não visa a lei engessar a atividade
jurisprudencial, ou acabar com a atividade
criadora do juiz. Por óbvio que a exata caracterização e verificação, no caso concreto, da
efetiva existência de união estável é tarefa
dada ao juiz. No entanto, a lei tem por finalidade dar os critérios mínimos de identificação, a
fim de manter a ordem predicada pelo Direito
e por todo o sistema normativo. Este é o direcionamento dado pelo atual Código que, ao
dar parâmetros legais acerca de elementos
essenciais do que seja a união estável e do
que constitui o concubinato, confere segurança jurídica ao sistema jurídico e ao próprio Judiciário na execução cotidiana da jurisdição.
Portanto, as decisões judiciais devem
evoluir em consonância com a realidade social, mas, ao mesmo tempo, devem preservar a lei e atualizá-la. O que se verifica, porém, a partir da Constituição de 1988, e sob
a vigência do Código Civil de 2002, é que a
jurisprudência passou a se orientar de forma
mais agressiva, utilizando-se da interpretação jurídica para formar novo pensamento ou novas regras que, inclusive, beiram a
posição contra legem. A nova hermenêutica contemporânea, amparada num critério
principiológico-constitucional, transferiu ao
julgador o poder de dar cabal visão não só
à lei positiva, mas ao direito como um todo,
alterando regras positivas claras e instituindo
uma nova legislação alheia ao Código.
Em matéria familiar, a jurisprudência pátria – principalmente a gaúcha – tem se direcionado neste sentido. No caso do Tribunal
de Justiça do Rio Grande do Sul, não raro se
percebe orientações distintas, sobre o mesmo
caso concreto, por Câmaras Cíveis diferentes, resultando numa situação jurídica absurda da chamada “sorte da distribuição”, isto é,
terá “sorte” o processo distribuído para a Câmara “x” que tem tomado decisões favoráveis
ao caso particular, e terá “azar” aquele que
“caíra” na Câmara “y”, de orientação contrária.
A toda evidência, não desejou o legislador
constituinte definir a união estável, por-
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Mais do que isso: em matéria de direito
de família – cujos fatos são extremamente
sensíveis, fundamentais, tratando-se de uma
família, de pessoas, de crianças, de patrimônios de uma vida inteira – essa relativização
desmedida causa prejuízos irremediáveis às
vidas que estão por detrás do processo judicial, bem como ao sistema jurídico como um
todo, pensado pela sociedade por meio de
seus representantes políticos que formulam
a lei positiva. Tamanha falta de critério ocasiona a transformação do Código Civil num
livro de cabeceira, o qual serve apenas de
“consulta” para fundamentar uma decisão ou
interpretação já tomada pelo julgador antes
de estudar o que diz a lei.
Dita postura fica manifesta quando o
assunto é o concubinato. Decisões recentes
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
reconheceram ao concubinato (mesmo com
a clara evidência e prova de adultério e infidelidade) o status de entidade familiar, mesmo inexistindo qualquer persecução de verificação de boa-fé por parte da concubina(o),
contrariando dispositivos da lei civil (que, inclusive, prevê a possibilidade de verificação
de culpa na separação se verificado ao adultério) e da própria jurisprudência anterior já
consolidada, a qual sempre procurou adaptar a lei ao devir social, e não alterá-la em
conformidade com este devir.
Como dito, em nenhum momento os
Tribunais reconheceram o concubinato como
família, mas tão-somente admitiram a existência de outros efeitos civis não previstos
pela lei civil. A nova jurisprudência, contudo,
diz o que é família, englobando neste conceito “vazio” quaisquer relações afetivas sociais
existentes, incentivando, inclusive, à formação de mais de uma família ou de famílias
paralelas, claramente instituindo, contra legem e contra a consuetudo, a poligamia.
É o que se verifica na decisão transcrita
a seguir:
namento havido com a apelante, não seria,
por si só, impedimento para o reconhecimento da união estável. Não é de hoje que
essa Oitava Câmara tem se manifestado
favoravelmente ao reconhecimento da
união estável concomitante ao casamento ou concomitante a outra união estável.
[...] Então, o argumento de que a segunda
união seria de natureza concubinária e que,
por isso, não seria lícito o reconhecimento
da união estável paralela ao casamento,
“data venia”, penso que já foi superado
por um significativo número de julgamentos no âmbito deste órgão fracionário3 (RIO
GRANDE DO SUL, 2008c, p. 6).
Note-se que os critérios até então considerados pela jurisprudência – a existência de
separação de fato e a diferenciação necessária entre a união estável e o concubinato
– parecem ter sido afastados pelo novo direcionamento, qual seja, de reconhecer tantas e
quaisquer relações paralelas que alguém possa vir a constituir, desde que sejam “duradouras”, “públicas”, e com o “intuito de constituir
família”. A lei civil, quando fala da fidelidade,
reciprocidade, auxílio mútuo entre os cônjuges e companheiros, está completamente
afastada pelo direcionamento jurisprudencial
dantes referido, a qual admite que uma mesma pessoa possa se comprometer a ter fidelidade perante duas ou mais outras com as
quais venha a constituir as “suas famílias”.
Em sentido contrário, no entanto,
orientam-se as decisões expostas abaixo
que, por sua clareza e coerência, dispensam
quaisquer comentários:
O presente caso traduz aquilo que Gischkow
chamou de monetarização do afeto, ou seja, a
parte entrega-se em uma relação paralela ao
casamento, uma verdadeira ‘relação aberta’
e, frustrada, pretende compensar-se monetariamente. [...] Admite o autor expressamente
que o relacionamento havido entre Apelante
e Apelada preenche os requisitos de um concubinato impuro, como se a lei civil reconhecesse e protegesse duplicidade de relações
conjugais no Direito de Família. À evidência,
isso tornaria ‘um nada’ a instituição oficial do
[...] o fato de o varão ter mantido seu casamento em concomitância com o relacio-
3
Trecho de voto do Des. Rui Portanova nos autos da Apelação Cível nº 70024608507, 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RS,
Rel. Des. Alzir Felippe Schmitz, julgado em 9 out. 2008.
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um contrato de trabalho, nem prestação civil
de trabalho na modalidade locação de serviços..., nem se cuida de uma entidade familiar. Afinal, o réu era casado e convivia com
sua família. E esse fato era conhecido da
autora, que fora empregada da família. [...]
houve entre os litigantes o estabelecimento
de um mero vínculo afetivo e sexual, relacionamento este que não apresenta qualquer
conteúdo econômico, nem se confunde com
uma entidade familiar5 (RIO GRANDE DO
SUL, 2008a, p. 5-7, grifamos).
casamento, porque qualquer relacionamento
amoroso, mesmo com prostitutas, poderia
ser indenizável como se tratássemos de relações de família. Podemos seguir adiante nas
‘interpretações’, mas não confundir institutos
jurídicos [...] Sabemos que o casamento e a
união estável têm amparo na lei e na Constituição Federal, sendo que o legislador civil
distinguiu precisamente o concubinato. [...]
Para o concubinato adulterino persistem algumas regras coibitórias de direitos, no plano patrimonial, em resguardo aos direitos de
família constituída pelo casamento [...] Com
o advento da Constituição de 1988, o relacionamento homem-mulher com partilha de
bens dá-se no casamento e na união estável, mas não no concubinato, não na relação
aberta ou na sociedade de fato. Eventuais
considerações econômicas devem ser solvidas no plano obrigacional, não no familial.
(...) o autor é casado, com casamento em
plena validade e confessada quebra dos deveres matrimoniais. Assim, o reconhecimento
de sua pretensão seria agressão à instituição
legal do casamento. [...] O casamento, seja
por contrato, seja como instituição, impõe deveres legais e responsabilidade ética não podendo descambar para o reconhecimento de
relações paralelas e à margem da lei4 (RIO
GRANDE DO SUL, 2008b, p. 3-5, grifamos).
Tendo havido inequivocamente uma relação
amorosa entre a autora e o demandado, típica de um mero concubinato, evidentemente
mostra-se descabido o pedido de indenização, que carece de amparo jurídico, visto
que não se pode dar mais à concubina do
que teria se casada fosse, valendo lembrar
que não é a esposa aquinhoada com contraprestação por serviços domésticos prestados à família e ao marido. [...] Por oportuno,
vale observar que a indenização por serviços
domésticos prestados era admitida na esfera
da Justiça Estadual e no âmbito do Direito de
Família como um artifício para se evitar injustiças contra a mulher que se dedicava a uma
união livre, mas com caráter ‘more uxorio’,
quando não havia as leis protetivas dessa
modalidade de família, que veio a ser concebida e legalizada com o nome de união estável. [...] Trata-se aqui de uma relação eminentemente amorosa, não se cogitando de
As relações familiares sempre ensejam
tais discussões, e serão constantemente o
foco das principais mudanças normativas e
de interpretações jurídicas. Talvez por envolverem não só o amor ou “afeto” – palavra
que sumariza demais o profundo sentimento
que une pessoas sob a mesma família, pois
o afeto não explica, em sua etimologia, as
renúncias e sacrifícios que uns fazem pelos
outros (pais, filhos, irmãos, netos), nem os
egoísmos e ódios que possam surgir, mas
só o amor e a falta de amor – mas também
elementos culturais, religiosos, morais, até
biológicos que inafastavelmente fazem parte
das relações humanas (porque são próprios
do ser humano).
Ousada, nesse sentido, é a lição de
Pontes de Miranda:
Quem não é cônjuge não se torna cônjuge
pelo fato de ser tratado como tal. Ser criado
como filho não é ser filho. Ter bens em comum com o cônjuge não é estar sob o regime matrimonial da comunhão. Pode-se ser
membro da família sem se viver na mesma
casa e, até, sem se conhecerem os próprios
irmãos. As tentativas de dilatação do círculo
família fracassam sempre. Cada vez o círculo família diminui, nas relações da vida
(PONTES DE MIRANDA, 2001, p. 80).
4. Conclusão
Advogar em favor da tradição jurídica e
da segurança de seus institutos, para muitos,
soa a um discurso retrógrado ou, por vezes,
discriminatório. O direito de ser diferente pa-
Trecho do voto do Des. Alzir Felippe Schmitz, nos autos da Apelação Cível nº 70023890601, 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça
do RS, Rel. Des. Alzir Felippe Schmitz, julgado em 25 set. 2008.
Trecho do voto do Des. Sérgio F. Vasconcellos Chaves, nos autos da Apelação Cível nº 70023332794, 7ª Câmara Cível do Tribunal
de Justiça do RS, Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em 24 set. 2008.
4
5
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rece que não é aplicável àqueles que pugnam por um respeito ao Direito e à sua história, à lei e aos seus critérios, e, no direito de
família, a instituição do casamento. Tais defensores, atualmente, são os diferentes que,
por ironia, não podem invocar o seu direito
de ser diferente e de pensar diferente.
A relativização do Direito, e de seus métodos de interpretação, levam, pois, a uma própria
ditadura deste fenômeno. É válido reconhecer
juridicamente todo e qualquer fato social; mas
não é igualmente válido dar guarida a institutos
já previstos normativamente e dogmaticamente, os quais talvez não encontrem mais adoção
filial por parte da sociedade humana.
Essa variabilidade jurídica – que forma
os chamados “conceitos vazios” do Direito,
os quais podem ser preenchidos por qualquer
conteúdo e quaisquer ideologias – atinge fundamentalmente o Direito de Família. Conceitos como casamento, união estável e concubinato perdem seus critérios e referências para
tornarem-se apenas parâmetros gramaticais
de situações de fato muitas vezes transitórias
e constantemente mutáveis.
Entender os institutos jurídicos em consonância com sua tradição e história não
causa uma petrificação das situações fáticas, mas sim consolidam conteúdos que,
atualizando-se com a realidade, em seu devir, auxiliam o Direito a manter e estabelecer
a ordem – que é sua finalidade principal. E a
ordem não se separa da constância; a constância está unida à perenidade; e estas são
vivas no meio social por meio da conhecida
relação entre fato, valor e norma.
Talvez no âmbito do Direito de Família
o aspecto que tenha sofrido maiores dilacerações seja o valor. Não se compreende por
valor apenas as orientações ideológicas ou
religiosas, mas também as culturais e tradicionais. Igualmente, não se entende por cultura apenas aquela que se modifica com o
tempo, mas da mesma forma os costumes
sociais que sempre permanecem, e não tão
cedo desaparecerão, pois fazem parte do
próprio ser humano.
Os institutos jurídicos familiares sempre
serão protegidos pelo Direito, pois traduzem
relações humanas que sempre existirão,
principalmente o casamento. O casamento é
tratado na lei civil como base para formação
da família, pois o traz ínsito na sua constituição a promessa e o compromisso de direitos,
deveres, mútua colaboração, doação, comunhão plena de vida e, principalmente, amor.
O casal que busca casar-se deve ter plena
noção do valor desse compromisso; tanto é
assim que o crescimento, hoje, da opção por
união estável deve-se exatamente ao ambiente de insegurança na sociedade contemporânea, em que já não se confia mais no
outro ou se tem esperanças de que o mesmo
irá cumprir as promessas exigidas pelo instituto matrimonial. Para tanto, propôs a lei civil, prudentemente, a conversibilidade desta
união em casamento, dando a oportunidade
ao casal de assumirem esse compromisso
mútuo e a responsabilidade de um perante o
outro talvez pelo resto de suas vidas.
O concubinato, nesse sentido, não
pode ser considerado família, ou entidade
familiar, pois é fruto dessa quebra de confiança, de fidelidade, de comunhão plena de
vida entre o casal. Pode significar, psicologicamente, uma fuga deste compromisso, ou
uma falta de integridade em admitir que sua
relação matrimonial passa por problemas e
dificuldades. O que não pode – pois seria
uma afronta ao valor jurídico presente no
instituto do casamento – é ser considerado
como uma relação amorosa juridicamente
válida, paralela ao casamento ou união estável, pois estar-se-ia desrespeitando não
só a lei civil (que também é querida pela sociedade) mas também as próprias pessoas
envolvidas na situação de fato, incitando-as
a permanecerem no erro ou, talvez, na inconstância de suas vidas.
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Aspectos da nota promissória
Alessandra Martins Belmiro1
Caroline Silva Bianchi2
Elves Luciano Ferreira de Paula3
Rafael Cardoso Cazara4
Tatiana Vargas Bittencourt5
Resumo: A proposta do presente estudo é analisar a evolução histórica de um
dos títulos de crédito que ainda é bastante utilizado nos negócios jurídicos gerais,
o qual se denomina nota promissória. Neste mesmo contexto, vamos analisar
as modificações desse título de crédito que estão sendo introduzidas tanto pelo
legislador quanto pela própria doutrina, bem como faremos uma breve incursão
nas origens e no conceito de nota promissória em seu funcionamento, salientando suas características e seus elementos. Por fim, abordaremos o entendimento
jurisprudencial em relação à nota promissória em nossos tribunais.
Palavras-chave: Nota Promissória. Título de Crédito. Letra de Câmbio. Endosso.
Aval. Características e fundamentos. Entendimento jurisprudencial.
Abstract: The purpose of this study is to analyze the historical evolution of one
of the debt that is still widely used in general business law, which is called a promissory note. In this same context, let’s look at the changes that debt claim being
made by both the legislature and by the doctrine itself, and will make a brief foray
into the origins and the concept of promissory note and in its operation, highlighting
its characteristics and its elements. Finally, we discuss the understanding of jurisprudence in relation to the promissory note in our courts.
Keywords: Promissory note, negotiable instrument, bill of exchange, endorsement,
approval, characteristics and fundamentals, understanding of jurisprudence.
2. Origens e Conceito
1. Introdução
Este estudo apresenta importantes dados sobre a nota promissória em seus aspectos gerais, tendo como base sua origem,
seu conceito, bem como seus elementos fundamentais e, ainda, o entendimento jurisprudencial dos nossos Tribunais.
O estudo busca entender, em sentido
lato sensu, a utilização deste título de crédito, o qual foi uma das soluções comerciais na
Idade Média, como veremos a seguir.
Na Idade Média, com o desenvolvimento
do comércio, surge a necessidade em transitar com valores entre as cidades, já que as
atividades comerciais rompem suas barreiras
territoriais e com isso surge uma solução prática, ou seja, articular a circulação de valores
em papel na forma de uma ordem de pagamento, a ser paga na próxima cidade descartando, assim, a possibilidade dos saques
em razão das grandes distâncias percorridas
Acadêmica de Direito da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. E-mail: [email protected]
Acadêmica de Direito da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. E-mail: [email protected]
Acadêmico de Direito da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. E-mail: [email protected]
(4)
Acadêmico de Direito da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. E-mail: [email protected]
(5)
Acadêmica de Direito da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. E-mail: [email protected]
(1)
(2)
(3)
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pelos comerciantes entre as cidades trazendo
consigo valores pecuniários (moedas).
Não obstante, outro fato relevante que
impulsiona o desenvolvimento dos títulos de
créditos é a diversidade de moedas cunhadas
neste período e a impossibilidade de comercialização em qualquer cidade, visto sua origem.
A partir de então, surge a ideia mais remota de título de crédito, uma solução para
resolver estas questões comerciais, no qual
um valor é emitido em uma cidade, entregue a
um terceiro que, sem correr risco de saque, se
desloca a outra cidade e tem sua importância
restituída em espécie local, mediante a apresentação de um documento (título de crédito).
A nota promissória tem sua origem praticamente no mesmo período através da Littera
Cambii, que segundo o Professor Emygdio F.
da Rosa Jr. (2009, p.485), tal instituto deu origem a Cautio, que era um documento emitido
por um banqueiro, o qual reconhecendo a dívida que contraíra junto ao mercador em uma
determinada cidade, e prometendo pagar o
valor equivalente em outra cidade, a cautio
é apontada pela doutrina como documento
que originou esta modalidade cambial, haja
vista relatos de sua prática entre negociantes
ingleses do século XIV (Cf. COELHO, 2007,
p. 269). Entretanto, esta modalidade cambial
difere da letra de câmbio, por não ser uma
ordem, mas sim uma promessa de pagamento, o qual tem em seu escopo a primazia de
confiança (credere) entre as partes.
A nota promissória demonstra a evolução
nas atividades cambiais, a qual surge com a
diversidade de situações comerciais oriundas
do crescimento das cidades e das relações
de consumo, ou seja, aquilo que a priori era
um pagamento certo, representado na figura
da Letra de Câmbio, que se personificava em
uma ordem de pagamento com quantia determinada, agora dá lugar a uma promessa escrita de pagamento futuro, a qual igualmente
possui uma quantia determinada e que preserva as características fundamentais dos títulos
de crédito: a circulação de riquezas.
Em ordem cronológica, podemos dizer
que a nota promissória no Direto Brasileiro foi
pouco enfatizada sob a vigência do Código
Comercial de 1850, pois este se ateve a es-
tipular com maior ênfase o Instituto da Letra
de Câmbio, tanto que a nota promissória somente foi regulada pelo decreto 2.044/1908, o
qual revogou as normas cambiais do Código
Comercial disciplinando o referido instituto em
seus artigos 54 e 55 deste diploma.
“Art. 54. A nota promissória é uma promessa de pagamento e deve conter estes
requisitos essenciais, lançados, por extenso
no contexto: I - a denominação de ‘Nota Promissória’ ou termo correspondente, na língua
em que for emitida; II - a soma de dinheiro a
pagar; III - o nome da pessoa a quem deve
ser paga; IV - a assinatura do próprio punho
da emitente ou do mandatário especial. § 1º
Presume-se ter o portador o mandato para
inserir a data e lugar da emissão da nota promissória, que não contiver estes requisitos. §
2º Será pagável à vista a nota promissória que
não indicar a época do vencimento. Será pagável no domicílio do emitente a nota promissória que não indicar o lugar do pagamento.
É facultada a indicação alternativa de
lugar de pagamento, tendo o portador direito
de opção.
§ 3º Diversificando as indicações da soma
do dinheiro, será considerada verdadeira a que
se achar lançada por extenso no contexto.
Diversificando no contexto as indicações da soma de dinheiro, o título não será
nota promissória.
§ 4º Não será nota promissória o escrito
ao qual faltar qualquer dos requisitos acima
enumerados. Os requisitos essenciais são
considerados lançados ao tempo da emissão
da nota promissória. No caso de má-fé do
portador, será admitida prova em contrário.
Art. 55. A nota promissória pode ser
passada: I. à vista; II. a dia certo; III. a tempo certo da data. Parágrafo único. A época
do pagamento deve ser precisa e única para
toda a soma devida.”
No entanto, o Decreto Lei 57.663/66
promulga as Conversões para adoção de
uma lei uniforme em matéria de letras de
câmbio e notas promissórias.
A nota promissória é um título autônomo que pode ser cobrado de quem deter sua
posse; não causal, pois não precisa de motivos para ser emitida e livre já que não está
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vinculada a nenhuma lei. Entretanto, este ins- tulos de crédito, as quais são CARTULARItituto preserva algumas particularidades es- DADE, AUTONOMIA e LITERALIDADE.
pecíficas, o qual obedece aos requisitos poA cartularidade tem como caractesitivados na Lei Uniforme de Genebra (LUG), rística principal a sua existência física ou
principalmente em seus artigos 75 e 76.
equivalente.O título tem que existir como eleSegundo Fabio Ulhoa Coelho (Cf. COE- mento efetivo e representativo do crédito. AsLHO, 2007, p. 269), a nota promissória é uma sim, existindo a cártula, ou seja, o documenpromessa de pagamento que uma pessoa faz to impresso, existe o título de crédito, sendo
em favor de outra, onde com o saque da nota vedada a sua cópia para efeito de execução
promissória, surgem duas situações jurídicas da dívida. Deste conceito, decorre o axioma
distintas: a situação daquele que promete jurídico de que “o que não está no título não
pagar quantia determinada e a daquele que está no mundo”.
se beneficia de tal promessa. A pessoa que
A autonomia é o que garante a plena
se encontra na primeira situação é chamada, negociabilidade dos títulos de crédito, e repela lei, de sacador, emitente ou subscritor; a presenta a independência das obrigações
pessoa que se encontra na segunda posição vinculadas a um mesmo título, ou seja, com
é chamada de beneficiário ou sacado. Pode- a autonomia tem-se a desvinculação do título
-se dizer também que é uma promessa de de crédito em relação ao negócio jurídico que
pagamento, tendo em vista
motivou a sua criação, geranque o teor de seu texto traz (...) decorre o axioma do direitos autônomos tamde
que
“o bém no campo processual.
a expressão “PAGAREI”, res- jurídico
salta-se apenas que apesar que não está no título O título de crédito, mediante
do verbo estar no futuro, não não está no mundo”. a sua transferência para um
pode estar vinculado a uma
terceiro de boa-fé, se desvincondição.
cula do negócio concreto que
Para Pontes de Miranda, a nota promis- o originou, como forma de protegê-lo e confesória é o título cambiário em que o tomador do rir segurança jurídica à circulação do crédito
título assume, por promessa direta, isto é, de pelo título representado.
fato seu, que é pagar, obrigação direta e prinA literalidade traz consigo a formalidade
cipal. Por que aquele que cria nota promissó- e o rigor do que deve estar expresso no título
ria é, de regra, porém não necessariamente, de crédito, pois determina o seu conteúdo e
aquele que emite, chama-se-lhe emitente a sua extensão. Só tem valor jurídico o que
expressão teoricamente defeituosa, mas ado- está exatamente escrito no título de crédito
tada pelos textos legais e pela prática. Se o original e a extensão da obrigação por ele
criador da nota promissória, depois de enchê- representada. A literalidade gera a garantia
-la total ou parcialmente (nota promissória em nas obrigações, sendo que tanto o portador,
brando), a guarda, e alguém, por furto, roubo quanto o devedor, não poderão exigir além
ou abuso de confiança, ou qualquer outro mo- do que estiver enunciado na cártula.
tivo, a lança em circulação, não se pode dizer
obrigado direto e, principalmente, deve ser
4. Requisitos
chamado emitente. Ele não emitiu, somente
A nota promissória é um documento forcriou. De modo que, tendo-se de empregar a mal e para tanto a Lei Uniforme de Genebra,
expressão usual, é o direito cambiário que nos em seu artigo 75, impõe requisitos que deobriga a esvaziá-la do seu significado léxico, vem constar neste título para que seja cone só entenderemos como designadora do que siderado nota promissória. Os requisitos não
criou a nota promissória (ALMEIDA, 204).
preenchidos no momento de sua criação podem, de boa-fé, serem complementados até
3. Características
o momento do recebimento do crédito.
São estendidas às notas promissórias
No entanto, se ausentes no momenas mesmas características aplicadas aos tí- to do recebimento, a nota promissória não
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vale como título de crédito. O documento de valores na nota promissória, deve prevanão será nulo, mas não terá o mesmo valor lecer o de menor quantia, de acordo com o
de um título de crédito (Cf. TOMAZETTE, art. 6 e 75 da LUG.
2011). Pode-se dizer que não se trata da nulidade ou invalidade do documento, mas de
C. Nome do beneficiário
sua ineficácia, pois não produzirá os efeitos
O nome de quem receberá a promessa
de uma nota promissória.
também é indispensável. É necessário idenAssim como a letra de câmbio, tais re- tificar o credor originário que poderá receber
quisitos podem ser essenciais e não essen- a promessa, ou transferir o direito de recebêciais ou supríveis, como preferem alguns -la, tendo em vista que nossa legislação não
autores, como veremos a
admite a nota promissória ao
seguir.
Considera-se a cártula portador. Cabe ressaltar que
válida quando constar como a nota promissória nas1.1 Requisitos essena correta denominação, ce para circular, a promessa
ciais
a promessa de pagar do emitente o obriga a isso
Requisito
essencial quantia determinada, o em relação aos que futurasignifica que não pode ser nome do beneficiário, mente se tornem titulares do
substituído ou alterado por a data de emissão e a direito de crédito do título.
outro semelhante. Sua pre- assinatura do emitente.
sença é obrigatória para que
D. Data de emissão
o documento seja eficaz.
De acordo com Luiz
São eles elencados no artigo 75 da LUG:
Emygdio F. da Rosa Jr., a data de emissão
da nota promissória é essencial para que se
A. Denominação: “Nota Promissópossa verificar a capacidade do emitente na
ria”: art. 75, 1 - LUG
data em que assumiu a obrigação, bem como
A denominação “nota promissória” ou para contagem de prazos, como o vencimentermo correspondente na língua em que for to, nos casos de títulos com vencimento a
emitida é requisito insubstituível ao título. certo termo da data. O mês sempre deverá
Trata-se da identificação do nome do título, ser escrito por extenso enquanto o dia e o
chamada de cláusula cambial, exigência dos ano podem ser mencionados por algarismos.
demais títulos (Cf. COELHO, 2011). Por óbvio, tal exigência faz-se essencial para que
E. Assinatura do emitente
os subscritores saibam a obrigação que asA assinatura do emitente representa
sumiram.
a sua declaração de vontade da promessa
de pagamento, sendo essa a única vontaB. Promessa de pagar determinada
de essencial de tal título. Sem assinatura,
quantia: art. 75, 2 - LUG
a nota promissória é ineficaz, sendo ela o
Conforme já exposto, em toda nota último requisito essencial da nota promispromissória deve haver a promessa de um sória. Isso porque a nota promissória não
pagamento. O emitente promete ao benefici- está sujeita ao aceite e com a assinatura do
ário pagar determinada quantia em determi- título, o sujeito se torna o devedor principal
nado vencimento. Trata-se de uma promes- da relação.
sa pura e simples, que dispensa condições e
Vale também ressaltar que pode ser feiencargos. É, portanto, requisito essencial à ta a próprio punho ou por meio de procurador
promessa pura e simples de pagar determi- com poderes especiais.
nada quantia, que poderá ser expressa em
algarismos, ou por extenso, prevendo valor
Requisitos não essenciais ou supríveis
certo e que em casos excepcionais previstos
Requisitos não essenciais ou supríveis
no decreto-lei 857/69 podem ser pagos em significam que podem ser substituídos por
moeda estrangeira. Em casos de divergência outras indicações. Não quer dizer que sejam
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dispensáveis, mas admitem o suprimento
por outra indicação, tendo sempre uma outra alternativa.
