Dissertação de mestrado do Professor Marcos

Transcrição

Dissertação de mestrado do Professor Marcos
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MARCOS LUCIANO CORSATTO
Princípios pedagógicos e administrativos
de La Salle no Guia das Escolas Cristãs
Dissertação de Mestrado, apresentada ao
Programa Interdisciplinar em Administração,
Educação e Comunicação, para a obtenção do
título de Mestre.
SÃO PAULO
2007
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Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da Universidade São Marcos
Corsatto, Marcos Luciano
C851p
Princípios pedagógicos e administrativos de La Salle no Guia
das Escolas Cristãs / Marcos Luciano Corsatto.
São Paulo : [s.n], 2007.
220p.
Dissertação de Mestrado - Universidade São Marcos.
Área de concentração: Educação, Administração e Comunicação
Orientador: Prof. Dr. Raymunda Cléa P. B. G. Vel Lejbman
1. Educação 2. Administração escolar 3. Educação Lassalista
I. Título
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Agradecimentos
À Professora Dra. Raimunda Cléa Pitt Brandão Goldman Vel Lejbman, por sua orientação
segura, amiga e sempre presente.
À Professora Dra. Alzira Lobo de Arruda Campos, por ter confiado no projeto desta pesquisa
e pelas valiosas indicações.
Aos Professores das Disciplinas cursadas, pelo embasamento e orientação: Dra. Anna Maria
de Carvalho Barros, Dra. Laima Mesgravis, Dr. Carlos Felipe Moisés e Dra. Senira Annie
Fernandez.
Aos Professores que analisaram o texto, emitiram seus pareceres e fizeram tão importantes
sugestões: Dra. Rosemari Fagá Viegas e Dr. Lincoln Elchebéhère Junior.
Aos vários Irmãos e Professores Lassalistas, que, com seu contato profissional e pessoal,
forneceram o material básico desta pesquisa.
Aos Professores companheiros, que deram sua valiosa contribuição para a redação do texto:
Claudete Henriques Lourenço, Cristiane Bastos Martinez, Danielle de Barros Fontes, MSc.
Paulo Pizzigatti Diniz de Almeida e MSc. Valdir González Paixão Júnior.
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A vida não é só ontem
nem fica explicada quando se reduz o hoje ao ontem.
A vida também é amanhã;
só compreendemos o hoje se pudermos acrescentá-lo àquilo que foi ontem
e ao começo daquilo que será amanhã.
Carl Gustav Jung
Psicologia do Inconsciente. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 38.
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Resumo
Este trabalho analisa a obra Guia das Escolas Cristãs, de autoria de João Batista de La Salle,
manuscrito em 1706 e impresso pela primeira vez em 1720, procurando investigar quais são
os princípios pedagógicos e administrativos nela constantes e em que medida e de que
maneira eles podem ter vigência na atualidade. Após contextualização histórica do referido
autor, da sua sociedade e do Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs por ele criado, são
descritas e analisadas as três partes em que se divide a obra: dos exercícios que se fazem nas
Escolas Cristãs e de como se devem fazer; dos meios para se estabelecer e manter a ordem nas
escolas; e deveres do Inspetor das Escolas. As três partes apresentam transcrições textuais e
adaptadas do original, com comentários, críticas e aproximações com a realidade educacional
atual, procurando evidenciar quais de seus princípios são pertinentes aos nossos dias. Por fim,
são analisadas a elaboração, a evolução e os limites da referida obra.
Palavras-chave: Educação, Administração Escolar, La Salle, Educação Lassalista.
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Abstract
This paper analyzes the Christian Schools Guide work written by João Batista de La Salle in
1706 and printed for the first time in 1720 and aims to investigate which are the pedagogical
and administrative principles and how they can be valid nowadays. After historical context of
the author, of his society and The Institute of The Brothers of the Christian Schools founded
by him, the three parts of this paper are described and analyzed: appliance and guidance
exercises at Christian Schools; means to establish and keep the order at schools, and School
Inspector duties. The three parts introduce textual transcriptions and they are adapted from the
original with comments, critics and approaches to the current educational reality, trying to
evidence which of his principles are pertinent to our days. Finally, the elaboration, the
evolution and the referred work limits are analyzed.
Key words: Education, School Administration, La Salle, Lasallian Education.
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Lista de ilustrações
Figura 1 – João Batista de La Salle ............................................................................... 27
Figura 2 – Encontro de La Salle com Adrian Nyel ....................................................... 34
Figura 3 – Página de rosto da primeira edição impressa do Guia das Escolas .............
145
8
Lista de quadros e tabelas
Quadro 1 – Sociedade Francesa na época de La Salle .....................................................
20
Quadro 2 – Países que possuíam Escolas Lassalistas em 2005 .......................................
38
Tabela 1 – Resumo estatístico das Escolas Lassalistas em 2005 .....................................
39
Quadros 3 a 5 – Partes, capítulos e páginas do Guia das Escolas Cristãs de 1720 ..........
44
Quadro 6 – Horário semanal das Escolas Cristãs de La Salle .......................................... 46
Quadro 7 – Níveis e ordens das lições nas Escolas Cristãs de La Salle ........................... 54
Quadros 8 a 10 – Cartazes do alfabeto e das sílabas ........................................................ 58
Quadro 11 – Alguns códigos e sinais utilizados nas Escolas Cristãs de La Salle ............ 79
Quadro 12 – Modelo do registro de visitadores de ausentes ............................................ 85
Quadros 12 a 15 – Partes, capítulos e páginas do Guia das Escolas Cristãs de 1903 ......
151
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Sumário
Introdução ..................................................................................................................
09
Capítulo I – La Salle e seu contexto
1. A realidade social vivida por La Salle ………………………………………..
19
2. A realidade pessoal de La Salle ………………………………………………
27
3. A realidade institucional de La Salle hoje ……………………………………. 36
Capítulo II – A primeira parte do Guia das Escolas
1. Situando o Guia das Escolas .............................................................................
41
2. Do horário semanal de atividades .....................................................................
45
3. Da entrada na escola e do começo da aula ........................................................ 48
4. Das lições de leitura ..........................................................................................
53
5. Das lições de escrita ..........................................................................................
64
6. Da aritmética, ortografia, religião e saída da escola .........................................
69
Capítulo III – A segunda parte do Guia das Escolas
1. Da vigilância, ordem, silêncio e registros dos alunos .......................................
76
2. Dos prêmios, correções e castigos ....................................................................
85
3. Da freqüência e da ausência às aulas ................................................................
104
4. Das funções exercidas pelos alunos ..................................................................
111
5. Da estrutura e móveis das escolas ..................................................................... 115
6. Das virtudes do bom professor .......................................................................... 118
Capítulo IV – A terceira parte do Guia das Escolas
1. Do Inspetor e da distribuição dos alunos ..........................................................
122
2. Da formação dos novos professores .................................................................. 129
3. Das casas mantidas pela Sociedade ..................................................................
137
Capítulo V – O Guia das Escolas Cristãs
1. De sua elaboração .............................................................................................
141
2. De sua evolução ................................................................................................
150
3. De seus limites e aproximações ........................................................................
154
Conclusão ................................................................................................................... 161
Fontes .........................................................................................................................
169
Bibliografia ................................................................................................................
172
Anexo 1 – Proposta Educativa Lassalista da Província de Porto Alegre ................... 177
Anexo 2 – Proposta Educativa Lassalista da Província de São Paulo .......................
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Introdução
Qualquer estudo sobre a Educação deve levar em conta que, ao longo do tempo e da
História da Humanidade, muitos já propuseram caminhos, sistemas, metodologias e tantas
outras possibilidades, todas elas com a intenção de contribuir para esta área do conhecimento
humano.
Nenhuma delas, entretanto, pode ser tomada como definitiva e abrangente, de tal
modo que não deixe espaço para que, com a evolução da ciência, se possa acrescentar,
transformar ou até mesmo negar e reformular pressupostos tidos como definitivos. O mundo,
em constante mudança, ainda mais de forma acelerada como em nosso século, proporciona
uma vasta possibilidade de enfoques para a Educação e toda a temática dela decorrente.
Ciente destes pressupostos, mas também consciente de que há muito por se descobrir,
ou ainda, por se recuperar, dos grandes pensadores do passado, é que resolvi desenvolver a
pesquisa, cujo resultado ora apresento. Trata-se de, ao olhar para a História, resgatar a
intenção e o conteúdo de uma obra pedagógica dos séculos XVII-XVIII na França que, se há
muito deixou de poder ser aplicada sistematicamente à Educação, também ainda parece
apresentar e apontar sugestões oportunas e importantes.
Com este trabalho, portanto, pretendo investigar a obra “Guia das Escolas Cristãs”, de
autoria do sacerdote francês João Batista de La Salle. Tal obra foi redigida por ele, em 1706,
trabalhada coletivamente por um grupo de professores, para depois ser publicada em 1720. O
objetivo desta pesquisa é, pois, procurar responder à seguinte questão: qual é o conteúdo desta
obra e, em que medida e de que maneira, ele pode ter vigência na atualidade e contribuir para
a Educação e a Administração de unidades escolares.
Parto, em princípio, da hipótese de que seu conteúdo, com suas orientações e
indicações, não pode ser transposto tal qual é apresentado no texto original, por uma questão
óbvia, referente à distância que nos separa, seja nos aspectos histórico, cultural, social e
científico. A humanidade, nestes séculos, caminhou e avançou muito no que diz respeito aos
conhecimentos pertinentes à Educação. Por outro lado, também considero, e pretendo
verificar, que certos princípios propostos no texto do Guia das Escolas Cristãs ainda
permanecem como indicativos essenciais para que uma escola brasileira, de nossa época,
pública, privada ou comunitária, leiga ou confessional, possa cumprir seu papel educacional
de forma adequada.
Para situar a temática desta pesquisa, considero importante esclarecer que La Salle
nasceu na cidade francesa de Reims, a 30 de abril de 1651, e faleceu no dia 7 de abril de 1719,
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em Saint Yon. Ordenado sacerdote, pela Igreja Católica, licenciou-se e doutorou-se em
Teologia, vindo a exercer as funções de cônego na famosa Catedral de Reims.
A partir de uma série de acontecimentos, envolvendo questões de educação, passa a
dedicar-se à organização de um grupo que viria a tornar-se a Sociedade dos Irmãos das
Escolas Cristãs (hoje, institucional e internacionalmente, reconhecida como Instituto dos
Irmãos das Escolas Cristãs). Tais acontecimentos serão especificados no decorrer da
elaboração desta dissertação, evidenciando como surgiram as suas escolas.
No decorrer deste seu trabalho, inicialmente nas paróquias, com este grupo de
professores pioneiros, La Salle percebeu a necessidade de se estruturar e organizar melhor as
suas escolas, tendo em vista a realidade das outras escolas com as quais teve contato. Por isso,
dedicou-se inteiramente a organizar e a acompanhar os professores e as obras educacionais,
visitando-as constantemente, procurando corrigir as posturas inadequadas, tentando suprir as
deficiências, escrevendo para os educadores das escolas mais distantes, elaborando obras
bibliográficas de referência.
Ainda que se leve em conta esta realidade, marcadamente religiosa, o enfoque deste
trabalho será exclusivamente nos aspectos educacionais, administrativos e comunicativos, de
caráter teórico e prático, presentes em sua obra escrita, especificada anteriormente. A partir
dela, observaremos e estudaremos as posturas assumidas por La Salle e seus primeiros
professores, os procedimentos práticos adotados no cotidiano de suas escolas, a maneira de
administrar e conduzir toda a realidade escolar de sua época e de seu contexto específico, e as
práticas definidas no Guia, que sinalizam um interessante sistema de comunicação no interior
da escola.
Conforme afirmado anteriormente, o livro Guia das Escolas Cristãs (ou somente Guia
das Escolas) foi impresso pela primeira vez em 1720, um ano após o falecimento de seu autor.
Entretanto, trata-se de um dos mais importantes textos orientativos de como deve ser o dia-adia das escolas de La Salle. Esta obra, dividida em três partes, está voltada especificamente
para a organização e o funcionamento das escolas, apresentando, detalhadamente, todos os
procedimentos dos educadores e dos alunos. Não se trata, portanto, simplesmente de um livro
com orientações pedagógicas; sua abrangência é maior.
É importante esclarecer que, especificada e delimitada a pesquisa neste enfoque,
salientamos que não abordaremos outros aspectos de sua obra, que também estiveram
fortemente presentes em sua realidade, sobretudo pela sua condição de sacerdote católico num
período histórico, incisivamente marcado pela atuação política da Igreja Católica.
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Neste trabalho, portanto – ainda que traga informações básicas, para que La Salle
possa ser situado historicamente – não abordarei em profundidade os aspectos biográficos,
psicológicos, sociológicos, religiosos ou políticos a respeito. Trata-se, especificamente, de um
estudo focado na análise textual, com vistas a compreender o pensamento e a prática de La
Salle e a analisar a possível atualidade de algumas de suas posturas.
Cabe aqui, também, ressaltar que o objeto de estudo desta pesquisa está limitado a
uma realidade religiosa católica da França no final do século XVII; sendo assim, toda a
terminologia empregada nos escritos de La Salle remetem a esta realidade histórica. Para
manter a fidelidade ao texto de La Salle, esta terminologia será mantida ao longo do trabalho,
ainda que não seja estudada especificamente.
Considero que a escolha deste tema é relevante, primeiramente por trazer ao mundo
acadêmico brasileiro as principais contribuições de La Salle para a Educação e a
Administração Escolar. O que se observa é que este educador é poucas vezes estudado neste
ambiente, conforme constatei ao analisar as obras de referência e as produções científicas a
respeito. Trata-se, portanto, de uma oportunidade de se trazer à discussão suas idéias, para que
elas possam ser conhecidas, questionadas, adaptadas e, ressalvados os seus limites, contribuir
com esta área do conhecimento. Além disso, elas podem somar-se à vasta teoria e prática
existentes, ajudando os educadores no aperfeiçoamento de seu trabalho.
Esta pesquisa também pode contribuir para a reflexão que hoje se faz sobre a questão
do afeto na escola, amplamente explorada pela bibliografia corrente. Sob a denominação de
“pedagogia do amor” ou outras expressões e termos afins, os profissionais da Educação têm
discutido esta postura, como podemos observar em diversas obras publicadas recentemente.
Parece ser lógico e evidente que este é um aspecto essencial de quem exerce o papel de
educador.
Por outro lado, a Educação fundamentada no afeto não pode abdicar de outras
questões essenciais e inerentes ao processo educativo, tais como: a aprendizagem
propriamente dita, envolvendo a aquisição e a produção dos conteúdos mínimos do
conhecimento humano; as possibilidades e os limites da convivência comunitária escolar; a
disciplina e o mínimo de ordem e organização da classe e da escola, necessários à
sistematização da aprendizagem; entre outros. A pedagogia do amor ou do afeto, sozinha, não
resolve toda a problemática educacional e não pode ser considerada panacéia indispensável.
Neste sentido, uma das grandes contribuições de La Salle, conforme trataremos no
decorrer do trabalho, foi exatamente a de exigir – ao lado do afeto – uma escola extremamente
organizada para a convivência respeitosa e para o aprendizado, propondo o equilíbrio entre
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duas tendências, que ele, convergentemente denominou de “firmeza” e “ternura”. É relevante,
portanto, que esta obra seja melhor estudada e criticamente analisada.
Há ainda que se ressaltar a característica de interdisciplinaridade desta pesquisa, que,
embora parta de uma realidade educacional, também enfocará, pela natureza do objeto de
estudo, a área da Administração Escolar e a da Comunicação.
De maneira concisa, poderíamos dizer que La Salle criou um tipo de escola voltada,
sobretudo, para os meninos pobres de sua época. O seu objetivo inicial, portanto, foi o de
trabalhar com a Educação de crianças. Para isso, teve que reunir um grupo de pessoas que
quisessem trabalhar com ele neste mesmo projeto. Este grupo, originalmente sem preparo
para a tarefa da Educação, teve uma série de atividades de orientação para começar a atuar.
Concomitantemente, La Salle foi abrindo as escolas e formando os seus professores.
Sua orientação para o funcionamento das escolas e sua organização foi sendo construída pela
prática, como podemos constatar pelo conjunto de sua obra. Para garantir a formação de todos
os professores para suas escolas, La Salle foi registrando, a partir dessa realidade e dessa
experiência, o que veio a se tornar uma de suas grandes obras escritas sobre Educação: o
objeto de estudo desta pesquisa. A leitura desta obra, em particular, revela profunda
interdisciplinaridade: além de especificar conteúdos e procedimentos dos professores, aborda
questões de currículo, de organização e de administração da escola, com uma riqueza de
detalhes, previsão e precisão, marcadamente com influência cartesiana.
Além das obras escritas, o acompanhamento dos seus professores era feito através de
contatos pessoais, reuniões e encontros coletivos, visitas freqüentes às suas escolas e também
através de inúmeras cartas, enviadas com orientações bem precisas e objetivas sobre a
condução das escolas. Além disso, o Guia vai apresentar uma série de procedimentos práticos
de uso de uma linguagem simbólica, por códigos, por cartazes, por gestos, por livros e outros
recursos que sugerem um grande esquema organizacional de caráter semiótico. Neste sentido,
a opção de abrir escolas, organizá-las e administrá-las, acompanhando os professores,
orientando diversos procedimentos, contemplam, objetiva e interdisciplinarmente, as três
grandes áreas citadas acima.
As entidades que nasceram com a obra de La Salle têm, como data oficial de seu
surgimento, o ano de 1680, na França. Posteriormente, essa sociedade foi formalmente
incorporada à estrutura da Igreja Católica, como congregação religiosa, composta
exclusivamente por Irmãos Religiosos, não por Sacerdotes ordenados. A partir desta
oficialização, esses professores passaram a chamar-se de Irmãos e, ao longo de sua história,
de Irmãos Lassalistas, por referência ao seu primeiro líder. Tais Irmãos chegaram ao Brasil
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em 1907, na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, e constituíram uma rede de escolas
de diversos níveis, que hoje se encontram espalhadas por diversos estados do país e contam
com a atuação de maioria leiga.
Ao longo dessa história, vários educadores lassalistas já estudaram, analisaram
escreveram e registraram diversos aspectos da obra lassalista como um todo. Também
sustentam esta investigação, embora não formalmente, as informações colhidas de contato
direto com diversos educadores lassalistas – Irmãos e leigos – de diversas cidades do Brasil,
que exercem a função de diretores, coordenadores e professores nas escolas desta rede privada
de escolas confessionais.
Na estrutura acadêmica brasileira, ainda são poucos os pesquisadores que se
debruçaram sobre La Salle, seja sobre sua biografia ou sobre sua obra educativa. Em nossa
pesquisa, encontramos alguns poucos, mas significativos trabalhos específicos sobre o criador
das Escolas Cristãs.
O primeiro destes trabalhos é de autoria de Henrique Justo, Doutor em Pedagogia e
Livre-docente em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS), de Porto Alegre. Em sua tese de Doutorado, denominada “La Salle, Patrono do
Magistério”, o autor nos apresenta um estudo detalhado sobre La Salle, enfocando, em quatro
partes, a biografia, a bibliografia, as idéias educacionais e o crescimento da obra de La Salle
no mundo. Pela relevância de sua pesquisa, o trabalho foi convertido em livro homônimo e,
em 2003, atingia sua quinta edição.
Também merece ser citada a significativa pesquisa de Edgard Hengemülle, “La Salle:
uma leitura de leituras”, como dissertação de Mestrado, defendida na Universidade do Vale
do Rio dos Sinos (UNISINOS), em São Leopoldo, Rio Grande do Sul. Tal pesquisa apresenta
uma leitura feita por seu autor das leituras que autores ligados à História da Educação e da
Pedagogia fazem do educador e pedagogo João Batista de La Salle.
Também publicada em livro, esta pesquisa apresenta uma detalhada e riquíssima
síntese do que os autores falam, em seus textos, sobre La Salle, do lugar onde o situam no
tempo histórico e na História da Educação e da Pedagogia. Em seguida, o autor confronta essa
fala com os escritos autobiográficos de La Salle e textos de seus primeiros biógrafos. Trata-se,
conforme pudemos constatar, de um aprofundado e rico estudo sobre o que se diz de La Salle,
nas obras que tratam de História da Educação ou da Pedagogia.
O estudo conclui recolhendo os avanços na compreensão do personagem provenientes
da pesquisa, e propondo pistas sugeridas por ela para futuros autores sobre La Salle e para
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quem se interessa em promover o estudo e a continuidade da obra desse educador e pedagogo.
Uma das sugestões proposta é exatamente a de estudo e análise do Guia das Escolas.