(COELHO, 2011)
O avalista é responsável pelo pagamento do título da mesma forma que o avalizado, portanto, o credor quando vencer o
título pode cobrar diretamente do avalista,
pois são solidários para o pagamento.
O Código Civil trata do aval em artigos
específicos (art. 987 a 900), o artigo 898 “caput” preceitua que “o aval deve ser dado no
verso ou no anverso do próprio título”. Na
hipótese do avalista quitar o débito poderá
cobrar do avalizado ou daqueles que anteriormente ao seu aval haviam se obrigado
pelo pagamento do título.
O aval por ser autônomo, vale por si só;
não tem o direito de regresso contra o sacado, pois este não aceitou o título, portanto,
pagará o título, caso seja escolhido pelo credor e só poderá cobrar do sacado por indenização longe do título de crédito. Exceto no
regime de separação absoluta, nenhum dos
cônjuges poderá, sem autorização do outro,
prestar aval. Essa regra é estabelecida no
Código Civil no artigo 1647, inciso III.
A. Local de emissão
De acordo com o art. 76, 4, alínea da
LUG, o local de emissão será considerado
aquele indicado ao lado do nome do emitente. Não havendo o local de emissão ou
o local próximo ao nome do emitente no título, o documento não é válido como título
de crédito.
B. Local de pagamento
O local de pagamento é o local onde o
emitente deve pagar a promessa feita. Trata-se também de requisito não essencial, pois se
não constar a indicação do local, o pagamento
pode ser feito no local onde o título foi passado.
C. Vencimento: um caso a parte
O vencimento é um caso a parte, pois
não é requisito essencial nem não essencial,
tendo em vista que ele é dispensável completamente. Não havendo indicação do pagamento, presume-se que a nota promissória é
à vista. De acordo com o art. 76, II, alínea da
LUG. Portanto, o título que não contiver tal
informação não será considerado nulo.
5.1.1 Diferença entre o aval e a fiança
O aval e a fiança, apesar de terem pontos em comum, são distintos, a seguir citamos as diferenças entre ambos:
A fiança é um contrato previsto no código civil nos artigos 818 e seguintes, enquanto que o aval é uma forma de garantia própria dos títulos de crédito, a qual ocorre por
meio de uma simples declaração de vontade
do avalista.
O aval, como regra geral, deve ser
lançado diretamente no título e continua
valendo mesmo sendo nula a obrigação do
avalizado, exceto se houver vício de forma,
já a fiança é um contrato acessório que depende para sua existência do contrato principal, desse modo, sendo nula a obrigação
do afiançado, se extingue também a obrigação do fiador.
O avalista se equipara ao avalizado, assim sendo o credor tem a opção de cobrar a
dívida diretamente do avalista, enquanto que
na fiança há o benefício de ordem, ou seja,
o fiador pode exigir no caso de não cumprimento da obrigação, que o credor cobre pri-
5. Aval e endosso
5.1 Aval
O aval é uma forma de garantia eminentemente cambial, que existe apenas nos títulos de crédito, inexistindo nos demais contratos. Ele é autônomo e solidário e, no momento
em que uma pessoa assina o título de crédito,
passa a responder solidariamente pelo seu
pagamento, se não estiver dito a quem se avaliza presume-se que é o sacado e autônomo
porque mesmo se a obrigação do sacador for
nula, a do avalista não será, por isso é autônoma.
O aval também pode ser escrito no verso do título, ou em folha anexa, devendo exprimir pelos termos “bom para aval” ou outro
equivalente e assinado pelo avalista, conforme expõe Ulhoa:
“O aval é a assinatura no anverso da letra
que não seja do sacador e nem do sacado.”
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meiro o afiançado.
título fica nominal a quem o recebe.
Endosso
O endosso é um ato unilateral e abstrato, formal e que deve ser puro e simples.
Quando há condição que fique subordinado,
considera-se como não escrita.
Somente quem pode endossar é o beneficiário do título, e somente o proprietário
do título pode transferi-lo a terceiros, abaixo
algumas diferenças acerca da Letra de Câmbio, Nota promissória e cheque e, ainda, duplicata:
Letra de Câmbio: o beneficiário é o tomador (credor), a favor de quem a ordem é dada.
Nota Promissória e Cheque: beneficiário endossa a terceiros.
Duplicata: sacador quem pode endossar o título a terceiros.
O endosso foi o que deu vida ao título de
crédito, e é a forma de transferência do título
pela assinatura do credor no verso do título
(beneficiário-endossante). O endosso obriga
o endossante, o qual responde solidariamente com outros endossantes, que por sua vez
pode escolher qualquer um para executar,
conforme o ART 15° da LUG, que garante ao
aceite quanto o pagamento do título.
Ele é autônomo, ou seja, independente
entre si, conforme o princípio da autonomia
das obrigações cambiais. As assinaturas
continuam válidas, a despeito da possível
invalidade de alguma outra obrigação contida no mesmo título. O endosso se apresenta
em várias espécies, os quais são:
O Endosso Translativo é pelo qual alguém transfere os direitos de crédito a um terceiro e tem como consequência que a pessoa
que recebe o endosso em seu favor torna-se
credor (favorecido) do título de crédito.
O endosso translativo, por sua vez,
pode ser de duas espécies:
a) Endosso Translativo em branco:
Consiste na simples assinatura do favorecido no verso do título, sem a indicação de um
nome específico, de modo que o título fica
“ao portador”.
b) Endosso Translativo em preto: Há indicação específica de quem está endossando a quem deve ser pago, de modo que o
Da Cláusula Não à Ordem
Em havendo “Cláusula Não à Ordem”, o
título não poderá ser endossado. A cláusula
“não à ordem” impede a transferência do título à outra pessoa.
O endosso ao portador discrimina, pague-se ao portador.
O endosso mandato ocorre quando o
credor do título o transfere não para que o
endossatário torne-se proprietário do título,
mas para que ele receba seu crédito pelo endossante, é como se fosse uma procuração,
sendo o que o instrumento é o próprio título.
A forma é a cobrança: entrega o título
para que a pessoa receba por si. Deve usar
as expressões “valor a cobrar”, “para cobrança”, por “procuração”; senão usar a expressão presume-se que é translativo (comum,
pleno, pois transfere o título).
O endossante indica o endossatário
como seu procurador, subentendendo-se a outorga ao mandatário de todos os poderes para
cobrança e recebimento do título Endossante
(mandante) / endossatário (mandatário).
Qualquer endosso posterior ao endosso-mandato, ainda que sem as expressões antes mencionadas, será considerado
endosso-mandato. Portanto, não transmite
a propriedade do título e nem direito dele
emergente a terceiro. A 3ª alínea do art. 18
LUG deve ser lida: o mandato que resulta de
um endosso-mandato não se extingue por
morte ou sobrevinda incapacidade legal do
mandante (e não do mandatário).
O endosso caução (endosso pignoratício ou endosso garantia): o título é transferido ao endossatário apenas como garantia de
alguma obrigação. O endossatário recebe,
além da posse do título, todos os poderes
para cobrança e recebimento do valor do título. Não se transmite a propriedade do título
e nem os direitos dele emergentes, mas apenas a posse do título, para garantia do crédito do endossatário e para cobrança ou recebimento do valor (art 19º LUG): “valor em
caução”, “valor em penhor”, “valor garantia”.
Ademais o Decreto 2.044/1908 dispõe
sobre o endosso na letra de câmbio e nota
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promissória:
Art. 8º - O endosso transmite a propriedade da letra de câmbio. Para a validade do
endosso, é suficiente a simples assinatura do
próprio punho do endossador ou do mandatário especial, no verso da letra. O endossatário
pode completar este endosso. Parágrafo primeiro - A cláusula “por procuração”, lançada
no endosso, indica o mandato com todos os
poderes, salvo o caso de restrição, que deve
ser expressa no mesmo endosso. Parágrafo
segundo - O endosso posterior ao vencimento
da letra tem o efeito de cessão civil. Parágrafo
terceiro - É vedado o endosso parcial.
2. Não havendo clareza do sentido e alcance da obrigação do garantidor (se aval ou
fiança), em face da deficiência do instrumento em que assumida a obrigação, sendo que
dessa circunstância resultaria exigível ou não
a outorga uxória, pois o contrato foi firmado
sob a égide do Código Civil de 1916, se impõe
o provimento do apelo para liberar o bem penhorado, incluído no patrimônio conjugal.
3. Embargos de terceiros julgados procedentes. (TRF4 - APELAÇÃO CIVEL: AC
3942 RS 2006.71.07.003942-8)
Em relação ao caso, discorre Fábio
Ulhoa Coelho (1998, p. 371):
“Pelo subprincípio da abstração, o título
de crédito, quando posto em circulação, se
desvincula da relação fundamental que lhe
deu origem. Note-se que a abstração tem
por pressuposto a circulação do título de
crédito. Entre os sujeitos que participaram
do negócio jurídico, o título não se considera
desvinculado deste. (...) A abstração, então,
somente se verifica se o título circula. Em
outros termos, só quando é transferido para
terceiros de boa-fé, opera-se o desligamento
entre o documento cambial e a relação em
que teve origem.”
Consoante entendimento do tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, quanto a sua
liquidez de que a nota promissória revestida
de liquidez, certeza e exigibilidade,
“EMBARGOS DO DEVEDOR. NOTA
PROMISSÓRIA REVESTIDA DOS REQUISITOS DE LIQUIDEZ, CERTEZA E EXIGIBILIDADE. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO
DE CAUSA IMPEDITIVA, MODIFICATIVA
OU EXTINTIVA DO DIREITO DO exequente.
EMBARGOS REJEITADOS. RECURSO IMPROVIDO. SENTENÇA CONFIRMADA POR
SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS.
Estando demonstrada a existência do
crédito, através da exibição de título líquido,
certo e exigível, bem assim inexistindo prova
de causa extintiva, modificativa ou impeditiva
do direito da parte exequente, não há lugar
para a acolhida dos embargos.”
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul entende que a nota promissória
“EMBARGOS DO DEVEDOR. NOTA
PROMISSÓRIA REVESTIDA DOS REQUI-
6. Entendimento Jurisprudencial
A nota promissória, perante a jurisprudência, tem tido vários entendimentos principalmente em relação a sua vinculação ao
contrato consoante, sua liquidez, certeza e
exigibilidade.
Quanto à vinculação ao contrato, a justiça federal do Rio Grande do Sul entende
que no sentido de que o título em execução
é apenas o contrato de financiamento, na
medida em que a nota promissória firmada
opera na condição de garantia contratual,
em que quando constatado que o título é vinculado ao contrato de mútuo, é imprestável
como título executivo; e pela simples vinculação a contrato, não perde a liquidez, conforme ementa abaixo:
“DIREITO CIVIL. EMBARGOS DE TERCEIRO. TÍTULO DE CRÉDITO QUE INSTRUI
A EXECUÇÃO. NOTA PROMISSÓRIA. AUTONOMIA E ABSTRAÇÃO. AUSÊNCIA. EXECUÇÃO FUNDADA EM CONTRATO BANCÁRIO.
APLICABILIDADE DO CDC. FALTA DE CLAREZA DE CLÁUSULA CONTRATUAL RELATIVA À GARANTIA (SE AVAL OU FIANÇA).
IMPUTABILIDADE À INSTITUIÇÃO FINANCEIRA QUE REDIGIU O INSTRUMENTO.”
1. O título em execução é apenas o
contrato de financiamento, na medida em
que a nota promissória firmada operaria apenas como garantia contratual.Absolutamente
vinculado o título de crédito ao contrato que
lhe deu origem, não enseja ele execução por
obrigação autônoma.
57
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
SITOS DE LIQUIDEZ, CERTEZA E EXIGIBILIDADE. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO
DE CAUSA IMPEDITIVA, MODIFICATIVA
OU EXTINTIVA DO DIREITO DO exequente.
EMBARGOS REJEITADOS. RECURSO IMPROVIDO. SENTENÇA CONFIRMADA POR
SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS.
Estando demonstrada a existência do
crédito, através da exibição de título líquido,
certo e exigível, bem assim inexistindo prova
de causa extintiva, modificativa ou impeditiva
do direito da parte exequente, não há lugar
para a acolhida dos embargos.”
Quanto à nota promissória emitida em
branco, o TJRS entende que não importa em
nulidade a emissão da nota promissória parcialmente preenchida ou em branco, pois decorre de mandato tácito e ficou comprovado
que não houve preenchimento abusivo.
Embargos à execução. pretensão DESCONSTITUTIVA. NOTA PROMISSÓRIA em
branco. Súmula 387 STF.
Não importa em nulidade a emissão de
nota promissória parcialmente preenchida ou
em branco, haja vista que seu preenchimento decorre de mandato tácito Não demonstrado que houve preenchimento abusivo. Ônus
probatório incumbe a quem alega. Improcedência dos embargos à execução.
em atividades comerciais.
A partir do contexto geral abordado no presente artigo, pode-se frisar que por ser um título
de crédito autônomo, pode ser cobrado por seu
possuidor e tem suas características fundadas
na cartularidade, autonomia e literalidade.
Entende-se também que, para ser considerada como um documento válido, é necessário a correta denominação, a promessa de pagar quantia determinada, o nome do
beneficiário, a data de emissão e a assinatura do emitente. Na ausência de qualquer
uma destas condições, o documento não é
inexistente, mas sim inválido e para tanto,
não trata-se de nota promissória.
Sabe-se que a nota promissória é sujeita ao aval e ao endosso. No endosso, havendo cláusula de não à ordem, não é passível de transferência a terceiro.
O entendimento jurisprudencial hoje,
com relação a sua vinculação ao contrato
consoante sua liquidez, certeza e exigibilidade, esclarece que a simples vinculação
ao contrato mútuo não exclui a sua liquidez.
Ademais, por ser espécie de título de
crédito, está regulada pelas mesmas normas
disciplinadoras da Letra de Câmbio, ou seja, a
Lei Uniforme de Genebra, introduzida em nossa legislação através do Decreto 57.633/66
subsidiado pelo Decreto 2.044/1908. Nesta lei,
observa-se também o prazo para prescrição e
a inexistência do aceite.
O Código de Processo Civil também
dispõe que se trata de título extrajudicial e
que, por óbvio, a nota promissória dá o start
para o início do processo de execução. A dívida prescrita relativa à nota promissória não
pode ser cobrada através de ação cambial,
porém, existe a possibilidade de se requerer
através de ação ordinária.
Diante do exposto, verifica-se a pertinência do tema, pois tal título ainda é uma
solução sugestiva para determinadas relações comerciais, tendo em vista que as
relações de consumo e comércio crescem
progressivamente nos dias atuais.
Apelo improvido
A súmula 387 do Superior Tribunal Federal refere-se exatamente a esta questão
da emissão da nota promissória em branco,
cujo teor é o seguinte:
“A cambial emitida ou aceita com omissões, ou em branco, pode ser completada
pelo credor de boa-fé, antes da cobrança ou
do protesto.”
No mais, entende-se que foi facultado
ao portador preencher a nota promissória
em branco posteriormente com os requisitos essenciais.
7. Considerações Finais
O estudo acerca da nota promissória é
de suma importância, tendo em vista que se
trata de título bastante utilizado atualmente
como promessa de pagamento, fruto de um
vasto desenvolvimento histórico que iniciou
Referências
ALMEIDA, Amador Paes. Teoria e
Prática dos Títulos de Crédito. 28. ed.
58
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
São Paulo: Saraiva, 2009. Disponível em:
<http://academico.direito-rio.fgv.br/wiki/
Nota_Promiss%C3%B3ria> Acesso em: 17
jun. 2011.
sória e os seus requisitos essenciais à luz da
Lei Uniforme. Jus Navigandi, Teresina, ano 7,
n. 56, 1 abr. 2002. Disponível em: <http://jus.
uol.com.br/revista/texto/2846>. Acesso em:
29 maio 2011.
ASCARELLI, Túlio. Direito Comercial.
Mizuno.
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Crédito. 6. ed. São Paulo: Renovar, 2009.
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: Títulos de crédito. v. 2, 2. ed.
São Paulo: Atlas, 2011
PEREIRA, Renato Alves. A nota promis-
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
A convergência da auditoria independente
brasileira aos padrões internacionais de
auditoria
Cláudio Morais Machado1
Fernanda Pucurull2
Resumo: O presente estudo técnico tem o propósito de analisar a aplicação
de padrões internacionais de auditoria aos serviços prestados por empresas brasileiras de auditoria externa independente.
Para tanto são avaliadas as novas Normas Brasileiras de Contabilidade que
estão alinhadas com as Normas Internacionais de Auditoria emitidas pela International Federation of Accountants – IFAC.
Estas novas normas estabelecem a estrutura conceitual, critérios e procedimentos práticos da atividade de asseguração de informações contábeis. A padronização e transparência permitem aumentar a confiança dos investidores e
membros da sociedade nas demonstrações contábeis das entidades, facilitando
o fluxo dos negócios e o desenvolvimento econômico.
Palavras-chave: Convergência. Normas de Contabilidade. Auditoria Independente. Asseguração. Relatórios. Demonstrações Contábeis.
Abstract: The objective of this technical study is to analyse the application
of international audit standards to the services supply from external Brazilian independent companies. To reach such objective, it was necessary to evaluate the
new Brazilian Accounting standards that are in line with the International Standards on Auditing issued by the International Federation of Accountants – IFAC.
These new norms establish the conceptual framework, the criteria and the
procedures of practical activity assurance of accounting information. The standardization and transparency would increase the investor and other society member’s
confidence in the statements of accounting entities. Such confidence is very important to improve the flow of business and economic development.
Keywords: Convergence. Cccounting Standards. Independent Audit. Fastener. Reports. Financial Statements.
vergência das normas brasileiras de contabilidade, incluso as de auditoria, aos padrões
internacionais, por exigência dos mercados
globais aos nacionais. Foi interrompido o marasmo decorrente da falta de embasamento
legal para a necessária mudança e consequente evolução da contabilidade brasileira.
A partir de então entraram em ação os fóruns estabelecidos pelas entidades contábeis e
Introdução
Em dezembro de 2007 foi promulgada a
Lei 11.638, que modificou e aprimorou a Lei
das Sociedades por Ações em seus capítulos
que envolvem a chamada parte contábil desta
que é a mais importante lei societária do País.
Com estas novas disposições, há o respaldo
legal e dado pontapé inicial e irreversível para
o início do processo de harmonização e con-
(1)
Mestre em Ciências Empresariais (UFP/PT), Pós-graduado em Auditoria (FIPECAFI/USP) e Finanças (PPA/UFRGS), Professor da
Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. E-mail: [email protected]
(2)
Acadêmica do Curso de Ciências Contábeis da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. E-mail: [email protected]
61
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
pelos órgãos supervisores dos mercados brasileiros, dos quais salientamos os principais:
• Comitê Gestor da Convergência no
Brasil - CGC, composto pelo Conselho Federal de Contabilidade – CFC, o Instituto dos
Auditores Independentes do Brasil – IBRACON, o Banco Central do Brasil – BCB e o
Comissão de Valores Mobiliários – CVM, para
cumprir o compromisso legalmente assumido
de viabilizar o processo de convergência; e
• Comitê de Pronunciamentos Contábeis – CPC, instituído e liderado pelo CFC
e composto deste com o IBRACON e outras
entidades representativas do meio acadêmico (Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras – FIPECAFI-FEA/USP) e dos usuários da informação
contábil (Associação Nacional dos Analistas
e Profissionais de Investimento em Mercado de Capitais – APIMEC, Associação Brasileiras das Companhias de Capital Aberto
- ABRASCA) e membros observadores convidados a CVM, o BCB, a Superintendência
de Seguros Privados – SUSEP e Secretaria
da Receita Federal – SRF, voltado para a
harmonização e convergência das Normas
Brasileiras de Contabilidade aos IFRS: Normas Internacionais de Relatório Financeiro,
emitidos pelo IASB – Conselho de Normas
Internacionais de Contabilidade.
Naturalmente que o esforço inicial
concentrou-se na parcela das novas normas de contabilidade harmonizadas aos
padrões internacionais, os IFRS (Internacional Financial Repporting Standarts),
necessárias ao cumprimento das novas
disposições da lei societária brasileira em
2008, continuando o processo nos anos
seguintes, a cargo do CPC.
Em 2009 foram emitidas novas Resoluções do CFC, a partir de trabalho do CGC, a
cargo do IBRACON, com o novo modelo de
regulamentação para os serviços prestados
pelos auditores independentes, convergida
das Normas Internacionais de Auditoria da
International Auditing end Assurance Standerd Board – IAASB da International Federation of Accountants – IFAC, constituído de 40
novas Normas Brasileiras de Contabilidade
– NBCs, não mais restritas a auditoria das
demonstrações contábeis, mas também aos
demais serviços de asseguração e mesmo
de outros serviços correlatos. Em 2010 e
2011, até o mês de abril, final do período considerado para este trabalho, foram aprovadas mais 5 (cinco) normas técnicas, 2 (duas)
profissionais e três comunicados técnicos
adaptando a emissão dos Relatórios do Auditor Independente às peculiaridades da legislação e práticas contábeis brasileiras.
Este novo conjunto de normas de auditoria, ampliado para asseguração de informações contábeis e serviços correlatos
é objeto de estudo realizado e deste artigo
acadêmico.
1. A importância do Controle Interno e de Governança Corporativa para a
Auditoria:
1.1 Introdução: inicialmente, cabe realçar a importância de estudo do Controle Interno e dos preceitos de Governança Corporativa para a evolução da auditoria nos mercados
globalizados.
O Controle Interno, conceituado em
1971 pelo AICPA (Instituto Americano de
Contadores Públicos Certificados), como:
“o controle interno compreende o plano de
organização e o conjunto coordenado de
métodos e medidas, adotados pela entidade, para proteger o seu patrimônio, verificar a exatidão e a fidedignidade de seus
dados contábeis, promover a eficiência
operacional e encorajar a adesão à política
traçada pela administração.”
Esta conceituação prevaleceu até 1992,
quando o Comite of Sponsoring Organizations of the Tradway Commission, conhecido pela sigla “COSO”, formado pelas mais
conceituadas entidades profissionais ligadas
aos mercados financeiro e de capitais nos
Estados Unidos da América, que substituiu,
passou a emitir pronunciamentos que ampliaram substancialmente o foco contábil e
de gestão empresarial do controle interno.
Emitiram dois pronunciamentos que se notabilizaram como COSO I (Control Environment) e COSO II ou ERM (de Enterprice Risk
Management – Integrade Framework), o pri62
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
meiro com foco contábil, por isto conhecido
como COSO REPPORT e o segundo ampliando para o processo de gestão das entidades em especial no que tange aos riscos
que o envolvem. O controle interno e a contabilidade passaram a ter também seu foco
de forma proativa, além da tradicional visão
reativa que os limitava.
Ficou estabelecida a estrutura integrada de controle interno, composta de: (i)
objetos de avaliação (as unidades administrativa/operacionais abrangidas); (ii) quatro
(4) categorias de atividades e (iii) oito (8)
elementos básicos.
Notabilizou-se em uma figura tridimensional, o “cubo do COSO”, cujas dimensões
compreendem as categorias de atividades
de controle, os elementos ou componentes
de controle e os objetos de avaliação, conforme Bergamini Junior (Revista do BNDES,
V. 12, 2005):
estratégia: categoria relacionada com os
objetivos estratégicos da entidade, estabelecidos em seu planejamento, inclusive sobre
os níveis de risco que a administração aceita
assumir.
- Eficiência e efetividade operacional
(Operations: objetivos de desempenho ou
estratégia): esta categoria está relacionada
com os objetivos básicos da entidade, inclusive com os objetivos e metas de desempenho e de rentabilidade, bem como da segurança e qualidade dos ativos;
- Confiança nos registros contábeis/
financeiros (Financial reporting: objetivos de
informação): todas as transações devem ser
registradas, todos os registros devem refletir
transações reais, consignadas pelos valores
e enquadramentos corretos; e
- Conformidade com leis e normativos
aplicáveis à entidade e a sua área de atuação.”
Os oito (8) elementos inter-relacionados
entre si e presentes em todo o controle interno:
- Ambiente (interno) de Controle (Control Environment – COSO I): é a cultura de
controle interno da entidade, onde somente é
o controle efetivo, quando as pessoas conhecem as suas responsabilidades, os limites de
autoridade e consciência, competência e o
comprometimento de fazerem o que é certo de maneira correta. Envolve competência
técnica e compromisso ético, onde a postura
da alta administração, pelo exemplo, é fator
determinante da criação deste valor;
- Definição dos objetivos (COSO II): o
ERM deve assegurar que a gerência dispõe
de um processo implementado que lhe permita fixar os objetivos de forma alinhada à
missão da empresa, sendo consistente com
a propensão ao risco previamente definida.
Devem existir antes da identificação dos
eventos que possam afetar seu alcance;
- Identificação dos eventos (COSO
II): eventos internos e externos que afetam o
cumprimento dos objetivos devem ser identificados e separados entre riscos e oportunidades, mapeados e canalizadas de volta
para as estratégias gerenciais ou processos
de definição de objetivos;
- Avaliação de risco (COSO II): os
Sistema de Estrutura Integrada - FONTE:
COSO (Committe of Sponsoring Organization:
apud Bergamini Junior, 2005).
Dessa forma, segundo o COSO:
“Controle interno é um processo desenvolvido para identificar eventos que possam afetar o desempenho da entidade, a fim
de monitorar riscos e assegurar que estejam
compatíveis com a propensão ao risco estabelecida, de forma a prover, com segurança
razoável, o alcance dos objetivos, em especial nas seguintes categorias:
- Estratégia (Strategyc) - objetivo de
63
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
riscos devem ser avaliados com base na
probabilidade e no impacto e os resultados
dessa avaliação devem orientar o seu gerenciamento; esses riscos devem ser avaliados
como inerentes e residuais;
- Respostas ao risco (COSO II): estabelecimento das regras de gerenciamento:
aceitando, reduzindo, partilhando ou evitando os riscos e desenvolvendo ações para
alinhar o seu gerenciamento à propensão de
risco previamente explicitada;
- Atividades de Controle (Control Activities – COSO I): são os procedimentos destinados à redução ou administração dos riscos (também tratados como procedimentos
de controle interno). Podem ser de caráter
preventivo ou detecção, ou de ambos, sendo os mais conhecidos: (i) Segregação de
funções - Normatização interna - Alçadas de
autoridade ou de responsabilidade (prevenção); (ii) Conciliações - Revisões de desempenho (detecção); e (iii) Segurança física e
por sistemas informatizados (prevenção e
detecção);
- Informação e Comunicação (Information & Communication – COSO I): comunicação é o fluxo de informações dentro de
uma entidade e a informação é o combustível
que move as organizações e a sociedade;
- O Monitoramento (Monitoring –
COSO I): que é a avaliação dos controles
internos ao longo do tempo, se efetivos ou
não. Podem ser contínuos ou pontuais, envolvendo autoavaliações, revisões e auditoria (interna, independente, integral...).
A estrutura e o processo de controle interno segundo o COSO passou a ser aceito e
recomendada a sua adoção por praticamente todos os foros mundiais importantes.
sociedade como um todo. A governança
diz respeito a padrões de comportamento
que conduzem à eficiência, ao crescimento e ao tratamento dado aos acionistas e
outras partes interessadas, tendo por base
princípios definidos pela ética aplicada à
gestão de negócios.”
Segundo Andrade e Rosseti, 3ª edição,
2010, Governança Corporativa, uma criação
da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE é vista,
tanto para esta prestigiosa organização de
origem europeia, como para o FMI, Banco
Mundial e G 7, como uma sólida base para
o crescimento econômico, integração global
dos mercado e para o controle dos riscos
dos investimentos nas empresas. A OCDE
entende-a como um dos instrumentos determinantes do desenvolvimento sustentável,
em suas três dimensões – a econômica, a
ambiental e a social.
Os Principais Valores ou Princípios
da Governança Corporativa são:
a) Transparência (Disclosure)
b) Senso de Justiça, Equidade no Tratamento dos Sócios Minoritários (Fairness)
c) Prestação de Contas (Accountability)
d) Conformidade no cumprimento de Princípios e Regras (Compliance)
a) Transparência (Disclosure): divulgação de informações completas nos relatórios financeiros e de tudo que seja relevante
e mesmo que não seja caso de contabilização, mas que impactem os negócios e os
resultados corporativos (off balance sheet),
inclusive antecipado às DCs.
b) Senso de Justiça, Equidade no Tratamento dos Sócios Minoritários (Fairness):
• Mesmos direitos legais a todos os sócios, majoritários e minoritários.
• O processo de remuneração dos Administradores deve ser aprovado pelo CA e,
se por planos de stock options, a aprovação
é pelos acionistas.
• Vedações de favores indevidos e penalidades no caso de fraudes corporativas.
c) Prestação de Contas (Accountability): responsabilidade direta dos principais executivos, diretores presidente e financeiro, na expressa divulgação de relatórios contendo que:
1.2 Governança Corporativa: possui
diversas interpretações conceituais, sob diferentes óticas, das quais a referente a “Sistemas de Valores e Padrões de Comportamentos” é a que mais chama a atenção de todos:
“Governança corporativa trata da justiça,
da transparência e da responsabilidade
das empresas, no trato de questões que
envolvam os interesses do negócio e os da
64
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
• revisaram-nos e que não existem falsas declarações ou omissões relevantes;
• as DCs revelam adequadamente a
posição financeira, os resultados das operações e os fluxos de caixa;
• os auditores independentes e o comitê
de auditoria receberam todas as informações
sobre deficiências, mudanças e mesmo de
fraudes, se o caso; e
• são adequados os controles internos
existentes, dos quais são responsáveis diretos.
d) Conformidade no cumprimento de
Princípios e Regras (Compliance): adoção
de um código de ética para a entidade, em
especial para seus principais executivos,
com inclusão obrigatória de regras para o
conflito de interesse, divulgação de informações e cumprimento de leis e regulamentos.
Embora Governança Corporativa seja
uma criação da OCDE, uma organização europeia que após globalizou-se, um dos seus
pontos altos, além da adoção pelos maiores fóruns econômicos mundiais, foi a sua
inclusão quase plena na legislação norte-americana aprovada para fazer frente aos
escândalos financeiros, pela conhecida “Lei
Sarbanes-Oxley”.
A Governança Corporativa entrou com
muita força nos mercados brasileiros, a partir
da criação do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa e de regulamentações
dos órgãos supervisores do mercado nacional, especialmente BCB e CVM, que passaram a fazer exigências de cumprimento
de premissas de governança, ficando mais
notabilizadas as regulamentações da BOVESPA, relativas mais especificamente ao
mercado acionário, onde as empresas participantes passaram a ser enquadradas em
níveis diferentes conforme as suas adesões
à governança, chegando ao mais alto nível,
denominado “NOVO MERCADO”, constituído das empresas que aderiram integralmente a todos os critérios de Governança Corporativa, com maior valorização de seus títulos
e reconhecimento pelos investidores.
As grandes empresas, mesmo as do setor público, passam a exigir “Certificação do
Instituto de Governança Corporativa – IBGC”
para os seus possíveis Conselheiros, tanto
de Administração como Fiscal e membros do
Comitê de Auditoria.
Os padrões internacionais de contabilidade e auditoria não poderiam desconsiderar
esta nova exigência dos mercados internacional e nacional e seus novos regulamentos
estão integralmente influenciados pelos princípios de Governança Corporativa da OCDE
e nova visão de controle interno baseada nos
pronunciamentos do COSO
2. Auditoria: uma visão no tempo:
A definição clássica de auditoria é a expressa por Arthur W.Holmes (considerado o
Papa da Auditoria), em sua obra “Basic Auditing Principles”, by Richard D. Irwin, Inc,
1966, que ora é traduzida:
“A auditoria é uma disciplina intelectual,
baseada na lógica e que está dedicada ao
estabelecimento de fatos, sendo as conclusões resultantes falsas ou verdadeiras.”
A American Accounting Association
(AAA), que é a entidade norte-americana
que congrega os seus acadêmicos de Contabilidade, como consta em Boynton, Johnson
e Kell, fls. 30, definiu auditoria de forma que
teve grande aceitação, pela sua abrangência
técnica e tem influenciado a emissão de normas de auditoria não só na Norte América,
mas também as normas internacionais, agora adotadas no Brasil:
“Auditoria é um processo sistemático, de
obtenção e avaliação objetivas de evidências sobre afirmações a respeito de ações e
eventos econômicos, para aquilatar o grau
de correspondência entre as afirmações e
critérios estabelecidos, e de comunicação
dos resultados a usuários interessados.”
Ainda citando Boynton, Johnson e Kell,
fls. 30, faz-se os seguintes comentários acerca
dos atributos desta definição marcante:
- Processo sistemático: fixando ser um
processo lógico, estruturado e organizado.
- Obtenção e avaliação objetivas de
evidências: significa exame criterioso de obtenção e avaliação das comprovações sobre
o que é examinado.
65
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
- Afirmações a respeito de ações e
eventos econômicos: representa o que é
apresentado como informação, que é o objeto do exame, normalmente em demonstrações contábeis, relatórios, etc...
- O grau de correspondência: significa
o quanto as afirmações aderem aos critérios
estabelecidos.
- Critérios estabelecidos: são as disposições normativas pelas quais as afirmações são comparadas e julgadas.
- Comunicação dos resultados: é a
materialização da conclusão e opinião do auditor sobre o grau de correspondência entre
as afirmações e as disposições normativas; e
- Usuários interessados: são os indivíduos e entidades que utilizam os resultados
da auditoria para tomarem suas decisões de
caráter econômico.
estruturadas segundo dispõe a Resolução
1.156/09 do CFC, que devem seguir os mesmos padrões de elaboração e estilo das normas internacionais.
Compreendem o Código de Ética Profissional do Contador – CEPC, as Normas
de Contabilidade, de Auditoria Independente e Asseguração, de Auditoria Interna e de
Perícia. São também divididas em normas
profissionais (NBC Ps) e técnicas (NBC Ts).
As normas profissionais estabelecem preceitos de conduta profissional, em conformidade com o Código de Ética Profissional
do Contador, e as normas técnicas são voltadas para o estabelecimento de conceitos
técnicos doutrinários, de estrutura e com indicação de procedimentos técnicos a serem
aplicados nas diferentes circunstâncias de
trabalho em Contabilidade.
Esta estrutura das Normas Brasileiras
de Contabilidade, constante do quadro abaixo, é como apresentado por Longo (2011),
com pequena adaptação:
3. Nova Estrutura das Normas Brasileiras de Contabilidade (e Auditoria):
Segundo Longo (2011), as NBC estão
(Longo, 2011, pág. 07)
Assim, esta estrutura, como apresentada no quadro exposto, demonstrando as
normas referidas, devidamente classificadas
em normas profissionais e normas técnicas.
bilidade relativas à Auditoria Independente,
decorrentes do processo de convergência
com as normas internacionais de auditoria
da IFAC, tomaram daquelas, por tradução, a
denominação de “Asseguração”, traduzida
do termo em língua inglesa “assurance” que
significa “dar segurança ou dar garantia”. O
sentido é que os auditores independentes,
organizados em firmas ou individualmente,
de forma responsável, “asseguram” para
usuários previstos que determinadas afirmações de responsáveis pela administração de entidades sobre determinados obje-
4. O novo conjunto de Normas Brasileiras de Contabilidade voltadas à Auditoria:
As normas brasileiras relativas à auditoria independente anteriores eram um conjunto incompleto, muito singelo embora objetivo.
Era incompleto por referir-se somente à auditoria de demonstrações contábeis.
As novas Normas Brasileiras de Conta66
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
5. A organização do novo conjunto
de Normas relativas à Auditoria e à Asseguração:
Às Normas Brasileiras de Contabilidade relativas à Asseguração e Serviços
Correlatos, seguem a organização das normas internacionais de auditoria da IFAC, as
ISAS, e cada norma tem, normalmente, a
seguinte estrutura:
• INTRODUÇÃO
- Alcance da norma específica
- Esclarecimentos do alcance ou das
características do que é tratado na norma
- Objetivos gerais do auditor relativos ao
alcance da norma
- Definições de termos utilizados na norma
• REQUISITOS de aplicação da norma
• ANEXOS, ADENDOS E APÊNDICES
à norma, relativos a esclarecimentos com
orientações sobre a aplicação de alguns dispositivos da norma e exemplos de termos,
cartas e relatórios, etc.
As normas, baseadas em princípios e
não em regras, são mais genéricas e abrangentes. Os esclarecimentos/orientações e
exemplos que lhes são anexados e fazem
parte da norma entram em detalhes quando adequado ao seu melhor entendimento,
inclusive com exemplos completos de circunstâncias atinentes à contida na norma.
Também contém modelos de termos e cartas
entre o auditor e a administração e demais
responsáveis pela governança da entidade
responsável e/ou contratante da auditoria,
desde a carta/contrato de aceitação do trabalho, como os meios de comunicação formais
intermediários e de formação de evidências
durante os trabalhos, até os de formação da
opinião e relatório com a conclusão dos trabalhos de auditoria ou de revisão ou mesmo
de asseguração diferente das anteriores. Estes subsídios das normas, em termos práticos, passam a ter uma “feição” de “regras”,
mesmo que, em tese, sejam apenas auxiliares às normas consideradas. Como orientações e exemplos, não englobam ou exaurem
todos os casos ou limitam a ação do auditor.
Estes anexos são identificados pela letra A.
As novas Normas Técnicas de Asseguração de Demonstrações Contábeis se orga-
tos, examinadas com base em conjunto de
critérios, aplicados sempre com o devido
ceticismo profissional, basicamente se são
adequadas ou não.
Os objetos referidos podem ser constituídos na forma de demonstrações contábeis
como também de outros tipos de itens como
desempenho, controle e outros trabalhos, bem
como considera a extensão e profundidade dos
procedimentos técnicos de obtenção de evidências apropriadas e suficientes para que a
conclusão possa ser de forma positiva ou não.
Este gênero, “asseguração”, divide-se
em três subconjuntos de normas técnicas:
1ª. Auditoria das Demonstrações
Contábeis – NBC TAs:
As Normas Técnicas de Auditoria (NBC
TA), relativas à “asseguração razoável”, também referidas na norma como “auditoria das
demonstrações contábeis”, cujos procedimentos técnicos para obtenção de evidência
suficiente e apropriada, são mais extensos e
aprofundados e que finaliza com conclusão
na forma positiva;
2ª. Revisão das Demonstrações Contábeis – NBC TRs:
As Normas Técnicas de Revisão (NBC
TR), relativas à “asseguração limitada”, cujos
procedimentos técnicos para obtenção de
evidência suficiente e apropriadas são de
inferior extensão e profundidade ao aplicado
na auditoria e que finaliza com conclusão de
forma negativa, Normalmente relativo a demonstrações contábeis intermediárias dentro
do exercício social;
3ª. Outros Trabalhos de Asseguração
– NBC TO:
As Normas para Outros Trabalhos de
Asseguração (NBCTO), que não sejam de
auditoria ou de revisão das demonstrações
contábeis.
A Auditoria Independente também foi
acrescida de Normas Técnicas para Serviços Correlatos – NBC TSC, referentes a
Trabalhos de Execução de Procedimentos
Acordados Referentes à Informação Contábil, que não sejam de asseguração, seja de
auditoria ou de revisão, onde normalmente a
parte responsável pela informação é a usuária interessada nos resultados.
67
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
nizam na sequência e numeração das NBCs,
seguindo o modelo do IFAC, corresponde a sua
ordem natural, do que é entendido como o pro-
cesso de auditoria e revisão ou outros trabalhos
de asseguração de informação contábil histórica, como se demonstra no quadro que segue:
Segundo Longo, 2011, fl. 25:
“O processo de auditoria é uma atividade
contínua, não sendo possível dividi-lo em
fases estanques, uma vez que existem algumas atividades que ocorrem de forma
permanente ao longo de todo o trabalho
de auditoria, como, por exemplo, o planejamento, que deve ser reavaliado cada
vez que surge uma novidade relevante,
um novo risco que não havia sido identificado, uma deficiência no controle ou uma
distorção. A mesma forma com a comunicação com os responsáveis pelos órgãos
de governança,... essa comunicação que
começa na contratação e termina quando
se encerra o trabalho de auditoria...”.
Esta característica do processo de auditoria, como evidenciada por Longo (2011),
realça que suas diferentes fases sejam
sempre integradas e muitas vezes concomitantes, como apresentada em adaptação
de fluxo apresentado pelo referido autor,
como segue:
68
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
e médias firmas de auditoria (anexo 02) e as
demais que substituem a anterior, sobre a Independência da firma e auditor independente.
Em termos numéricos, o conjunto atual de normas profissionais alcança cerca de 200 folhas.
b) Já as normas técnicas são inteiramente revogadas às anteriores, em número de
13 e emitidas 41 novas normas convergidas
e 4 CT – instruções técnicas sobre elas. Este
novo conjunto de normas, em termos quantitativos, alcança cerca de 1.800 folhas A4.
Estas normas não mais se limitam à auditoria
independente das demonstrações contábeis e
contemplam um universo maior de serviços de
asseguração prestados por auditores independentes e mesmo serviços correlatos, a saber:
• 1 (uma) norma principal: Estrutura
Conceitual para Trabalho de Asseguração,
com a fundamentação teórica e conceitual
dos trabalhos de asseguração;
• 36 (trinta e seis) normas objetivas sobre a auditoria (asseguração razoável) de
Demonstrações Contábeis;
• 2 (duas) normas objetivas sobre a revisão (asseguração limitada) de demonstrações contábeis;
• 1 (uma) norma teórica e objetiva sobre
asseguração de informação contábil histórica que não auditoria ou revisão;
• 1 (uma) norma teórica e objetiva sobre serviços correlatos prestados por auditor
independente (que não de asseguração); e
• 4 (quatro) Comunicados Técnicos sobre emissão de Relatórios do Auditor Independente em razão de exigências de Órgãos
Supervisores (este número tende a ir aumentando conforme a necessidade).
É mantido o foco contábil nas normas
objetivas embora a Estrutura Conceitual deixe bem expresso que a asseguração é um
processo correspondente a uma certificação
que também é plenamente utilizável para outros fins como, por exemplo, a eficácia de um
sistema de controles internos.
6. Comparação objetiva das normas
convergidas vigentes e as anteriores: as
normas convergidas e vigentes atualmente e
as imediatamente anteriores podem ser buscadas diretamente no site do CFC, seguindo o
caminho Vice-presidência Técnica - Normas.
A simples comparação visual entre estas normas e o conhecimento do conjunto de
normas anteriores compunha um volume de
cerca de 250 folhas. O atual é de cerca de
2.000 folhas, já nos demonstrando que a comparação entre elas fica um tanto prejudicada,
uma vez que não são uniformes.
Todavia, a que se abstrair da falta de
uniformidade e deixar claro alguns pontos
objetivos que sobressaem na simples comparação entre estes dois conjuntos de normas, como segue:
O Conjunto Anterior de Normas de Auditoria Independente:
Em termos objetivos temos as seguintes observações sobre o conjunto anterior:
As normas profissionais do auditor independente, que não se constituem no foco deste
trabalho, eram em número de 10, com três normas principais, as relativas à Pessoa do Auditor
Independente, com mais sete Instruções Técnicas sobre itens dela; a relativa à Educação
Continuada e a relativa ao Exame de Qualificação técnica. Em termos quantitativos, estas
normas resultavam em cerca de 70 folhas A4.
a) As normas técnicas de auditoria independente, em número de 13, sendo uma única norma principal, limitada a “Auditoria das
Demonstrações Contábeis” e 12 instruções
técnicas sobre itens dela, somando cerca de
180 folhas A4.
b) O Conjunto Atual de Normas de Auditoria Independente
Em termos objetivos temos as seguintes observações sobre o conjunto atual de
normas:
a) As normas profissionais do auditor
independente, que, repete-se, não se constituem no foco deste trabalho, são praticamente
mantidas, somente uma substituída e acrescidas de três novas normas convergidas. A
primeira sobre o Controle de Qualidade nas
firmas de auditoria independente, inclusive
com a emissão de um guia para pequenas
7. Pontos fundamentais do novo conjunto normativo da auditoria brasileira:
Como se manifesta Cláudio Longo
(Longo, 2011), este novo conjunto de normas
se refere a um processo contínuo, que se in69
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
- relacionamento entre três partes: o
auditor independente, a parte responsável
(pelo objetivo, como as demonstrações contábeis) e os usuários previstos;
- objeto apropriado: ou informação
identificável, passível de mensuração baseada em critérios;
- critérios adequados: pontos de referência, por exemplo, as NBCs ou os IFRS;
- evidências apropriadas e suficientes: a base, a prova da opinião onde suficiência é a medida de quantidade e adequação de
qualidade; e
- relatório de asseguração escrito na
forma apropriada.
c) Trabalhos de Asseguração Razoável e de Asseguração Limitada
São os dois tipos de trabalhos de asseguração permitidos ao auditor Independente:
- De Asseguração Razoável, cuja extensão e profundidade dos procedimentos
técnicos de auditoria aplicados são de forma
que permita a obtenção de evidência de auditoria adequada e suficiente para o auditor
dar sua opinião de forma positiva, por exemplo: “em nossa opinião, as demonstrações
contábeis identificadas representam adequadamente a posição financeira e patrimonial e
o desempenho...”; e
- De Asseguração Limitada, da mesma forma que a anterior, mas a aplicação dos
procedimentos de auditoria é em intensidade
menor, obtendo o auditor evidência adequada e suficiente para expressar a sua opinião
somente de forma negativa, por exemplo:
“concluindo que não foram apurados casos
que desmereçam as demonstrações contábeis apresentadas pela administração...”.
d) Trabalhos de Asseguração de
Demonstrações Contábeis permitidos ao
Auditor:
- De Auditoria, que é o Trabalho de
Asseguração Razoável, que permita uma expressão positiva da conclusão do auditor; e
- De Revisão, que é o Trabalho de Asseguração Limitada, que leva a uma forma negativa de expressão da conclusão do auditor.
e) Princípios Éticos e Normas de
Controle de Qualidade:
Os auditores independentes subme-
tegra e se entrelaça. Realce especial para
quatro normas pela inovação e pelo impacto
junto aos auditores independentes e usuários de auditoria independente:
1° - a da Estrutura Conceitual, por dar
o embasamento teórico fundamental para a
atividade;
2° - o do Controle de Qualidade para
firmas de Auditores Independentes, por estabelecer um novo processo definido que empurra a atividade para a qualidade;
3° - a da Responsabilidade do auditor
em relação à fraude, no contexto da auditoria das demonstrações contábeis, pela sempre atualidade do tema.
4° - a do novo Relatório do Auditor
Independente, que substitui o anterior Parecer, definindo as responsabilidades das partes e apresentando maior transparência nas
suas conclusões.
1ª - A Estrutura Conceitual para Trabalho de Asseguração
Define e descreve os elementos e objetivos de um trabalho de asseguração, identifica os trabalhos aos quais são aplicadas as
NBCs de auditoria – TA, de revisão – TR e
de outros trabalhos de asseguração – TO e
proporciona a orientação para os auditores
independentes, usuários e outros envolvidos
nestes trabalhos e dá as diretrizes básicas
para todos os trabalhos de asseguração e
para a emissão das demais normas.
Esta Estrutura Conceitual define os
pontos básicos para os Trabalhos de Asseguração os quais estarão presentes em todas as demais normas:
a) Definição e objetivo do Trabalho
de Asseguração
“Trabalho de asseguração” significa um
trabalho no qual o auditor independente expressa uma conclusão acerca do resultado
da avaliação ou mensuração de determinado
objeto, com base em evidências apropriadas
e suficientes, de acordo com critérios aplicáveis, que lhe permitam embasar sua opinião,
com finalidade de aumentar o grau de confiança de usuários previstos.
b) Os Cinco (5) Elementos do Trabalho de asseguração: São eles:
70
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
tem-se às disposições do Código de Ética
Profissional do Contabilista do CFC – CEPC
e das demais normas profissionais.
f) Condições para a Aceitação do
Trabalho de Asseguração pelo Auditor
O auditor somente pode aceitar um trabalho de asseguração quando possa cumprir
com as exigências éticas e os requisitos de
independência e competência profissional e
o trabalho exigido pelas normas.
g) Ceticismo profissional
O auditor planeja e executa o trabalho
de asseguração com atitude de ceticismo profissional, reconhecendo que podem existir circunstâncias que façam com que a informação
sobre o objeto contenha distorções relevantes.
h) Materialidade
A materialidade é sempre importante, em
especial quando o auditor determina a natureza, a época e a extensão dos procedimentos de
obtenção de evidência e se a informação sobre
o objeto está isenta de distorção, quando compreende e avalia quais fatores podem influenciar as decisões dos usuários previstos.
i) Risco do Trabalho de Asseguração
O risco do trabalho de asseguração é o
risco de que o auditor expresse uma conclusão inapropriada caso a informação sobre o
objeto contenha distorções relevantes.
Em geral, o risco do trabalho de asseguração pode ser representado por:
- o risco da informação sobre o objeto,
que consiste em risco inerente que é a suscetibilidade da informação sobre o objeto a uma
distorção relevante, pressupondo que não
haja controles relacionados; e risco de controle que é o risco de que uma distorção relevante possa ocorrer e não ser evitada, ou detectada e corrigida, em tempo hábil por controles
internos relacionados, mas que sempre existirá em decorrência das limitações inerentes
ao desenho e operacionalidade; e
- risco de detecção é o risco de não
detectar uma distorção relevante existente.
j) Natureza, época e extensão dos
procedimentos de obtenção de evidência
A natureza, época e a extensão dos procedimentos de obtenção de evidência são
possíveis infinitas variações nos procedimentos de obtenção de evidência. Estas variações
são difíceis de comunicar de forma clara e
sem ambiguidade, mas cabe ao auditor tentar
comunicá-las de forma clara e utilizar a forma
apropriada ao trabalho realizado.
k) Relatório de Asseguração
O auditor apresenta relatório contendo
uma conclusão que expresse a segurança
obtida acerca da informação sobre o objeto.
A conclusão positiva ou sem modificações do
auditor pode ser redigida:
- em termos da afirmação da parte responsável (por exemplo: “Em nossa opinião,
a afirmação da parte responsável de que os
controles internos são eficazes, em todos os
aspectos relevantes, de acordo com os critérios XYZ, é adequada”); ou
- diretamente em termos do objeto e
dos critérios (por exemplo, “Em nossa opinião, os controles internos são eficazes, em
todos os aspectos relevantes, de acordo com
os critérios XYZ”).
O auditor expressa uma conclusão com
modificações para trabalho de asseguração
quando existirem as circunstâncias que, no seu
julgamento, o efeito seja ou possa ser relevante:
- exista limitação no alcance do trabalho.
O auditor independente expressa uma conclusão com ressalva ou uma abstenção de conclusão, se muito relevante ou disseminada seja
a limitação (no segundo caso, tão relevante
que não seja adequado apenas a ressalva).
- os casos de conclusão com ressalva ou
adversa, dependendo de quão relevante ou
disseminada seja a distorção relevante que a
conclusão do auditor esteja considerando.
2ª - Controle de Qualidade da Auditoria de Demonstrações Contábeis
a) Sistema de controle de qualidade,
objetivo e função da equipe de trabalho
O sistema de controle de qualidade é de
responsabilidade da firma de auditoria que
tem por obrigação o estabelecer e manter
para obter segurança razoável que a firma
e seu pessoal cumprem com as normas profissionais e técnicas e as exigências legais
e regulatórias aplicáveis e os relatórios emitidos pela firma ou pelos sócios do trabalho
são apropriados nas circunstâncias.
b) O sistema de controle de qualida71
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
de da firma consiste, por exemplo:
- competência do pessoal por meio do
seu recrutamento e treinamento formal;
- independência por meio da acumulação
e comunicação de informações relevantes;
- manutenção de relacionamentos com
clientes por meio de sistemas de aceitação e
continuidade;
- aderência aos requisitos legais e regulatórios aplicáveis por meio de monitoramento.
c) Revisão de controle de qualidade
do trabalho é um processo estabelecido
para fornecer uma avaliação objetiva, na
data do relatório ou anterior, dos julgamentos relevantes feitos pela equipe de trabalho e das conclusões atingidas ao elaborar
o relatório, aplicável a auditoria de DCs de
companhias abertas e de outros trabalhos de
auditoria para os quais a firma de auditoria
independente determinou a necessidade de
revisão de controle de qualidade do trabalho.
3ª - Responsabilidade do auditor em
relação à Fraude, no contexto da auditoria das demonstrações contábeis:
a) Responsabilidade pela prevenção
e detecção da fraude:
A principal responsabilidade pela prevenção e detecção da fraude é dos responsáveis
pela sua administração e sua governança.
b) Responsabilidade do auditor em
detectar fraudes ou erros:
É inevitável o risco de que distorções
relevantes podem não ser detectadas, apesar de a auditoria ser devidamente planejada
e realizada de acordo com as normas de auditoria. Temos:
• O risco de não ser detectada uma
distorção relevante decorrente de fraude é
mais alto do que o risco decorrente de erro,
porque a fraude pode envolver esquemas
sofisticados e cuidadosamente organizados,
destinados a ocultá-la, (falsificação, omissão
deliberada, falsas informações ao auditor e,
se em conluio, pode levar o auditor a acreditar que a evidência é persuasiva, quando, na
verdade, é falsa).
• Também influi fatores como a habilidade do perpetrador, a frequência e a extensão da manipulação, o grau de conluio,
a dimensão relativa dos valores individuais
manipulados e a posição dos indivíduos envolvidos. É difícil para o auditor determinar
se as distorções em áreas de julgamento
como estimativas contábeis foram causadas
por fraude ou erro.