Já Léo Inácio Knapp enfoca “O aluno nos escritos de João Batista de La Salle”, em
sua pesquisa de Mestrado, também realizada na UNISINOS. Tal trabalho pesquisa a temática
do aluno a partir de escritos de João Batista de La Salle, realizados em conjunto com os
primeiros Irmãos das Escolas Cristãs, procurando resgatar elementos importantes da
pedagogia lassaliana, relacionados a este tema. O texto apresenta a realidade histórica e
cultural, buscando compreender o período dos séculos XVII e XVIII, fazendo uma leitura
deste momento e sua configuração política, social, econômica, religiosa, e as influências
destes sobre o novo imaginário educativo que vai surgindo, e qual foi a contribuição de La
Salle para este momento importante e significativo da história da Educação.
O autor defende que, neste momento histórico, surge uma valorização maior da
infância e da criança e, atento a esta realidade, La Salle efetivamente dá sua contribuição,
através da fundação de Escolas Cristãs, inserindo-se no movimento de renovação da escola,
na qual o aluno ocupa sempre mais a centralidade do processo pedagógico-educacional.
Um outro enfoque é dado por Davi Denis Dalla Vecchia, em sua dissertação de
Mestrado, realizada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), na área de
Teologia, com o título de “Educar para bem viver em São João Batista de La Salle”. Esta
procura apresentar como a proposta educativa de La Salle supera a dicotomia clero versus
leigos existente na Igreja da época, ao considerar o “Ministério Educativo Laical com a
mesma dignidade e importância do Ministério Eucarístico, no processo de salvação”.
O autor defende que, para La Salle, os mestres são Ministros e Embaixadores de Jesus
Cristo e a tarefa educativa deveria ser considerada uma das vocações mais importantes da
Igreja: educar para bem viver. Por isso, segundo Davi, La Salle instituiu o Amor como
fundamento da sua Pedagogia, centro de todo o verdadeiro processo educativo. Por este
princípio, acreditava ser possível chegar a uma consciência madura, com uma mensagem
redentora para qualquer área da experiência humana.
Aliado ao princípio do amor pedagógico, La Salle propôs o conhecimento individual
profundo do aluno, o respeito ao ritmo de maturidade e a progressão da aprendizagem. A
escola é o meio mais adequado encontrado por La Salle para possibilitar a compreensão da
Revelação de Deus, que é processo de crescimento em humanidade. Deve supor a Educação
dos desejos e o sonho da humanidade que quer se humanizar, que reconhece os limites de sua
condição humana e que espera superar suas dificuldades.
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Ainda que este enfoque seja de caráter teológico, o trabalho apresenta elementos
importantes e significativos a respeito da postura do professor frente ao aluno e seu trabalho
educativo, que merecem ser considerados.
Também pela UNISINOS, Marcos Antônio Corbellini pesquisou sobre “A Proposta
Educativa dos Irmãos Lassalistas de 1971 a 1990”. O objetivo básico desta dissertação de
Mestrado foi realizar um estudo crítico da “Proposta Educativa Lassalista”, documento que
expressa o pensamento educacional e as orientações educativas das escolas pertencentes à
Província Lassalista de Porto Alegre, região administrativa que agrupa certa quantidade de
Escolas La Salle. Esta Proposta Educativa, segundo informações do autor, foi elaborada ao
longo de vinte anos, tendo como eventos geradores os encontros anuais das Comunidades
Educativas Lassalistas, realizados de 1971 a 1990. Também afirma que o estudo é de natureza
histórico-filosófica e, por esta razão, se analisa o processo de elaboração da Proposta e o seu
conteúdo, em referência ao contexto social e eclesial no qual ele ocorreu, tendo como pano de
fundo a proposta educativa original dos lassalistas, que remonta ao seu fundador, João Batista
de La Salle.
O conteúdo é estudado a partir das concepções de homem, de sociedade e de Educação
contidos tanto na Proposta como nos dois documentos que a precederam, isto é, as Linhas
Fundamentais de Orientação das Comunidades Educativas Lassalistas (chamado muitas vezes
de Filosofia Básica Lassalista) e o Marco Referencial. O autor buscou perceber a relação
dialética entre o processo de elaboração e o conteúdo da Proposta, com atenção especial para
os paradigmas e as referências subjacentes, registrando a pluralidade de representações
presente entre os participantes do processo, chegando-se à elaboração de uma proposta clara,
coerente e bem fundamentada.
O surgimento das escolas lassalistas, na França, com La Salle e seus primeiros
educadores, também foi objeto de estudo deste mesmo pesquisador, em sua tese de Doutorado
em Educação, pela UNISINOS. Neste trabalho, denominado “A Sociedade das Escolas
Cristãs na França, de 1679 a 1719: contribuição para novos olhares sobre sua origem”, o autor
analisa a origem da Sociedade das Escolas Cristãs, no período de 1679 a 1719, na França,
como obra coletiva do grupo de professores leigos e La Salle.
Pretende resgatar a contribuição desses primeiros professores no processo de
constituição dessa Sociedade. Essa contribuição é analisada a partir das práticas culturais
características de sua época, bem como dos discursos falados ou escritos, das resistências,
apropriações e reelaborações que contribuíram para a criação dessa sociedade.
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Ao que tudo indica, Corbellini quis evidenciar, neste trabalho, que, apesar da
indiscutível liderança de La Salle, as Escolas Cristãs e a Sociedade que as mantinha nasceu de
um esforço coletivo, construído gradativamente, passo a passo, assumindo riscos e desafios.
Em síntese, a tese defendida parece ser a de que La Salle, na história da Sociedade das
Escolas Cristãs, não pode ser considerado isoladamente, mas como líder de um grupo que,
enquanto grupo, sustentou a criação e a permanência dessa sociedade.
Também merece destaque a extensa e detalhada obra de Ivo Carlos Compagnoni, em
que apresenta a “História dos Irmãos Lassalistas no Brasil”. Embora a referida obra não tenha
caráter acadêmico, deve ser mencionada por apresentar os herdeiros daquela Sociedade das
Escolas Cristãs desde que chegaram ao Brasil, em 1907, até o ano de 1980. Com descrições
históricas, cronologia e fotos, a obra apresenta um panorama abrangente sobre a presença da
obra de La Salle em nosso país.
Com a contribuição destes trabalhos, e de vários outros, apresentados posteriormente
na bibliografia, para a realização desta pesquisa, busquei o texto integral do Guia das Escolas
Cristãs. Ao buscar este livro, pude ter acesso à tradução oficial do Instituto dos Irmãos das
Escolas Cristãs em língua espanhola, publicada em 2005, que, com a supervisão de uma
especialista na área, Cristiane Bastos Martinez, transcrevi para a língua portuguesa, para as
citações deste trabalho.
Não pretendo, aqui, abranger toda a possibilidade de análise do Guia das Escolas; por
isso, os limites desta pesquisa devem ser explicitados, uma vez que encontramos alguns
significativos, que merecem esclarecimentos. A obra lassaliana estudada reflete uma realidade
educacional, muito diferente da nossa, em diversos aspectos. Poderíamos concluir, em
princípio, que o objetivo desta pesquisa já poderia ter nascido anacrônico: como uma obra de
três séculos atrás poderia contribuir para a nossa realidade educacional, tão complexa e
diferente? Realmente considero que este poderia ser um entrave à realização desta pesquisa.
Entretanto, não se trata de simplesmente transplantar uma realidade para outra, mas de
analisar os princípios subjacentes a um texto (nascido de reflexões teóricas e práticas), que
talvez possam ser perfeitamente considerados na atualidade, desde que devidamente
analisados. É o que esta pesquisa pretende. Ler um texto como este, elaborado entre 1706 e
1720, com os olhos e a bagagem que temos, no século XXI, não poderia ser adequado nem
chegaríamos a conclusão nenhuma. Portanto, ao redigir o presente trabalho, o enfoque foi –
ressaltamos – nos princípios propostos por La Salle e que, dada a nossa realidade educacional,
a priori poderiam ser levados em consideração, ainda hoje.
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Outra limitação que reconheço nesta pesquisa é a da língua da qual se partiu para a
crítica ao texto, originalmente redigido em francês. Tal dificuldade, de caráter semântico,
pode ser relativizada, quando observamos que a tradução utilizada foi resultado de um
minucioso estudo de especialistas em La Salle e em Lingüística, na Espanha, conforme
especificado na edição que tivemos acesso. A própria apresentação do texto em versão
espanhola explicita o rigor da tradução, feita a partir do manuscrito original de La Salle de
1706.
A terceira limitação desta pesquisa diz respeito ao fato de que ela não pretende, nem
pode, fazer uma análise completa e definitiva deste texto, pois o enfoque dado ao trabalho de
pesquisa, como o atestam diversos estudiosos contemporâneos, vem contaminado com os
olhos do investigador. Saliento que meu contato com a obra de La Salle se deve ao fato de ter
trabalhado, nos últimos anos, nesta rede de escolas, motivo pelo qual minha opção de enfoque
foi sobre o texto original de La Salle, não sobre suas obras nem nas escolas lassalistas da
atualidade. Trata-se, portanto, de uma análise textual, com perspectiva crítica e investigativa.
Outra limitação que pode ser aludida é a da linguagem religiosa empregada ao longo
da pesquisa. Saliento, portanto, como já o assinalei anteriormente, que esta pesquisa seria
impossível sem utilizar as expressões textuais, de caráter religioso, presentes no Guia das
Escolas. Há, sim, uma linguagem com termos que remetem à religiosidade católica, francesa,
dos séculos XVII e XVIII. É óbvio que um trabalho de investigação científica deve ser, o
quanto possível, isento de ideologias, ainda que muitos estudiosos ressaltem que esta postura
seja impossível. A intenção desta pesquisa, friso novamente, está na análise de um texto, não
numa intenção pessoal, de minha parte, em fazer apologia de uma dada postura religiosa.
Este trabalho, portanto, feitas as considerações anteriores, está dividido em partes,
conforme explicitado a seguir, de maneira a apresentar a investigação realizada a partir de
revisão bibliográfica.
No Capítulo I, apresentarei a pessoa de João Batista de La Salle. Primeiramente,
enfocarei a realidade social em que viveu, procurando apresentar um panorama que possa
situá-lo no contexto de sua época e de sua cultura. Em seguida, apresento sua realidade
pessoal, com os dados biográficos mais significativos e relevantes para que se possa
contextualizar esta pesquisa. Neste capítulo também estará presente a indicação histórica do
surgimento da Sociedade das Escolas Cristãs e, numa visão sintética, como esta instituição
está organizada nos dias de hoje, no mundo, na América Latina e no Brasil.
Nos capítulos II, III e IV, apresentarei, em cada um deles, cada uma das partes em que
o Guia está dividido. Em cada uma dessas partes, optei por transcrever literalmente as
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passagens mais significativas, na seqüência em que se encontram no texto original; isto
significa que haverá um número acentuado de citações do Guia. Além das citações literais, em
algumas partes, devidamente assinaladas nas notas de rodapé, farei algumas citações indiretas,
procurando resumir e/ou apresentar uma visão de conjunto do trecho estudado. Ao longo
dessas citações, apresentarei uma análise crítica do exposto, fundamentado em autores que
tratam de temas afins e em minhas convicções pessoais acerca da Educação. Tais comentários
e observações sempre convergirão para o objetivo inicial da pesquisa: analisar o conteúdo do
Guia e verificar, em que medida e de que maneira, ele pode ter vigência na atualidade. Tais
autores foram escolhidos em função do caráter do tema em questão, levando-se em conta
minha realidade e o contexto pessoal.
Considerando que La Salle trabalhava com imagens e esquemas – o que evidencia a
dimensão da comunicação visual – também incluirei, ao longo do texto, tabelas, quadros e
imagens que julgo contribuírem para esclarecer e enriquecer alguns aspectos da pesquisa, bem
como proporcionarem uma visão mais abrangente e sintética de determinadas passagens.
No Capítulo V, trarei as indicações das obras escritas por La Salle. Em especial, um
estudo sobre o Guia das Escolas Cristãs, o seu surgimento, a sua elaboração, as suas partes e
uma visão geral de seu conteúdo e de sua parte introdutória, bem como de alguns comentários
feitos por outros pesquisadores acerca do conteúdo desta obra. Neste capítulo também tecerei
algumas considerações a respeito da evolução do Guia e citarei algumas de suas limitações e
possibilidades de aproximação com outros textos contemporâneos.
Na conclusão, procurarei apontar as considerações a que esta pesquisa me levou, e se
ela atingiu os objetivos a que me propus, procurando explicitar de que maneira e com qual
intensidade.
Retomo, aqui, a idéia que me fez iniciar este trabalho de investigação científica; a de
que a Educação não pode ter um único enfoque, a de que ela tem muito que resgatar do
passado, transformar o presente e melhorar o futuro. A intenção desta pesquisa, portanto, se
assenta nesta idéia-convicção, que, como pesquisador, mas, sobretudo como educador, me
levou a dar esta breve contribuição, exposta no texto a seguir.
20
Capítulo I – La Salle e seu contexto
Exatamente porque nós somos mais do que
conhecemos, a ciência jamais poderá abranger a
totalidade do Ser.
William Irwing Thompson1
Para investigar o Guia das Escolas, obra escrita por La Salle, em suas dimensões
educacionais, administrativas e comunicativas, é preciso conhecer alguns aspectos básicos e
essenciais de sua biografia e o que o levaram a constituir uma das grandes organizações
educacionais da atualidade.
Optei por fazer uma cronologia histórica, apresentando, por datas, as principais
ocorrências em sua vida, o que facilita a compreensão de seu trabalho. Antes, porém, de tratar
da biografia pessoal de La Salle, é preciso apresentar a realidade história e contextual em que
La Salle viveu, sabendo que, “se é verdade que a reconstrução do tempo histórico se faz a
partir de critérios e interesses vinculados à época e à sociedade do historiador, e que nesta
reconstrução interferem as peculiaridades próprias do historiador, pode-se afirmar que não
existe um conhecimento do passado inteiramente puro. Todo ele traz a marca ideológica de
quem o gera”2. Ciente desta realidade, enfoco apenas alguns aspectos históricos, não todos,
que podem contribuir para a compreensão de quem foi La Salle e do que fez.
1. A realidade social vivida por La Salle3
O fim do século XVII e começo do século XVIII, na França, foi uma fase que assinalou
de forma intensa a civilização ocidental, pela passagem do fim da Idade Média, e de um
período de regime monárquico absolutista. A figura que comanda o panorama no país mais
populoso, mais rico e mais católico da Europa é a do Rei Luís XIV.
Na França, apesar de tardia, estava em total inserção a Contra-reforma Católica,
começada mais de um século antes pelo Concílio de Trento. Essa reforma dava prioridade à
lealdade aos dogmas católicos que deviam ser sabidos pelo povo, à constituição do clero
secular, à especialidade do clero regular, à atuação nos ritos sacramentais, à subordinação à
autoridade como representante de Deus. Houve os enfrentamentos com a Reforma Protestante
1
William Irwing Thompson. Prefácio. In: Gaia: uma teoria do conhecimento. 3. ed. Trad. bras. São Paulo: Gaia,
2001, p. 9.
2
Edgard Hengemülle. La Salle: uma leitura de leituras. Canoas: Editora La Salle, 2000, p. 28.
3
Cf. Proposta Educativa da Província Lassalista de Porto Alegre, Anexo 1.
21
e Calvinista, e que o rei buscou solucionar pela anulação do Edito de Nantes (publicado em 13
de abril de 1598 e revogado em 1685) e pela força.
Poder civil e religioso agiam com um intuito comum de cristianização do povo, ainda
com pertinências e encargos diferentes em certos campos, como o assistencial. Estava em
efetivação um projeto de aculturação do povo pela elite, cujo fim acontecerá na Revolução
Francesa e cujo êxito é pelo menos questionável. Projeto que usava todas as formas
institucionais que existem, entre os quais as escolas, que cada paróquia devia ter e conservar.
A vida de João Batista de La Salle (1651-1719) acontece, na sua maioria, durante o
reinado de Luís XIV. La Salle tem apenas três anos, quando, em sua cidade natal, na famosa
Catedral de Reims, o Rei Sol foi coroado. A partir desta data, a alta sociedade francesa viverá
sob a influência deste monarca, que se tornou um dos focos de maior influência política da
Europa.
O campo da educação, em toda a Europa, principalmente na França, deixava bastante a
desejar, tanto em quantidade como em qualidade. Não havia atendimento aberto e organizado
por parte do governo à educação, muito menos o preparo adequado de professores para esta
tarefa. A educação da época era acessível somente aos que possuíam condições econômicas e
sociais.
Este período histórico vivido por La Salle foi convulsivo em toda a Europa: guerras,
fome e epidemias, conflitos religiosos, alianças políticas, religiosas e militares. Também foi
um momento de explosão científica e cultural. A mobilidade social se dava em direção
horizontal, dentro de um mesmo nível. A mobilidade vertical era muito pouco freqüente, pois
as camadas sociais eram quase que impenetráveis. O quadro a seguir ilustra a realidade social
francesa dessa época:
NÍVEL
PRIMEIRO ESTADO
SEGUNDO ESTADO
TERCEIRO ESTADO
Primeiro
Alto Clero dos
grandes monastérios
Nobres da Corte, de
Espada e de Herança
Nobres de toga, alta
burguesia, magistrados
e parlamentares
Segundo
Bispos de monastérios
menores e paróquias
das cidades
Nobres rurais
Média burguesia
e negociantes
Terceiro
Baixo Clero
Nobres que trabalhavam
Artesãos, comerciantes,
campesinos, pobres,
miseráveis e indigentes
Quadro 1 – Sociedade francesa na época de La Salle 4
4
Adaptado de Alfredo Morales. Espíritu y vida: el ministerio educativo lasallista. Tomo I. Trad. Esp. Bogota:
Monserrate, 1990, p. 25.
22
A família La Salle situava-se no primeiro nível do segundo estado, ou seja, gozava dos
privilégios de ser da nobreza da corte (por parte de pai) e de herança (por parte de mãe). Mas
a realidade da maioria da população era diferente. Sobre esta realidade, apresentaremos, a
seguir, uma descrição a partir de dados de um estudo de Alfredo Morales, que aponta as
principais características da sociedade francesa da época, sobretudo em relação à realidade
que seria atendida pelas escolas de La Salle. 5
No século XVII, estima-se que a população francesa fosse de vinte milhões de
pessoas, sendo que a maioria, por volta de 80%, vivia no campo. A expectativa de vida era
muito baixa: de cada 100 crianças, 25 morriam antes de completar um ano de idade; 36
morriam antes dos seis anos; 25 morriam antes dos 19 anos; e somente 50 passavam dos 20
anos. Por volta de 45 anos de idade, tanto os homens como as mulheres, eram considerados
velhos.
As crianças são percebidas como uma força de trabalho desde os sete anos de idade, e
encaradas como se fossem “adultos em miniatura”. Somente em 1698, o Rei Sol promulga um
Edito, proibindo o trabalho a menores de 14 anos, para que possam freqüentar as escolas.
Mas, em sua maioria, não irão, pois os pais necessitam dos filhos para trabalharem com eles
em suas ocupações, tanto na zona rural como na urbana. La Salle vai trabalhar
insistentemente, sobretudo junto aos pais, para que as crianças de suas escolas as freqüentem
regularmente, sem ausências ou abandono dos estudos. No documento que analisaremos, La
Salle dedica uma boa parte para tratar dos motivos e das possíveis soluções para se evitar a
ausência dos alunos nas suas escolas.
As cidades principais, em geral, possuíam um hospital ou um orfanato. Nestas
entidades, havia um espaço, denominado “Casa de Caridade”, que abrigava meninas e
meninos abandonados, e lhes dava alguma instrução escolar, em geral voltada exclusivamente
para o aspecto religioso.
Em cada paróquia havia um espaço para os pobres, que só poderiam receber auxílio e
esmolas se tivessem um registro especial, em alguma corporação atestada pelo governo, para
poderem fazer jus à ajuda. Mais adiante veremos que este registro, que, em última análise,
atestava a pobreza de uma criança, era exigido para que pudesse receber certas gratuidades;
nas escolas que La Salle iria criar, ele dispensou a necessidade da apresentação desse
documento, o que lhe causou a perseguição dessas corporações.
5
Alfredo Morales. Espíritu y vida: el ministerio educativo lasallista. Tomo I. Trad. Esp. Bogota: Monserrate,
1990, p. 23-41.