• O risco do auditor não detectar uma
distorção relevante decorrente de fraude da
administração é maior do que no caso de
fraude cometida por empregados.
c) Objetivo do Auditor Independente
quanto à fraude
(a) identificar e avaliar os riscos de distorção relevante nas demonstrações contábeis decorrente de fraude;
(b) obter evidências de auditoria suficientes e apropriadas sobre os riscos identificados de distorção relevante decorrente
de fraude, por meio da definição e implantação de respostas apropriadas; e
(c) responder adequadamente face à fraude ou à suspeita de fraudes identificada.
d) Respostas globais aos riscos avaliados de distorção relevante decorrente
de fraude
Ao determinar respostas globais para
enfrentar os riscos, o auditor deve:
(a) alocar e supervisionar o pessoal, levando em conta o conhecimento, a aptidão e a
capacidade dos indivíduos que assumirão;
(b) avaliar se a seleção e a aplicação de
políticas contábeis pela entidade, em especial as relacionadas com medições subjetivas e transações complexas, podem
ser indicadores de informação financeira
fraudulenta decorrente de tentativa da administração de manipular os resultados; e
(c) incorporar elemento de imprevisibilidade na seleção da natureza, época e extensão dos procedimentos de auditoria.
4ª - Relatório do Auditor Independente
a) O Relatório do Auditor Independente das Demonstrações Contábeis emitido pelo auditor é a nova denominação do
anterior Parecer do Auditor Independente
das Demonstrações Contábeis, que foi ampliado para melhor definir as responsabilidades tanto do próprio auditor como também
da Entidade responsável pela informação,
como também tornar mais claro para o usuário a opinião do auditor nele contida.
b) Relatório do Auditor Independen72
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
te com opinião favorável (sem modificações): este relatório, quando de opinião
favorável, passa a ter a seguinte forma ou
estrutura:
c) Exemplo de Relatório do Auditor
Independente com opinião favorável (sem
modificações) sobre auditoria de conjunto
completo de demonstrações contábeis elaboradas para fins gerais pela administração da auditada, de acordo com as práticas contábeis adotadas no Brasil, como apresentado na norma.
pelos auditores e que a auditoria seja planejada e executada com o objetivo de obter segurança razoável de que as demonstrações
contábeis estão livres de distorção relevante.
Uma auditoria envolve a execução de
procedimentos selecionados para obtenção
de evidência a respeito dos valores e divulgações apresentados nas demonstrações
contábeis. Os procedimentos selecionados
dependem do julgamento do auditor, incluindo a avaliação dos riscos de distorção
relevante nas demonstrações contábeis, independentemente se causada por fraude ou
erro. Nessa avaliação de riscos, o auditor
considera os controles internos relevantes
para a elaboração e adequada apresentação das demonstrações contábeis da Companhia para planejar os procedimentos de
auditoria que são apropriados nas circunstâncias, mas não para fins de expressar
uma opinião (*5) sobre a eficácia desses
controles internos da Companhia. Uma auditoria inclui, também, a avaliação da adequação das práticas contábeis utilizadas e
a razoabilidade das estimativas contábeis
feitas pela administração, bem como a avaliação da apresentação das demonstrações
contábeis tomadas em conjunto.
Acreditamos que a evidência de auditoria obtida é suficiente e apropriada para fundamentar nossa opinião.
Opinião
Em nossa opinião, as demonstrações
contábeis acima referidas apresentam adequadamente, em todos os aspectos relevantes, a posição patrimonial e financeira da Entidade ABC em 31 de dezembro de 20X1, o
desempenho de suas operações e os seus
fluxos de caixa para o exercício findo naque-
RELATÓRIO DO AUDITOR INDEPENDENTE SOBRE AS DEMONSTRAÇÕES
CONTÁBEIS
Destinatário apropriado
Examinamos as demonstrações contábeis da Companhia ABC, que compreendem
o balanço patrimonial em 31 de dezembro de
20X1 e as respectivas demonstrações do resultado, das mutações do patrimônio líquido e dos
fluxos de caixa para o exercício findo naquela
data, assim como o resumo das principais práticas contábeis e demais notas explicativas.
Responsabilidade da administração
sobre as demonstrações contábeis
A administração da Companhia é responsável pela elaboração e adequada apresentação dessas demonstrações contábeis
de acordo com as práticas contábeis adotadas no Brasil e pelos controles internos que
ela determinou como necessários para permitir a elaboração de demonstrações contábeis livres de distorção relevante, independentemente se causada por fraude ou erro.
Responsabilidade dos auditores independentes
Nossa responsabilidade é a de expressar uma opinião sobre essas demonstrações
contábeis com base em nossa auditoria, conduzida de acordo com as normas brasileiras
e internacionais de auditoria. Essas normas
requerem o cumprimento de exigências éticas
73
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
la data, de acordo com as práticas contábeis
adotadas no Brasil.
Local, data do relatório, nome, registro no CRC e assinatura do auditor independente.
uma opinião quando não consegue obter evidência de auditoria apropriada e suficiente
para suportar sua opinião e ele conclui que
os possíveis efeitos de distorções não detectadas, se houver, sobre as DCs, poderiam
ser relevantes e generalizadas.
Também deve abster-se de expressar
uma opinião quando, em circunstâncias extremamente raras envolvendo diversas incertezas, o auditor conclui que, independentemente de ter obtido evidência de auditoria
apropriada e suficiente sobre cada uma das
incertezas, não é possível expressar uma
opinião sobre as DCs devido à possível interação das incertezas e seu possível efeito
cumulativo sobre essas DCs.”
f) A decisão sobre que tipo de opinião modificada é apropriada depende da:
natureza do assunto que deu origem
à modificação, ou seja, se as DCs apresentam distorção relevante ou, no caso de impossibilidade de obter evidência de auditoria
apropriada e suficiente, podem apresentar
distorção relevante; e opinião do auditor sobre a disseminação dos efeitos ou possíveis
efeitos do assunto sobre as DCs.
Generalizado é o termo usado, no contexto de distorções, para quantificar os efeitos disseminados de distorções sobre as DCs
ou os possíveis efeitos de distorções sobre
as DCs que não são detectados, se houver,
devido à impossibilidade de obter evidência
de auditoria apropriada e suficiente. Efeitos
generalizados sobre as DCs são aqueles
que, no julgamento do auditor:
- não estão restritos aos elementos,
contas ou itens específicos das DCs;
- se restritos, representam ou poderiam
representar uma parcela substancial das DCs;
- em relação às divulgações, são fundamentais para o entendimento dos usuários.
g) Tabela prática sobre os tipos de
opinião do Auditor:
A NBC TA 705 apresenta tabela a seguir, que demonstra como a opinião do auditor sobre a natureza do assunto que gerou
a modificação, e a disseminação de forma
generalizada dos seus efeitos ou possíveis
efeitos sobre as demonstrações contábeis,
afeta o tipo de opinião a ser expressa.
d) Relatórios do Auditor Independente com opinião modificada
As normas traçam critérios para a formação da opinião e emissão do relatório do
Auditor Independente e consideram, além do
relatório favorável já demonstrado, também
os com modificações na opinião do auditor.
O relatório do auditor independente deve
ser por escrito, e deve o auditor expressar uma
opinião não modificada quando concluir que as
DCs são elaboradas, em todos os aspectos relevantes, de acordo com a estrutura de relatório
financeiro aplicável. Mas deve modificar a opinião no seu relatório de auditoria se:
- concluir, com base em evidência de auditoria obtida, que as DCs tomadas em conjunto apresentam distorções relevantes; ou
- não conseguir obter evidência de auditoria apropriada e suficiente para concluir se
as DCs tomadas em conjunto não apresentam distorções relevantes.
e) Os tipos de opinião modificada,
segundo o texto da norma NBC TA 705.
“Opinião com ressalva
O auditor deve expressar uma opinião
com ressalva quando:
(a) tendo obtido evidência de auditoria
apropriada e suficiente, conclui que as distorções, individualmente ou em conjunto,
são relevantes, mas não generalizadas nas
DCs; ou
(b) não consegue obter evidência apropriada e suficiente de auditoria para suportar
sua opinião, mas ele conclui que os possíveis efeitos de distorções não detectadas,
se houver, sobre as DCs poderiam ser relevantes, mas não generalizados.
Opinião adversa
O auditor deve expressar uma opinião
adversa quando, tendo obtido evidência de
auditoria apropriada e suficiente, conclui que
as distorções, individualmente ou em conjunto,
são relevantes e generalizadas para as DCs.
Abstenção de opinião
O auditor deve abster-se de expressar
74
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
h) Exemplos de Relatórios do Auditor
Independente com Opinião Modificada:
O Relatório do Auditor Independente
com opinião modificada deve conter um parágrafo que forneça a descrição do assunto
que deu origem à modificação, o qual deve
estar colocado imediatamente antes do parágrafo da opinião, utilizando o título “Base
para opinião com ressalva, ou adversa ou
para abstenção de opinião”.
São exemplos da NBC TA 705 dos dois
parágrafos finais do relatório com opinião
modificado das normas:
“1º - Relatório do Auditor Independente com Opinião com Ressalva:
Base para opinião com ressalva
Os estoques da Companhia estão apresentados no balanço patrimonial por $ xxx. A
administração não avaliou os estoques pelo
menor valor entre o custo e o valor líquido de
realização, mas somente pelo custo, o que
representa um desvio em relação às práticas
contábeis adotadas no Brasil. Os registros
da Companhia indicam que se a administração tivesse avaliado os estoques pelo menor
valor entre o custo e o valor líquido de realização, teria sido necessário uma provisão
de $ xxx para reduzir os estoques ao valor
líquido de realização. Consequentemente,
o lucro líquido e o patrimônio líquido teriam
sido reduzidos em $ xxx e $ xxx, respectivamente, após os efeitos tributários.
Opinião com ressalva
Em nossa opinião, exceto pelos efeitos do assunto descrito no parágrafo Base
para opinião com ressalva, as demonstrações contábeis acima referidas apresentam
adequadamente, em todos os aspectos relevantes, a posição patrimonial e financeira
da Companhia ABC em 31 de dezembro de
20X1, o desempenho de suas operações e
os seus fluxos de caixa para o exercício findo naquela data, de acordo com as práticas
contábeis adotadas no Brasil.
2º - Relatório do Auditor Independente com Opinião Adversa:
Base para opinião adversa
Conforme explicado na Nota X, a Companhia não consolidou as demonstrações
contábeis da controlada XYZ, que foi adquirida durante 20X1, devido não ter sido possível
determinar os valores justos de certos ativos
e passivos relevantes dessa controlada na
data da aquisição. Esse investimento, portanto, está contabilizado com base no custo.
De acordo com as normas internacionais de
relatório financeiro, a controlada deveria ter
sido consolidada. Se a controlada XYZ tivesse sido consolidada, muitos elementos nas
demonstrações contábeis teriam sido afetados de forma relevante. Os efeitos da não
consolidação sobre as demonstrações contábeis não foram determinados.
Opinião adversa
Em nossa opinião, devido à importância
do assunto discutido no parágrafo Base para
opinião adversa, as demonstrações contábeis consolidadas não apresentam adequadamente a posição patrimonial e financeira
consolidada da Companhia ABC e suas controladas em 31 de dezembro de 20X1, o desempenho consolidado das suas operações
e os fluxos de caixa consolidados para o
75
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
exercício findo em 31 de dezembro de 20X1
de acordo com as normas internacionais de
relatório financeiro.
“Chamamos a atenção para a Nota X às
demonstrações contábeis, que descreve a
incerteza relacionada com o resultado da
ação judicial movida contra a Companhia
pela Empresa XYZ. Nossa opinião não contém ressalva relacionada a esse assunto.”
3º - Relatório do Auditor Independente com Abstenção da Opinião:
Base para abstenção de opinião
O investimento da empresa no empreendimento XYZ (localizado no País X e cujo controle é mantido de forma compartilhada) está
registrado por $ xxx no balanço patrimonial
da Companhia ABC, que representa mais de
90% do seu patrimônio líquido em 31 de dezembro de 20X1.
Não nos foi permitido o acesso à administração e aos auditores da XYZ, incluindo a
documentação de auditoria do auditor da XYZ.
Consequentemente, não nos foi possível determinar se havia necessidade de ajustes em
relação à participação proporcional da Companhia nos ativos da XYZ, que ela controla em
conjunto, assim como sua participação proporcional nos passivos da XYZ pelos quais ela é
responsável em conjunto, e sua participação
proporcional nas receitas, despesas e nos elementos componentes das demonstrações das
mutações do patrimônio líquido e dos fluxos de
caixa do exercício findo naquela data.
Abstenção de opinião
Devido à relevância do assunto descrito
no parágrafo Base para abstenção de opinião,
não nos foi possível obter evidência de auditoria apropriada e suficiente para fundamentar nossa opinião de auditoria. Consequentemente, não expressamos uma opinião sobre
as demonstrações contábeis acima referidas.”
i) Os Parágrafos de Ênfase e de
Outros Assuntos no Relatório do Auditor
Independente:
Quando necessário relevante chamar a
atenção dos usuários sobre assuntos relevantes contidos nas DCs para o seu melhor entendimento ou mesmo de assuntos não apresentados ou divulgados, o auditor acrescenta
após o parágrafo de sua opinião, sob os títulos parágrafo de ênfase e de outros assuntos,
respectivamente, para fazer a comunicação
adicional de forma clara no seu relatório.
É exemplos de Parágrafo de Ênfase
apresentado na norma:
j) Outros parágrafos específicos:
As normas e comunicados técnicos
apresentam diversas questões especiais que
envolvem relatórios específicos, ou com a inclusão de informes ou de parágrafos específicos no relatório do auditor independente
como, por exemplo, os casos que seguem:
- de auditorias de DCs elaboradas de
acordo com estruturas conceituais de Contabilidade para propósitos especiais;
- de auditorias de quadros isolados das
DCs e de elementos, contas ou itens específicos das DCs;
- de Demonstrações Contábeis Condensadas;
- o Relatório de Revisão dos Auditores
Independentes.
k) Casos específicos nos Relatórios
do Auditor Independente de 31.12.2010
no Brasil:
Foram emitidos Comunicados Técnicos
02, 07, 08 e 09 pelo CFC originados no IBRACON, para atender a exigências específicas
da legislação societária e de regulamentação
dos Órgãos Supervisores de Mercados no
Brasil, especificamente BCB e SUSEP.
9. Conclusão:
O exame deste processo de convergência das Normas Brasileiras de Contabilidade
relativas à auditoria independente para os padrões internacionais, as Normas Internacionais
de Auditoria e Asseguração emitidas pela IFAC
(International Federation of Accountants), as
melhores práticas internacionais em matéria
regulatória da espécie é matéria muito ampla.
Ressalta aos sentidos dos pesquisadores
que ocorreu uma substituição de um conjunto
de normas específico a um tipo de asseguração, conhecido como auditoria das demonstrações contábeis, pequeno, prático e muito
objetivo, mas incompleto, por outro muito mais
amplo, com base teórica, mas também prático
e objetivo e bem mais completo.
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
O foco atual são os trabalhos de prestação de serviços de asseguração prestados
por firmas de auditoria independente e não só
a auditoria de demonstrações contábeis, incluindo também a revisão de demonstrações
contábeis; outros trabalhos de asseguração e
mesmo serviços correlatos que não de asseguração de informação contábil.
Caracterizam-se por apresentar os critérios a serem observados pelos auditores
nos seus trabalhos, mantendo o foco que
se trata de princípios a serem seguidos nas
atuações dos profissionais que mantêm a
sua capacidade de julgamento para decidir. Todavia, além das normas ou princípios
propriamente ditos, estas normas trazem,
anexas a elas, uma série de orientações e
exemplos, que facilitam substancialmente a
aplicação dos princípios enfocados nas normas. Em termos de comparação das normas
técnicas, somente se pode fazer alguma
comparação naquilo que for atinente à auditoria das demonstrações contábeis, onde
fica claro que o processo agora apresentado
nas novas normas convergidas é praticamente completo, enquanto que o conjunto
anterior de normas era incompleto, embora
prático e objetivo.
A lamentar é que este processo, pela
urgência de tempo, foi pela tradução literal
de normas e isto trouxe elevado prejuízo ao
seu entendimento. Salta aos olhos a necessidade de que estas normas sejam reescritas na língua portuguesa falada e escrita no
Brasil, muito mais rica e que facilitará o seu
entendimento.
Cabe ressaltar que até o término deste
trabalho acadêmico, somente uma obra foi
editada e disponibilizada aos profissionais e
acadêmicos: Manual de Auditoria e Revisão
de Demonstrações Financeiras, de autoria
de Cláudio Gonçalo Longo, da FIPECAFI,
pela Editora Atlas, SP, 2011. Salienta-se
ainda que a referida obra, de excelente qualidade, restringe-se à auditoria e revisão das
demonstrações contábeis, não abrangendo
os demais trabalhos de asseguração e por
serviços correlatos.
Os pontos deste conjunto que foram
realçados são a norma relativa à Estrutura
Conceitual para Trabalho de Asseguração,
que nos dá o referencial teórico que abrange, além da asseguração de informações
contábeis, também sobre outros pontos de
importância para a auditoria independente,
de forma indireta ou mesmo direta, como a
eficácia de controles internos e de gerenciamento de riscos como objeto em si de asseguração; a norma sobre o controle de qualidade: a norma sobre a responsabilidade do
auditor quanto à fraude e as normas sobre o
novo Relatório do Auditor Independente que
substitui o anterior Parecer do Auditor Independente, bem mais transparente e compreensível, onde constam inúmeros exemplos para os mais diversos casos possíveis
de ocorrência na atividade profissional.
Assim, sob o ponto de vista acadêmico,
é matéria nova e muito ampla para estar integralmente absorvida tanto pelos docentes
como pelos discentes, devendo, pela sua
complexidade e volume, bem como a exigência de profissionais preparados para atender o
mercado crescente e demandante deste tipo
de atividade, transformar-se em uma alternativa de especialização a ser muito procurada.
Referências
ATTIE, William. Auditoria, Conceitos e
Aplicações. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2010.
BERGAMINI JUNIOR, Sebastião. Controles Internos como um Instrumento de Governança Corporativa, Revista do BNDES,
V. 12, N. 24. pág.149-188, dez.2005.
BOYNTON, JOHNSON e KELL. William
C., Raymond N. e Walter G. Auditoria. Tradução de José Evaristo dos Santos, São
Paulo: Atlas, 2002.
IBRACON/IASCF, Instituto dos Auditores Independentes do Brasil e Internacional
Accounting Standards Commmitee Foundation. Normas Internacionais de Relatório
Financeiro (IFRSs). SP. 2008.
IFAC - International Federation of Accoutants. Normas Internacionais de Auditoria. Ibracon. SP. 2007.
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
IUDÍCIBUS, MARTINS, GELBKE e
SANTOS, Sérgio, Eliseu, Ernesto Rubens e
Ariovaldo. Manual de Contabilidade Societária, Fipecafi. São Paulo: Atlas, 2010.
Sites
- Conselho Federal de Contabilidade:
www.cfc.org.br
- Conselho Regional de Contabilidade
do RGS: www.crcrs.org.br
- Instituto dos Auditores Independentes
do Brasil: www.ibracon.com.br
LONGO, Claudio Gonçalo. Manual de
Auditoria e Revisão de Demonstrações Financeiras. Fipecafi. São Paulo: Atlas, 2011.
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
Diferenciação ou necessidade na
Certificação ISO 9001: uma análise em duas
empresas agroindustriais
Alexandre de Melo Abicht1
Alessandra Carla Ceolin2
Augusto Ormazabal de Faria Corrêa Paulo3
Rodrigo Ramos Xavier Pereira4
Tania Nunes da Silva5
Resumo: O presente estudo de caso foi realizado em duas organizações agroindustriais, a AGCO do Brasil Comércio e Indústria Ltda. e a Tecno Moageira S/A, tratando-se
de um estudo de caso de natureza exploratória e descritiva, que objetivou analisar os
motivos pelos quais essas organizações implementaram a certificação ISO 9001, em
torno da seguinte problemática: qual o real interesse da certificação ISO 9001 nestas
empresas agroindustriais? Para este artigo, a revisão da literatura abordou temas como
certificação, diferenciação e competitividade, exigências legais e de mercado. Após a
análise e interpretação dos dados obtidos na revisão da literatura e visitas de campo,
foram delimitados os motivos que levaram à implementação da certificação ISO 9001
por essas organizações, mostrando as suas dificuldades, adaptações e benefícios que
a certificação lhes proporcionou. Por fim, o estudo demonstrou que a certificação ISO
9001 não é apenas uma diferenciação de mercado mas, acima de tudo, uma necessidade vital para a sobrevivência dessas organizações, sendo que para obter êxito na sua
implementação é necessário o envolvimento de todas as pessoas que as compõem.
Palavras-chave: Certificação ISO. Agronegócios. Agroindústria. Qualidade.
Abstract: The present case study was carried out in two organizations agroindustries,
to AGCO of Brazil Commerce and Ltd Industry. and to Tecno Moageira S/TO, treating
of a case study of descriptive and exploratory nature, that planned to analyze the motives by the which those organizations implemented the certification ISO 9001, around
the following problematic one: Which the real interest of the certification ISO 9001 in
these companies agroindustries? For this article, the revision of the literature approached subjects as certification, differentiation and competitiveness, lawful demands
and of market. After analysis and interpretation of the facts obtained in the revision of
the literature and visits of field, were delimited the motives that caused to the implementation of the certification ISO 9001 by those organizations, showing his difficulties,
adaptations and benefits that the certification provided them. Finally, the study showed
that the certification ISO 9001 is not barely a differentiation of market, but above all, a
vital need for the survival of those organizations, being that for obtain success in her
implementation is necessary the involvement of all the persons that compose them.
Key-words: Certification ISO. Agribusiness. Agroindustry. Quality.
(1)
Administrador e Mestre em Agronegócios – CEPAN/UFRGS. Professor do curso de Administração da Faculdade Dom Bosco de
Porto Alegre e da UNISC – [email protected]
(2)
Analista de Sistemas e Pós-doutoranda em Agronegócios – CEPAN/UFRGS (CEPAN-UFRGS) – [email protected]
(3)
Advogado e Mestre em Agronegócios – CEPAN/UFRGS (CEPAN-UFRGS) – [email protected]
(4)
Médico Veterinário e Mestre em Agronegócios – CEPAN/UFRGS. Professor da UFPI (UFPI) - [email protected]
(5)
Socióloga e Doutora em Administração. Professora do PPGA-UFRGS – [email protected]
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
Para UNIVAP (2007), a ISO é reconhecida e respeitada internacionalmente. Caso
a organização possua a certificação, seus
clientes terão a tranquilidade de que os produtos da empresa possuem nível de qualidade superior, o que lhe confere vantagem
mercadológica.
A certificação ISO 9001 demonstra que
o sistema de qualidade da empresa encontra-se estruturado, conforme os padrões internacionais, ou seja, as atividades relativas
à fabricação de um produto, ou realização de
um serviço, submeteram-se a um rigoroso
controle de qualidade, mesmo que as características do produto ou serviço não atendam
o que os clientes esperam.
É, também, neste contexto, que as organizações brasileiras buscam desenvolver
suas competências. Um exemplo disto acontece nas organizações agroindustriais, como
a AGCO do Brasil Comércio e Indústria Ltda.
e a Tecno Moageira S/A, ambas certificadas
com a norma de qualidade ISO 9001.
Através de uma análise exploratória e
descritiva, esse artigo objetiva verificar se as
organizações AGCO e Tecno Moageira implementaram a certificação ISO 9001 como
uma ferramenta de diferenciação, ou se o
fizeram apenas por se tratar de uma necessidade imposta pelo mercado, principalmente
o internacional. Ainda, este artigo tem como
objetivos específicos expor o panorama da
certificação ISO 9001, avaliando sua aplicabilidade nas empresas, além de contribuir
com informações e experiências para que
novas organizações também possam obter
essa certificação.
Além desta primeira seção, a introdução, o presente artigo é composto por mais 4
(quatro) seções. Na segunda, realiza-se uma
revisão da literatura sobre as certificações,
em especial a ISO 9001 e seu ambiente de
aplicação nas organizações, seguido por diferenciação de mercado e competitividade,
exigências legais e mercadológicas. Na terceira seção está descrito o método utilizado
para construção desse artigo. Na quarta seção, apresenta-se a análise e interpretação
de dados, bem como os resultados obtidos.
Por fim, são tecidas algumas considerações
1. Introdução
Ao longo do tempo, a evolução da economia mundial vem inserindo uma série de
desafios aos setores produtivos de diversas
áreas. O acirramento da concorrência mundial, num mercado globalizado, cada vez
mais aberto, afeta diretamente as indústrias,
inclusive as agroindústrias, incluindo seus
produtos e serviços.
Assim, a adoção de uma norma de
qualidade pode ser entendida como um diferencial, uma estratégia, uma vantagem
competitiva ou simplesmente uma necessidade de mercado para a sobrevivência das
organizações ou a expansão dessas. Uma
das normas mais conhecidas e reconhecidas
mundialmente é a ISO 9001.
Perante a Internacional Organization
for Standardization (ISO), aproximadamente
157 (cento e cinquenta e sete) países estão
nela representados, por intermédio de associações nacionais de normalização técnica e
de qualidade (ISO, 2007). O Brasil é representado através da Associação Brasileira de
Normas Técnicas (ABNT). A norma não é
destinada a um produto ou a uma indústria
específica, objetivando orientar a adoção de
sistemas de qualidade.
Segundo ABNT (2007), a implantação
de um sistema de gestão da qualidade representa a obtenção de uma importante
ferramenta, que possibilita a otimização de
diversos processos dentro da organização
e evidencia, também, a preocupação com a
melhoria contínua dos produtos e serviços
fornecidos.
É disseminado que as empresas optam
pela ISO porque vislumbram inúmeras possibilidades para reduzir seus custos internos,
além de satisfazer as exigências dos clientes
por ser um diferencial de marketing e uma
grande ferramenta gerencial. Certificar o sistema de gestão da qualidade garante uma
série de benefícios à organização, como
ganho de visibilidade frente ao mercado e a
possibilidade de exportação para mercados
mais exigentes, ou ainda, o fornecimento
para clientes que objetivam comprovar a capacidade de manutenção das características
dos seus produtos e serviços.
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
finais e apresentadas as referências que fundamentam o desenvolvimento deste estudo.
apresentados pelo comprador ao fornecedor;
• normas formadoras de um sistema da
qualidade, onde deverão ser constituídas por
um sistema próprio, sendo assim, efetuada
a sua padronização e também possuindo a
exigência da execução, tendo o objeto direto,
não sendo constituído do produto em si;
• a manutenção do sistema exige a realização de auditorias internas, necessitando
uma comprovação registrada.
Genericamente, a certificação ISO exige das empresas que demonstrem a sua
capacidade para atender às exigências de
seus clientes.
No mundo inteiro, há um elevado número de órgãos de certificação do sistema
da qualidade, sendo denominados como as
“organizações certificadoras da ISO”. Estes órgãos são responsáveis pela auditoria
do sistema de qualidade da empresa, recomendando-o para registro após aprovação.
Drummond (1998) considera que a organização necessita ter capacidade para obter
base nas provas satisfatórias de padrões de
qualidade com o intuito de haver clareza nos:
sistemas, procedimentos e métodos; sistemas de comunicação; atribuição das responsabilidades; documentação dos sistemas
procedimentos; controle de documentação e
procedimentos para a implementação; treinamento nas aptidões do trabalho e do gerenciamento da qualidade.