23
Para La Salle, a escola deveria ser custeada por uma organização (ele optou pelas
doações particulares e pela Igreja), mas totalmente gratuita a todas as crianças, sem distinção
de classe social. Na estruturação posterior de suas escolas, que deu origem a um instituto
educacional, está a fundamentação e o objetivo dessa entidade, que hoje – com a linguagem
religiosa que lhe é característica – assim se define:
São João Batista de La Salle, atento (...) ao desamparo humano e espiritual dos
filhos dos artesãos e dos pobres, se consagrou à formação de professores de
escola, inteiramente dedicados à instrução e educação cristã. Reuniu estes
professores em comunidade e fundou com eles o Instituto dos Irmãos das Escolas
Cristãs. (...) O fim deste Instituto é procurar educação humana e cristã aos jovens,
especialmente aos pobres. 6
Com relação à realidade educacional, propriamente dita, o Rei Luís XIV tinha um
interesse especial na educação cristã das crianças francesas, sobretudo como forma de refazer
a unidade nacional, arranhada pelas guerras anteriores. Por isso, a partir do Edito Real de
1665, o estado francês passou, formalmente, a incentivar a abertura de escolas populares,
custeadas pelos impostos pagos pelos habitantes das cidades. La Salle não aderiu a esta
estrutura e preferiu abrir suas escolas, sobretudo com o custeio das paróquias; somente abria
sua escola, quando uma paróquia assumia seus gastos.
Ressalte-se que Luís XIV teve uma atuação favorável em relação às escolas de La
Salle, solicitando explicitamente os seus serviços educacionais em pelo menos duas ocasiões:
uma escola para marinheiros do Porto de Calais e um Internato para cinqüenta jovens
irlandeses, acolhidos pela França. Além disso, quando a Rainha Maria Teresa faleceu, em
1683, no mesmo ano, o Rei se casa com Madame de Maintenon, que ajudará La Salle e os
primeiros Irmãos a partir de 1697, sobretudo no período em que estes sofrerão intensa
perseguição dos demais professores de escolas privadas da época, reunidos numa poderosa
entidade denominada Corporação dos Mestres Calígrafos.
Convém ressaltar que o nível universitário, nesta época, estava bem estruturado, sendo
que as universidades tinham sua origem na forte estruturação eclesiástica, ligada ao alto clero.
Nessas universidades se ensinavam as clássicas Artes Liberais, Teologia, Direito e Medicina,
agrupados sob a comum expressão de Faculdade de Teologia. La Salle fez seus estudos na
Universidade de Reims (1670) e na Universidade de Sorbonne, em Paris (1670-1672).
6
Instituto de los Hermanos de las Escuelas Cristianas. Regla de los Hermanos de las Escuelas Cristianas. Roma:
Hermanos de las Escuelas Cristianas, 2005, p. 23.
24
Os colégios secundários surgiram a partir dessas universidades e foram sendo
mantidos e custeados pelos bispos e ricos senhores da nobreza da época. Várias congregações
religiosas também assumiram este tipo de escola, sobretudo os jesuítas. Entre 1548 e 1763,
data de sua expulsão da França, os padres jesuítas chegaram a ter dois terços de todos os
colégios secundários do país.
Já a educação fundamental, para as crianças, não tinha essa organização e estrutura.
Nesse período, a imensa maioria das crianças está fora de todo o sistema escolar. Segundo
Henrique Justo, havia, nessa época, na França
dois tipos de escolas populares: as de caridade e as pequenas escolas. As primeiras
somente existiam nas vilas maiores e nas cidades. Seu funcionamento oscilava de
acordo com o termômetro das possibilidades financeiras da paróquia, da entidade
ou do benfeitor que as mantivesse. As pequenas escolas aceitavam alunos dos seis
aos nove anos. O ensino era pago. Toda escola tinha obrigação de receber certo
número restrito de alunos gratuitos. Estes deveriam apresentar humilhante
certificado de indigência, requisito que afastava não poucos deste tipo de escolas,
preferindo as de caridade ou optando por ficar na ignorância. Para as classes mais
bem situadas economicamente, havia as escolas de gramática. Preparavam ao
ingresso nos colégios e na universidade.7
Morales também apresenta algumas das características dessas escolas de educação
fundamental, que funcionavam desta forma:
a) Um professor, autorizado pelo poder eclesiástico, habilitava um quarto ou sala em
sua casa, ou alugava um local; em geral, sem as condições mínimas de higiene, ventilação e
iluminação.
b) Considerando esta realidade física, não havia pátios ou outros espaços de
convivência dos alunos, pois os locais geralmente eram muito pequenos; além disso, esta não
era uma preocupação do professor, porque não havia horário para descanso ou recreio.
c) Todos os alunos ficavam juntos, reunidos neste mesmo quarto ou sala,
independentemente da idade ou do nível de conhecimento que possuíam.
d) Este quarto ou sala, em geral, não tinha mobiliário específico ou adequado à sua
função escolar ou de ensino.
e) O ensino era individual, ou seja, o professor atendia um aluno por vez, enquanto os
demais aguardavam o seu momento de serem atendidos.
7
Henrique Justo. La Salle, Patrono do Magistério. 5. ed. Porto Alegre: Salles Editora, 2003, p.211.
25
A esta realidade, inadequada para um ambiente escolar, La Salle vai responder,
conforme poderemos constatar no texto do Guia das Escolas, com: um espaço adequado, com
salas adaptadas, limpas, ventiladas, iluminadas e mobiliadas para tal; um horário para todas as
atividades, inclusive convivência, recreio e merenda; um sistema de agrupamento dos alunos
por idade e habilidade; um procedimento educativo simultâneo, em que um professor atendia,
coletivamente, o seu grupo de alunos, ou seja, a sua classe.
Ainda sobre as escolas fundamentais, é importante salientar que as instituições
eclesiais começaram a se preocupar com esta realidade. Entretanto essa preocupação deu
lugar à abertura de escolas para as meninas, mantidas por congregações de Irmãs Religiosas.
Embora houvesse algumas escolas para meninos, estas não eram bem organizadas e se
incumbiam, sobretudo, de instrução estritamente com finalidade religiosa, e eram mantidas
por sacerdotes. Além disso, os programas se improvisavam; ao menos até 1654, ano em que
Jacques Bathencourt reuniu sua experiência de dezoito anos numa obra denominada “A
Escola Paroquial”. Entretanto, foram as Escolas Cristãs de La Salle as primeiras que
desclericalizaram esta realidade, pois foram estabelecidas a partir de uma sociedade de
homens leigos, não pertencentes ao clero. Além disso, com o Guia das Escolas, que sofreu
influência de Bathencourt, La Salle sistematizou definitivamente o cotidiano escolar das
crianças.
Neste aspecto, Moacir Gadotti assinala o surgimento das escolas de La Salle e de
outras, ressaltando a sua diferença fundamental entre as que eram mantidas pelos jesuítas e
que, portanto, atingiam as classes mais altas:
Ao contrário da ordem dos jesuítas, surgiram várias ordens religiosas católicas que
se dedicavam à educação popular: a congregação dos oratorianos fundada por
Filipe Néri (1515-1595), a Sociedade dos Irmãos das Escolas Cristãs, fundada por
Jean Baptiste de La Salle (1651-1719), etc. Muitas dessas escolas ofereciam
ensino inteiramente gratuito e na forma de internato. Tratava-se, contudo, de uma
educação puramente filantrópica e assistencialista. 8
A afirmação de que essas escolas eram de caráter filantrópico e assistencialista faz
sentido, pois tinham a nítida intenção de ajudar os pobres nessas circunstâncias, não
necessariamente, de fazê-los transformar a situação em que se encontravam. De qualquer
modo, é preciso salientar que as Escolas Cristãs, de alguma forma e por algum motivo,
8
Moacir Gadotti. História das idéias pedagógicas. 8. ed. São Paulo: Ática, 2002, p. 80.
26
provocaram a ira de alguns setores da sociedade francesa da época, sobretudo dos Mestres
Calígrafos; sendo assim, se o seu caráter fosse exclusivamente filantrópico e assistencialista,
tal embate não teria acontecido.
Maria Lúcia de Arruda Aranha, em sua História da Educação, afirma que, neste
período, uma “tentativa importante de instrução elementar gratuita para os pobres é levada a
efeito por São João Batista de La Salle, que em 1684 funda o Instituto dos Irmãos das Escolas
Cristãs. Sua obra espalha-se nos séculos seguintes pelo mundo, ampliando a área de ação
pedagógica para o ensino secundário e superior e também para a formação dos professores”.9
Esta importante tentativa também ressalta a contribuição dada por La Salle no sentido de
educar os mais pobres de sua sociedade, que, em princípio, não eram merecedores da ação
educativa. Quem o afirma é Rousseau:
O pobre não precisa de educação; a de sua condição é obrigatória, não poderia ter
outra. Pelo contrário, a educação que o rico recebe por sua condição é a que menos
lhe convém, tanto para ele mesmo quanto para a sociedade. De resto, a educação
natural deve tornar um homem próprio para todas as condições humanas; ora, é
menos razoável educar um pobre para ser rico do que um rico para ser pobre, pois,
proporcionalmente ao número de pessoas nas duas condições, há mais arruinados
do que novos ricos. 10
A realidade cultural da época também está bem dividida. Havia a cultura eclesiástica, a
que estavam ligados todos os pertencentes ao primeiro nível, dos três estados sociais. Tratavase de uma cultura do livro; e do livro cristão, sobretudo, pois mais de 50% das obras
impressas tinham esta temática religiosa. A cultura eclesiástica se distanciava da cultura
popular, que, embora tivesse influência eclesial, tinha suas próprias crenças e maneiras de ver
a realidade. Além disso, era uma cultura de um grupo imenso de pessoas que não sabiam ler
nem escrever, cujos pais e filhos eram analfabetos, sem nenhum espaço próprio cultural
letrado. É para essas pessoas que La Salle vai direcionar os serviços de suas escolas, “optando
por clientela popular, criando programa popular, preparando professores para a clientela
popular e contribuindo para uma cultura de tipo popular”11, que pudesse ter acesso à cultura
letrada, mas mantendo sua especificidade popular.
Assim, Franco Cambi, em sua História da Pedagogia, nos apresenta La Salle: “No
terreno da educação do povo, as iniciativas de maior relevo são as de Jean Baptiste de La
9
Maria Lúcia de Arruda Aranha. História da Educação. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1996, p. 111.
Jean-Jacques Rousseau. Emílio ou Da educação. Trad. bras. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 30-31.
11
Edgard Hengemülle. La Salle: uma leitura de leituras. Canoas: Editora La Salle, 2000, p. 72.
10
27
Salle que, como outros sacerdotes franceses da época, promove a fundação de escolas
populares, organizadas segundo uma rígida disciplina. (...) O ensino, para ser dado a todos,
deve ser obrigatório e gratuito e conduzido por docentes altamente preparados”. 12 E estes são
os princípios educacionais que vão orientar toda a obra e atuação de La Salle e dos primeiros
professores: ordem, disciplina, universalidade, gratuidade, qualidade e boa formação de
professores.
Importante, também, é que este período viu o surgimento de grandes pensadores em
diversas áreas. Dentre os franceses, destacamos: René Descartes (1596-1650), autor da
importante obra “Discurso sobre o Método”, que influenciou todo o pensamento ocidental e,
inclusive, o próprio La Salle, que teve suas obras nitidamente marcadas pelo pensamento
cartesiano, metódico e sistemático; Blaise Pascal (1623-1662), que contribuiu com a
matemática moderna e a geometria analítica; La Fontaine (1621-1695), conhecido por suas
famosas fábulas de caráter moralista; Molière (1622-1673) e Racine (1639-1699), grandes
autores de peças teatrais; e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), escritor e filósofo,
considerado, por muitos, o Pai da Pedagogia, sobretudo por sua obra “Emílio ou Da
educação”.
Além destes, especificamente na área da Educação, cabe citar a figura de Carlos
Rollin, nascido em Paris, dez anos depois de La Salle. Aos trinta e três anos de idade foi
nomeado Reitor da Universidade de Sorbonne, cargo que exerceu por duas vezes, o que
comprova sua importância como intelectual neste período. Em 1726, publicou, em oito tomos,
uma importante obra sobre educação na época, denominada “Tratado de Educação Pública”.
Nesta, Rollin faz referência a La Salle, conforme observado por José Luis Hermosilla:
“Introduziu-se em Paris, desde há alguns anos, na maioria das escolas para pobres, um método
que resulta muito fácil para os alunos e que poupa muitos esforços aos professores. A escola
está dividida em classes. O primeiro cuidado do mestre é estudar o modo de ser dos alunos e
seu caráter, e regular seu comportamento”13. Este mesmo pesquisador acrescenta que o oitavo
tomo de Rollin retoma, com ligeiras modificações e com linguagem diferente, o conteúdo do
Guia das Escolas, de La Salle.
A economia francesa da época era, em geral, de subsistência, e por isso, precária e
frágil. Colbert, Ministro das Finanças da primeira etapa do reinado de Luís XIV, havia
conseguido dar certa estabilidade ao orçamento nacional francês, mas o rei levou o estado à
12
Franco Cambi. História da Pedagogia. Trad. bras. São Paulo: UNESP, 1999, p. 298-299.
José Luis Hermosilla. Tres contemporaneos de La Salle. IN: Lasalliana 37. Roma: Hermanos de las Escuelas
Cristianas, s/d., p. 45.
13
28
falência na Guerra contra a Holanda em 1682. Para garantir novamente as finanças, o rei
instituiu um imposto per capita e um dízimo, o que provocou uma depressão econômica
geral. O resultado foi uma miséria crescente do povo, sendo que, em 1698, a França passou a
contar com cerca de dois milhões de mendigos.
2. A realidade pessoal de La Salle
É nesta realidade social, limitada pelas contingências históricas naturais, que La Salle
nasce, vive e morre, deixando uma obra considerável para a História da Educação mundial.
Vamos, portanto, analisar o itinerário deste cidadão francês que, a partir de sua condição, foi
construindo grandes opções fundamentais de vida, que proporcionaram a realização de uma
importante obra educativa a favor do povo pobre de sua época.
João Batista de La Salle pertencia a uma família rica, da cidade de Reims. Seu pai,
Luís de La Salle, era Conselheiro de Luís XIV para a região de Reims, e sua mãe, Nicolle
Moêt de Brouillet, era filha de nobres. O casal teve onze filhos, dos quais La Salle era o
primogênito, a saber: João Batista (nascido a 30 de abril de 1651), Remígio (11 de dezembro
de 1652), Maria (26 de fevereiro de 1654), Rosa Maria (29 de fevereiro de 1656), Maria Ana
(2 de fevereiro de 1658), Santiago José (21 de setembro de 1659), João Luís I (15 de fevereiro
de 1663), João Luís II (25 de dezembro de 1664), Pedro (3 de setembro de 1666), Simão (10
de setembro de 1667) e João Remígio (12 de julho de 1670) 14. Destes, Remígio, Maria Ana,
João Luís I e Simão faleceram ainda crianças.
Assim é uma das imagens de La Salle, já na idade adulta, com a roupa adotada pelos
educadores da Sociedade das Escolas Cristãs:
Figura 1 – João Batista de La Salle15
14
Cf. Miguel Prieto. En torno a la familia La Salle-Moët. IN: Lasalliana 49. Roma: Hermanos de las Escuelas
Cristianas, s/d., p. 210.
15
Joseph-Aurélien Cornet. Iconographie de Saint Jean-Baptiste de La Salle. Cahiers Lasalliens 49. Belgique:
Edition Cahiers Lasalliens, 1989, p. 123.
29
A família de João Batista de La Salle era de vivência cristã. Assim, além de João
Batista, mais dois de seus irmãos escolheram a vida sacerdotal e uma das irmãs, a vida
religiosa. De forma sucinta e sintética, estes são os principais dados16 sobre a vida de La
Salle:
- Dia 10 de outubro de 1662: começa a estudar no Colégio dos Bons Enfants, em
Reims, escola mantida pelos Padres Jesuítas.
- Ano de 1662, aos 11 anos, ingressa no Seminário São Sulpício, para ser sacerdote.
- Dia 07 de setembro de 1666: passa a integrar o Grupo de Cônegos da Catedral de
Reims. A função de cônego era exercida por um grupo de sacerdotes que deveriam, ao longo
do dia, em horários específicos, fazer as orações e liturgias oficiais na Catedral. Para este
trabalho, cada cônego recebia um salário específico.
- Dia 10 de outubro de 1667: começa o curso de Filosofia, Lógica e Moral.
- Dia 17 de março de 1668: recebe as ordens menores, tendo em vista o sacerdócio.
- Dia 10 de outubro de 1668: começa os estudos de Física, Metafísica e Teologia.
- Dia 10 de julho de 1669: recebe o título de Mestre em Artes.
- Dia 18 de outubro de 1670: muda-se para Paris e continua os estudos de Teologia.
- Dia 19 de julho de 1671: morre sua mãe, Nicole Moët.
- Dia 09 de abril de 1672: morre seu pai, Luís de La Salle.
- Dia 27 de abril de 1672: por ser o filho mais velho, assume oficialmente a tutela de
seus irmãos.
- Ano de 1678: licenciado em Teologia, assume a orientação da Congregação
Religiosa das Irmãs do Menino Jesus, que se dedicava à educação de meninas pobres.
- Dia 15 de março de 1679: na escola dessas Irmãs, recebe a visita do professor Adrian
Nyel, vindo da cidade de Rouen, com recomendação da Madame Maillefer, prima de La
Salle, para estabelecer, em Reims, escolas para meninos pobres. A referida senhora, da alta
sociedade francesa, fez a doação financeira para sustentar essa obra.
- Dia 15 de abril de 1679: após consulta a diversas pessoas, abre a primeira escola na
Paróquia de São Maurício, em Reims. Assume a denominação oficial de Escola Cristã.
Começa o trabalho com homens do povo, leigos, que quiseram ser professores e participar
deste projeto e que, por sua procedência, traziam os traços predominantes da cultura popular.
Distintamente do clero secular, que atendia, em suas escolas, fundamentalmente, os filhos dos
lavradores, dos empregados públicos e negociantes, a Escola Cristã de La Salle começa a
16
Cf. José Maria Valadolid. Cronología Lasalliana: fechas en la vida de San Juan Bautista de La Salle. Trad.
Esp. Roma: Instituto de los Hermanos de las Escuelas Cristianas, s/d., 1990, p. 9-219.
30
receber os mais pobres, filhos de operários, dos artesãos, dos trabalhadores das cidades e do
campo.
- Dia 02 de outubro de 1679: abre a segunda escola na Paróquia de São Tiago.
- Ano de 1680: recebe o Doutorado em Teologia e, percebendo as improvisações de
Adrian Nyel, La Salle assume a coordenação das pequenas escolas fundadas e passa a dar-lhes
uma orientação e organização próprias.
- Dia 14 de abril de 1680: conscientiza-se de que, sem uma associação solidamente
constituída, a pequena rede de escolas não teria consistência e continuidade; por isso, passa a
receber os professores em sua casa, de manhã até a noite, para prepará-los. Enfrenta
resistências de seus familiares, que se recusam a conviver com pessoas que não são de sua
classe social.
- Dia 24 de junho de 1680: apesar da posição contrária de seus familiares, leva os
professores para morarem na sua casa.
- Mês de outubro de 1680: abre a terceira escola, na Paróquia de São Sinforiano.
- Dia 26 de fevereiro de 1682: abre a quarta escola na cidade de Rethel.
- Mês de junho de 1682: abre a quinta escola na cidade de Guisa.
- Dia 24 de junho de 1682: após pressão dos familiares, deixa sua família e vai morar
com os professores em uma casa alugada. O fato marca, oficialmente, o início desta
sociedade.
- Dia 30 de junho de 1682: abre a sexta escola em Château-Porcien.
- Mês de setembro de 1682: os professores decidem chamar-se Irmãos. Nasce a
Sociedade dos Irmãos das Escolas Cristãs (que viria a ser o Instituto dos Irmãos das Escolas
Cristãs, como são identificados até os dias de hoje). Um dos primeiros biógrafos de La Salle
expressa a importância dessa mudança: “Esta denominação lhes pareceu mais modesta e mais
conforme a vida comum que haviam abraçado. Pôde-se ver, desde então, os efeitos desta
mudança, que não parecia muito na aparência, mas que, sem dúvida, serviu para cimentar a
união que devia reinar entre eles.” 17
- Mês de novembro de 1682: abre nova escola na cidade de Lion.
- Mês de julho de 1683: renuncia às funções de Cônego da Catedral de Reims. Os
professores começam a questionar sobre a segurança da sociedade, temendo perder tudo se
esta não der certo.
17
Francisco Elías Maillefer. La vida del Señor de La Salle. Trad. esp. Bogota: Editorial Stella, 1977, p. 33.
31
- Inverno de 1683-84: inquieto com sua condição de origem nobre e rica, constituindo
uma sociedade desigual, resolve tornar-se pobre como os demais professores, renunciando a
seus bens e distribuindo-os aos pobres, em forma de comida.
- Ano de 1686: alguns professores resolvem fazer um voto especial de consagração a
Deus para permanecerem unidos na sociedade criada. Começa a esboçar-se um instituto de
religiosos dedicado exclusivamente à educação, que, desde seu início até a Revolução
Francesa, contou com doze mil membros, espalhados por mil e trezentas casas, na França e
demais países europeus. Tornou-se, assim, a maior congregação exclusivamente religiosa
masculina católica da época. 18
- Ano de 1690: muitos professores abandonam a Sociedade, por não se adaptarem ao
estilo de vida proposto por La Salle e pelas pressões contrárias que começam a surgir.