O processo de implementação da certificação, muitas vezes, pode tornar-se moroso, podendo levar cerca de 2 (dois) anos
para sua adaptação. Este tempo poderá ser
mais longo devido à necessidade de uma
mudança cultural em algumas organizações.
Durante a certificação, a organização
é submetida às diversas auditorias onde se
verificam vários aspectos, tais como: levantamentos na organização, padronização dos
procedimentos e a elaboração de manuais;
ocorrência de auditorias internas e correções
dos problemas apontados por ela. Por fim,
ocorre a certificação baseada em diversas
pré-auditorias e a auditoria final.
Ressalta-se, também, que mesmo após
a certificação devem ser realizadas periodicamente diversas auditorias, onde é verifica-
2. Revisão da Literatura
Nesta seção é apresentada a revisão da
literatura acerca do tema certificação para se
analisar a importância da implementação ISO
no contexto de empresas agroindustriais.
2.1. Certificação
Nesta seção são apresentados alguns
aspectos a respeito do histórico da certificação, em especial da ISO 9001 e de suas aplicações nas empresas.
2.1.1. Histórico da Certificação
O final da década de 1980 foi marcado
por diversas mudanças políticas e econômicas, principalmente em relação à abertura
dos mercados. Novas organizações de origem estrangeira, com elevado avanço tecnológico, ingressaram no Brasil. Também, esta
abertura proporcionou às empresas brasileiras exportarem seus produtos, sendo que
para isso ocorrer, foi necessário que as conformidades de qualidade desses seguissem
uma certificação internacional.
Segundo ISO (2007), no início da década de 1990, a certificação ISO surgiu no
Brasil como uma revolução em termos de
qualidade. Pertencente a uma organização
não governamental europeia, a International Organization for Standardization, sediada em Genebra, na Suíça, a ISO possui
a missão de aprimorar o desempenho da
normalização e das atividades relacionadas
no mundo inteiro, com objetivo de facilitar a
troca internacional de bens e serviços, e o
desenvolvimento da cooperação nas esferas
intelectual, científica e tecnológica.
O termo ISO possui origem grega, sendo oriundo da palavra “igual”, devido a sua
ideia de uniformidade, padrões corretos de
qualidade, também tendo como objetivo a
sua pronúncia idêntica em três línguas diferentes, o inglês, o francês e o russo.
Umeda (1996) conceitua ISO sob três
aspectos, considerando como normas organizadas:
• resultados dos requisitos de qualidade
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
do se todos os processos estão em conformidade. Caso contrário, a certificadora poderá
suspender, ou até mesmo cassar a certificação da organização aditada.
controle de equipamentos de inspeção,
medição e ensaios; situação de inspeção e
ensaios; controle de produto não conforme;
ação corretiva e ação preventiva; manuseio,
armazenamento, embalagem, preservação e
entrega; controle de registros de qualidade;
auditorias internas da qualidade; treinamento; serviços associados; e, finalmente, técnicas estatísticas.
2.1.2. Certificação ABNT NBR ISO
9001: 2000
A série 9000 da certificação ISO surgiu em
1987, com a finalidade básica de criar padrões
para práticas de qualidade, formando uma cultura de melhoria contínua em uma organização. O estabelecimento das normas constrói
práticas para uma empresa atender plenamente os requisitos de qualidade do cliente. A ISO
9000 é considerada um roteiro para a seleção
e o uso das demais normas desta série.
A ABNT NBR ISO 9001: 2000 (ISO
9001) tem como base a qualidade, como um
modelo para garantia desta no projeto, desenvolvimento, fabricação, montagem e assistência técnica. A versão atual do padrão
ISO 9001 apresenta uma imensa melhoria
sobre as versões anteriores. O foco agora
está no controle gerencial dos processos,
para que estes processos atendam às expectativas dos clientes (BVQI, 2007).
A norma ISO 9001 se diferencia da
ISO 9002 e 9003 devido a sua abrangência
e complexidade maior. Baéz (1993, p. 195)
comenta a diferenciação da 9001 com as
demais, que a “abrangência das ações de
administração da qualidade, que pode ser
maior ou menor; as ações de controle de
qualidade não são mencionadas, por supor-se especificadas em normas técnicas de
produtos ou requisitos do cliente e por serem
independentes da seletividade do sistema da
qualidade empregado”.
Esta normalização deve ser aplicada
nas organizações que precisam garantir todos os fatores de sua produção, iniciando
pelo projeto e finalizando na assistência técnica. Os 20 (vinte) requisitos da norma 9001,
conforme ISO (2007), são: responsabilidade da administração; sistema de qualidade;
análise crítica de contrato; controle de projeto; controle de documentos e dados; aquisição; controle de produto fornecido pelo cliente; identificação e rastreabilidade do produto;
controle do processo; inspeção e ensaios;
2.1.3. Aplicação nas Organizações
Por um longo período, antes das privatizações e da internacionalização dos mercados, a indústria metal mecânica, principalmente as que fabricavam seus produtos sob
encomenda, tinham no governo seu principal
cliente. Como a demanda era garantida, não
houve por parte das empresas uma grande
preocupação em melhorar a eficiência de
seus processos produtivos, desenvolvimento
de novas tecnologias e incremento em sua
capacidade gerencial.
A partir dos anos 1990, no início do governo Collor, foi editada a Medida Provisória
(MP) 158, que associava a política industrial
aos objetivos estratégicos do governo de
elevação do salário real de forma sustentada e de promoção de maior abertura e desregulamentação da economia, promovendo
uma ruptura da política industrial vigente
nas décadas anteriores, ao deslocar seu
eixo central de preocupação da expansão
da capacidade produtiva para a questão da
competitividade (GUIMARÃES, 1996). Com
esta abertura para a competição mundial, a
indústria brasileira começou a passar por um
processo de reestruturação.
Neste processo de reestruturação, as
empresas buscaram se destacar e diferenciar
de suas concorrentes. Nos últimos anos, os
conceitos de gerenciamento com qualidade
têm sido adotados por um número crescente
de empresas, tanto de pequeno como médio
e grande porte, aumentando a pressão por
melhorias constantes destas empresas e de
suas concorrentes.
Usualmente, a exigência da certificação
ISO se justifica de várias formas, tais como:
melhor imagem junto aos clientes, tanto nacionais como internacionais; mais facilidade
82
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
da empresa gerenciar seu processo produtivo e administrativo, desenvolvimento de novas tecnologias; maior envolvimento de seus
colaboradores nos resultados da empresa e
maior comprometimento da empresa no que
se refere a aspectos de questões ambientais
entre outros.
Bido (1999) observou que há ganhos
concretos para a empresa certificada por
ISO 9000 e que estes ganhos estão principalmente ligados à padronização nos processos, com uma tendência de melhoria
contínua dos mesmos.
De acordo com Roth (1998), a implementação do certificado ISO 9000 traz impactos e
mudanças para as empresas que o adotam, e
os benefícios auferidos superam as adversidades advindas com a certificação. Pode-se
observar, também, que a técnica é um bom
instrumento para adequação às exigências
dos clientes e a pressão da concorrência.
Segundo Amorin, Ramos e Gonzalez
(2006), o sistema ISO 9000 contribui fortemente na satisfação do cliente em relação à
qualidade, à disponibilidade e marca dos produtos e serviços ofertados. Já na opinião dos
gerentes, as variáveis mais significativas são a
cultura organizacional, utilização dos ativos da
empresa e retorno sobre o capital empregado.
cesso, com enfoque em especificações e tolerâncias, com o objetivo principal de reduzir
custos.
Ainda para Garvin (1992), a empresa
pode tirar proveito dessas visões múltiplas,
uma vez que cada definição de qualidade
isoladamente possui falhas de amplitude, ou
pontos cegos, e as empresas devem utilizar
esta multidisciplinaridade para obter vantagem competitiva e diferenciais de mercado.
Uma das exigências para as empresas deve ser o aumento da capacidade para
competir. Qualquer organização, independentemente da sua área de especialização,
deve construir e manter o lastro de credibilidade perante os mercados, nacional e internacional, com o oferecimento de produtos
reconhecidamente de qualidade (requisitos
de saída compatíveis com os de entrada) e
exigência no cumprimento de contratos. Pode-se afirmar que o aumento da capacidade
para competir corresponde à expansão da
credibilidade da organização junto ao mercado.
Lobato (2002, p. 82) afirma que “vivemos numa era de rápidas transformações e a
competitividade se tornou a marca registrada
nos últimos anos”. Assim, é necessário conhecer, sentir e acompanhar a dinâmica das
transformações para se obter e se sustentar
vantagem contínua sobre os concorrentes.
De acordo com Porter (1998), as empresas, para obterem vantagem competitiva,
podem focar um determinado nicho de mercado, serem líderes de custo, ou diferenciar
seus produtos, sendo que uma das formas
de diferenciação é a busca pela qualidade total, que tem como uma de suas ferramentas
principais a certificação ISO 9001.
Segundo o Diretor da Certificação de
Produtos do BVQI1, Walter Laudísio, a cada
novo ano, a demanda por produtos certificados vem crescendo, principalmente para
aquelas empresas que pretendem exportar
seus produtos.
Uma observação importante é que quanto mais empresas adquirem certificações,
2.2. Diferenciação de Mercado e
Competitividade
Conforme Bido (1999), para se atingir
as metas de qualidade e de redução de custos de produção, além de investir em tecnologia, é necessário que as empresas adotem
a qualidade como estratégia de longo prazo.
Para Garvin (1992), a coexistência de
várias abordagens relacionadas ao conceito
de qualidade permite entender os posicionamentos, muitas vezes conflitantes do pessoal
de marketing, engenharia e produção, ou seja:
• Marketing - com visão no cliente, tem
como qualidade superior o melhor desempenho, características reforçadas e outros
aperfeiçoamentos que aumentam os custos.
• Engenharia e Produção - visão no pro-
BVQI significa Bureau Veritas Quality International. A partir de 1º de janeiro de 2007, possui novo nome comercial “Bureau Veritas
Certification”. Os certificados que foram emitidos anterior a esta data, que ainda estão ativos, continuarão válidos.
1
83
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
mais aumenta a pressão sobre as empresas
que não as possuem. Dessa forma, voluntária2
ou compulsória3, as empresas estão buscando
a certificação ISO 9001 por questão de competitividade, de diferencial de mercado ou por
exigências de seus clientes e fornecedores.
Com isso, a qualidade gerada pela certificação assumiu um importante papel, tornando-se uma ferramenta estratégica para
as organizações que buscam um diferencial competitivo, por meio da demonstração
da capacidade de gestão eficaz sobre os
dados gerados, através da implementação
de novos conceitos e princípios, e uma pró-atividade na tomada de decisões gerenciais
objetivas e diferenciadas.
Segundo BVQI (2007), do ponto de vista
de competitividade e diferencial de mercado,
pode-se afirmar que a aplicação da ISO 9001
resulta em uma maior habilidade para revisar,
desafiar e mudar opiniões e decisões, com
maior capacidade de identificar oportunidades
de melhorias, dirigi-las e priorizá-las. Também,
gerando respostas mais flexíveis e rápidas às
oportunidades oferecidas pelo mercado, bem
como: oportunidades internas advindas de
um monitoramento estruturado de produtos e
processos; maior integração e adaptação dos
processos que melhor contribuem para a obtenção dos resultados desejados.
plementação de um sistema de gestão da
qualidade, peça fundamental para garantir o
atendimento a todos os requisitos existentes
e aos novos que surgem a todo o momento.
Para Politec (2004) possuir certificação
ISO 9001 tem sido uma obrigação posta às
organizações para inscrição e participação
em licitações. A entidade que representa o
Brasil perante os comitês-membro da ISO é
a Associação Brasileira de Normas Técnicas
(ABNT), instituição de utilidade pública, de
acordo com a Lei Federal 4.150, de 21 de
novembro de 1962.
A demanda por um modelo de gestão
da qualidade levou as organizações a buscarem na certificação ISO 9001 a forma mais
prática de se organizar e enfrentar seus desafios. Conforme INMETRO (2005), no caminho para a certificação, as organizações
necessitam dos mais diversos serviços, destacando-se: serviços de treinamento, serviços de consultoria e serviços de certificação.
As empresas necessitam certificar seus
produtos por dois fatores principais: o primeiro é devido à avaliação de conformidade de
seus produtos, que pode ser compulsória ou
voluntária; o segundo fator está relacionado
a barreiras técnicas comerciais4.
Neste cenário, a avaliação da conformidade torna-se uma importante estratégia
para assegurar ao mercado a qualidade dos
bens e serviços oferecidos. Para as organizações que buscam implantar sistemas de
gestão da qualidade e obter, posteriormente,
a certificação ISO 9001, a adequada seleção, bem como a precisa definição da abrangência dos trabalhos a serem desenvolvidos,
é a forma mais eficaz para se alcançar os objetivos pretendidos (INMETRO, 2005).
Desse modo, a fim de que as empresas
possam atender as exigências impostas pelo
mercado, dentre alguns requisitos solicita-
2.3. Exigências de Mercado e Exigências Governamentais (Legais)
O mercado globalizado, cada vez mais
competitivo, tem exigido esforços constantes
das organizações, estimulando-as a desenvolver estratégias mais sofisticadas para obter melhoria contínua e, assim, sobreviver à
real necessidade de mudança dos clientes e/
ou à presença dos concorrentes.
Além do mercado, a presença mais
efetiva dos órgãos reguladores torna a im-
A Avaliação de Conformidade Compulsória é obrigatória para a comercialização do produto no mercado brasileiro a partir de instrumentos legais emitidos por um organismo regulador do Governo, com o propósito de preservar a integridade do consumidor em
aspectos que dizem respeito à sua saúde, segurança e ao meio ambiente (BVQI, 2007)
3
A outra modalidade de avaliação da conformidade é a voluntária, que ocorre quando um fabricante ou prestador de serviço tem como
objetivo agregar valor a sua marca (BVQI, 2007).
4
Em 1986 estabeleceu-se no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) um acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio (TBT). Como uma consequência da globalização e o fortalecimento da OMC, as barreiras tarifárias vêm sendo continuamente
reduzidas mundialmente e, consequentemente, o comércio entre os países é cada vez mais regulado por meio de barreiras técnicas
comerciais. Um aspecto muito importante do TBT é induzir os membros da OMC a utilizarem normas internacionais como base para
seus regulamentos técnicos (BVQI, 2007).
2
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
dos, há a necessidade de que elas adotem a
ISO 9001, a qual primeiramente proporciona
abertura de mercados (nacional e internacional) e, também, a capacitação para participar
em concorrências e licitações. Nesse último
caso, com raríssimas exceções, o contexto
é definido por organizações certificadas ISO
9001. Logo, perder a certificação significa
perder a capacidade para competir.
A ISO 9001 foi desenvolvida como um
conjunto coerente de “normas de sistema de
gestão da qualidade, as quais foram projetadas para se complementarem mutuamente”.
Além do comprometimento da alta administração, o sistema de gestão da qualidade,
com requisitos definidos na ISO 9001, estabelece que “a organização deve continuamente melhorar a eficácia do sistema de gestão da qualidade por meio do uso da política
da qualidade, objetivos da qualidade, resultados de auditorias, análise de dados, ações
corretivas e análise crítica pela direção” (POLITEC, 2004).
área pesquisada, visitas a web sites etc. Por
conseguinte, Cervo e Bervian (2002) consideram que, para a realização dos estudos
exploratórios, não há necessidade de que
existam hipóteses para serem testadas, possuindo foco somente na definição dos seus
objetivos e buscando informações além do
assunto que está sendo estudado.
Conforme Gil (1999), a pesquisa descritiva busca primordialmente descrever as características de determinada população ou fenômeno e estabelecer possíveis relações entre
variáveis. Para esse autor, algumas pesquisas
descritivas vão além da simples identificação
da existência de relações entre as variáveis,
pretendendo determinar a natureza desta relação. Nesse caso, há uma pesquisa descritiva aproximando-se da explicativa.
Por outro lado, também de acordo com
Gil (1999), há pesquisas que, embora definidas como descritivas, a partir de seus objetivos, acabam servindo mais para proporcionar
uma nova visão do problema, o que as aproxima das exploratórias. Após esta primeira
aproximação (pesquisa exploratória), o interesse é descrever um fato ou fenômeno. Por
isso a pesquisa descritiva é um levantamento
das características conhecidas, componentes
do fato/fenômeno/problema. É normalmente
feita na forma de levantamentos ou observações sistemáticas do fato/fenômeno/problema
escolhido (SANTOS, 2000).
Inclui-se, no grupo de pesquisa descritiva, as pesquisas que têm por objetivo levantar as opiniões, atitudes e crenças de uma
população a respeito de uma determinada
situação, auxiliando na definição de sua natureza. Não tem compromisso de explicar
os fenômenos que descreve, embora sirva
de base pata tal explicação. Uma pesquisa
descritiva envolve técnicas padronizadas de
coletas de dados, como questionários e observação sistemática.
Segundo Santos (2000), a coleta de dados significa juntar informações necessárias
ao desenvolvimento dos raciocínios previstos nos objetivos. Gil (1999) aponta que uma
forma de coleta de dados pode ser através
da realização de entrevistas. Para esse autor, a entrevista é uma forma de interação
3. Método
Esse artigo caracteriza-se por ser um
estudo de caso de natureza exploratória e
descritiva, onde são analisadas duas organizações do setor agroindustrial em torno do
tema certificação ISO 9001.
Para Santos (2000), um estudo de caso
é a seleção de um objeto de pesquisa restrito, com o objetivo de aprofundar os aspectos
característicos desse, cujo objeto pode ser
qualquer fato ou fenômeno individual, ou um
de seus aspectos.
Yin (2001) pondera, também, que um
estudo de caso é uma investigação empírica acerca de um fenômeno contemporâneo dentro do contexto de realidade. E, Gil
(1999) afirma que um estudo de caso pode
ser utilizado tanto em pesquisas exploratórias quanto descritivas e explicativas.
A pesquisa exploratória tem como principal objetivo, prover a compreensão do problema enfrentado pelo pesquisador (MALHOTRA, 2001). Ainda, conforme Santos (2000),
a pesquisa exploratória é quase sempre feita
como levantamento bibliográfico, entrevistas
com profissionais que estudam ou atuam na
85
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
4.1. AGCO
A AGCO do Brasil Comércio e Indústria
Ltda. (AGCO) é uma organização multinacional que fabrica e distribui equipamentos
agrícolas para o mundo inteiro, que iniciou
suas atividades em 1990 e no Brasil, na cidade de Canoas, em 1996. É disposta de um
pensamento inovador, possuindo um conglomerado de marcas, e tem como sua marca
principal a Massey Ferguson. Possui mais de
3.600 (três mil e seiscentas) concessionárias
inseridas em mais de 140 (cento e quarenta) países, que efetuam a comercialização
de seus produtos. Conforme AGCO (2007),
a missão da companhia é: “crescimento sustentável através do atendimento ao cliente,
inovação, qualidade e comprometimento superiores”, consolidando, assim, sua constante preocupação com o aperfeiçoamento da
qualidade.
A AGCO foi a primeira empresa de
máquinas agrícolas a obter a certificação
do seu sistema de qualidade na norma
ISO 9001:1994, no ano de 1994. Mantendo
sua postura de pioneirismo na área de certificações, a AGCO foi certificada na ISO
9001:2000, em 2003, reformulando seus processos de gestão, tornando-se mais eficiente e reforçando seu foco no cliente (AGCO,
2007). Este certificado foi emitido pela BVQI
para as plantas físicas de Canoas e Santa
Rosa, ambas no estado do Rio Grande do
Sul, com validade até 21 de outubro de 2008.
social, um diálogo assimétrico, em que uma
das partes busca coletar dados e a outra se
apresenta como fonte de informação.
Para atingir o objetivo geral desse artigo, que é verificar a razão pela qual as organizações AGCO e Tecno Moageira implementaram a certificação ISO 9001, seguiu-se
as etapas descritas a seguir.
Inicialmente, o presente trabalho consiste ser um estudo de caso de natureza
exploratória em torno do tema certificação,
abordando temas como diferenciação e competitividade, exigências de mercado e governamentais, bem como a certificação propriamente dita, especialmente a ISO 9001.
Após essa etapa, realizaram-se visitas
de campo em duas organizações do setor
agroindustrial, a fim de realizar coleta de dados através de entrevistas. Essas entrevistas
foram estruturadas com 10 (dez) questões
abertas aplicadas através de um questionário às pessoas das áreas gerenciais das organizações estudadas.
As visitas ocorreram no dia 31 de março de 2007. A primeira delas foi à AGCO
do Brasil Comércio e Indústria Ltda., apresentada pelos Srs. Nadir Spironel, consultor com mais de 20 (vinte) anos de serviços
prestados à empresa, e Eduardo Souza Filho, gerente de marketing dessa organização. A segunda organização visitada foi a
Tecno Moageira S/A, a qual foi apresentada
pelo Sr. Edmundo Neves Jr., um dos diretores da organização.
Outra forma de coleta de dados utilizada na realização da pesquisa foi através da
visita aos web sites das organizações e materiais adicionais de apoio, fornecido pelas
organizações estudadas.
Por último, efetuou-se a análise e interpretação das informações obtidas de modo
a obter os resultados que serviram para a
construção e fechamento desse artigo, incluindo indicações para trabalhos futuros.
4.2. Tecno Moageira
A Tecno Moageira S/A iniciou suas atividades em 1966. É uma empresa de cunho
familiar, tendo como objetivo principal a produção de máquinas e equipamentos para
moinhos e silos de cereais. Entretanto, atua
como fornecedora de equipamentos para
movimentação e preparo de granéis sólidos
em geral: cimento, minérios, cereais, farelos
e outros mais.
Durante anos, esta organização atuou
exclusivamente no mercado nacional, porém
há alguns anos iniciou a sua expansão ao
mercado internacional. Para atender principalmente as exigências internacionais, a
Tecno Moageira implementou um setor de
4. Visita de Campo
Nesta seção são apresentadas informações sobre as empresas AGCO do Brasil Comércio e Indústria Ltda e Tecno Moageira S/A.
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
eletroeletrônico, atuando nas áreas de distribuição de energia elétrica, além de controle,
supervisão e automatização industrial.
Para a TECNO (2007), sua missão é a
de “fornecer soluções mecatrônicas de baixo impacto ambiental e com valor superior
percebido, para movimentação e preparo de
granéis sólidos”. A organização é regida pela
política de qualidade: “atender às necessidades e expectativas de nossos clientes, colaboradores, acionistas e comunidade, através
de inovações e melhoria contínua de nossos
processos, produtos e serviços.”
A Tecno Moageira foi certificada na ISO
9001 em 15 de janeiro de 2007 pela certificadora DQS do Brasil Ltda., sendo a homologação realizada pela The International
Certification Network (IQN). A organização
pretende consolidar esta norma, antes de
buscar novas certificações.
nização ainda não se sinta tão exigida no que
diz respeito à certificação, demonstra bastante interesse nos benefícios que essa têm trazido, principalmente no que tange a facilidade
de verificação dos métodos nos seus processos produtivos. No curto prazo, essa organização não almeja implementar novas normas
ISO, mas está motivada à consolidação desta, antes de buscar novas certificações.
O segundo ponto analisado foi verificar
como ocorreu o processo de implementação
das normas de certificação ISO 9001 nas
duas organizações.
No caso da Tecno Moageira, houve
uma reestruturação prévia dos processos
internos de produção, uma vez que a maioria dos seus colaboradores detinha larga
experiência nas atividades desenvolvidas e
sentia-se motivada a cooperar em benefício
da implementação da ISO. Em vista disso, a
organização sentiu-se segura a dar início ao
processo de certificação, o qual foi conquistado em janeiro de 2007. Com o intuito de
consolidar esta certificação, todos os processos encontram-se disponíveis aos colaboradores através de material impresso exposto
nas instalações físicas da organização.
Ao que se refere à AGCO, a certificação ISO 9001 foi uma inovação previamente
apresentada a seus colaboradores, através
de palestras motivacionais, de reuniões de
trabalho, da realização de cursos com compensação de carga horária, além do uso de
ferramentas como intranet para divulgação
do projeto e motivação de seus colaboradores, com o objetivo de reduzir o impacto da
implementação de uma norma de qualidade,
a qual altera os principais processos das empresas, além da cultura e do clima organizacional. Outra metodologia utilizada foi através
da inserção de multiplicadores5 nas equipes
de trabalho e da verificação periódica de resultados, com o intuito de minimizar a resistência à mudança evitando a rejeição e conquistando a cooperação dos colaboradores.
Outro ponto analisado, o terceiro, diz respeito ao método de escolha de fornecedores
5. Análise e Interpretação das Informações
O primeiro ponto observado foi verificar a real necessidade de obtenção de certificação ISO 9001 e se essa estaria acompanhada de outras certificações. Ambas as
organizações afirmaram que a adequação
às normas de certificação originou-se das
exigências de mercado, principalmente do
internacional, a fim de garantir processos de
produção mais adequados à exportação e
conquista de novos mercados.
A AGCO possui uma série de certificações, inclusive outras normas ISO. Essa organização foi pioneira em seu setor e aproveitou-se do fechamento de uma de suas
fábricas na Inglaterra, que teve parte de seus
equipamentos e sua produção transferidos
para a planta de canoas, para reorganizar-se e instituir a ISO 9001, em 1994. Como
estratégia de aprimoramento contínuo, a
AGCO entende que a certificação é de suma
importância, uma vez que pretende manter e
conquistar novas certificações.
Já para a Tecno Moageira, a conquista
da ISO 9001 é mais recente. Embora a orga-
Multiplicadores são colaboradores das organizações que realizam cursos e que têm experiência e conhecimento acerca de um
determinado tema e que são escolhidos para repassarem este conhecimento aos demais colegas da organização.
5
87
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
e parceiros. Nesse, observou-se um consenso entre as duas organizações em optar por
empresas certificadas e, apesar de não ser
uma exigência formal, esse fator é relevante
na seleção de novos fornecedores. Porém, o
fato do mercado apresentar um número limitado dessas empresas reduz a possibilidade
de abastecer-se apenas de produtos oriundos de fornecedores com certificação.
Em continuidade, o quarto ponto analisou os efeitos positivos percebidos em decorrência da implementação da ISO. Constatou-se em ambas as organizações, segundo
os colaboradores entrevistados, que a implementação da ISO 9001 proporcionou inúmeros benefícios, quais sejam, maior qualidade
e confiança percebidas pelos clientes em
seus produtos e, em consequência disso,
maior satisfação e fidelidade dos mesmos;
produção mais focada na demanda, o que
garantiu redução de estoques e melhor customização, conforme o perfil de seus consumidores. Os entrevistados relataram, ainda,
que houve melhorias consideráveis no processo produtivo, principalmente no que diz
respeito à comunicação e no controle do sistema, diminuição no desperdício de materiais
na produção e aproveitamento inadequado
dos recursos humanos e, por fim, um aperfeiçoamento no pós-venda através do sistema
de rastreabilidade de peças e produtos.
O quinto e último ponto analisado procurou resgatar a experiência das organizações pesquisadas no que diz respeito à
necessidade e tramitação do processo de
certificação ISO 9001, como referencial às
outras organizações que almejam obter esse
tipo de certificação.
Nesse sentido, foi reportado por essas
organizações que é fundamental obter algum
tipo de certificação, que a ISO 9001 tem se
mostrado muito mais uma necessidade que
um diferencial competitivo, pois para se inserir, se manter e buscar novos mercados,
esta certificação é cada vez mais exigida,
principalmente para a organização que deseja exportar.
Os entrevistados também recomendaram às empresas, que pretendem obter a
ISO 9001, a necessidade de um bom plane-
jamento, pois o processo é bastante complexo e não permite margens para erros ou
amadorismos, buscando apoio junto a seus
colaboradores, envolvendo-os, motivando-os
e apresentando os resultados conquistados.
6. Considerações finais
Ao final da elaboração deste trabalho,
pôde-se fazer algumas considerações a respeito dos principais objetivos e vantagens da
certificação ISO 9001.
Na análise dos resultados desse artigo,
observou-se que a certificação ISO 9001 tem
atingido de forma considerável sua finalidade
proposta. Isso foi comprovado pelo referencial
teórico, onde se verificou que vários textos
corroboram com a ideia de que a certificação
ISO 9001 traz retornos positivos para as organizações. Essa constatação ocorreu, também,
por meio de entrevistas e visitas técnicas.
Observou-se que a adoção da ISO 9001
não é encarada somente como um diferencial de mercado, mas também, como um item
fundamental para a sobrevivência das organizações e conquista de novos mercados.
Com relação ao projeto de implementação da certificação ISO 9001 por parte
da AGCO e Tecno Moageira, constatou-se
a preocupação em envolver seus colaboradores. Isso não é um elemento totalmente
novo, uma vez que a literatura menciona que
a área de recursos humanos é uma das mais
importantes no ambiente organizacional.
Contudo, cabe ressaltar a extrema importância de dispor de pessoas motivadas que se
sintam parte importante do processo. Foi o
que se observou em ambas as organizações.
Para ter sucesso na implementação
da ISO 9001, certamente são necessárias
pessoas experientes, bem instruídas e informadas, identificadas com a organização e,
principalmente, motivadas em buscar novos
espaços e conquistas.
Outra análise interessante refere-se ao
fato das organizações pesquisadas não exigirem, ou ao menos, incentivarem, com mais
afinco, que seus fornecedores possuam certificação ISO 9001. Desse modo, entende-se
que uma empresa operando com processos
de montagem pode ter a qualidade de seu pro88
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
duto final comprometida, uma vez que alguns
desses fornecedores não são certificados.
No mesmo sentindo, e de acordo com
a revisão literária anteriormente citada, observou-se que quanto mais empresas obtiverem certificações de qualidade ISO, mais
aumentará a pressão sobre aquelas que não
as possuírem. Somando-se a isso, os entrevistados afirmaram que a certificação ISO
será um requisito fundamental para aquelas
organizações que pretendam fazer parte do
mercado global e que, futuramente, seus
parceiros e fornecedores também deveriam
adequar-se às normas de qualidade.
Na presente pesquisa utilizou-se, principalmente, as percepções dos entrevistados
das organizações analisadas quanto aos resultados e benefícios da implementação ISO
9001. Não há novidade no que se refere ao
mercado externo em relação às exigências
dos clientes internacionais quanto à certificação ISO 9001. No entanto, é necessário verificar junto aos clientes do mercado nacional,
tanto pessoas físicas como jurídicas, quais
as impressões sobre esta certificação, qual
seu entendimento sobre o assunto e até que
ponto considera-se parâmetro fundamental,
para a decisão de adquirir equipamentos
produzidos por estas empresas. Esta é uma
das sugestões para futuros trabalhos.
Outra sugestão destina-se às organizações que desejam implementar a ISO 9001.
Deve-se elaborar um planejamento para
certificação bastante minucioso, envolvendo
seus colaboradores desde o início do processo, que esteja contemplado na estratégia
geral dessas organizações.
Poucos foram os trabalhos encontrados que avaliam os benefícios ou impactos
produzidos pela certificação em empresas
agroindustriais. Este é um tema que ainda
pode ser muito explorado, tanto na visão dos
clientes – pessoas físicas ou jurídicas –, nacionais ou internacionais, como na visão de
seus gestores.
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Avaliação das características do Lago Guaíba
realizada na ETA José Loureiro da Silva, em
Porto Alegre, RS
Carlos Atalla Hidalgo Hijazin1
Adriene Maria Sampaio Pereira2
Resumo: Uma estação de tratamento de águas (ETA) tem por objetivo condicionar
as características da água bruta, isto é, água como encontrada na natureza, a fim
de atender à qualidade necessária a um determinado uso. O controle de qualidade
do manancial (Lago Guaíba) foi realizado a montante da ETA José Loureiro da Silva (JLS), projetada pelo Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE) no
município de Porto Alegre, RS; o mesmo se justifica por vários motivos, entre eles
destacam-se a caracterização da bacia hidrográfica e o controle dos níveis de toxidez que venham a afetar a população ou os seres aquáticos. O objetivo deste artigo
é mostrar que os parâmetros de qualidade físicos, químicos e microbiológicos do
manancial estudados podem ser avaliados de forma inter-relacionada; além de servir para verificação de suas condições sanitárias na década passada. Dessa forma
pode-se verificar se o Lago Guaíba sofreu autodepuração ao longo dos anos, melhorando suas condições naturais ou se o mesmo encontra-se atualmente em estado
de maior eutrofização. Os resultados encontrados mostraram que os parâmetros de
qualidade do manancial apresentaram uma relação entre eles e serviram para classificação do manancial levando-se em consideração a Resolução CONAMA 357/2005
e a Deliberação Normativa COPAM 010/86. O manancial não se enquadrou como
utilizável para fins de potabilização em alguns meses do ano, pois os valores médios
mensais de OD; cor e coliformes totais estiveram fora das especificações exigidas.
Foram constatados adequados apenas os parâmetros médios mensais pH, turbidez
e cianobactérias, que estiveram dentro do limite da legislação vigente.
Palavras-chave: Tratamento de água. Lago Guaíba. Parâmetros físico-químicos. Parâmetros microbiológicos.
Abstract: A water treatment plant (WTP) has for objective to condition the characteristics of rude water, that is, water as found in the nature, in order to meet the necessary
quality for a particular use. The quality control of the source (Guaíba Lake) was carried
out upstream of the WTP Jose Loureiro da Silva (JLS), designed by the Municipal
Department of Water and Sewerage (DMAE) in the city of Porto Alegre, RS; the same
it is justified for several reasons among them they are distinguished it characterization
of the hidrographic basin and the control of the toxidez levels that come to affect the
aquatic population or beings. The objective of this article is to show that the physical,
chemical and microbiological parameters of quality of the source studied can be evaluated of interrelated form; beyond serving for verification of its sanitary conditions in
the last decade; of this form it can be verified if the Guaíba Lake suffered depuration
throughout the years, improving its natural conditions or if the same it meets currently
in state of increased eutrophication. The joined results had shown that the parameters
(1)
Graduado em Engenharia Química pela PUC/RS. Mestre em Engenharia pela UFRGS. Professor da Faculdade Dom Bosco de
Porto Alegre, RS. E-mail: [email protected]
(2)
Graduada em Engenharia Química pela PUC/RS. Mestre em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental pela UFRGS. Gerente
de projetos no Departamento Municipal de Águas e Esgoto de Porto Alegre – DMAE (1984-1987). Atualmente é professora da PUC/
RS. E-mail: [email protected]
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of quality of the source had presented a relation between them and had served for
classification of the source taking into account Resolution CONAMA 357/2005 and
Normative Deliberation COPAM 010/86. The source did not fit as usable for the purpose of potabilization in some months, because the monthly mean values of OD, color
and total coliforms were out of demanded specifications. It has been found only suitable parameters monthly average pH, turbidity and cyanobacteria, which were within
the limits of current legislation.
Key-words: Treatment of water. Guaíba Lake. Physicochemical parameters. Microbiological parameters.
ponto de vista operacional em suas unidades
de tratamento quanto do ponto de vista econômico, é necessário controlar a poluição dos
mananciais.
De acordo com Batalha (1977), o manancial somente deverá ser classificado como potabilizável se o controle físico, químico, bacteriológico e hidrobiológico efetuado mostrar que a
água do manancial pretendido se enquadra nos
padrões fixados e se a inspeção in loco da bacia hidrográfica do manancial mostrar que não
existem fontes poluidoras capazes de comprometer a eficácia do tratamento convencional da
água e, por extensão, a saúde da população.
A esta inspeção visual denomina-se comumente inspeção sanitária. Sendo assim, o presente
trabalho tem como objetivo avaliar as características do manancial (Lago Guaíba). O Lago
Guaíba é um manancial superficial de 496m2
de extensão formado pelo Rio Jacuí (84,6%),
Sinos (7,5%), Caí (5,2%) e Gravataí (2,7%),
recebendo também as águas dos arroios situados às suas margens; sua bacia hidrográfica
abrange uma área de 2.323,66 km2. Nela está
inserida uma população de 1.104.908 habitantes, com uma densidade populacional de 475,5
habitantes por km2 (Rossato e Martins, 2001). A
avaliação das características do manancial foi
realizada na Estação de Tratamento de Água
José Loureiro da Silva (ETA-JLS) através da
análise de parâmetros como matéria orgânica,
temperatura, turbidez, cor, pH, oxigênio dissolvido (OD) coliformes totais, cianobactérias, clorofíceas, diatomáceas, protozoários e rotíferos.
Introdução
A avaliação das características dos mananciais deve ser considerada como um fator
essencial no desenvolvimento das ações dos
serviços de abastecimento de água, quer público ou privado, de maneira que a água distribuída
aos usuários tenha os padrões de qualidade determinados pela legislação vigente do país. De
acordo com Di Bernardo et. al. (1999), a proteção dos mananciais é invariavelmente o melhor
método para assegurar a qualidade da água. O
controle de qualidade dos mananciais vem sendo cada vez mais exigido devido ao crescente
aumento populacional e ao rápido comprometimento dos mesmos, provocado pelo fenômeno
de poluição hídrica. Entende-se por poluição de
recursos hídricos qualquer atividade humana
que altere as condições naturais das águas superficiais ou subterrâneas (Branco,1986). Estas
atividades incluem, além da irrigação e da utilização doméstica, a navegação, a recreação, o
turismo, a produção de hidroeletricidade, a mineração e os processos industriais.
No Brasil, grande parte da água bruta utilizada para abastecimento público é captada de
mananciais superficiais e bombeada através de
elevatórias e redes adutoras até as Estações de
Tratamento de Água (ETAs) onde são adicionados produtos químicos para o seu tratamento.
Para o atendimento da Portaria nº 518,
de 25 de março de 2004, do Ministério da
Saúde, que trata do controle e vigilância da
qualidade da água para o consumo humano
e seu padrão de potabilidade no Brasil, é necessário o controle da vazão de água bruta
e da eficiência das unidades componentes
da Estação de Tratamento de Água. Dessa
forma, para uma ETA funcionar de maneira
correta, não acarretando problemas tanto do
1. Caracterização da Estação de Tratamento de Água José Loureiro da Silva
(ETA-JLS)
O trabalho foi conduzido na Estação de
94
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A coleta, acondicionamento e conservação das amostras, assim como as análises,
foram realizados conforme métodos especificados em “Standard Methods for the Examination of Water and Wastewater”, editado pela
“American Public Health Association” (Macêdo, 2001). Os valores obtidos das características analisadas foram comparados com os
valores preconizados pela Resolução CONAMA 357/2005 e pela Deliberação Normativa
COPAM 010/86 com o objetivo de verificar se
os parâmetros estão dentro dos padrões aceitáveis pelas legislações mencionadas.
Tratamento de Água José Loureiro da Silva,
(ETA-JLS) (Figura 1) (Figura 2) localizada
à margem direita do Lago Guaíba no Bairro
Menino Deus, no município de Porto Alegre
a 30º 3’ 41.57” de latitude sul, 51º 13’ 25.04”
longitude oeste. A ETA-JLS entrou em operação efetiva em 1968, e possui capacidade de
recalque de água bruta de 3200 litros de água
por segundo, o que representa uma carga de
276.480 m³ por dia. A captação da água bruta para ETA-JLS é realizada pela Estação de
Bombeamento de Água Bruta (EBAB) Menino
Deus sendo realizada por dois dutos de concreto de 1.700 mm de diâmetro e de 448m de
extensão. O sistema de tratamento de água
é do tipo convencional. O fluxograma do processo é apresentado na Figura 2.
3. Parâmetros microbiológicos
A coleta para a análise de coliformes totais do manancial foi realizada manualmente
em frascos de vidro borosilicato âmbar com
tampa esmerilhada de 500 ml esterilizados
previamente em autoclave e com proteção
do gargalo e da tampa com envoltório de papel. As amostras foram acondicionadas em
recipiente térmico com gelo a temperatura
4 ºC (prazo até 24 horas), e encaminhadas
para o Laboratório de Bacteriologia da ETA-JLS. Para as análises hidrobiológicas, os
frascos eram igualmente de vidro borosilicato âmbar de boca larga, porém de 1000 ml.
Para a quantificação de coliformes totais na
água bruta, foi empregado o método de fermentação em tubos múltiplos e o resultado
foi expresso em org/100 ml.
De acordo com a Portaria nº 518/2004
de 25 de março, do Ministério da Saúde, os
coliformes totais (bactérias do grupo coliforme) são bacilos gram-negativos, aeróbios ou
anaeróbios facultativos, não formadores de
esporos, oxidase-negativos, capazes de se
desenvolver na presença de sais biliares ou
agentes tensoativos que fermentam a lactose
com produção de ácido, gás e aldeído a 35,0
± 0,5 ºC em 24-48 horas, e que podem apresentar atividade da enzima ß-galactosidase. A
maioria das bactérias do grupo coliforme pertence aos gêneros Escherichia, Citrobacter,
Klebsiella e Enterobacter, embora vários outros gêneros e espécies pertençam ao grupo.
Os microorganismos planctônicos avaliados para água bruta no Laboratório de
Hidrobiologia da ETA-JLS e utilizados neste
2. Análises físicas e químicas do
afluente
As amostras simples de água bruta foram
coletadas manualmente a montante da ETA-JLS, durante os meses de janeiro a dezembro
de 1993. As amostras de água bruta foram conservadas em frascos de vidro âmbar de 1000
ml para a análise turbidez; matéria orgânica,
cor, pH. Para análise de OD, os frascos eram
de vidro borossilicato com tampa esmerilhada e
estreita (pontiaguda), com selo d’água.
Após a coleta das amostras, as mesmas foram encaminhadas para o Laboratório
de Análises Físico-Químicas da ETA-JLS. Os
parâmetros físicos- químicos utilizados na
avaliação deste trabalho foram: temperatura,
turbidez, cor, matéria orgânica, pH e OD.
LAGO
GUAÍBA
ETA
JLS
Figura 1 – Mapa de localização da Estação de Tratamento de Água José Loureiro da Silva (ETA-JLS).
Fonte: Google Maps (2011)
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
trabalho foram as cianobactérias, clorofíceas
e diatomáceas (fitoplâncton) e protozoários
e rotíferos (zooplâncton). No Brasil, a presença, em seus mananciais, de microalgas e
cianobactérias é um grave problema enfrentado pelas ETAs que utilizam a tecnologia de
tratamento convencional ou filtração direta.
Ou seja, dependendo da espécie e do número de indivíduos, há a redução da duração
das carreiras de filtração, comprometendo
seriamente a qualidade da água produzida,
principalmente devido à liberação de metabólicos. Atualmente são conhecidos aproximadamente 150 gêneros de cianobactérias,
sendo que 46 espécies já foram identificadas
como potencialmente tóxicas a vertebrados.
(Cunha et. al, 2003).
Os valores de OD encontrados nestes
meses foram inferiores ao limite estipulado
pela Resolução CONAMA 357/2005 (OD≥4
mg/LO2).
4. Resultados e Discussão
De acordo a parâmetros médios mensais de qualidade avaliados para o manancial na ETA-JLS verifica-se que a qualidade
da água do Lago Guaíba está bastante alterada, isto pode ser estimado pelos altos
valores médios mensais de matéria orgânica
(Figura 3); valores acima de 3 mg/L indicam
poluição orgânica (AEPAN-ONG., 2010) e
pela variação média anual de OD o qual não
apresentou em alguns meses do ano (janeiro
e novembro) índice satisfatório para o abastecimento para o consumo humano, como
observa-se na Figura 4.
Figura 3 – Valores médios mensais
de Matéria Orgânica durante os meses de
janeiro a dezembro de 1993, a montante
da Estação de Tratamento de Água José
Loureiro da Silva (ETA-JLS).
Fonte: Hijazin e Pereira (1993)
O OD é um parâmetro químico necessário na respiração dos microorganismos aeróbios bem como outras formas de vida. De
acordo com Sperling (2005), o OD tem sido
utilizado tradicionalmente para a determinação do grau de poluição e de autodepuração
em cursos d’água. A concentração de OD ao
nível do mar, na temperatura de 20 ºC, é de
9,2 mg/LO2. Os valores de OD inferiores ao
valor de saturação podem indicar a presença
de matéria orgânica e, valores superiores, a
existência de crescimento anormal de algas
(Weibull, 2001). Von Sperling (2005) afirma
que:
[...] com o OD em torno de 4-5 mg/L morrem os peixes mais exigentes; com o OD
igual a 2 mg/L praticamente todos os peixes estão mortos; com OD igual a 0 mg/L
tem-se condições de anaerobiose (VON
SPERLING, 2005, p. 39).
Figura 2 – Fluxograma do processo
convencional de tratamento de água da
Estação de Tratamento de Água José Loureiro da Silva (ETA-JLS).
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
encanamentos. De acordo com Azevedo (1987),
se o pH da água for inferior a 4,5 significa que a
água contém ácidos minerais fortes, não havendo ácido carbônico (H2CO3) e se o pH da água
for superior a 9,0 significa que contém hidróxidos, para tais condições considera-se a água
imprópria para fins de potabilização. De acordo
com Sperling (2005), os processos de oxidação
biológica normalmente tendem a reduzir o pH.
Figura 4 – Valores médios mensais de
OD durante os meses de janeiro a dezembro
de 1993, a montante da Estação de Tratamento de Água José Loureiro da Silva (ETA-JLS).
Fonte: Hijazin e Pereira (1993)
A cor de uma amostra de água está associada ao grau de redução de intensidade
que a luz sofre ao atravessá-la, devido à presença de sólidos dissolvidos, principalmente
material em estado coloidal orgânico e inorgânico (CETESB, 2010). O método de avaliação
da unidade de cor é o da comparação com
o padrão de cobalto-platina. Os resultados se
expressam convencionalmente em mg Pt/L.
Pela legislação federal em vigor, a resolução do CONAMA/357 (Art. 16), o valor
máximo permissível de cor em uma amostra
de água que venha a ser utilizada para consumo humano após tratamento convencional ou avançado é de 75 mg Pt/L. Apenas
nos meses de abril e outubro, o parâmetro
físico cor obedeceu a legislação federal. Os
valores médios encontrados nestes meses
foram respectivamente 68 mg Pt/L e 40 mg
Pt/L (Figura 5).
Os valores médios mensais mais elevados deste parâmetro posicionaram-se entre 153 mg Pt/L no mês de junho e 155 mg
Pt/L em julho (Figura 5). Pode-se observar
que os valores médios de matéria orgânica
apresentaram-se mais elevados (7,8 mg/L)
no mesmo período (Figura 3).
O pH constitui-se também em padrão de
classificação dos corpos d’água. O pH da água
não deve ser muito ácido para evitar a corrosão
de tubulações, nem muito básico, para evitar a
deposição de partículas que podem entupir os
Figura 5 – Valores médios mensais de
cor durante os meses de janeiro a dezembro
de 1993, a montante da Estação de Tratamento de Água José Loureiro da Silva (ETA-JLS).
Fonte: Hijazin e Pereira (1993)
A legislação federal estabelece uma faixa
de pH entre 6 a 9 para águas destinadas ao consumo humano, mesmos limites impostos pela
Deliberação Normativa COPAM 010/86. Assim,
a variação média mensal de pH do manancial
esteve dentro do limite da legislação vigente.
Figura 6 – Valores médios mensais de
pH durante os meses de janeiro a dezembro
de 1993, a montante da Estação de Tratamento de Água José Loureiro da Silva (ETA-JLS).
Fonte: Hijazin e Pereira (1993)
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
A temperatura desempenha um papel
principal de controle no meio aquático, condicionado as influências de uma série de variáveis físico-químicas. De acordo com que
afirma a CETESB (2010):
A elevação da temperatura em um corpo
d’água geralmente é provocada por despejos
industriais (indústrias canavieiras por exemplo)
e usinas termoelétricas. (CETESB, 2010, p.2).
Os valores médios mensais registrados
para a temperatura do afluente a montante da
ETA-JLS variaram de 14,9 °C a 27,5 °C como
apresentada na Figura 8. De acordo com DMAE/
CESB (1981), a temperatura apresenta uma relação inversa em relação à solubilidade do oxigênio
nas águas doces a pressão normal (760mmHg).
Esta afirmação pode ser confirmada observando-se os gráficos das Figuras 4 e 7 que apresentaram relação inversa. Não existe padrão de temperatura para classificação dos corpos d’água na
Resolução CONAMA 357/2005, apenas padrão
de lançamento de efluentes de acordo com o
Art.34, §4° dessa resolução:
Figura 7 – Valores médios mensais
de temperatura durante os meses de janeiro a dezembro de 1993, a montante da
Estação de Tratamento de Água José Loureiro da Silva (ETA-JLS).
Fonte: Hijazin e Pereira (1993)
A Resolução CONAMA 357/2005 estabelece o valor de turbidez de até 100UNT para
águas doces destinadas ao consumo humano
após tratamento convencional ou avançado;
acima deste valor o corpo d’água é classificado como Classe 4 (águas destinadas à navegação e harmonia paisagística) não podendo
ser utilizado portanto para este fim. A variação
média mensal de turbidez do manancial esteve
dentro do limite para consumo humano após
tratamento simplificado nos meses de janeiro a
novembro (turbidez até 40 UNT) e tratamento
convencional (turbidez até 100 UNT) no mês de
dezembro de acordo com a legislação vigente.
“Condições de lançamento de efluentes: (...)
II - temperatura: inferior a 40 °C, sendo
que a variação de temperatura do corpo
receptor não deverá exceder a 3 ºC na
zona de mistura;”
Dessa forma verifica-se que temperaturas
acima de 40 ºC em corpos d’água alteram a natureza dos mesmos constituindo-se assim em um
indicador de poluição das águas. De acordo com
Branco (1986), a faixa de temperatura usual em
águas superficiais é de 4 a 30 °C. Os valores médios mensais registrados para a temperatura do
manancial variaram diretamente com as estações
do ano, atingindo os níveis mais baixos nos meses
de junho a setembro, ou seja, no inverno austral.
A turbidez impede a penetração da luz
nas camadas mais profundas de um corpo
d’água inibindo o crescimento das plantas. O
estado de uma água túrbida é decorrente da
presença de sólidos em suspensão finamente
divididos em estado coloidal tais como partículas inorgânicas e de detritos orgânicos, bactérias e plâncton em geral (CETESB, 2010).
Figura 8 – Valores médios mensais
de turbidez durante os meses de janeiro a
dezembro de 1993, a montante da Estação
de Tratamento de Água José Loureiro da
Silva (ETA-JLS).
Fonte: Hijazin e Pereira (1993)
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
Há vários organismos cuja presença
num manancial hídrico indica uma forma
qualquer de poluição. Usa-se adotar os organismos do grupo coliforme como indicadores de poluição. As bactérias coliformes
são típicas do intestino do homem e de outros animais de sangue quente (mamíferos
em geral), e, justamente por estarem sempre presentes no excremento humano (100
a 400 bilhões de coliformes por habitante
ao dia) e serem de simples determinação,
são adotadas como referência para indicar
e medir a grandeza da poluição (Almeida,
2005). A densidade média de coliformes
totais no afluente da ETA-JLS oscilou entre 15.497 org/100 ml em outubro a 34.919
org/100 ml em janeiro. De acordo à Deliberação Normativa COPAM 010/86 para os
mananciais do sistema público de abastecimento recomenda-se que a densidade
dos coliformes totais não exceda a média
mensal de 20.000 org/100 ml em 80% ou
mais de 5 amostras mensais colhidas em
qualquer mês.
Observando a Figura 9 verifica-se que
apenas nos meses de fevereiro, março e outubro o Lago Guaíba se enquadrou dentro da
legislação servindo como água para abastecimento público, após tratamento convencional ou avançado (Classe 3).
Este resultado deve ser motivo de
preocupação uma vez que os municípios
de Porto Alegre, Eldorado do Sul, Guaíba,
Barra do Ribeiro; Viamão, Canoas, Sentinela do Sul, Tapes, Triunfo, Nova Santa Rita,
Mariana Pimentel, Sertão de Santana, Barão do Triunfo e Cerro Grande do Sul fazem
a captação da água do manancial para o
consumo humano e ao longo do lago inúmeros pescadores consomem peixes e têm
contato com a água.
Figura 9 – Valores médios mensais
de Coliformes Totais durante os meses de
janeiro a dezembro de 1993, a montante
da Estação de Tratamento de Água José
Loureiro da Silva (ETA-JLS).
Fonte: Hijazin e Pereira (1993)
O grupo das cianofíceas ou cianobactérias
pertencem ao fitoplâncton e é o mais problemático em mananciais do ponto de vista sanitário.
As cianobactérias são organismos procariotos,
ou seja, com características de bactérias, porém
com um sistema fotossintetizante semelhante
ao das algas (vegetais), daí a dupla denominação. Este grupo tem capacidade de crescimento nos mais diversos ambientes, porém ocorre
preferencialmente em pH variando entre 6,0 e
9,0, temperatura entre 15 e 30 °C (valores ótimos acima de 25 °C) e alta concentração de
nutrientes, principalmente nitrogênio e fósforo
(CETESB, 2005). Em um estudo realizado por
Tucci (2003), altas florações de cianobactérias,
mais especificamente florações de Cylindrospermopsis raciborskii, foram registradas, em
altos valores médios de temperatura da água,
turbidez e pH. Os valores médios registrados
para as cinobactérias do afluente a montante
da ETA-JLS variaram de 45 cel/L a 7509 cel/L
como apresentada na Figura 11. O mês que
apresentou maior floração de cianobactérias foi
dezembro; neste mês a temperatura da água, a
turbidez e o pH foram favoráveis para o crescimento destes microorganismos.
Pela legislação federal em vigor, a resolução do CONAMA/357 (artigo 16), a densidade
de cianobactérias é padrão de classificação dos
corpos d’água e estabelece o limite de 100.000
cel/ml; para águas Classe 3. Como podemos
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
observar no gráfico da Figura 10, a variação
média mensal de cianobactérias do manancial
esteve dentro do limite da legislação vigente.
De acordo com que afirma a CETESB
(2010):
A comunidade fitoplanctônica pode ser
utilizada como indicadora da qualidade da
água, principalmente em reservatórios e
a análise de sua estrutura permite avaliar
alguns efeitos decorrentes de alterações
ambientais (CETESB, 2010, p.10).
cial, clorofíceas e diatomáceas, 48516 org/L e
169274 org/L, ambos no mês de setembro neste
mês. Foram verificados odores na água, principalmente devido à melosira (diatomácea), portanto não cumprindo a legislação vigente. Os valores médios mensais mais baixos encontrados
para as clorofíceas e diatomáceas foram respectivamente 1026 org/L e 12783 org/L. Verifica-se
que existe uma correlação entre estes microorganismos, conforme mostra a Figura 11. A queda do fitoplâncton, incluindo as cianobactérias
(Figura 10), no mês de julho, pode ser explicada
pela diminuição da temperatura do manancial
(diminuição da incidência de luz para o desenvolvimento hidrobiológico).