Professores de outras escolas, liderados pela Corporação dos Mestres Calígrafos, começam a
manifestar oposição a La Salle e suas escolas, por serem gratuitas e abertas a toda a
população.
- Ano de 1691: juntamente com mais dois professores, faz o que, em sua biografia, se
denomina Voto Heróico, comprometendo-se a garantir a existência da Sociedade, mesmo
diante de todas as complicações.
- Mês de outubro de 1691: junto com os professores, resolve estabelecer a
correspondência mensal para tomada de conta de como estavam andando as escolas. Desta
postura, surgiu uma interessante fonte de pesquisa, denominada “Cartas de São João Batista
de La Salle”, na qual foram registradas e catalogadas, em ordem cronológica, todas essas
correspondências recolhidas.
- Inverno de 1694: mais um inverno desastroso, em que os professores passaram fome.
- Ano de 1698: a pedido do Rei Luís XIV, assume a educação de cinqüenta jovens
irlandeses, cujos pais estavam na miséria. O pedido foi feito ao Rei Sol por Tiago II, Rei da
Inglaterra, refugiado na França. Nesta mesma época, Madame de Maintenon, nova esposa de
Luís XIV, passa a proteger a sociedade criada por La Salle, por causa da perseguição movida
pelos professores das outras escolas pagas. Um dos motivos dessas perseguições foi o fato de
La Salle ter enfrentado “a muito poderosa e influente Corporação dos Mestres Calígrafos,
pois, com uma constância e tenacidade dignas da causa dos pobres que defendia, arrebatou-
18
Cf. A. Galli e D. Grandi. História da Igreja. Trad. port. Lisboa: Paulinas, 1967, p. 258.
32
lhes o monopólio que ostentavam e que marginalizava do universo cultural a um imenso
número de meninos pobres.”19
- Dia 11 de agosto de 1700: institui o que denominou de “Sociedade de Gestão”,
composta por mais professores, para administrar os bens da Sociedade dos Irmãos das Escolas
Cristãs. Até então, essa administração era feita somente por ele.
- Ano de 1701: envia dois Irmãos a Roma, como sinal de fidelidade ao Papa, diante de
facções católicas francesas contrárias ao Pontífice.
- Ano de 1704: os professores de outras escolas pagas exigem o fechamento das
Escolas Cristãs, sendo que a justiça civil lhes dá ganho de causa. O responsável local pela
educação também condena os Irmãos. O motivo das duas condenações é a negação, por parte
das Escolas Cristãs, do controle do estado de pobreza das famílias que lhes enviavam seus
filhos. Este denominado Certificado de Indigência não era solicitado por La Salle para a
freqüência às suas escolas.
- Ano de 1713: desconcerto total na sociedade e grande crise institucional.
- Meses de março e abril de 1714: isola-se na cidade de Parmene, pensando em
abandonar e desistir das escolas. Recebe correspondência dos Irmãos de Paris, solicitando a
sua volta e a reorganização da sociedade e das escolas.
- Ano de 1717: realiza a primeira grande assembléia com todos os Irmãos, na qual se
decide o futuro da sociedade. Tal assembléia denominou-se Capítulo Geral e passou a fazer
parte da organização da sociedade, como evento periódico e instância máxima decisória até os
dias de hoje (em 2007 será celebrado o 44º. Capítulo Geral, em Roma).
- Dia 7 de abril 1719: falecimento, em Saint Yon, aos 68 anos de idade.
A título de resumo, dos principais fatos da vida de La Salle, em relação às Escolas
Cristãs, considero oportuno citar um breve texto de Michel Sauvage, um dos mais importantes
estudiosos da obra lassaliana nas últimas décadas. Assim este autor sintetiza a obra de La
Salle, ressaltando essa aproximação gradativa de um grupo coeso em função de um objetivo
comum:
João Batista de La Salle se viu implicado, primeiramente por casualidade, depois
por decisão sua, no contato cada vez mais próximo com os primeiros educadores
das escolas empregados por Nyel. A partir da visão cada vez mais lúcida que lança
sobre a situação, se dá conta de que as escolas que vão surgindo não produziam
todo o fruto que se havia esperado, porque não se observava uma conduta
19
Alfredo Morales. Espíritu y vida: el ministerio educativo lasallista. Tomo I. Trad. esp. Bogota: Monserrate,
1990, p. 295.
33
uniforme: cada educador seguia seu talento particular sem preocupar-se do que
poderia contribuir para obter mais fruto. Para que tivesse êxito a tentativa remense
das escolas populares, era preciso estabelecer entre os educadores uma
comunidade educativa para começar: com este objetivo, João Batista de La Salle
reuniu os educadores, os fez viverem juntos, lhes ensinou a harmonizar suas
práticas pedagógicas. Acompanhou-os, aproximando-se deles, até os trouxe a
viver em sua casa. 20
Neste sentido, La Salle pode ser considerado, na História da Educação, como um
homem que, embora limitado em muitos aspectos às contingências de sua época, contribuiu
de forma significativa: para a organização da escola como estrutura; para a ordenação da
escola como comunidade; para a compreensão da escola como espaço aberto ao
desenvolvimento dos mais pobres, mas não somente deles; para a escola como espaço
exigente de professores bem capacitados.
Tais atributos, que podem ser confirmados ao longo da análise de sua obra, continuam
a ser importantes para a realidade educacional brasileira e de outros países, pois, de certa
forma e em graus diferentes, esta é uma realidade que ainda questiona as sociedades:
a) Como deve estar estruturada e organizada a escola do Século XXI para atender às
necessidades da população e da sociedade atual?
b) Como fazer para que a escola se constitua um espaço verdadeiramente comunitário
e aberto à participação efetiva de sua comunidade?
c) Como proporcionar um bom processo educacional a todas as crianças, sem
discriminação de qualquer espécie?
d) Como preparar professores para que possam exercer sua profissão de forma
adequada e com qualidade?
Estes questionamentos exigem ações pontuais, tanto hoje como ontem; a estes
questionamentos, La Salle deu algumas respostas, com seu estilo e com sua concepção,
obtendo resultados significativos.
Outra característica sua, que podemos perceber, analisando a atuação que teve junto às
Escolas Cristãs e aos outros professores, é reconhecida da seguinte forma, segundo
Hengemüle:
20
Michel Sauvage. Compreender melhor a associação lassaliana. IN: Lasalliana 49. Roma: Instituto de los
Hermanos de las Escuelas Cristianas, s/d., p. 115.
34
Os autores ligados à História da Educação e da Pedagogia destacam em La Salle
um especial talento organizativo. (...) Concretamente, descrevem-no organizando
o espaço escolar, agrupando racionalmente os alunos, organizando o tempo
escolar, fixando e graduando os conteúdos curriculares, definindo critérios de
promoção, profissionalizando o magistério, desenvolvendo métodos, criando
manuais de ensino e enriquecendo a prática dos registros escolares. 21
Esta sua característica organizativa – por influência de Descartes, como salientamos
anteriormente – será percebida de forma explícita, quando analisarmos a sua mais importante
obra pedagógica, o Guia das Escolas.
É preciso ressaltar, nestes aspectos biográficos, que La Salle, apesar de organizado,
sistemático, metódico e decidido, por várias vezes enfrentou dificuldades e dúvidas, sofrendo
diante de decisões que precisou tomar ao longo de sua atuação frente à Sociedade. Alguns
desses momentos podem ser percebidos numa pequena obra, de sua autoria, denominada
“Memorial sobre as origens”.
Neste breve escrito de três páginas, La Salle descreve alguns fatos do começo das
Escolas Cristãs e da sua sociedade, entre 1679, quando teve seu primeiro encontro com
Adrian Nyel, e 1694, quando enfrentaram uma crise interna e ficaram somente com doze
professores.
Ao transcrevermos alguns trechos deste texto, queremos evidenciar que o projeto
assumido por La Salle não foi concebido de forma completa e definitiva, mas foi resultado de
experiências entre todos os envolvidos. Tais experiências também trouxeram dúvidas e
sofrimentos. É o que podemos perceber, quando ele próprio escreve em primeira pessoa,
reconhecendo, por exemplo, que não tinha a intenção de se envolver demasiadamente com
este projeto de Escolas Cristãs, mas acabou fazendo-o: “Eu pensava que a direção das escolas
e dos professores, que eu ia tomando, seria tão somente uma direção exterior, que não me
comprometeria com eles mais do que a atender seu sustento e a cuidar de que
desempenhassem seu emprego com piedade e aplicação.” 22
Concretamente, o que se percebe é que La Salle tinha outros planos para sua vida, mas
acabou mudando de rota. É ele próprio quem afirma que as Escolas Cristãs não faziam parte
desse plano: “Foram essas duas circunstâncias, a saber, o encontro com o senhor Nyel e a
21
Edgard Hengemülle. La Salle: uma leitura de leituras. Canoas: Editora La Salle, 2000, p. 74.
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo I. Escritos personales. Memorial sobre los orígenes. Trad.
Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 7.
22
35
proposta que me fez esta senhora, pelas quais comecei a cuidar das escolas de meninos.
Antes, eu não havia, em absoluto, pensado nisso.” 23
A senhora citada se refere à madame Maillefer, que era muito rica e, por ser sua prima
e por conhecê-lo, fez uma considerável doação para a abertura e sustento de uma escola em
Reims. Na história da instituição criada por La Salle, este encontro citado, com o professor
Nyel, é considerado um dos momentos significativos na sua biografia; é enfocado como um
dos grandes motivadores e provocadores do início desta obra. Tal fato é tão significativo, que
a iconografia histórica de La Salle traz um dos importantes quadros referentes a este encontro,
pintado por Gerlier:
Figura 2 – Encontro de La Salle com Adrian Nyel24
Mais adiante, neste mesmo texto, La Salle se questiona sobre sua condição econômica.
Os professores, vindos de camada social mais pobre, não tinham garantia nenhuma, se a
sociedade não desse certo; diferentemente de La Salle, que tinha a garantia financeira de, se
não desse certo, teria outras possibilidades, sobretudo na carreira eclesiástica. Por isso, sua
consciência o questiona: “Se permaneço como estou, e eles como estão, sua tentação
continuará, porque continuará existindo o motivo que a ocasiona; e eu não poderei encontrar
remédio, pois eles sempre verão em minhas finanças um pretexto, inclusive razoável, para
23
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo I. Escritos personales. Memorial sobre los orígenes. Trad.
Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 7.
24
Juan Bautista de La Salle. Guía de las Escuelas Cristianas. Lima: Editorial Stella, 1997, p.241.
36
manter sua desconfiança no presente e sua inquietude pelo futuro.”
25
Este questionamento
leva La Salle a abdicar de sua riqueza e herança, para poder estar completamente envolvido e
comprometido com os demais membros da Sociedade e as Escolas Cristãs.
Outra situação que lhe coloca em dúvida é o fato conflitante de permanecer como
Cônego da Catedral de Reims e líder dos professores, na sociedade. Esta questão lhe parece
dificultar a trabalhar de forma dedicada em ambos os empregos ao mesmo tempo:
Eu devo, e inclusive, eu posso ser superior destes professores sem deixar de ser
cônego? Eu posso conjugar minha assídua presença em casa, para estar à frente
deles nos exercícios de piedade e para velar por eles, com a assiduidade ao coro e
ao ofício canônico? São compatíveis estes dois empregos? Se não o são, é preciso
renunciar a um ou a outro. (...) Mas, eu posso de verdade, ao mesmo tempo, ser
um bom cônego e um bom superior de uma comunidade que exige estar presente?
Se cumpro dignamente este último emprego, devo abandonar todas as funções do
primeiro; já que ao ver-me obrigado a estar sempre em casa, não poderia assistir
nunca ao coro. Assim, pois, por não poder acompanhar ambos os deveres, devo
decidir-me por um ou por outro. 26
Após refletir e argumentar a respeito desta questão, La Salle assume que deve deixar a
função de cônego e dedicar-se exclusivamente às escolas: “Finalmente, como não me sinto já
atraído pela vocação de cônego, me parece que ela me abandonou antes que eu a abandonasse.
Este estado já não é para mim. E ainda que eu tenha entrado nele por uma boa porta, creio que
Deus me abre a mesma porta para eu sair dele. A mesma voz que me chamou a ele, parece
que me chama a outro lugar.” 27
Este outro lugar, citado por La Salle, é o lugar que passou a ocupar a maior parte da
sua vida, na criação e manutenção da Sociedade dos Irmãos das Escolas Cristãs e tudo que lhe
faz referência. Se “um dos ingredientes mais perversos da miséria (...) é a ignorância”28, La
Salle e este grupo de professores começaram a construir uma obra que, apesar de suas
limitações e imperfeições, contribuiu para diminuir a miséria e a ignorância de inúmeros
franceses daquele século, que, às vésperas da Revolução Francesa, puderam começar a ser
mais cidadãos.
25
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo I. Escritos personales. Memorial sobre los orígenes. Trad.
Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 7.
26
Ibidem, p. 8.
27
Ibidem, p. 9.
28
Fernando Savater. O valor de educar. Trad. bras. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2005, p. 168.
37
Se, pela análise do texto do Guia das Escolas, pretendemos verificar quais os
princípios ali expostos ainda podem ter vigência, de antemão salientamos o que Edgard
Hengemülle já concluiu em seu trabalho de Mestrado29, acerca das contribuições de La Salle:
a adoção de abordagens sistêmicas ou racionais, de influência cartesiana, para a concepção e o
gerenciamento de instituições sociais, especificamente a escola; a sistematização de uma nova
ordem pedagógica característica; a contribuição significativa para a formação de uma
civilização escolarizada, de uma reforma escolar, com a busca da generalização do ensino,
com espaços, organização e funcionamento específicos e com profissionais especializados e
especificamente preparados para isso.
3. A realidade institucional de La Salle hoje
A Sociedade dos Irmãos das Escolas Cristãs, conforme exposto anteriormente, deu
origem ao Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs, que é responsável pelo prosseguimento da
obra lassaliana após o falecimento de La Salle. Para complementar esta pesquisa, apresento
algumas informações e dados, colhidos a partir de material bibliográfico e de consulta aos
atuais dirigentes das instituições lassalistas. Além disso, foram colhidas informações dos
sítios oficiais da instituição na internet, mencionados nas fontes e bibliografia, a saber: os dois
sítios brasileiros, responsáveis pelas duas regiões administrativas do Brasil; o sítio latinoamericano, que coordena as atividades das obras lassalistas na América Latina; e o sítio
internacional, que traz as informações mundiais sobre esta obra.
Com referência ao Instituto criado por La Salle, Hengemülle afirma que
Uma das coisas que diferencia La Salle de muitos outros pedagogos e educadores,
multiplicando a sua influência, é o fato de haver criado uma instituição de
religiosos educadores que continuaram e universalizaram a sua prática educativa e
o espírito que legou a seus membros. A eficácia nesta ação de prolongar e irradiar
essa prática e espírito deve-se ao fato de essa instituição centrar suas energias na
tarefa exclusiva da educação; de permanecer fiel a uma clientela básica; de ser
sistemática em sua ação, sistematicidade que alguns autores chamam de
uniformismo; de desenvolver um sentido de corpo, um espírito, uma prática
comunitárias, o que inclui, certamente, um determinado controle mútuo, apontado
por alguns autores, mas que representa forte apoio recíproco, como destacam
outros; de garantir, a um tempo, a continuidade da ação, com a transmissão
29
Cf. Edgard Hengemülle. La Salle: uma leitura de leituras. Canoas: Editora La Salle, 2000, p. 229-230.
38
ininterrupta da experiência acumulada, e a capacidade de resposta a novas
necessidades educativas e de adaptação a renovadas exigências pedagógicas; e de
cultivar uma mística alimentada na fé e expressa no devotamento zeloso pelo bem
dos jovens. 30
Desta forma, os herdeiros e continuadores da obra iniciada por La Salle, hoje
denominados Irmãos Lassalistas, estão estruturados numa rede mundial de obras educativas,
que atingem todas as camadas e faixas etárias, dependendo dos países em que estão presentes.
Sobre esta rede e suas obras, considero importante conhecer alguns dados básicos.
Primeiramente, o Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs, com sede mundial na
cidade de Roma, Itália, explicita sua atuação da seguinte forma, conforme publicado em sua
Declaração de Missão 31, da qual transcrevo alguns trechos, com alguns comentários:
a) “O fim deste Instituto é proporcionar educação humana e cristã aos jovens,
especialmente aos pobres, segundo o ministério que a Igreja lhe confia”. O objetivo básico
institucional, portanto, é a educação. Chama a atenção o fato de mencionar educação humana
e cristã, fazendo uma distinção entre as dimensões científica e religiosa; o objetivo primeiro,
entretanto, ainda é a educação científica/humana, o que se comprova pela presença e atuação
em diversos países que proíbem a educação religiosa e ainda assim a instituição se faz
presente.
b) “Desde as origens, o Instituto se define como suscitado por Deus para a
evangelização e o serviço educativo dos pobres. No passado e atualmente, o Instituto se
preocupou e se preocupa do serviço educativo dos pobres. (…) Somos conscientes de que
nosso serviço educativo aos pobres não pretende resolver o problema da pobreza no mundo,
mas somente o que se relaciona com o mundo da educação”. Neste caso, a instituição parece
ter consciência de sua limitação à questão educacional, com preferência pela atuação junto
aos mais pobres das diversas sociedades em que se encontra.
c) “O Instituto não pode pretender por si só conseguir um acercamento educativo e
uma ação eficaz diante de todas as formas atuais de pobreza. Por isso, é importante que
estabeleça relações e colabore com outras organizações e outras instâncias (políticas, sociais,
religiosas...) que trabalham para resolver problemas dos pobres nos níveis local, regional ou
internacional”. A preocupação com a educação dos mais pobres é assumida como atividade
aberta e necessária de ser executada em parceria com outras instâncias ou instituições.
30
Edgard Hengemülle. La Salle: uma leitura de leituras. Canoas: Editora La Salle, 2000, p. 174.
Instituto de los Hermanos de las Escuelas Cristianas. Declaración de Misión. Disponível em:
<http://www.lasalle.org/Spanish/Mission/Statement/mims.php>. Acesso em 04 out. 2006.
31
39
d) “O carisma lassaliano se vive no contexto das sociedades pluriculturais e multireligiosas. Os jovens de todas as culturas e tradições religiosas têm o direito e a liberdade de
viver o carisma lassaliano e beneficiar-se dele”. Novamente volta a consciência de que a
especificidade católica da instituição parece estar submetida a seu objetivo primariamente
educacional.
e) “O Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs, como tantas organizações e pessoas
hoje, tem uma clara e evidente consciência da importância da educação das crianças, dos
jovens e dos adultos deste século que começa”. Esta postura acentua a preocupação com a
realidade educacional mundial, o que não é preocupação exclusiva desta instituição.
f) “A missão lassalista é vivida no contexto de sociedades pluriculturais e multireligiosas. Os Irmãos e os Colaboradores que trabalham nessas sociedades experimentam
respostas muito diversas, que vão desde a intolerância ou a indiferença ao respeito”. Faz-se
aqui o registro das dificuldades encontradas pela instituição em diversos países do mundo.
A realidade internacional do Instituto fez com que as escolas lassalistas no mundo
adquirissem características diversas, embora mantendo os mesmos princípios de origem.
Interessante ressaltar a presença desta instituição, explicitamente religiosa e católica, de forma
significativa, em sociedades que não são cristãs. Isso podemos observar no quadro a seguir,
que apresenta os oitenta e um países em que existem escolas lassalistas:
•
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África do Sul
Alemanha
Argentina
Austrália
Áustria
Bélgica
Benin
Bolívia
Brasil
Burkina Faso
Camboja
Camarão
Canadá
Chile
China
Cingapura
Colômbia
Congo
Costa do Marfim
Costa Rica
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Cuba
Djibuti
Egito
Equador
Eritréia
Eslováquia
Espanha
Estados Unidos
Etiópia
Filipinas
França
Grã Bretanha
Grécia
Guatemala
Guiné
Guiné Equatorial
Haiti
Holanda
Honduras
Moçambique
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Ilhas Maurício
Ilha da Reunião
Índia
Indonésia
Irlanda
Israel
Itália
Japão
Jordânia
Líbano
Madagascar
Malásia
Malta
México
Myanmar
Nicarágua
Níger
Nigéria
Nova Zelândia
Palestina
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Panamá
Papua Nova Guiné
Paquistão
Paraguai
Peru
Polônia
Porto Rico
Portugal
Quênia
República Dominicana
România
Ruanda
Sri Lanka
Sudão
Suíça
Tailândia
Tchad
Togo
Turquia
Venezuela
Vietnam
Quadro 2 – Países que possuíam Escolas Lassalistas em 2005 32
32
Informação estatística interna, fornecida pelo Irmão Roque do Carmo Amorim Neto, Secretário Provincial.
Entrevista sobre o Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs. São Paulo, jul. 2006.
40
Estes países estão divididos em grandes regiões, cada uma com características
próprias, de caráter cultural, lingüístico ou afinidades no campo da estrutura educacional. A
título de apresentação didática, sistematizo estas regiões em cinco grupos:
- Grupo A: Reúne as escolas dos países da África e do Oriente Próximo.
- Grupo B: Reúne as escolas dos países da América Latina.
- Grupo C: Reúne as escolas dos países da Ásia e Oceania.
- Grupo D: Reúne as escolas dos Estados Unidos e Canadá.
- Grupo E: Reúne as escolas da França, Espanha, Portugal, Itália, Europa Central e
Grã-Bretanha.
A partir destes grupos, apresento alguns dados estatísticos, fornecidos pela Secretaria
da Casa Provincial La Salle de São Paulo, mediante entrevista com o Secretário da instituição,
Irmão Roque do Carmo Amorim Neto. Nestes dados, estão destacados os valores maiores em
cada item:
A
B
C
D
E
TOTAL
86
288
111
94
393
972
Porcentagem de Escolas
8,84
29,62
11,41
9,67
40,43
100
Alunos Internos
2 573
1 124
3 549
6 332
8 292
21 870
Alunas Internas
764
627
1 085
4 000
4 117
10 593
Alunos Externos
39 780
197 148
116 480
39 145
139 015
531 568
Alunas Externas
13 355
131 658
38 670
22 908
112 488
319 083
Total de Alunos
56 472
330 557
159 788
72 385
263 912
883 114
Porcentagem de Alunos
6,39
37,43
18,09
8,19
29,88
100,00
Educadores Religiosos Lassalistas
240
737
185
393
801
2 356
Outros Educadores Religiosos
101
276
69
156
99
701
Educadores Leigos
2 796
13 097
5 038
5 422
10 525
36 878
Educadoras Leigas
1 104
16 565
6 149
4 983
9 518
38 319
Total de Educadores
4 799
30 675
11 441
10 954
20 943
78 254
Porcentagem de Educadores
6,13
39,19
14,62
13,53
26,76
100,00
Número de Escolas Formais
Tabela 1 – Resumo estatístico das Escolas Lassalistas em 2005
33
Estes dados apontam algumas das características institucionais de nossa época. La
Salle talvez não tivesse idéia de até onde a sua obra pudesse chegar. Nesses países com essas
33
Informação estatística interna, fornecida pelo Irmão Roque do Carmo Amorim Neto, Secretário Provincial.
Entrevista sobre o Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs. São Paulo, jul. 2006.
41
pessoas envolvidas nas Escolas Lassalistas, são desenvolvidos diversos tipos de trabalho,
todos eles de caráter educativo, dependendo do país e da realidade em que se encontra.
Podemos observar que, por força histórica do nascimento e da origem da instituição, o
Grupo E, que reúne os países da Europa, possui os maiores indicativos nos itens que se ligam
diretamente a essa questão histórica e de origem. Por outro lado, os países da América Latina
são os que concentram o maior número de alunos e educadores, evidenciando um grande
investimento educativo nesta região.
A atuação do Instituto, hoje, vai além das escolas formais, de diversos níveis,
atendendo a diversas camadas das populações. Os professores lassalistas – Irmãos e leigos –
também atuam em projetos educativos, que se realizam em: universidades; centros educativos
não formais, voltados para a demanda de comunidades, sobretudo, marginalizadas; centros de
atendimento a pessoas em situação de pobreza extrema, menores de rua, mães adolescentes,
imigrantes, deficientes, dependentes de drogas, ciganos etc., inclusive em conexão com os
serviços de justiça; assistência a outras instituições escolares; centros de formação rural;
centros de formação de professores para escolas públicas ou comunitárias, inclusive
indígenas; programas educativos para estações de rádio comunitárias, próprias ou de outras
instituições; organização, acompanhamento e manutenção de rede de escolas populares e
privadas; edição de livros e revistas educativos, através de editoras próprias ou em associação;
atividades na área de Serviço Social e filantropia nacional; dentre outros.
Em toda esta realidade, evidentemente, não se observam, literalmente, as orientações
de La Salle contidas no Guia das Escolas; ao que tudo indica, o que permanece de La Salle é a
sua dedicação exclusiva e integral a projetos educativos que atendem, eficazmente, à
realidade da população, sobretudo dos mais pobres. Tudo isso feito com base nos princípios
que levaram este educador e administrador francês a elaborar a obra que analisaremos a
seguir.
42
Capítulo II – A primeira parte do Guia das Escolas
Ensinemos nossos filhos a venerar o mundo e a consciência
que o ilumina. Façamo-los perceber concretamente o caráter
sagrado, mágico da vida: esse inimaginável emaranhado de
todas as formas e de todas as histórias possíveis que
originaram infinitamente no espaço unitário da consciência.
É o fim único da educação tornar a consciência humana
consciente dela mesma e de sua disposição fundamental: sua
expansão onidirecional. Sua liberdade, seu amor por todas as
formas e por todos os seres.
Pierre Lévy 34
Para conhecer os princípios educacionais e administrativos assumidos por La Salle em
suas Escolas Cristãs, faremos, a partir daqui, uma análise textual de sua obra denominada
Guia das Escolas Cristãs, ou, como mais aparece nas citações, simplesmente Guia das
Escolas.
Ao fazermos esta análise, é importante salientar que “todo juízo de valores sobre um
sistema educativo, em qualquer de suas manifestações (objetivos, organização, metodologia,
etc.) implica uma avaliação prévia do projeto de sociedade ao qual serve”35. Já situamos em
que tipo de sociedade esta obra foi elaborada, o que, com certeza, nos aponta que seu
conteúdo expressa determinadas posturas e valores que, em alguns aspectos, não são
concordantes com os vigentes em nossa sociedade brasileira atual. Também já salientamos
nossa intenção: a de trazer para esta nossa realidade aquilo, do Guia, que ainda faz sentido ou
poderia contribuir para a nossa educação. Aqui, portanto, queremos apresentar o conteúdo
geral do Guia e sua primeira parte.
1. Situando o Guia das Escolas
Reafirmo que a educação pode ser concebida, estudada, analisada sob diversas óticas,
dada a riqueza de contribuições que podemos colher ao longo da História. Em qualquer uma
delas, entretanto, fica evidente que ela “tem que ver com a medida que damos a homens e
mulheres (...). Por isso a tentativa de compreender a educação ultrapassa os limites de uma
área de conhecimento ou disciplina acadêmica. A reflexão sobre educação é, pela própria
34
Pierre Lévy. A conexão Planetária. O mercado, o ciberespaço, a consciência. São Paulo: Editora 34, 2001, p.
155.
35
Alfredo Morales. O desafio de ser educador. Trad. bras. Canoas: La Salle, 1998, p. 60.
43
natureza do objeto, uma atividade interdisciplinar.”36 Por isso, o que analisamos é, sem
dúvida, uma postura que parte de um ideal de pessoa e de sociedade, com suas características
marcantes para toda a prática educativa dela decorrente: La Salle tem um projeto de pessoa,
de sociedade e de educação, e explicita isso, através do Guia das Escolas Cristãs.
Na pesquisa e na leitura atenta da obra de La Salle, seja enquanto produção
bibliográfica ou institucional, é possível descobrir uma série de contribuições deste educador
francês para a Educação, para a Pedagogia, para a Didática, para a Administração Escolar e
até mesmo para a Psicologia aplicada a esta realidade. De fato, contribuições pouco
exploradas, pois o que, em geral, se constata é que
muitas histórias da pedagogia foram e continuam sendo bastante mesquinhas com
respeito a João Batista de La Salle, contentando-se em dedicar somente algumas
linhas a sua obra e à utilidade de sua instituição. Por outro lado, assiste-se a um
florescimento de literatura especializada, bibliográfica, monográfica, crítica e
interpretativa, a ponto de constituir um verdadeiro corpus de investigação
hermenêutica sobre a obra lassaliana. Tais trabalhos são efetivamente numerosos,
mas não devemos fechar os olhos e ver que, na realidade, são pouco conhecidos e
muito pouco difundidos além de um grupo restrito de investigadores. 37
Além do Guia das Escolas, é importante apresentar outras obras escritas por La Salle,
que são significativas, para podermos compreender a sua postura educacional. Algumas de
suas obras foram publicadas postumamente: Regras que me impus (1686); Memorial do
Hábito (1689); Fórmula de Profissão Perpétua (1694); Memorial sobre a Língua Materna
(1694); Instruções para Aprender a Confessar-se Bem (1698); Silabário (1698); Instruções e
Orações para a Santa Missa (1698); Regras de Cortesia e Urbanidade Cristãs (1703); Deveres
de um Cristão para com Deus, em dois volumes (1703); Do Culto Exterior e Público (1703);
Compêndio Maior do Catecismo (1704); Compêndio Menor do Catecismo (1704); Cânticos
Religiosos (1705); Ofício da Virgem Maria e Saltério (1706); Instruções e Orações para a
Confissão e a Comunhão (1706); Plano de um Seminário de Formação de Professores para o
Meio Rural (1707); Coleção de Pequenos Tratados (1711); Regras Comuns dos Irmãos das
Escolas Cristãs (1718); Regra do Irmão Diretor (1718); Testamento (1719); Meditações para
36
Danilo Romeu Streck. Correntes pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 11.
Secondino Scaglione. A proposito de futuras investigaciones sobre la Pedagogía de La Salle. IN: Lasalliana
50. Roma: Instituto de los Hermanos de las Escuelas Cristianas, s/d., p. 9.
37
44
o Tempo de Retiro (1728); Meditações para os Domingos e Festas (1729); e Explicação do
Método de Oração Mental (1739). 38
Tais obras têm formato, objetivo, extensão e uso diferenciados. Entretanto, todas
foram escritas por La Salle, tendo em vista a realidade da Sociedade e das Escolas Cristãs,
ainda que com predomínio do caráter religioso. Além do Guia das Escolas, é importante
ressaltar, em especial, duas outras obras, que vão influenciar os primeiros professores e as
escolas.
Na obra “Regras de Cortesia e Urbanidade Cristãs”, La Salle faz um interessante texto
de orientação sobre etiqueta, cortesia e boas maneiras, chegando a especificações muito
interessantes, desde o cuidado com as diversas partes do corpo, até a maneira de se portar em
diversas situações. Dividida em duas grandes partes, a obra trata do recato que se deve
manifestar nos modos e na compostura das diversas partes do corpo e da urbanidade nas ações
comuns e habituais.
Esta obra, que La Salle chamará, de forma abreviada, de Urbanidade, será utilizada
como livro didático de leitura, numa das etapas de aprendizagem utilizadas em suas escolas.
La Salle considerou que os alunos, como sendo, em sua maioria, de camadas pobres da
sociedade francesa da época, deveriam ter acesso ao conhecimento de posturas elementares de
convivência social, uma vez que seus pais e responsáveis também não possuíam esta instrução
básica.
Em sua obra, reunida sob a denominação comum de “Meditações”, La Salle escreve
especificamente aos primeiros professores, que vieram a formar o Instituto dos Irmãos das
Escolas Cristãs. Embora seu enfoque esteja mais na questão da vida religiosa dos Irmãos, ao
longo de todo o texto podemos observar orientações diretas e objetivas sobre posturas e
questões educacionais e pedagógicas. Em toda esta obra, cada meditação é formulada em três
reflexões, denominadas pontos; todas elas trazem, quase que de maneira sistemática, uma
série de questionamentos abertos, sem resposta, para que os Irmãos possam responder a partir
de sua realidade.
No trecho a seguir, retirado da Meditação 33, podemos perceber o conteúdo deste livro
de La Salle. Neste exemplo, vemos a preocupação com o conhecimento do aluno e o exemplo
que o professor deve lhe dar:
38
Cf. apresentado em Henrique Justo. La Salle: patrono do magistério. 5. ed. Porto Alegre: Salles Editora, 2003,
p. 104-105 e Saturnino Gallego. Vida y pensamiento de San Juan Bautista de La Salle. Madrid: Biblioteca de
Autores Cristianos, 1986, p.11-12.
45
Uma das qualidades que o bom pastor deve possuir é conhecer todas as ovelhas
distintamente. Esta também deve ser uma das atenções primordiais dos que se
dedicam à educação dos outros: conhecê-los e discernir o modo de tratar com eles.
(...) Quereis que vossos alunos pratiquem o bem? Praticai-o vós. Convencê-los-eis
muito melhor pelo exemplo de vosso comportamento correto e modesto, do que
com muitas palavras. Quereis que observem o silêncio? Observai-o vós mesmos. Só
na medida em que vós fordes modestos e recolhidos, conseguireis que vossos
alunos também o sejam. 39
Entretanto, o Guia das Escolas é sua obra mais significativa para a realidade escolar. O
que podemos constatar, com relação às grandes obras da História da Educação é que “do
ponto de vista diretamente educacional e pedagógico, o Guia das Escolas Cristãs é, de longe,
a mais citada e comentada.”40 Desta forma, analisaremos cada um de seus capítulos,
procurando apresentar o texto e verificar se os princípios nele apresentados podem ser
considerados na atualidade.
Certas expressões do texto do Guia não fazem parte de nosso vocabulário educativo
atual ou possuem significado diverso. Quando isto ocorrer, ao longo do texto, faremos as
devidas observações, procurando esclarecer o sentido de certos termos utilizados.
Para analisarmos o conteúdo do Guia das Escolas de La Salle, optamos por apresentar
os trechos mais importantes deste livro, na ordem em que aparecem no texto original, de
maneira a compreender a seqüência lógica estabelecida por seu autor. Na leitura e na
observação crítica destes trechos, pretende-se extrair os posicionamentos de ordem
educacional e administrativa estabelecidos por La Salle e os primeiros professores.
Da mesma forma, para que seja possível ter uma visão de conjunto de cada parte desta
obra, apresento um quadro esquemático, do qual constam, com seus títulos originais: os
diversos temas ali tratados; a denominação das três partes; a divisão em capítulos; e o número
de páginas dedicadas a cada capítulo:
Parte I – Dos exercícios que se fazem nas Escolas Cristãs e do modo como devem fazer-se
Capítulo 01. Da entrada na escola e do começo da aula
01 página
Capítulo 02. Do café da manhã e da merenda
05 páginas
Capítulo 03. Das lições
15 páginas
Capítulo 04. Da escrita
13 páginas
Capítulo 05. Da aritmética
03 páginas
Capítulo 06. Da ortografia
01 página
Capítulo 07. Das orações
04 páginas
Capítulo 08. Da Santa Missa
05 páginas
39
40
João Batista de La Salle. Meditações. Trad. bras. Canoas: Editora La Salle, 1988, p. 90.
Edgar Hengemüle. La Salle: uma leitura de leituras. Canoas: Editora La Salle, s/d, p. 128.
46
Capítulo 09. Do Catecismo
Capítulo 10. Dos cânticos
Capítulo 11. Da saída da escola
07 páginas
01 página
03 páginas
Parte II – Dos meios de estabelecer e manter a ordem nas escolas
Capítulo 01. Da vigilância que deve exercer o professor na escola
Capítulo 02. Dos sinais que se utilizam nas Escolas Cristãs
Capítulo 03. Dos registros
Capítulo 04. Dos prêmios
Capítulo 05. Das correções em geral
Capítulo 06. Das ausências
Capítulo 07. Dos feriados
Capítulo 08. Dos ofícios na escola
Capítulo 09. Da estrutura, da uniformidade das escolas e dos móveis que se requerem
Capítulo 10. As doze virtudes do bom professor
04 páginas
04 páginas
07 páginas
02 páginas
19 páginas
08 páginas
04 páginas
11 páginas
04 páginas
01 página
Parte III – Deveres do Inspetor das Escolas
Capítulo 01. Da vigilância do inspetor das escolas
Capítulo 02. Da admissão dos alunos
Capítulo 03. Da distribuição dos alunos e da organização das lições
Capítulo 04. Da mudança de alunos de uma lição a outra
Capítulo 05. Da formação dos professores novos
Capítulo 06. Da regra do professor de internos
Capítulo 07. Dos distintos tipos de casas deste Instituto
05 páginas
05 páginas
07 páginas
15 páginas
09 páginas
04 páginas
01 página
Quadros 3, 4 e 5 – Partes, capítulos e páginas do Guia das Escolas Cristãs de 1720 41
A tabela apresentada proporciona uma visão de conjunto dos temas abordados pelo
Guia das Escolas. A partir dela, podemos perceber que as três partes em que se divide indicam
as três grandes concentrações temáticas da obra: o que se faz na escola, como conseguir fazêlo e com quem fazê-lo. Iniciemos pela primeira parte.
2. Do horário semanal de atividades
Esta primeira parte do Guia das Escolas recebeu o título de “Dos exercícios que se
fazem nas Escolas Cristãs e do modo como devem fazer-se”. Trata-se, portanto, de uma
introdução ao cotidiano da escola proposta por La Salle e seus primeiros professores.
Acompanhando as descrições minuciosas, característica deste texto lassaliano que
começamos a investigar, esta parte ocupa 35% do texto completo e está dividida em onze
capítulos, que tratam: da entrada na escola e do começo da aula; do café da manhã e da
merenda; das lições; da escrita; da aritmética; da ortografia; das orações; da santa missa; do
41
Adaptado de Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de
las Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 181187.
47
catecismo; dos cânticos e da saída da escola. Podemos constatar, portanto, que La Salle
apresenta, de forma lógica e seqüencial, aquilo que deve ser realizado nas suas escolas.
Considerando-se que a instituição escola, naquele contexto, não estava organizada
como tal, esta posição de La Salle, em organizar o tempo escolar, reveste-se de extrema
importância para o bom andamento das atividades e aulas previstas por ele. Embora o texto do
Guia não o faça de forma sistemática, apresentamos este esquema de horário semanal das
escolas, devidamente descrito a seguir:
Segunda
Terça
Quarta
Quinta
Sexta
Sábado
Domingo
Chegada – Reunião
Chegada – Reunião
8h00
Oração – Café – Escrita
Oração – Café – Escrita
9h00
Leitura
Leitura
Oração
10h00
Oração – Reflexão – Missa
Oração – Reflexão – Missa
Missa
11h30
Almoço
13h30
Estudo
14h00
Manuscritos
Aritmética
Manuscritos
Descanso semanal
7h30
Almoço
Estudo
Aritmética
Catecismo
Leitura
15h00
Escrita
Escrita
16h00
Catecismo
Catecismo
16h30
Oração e Exame de consciência
Oração e Exame de consciência
Oração
Quadro 6 – Horário semanal da Escola Cristã de La Salle 42
Este horário nos indica algumas posturas educativas interessantes e sobre as quais
cabem alguns comentários. Primeiramente em relação ao horário de início e encerramento das
atividades; trata-se de uma escola organizada para atender em período integral. Esta realidade,
verificada pelas Escolas Cristãs de La Salle, ainda não acontece de forma sistemática no
Brasil, por exemplo. Nossa Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em seu artigo 34,
faz uma vaga referência a esta possibilidade: “A jornada escolar no ensino fundamental
incluirá pelo menos quatro horas de trabalho efetivo em sala de aula, sendo progressivamente
ampliado o período de permanência na escola.”43
De fato, esta realidade existe apenas em algumas instituições educativas, não
abrangendo a totalidade do sistema educacional brasileiro, nem no setor público nem no
privado. Esta questão, bem trabalhada na dissertação de mestrado de Arno Lunkes, nos indica
42
Tabela adaptada de Rodolfo Meoli. Para una lectura de la Guía de las Escuelas Cristianas. Lasalliana 49.
Roma: Hermanos de las Escuelas Cristianas, s/d., p. 6.
43
República Federativa do Brasil. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. São Paulo: SIEEESP, 1998,
p. 20.
48
que seria uma importante postura de política educacional para nossas crianças, principalmente
porque
a idéia da educação integral, de desenvolver um processo educativo em todos os
aspectos e níveis da vida de uma pessoa, desde a infância até a vida adulta, tem se
tornado importante eixo das teorias e práticas educativas. Com esta linha de visão
espera-se que a escola em tempo integral - ou seja, a ampliação do espaço temporal
de presença na escola - possa ser, da melhor forma possível, direcionada em favor
da melhoria do processo educativo. 44
Uma segunda observação quanto ao horário diz respeito ao caráter marcadamente
católico da estrutura escolar de La Salle, com momentos bem definidos para o catecismo, as
orações e as celebrações religiosas, inclusive aos domingos. Franco Cambi salienta que o
aspecto central do projeto educativo de La Salle era a instrução religiosa, desenvolvida de
forma mística e ascética, por meio do ensino catequético e de expedientes de vários tipos45, o
que se pode facilmente comprovar pelo horário das atividades e pelas orientações
apresentadas pelo texto do Guia das Escolas. Postura que reflete o clima característico da
realidade eclesial católica da contra-reforma. Tal postura não seria totalmente possível em
nossa realidade atual, dada a pluralidade religiosa e cultural em que vivemos; nem as escolas
confessionais, previstas na Constituição Federal, são totalmente compostas por educadores e
alunos de uma única confissão religiosa.