De acordo com que afirma a CETESB
(2010):
A comunidade zooplactônica é formada por
animais microscópicos que vivem em suspensão, sendo protozoários, rotíferos, cladóceros e copépodes os grupos dominantes de água doce. (CETESB, 2010, p.10).
Figura 10 – Valores médios mensais
de Cianobactérias durante os meses de
janeiro a dezembro de 1993, a montante
da Estação de Tratamento de Água José
Loureiro da Silva (ETA-JLS).
Fonte: Hijazin e Pereira (1993)
O zooplâncton vem sendo avaliado como
indicador da qualidade da água de lagos e reservatórios em diversos países e, apesar de
existirem algumas propostas de índices para
esta comunidade, a maioria deles não é diretamente aplicável nos ambientes aquáticos
tropicais, onde as espécies exibem diferentes
sensibilidade e ocorrência (CETESB, 2010).
O fitoplâncton em número elevado em
mananciais causa redução da vazão de água
tratada, aumento de consumo de água para lavagem dos filtros, paralisações temporárias e,
dependendo das espécies de algas, influencia
no odor e no sabor da água; sendo necessário a
utilização de carvão ativado, ou um outro oxidante forte como ozônio, permanganato de potássio
ou dióxido de cloro (Hijazin, 1993). A legislação
CONAMA 357/2005 não determina concentrações limites para diatomáceas e clorofíceas em
corpos d’água; no entanto estabelece parâmeFigura 11 - Comparação dos resultros para substâncias que conferem gosto ou tados das análises de Clorofíceas e Diaodor (Art.16). Estes devem estar virtualmente tomáceas durante os meses de janeiro a
ausentes para águas doces potabilizáveis, ou dezembro de 1993, a montante da Estação
seja, Classes Especial 1, 2 ou 3. Os valores mé- de Tratamento de Água José Loureiro da
dios mensais mais altos foram registrados para Silva (ETA-JLS).
os microorganismos fitoplanctônicos do mananFonte: Hijazin e Pereira (1993)
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
Os potenciais riscos à saúde humana
decorrentes da presença dos protozoários na
água de abastecimento tiveram sua expressão na Portaria Nº 518/2004, que estabelece
os padrões de potabilidade da água. Nesse
instrumento, a turbidez é parâmetro de natureza sanitária, assumindo-se que baixa turbidez, por um lado, propicia maior eficiência
da desinfecção na eliminação de bactérias e
vírus e, por outro, é indicativa da remoção de
oocistos de protozoários pela filtração. São
recomendados reduzidos valores (0,5 UNT)
para água filtrada, “com vistas a assegurar
a adequada eficiência de remoção de enterovírus, cistos de Giardia spp e oocistos de
Cryptosporidium sp” em instalações compostas por filtros rápidos.
Os rotíferos são largamente utilizados
na agricultura como alimento para formas jovens de peixes e crustáceos e destacam-se
também como bioindicadores das condições
tróficas das águas; a função detritívora de
muitas de suas espécies tem papel depurador fundamental em ambientes submetidos à
poluição orgânica, sendo seus principais alimentos bactérias, ciliados e algas. Também
existem espécies parasitas e comensais (Júnior, 2007).
Os valores médios mensais mais altos
registrados para os protozoários e rotíferos
foram, respectivamente, 87263 org/L (mês de
maio) e 8883 org/L (mês de outubro) conforme mostra a Figura 12. O alto valor médio da
matéria orgânica encontrado no mês de maio
(Figura 3) evidencia um maior lançamento de
esgotos acarretando uma alta na quantidade
de protozoários neste mês. Os maiores valores médios mensais de rotíferos, no mês de
outubro, coincidem com os menores valores
médios de coliformes totais (Figura 9), o que
evidencia uma melhora na qualidade do manancial e comprova a sua utilização como
bioindicador de corpos d’agua.
Figura 12 – Comparação dos resultados das análises de Protozoários e Rotíferos
durante os meses de janeiro a dezembro de
1993, a montante da Estação de Tratamento
de Água José Loureiro da Silva (ETA-JLS).
Fonte: Hijazin e Pereira (1993)
Conclusão
Da análise dos resultados obtidos durante os meses de janeiro a dezembro deste
trabalho, pode-se concluir que as análises físicas, químicas e microbiológicas do Lago Guaíba, realizadas na ETA-JLS, apresentaram uma
relação entre elas. Os valores de OD; cor e
coliformes totais do manancial estiveram fora
das especificações, em alguns meses, dos
padrões de classificação dos corpos d’água
previsto pela Resolução CONAMA 357/2005;
ou seja o manancial não se enquadrou como
utilizável para fins de potabilização.
Em relação à matéria orgânica do Lago
Guaíba, verificou-se que seus níveis estão
bem elevados, indicando poluição orgânica
ao longo de todos os meses estudados. Os
resultados encontrados de pH e turbidez e
cianofíceas estiveram dentro do limite da Resolução CONAMA nº 357/2005. A temperatura
do manancial esteve dentro dos limites usuais
encontrados em águas superficiais.
Os altos níveis de coliformes totais encontrados principalmente durante os meses
de janeiro, junho a setembro, novembro e
dezembro indicam que o Lago Guaíba se encontra com a qualidade comprometida devido
ao lançamento de esgotos, sem o tratamento
adequado em termos de matéria orgânica.
O estudo das comunidades fitoplanctônicas e zooplanctônicas foram úteis como indicadoras da qualidade da água e monitoramento dos processos de eutrofização do manacial.
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104
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
Comparação entre dois sistemas de energia
termossolar para aquecimento da água:
convencional e alternativo de baixo custo
Andréa Souza Castro1
Aline Tonial Simões2
Maiara Cecchin3
Resumo: Para que os padrões de consumo da sociedade atual sejam satisfeitos,
há necessidade de aumento na produção de diferentes bens de consumo, exploração dos recursos naturais e produção de energia. Os combustíveis fósseis não são
renováveis e sua queima causa impactos significativos no meio ambiente, com liberação de gases que potencializam o efeito estufa e podem ser a causa do fenômeno
conhecido como aquecimento global. O sol é uma fonte de energia renovável e seu
aproveitamento tanto como fonte de calor quanto de produção de energia elétrica é
uma das alternativas mais promissoras para enfrentarmos os problemas energéticos. O objetivo deste estudo é comparar o rendimento de dois sistemas de energia
termossolar para aquecimento da água, sendo um modelo convencional encontrado
no mercado e outro modelo de baixo custo feito de materiais alternativos. Pretende-se desenvolver uma metodologia de cálculo para dimensionar todo o sistema alternativo e assim estimular o uso de energia solar para aquecimento da água.
Palavras-chave: Energia solar. Aquecimento da água. Rendimento.
Abstract: For the consumption patterns of today’s society be supplied, there is
need for increased production of various consumer goods, natural resources and
energy production. Fossil fuels are nonrenewable, and its burning cause significant
impacts on the environment, releasing gases that enhance the greenhouse effect
and may be causing the phenomenon known as global warming. The sun is a renewable energy source and its use both as a source of heat and light is one of the
most promising alternatives to the energy problems we face. The aim of this study
is to compare the efficiency in two thermo power systems for water heating, one of
them conventional model found in the market and other low-cost model made of
alternative materials. Aim is to develop a methodology for calculating any alternative
system size and thus stimulate the use of solar energy for water heating.
Key-words: Solar energy. Water heating. Efficiency.
Introdução
O crescimento populacional, unido ao
estilo de vida que incentiva cada vez mais o
consumo de produtos industrializados, pode
ser a raiz dos problemas ambientais globais.
Para que padrões de consumo sejam satisfeitos, exige-se uma maior produção de diferentes bens e, como consequência disso,
(1)
Engenheira Agrícola, professora da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]
(2)
Acadêmica do curso de Engenharia Ambiental e Sanitária da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. E-mail: ts_aline@yahoo.
com.br
(3)
Acadêmica do curso de Engenharia Ambiental e Sanitária da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. E-mail: mai_cecchin@
hotmail.com
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
temos uma exploração dos recursos naturais
e necessidade de produção de energia.
O uso de energias pós-revolução industrial através da queima de combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás natural) é a principal causa do aumento da concentração de
Gases do Efeito Estufa (GEEs) na atmosfera
observado no século XX e início do século XXI
(ESPARTA, 2008). Esses combustíveis fazem
parte das energias chamadas não renováveis
e, conforme Santos (2004), sua queima causa
impactos ambientais, como o aumento as concentrações de Dióxido de Carbono (CO2), Monóxido de Carbono (CO), Dióxido de Enxofre
(SO2) etc. Os gases que ficam acumulados na
atmosfera impedem que o planeta perca calor
pela radiação infravermelha, ocorrendo uma
potencialização do efeito estufa e uma desestabilização do equilíbrio energético no planeta. Assim, pode surgir o fenômeno conhecido
mundialmente como aquecimento global.
Em 2000, o setor energético global era
responsável por aproximadamente 60% do
total das emissões mundiais de GEEs, conforme tabela I (ESPARTA, 2008).
Tabela 1: Emissões mundiais de gases de efeito estufa em 2000.
*MtCO2e - tonelada métrica de dióxido
de carbono equivalente.
Fonte: ESPARTA, 2008, p. 20.
As preocupações causadas pela queima dos combustíveis fósseis estão estimulando cada vez mais o uso de outras formas
de energia. O estudo de tecnologias que utilizam fontes renováveis e limpas surge como
uma necessidade para quem preocupa-se
em estar preparado para o futuro panorama
de utilização de recursos energéticos no planeta (SANTOS, 2004).
O sol é uma fonte de energia renovável e
seu aproveitamento tanto como fonte de calor
quanto de eletricidade é uma das alternativas
mais promissoras para enfrentarmos os problemas energéticos. Como os recursos naturais encontram-se escassos, e os impactos
ambientais são cada vez mais uma preocupação global, deve ser incentivada a utilização de fontes energéticas sustentáveis, bem
como pesquisas que contemplem este tema.
O objetivo deste estudo é comparar a eficiência de dois sistemas de energia termossolar, sendo um modelo convencional encontrado no comércio e outro modelo de baixo custo
construído com materiais alternativos.
Energia Solar
A utilização de recursos renováveis proporciona grandes vantagens para um mundo
carente de energia, oferecendo alternativas
principalmente para países emergentes,
cujas taxas de desenvolvimento econômico
são seriamente comprometidas pelos altos
custos energéticos. O potencial gerado por
tais recursos é imenso. Diariamente, a Terra
recebe muitas vezes mais energia do Sol do
que a consumida sob todas as outras formas
(HINRICHS et al., 2010).
Ainda, segundo Hinrichs et al. (2010),
atualmente nos setores residencial e comercial o aquecimento solar é basicamente utilizado em piscinas e para obtenção de água
quente doméstica. A comercialização de tais
sistemas cresce lentamente e de maneira
constante, pelo menos 5% ao ano. Os autores também afirmam que o Brasil apresenta
menores necessidades de aquecimento do
que países do hemisfério norte. Entretanto,
em razão de uma distribuição de renda desigual, apenas um pequeno número de residências e edifícios comerciais e industriais
106
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
utiliza sistemas solares de aquecimento que
usem a água quente doméstica para substituir chuveiros, torneiras elétricas e aquecedores. Um número ainda menor dispõe de
sistemas solares passivos1 de aquecimento
e resfriamento de ambientes. Conforme Lafay (2005), o sistema passivo direto é o mais
comumente utilizado no Brasil, devido à sua
simplicidade, uma vez que a água para consumo é aquecida diretamente no coletor.
Segundo Krenzinger (2008), o Brasil é
um país apto a receber sistemas de conversão de energia solar, sendo que uma média
anual entre 4,7 e 5,7 kWh/m² abrange a quase totalidade do território. Ainda segundo o
autor, existem consideráveis diferenças no
que diz respeito à quantidade de energia
captada entre a região sul e norte. Entretanto
a radiação solar coletada por mais tempo durante o verão na região sul compensa essa
diferença na média anual.
Coletores solares para aquecimento de
água, por exemplo, permitem gerar calor de
forma limpa, com baixos custos operacionais,
facilidade e rapidez de instalação (SILVA e
SANTOS, 2007). Estes equipamentos captam
a energia irradiada pelo sol e convertem esta
em calor útil. Os sistemas de aquecimento de
água que utilizam energia solar são constituídos por coletores solares, reservatórios térmicos, reservatórios de água, fonte auxiliar de
energia e tubulações (LAFAY, 2005).
Os coletores solares planos são normalmente utilizados em aplicações que requerem um fornecimento de energia que
atinja temperaturas de até 100°C. Na figura
1 podemos observar um modelo deste tipo
de coletor. Já o esquema de funcionamento
é mostrado na figura 2. Neste sistema uma
parte da radiação que incide no coletor atravessa a cobertura, enquanto que a restante é
refletida. A placa absorvedora, de cor preta, é
composta de material com boa condução de
calor, que absorve a maior parte da radiação
que atravessou a cobertura. A energia absor-
vida pela placa é removida pelo fluido que
escoa no interior dos tubos que estão em
contato térmico com a placa. O movimento
do fluido no interior dos tubos se dá por sistema de termossifão2, indo até um reservatório
térmico (boiler) onde que a água é armazenada (LAFAY, 2005).
Figura 1 – Coletor solar para aquecimento de água.
Fonte: http://www.soletrol.com.br
Figura 2 – Esquema de um sistema
convencional.
Fonte: www.poniwas.com
Quando a circulação se dá por termossifão, o sistema é classificado como passivo, e quando a circulação se dá por bombeamento,
o sistema é classificado como ativo. Fonte: LAFAY, 2005, p.22.
A água aquecida fica com massa específica mais baixa e ocupa posições mais elevadas no circuito hidráulico. Este gradiente de
temperaturas e gradiente de massas específicas causam circulação natural através dos coletores. Fonte: LAFAY, 2005, p. 22.
1
2
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
Coletor Solar de Baixo Custo
Existem programas e movimentos que
incentivam a utilização de sistemas solares de
aquecimento, como a Sociedade do Sol3, que
disponibiliza em seu site um projeto de aquecedor solar de baixo custo. Esses aquecedores
têm a mesma função dos coletores tradicionais
(aquecer água), mas caracterizam-se por serem mais simples, sem cobertura de vidro,
mais econômicos, não esquentando a água
tanto quanto o coletor solar tradicional. Isto traz
três vantagens: reduz as perdas térmicas de
todo o circuito de circulação de água, diminui o
perigo de a água quente ferir crianças, permite
o uso dos dutos de água tradicionais da casa
brasileira (PVC - Policloreto de Vinila) para a
água quente (Sociedade do Sol, 2011).
O chuveiro então pode ser utilizado como
aquecedor de apoio para os dias em que o
tempo não permitir elevar a água até a temperatura desejada de banho, e isto a um custo
praticamente nulo, pois ele já é parte integrante
do lar brasileiro (SOCIEDADE DO SOL, 2011).
Levando-se em conta que a participação dos
chuveiros na demanda em horário de pico varia em torno de 25%, chegando a atingir em
alguns lugares os valores de 50% (TOLMASQUIM, 2003), o aquecedor solar de baixo custo
se mostra como uma eficiente alternativa energética e econômica para a população brasileira.
Na figura 3 podemos visualizar o esquema que representa um modelo de Aquecedor
Solar de Baixo Custo (ASBC).
Figura 3 – Esquema de um sistema
alternativo.
Fonte: http://www.sociedadedosol.org.br/
Metodologia
Um sistema de Aquecedor Solar de
Baixo Custo foi construído em uma propriedade rural do interior da cidade de Ibiaçá,
localizada na região norte do Rio Grande
do Sul. O aquecedor solar construído é do
tipo sistema passivo direto. Nele a água é
aquecida diretamente pelos painéis solares
– construídos de Policloreto de Vinila (PVC)
pintados com tinta preta fosca – e sua circulação é realizada por termossifão. A água
quente obtida através do coletor é direcionada para o reservatório e posteriormente
encaminhada ao chuveiro. A dimensão total
dos painéis solares é de aproximadamente
2,3 m² e foi baseada no manual da Sociedade do Sol (2011).
Para verificação do dimensionamento da
área e rendimento das placas, foram pesquisados dados de radiação média do mês mais
frio de 2010 na região de lagoa Vermelha/
RS4, disponíveis no site do Instituto Nacional de Meteorologia – INMET. Foi realizado
o cálculo de dimensionamento de uma placa
convencional. A área de placas obtidas neste
cálculo foi comparada com a área de placas
construídas no coletor solar alternativo. Para
tal, foram utilizados os seguintes dados:
• volume de reservatório: 310 L,
• tempo de funcionamento do coletor:
8 horas/dia,
• calor específico da água: 1kcal/kg°C,
• temperatura de entrada da água no reservatório: 10 °C,
• temperatura da saída da água no reservatório: 50 °C,
• mês mais frio do ano de 2010: junho,
• radiação média incidente no mês de
junho de 2010: 2484,72 kcal/m²/dia.
A seguir, constam as equações utilizadas para o cálculo do dimensionamento dos
sistemas:
a) Área da placa convencional para
os dados de junho de 2010.
Para o referido cálculo, foram utilizadas
fórmulas estudadas por Cruz (2009):
http://www.sociedadedosol.org.br/
A cidade de Ibiaçá não possui estação meteorológica. Foi utilizada a estação de Lagoa Vermelha, por ser a cidade mais próxima
com estação meteorológica.
3
4
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la que ainda está sendo pesquisada, com
base em estudos anteriores sobre o assunto.
Onde:
Ac = área da placa coletora
Ir = radiação incidente junho 2010
Ir = 2484,72 kcal/m² (radiação média incidente – junho/2010)
nt = eficiência para um determinado tempo t
nt = 50%5
Qu = energia total útil transferida ao fluido
Sendo:
Onde:
Resultados Preliminares
Até o momento já foi realizada a montagem do coletor solar de baixo custo, bem como
o cálculo da área da placa convencional utilizando-se dados de radiação de junho de 2010.
Para tal período, a área da placa convencional
calculada foi de 9,98 m². Com esse valor será
possível verificar se a área de placa construída
com materiais alternativos satisfaz a condição
de projeto, já que de acordo com os cálculos a
área de placa convencional deveria ser aproximadamente quatro vezes maior que a construída com materiais de baixo custo.
Figura 4 – Coletor solar construído
com materiais alternativos.
b) Eficiência da placa alternativa
Para o cálculo da eficiência da placa
alternativa, estão sendo medidas desde janeiro de 2011 as temperaturas da água do
reservatório em três horários do dia. Após
a coleta desses valores até julho de 2011,
poderá ser atribuída a eficiência da placa alternativa para este período. O cálculo dessa
eficiência será realizado utilizando-se fórmu5
Figura 5 – Coletor solar construído
com materiais alternativos.
Considerações Finais
Espera-se que resultados obtidos ao
término da pesquisa incentivem projetos de
Conforme SIQUEIRA, 2009; CRUZ, 2009.
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
aproveitamento de energia termossolar visando o aquecimento de água nos diversos
ramos da engenharia. Além disso, busca-se
apresentar uma alternativa mais barata, tecnologicamente viável e eficiente de aquecimento de água.
Referências
Aquecedores de água Soletrol. Disponível em: <http://www.soletrol.com.br/>. Acesso em: 18 maio 2011.
CRUZ, Guillermo Fernando Hovermann
da. Estudo da utilização da energia solar
no RS. Porto Alegre: UFRGS, 2009. Trabalho de conclusão (Escola de Engenharia) Curso de Engenharia Elétrica, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, 2009.
ESPARTA, A. R. J. (2008). Redução
de emissões de gases de efeito estufa no
setor elétrico brasileiro: a experiência do
Mecanismo de Desenvolvimento Limpo do
protocolo de Quioto e uma visão futura. PhD
Thesis, Programa Interunidades de Pós-Graduação em Energia da Universidade de São
Paulo, Brazil.
HINRICHS, R.A; KLEINBACH, M.;
REIS, L.B. Energia e meio ambiente. 4. ed.
São Paulo: Cengage Learning, 2010.
Instituto Nacional de Meteorologia.
Disponível em: <http://www.inmet.gov.br/>.
Acesso em: 28 maio 2011.
KRENZINGER, A.; Pinho, J. T. A energia
solar no Brasil e suas perspectivas futuras.
In: XIV CONGRESO IBERICO Y IX CONGRESO IBEROAMERICANO DE ENERGIA
SOLAR, 2008.
LAFAY, Jean-Marc Stephane. Análise
Energética de Sistemas de Aquecimento
de Água com Energia Solar e Gás. 2005.
Tese de Doutorado, PROMEC/UFRGS, Porto Alegre, RS.
Poniwas – Assessoria para lavanderias.
Aquecedor solar convencional. Disponível
em: http://www.poniwas.com/2009/01/lavanderia-aquecedor-solar.html. Acesso em: 18
maio 2011.
SANTOS, B. M. Metodologia de Dimensionamento de Sistemas de Aquecimento Solar Para Secagem de Produtos
Agrícolas. 2004. Dissertação (Mestrado em
Engenharia Agrícola na área de concentração de Tecnologia Pós – Colheita) - Faculdade de Engenharia Agrícola, Universidade de
Campinas, Campinas.
SIQUEIRA, Débora Abrahão. Estudo
de desempenho do aquecedor solar de
baixo custo. 2008. Dissertação (Mestrado
em Engenharia Química na área de concentração em Desenvolvimento de Processos
Químicos) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia.
Sociedade do Sol. Manual de Manufatura e Instalação Experimental DO – ASBC
– Aquecedor Solar De Baixo. Disponível em:
<http://www.sociedadedosol.org.br/arquivos/
manual-do-asbc-maio2010-v3-0.pdf>. Acesso em: 17 maio 2011.
TOLMASQUIM, M. T (org.). Fontes renováveis de energia no Brasil. Rio de Janeiro: Interciência, 2003.
110
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
Aplicação de testes não paramétricos e do
método de Gumbel à série de cotas máximas
anuais do lago Guaíba
Andréa Souza Castro1
Alex Soares de Mello2
Resumo: O objetivo do presente trabalho é verificar a independência, homogeneidade e estacionariedade da série de cotas máximas anuais do Lago Guaíba
através da utilização de testes não paramétricos a um nível de significância de
5%. Além disso, também foi determinado o tempo de recorrência da maior cota
da série de dados a partir de 1906 através do método de Gumbel. Para a hipótese
nula de que valores anuais de máximos são independentes, foi utilizado o teste
de Wald-Wolfowitz que demonstrou ser aceitável esta hipótese, já que o valor da
estatística do teste foi T= 1,0168. Para verificação da homogeneidade da série
fez-se uso da metodologia proposta por Mann e Whitney. A aplicação deste teste
demonstrou que a hipótese nula de que os valores são homogêneos é aceitável
com o valor da estatística T= -1,7098. O teste de Spearman demonstrou que a hipótese nula de que a série é estacionária não é aceitável, uma vez que T=2,2798.
Da aplicação do método de Gumbel resultou que o tempo de retorno do maior
valor da série (4,75 m, referente ao evento da Grande Enchente de 1941) é maior
que 1.500 anos com risco permissível de 3,20% para um período de 50 anos.
Palavras-chave: Homogeneidade. Independência. Estacionariedade, Tempo
de retorno.
Abstract: The aim of this work is to check the randomness, homogeneity and
stationarity of the annual maximum gauge height series of the Guaíba Lake, using
non-parametric tests with significance level equal to 5%. Besides that, the recurrence interval was determined for the highest value starting from 1906 through
Gumbel distribution. As for the null hypothesis that the values are random, Wald-Wolfowitz test demonstrates that this hypothesis is acceptable, because the statistical test value is T=1,0168. Aiming to check the homogeneity of the series was
used the methodology proposed by Mann and Whitney. The application of this test
proves that the values of the series are homogeneous given that the statistical test
value is T=-1,7098. Spearman test demonstrates that the null hypothesis of stationary series is unacceptable because T=2,2798. From application of the Gumbel
method has resulted the recurrence interval of the highest value of the series
(4,75 m concerning the Great Flood of 1941) is greater than 1500 years and the
hydrologic risk of failure equal to 3,20% for a 50 years period.
Keywords: Homogeneity. Randomness. Stationarity. Recurrence Interval.
(1)
Engenheira Agrícola, Professora da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]
(2)
Acadêmico do Curso de Engenharia Ambiental e Sanitária da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. E-mail: alex_s_mello@
hotmail.com
111
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
1. Introdução
Uma série hidrológica pode incluir todas
as observações coletadas em um determinado intervalo de tempo ou apenas algumas
observações quando, nesse caso, trata-se de
uma série reduzida. Uma série de valores máximos anuais é um exemplo de série reduzida.
A previsão meteorológica não possibilita a determinação da precipitação (e, consequentemente, da vazão e da cota associada)
com muita antecedência, sendo que a previsão de longo prazo é estatística (TUCCI,
2002). A qualidade dos resultados obtidos
pelo ajuste de uma distribuição estatística
dependerá de alguns atributos inerentes aos
dados selecionados para esse fim. Segundo
Naghettini e Pinto (2007), alguns dos atributos desejáveis em uma série hidrológica
reduzida para aplicações estatísticas são a
independência entre os dados amostrais, homogeneidade e estacionariedade.
Homogeneidade define-se como a manutenção do padrão de variabilidade dos
valores em torno de seu valor médio. Como
afirmam Lira e Silva (2003), uma série é composta por dados homogêneos se o seu regime hidrológico não é perturbado por influências naturais ou artificiais. Isto implica que os
dados da amostra em qualquer período registrado pertencem à mesma população ou
distribuição estatística. Ainda segundo estes
pesquisadores, vários aspectos contribuem
para a não homogeneidade das séries, tais
como modificações naturais (catástrofes ou
variações climáticas, por exemplo) e influências antrópicas.
Os testes estatísticos verificam a não
homogeneidade das séries; entre eles, os
testes não paramétricos são mais convenientes, pois apresentam algumas vantagens sobre os testes paramétricos (LIRA;
SILVA, 2003). A maior vantagem reside no
fato de que testes não paramétricos podem
ser aplicados mesmo quando a distribuição
dos dados não é conhecida, uma vez que
não há a necessidade de que os valores da
variável estudada tenham distribuição normal ou aproximadamente normal.
Afirmar que os dados amostrais são
independentes significa, basicamente, “que
nenhuma observação presente na amostra pode influenciar a ocorrência, ou a não
ocorrência, de qualquer outra observação
seguinte” (NAGHETTINI; PINTO, 2007).
O termo estacionariedade está associado a uma série de dados cujo comportamento probabilístico não varia com o tempo.
Como afirmam Naghettini e Pinto (2007):
“Os tipos de não estacionariedades incluem tendências, ‘saltos’ e ciclos, ao longo do tempo. Em um contexto hidrológico,
os ‘saltos’ estão relacionados a alterações
bruscas em uma bacia ou trecho fluvial,
tais como, por exemplo, a construção de
barragens. Os ciclos, por sua vez, podem
estar relacionados a flutuações climáticas
de longo período, sendo de difícil detecção.
As tendências temporais, em geral, estão
associadas a alterações graduais que se
processam na bacia, tais como, por exemplo, uma evolução temporal lenta da urbanização de uma certa área geográfica.”