As quintas-feiras eram reservadas ao descanso semanal e, em geral, nestes dias, eram
comemorados os feriados e as festas, todos de caráter religioso, conforme o próprio Guia vai
se referir mais adiante, ao tratar deste tema, em um capítulo específico. La Salle vai dedicar
um capítulo todo para esta questão, pois era motivo para faltas freqüentes dos alunos à escola,
suspensão de aulas, ausências para participação em festas e demais atividades. O horário de
almoço, que aparece indicado, não era realizado na escola, apenas o café da manhã e a
merenda, para os quais havia uma clara intenção educativa.
Pelo apresentado no horário, podemos observar que a estrutura da escola de La Salle,
assentada sobre a questão da instrução religiosa, privilegiava a leitura e a escrita, para as quais
havia um tempo maior de atividades; menos tempo era dedicado à aritmética. Nota-se,
portanto, que a escola foi organizada somente para atender alguns aspectos básicos da
44
Arno Francisco Lunkes. Escola em tempo integral: marcas de um caminho possível. Dissertação de Mestrado.
Universidade Católica de Brasília, 2004, p. 9.
45
Cf. Franco Cambi. História da Pedagogia. Trad. bras. São Paulo: UNESP, 1999, p. 299.
49
alfabetização e instrução inicial, sem preocupações com outras áreas do conhecimento, que já
eram tratadas em outros projetos educacionais de então e mesmo de antes.
Ao final de cada dia, estava reservado um momento para oração e exame de
consciência. Ainda que esta postura seja marcadamente religiosa, há algo de educativo em se
reservar o final das atividades do dia para avaliar a postura de cada um ao longo das
atividades daquele período. Trata-se, portanto, de um momento importante de se proporcionar
ao aluno que verifique as suas posturas, que faça uma auto-avaliação, uma reflexão sobre sua
atuação na escola. Mesmo que este princípio não tenha sido definido por La Salle com esta
intenção, é importante salientar este aspecto, que nas escolas de hoje, teriam sentido, espaço e
justificativa.
Vejamos, a seguir, a descrição e a orientação regulamentadas pelo Guia das Escolas
para cada uma dessas atividades previstas no horário semanal.
3. Da entrada na escola e do começo da aula
La Salle quer, pelas indicações de seu texto, uma escola bem organizada e
funcionando adequadamente, desde a abertura, pela manhã, até o final da tarde. Para isso, o
Guia das Escolas apresenta os horários de abertura das escolas e como devem começar as
atividades:
A porta das escolas se abrirá sempre às sete e meia da manhã e à uma da tarde. Os
alunos, tanto pela manhã como pela tarde, disporão sempre de meia hora para ir-se
reunindo. Cuidar-se-á para que não se amontoem na rua onde está a escola, antes de
que se abra a porta, e de que não façam barulho. (...) Quando se abre a porta, se
cuidará para que os alunos não se apressem a entrar, mas entrem pausadamente, um
atrás do outro.46
A Escola Cristã de La Salle, como escola de tempo integral, abre pela manhã e pela
tarde. Fecha apenas para o horário de almoço. Há meia hora para o encontro dos alunos entre
si. Pode-se deduzir, deste texto, que havia uma clara intenção de que os alunos pudessem ter
alguns momentos de convivência, de amizade, logo ao chegarem à escola. Poderíamos intuir
que La Salle e os professores tinham a explícita intenção de que a escola fosse um espaço que
deve favorecer a boa convivência. Isto será devidamente comprovado, mais adiante, quando
46
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 10.
50
se explicitará a intenção de La Salle que seus alunos sejam educados para as boas maneiras,
com as regras de urbanidade, civilidade, convivência ou etiqueta social.
Há, também, uma nítida preocupação com a ordem e a disciplina, desde a entrada na
escola. Estes dois princípios vão marcar fortemente a organização destas escolas, ao longo de
todo o texto. Neste caso, a ordem e a disciplina são exigidas não somente no âmbito da escola,
mas já fora dela, na rua; os alunos são orientados para evitar a desordem e assumirem um
comportamento extremamente disciplinado.
Também existe a indicação de como os professores devem entrar na sala de aula:
“caminharão com suma modéstia e em silêncio, com passo não apressado e manifestando em
seus olhos e em todo o seu exterior grande compostura.”47 Trata-se, aqui, de dar uma
verdadeira postura de professor àquele que vai trabalhar nas escolas. Defensor incondicional
desta profissão, La Salle vai dedicar, de forma intensa, a maior parte de sua vida à formação
do professor, o que não significa apenas trabalhar com a questão pedagógica ou didática; o
seu trabalho vai enfocar, também, a pessoa do profissional das Escolas Cristãs como um todo,
em todos os seus aspectos enquanto pessoa. De fato, ao analisarmos a história do nascimento
desta sociedade, verificamos que La Salle não tinha intenção de criar uma congregação
religiosa; o que ele fez foi organizar um grupo – uma sociedade – formado por homens do
povo, não pertencentes à hierarquia eclesiástica, com a função de educar, de exercer o papel
de professor. Por este motivo, toda a sua dedicação foi direcionada à boa formação e
organização deste grupo.
Este princípio, que exige certa aparência exterior do professor, pode ser verificado em
nossa atualidade educativa, uma vez que cabe ao profissional demonstrar certa postura diante
de seus alunos. Postura, para La Salle, ou compostura, conforme seu vocabulário
característico, não significa soberba ou orgulho, mas uma presença digna da importante
profissão que exerce. O que La Salle exigia, e que é totalmente necessário em nossa realidade
atual, é a postura digna de quem exerce o magistério.
É interessante observar, também, que La Salle apresenta, nesta passagem, e em mais
outros textos de sua autoria, de como o professor deveria se portar, manifestando-se pelo
olhar. Isto caracteriza a intenção de que houvesse contato visual, de caráter afetivo, entre o
professor e os seus alunos. Embora venha a enfatizar que não se admite a familiaridade
excessiva nesta relação, La Salle solicita e orienta, por diversas vezes, que a dimensão afetiva
e relacional esteja presente no processo educativo. Ele já tinha em mente que “a relação não é
47
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 11.
51
o único ângulo sob o qual se deve enfocar a educação, fenômeno muito mais complexo, pois
existem também os valores, os conhecimentos, os processos didáticos, etc. Mas, tudo isso
somente é válido enquanto existir previamente uma relação humana entre educador e
educando” 48, uma relação que possa sustentar todo o processo vivido na escola; uma relação
que possa criar laços afetivos, sem extrapolar para a intimidade. Esta questão é pertinente à
nossa realidade, uma vez que a dimensão do afeto vem sendo discutida, ao mesmo tempo em
que se busca evitar a exploração emocional e até sexual envolvendo professores e alunos.
Após a entrada na escola, os alunos se reúnem para o café da manhã e a primeira
oração do dia. La Salle solicita dos alunos que levem sua merenda para tomar o café da
manhã na escola. O motivo desta indicação o próprio Guia nos explica: “Há que fazê-los
compreender que, se se deseja que comam na escola, é para ensiná-los a comer com
moderação, com modéstia, com bons modos, e para rezar antes e depois de fazê-lo”.49
Não se trata somente, portanto, de comer, mas de comer juntos, com a clara intenção
de que isto aconteça com boas maneiras, de forma a refletir certa educação à mesa.
Considerando que a maioria dos alunos da Escola Cristã vinha das classes mais pobres de sua
época, não tinham essa orientação de etiqueta social. O objetivo de La Salle, portanto, era
possibilitar que estes alunos pudessem ter acesso a este tipo de informação, que tem um
caráter teórico e um exercício prático todos os dias.
O caráter teórico desta atividade seria visto pelos alunos, quando estivessem num nível
de leitura, cujo conteúdo era o livro “Regras de Civilidade”, que, conforme apresentamos
anteriormente, foi escrito por La Salle, para dar orientações desta natureza. O exercício
prático acontecia a cada dia, no momento do café da manhã e da merenda. Assim, a Escola
Cristã contribuía não somente para a formação religiosa ou para a alfabetização, mas também
para as regras de boa convivência e etiqueta social.
Com relação a este tema, cabe questionar se estes ensinamentos, na teoria e na prática,
fazem sentido para uma camada mais pobre da população. Ainda assim, La Salle se manteve
firme nesta postura, por estar convencido de que a educação deve ser abrangente e se deve
colocar à disposição de todos, de forma mais igualitária possível, tudo o que possa contribuir
para a sua formação integral.
Mas, além desta preocupação com as boas maneiras, também existem outras, sobre as
quais o Guia assim se expressa:
48
Alfredo Morales. O desafio de ser educador. Trad. bras. Canoas: La Salle, 1998, p. 43.
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 13.
49
52
O professor deve cuidar que os alunos levem todos os dias com o que tomar café da
manhã e com que merendar, a menos que tenha certeza de sua pobreza. (...)
Também terá cuidado de que não atirem pedaços de fruta ou cascas ao solo, mas
fará que as guardem em seu bolso. Evitar-se-á cuidadosamente de aceitar a
desculpa dos alunos para não levar pão à escola, porque seus pais o proíbem, por
temor que lhes obriguem a entregá-lo em classe. Pois não se lhes deve obrigar a que
o dêem aos pobres, já que isso é totalmente livre, e devem fazê-lo somente de bom
grado e por amor de Deus. 50
Para esta refeição coletiva, no começo das atividades da escola, a cada aluno é
solicitado trazer o seu lanche; trata-se de uma obrigação do aluno, pois a atividade faz parte
da aula. Entretanto, observa-se a sensibilidade social que o professor é orientado a ter, pois,
no caso de ter certeza da condição de pobreza de algum aluno, que o impediria ou dificultaria
de trazer seu lanche, ele ficaria dispensado de trazer a merenda. Esta seria dividida.
Existe a preocupação de não jogar restos de comida no chão, mas de guardá-los no
bolso, de maneira a atirar ao lixo, posteriormente. É mais uma evidência da preocupação com
a formação integral, da boa convivência e da boa cidadania, pouco ou nada considerada na
época.
Sobre a questão do lanche, La Salle parece entender que a solidariedade deve vir da
vontade própria, portanto a nenhum aluno é exigido que partilhe seu pão ou merenda com os
mais pobres. Esta postura é insistentemente solicitada, mas não configura uma obrigação; há
apenas a solicitação deste gesto, que deve ser livre e partir dos alunos.
Ressalte-se, entretanto, que os alunos eram da camada pobre; por isso, eram
solicitados a partilhar o pouco que tinham com quem não tinha nada. Além disso, La Salle
expressamente orienta que os professores garantam que os alunos partilhem somente depois
de terem comido o suficiente, ou seja, espera-se que este gesto solidário não prejudique o
aluno. Para isso, o Guia prescreve o procedimento:
Durante o café da manhã e a merenda, um dos alunos, que será o primeiro de um
dos bancos da frente, terá um cesto diante de si para recolher pão para os pobres. E
os que levaram muito pão poderão dar algum pedaço dele ou o que lhes sobra,
50
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 12-13.
53
depois de haver comido o suficiente. Contudo, o professor cuidará que não dêem
tanto pão que não lhes sobre o suficiente para eles. 51
Cabe ao professor, portanto, incentivar que a sobra do lanche seja reservada para ser
distribuída aos mais pobres. Além de ser uma postura educativa, esta passa a ser uma postura
de caráter social, pois contribui com a diminuição das dificuldades provocadas pela pobreza
extrema em que alguns cidadãos franceses se encontravam nesta época.
De fato, a Escola Cristã proporcionava aos seus alunos condições para que pudessem
crescer também como cidadãos, pois passavam a ter contato com uma realidade necessitada
de ajuda e com a possibilidade de contribuir para que essa necessidade pudesse ser
amenizada. Se não havia uma consciência de transformação social, ao menos se
proporcionava uma consciência de solidariedade.
Esta postura de solidariedade e de atividade comunitária, feita coletivamente, também
tem um caráter acentuadamente educativo e de formação da personalidade. Se havia escolas
em que isto não era considerado, La Salle organiza um horário que possibilita estes momentos
importantes.
De forma prática e intuitiva, ainda que sem este embasamento científico a respeito, La
Salle compreende uma das reflexões que Carl Gustav Jung faria bem depois:
A educação coletiva é indispensável e não pode ser substituída por nenhuma outra
coisa. Vivemos na coletividade humana e precisamos de normas coletivas, do
mesmo modo que devemos ter uma linguagem comum. Jamais devemos renunciar
ao princípio da educação coletiva para favorecer o desenvolvimento da índole
individual.52
Esse ato de comer juntos e de partilhar as sobras, no projeto de La Salle, faz parte de
uma série de posturas, simples e práticas, mas importantes de sua educação coletiva e
comunitária, com vistas à boa convivência e solidariedade.
Após o café da manhã, aula prática de vida comum, passamos para as lições de leitura,
escrita, aritmética e as atividades referentes à religião.
51
52
Ibidem, p. 16-17.
Carl Gustav Jung. O desenvolvimento da personalidade. Trad. bras. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 156.
54
4. Das lições de leitura
O Guia das Escolas indica as nove lições de leitura que os alunos deverão percorrer,
enquanto estiverem nas Escolas Cristãs. A palavra lição, no Guia, diz respeito a um nível de
aprendizagem, com determinado período de desenvolvimento; seria o equivalente a um
período letivo, no qual existe um programa a ser cumprido. Portanto, não se trata de um único
tema específico sobre algum assunto, mas de um conjunto de ensinamentos, referentes a uma
unidade de ensino.
Dentro de algumas lições, havia as ordens, uma subdivisão, que agrupava os alunos
em três categorias, denominadas principiantes, medianos e avançados. Esta subdivisão diz
respeito apenas à seqüência da aprendizagem, que é caracterizada exatamente conforme sua
denominação: os principiantes são os alunos que começaram a ler num determinado nível; os
medianos são os que já adquiriram certa desenvoltura; e os avançados são os que estão por
dominar totalmente os requisitos do nível em questão.
O Guia, pois, indica nove lições, ou seja, nove níveis de aprendizagens: o cartaz do
alfabeto, que ficava afixado numa das paredes da sala; o cartaz das sílabas, também afixado
na sala; o silabário, com as sílabas básicas; o primeiro livro, para os alunos que começavam a
ler as sílabas seqüencialmente; o segundo livro, para os que sabiam soletrar perfeitamente; o
terceiro livro, que servia para ler por pausas; o saltério, que continha as orações e salmos da
Bíblia; o livro das Regras de Civilidade, às vezes denominado somente de Urbanidade; e os
textos manuscritos, também chamados de registros.
Com relação a estes níveis de leitura, é importante ressaltar dois aspectos. O primeiro
diz respeito ao fato de que o aluno deveria ler e escrever primeiramente em francês; somente
após dominar a língua materna, é que se passava ao latim. Conforme detalharemos em
seguida, esta postura não era comum, sobretudo nas escolas religiosas, em que o latim era
ensinado antes do francês; tal postura de La Salle vai envolvê-lo numa polêmica com as
autoridades da Igreja na época.
O segundo aspecto a se ressaltar é que este esquema de níveis e ordens de lição não
diz respeito somente à leitura, embora comece por ela. Conforme os alunos iam avançando de
nível, iam passando a participar de outras atividades, conforme apresentado no quadro a
seguir, seguindo uma rigorosa hierarquia.
Esta mudança de lição – expressão empregada por La Salle – será objeto de uma
extensa e minuciosa lista de orientações ao professor e de requisitos solicitados dos alunos,
que veremos adiante. Para o aluno mudar de nível, era necessário dominar plenamente o nível
anterior, em que se encontrava; para isso, o Guia indicava todos os passos e todas as
55
habilidades exigidas do aluno para que pudesse avançar. Este avanço para uma lição superior
se fazia única e exclusivamente após dominar a lição em que estava, ou seja, comprovando o
efetivo aprendizado.
O quadro seguinte apresenta um esquema indicativo a respeito das lições de leitura, as
outras atividades e as suas divisões:
LIÇÃO
ORDEM
1. Alfabeto
2. Sílabas
3. Silabário
Principiantes de leitura
Medianos de leitura
Avançados de leitura
4. Primeiro livro
Principiantes de leitura
Medianos de leitura
Avançados de leitura
5. Segundo livro
Principiantes de leitura
Medianos de leitura
Avançados de leitura
6. Terceiro livro
Principiantes de leitura
Medianos de leitura
Avançados de leitura
Principiantes de latim
Avançados de latim
Escrita de forma
7. Saltério
Principiantes de leitura
Medianos de leitura
Avançados de leitura
Escrita de forma
Escrita cursiva
Aritmética soma
Aritmética subtração
Aritmética multiplicação
Aritmética divisão
8. Urbanidade
Principiantes de leitura
Avançados de leitura
Ortografia
9. Manuscritos
Principiantes de leitura
Medianos de leitura
Avançados de leitura
Quadro 7 – Níveis e ordens das lições nas Escolas Cristãs de La Salle53
Nesta indicação das lições, percebemos que La Salle faz uma “separação total, diria
didática, organizacional e cultural entre o ler e o escrever.”54 Mais adiante haverá um
53
Adaptado de Alfredo Morales. Espíritu y vida. El ministerio educativo lasallista. Tomo I. Bogotá: Monserrate,
1990, p. 293.
54
Mario Alighiero Manacorda. História da Educação da Antigüidade aos nossos dias. Trad. bras. São Paulo:
Cortez, 1989, p. 232.
56
detalhamento de cada uma dessas ordens e lições, que constituem o que poderíamos chamar
de currículo das Escolas Cristãs.
Em seguida, o Guia volta a tratar da postura que o professor deve assumir na sala de
aula para trabalhar todas essas lições, solicitando um equilíbrio de sua personalidade, tratando
sobre a seriedade e a falta de humor. Seriedade e gravidade, segundo La Salle, não devem ser
confundidas com aspereza ou postura semelhante:
A gravidade exterior que se pede ao professor não consiste em apresentar exterior
severo, em mostrar enfado nem em dizer palavras duras; consiste, mais bem, em
manter a compostura em seus atos e em suas palavras. O professor cuidará,
sobretudo, de não familiarizar-se em absoluto com os alunos, de não lhes falar com
desleixo e de não permitir que lhe falem a não ser com muito respeito. 55
La Salle volta a se preocupar com a aparência do professor, que deve ter a
característica da gravidade, mas de maneira que possa ser simpático e atraente para o aluno.
Ao que parece, esta preocupação existia porque os professores tendiam a ser muito severos e
rudes com os alunos; não haveria tanta insistência nesta questão, se a realidade vivida por La
Salle não a exigisse.
Daí a sua repetitiva insistência para que os professores mantivessem a sua postura
respeitosa, mas que não fossem severos demais nem utilizassem de palavras duras ao se
relacionarem com seus alunos. Também o outro extremo deveria ser evitado, de maneira que
não houvesse familiaridade excessiva nem falta de respeito.
Mais adiante, La Salle indica para os professores, que devem formar-se tendo em vista
que deverão assumir, sobretudo, três posturas durante as aulas: “velar sobre todos os alunos,
para movê-los a cumprir seu dever e mantê-los em ordem e em silêncio; ter na mão, durante
toda a aula, o livro que se está lendo e ser exato em seguir o leitor; prestar atenção ao que lê e
ao modo como lê, para corrigi-lo quando cometa alguma falta.”56 Esta postura,
evidentemente, reflete um conceito de educação predominante.
La Salle, com sua formação sacerdotal, vai levar para a escola certos procedimentos
extremante influenciados pela visão religiosa que se tinha então. Por isso, ainda que não de
maneira exclusiva, sua “prática do ensino acaba reduzindo-se ao campo da vigilância sobre o
tempo, o espaço, o movimento, os gestos, para produzir corpos submissos, exercitados e
55
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 19.
56
Ibidem, p. 19.
57
dóceis. Não é necessário o recurso à força física, já que existem penas, sanções, para os que
fogem à regra, como a retenção ou a exclusão.”57 Contingenciado pela visão de Homem, de
Sociedade e de Mundo dos séculos XVII e XVIII, sua prática pedagógica e sua orientação aos
professores vão girar em torno da vigilância para manter a ordem, da ordem para manter o
silêncio, e do silêncio para garantir a aprendizagem.
Nos dias de hoje, estas palavras – vigilância, ordem e silêncio – adquirem, em geral,
uma conotação negativa, carregada de um sentido limitante ao que se deveria esperar de um
processo educativo. Em princípio, parecem contrapor-se à liberdade, à criatividade, à
espontaneidade, à expressividade. Obviamente, nenhum projeto educativo atual deveria
dispensar estas últimas características; da mesma forma, entretanto, sem assumir este caráter
de limitação do desenvolvimento, nenhum processo educativo poderia dispensar a vigilância
(como acompanhamento), a ordem (como orientadora do processo) e o silêncio (como
momento de reflexão pessoal). Portanto, estes princípios de La Salle, a nosso ver, ainda são
pertinentes à nossa realidade educacional, entendidos desta forma.
Existe, também, no Guia, uma preocupação com a dimensão física dos alunos,
expressa na observação de que estes, durante as lições, inclusive quando lêem nos cartazes,
devem estar sempre sentados, com o corpo direito e os pés no chão, e bem colocados.
Percebe-se, aqui, uma preocupação explícita com a postura do corpo, o que indica que, ainda
que o conteúdo escolar fosse basicamente de leitura e escrita, havia uma série de outras
preocupações com a pessoa do aluno, de forma integral.
Se não havia, conscientemente, a concepção de educação do todo, incluindo o físico,
havia a clara intenção de tratar do aluno como pessoa integral, não meramente como receptor
dos conteúdos das lições da época. Em várias passagens do texto do Guia fica patente esta
preocupação com a postura física.
Na seqüência do texto, começa uma seção, que trata do que cada professor deve fazer
para preparar seus alunos para serem mudados de lição:
Para que o professor não se engane no tocante à capacidade dos alunos para serem
mudados de lição, cada professor examinará, nos finais dos meses, o dia que haja
indicado o Irmão Diretor ou o Inspetor das Escolas, a todos os alunos de todas as
lições e de todas as ordens de lição para ver quais estão em condições de ser
mudados ao final do mês. 58
57
Moacir Gadotti. Pensamento pedagógico brasileiro. 7. ed. São Paulo: Ática, 2002, p. 65.
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 20.
58
58
Podemos entender aqui que a aprendizagem está feita de pré-requisitos, ou seja, para
passar a uma lição posterior, é preciso estar bem e ter aprendido a anterior, pois La Salle
também enfatiza que é sumamente importante não permitir que um aluno que aprende o
alfabeto mude de lição sem sabê-lo perfeitamente; e assim, da mesma forma, com os demais
níveis. Este princípio segue uma lógica óbvia; que nem sempre é seguida em nossa realidade
atual.
A extrema preocupação detalhista de La Salle com o material das Escolas Cristãs fica
clara em diversas passagens do Guia. Aqui podemos verificar como deveriam ser os cartazes,
dando indicações precisas de dimensões, tamanho, e local de afixá-los na classe; também
havia a indicação de forma das letras e de quantas letras em cada linha. Além disso, La Salle
descreve como devem estar posicionados os bancos dos alunos em sala de aula:
Os bancos dos que lêem nos cartazes não estarão nem demasiado perto nem
demasiado longe dos cartazes, para que os alunos que os lêem possam ver e ler
facilmente todas as letras e sílabas; por isso se cuidará para que a parte dianteira do
primeiro banco diste ao menos quatro pés da parede em que estão colados os
cartazes. Por este mesmo motivo, os alunos que lêem nos cartazes estarão
colocados em frente ao cartaz em que lêem, de maneira que se há 24 alunos que
lêem o cartaz do alfabeto e 12 que lêem o cartaz das sílabas, e em cada banco há 12
alunos, estarão distribuídos em três bancos, um atrás do outro, e em cada um dos
três haverá 8 alunos que lêem no cartaz do alfabeto, em frente deste cartaz, e 4 que
lêem o cartaz das sílabas, que estejam colocados de tal maneira que também fiquem
em frente.59
A preocupação do professor deve ser que o aluno faça a leitura de maneira correta, ou
seja, abrindo a boca de forma adequada, por isso o professor deverá cuidar para que “quem lê
abra bem a boca e que não pronuncie as letras entre os dentes, o que é defeito grave; nem
demasiado depressa nem demasiado devagar, nem com tom ou modo que manifeste afetação,
mas que seja muito natural. Também cuidará de que ninguém levante muito a voz ao dizer a
lição. Basta que quem leia seja ouvido por todos os da mesma lição”. 60
Em seguida, vêm as orientações de como serão as lições, indicando os livros
correspondentes: o primeiro livro deve ser usado para a leitura de palavras soltas; o segundo
livro será usado para os que já conseguem ler sem dificuldades o livro anterior; o terceiro e o
59
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 22.
60
Ibidem, p. 24.
59
quatro livro deverão ser lidos, obedecendo-se a pontuação das frases; também haverá os
cartazes de vogais e consoantes, de pontuação, de acentos gráficos e de números.
O Guia das Escolas apresenta, em sua versão original, no manuscrito de La Salle, de
1706, o modelo destes cartazes, o conteúdo e a disposição do mesmo em cada um deles. A
título de ilustração, apresentamos os cartazes do alfabeto e das sílabas:
a
b
c
d
e
A
B
C
D
E
f
g
h
i
y
F
G
H
I
Y
j
l
m
n
o
J
K
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B
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me
ba
et
eux
ai
ga
nos
em
ji
jo
lhu
of
cu
qui
oeu
em
ci
cho
vu
go
ont
ny
ge
in
gne
ah
on
sça
im
eu
xi
gue
he
ou
pei
est
ce
el
cum
gu
ji
nez
om
ex
ir
hau
co
ze
moy
Quadros 8, 9 e 10 – Cartazes do alfabeto e das sílabas
61
Conforme se pode observar, estes cartazes, afixados na sala, eram confeccionados com
a língua materna. Não havia nenhuma indicação de cartazes em latim; e esta língua
“representava a língua da religião, da filosofia, da diplomacia, da literatura.”62 Isto evidencia a
corajosa opção de La Salle, sacerdote e ex-cônego da Catedral de Reims, em deixar o latim,
língua oficial da Igreja, para um momento posterior.
La Salle faz uma afirmação categórica, em relação a este tema, pois, desde o começo
das suas escolas, ele exige que primeiro se aprenda a ler em francês e somente depois em
61
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 21.
62
Moacir Gadotti. História das idéias pedagógicas. 8. ed. São Paulo: Ática, 2002, p. 77.
60
latim. Neste caso, “o livro em que se aprende a ler em latim será o saltério; nesta lição não se
colocará a não ser os que sabem ler perfeitamente em francês.” 63
La Salle, de fato, não inovou, no sentido de exigir, em suas escolas, o ensino da língua
vernácula – o francês – antes do latim, que predominava como língua eclesiástica. Já havia
outras experiências na época, na própria França, como a escola de Port-Royal; ou mesmo na
indicação de Comenius: “Aprenda-se um língua por vez. Em primeiro lugar, a língua
vernácula; depois, a que será usada em seu lugar, como a língua dos povos confinantes (as
línguas vulgares devem preceder as doutas); a seguir, o latim e depois o grego e o
hebraico.”64. Entretanto, tal postura de La Salle chama a atenção pelo fato de que, se o ensino
a partir ou primeiramente do francês começasse a ser comum na França, seria, de certa forma,
impensável numa instituição ligada à Igreja, em especial, numa sociedade de professores
organizada por um sacerdote.
A atitude de La Salle parece indicar sua preocupação primeira com a real formação
dos alunos que freqüentavam suas escolas, antes das formalidades eclesiais. É nítida sua
postura combativa em relação a este tema. E é um princípio importante e essencial, o de
defender uma postura objetiva em relação à educação, ainda que contrária a uma influência
política ou ideológica predominante, que não faça sentido, do ponto de vista científico.
Sobre esta questão, e por ser sacerdote, La Salle foi duramente questionado pelos seus
superiores eclesiásticos; mas se manteve firme em sua convicção e concepção de educador,
fazendo valer o seu comprometimento com uma postura assumida coletivamente pelos
professores. Se, por um lado, educar “é preparar o educando para uma opção, um
compromisso diante de um determinado projeto da sociedade”, por outro, é preciso ter
consciência de que o “primeiro que se deve comprometer é o próprio educador. Um educador
neutro, sem opções fundamentais em nível de um conceito justo da sociedade é um homem
perigoso, porquanto será um cego a serviço de objetivos que ignora ou que não analisa com
coragem”65. E foi com essa postura, aparentemente comprometida e com coragem, que La
Salle não alterou suas convicções e práticas.
Para deixar claro suas intenções, com o ensino do francês, La Salle escreveu um
pequeno texto, de caráter explicativo, denominado “Memorial a favor da leitura em francês”.
Este memorial foi escrito por La Salle a partir de um acontecimento, ocorrido na escola aberta
63
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 31.
64
Comenius. Didática Magna. 2. ed. Trad. bras. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 255.
65
Alfredo Morales. O desafio de ser educador. Trad. bras. Canoas: La Salle, 1998, p. 63.
61
em Chartes, no ano de 1689, a pedido do Monsenhor Godet de Marais, arcebispo daquela
diocese.
Depois de pouco tempo trabalhando na escola, o arcebispo fez uma intervenção, pois
percebeu que os Irmãos das Escolas Cristãs não ensinavam os meninos a ler primeiro em
latim, e depois em francês, como era costume, naquela época, em todas as escolas da igreja.
Ele pediu aos Irmãos que fizessem como em todas as partes, e ensinassem primeiro em latim.
A questão chegou ao conhecimento de La Salle, que se dirigiu pessoalmente ao arcebispo, e
também por escrito, dando origem ao texto que, por considerarmos importante, transcrevemos
por completo:
A leitura do francês é de utilidade muito maior e mais universal que a leitura
do latim. Ao ser a língua francesa a nativa, é, sem comparação, muito mais fácil de
ensinar que a latina, a crianças que entendam aquela, mas que não compreendem
esta. Em conseqüência, necessita-se de muito menos tempo para ensinar a ler em
francês que para ensinar a ler em latim.
A leitura do francês prepara para a leitura em latim; o contrário, a leitura em
latim não prepara para a francesa, como ensina a experiência. A razão é que para ler
corretamente latim, basta apoiar todas as sílabas e pronunciar devidamente todas as
palavras, o que resulta fácil se se souber soletrar e ler em francês. De onde
concluímos que as pessoas que sabem ler corretamente o francês, aprendem
facilmente a ler em latim; e que, ao contrário, se requer ainda muito mais tempo
para ensinar a ler em francês, depois de haver dedicado também muito tempo para
ensinar a ler em latim.
Por que se necessita muito tempo para ensinar a ler em latim? Já foi dito:
porque as palavras são estranhas para as pessoas que não entendem o sentido das
mesmas, e lhes resulta difícil reter as sílabas e soletrar corretamente palavras cujo
significado não compreendem.
Que utilidade pode ter a leitura do latim para pessoas que não o utilizarão
nunca em sua vida? Ou que uso podem fazer da língua latina os jovens de um e de
outro sexo, que chegam nas escolas cristãs e gratuitas? As religiosas que recitam o
Ofício Divino em latim, sim, necessitam, realmente, saber lê-lo muito bem; mas, de
cem meninas que chegam às escolas gratuitas, haverá apenas uma que chegue a ser
jovem de coro num monastério?
De igual modo, de cem meninos que vão às Escolas dos Irmãos, quantos têm
que estudar a língua latina? E ainda que houvesse vários, haveria que favorecê-los,
em prejuízo dos demais? A experiência ensina que aqueles que vão às escolas
cristãs não perseveram muito tempo; não ficam durante o tempo necessário para
aprender a ler bem o latim e o francês. Quando chegam á idade para trabalhar, se
62
retiram; e já não podem voltar, porque precisam ganhar a vida. Sendo assim, se se
começa ensinando-lhes a ler em latim, os inconvenientes que se seguem são os
seguintes: retiram-se antes de haver aprendido a ler o francês, ou de saber fazê-lo
devidamente. Quando se retiram, não sabem ler em latim, a não ser
imperfeitamente, e em pouco tempo esquecem o que sabiam. Disso se segue que
nunca sabem ler, nem em latim nem em francês. E, enfim, o inconveniente mais
prejudicial é que quase nunca aprendem a doutrina cristãs.
De fato, quando se começa ensinando aos jovens a ler em francês, ao menos
sabem lê-lo bem quando deixam a escola. Ao saber ler bem, podem instruir-se por
si mesmos na doutrina cristã; podem aprender nos catecismos impressos; podem
santificar os domingos e festas com a leitura de livros bons e com orações bem
compostas em língua francesa. Pelo contrário, ao retirar-se das escolas cristãs e
gratuitas não sabem ler mais que em latim, e de forma muito imperfeita,
permanecem toda sua vida na ignorância dos deveres do cristão.
Finalmente, a experiência ensina que quase todos aqueles e aquelas que não
entendem o latim, que não têm estudos, nem usam a língua latina, sobretudo as
pessoas simples, e com muito mais razão os pobres que vão às escolas cristãs,
nunca chegam a saber bem o latim, e quando o lêem, dão lástima aos que entendem
esta língua. Portanto, é totalmente inútil dedicar muito tempo para ensinar a ler
devidamente uma língua a pessoas que nunca vão utilizá-la. 66
Transparece, neste texto, uma outra forte característica do temperamento de La Salle.
Ao lado de seu caráter metódico, lógico, minucioso e cartesiano, soma-se o seu caráter
pragmático. Em resumo, o que La Salle defende é que ensinar latim a quem não vai utilizá-lo
não pode ser prioritário; aos meninos franceses deve-se ensinar o francês; o latim viria depois
e somente depois de bem aprendido a ler e a escrever em francês.
La Salle solicita que os professores façam uma comparação entre a língua latina e a
língua francesa, de maneira que os alunos compreendam as diferenças e semelhanças entre
elas, como se pronunciam as palavras, o que existe de semelhante entre o francês e o latim, a
diferença de pronúncia, de pontuação. Até do ponto de vista lingüístico, esta postura é mais
adequada, uma vez que, ao se dominar a estrutura de uma língua, por comparação, é mais
fácil dominar a estrutura de outra.
Sobre esta questão do ensinamento da língua materna, poderíamos levantar alguns
questionamentos. No caso do Brasil, se não existe hoje esta preocupação com relação ao
ensino do português, antes do inglês e do espanhol, merece a menção o fato de que existe uma
66
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo III. Escritos personales. Trad. Esp. Madrid: Ediciones
San Pio X, 2005, p. 107-108.
63
dificuldade prática no que diz respeito à questão das línguas indígenas. Prevê a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em seu Artigo 32, inciso IV, parágrafo 3º que o
“ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às
comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de
aprendizagem”. Portanto, trata-se de uma questão que, em menor escala e em situações
específicas, ainda precisa de legislação que garanta o uso da língua materna.
Após aprender a ler em francês e latim, os alunos das Escolas Cristãs passarão a
escrever. Enquanto isso, lerão um livro muito específico, escrito pelo próprio La Salle:
Quando os alunos souberem ler perfeitamente, tanto em francês como em latim, se
lhes ensinará a escrever, e enquanto começam a escrever, se lhes ensinará a ler no
livro de Urbanidade. Este livro contém todos os deveres, tanto para com Deus como
para com os pais, e as regas de cortesia civil e cristã. Está impresso em letra gótica,
mais difícil de ler que os caracteres franceses. 67
Esse livro de urbanidade, referido por La Salle, tem o nome de “Regras de Cortesia e
Urbanidade Cristã para uso das Escolas Cristãs” e apresenta posturas básicas de civilidade,
boas maneiras e etiqueta. Parece que La Salle quer apresentar aos seus alunos, vindos das
camadas mais pobres da França de sua época, as mínimas regras de etiqueta, para que possam
comportar-se adequadamente em sociedade.
O interesse deste livro está no fato de que, da mesma forma com que La Salle redige o
Guia das Escolas, ou seja, com a preocupação nos mínimos detalhes, este também apresenta
como se devem portar os alunos com relação à aparência, cabelo, limpeza, roupa, posturas à
mesa, etc.
Vejamos o conteúdo desta obra, em linhas gerais, de maneira a compreender o que os
alunos deveriam aprender ao longo de sua permanência nas Escolas Cristãs:
a) A primeira parte do livro trata da compostura, do recato e dos modos de portar-se
em relação às diversas partes do corpo: cabeça, orelhas, cabelo, rosto, sobrancelhas,
bochechas, olhos, nariz, boca, lábios, dentes, língua, ombros, braços, cotovelos, mãos, dedos,
unhas, perna, calcanhar, pés. Esta parte também dá orientações de como se deve falar,
pronunciar as palavras, bocejar, tossir, escarrar, e das partes do corpo que se devem manter
ocultas e das necessidades naturais.
67
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 31.
64
b) A segunda parte, última e bem mais extensa, trata dos modos de agir em
determinadas circunstâncias específicas: do modo de levantar-se, de vestir-se e desnudar-se;
do cuidado e da limpeza das roupas, das capas, das camisas, das meias e dos sapatos; dos
modos referentes à alimentação, limpeza das mãos, maneiras de portar-se à mesa, uso dos
talheres, como servir-se dos alimentos, como comer e beber adequadamente, como levantar-se
e sair da mesa; modos de portar-se nas diversões, passeios, jogos e cantos; dos modos de
portar-se quando se visita uma pessoa, como entrar na casa, as saudações, a conversa, a
despedida; o modo de portar-se nas conversas em geral, uso da cortesia nas palavras, a
sinceridade, os modos de perguntar, comentar ou expressar sua opinião; e dos modos andar
pelas ruas.
Assim, os alunos aprendiam algumas posturas, muitas delas básicas, que não
aprendiam em casa, com seus pais. Por exemplo: não deixar que se amontoe muita sujeira nas
orelhas, limpando-as regularmente, com um instrumento fabricado expressamente para isso;
ou que o rosto deve mostrar alegria, sem relaxo nem dissipação; serenidade, sem cair no
descuido; abertura, mas sem muita intimidade; deve ser doce e não transparecer amargura; e
outras indicações afins.
Era um momento interessante de leitura e aprendizagem, em que se unia a técnica de
ler com a aquisição de regras e orientações de bons modos. Além disso, tal obra extrapolou o
âmbito das Escolas Gratuitas de La Salle, conforme nos apresenta Alain Houry, ao comentar
que esta obra “é a mais elaborada do fundador dos Irmãos. Para os livreiros, foi um êxito
editorial desde 1703, com quatro edições na vida do autor, trinta antes da Revolução Francesa,
e cento e trinta no século XIX, sem contar as obras dos que o adaptaram para as meninas.
Depois da Bíblia, os tratados de urbanidade de Erasmo de Roterdã e de João Batista de La
Salle parecem haver sido os maiores êxitos editoriais da história do livro”68, o que evidencia a
sua importância, tanto para a educação realizada nas escolas, como para a sociedade como um
todo.
Esta preocupação com a etiqueta social ainda é de importância considerável em nossa
realidade; em muitos aspectos, ela é mais importante agora, que na época de La Salle. Um
fato que justifica esta afirmação é o quadro denominado Etiqueta Urbana, apresentado pela
Rede Globo de Televisão, em seu programa dominical Fantástico; em tal quadro, são
apresentadas situações práticas, vividas nas grandes cidades, que solicitam uma postura
68
Alain Roury. Para leer las Reglas de Urbanidad y Cortesía Cristiana. IN: Lasalliana 37. Roma: Hermanos de
las Escuelas Cristianas, s/d., p. 7.
65
adequada das pessoas. Na prática, entretanto, esta temática não é tratada em nossas escolas, de
maneira formal, organizada e objetiva.
Outra interessante indicação de La Salle é que, na última lição, os alunos deveriam
aprender a ler naquilo que se denominou manuscrito. Por manuscrito, se entendiam os papéis
ou pergaminhos, escritos à mão, com letras cursivas. Há a indicação de que, em cada casa
deveria haver bom número deles, diferentes e distintos uns dos outros, segundo a facilidade
ou dificuldade que possa haver para lê-los.
Em geral, os manuscritos eram recibos, contratos, promissórias e outros textos desta
natureza. Isto porque a grande parte dos alunos, de classe pobre, ou filhos de artesãos,
trabalhariam ou teriam contato, posteriormente, com esta espécie de documento escrito. Esta
posição evidencia, novamente, o interesse e o objetivo de que as Escolas Cristãs pudessem
atender às reais necessidades dos seus alunos.
5. Das lições de escrita
Nesta parte, temos algumas indicações de como era feito o trabalho sobre a escrita.
Para La Salle, antes de começar a escrever, é necessário que os alunos saibam ler
perfeitamente, tanto em francês como em latim. Mas há uma ressalva interessante no Guia:
“Contudo, se ocorrer que algum aluno chegue aos doze anos e ainda não começou a escrever,
poderá passá-lo à escrita, antes que saiba ler em latim, contanto que saiba ler bem e
corretamente em francês, e que se creia que não continuará indo à escola o tempo necessário
para aprender a escrever como convém.” 69
Novamente, o princípio que rege as posturas adotadas nas escolas é o do bom senso e
o de atendimento às necessidades dos alunos: se fosse necessário, o professor deveria dedicarse a possibilitar que o aluno saísse da escola somente depois de saber ler e escrever, e bem,
em francês. As outras atividades seriam relativizadas, nesta situação.