É possível, através de uma distribuição
estatística adequada, determinar o tempo de
retorno de uma variável hidrológica, fazendo
uso de uma série que possua os atributos citados anteriormente e que seja representativa
do universo total de observações possíveis
(população amostral). Segundo Castro (2006,
apud SILVEIRA, 2004), tempo de retorno é
definido como o número médio de anos o qual
se espera que o evento analisado seja igualado ou superado. O tempo de retorno é fundamental em uma obra hidráulica, pois definirá o
risco de uma falha admissível.
Para o caso do lago Guaíba, as variações dos níveis e as suas probabilidades de
ocorrência estão em função de uma série de
fatores intervenientes. Estes determinarão a
formação da onda de cheia e a maior ou menor dificuldade de escoamento para a laguna
dos Patos. Como destacado por Guerra [200-],
112
“os ventos predominantes na região conferem ao Lago um regime hidrológico atípico. É comum a ocorrência de “vazões
negativas” (o escoamento se dá no sentido
inverso - de jusante para montante) com
reflexos nos seus afluentes, especialmente nos rios Gravataí, Sinos e Caí, elevan-
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
do o tempo de residência das águas que
afluem ao Guaíba.”
No entanto, é conveniente ressaltar que
a intensidade da onda de cheia também está
associada a precipitações extraordinárias e
às condições do solo (maior ou menor capacidade de infiltração, que por sua vez está relacionada com o número de dias sem chuva
anteriores ao evento da precipitação). Outro
fator agravante é a chegada, simultânea ou
não, das ondas de cheia dos afluentes do
Guaíba, já que o lago é o exutório das bacias
que compõem a Região Hidrográfica do Guaíba (Alto Jacuí, Vacacaí, Pardo-Pardinho,
Baixo-Jacuí, Taquarí, Caí, Sinos e Gravataí).
Segundo Brasil (1968), a descarga do
lago Guaíba é fortemente influenciada pelos
estrangulamentos da Ponta da Cadeia e de
Itapuã e depende do nível da laguna dos Patos, bem como da intensidade do vento sul,
que age represando as águas do Guaíba.
O objetivo do presente artigo é avaliar
a série hidrológica dos máximos anuais do
lago Guaíba de acordo com sua homogeneidade, independência e estacionariedade
através de testes não paramétricos. Além
disso, determinar o tempo de retorno e o risco permissível associados à maior cota da
série através da distribuição de Gumbel.
2. Dados hidrológicos
Os dados utilizados compreendem os
máximos anuais observados no lago Guaíba
durante o período de 1899 a 2009, com falha
no ano de 1934. De acordo com Brasil (1968),
o conjunto das leituras linimétricas realizadas
no período de 1899 a 1936 foi cedido pelo
arquivo do Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis, extinto em 1975 com
a criação da Empresa de Portos do Brasil –
PORTOBRÁS. Neste período as leituras eram
realizadas pela Secretaria de Obras Públicas.
Ainda segundo Brasil (1968), a partir de 1936
as leituras foram realizadas pela Diretoria de
Navegação Fluvial. Os dados referentes ao
período 1942-2009 foram obtidos junto a Superintendência de Portos e Hidrovias.
Todos os dados foram obtidos por medições linimétricas feitas no posto da Praça
da Harmonia, cujo “zero” relativo está 29 cm
acima do nível médio do mar (BRASIL, 1968)
medido pelo marégrafo de Torres. Nesse ponto
há divergências, pois segundo SPH [200-], o
zero da régua linimétrica da Praça da Harmonia está a 23,72 cm abaixo do nível do mar.
No entanto, as cotas utilizadas neste artigo não
sofreram adição de constante corretiva, tomando como referência o zero da própria régua.
3. Testes estatísticos utilizados
Para verificar a independência entre os
valores da série foi aplicado o teste de Wald-Wolfowitz. A dependência está fortemente
associada ao tempo; quanto menor o intervalo
de tempo considerado entre as observações,
maior será a dependência verificada entre
elas. A independência varia com o intervalo de
tempo que separa as observações consecutivas da série hidrológica: fraca, para vazões
médias diárias, e forte ou total, para vazões
médias (ou máximas, ou mínimas) anuais.
A fim de determinar se a série apresenta
homogeneidade aplicou-se o teste de Mann-Whitney. Segundo Naghettini e Pinto (2007),
esse teste determina, a um nível significância adotado, se os valores que compõem a
população pertencem a uma única e idêntica
população. Em outras palavras, o teste verifica se valores (no caso, os máximos anuais)
estariam ou não associados a condições climáticas ordinárias.
O teste não paramétrico de Spearman
verifica a estacionariedade da série de dados. Uma série hidrológica é estacionária se,
excluídas as flutuações aleatórias, as observações da amostra não variam em relação à
cronologia de suas ocorrências. O termo não
estacionariedade é usado para uma série
temporal em que o comportamento da probabilidade da série varia com o tempo (LIRA;
SILVA, 2003 apud HAAN, 1977, p. 277).
4. Distribuição Gumbel
Segundo Ferraz et al.(1998, apud TUCCI, 1993), as principais distribuições de probabilidade que se adaptam à análise de eventos extremos com a finalidade de determinar
o período de recorrência são: Log Normal,
Pearson tipo III e Gumbel. Neste trabalho foi
113
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
utilizado o método de Gumbel, onde a função
cumulativa de probabilidade é dada por:
em que P(X≥X0) denota a probabilidade
de que um determinado evento seja maior ou
igual ao evento em análise. A variável reduzida y é calculada por:
Os parâmetros α e μ são parâmetros
da distribuição obtidos com base na média
e desvio-padrão dos valores da série. Definem-se por
em que s é o desvio padrão da série de
dados e é a média.
5. Resultados e discussões
No tocante à aplicação dos testes não
paramétricos à série de dados é importante
ressaltar que, por se tratar de testes bilaterais,
a decisão de rejeitar a hipótese nula será válida quando o módulo do valor da estatística
do teste ultrapassar o valor z da Distribuição
Normal correspondente a um nível de significância pré-estabelecido. Para este trabalho
foi adotado nível de significância igual a 5%
na aplicação de todos os testes (z=1,96).
Partindo da hipótese nula de que valores anuais de máximos são independentes,
a aplicação do teste Wald-Wolfowitz corroborou esta hipótese, já que o valor da estatística do teste foi T= 1,0168.
Para a aplicação do teste de Mann-Whitney se fez necessário dividir a série de
dados em duas subamostras. A primeira subamostra compreende os valores entre 1899
e 1954 e a segunda subamostra, os demais
valores. Os valores são ordenados de acordo com a sua posição na amostra completa.
O teste de Mann-Whitney se baseia na ideia
intuitiva de que caso as duas subamostras
não forem homogêneas, os elementos da
primeira apresentarão ordens de classificação consistentemente mais baixas (ou mais
altas), em relação às ordens de classificação correspondentes à segunda subamostra (NAGHETTINI; PINTO, 2007). Este teste
demonstrou que a hipótese nula de que os
valores são homogêneos é aceitável com o
valor da estatística T= -1,7098.
O teste de Spearman demonstrou que
a hipótese nula de que a série é estacionária
não é aceitável, uma vez que T=2,2798. Isto
pode ser estar associado ao processo de urbanização acelerado no município de Porto
Alegre, que apresentou um aumento de 46%
na ocupação urbana a partir da década de
70. Este processo acarreta a geração de
grandes áreas impermeáveis que interferem
nas condições naturais de escoamento e infiltração. Também é possível citar como alteração relevante a implantação do sistema
Salto no rio Caí, um dos afluentes do lago
Guaíba. Segundo FEPAM (1998), o sistema
é constituído por quatro usinas hidrelétricas
(PCHs) e três barragens de acumulação
para transposição de água para o rio dos Sinos (transposição mínima de 2,1 m3/s).
Através da determinação da probabilidade de recorrência da maior cota foi possível determinar o tempo de retorno associado
ao valor máximo da série e, assim, determinar o respectivo risco permissível. Define-se risco permissível como a probabilidade
de um evento ser igualado ou ultrapassado
em um período de n anos. Segundo Tucci
(1993), este conceito leva em conta que uma
obra projetada para um tempo de retorno T
está exposta anualmente a uma probabilidade 1/T de falhar, ou seja, o risco de um evento extremo vir a ocorrer em um período de n
anos é maior do que a sua probabilidade de
ocorrência em um ano isoladamente. Matematicamente é definido como segue
A maior cota da série de dados, correspondente a Grande Enchente de 1941,
apresentou risco permissível de 13,36% para
um período de 50 anos no ano de sua ocorrência. Relativamente, verificou-se tempo de
recorrência baixo neste ano, devido às con-
114
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
dições atípicas observadas. Segundo Assis
(1960), naquele ano a precipitação em todo
o Estado foi realmente abundante, sendo de
2200 mm a média geral sobre todo o território. A maior precipitação ocorreu em Canela,
que registrou 3013 mm. Para o ano de 2009,
o risco permissível é de 3,20% considerando
igual período. Na tabela 1 constam os tempos de recorrência para a maior cota da série
(4,75 m) a partir de 1906.
Tabela 1 – Cotas máximas da série e
tempos de retorno da maior cota
A Figura 1 apresenta o ajuste da distribuição Gumbel à série de cotas máximas
observadas para o lago Guaíba.
Figura 1 – Ajuste da distribuição Gumbel às cotas máximas do lago Guaíba. Elaborado pelo autor.
6. Conclusões
Através da determinação da probabilidade de ocorrência da cota máxima da série
de dados foi possível determinar os tempos
de recorrência ano a ano e, deste modo, determinar o risco permissível. Para o ano de
2009, que reflete as condições hidrológicas
atuais, o risco permissível para a maior cota
da série (4,75 m) é baixo, mas não nulo. Além
disso, cotas maiores que 1,85 m (considerada
a cota de cheia do lago Guaíba) podem oca115
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
sionar prejuízos socioeconômicos nas regiões
mais vulneráveis da cidade, o que demonstra
a importância do Sistema de Proteção Contras
as Cheias, do qual o Muro da Mauá faz parte,
sendo ele peça-chave para a prevenção de novas enchentes no município de Porto Alegre.
Da aplicação dos testes não paramétricos, os resultados demonstram que as
observações anuais são independentes, tal
como sugerido na literatura e ratificado pela
aplicação do teste de Wald-Wolfowitz. Os resultados também indicam que todos os valores da série pertencem a uma única e idêntica população, ou seja, a série é homogênea,
tal como foi demonstrado pela aplicação do
teste de Mann-Whitney.
Quanto à estacionariedade da série, a
aplicação do teste de Spearman demonstrou
que a hipótese nula (série estacionária) não
pôde ser aceita, o que indica que os valores
não são invariantes no que tange à cronologia de suas ocorrências. A não estacionariedade da série pode estar associada às alterações bruscas que a bacia sofreu ao longo
do tempo, como a urbanização e a construção de barragens.
Agradecimentos
Os autores agradecem ao Prof. Dr. Marco Antonio Fontoura Hansen e à Superintendência de Portos e Hidrovias pelo relevante
apoio na obtenção dos dados e pesquisa bibliográfica.
Referências
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não é rio. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da
Livraria do Globo, 1960.
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Obras de Saneamento. (1968). 15. Dfos.
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CASTRO, Andréa Souza; AVRUCH, Goldenfum, Joel. Comparação entre o tempo de
retorno da precipitação máxima e o tempo de
retorno da vazão gerada pelo evento. In: CONGRESO INTERAMERICANO DE INGENIERÍA
SANITARIA Y AMBIENTAL, 2006, Punta del
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UFRGS, 2002.
116
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
db4objects: um sistema gerenciador de
banco de dados orientados a objetos
Anderson Corbellini1
William Hart Oliveira2
Adriana Paula Zamin Scherer3
Resumo: Os bancos de dados orientados a objeto começaram a ser desenvolvidos para atender a uma necessidade relacionada ao armazenamento de tipos de
dados cada vez mais complexos, com difícil representação no modelo relacional.
Esse artigo tem o intuito de prover uma visão geral do Banco de Dados db4objects (db4o - Database for Objects) explicitando suas diversas funcionalidades.
Palavras-chave: Banco de dados orientados a objetos. db4o.
Abstract: The databases object-oriented development started to attend a need
related to storage of data types increasingly complex, with representation in the
relational model difficult. This article aims to provide an overview of Database
db4objects (db4o - Database for Objects) showing its various features.
Keywords: Object-oriented database systems. db4o.
Introdução
O termo Sistema de Gerenciamento
de Banco de Dados Orientados a Objetos
(SGBDOO) surgiu por volta do ano de 1985,
embora a evolução das primeiras pesquisas nessa área tenha começado um pouco
mais cedo, em meados de 1970. O primeiro
SGBDOO apareceu em 1990 e cresceu de
um conceito de persistência em linguagens
orientadas a objetos, isto é, uma espécie de
memória persistente, de acordo com Date
(2000). Em um segundo momento, surgiram
os bancos de dados orientados a objetos escritos totalmente em uma linguagem orientada a objetos e, entre eles, está o db4o.
O projeto db4o foi iniciado em 2000,
por Carl Rosenberger, e comercializado em
2001. Logo após, cerca de 100 clientes comerciais pilotos e usuários da comunidade
apoiaram fortemente o db4o que foi implementado com sucesso em algumas aplicações de missão crítica antes mesmo do seu
lançamento comercial, ocorrido em 2004
pela recém criada empresa privada Db4objects Inc (db4o: Java & .net object database:
company Information, 2010). Em dezembro
de 2008, a Versant Corporation adquiriu os
ativos de negócio do Banco de Dados Orientado a Objeto (BDOO) db4o. Atualmente,
usuários e clientes do db4o estão presentes em mais de 170 diferentes países, e ele
também está inserido em grandes empresas,
tais como a Boeing, a BMW, a Bosch, a Intel
e a Seagate.
O objetivo deste artigo é prover uma
visão geral sobre o BDOO db4o. Para
tanto, além desta introdução, o texto está
distribuído da seguinte forma: na seção 2
serão abordadas as suas principais características; na seção 3 serão apresentadas
algumas aplicações e casos de sucessos
de empresas que utilizaram o db4o, destacando alguns benefícios descobertos por
elas. Por fim, na seção 4 serão apresentadas as considerações finais acerca deste
banco de dados.
Acadêmico do curso de Sistemas de Informação da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. E-mail: [email protected]
Acadêmico do curso de Sistemas de Informação da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. E-mail: [email protected]
Mestre em Ciências da Computação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora da Faculdade Dom Bosco de
Porto Alegre, RS - Brasil. E-mail: [email protected]
(1)
(2)
(3)
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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
2. Características
Db4o é um banco de dados orientado a
objetos que foi projetado para aplicações do
tipo embarcada em equipamentos e dispositivos, para softwares de prateleira executados
tanto em desktop como em dispositivos móveis, em sistemas de controle de tempo real
ou ainda, simplesmente, em sistemas do tipo
cliente-servidor, este abordado com mais detalhes em seguida. É escrito em Java e .NET e
fornece as respectivas Applications Programming Interfaces (APIs), sendo compatível com
qualquer sistema operacional que suporta estas linguagens, possibilitando aos desenvolvedores reduzir o tempo e custo do projeto, alcançando excelentes níveis de desempenho.
Este artigo apresenta os exemplos de códigos
da versão para a linguagem Java.
Em Java é possível utilizar em JSE,
JEE, JME com reflexão, Servlets e Java WebStart. Já para .NET, são suportadas as plataformas: .Net 1.X, 2.0, CompactFramework,
Windows Mobile 5.0 e Mono.
A distribuição completa do db4o é disponibilizada sob duas formas de licença: a
de código aberto, licença General Public License (GPL), que possibilita download gratuito, avaliação e uso em projetos compatíveis
com a licença; e a comercial de runtime para
empresas que desejam embutir o db4o em
suas aplicações comerciais não GPL (db4o –
informações do produto, 2010).
O db4o é um banco de dados de objeto
puro e nativo. Segundo Paterson et al. (2006),
o db4o armazena objetos de modo direto, sem
precisar mudar suas características, algo incomparável com o modelo de dados relacional
que necessita construir uma tabela identificando os dados. A diferença entre o armazenamento relacional e o armazenamento de objetos do db4o está apresentada na Figura 1.
Figura 1 – Armazenamento de objetos
em Banco de Dados Relacional e no Banco
de Dados db4o. Fonte: Machado (2010)
Este BDOO possui vantagens em relação aos bancos de dados relacionais, tais
como: oferece rapidez em inserções e consultas; utiliza pouco recurso computacional;
não possui nenhuma linha de código para
CRUD (Create, Read, Update e Delete); tem
fácil aprendizado e utilização; acesso direto ao banco de dados sem precisar utilizar
o Mapeamento Objeto-Relacional e é uma
única biblioteca de desenvolvimento (.jar/.
dll) que se integra facilmente às aplicações
e executa de forma altamente confiável e escalável as tarefas de persistência com apenas uma linha de código, não importando a
complexidade das estruturas (db4o – informações do produto, 2010). Na Figura 2 é exibido um exemplo que mostra a abertura do
banco de dados e como persistir um objeto.
Figura 2 – Abrindo o arquivo do
banco de dados – db4o.yap – e gravando
o objeto equip.
2.1. Detalhando o DB4O
O db4o permite o armazenamento das
mais complexas estruturas de objetos com extrema facilidade, pois ele foi desenvolvido para
atuar onde os bancos de dados relacionais falham: eliminando ferramentas e códigos para
o mapeamento objeto-relacional; ganhando
tempo e reduzindo custos para o desenvolvimento de softwares; provendo administração
zero, uma vez que alterações no modelo não
tem impacto no banco, já que este é apenas
um reservatório de objetos. Além disso, oferece uma grande quantidade de funcionalidades
exclusivas e orientadas a objeto e incentiva os
benefícios das linguagens orientadas a objeto
com: replicação, queries e a GUI ObjectManager, utilizada para mostrar arquivos da base
de objetos (Paterson et al., 2006).
Ainda de acordo com Paterson et al.,
(2006), as queries para acesso aos objetos
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armazenados no banco de dados podem ser
construídas de três formas distintas:
a) Native Query (NQ): É criada através
de um método que passa uma instância da
classe requerida como parâmetro, além de
uma restrição sobre um ou mais atributos,
como em um comando SQL, e retorna uma
expressão booleana. O resultado é uma list
que contém todos os objetos da classe escolhida para todos os retornos da expressão
que forem true. A Figura 3 apresenta um
exemplo de NQ.
um gráfico SODA. Na Figura 5 encontra-se
um exemplo de SODA.
Figura 5 – Exemplo de SODA
Figura 3 – Exemplo de NQ
b) Query by Example (QBE): Para utilizar a metodologia QBE, é necessário criar
uma instância da classe que irá ser pesquisada. Assim, os atributos que serão utilizados como cláusula na pesquisa devem ser
informados dentro da instância criada e, através destes, o db4o pesquisará na base por
objetos com os valores definidos e os retornará em uma collection ou list. Na Figura 4
pode ser visto um exemplo de QBE.
Figura 4 – Exemplo de QBE
c) Simple Object Data Acess (SODA): é
um recurso avançado do db4o. A idéia básica
é montar uma query através de um gráfico,
formado por nodos que representam classes
ou atributos classes. A performance não é
afetada, pois a SODA é baseada em native
query e esta pode ser traduzida, ou não, em
Acerca do armazenamento dos dados,
pode-se afirmar que ele é feito através de um
ou mais arquivos persistidos de forma binária.
Há a possibilidade de inserir senha e de criptografar as informações no banco de dados,
caso seja de interesse do usuário. O algoritmo utilizado é o XTEA (eXtend Tiny Encryption Algorithm) com chave de até 128 bits.
A capacidade máxima de um arquivo de
objetos é de 254 gigabytes. Quando este limite
é alcançado, o próprio db4o cria outro arquivo
binário e os gerencia (Paterson et al., 2006).
Além do suporte a transações ACID
(Atomicidade, Consistência, Integridade e
Durabilidade), é possível controlar o início e
fim das sessões através dos comandos Commit e Rollback. Outras funcionalidades importantes são: a fácil manipulação do arquivo de
BD (criar, abrir, fechar e apagar) e operações
CRUD (Create, Retrieve, Update e Delete)
diretamente nos objetos. Em uma aplicação
cliente/servidor, o controle de concorrência
do db4o é realizado por níveis de isolamento, ou seja, restringindo o acesso a entidades
que estão sendo atualizadas. Os níveis de
isolamento são classificados em: read uncommitted, read committed, repeteable read
e serializable. O db4o assume que as transações, por default, são read committed.
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O db4o fornece suporte a índices. Estes
são organizados em b-trees e aumentam significativamente a performance na manipulação dos objetos. Em apenas uma linha de comando é possível criar ou desfazer um índice
(Paterson et al., 2006) e, para isto, basta escolher uma propriedade da classe e o índice
é criado, como mostra o exemplo na Figura 6.
Figura 6 – Criação de índice na Classe Equipamento no campo Codigo
Para retirar o índice, basta mudar o parâmetro da função Indexed para false, conforme pode ser visto no exemplo da Figura 7.
Estes arquivos são salvos em um diretório
“blob\”, dentro da pasta padrão do db4o e
são acessados através de uma thread assíncrona (Paterson et al., 2006).
De acordo com Paterson et al. (2006), o
db4o possui um controle de espaço livre no
banco, mantendo um registro de um objeto
que foi excluído, para que este espaço possa ser reaproveitado por outro objeto a ser
inserido futuramente. Existem dois tipos de
controle de espaço livre:
a) IndexSystem: O controle do freespace não é perdido caso o sistema fique fora do
ar. Isso acontece porque a cada commit o índice é atualizado, o que pode ocasionar certa
lentidão. Para ativar o IndexSystem utiliza-se
o comando que pode ser visto na Figura 8.
Figura 8 – Ativação do controle de
espaço livre no banco através do tipo
IndexSystem
Figura 7 – Eliminação de índice na
Classe Equipamento no campo Código
O db4o disponibiliza um controle de
replicação de objetos. Para isso, é preciso
haver garantia da unicidade de um objeto e
o db4o se utiliza do UUID (Unique Universal
IDs) que é um dispositivo que fornece uma
chave única para uma instância de objeto.
Pode ser aplicado de forma global ou para
uma classe individualmente. Por padrão,
este dispositivo não está habilitado devido
ao espaço utilizado no armazenamento e a
diminuição do desempenho para a manutenção deste índice (Paterson et al., 2006).
A refatoração (refactoring) é automatizada, de modo que, se um update é aplicado
na base, o versionamento de esquemas gerencia automaticamente as mudanças sem
a necessidade de processos de conversão.
Assim, adicionar novas funcionalidades ao
sistema é algo natural, aumentando o desempenho do desenvolvimento do software.
Vários são os tipos suportados que vão
desde arrays multidimensionais de objetos,
até campos blob, sendo que estes são armazenados fora do arquivo do banco de dados.
b) RamSystem: Este método de controle armazena as informações de espaço livre
na memória RAM, mas não garante a sua integridade caso haja uma queda no sistema.
Outra desvantagem é o consumo de RAM
que se torna bastante superior. Entretanto,
possui um desempenho melhor se comparado ao IndexSystem. A ativação do controle
RamSystem é feita através do comando que
pode ser visto na Figura 9.
Figura 9 – Ativação do controle de
espaço livre no banco através do tipo
RamSystem
3. Principais Aplicações e Casos de
Sucesso
Conforme já foi mencionado anteriormente, o db4o incorpora seus produtos em
várias companhias líderes mundiais, como a
BMW, Boeing, Bosch, IBM, e Indra Sistemas,
entre outras. Todos os clientes da db4objetcs
120
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
têm algo em comum, eles contam com o código aberto de banco de dados orientados a
objetos para cortar custos de desenvolvimento e ajudá-los a entregar seus produtos ao
mercado mais rapidamente.
Uma das mais bem sucedidas montadoras do mundo, a BMW, utiliza o db4o como
instrumento central de persistência para armazenar os sistemas de protocolo e dados de
configuração do cliente e um dos critérios mais
importantes para a seleção do db4O, para esta
aplicação, foi sua baixa necessidade de administração (DB4O:: java & .net object database::
customers and partners, 2010).
Para a Boeing, o db4o foi selecionado
para o projeto P-8A Multi-Mission Maritime
Aircraft, um antissubmarino de guerra de
longo alcance com inteligência de vigilância
e reconhecimento de aeronaves desenvolvido para a Marinha dos Estados Unidos (P8A overview, 2010). Conforme DB4O:: java &
.net object database: customers and partners
(2010), o db4o oferece vantagens de administração de banco de dados significativamente
mais baixas e uma melhor produtividade no
desenvolvimento, assim reduzindo os custos
operacionais.
A Sigpack Systems AG, uma empresa
Bosch, que é líder mundial em tecnologia de
embalagem totalmente automatizada, depende do db4o para a configuração da linha de
robôs Delta XR31. Antigamente a equipe de
desenvolvedores passava horas configurando
os robôs, um após o outro e, hoje, eles podem
configurar, de maneira centralizada, uma linha
inteira de robôs, ocasionando um salto de produtividade significativa para a empresa. Os
principais critérios de seleção do db4o para a
Bosch Sigpack Systems AG foram o alto desempenho permitindo a gestão de um grande
número de objetos, cerca de 39.000, a confiabilidade comprovada e a facilidade de uso
(DB4O success story – Bosh Sigpack, 2010).
A empresa Indra Sistemas é líder espanhola em Tecnologia de Informação e Sistemas de Defesa e foi a pioneira na utilização
do db4o para banco de objetos de missão
crítica, a prova de falhas e em tempo real.
Com o ganho do contrato, para construir os
centros de controle do sistema espanhol de
trens bala AVE foi utilizada para a base de
dados o db4o, juntamente com os sistemas
integrados de controle dos trens de alta velocidade (IRC), desenvolvido totalmente em
Java. O IRC foi desenvolvido com objetivo de
integrar informações e controle de cada elemento que forma uma linha ferroviária desde
a geração offline dos planos operacionais
até o controle total em tempo real. A arquitetura utilizada no IRC está dividida em três
áreas: rede em tempo real, rede em tempo
real aproximado, rede corporativa (Intranet e
Internet), em que o db4o gerencia as três camadas do sistema. O framework do Sistema
IRC é formado por mais de 30.000 objetos
em memória e 30 classes, com 80 terabytes
de informações que casualmente circulam
para a base relacional Oracle do sistema corporativo. Com a velocidade do db4o é possível ao sistema processar mais de 200.000
objetos por segundo, mas os benefícios mais
importantes são a capacidade de consultar
diretamente os objetos, sem necessidade de
transformá-los e o ambiente de administração zero que é indispensável para sistemas
de tempo real (DB4O success story – Indra
Sistemas, 2010).
4. Considerações Finais
Através deste estudo, pode-se afirmar
que o db4o fornece elementos suficientes e
necessários para o desenvolvimento de sistemas usando como mecanismo de persistência um banco de dados orientado a objetos.
Por se tratar de uma nova tecnologia,
o mercado mostra-se receoso, pois o modelo relacional ainda é extremamente empregado e domina as aplicações atuais. Migrar
de uma tecnologia consolidada no mercado
para outra que está se difundindo gera dúvidas. No entanto, à medida que a complexidade do desenvolvimento e manutenção dos
sistemas for aumentando, as empresas terão
que buscar novas alternativas que supram
suas necessidades. Neste contexto, é que o
db4o tem suas vantagens.
Referências
Date, C. J. Introdução a sistemas de
bancos de dados / C. J. Date; tradução [da
121
Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano V • Número 9 • Janeiro - Junho de 2011
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