Extremamente interessante também é a parte que relata sobre as “coisas particulares
que se usam na escrita”. Nesta parte do Guia, extremamente detalhista e minuciosa, La Salle
apresenta o material escolar necessário para que os alunos possam escrever. Além da
descrição do material, faz-se a indicação de como deve ser conservado e utilizado70:
69
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 32-33.
70
Ibidem, p. 33-37.
66
a) O papel: O professor cuidará que os alunos tenham papel branco na classe, que
deverá ser pedido pelo aluno a seus pais; que o papel não seja demasiado grosso, nem
demasiado escuro, nem demasiado duro; que o papel seja branco e compacto, bem seco e bem
colado, e não deve absorver tinta facilmente, pois dificultaria a boa escrita; que os alunos
mantenham sempre seu papel muito limpo, sem dobras.
b) As penas para a escrita: Cada aluno deve levar à escola, a cada dia, ao menos duas
plumas grandes, para que possam escrever com uma enquanto se aponta a outra. Estas plumas
não devem ser nem muito grossas nem muito finas, e devem estar limpas. O professor deve
observar que os alunos não as coloquem na boca.
c) A tinta: Será fornecida aos alunos, nos tinteiros, colocados entre cada dois alunos. O
professor procurará que os alunos tomem tinta em quantidade moderada, molhando somente o
extremo da pluma, sacudindo o excesso no tinteiro, e nunca no chão.
d) Os modelos: trata-se de moldes vazados com as letras do alfabeto, para que os
alunos com dificuldades possam escrever corretamente.
e) Papel pautado e mata-borrão: Serão utilizados para os alunos com dificuldades em
escrever em linha reta e quando o excesso de tinta puder estragar a atividade dos alunos.
Após essas interessantes descrições do material para a escrita, o Guia apresenta o
conteúdo dessas aulas de escrita, que acontecerão duas vezes ao dia, conforme horário
apresentado anteriormente. Entretanto, para atender às necessidades específicas de alguns
alunos, La Salle faz uma concessão: “Se acontecer que alguns alunos puderem ir à escola
somente por pouco tempo, e que necessitem escrever mais tempo que os demais, para
escrever devidamente, se lhes poderá permitir que escrevam durante todo o tempo da aula,
exceto no tempo de leitura dos manuscritos, das orações e do catecismo.”71
Trata-se, portanto, de uma postura louvável, sobretudo quando vem de uma
personalidade extremamente metódica como a que La Salle apresenta. Fica novamente
evidente, nesta postura prevista no Guia, que o mais importante é adaptar a realidade da
escola às necessidades dos alunos, de maneira que se possa atendê-los da melhor maneira
possível. Embora houvesse um detalhamento preciso e exigente de todos os horários e
atividades, tudo ficava subordinado ao que seria mais adequado à aprendizagem do aluno.
Para exercitar a escrita, La Salle também faz uma indicação que leva em conta a
realidade e a necessidade dos alunos. A aula da escrita estava baseada na cópia de outros
textos, que o Guia assim regulamenta:
71
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 35.
67
Para este fim, se fará que copiem, todos os dias pela manhã, de alguns bons livros,
sobretudo coisas práticas e que lhes convenham; e todos os dias pela tarde, copiarão
os documentos manuscritos, especialmente diligências de citação e de embargo,
letras de câmbio, recibos, orçamentos e contratos de trabalho, arrendamentos e
documentos notariais de diversas classes. Quando tiverem copiado durante três
meses documentos manuscritos, duas vezes por semana, nos dias em que se ensina
aritmética, em vez de copiar este tipo de documentos, redigirão eles mesmos,
cartas, letras, recibos, arrendamentos, contratos de trabalho e outras coisas que
possam ser úteis para o futuro. O professor cuidará de que os desta ordem escrevam
todas estas coisas com escrita corrida, bem legível, e com correta ortografia. Os
professores lhes corrigirão as faltas que cometerem, tanto na redação como na
escrita, ortografia e pontuação. 72
Esta indicação do Guia sinaliza um princípio fundamental da educação, que por vezes
foi esquecido ou negligenciado nas práticas de sala de aula. Trata-se do princípio de que a
educação deve fazer sentido, ou seja, o aluno deve ser educado dentro de um contexto tal em
que o processo de ensino e aprendizagem possa refletir a sua realidade, possibilitando-o a agir
nessa mesma realidade.
Num contexto de extrema rigidez educacional, é, de fato, notória a postura de La Salle
em orientar seus professores a trabalhar com os alunos a partir daquilo que lhes seja útil,
prático e que terá valor em suas vidas, e não simplesmente trabalhar com conhecimentos
desconectados da realidade e sem nenhuma utilidade prática. O princípio, portanto, ainda é
valido para a educação atual.
Neste trecho do Guia, também aparece uma característica que não é explicitada na
organização das escolas, mas que, pela sua importância, deve ser considerada. Além da leitura
e da escrita, que predominam no currículo das Escolas Cristãs, este trecho indica um
procedimento de produção de texto. Evidentemente trata-se de um tipo de texto muito
específico, de caráter comercial e legal, mas os alunos são solicitados a produzir, a criar este
tipo de texto, além de simplesmente copiar de modelos manuscritos.
Ainda na linha de cuidar do aluno como um todo, o Guia também traça algumas
orientações, específicas e detalhistas, a respeito da postura física que o aluno deve manter
para fazer as atividades referentes à escrita:
72
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 37.
68
O professor cuidará que os alunos tenham o corpo o mais direito possível, e que não
o inclinem mais que um pouco, sem tocar a mesa, de modo que tendo apoiado o
cotovelo na mesa, possam apoiar o queixo no punho. Devem ter o corpo
ligeiramente virado e livre para o lado esquerdo, de maneira que todo o peso recaia
sobre este lado. O professor exigirá que mantenham exatamente todas as posturas
que se referem à posição do corpo, tal como estão indicadas nas normas da escrita.
Cuidará, sobretudo, de que não separem muito do corpo o braço direito, e que não
apóiem o estômago na mesa. Pois, além desta postura ser muito desagradável, isso
lhes poderia causar graves moléstias. Para fazer que mantenha bem o corpo, o
professor colocará, ele mesmo, o aluno na postura que deve ter. Para este fim,
colocará cada membro no lugar em que deve estar e, quando observar que muda de
postura, cuidará de voltar a colocá-lo bem.73
Novamente, a preocupação com a postura correta demonstra especial atenção à pessoa
do aluno, em sua integridade; isto numa época em que certos valores referentes à dignidade da
pessoa humana não eram considerados. Vemos aqui uma preocupação com a saúde do aluno e
sua postura como requisitos fundamentais e primeiros, para que possa começar a escrever. Da
mesma forma, observa-se a preocupação do professor em tocar o aluno, no sentido de colocálo na posição adequada.
Além da postura do corpo, o Guia apresenta como deve ser a postura do aluno, ao
segurar a pluma para escrever.
A segunda coisa que deve cuidar o professor na escrita é ensinar a segurar bem a
pluma e o papel; e este cuidado é importante, pois os alunos que não tiverem sido
formados primeiro em sustentar bem a pluma nunca escreverão bem. Para ensinar
devidamente o modo de sustentar bem a pluma, o professor deve acomodar ele
mesmo a mão do aluno, colocar a pluma entre seus dedos, do modo como se indica
na regra da escrita. 74
Seguem, no texto do Guia, as outras indicações a respeito da escrita e do procedimento
do professor: ensinar o aluno a traçar bem as letras; ensinar a manter uma pressão adequada
da pluma sobre o papel; de vez em quando, guiar a mão do aluno com dificuldade;
acompanhar de perto os alunos com mais dificuldades.
73
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 38-39.
74
Ibidem, p. 39.
69
Nesta passagem, podemos perceber que La Salle queria uma proximidade com os
alunos. É de extremo cuidado afetivo esta aproximação entre professor e aluno, pegando em
sua mão de vez em quando, para guiar-lhe a mão, para escrever de forma correta.
Também é interessante a indicação que La Salle faz para mostrar aos alunos como se
aponta uma pluma. Mais uma vez, trata-se de um exemplo de seu estilo de escrever, com
minúcias e detalhes, explicando os catorze passos através dos quais o professor deve ensinar
ao aluno: o modo de arrancar os pêlos da pluma; o modo de segurá-la com os dedos; o modo
de abrir a pluma; o modo de segurar a pluma para cortá-la; com que e de que modo se deve
cortá-la; em que altura se deve cortá-la para cada um dos diferentes tipos de letra; o modo de
esvaziá-la; o modo de fazer a inclinação do corte; que lado do corte deve ser mais grosso e
mais fino; que lado deve ser mais curto; o modo de fazer a profundidade dos cortes; o modo
de afinar o bico da pluma; como segurar o cortador de plumas; onde deve ser apoiada a pluma
para ser cortada. Para que os alunos possam compreender cada um desses procedimentos, La
Salle dá a seguinte orientação:
O professor, para conseguir que os alunos compreendam, retenham e pratiquem
bem todas estas coisas relativas ao modo de apontar corretamente a pluma, fará três
coisas: primeiro, durante três dias apontará uma pluma nova em presença do aluno,
o aluno observará e o professor explicará ao aluno tudo o que faz para apontá-la, e
como o faz; segundo, o professor apontará uma pluma diante do aluno e
imediatamente fará que o mesmo aluno aponte outra, indicando-lhe o que deve
fazer e o modo de realizá-lo bem, e quando se equivoque, o corrigirá, e isto o fará
durante oito dias; terceiro, o professor mandará o aluno que aponte uma antes de
apresentá-la a ele, sem dizer-lhe nada do que há de fazer, e logo lhe fará notar os
defeitos que possa ter cometido ao apontá-la, e lhe mandará corrigi-lo, e isto o
mandará fazer até que saiba apontá-la perfeitamente. 75
Observa-se, com esta postura, certa concepção de educação, em que, primeiramente o
professor explica e faz, e o aluno observa; depois o professor faz e orienta o aluno a fazer,
diante dele; em seguida o aluno faz e apresenta ao professor, que o orienta sobre o que fez.
Mais uma vez, existe certa gradação no processo, proporcionando que o aluno possa ir
aprendendo e fazendo, crescendo aos poucos com a teoria e a prática. Este procedimento
também nos remete aos quatro pilares da educação, propostos no Relatório para a UNESCO
75
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 41.
70
da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI76, coordenado por Jacques
Delors: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser.
Ainda sobre a escrita, o Guia indica que os professores devem acompanhar de perto
este trabalho dos alunos, verificando se as letras estão sendo traçadas de forma adequada. Para
isso, os professores corrigirão e orientarão os alunos, no que diz respeito ao traçado das letras,
separação, distância, altura, traçado grosso e fino, letra minúscula e maiúscula, explicando ao
aluno cada uma das indicações que fizer.
Para corrigir a escrita, o professor deveria fazê-lo “assinalando com um pequeno traço
de pluma as principais faltas que possam ter cometido. No começo, terá cuidado de não
assinalar mais do que três ou quatro defeitos, por temor que se confundam se lhes assinalar
maior número, e que esqueçam o que lhes havia ensinado.”77 Está presente, aqui, a questão da
auto-estima: corrigir pouca coisa de cada vez, para garantir que melhore o pouco que foi
indicado. Em seguida, corrigir as demais.
Além disso, La Salle indica que “o professor, ao corrigir a escrita dos alunos, não
escreverá no papel nenhuma linha, nenhuma palavra; bastará que faça a letra que o aluno
traçou mal, e se comete a falta no enlace, escreverá as duas letras enlaçadas ou a sílaba.”
78
Trata-se de indicar ao aluno o seu erro, mas não de reforçá-lo. A postura do professor, aqui, é
a de indicar a letra como deve ser feita corretamente, e não simplesmente ressaltar a letra
escrita errada pelo aluno. Novamente, se observa uma preocupação de caráter mais profundo,
do que simplesmente de corrigir um aluno; é uma postura educativa com sentido positivo, que
assinala a falha, mas não condena quem falhou.
6. Da aritmética, ortografia, religião e saída da escola
Apesar de ocuparem pouco tempo das atividades desenvolvidas nas Escolas Cristãs,
também existem indicações interessantes acerca do ensino das quatro operações
matemáticas79. Dentre elas, destacamos:
a) Cada aluno deveria ter um caderno específico para realizar as contas. A organização
requerida por La Salle, para as escolas, também era requerida dos alunos. O material referente
à escrita era separado do material referente à aritmética.
76
Cf. UNESCO. Educação: um tesouro a descobrir. São Paulo: Cortez; MEC; UNESCO, 1998.
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 42.
78
Ibidem, p. 43.
79
Ibidem, p.45-48.
77
71
b) Para as aulas de aritmética, o aluno deveria estar pelo menos na segunda ordem de
escrita, ou seja, sabendo ler e escrever. Era um pré-requisito importante para que
compreendesse de forma adequada as operações a serem realizadas.
c) A aula de aritmética acontecia duas vezes por semana, mas era suficiente para que o
aluno pudesse dominar as quatro operações.
d) Além de escrever e fazer as contas no seu caderno, o aluno, habitualmente, durante
este horário, conforme solicitação do professor, deveria desenvolvê-las em voz alta, para que
a classe toda pudesse acompanhar.
e) Ao fazer a operação indicada, o aluno deveria ser questionado pelo professor sobre
como realizou o cálculo, com a intenção de que compreendesse bem a conta que estava
realizando e o raciocínio que utilizou para tal.
f) O professor deveria interrogar, de vez em quando, outros alunos da classe, para
verificar se estavam atentos, compreendendo e acompanhando as atividades.
g) Se o aluno que realiza a operação se enganasse em alguma conta, o professor não
deveria corrigi-lo diretamente; indicava um outro aluno da classe para confirmar ou corrigir a
conta feita por seu colega.
No que diz respeito à aritmética, portanto, o trabalho era desenvolvido de forma mais
ativa por parte do aluno, que não só fazia as contas solicitadas, mas também se envolvia no
processo de realizá-las. Tal procedimento garantia – e garante – ao professor a capacidade de
compreensão do raciocínio do aluno, podendo orientá-lo sobre isso e garantindo que a conta
não seja apenas uma atividade mecânica.
Já para o trabalho com a ortografia, valia uma indicação semelhante à da cópia dos
textos manuscritos, sempre com a clara observação de que este exercício deveria ser feito a
partir de textos úteis e que os alunos poderiam necessitar no futuro. Na lista dos textos, além
dos citados nos manuscritos, La Salle acrescenta contratos, recibos, procurações, contratos de
aluguel e venda, notificações, atas etc.
Isto deveria ser feito “para que possam gravar estas coisas na imaginação e aprendam
a fazer outras parecidas”80, ou seja, a partir dos exemplos dados e trabalhados, possam
extrapolar e ampliar o conhecimento, adaptando o que sabem a novas situações. E mais:
depois de estarem familiarizados com estes documentos, o professor deveria solicitar que
redigissem, por conta, novos contratos, recibos, memórias de obras realizadas em diversas
80
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p.48.
72
profissões, recibos de entrega de mercadorias, orçamentos de mão-de-obra etc. Novamente,
coisas úteis, que fazem sentido, que são práticas e significativas para a sua realidade.
Nossa investigação, conforme explicitado anteriormente, tem o seu foco nos aspectos
educacionais, administrativos e comunicativos que se podem verificar pelo texto do Guia das
Escolas. Não temos intenção, nesta pesquisa, de salientar as questões especificamente de
posturas e práticas religiosas, adotadas nas Escolas Cristãs de La Salle.
Entretanto, como já foi aludido anteriormente, não é possível tratar da obra de La Salle
sem tocar na questão religiosa. Assim, entendemos a religião, conforme nos apresenta Edgar
Morin, como uma força ramificada em milhões de almas, que tem relação com a história, com
a sociedade, com o homem e que possibilita compreender melhor a humanidade81 e, como tal,
não pode ser negligenciada.
Apesar disso, salientamos que, historicamente, os valores religiosos vivenciados de
forma proselitista, combativa e ideológica têm contribuído mais para a manipulação dos
indivíduos do que para o seu crescimento. Muitas vezes, sob o disfarce de propagação de
determinados valores, se utiliza da religião para manipular e legitimar, para garantir certo
poder, de caráter fortemente simbólico, para atender a determinadas ideologias. La Salle, de
certa forma, viveu esta realidade e participou ativamente dela, pois estava inserido na
hierarquia da Igreja Católica e no processo da Contra-reforma.
Mas também concordamos com Leonardo Boff, quando defende uma nova postura
desses valores religiosos, que algumas pessoas, na liberdade, podem assumir; concordamos
que “o sagrado impõe sempre limites à manipulação do mundo, pois ele dá origem à
veneração e ao respeito, fundamentais para a salvaguarda da Terra”
82
e para a boa
convivência entre as pessoas. Se os valores religiosos forem encarados assim, revestem-se de
uma característica educativa, pois educam as pessoas para a boa convivência e a tolerância.
Assim, a escola poderia trabalhar com esta dimensão religiosa, entendida de forma não
dogmática.
Por outro lado, sabemos que a religião propõe idéias acerca da existência humana, mas
“as idéias não são reflexos do real, mas traduções/construções que assumiram a forma de
mitologia, religiões, ideologias e teorias (todas elas são modos de construir, esboçar pontes
sobre o abismo da ignorância), e, como tais, são suscetíveis de erro”
81
83
. Isto podemos
Edgar Morin. X da questão: o sujeito à flor da pele. Porto Alegre: Artmed, 2003, p. 196.
Leonardo Boff. Ética da Vida. Brasília: Letraviva, 1999, p. 30.
83
Edgar Morin, Emilio-Roger Ciurana e Raúl Domingo Motta. Educar na era planetária. Trad. bras. São Paulo:
Cortez; UNESCO, 2003, p. 26.
82
73
verificar, no caso deste estudo, com relação a algumas posturas assumidas por La Salle, e que
seriam impensáveis nos dias de hoje.
Em suma, o que queremos expressar com relação a este tema é que a religião, como
manifestação e expressão cultural humana, pode ser manipuladora e passível de erro.
Entretanto, isto não pode justificar a ausência de um trabalho que leve em conta a realidade
dos valores na escola, inclusive dos valores religiosos, pois, quando se pretende uma
educação integral, a dimensão religiosa do humano está sempre presente (ainda que possa ser
interpretada, concebida ou vivenciada de formas distintas). Por isso, a escola tem uma função,
em relação a este aspecto:
a escola deve desempenhar um papel na educação em valores; entretanto, pode
retrair-se, deixando a consideração dos valores a outras instituições (família, Igreja
etc.). É importante assumir a responsabilidade da formação integral do aluno.
Porém, em uma sociedade plural, em que convivem (coexistem) diferentes sistemas
de valores, não se inscreve, nem pode, na imposição de uma opção concreta de
valor, nem tampouco na inibição e no silêncio daquilo que constitui o núcleo
central para compreender o dinamismo funcional da pessoa. 84
Ciente disso, não pretendemos, nesta pesquisa, fazer esta análise acerca da obra e da
postura de La Salle em seus aspectos exclusivamente religiosos. Aqui, apenas observamos
que o que se segue no texto do Guia são as indicações de orações a serem feitas nas escolas.
Apenas para conhecimento, citamos as indicações de La Salle para esta prática religiosa. As
práticas religiosas eram as seguintes: orações diárias na sala de aula; orações no começo da
aula, antes e depois do café da manhã e da merenda; durante as aulas, deveria haver sempre
um aluno recitando o rosário, num espaço destinado para isso; orações antes de começar a
estudar cada lição; cinco reflexões a cada dia, no início da manhã. Além da indicação das
práticas e das atividades religiosas, La Salle descreve a postura exigida dos alunos durante as
orações e durante a missa, celebração que ocorria todos os dias, na igreja mais próxima da
escola.85 De fato, hoje em dia, nem mesmo nas escolas confessionais, esta rotina acontece.
Conforme indicado nas fontes que consultamos, via entrevista pessoal ou por correio
eletrônico, nenhuma das atuais escolas de La Salle mantém esta estrutura religiosa, conforme
apresentada pelo Guia.
84
Gloria Pérez Serrano. Educação em valores: como educar para a democracia. 2. ed. Trad. bras. Porto Alegre:
Artmed, 2002, p. 125.
85
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 49-58.
74
Se, por um lado, esta dimensão religiosa específica possa sofrer crítica, sobretudo nas
realidades escolares avessas a ela, também existe a questão da educação moral. Uma e outra,
quando trabalhadas com enfoque estritamente educacional, promovem o crescimento
equilibrado do aluno. Rousseau prega que “as aulas de moral são a morte de toda boa
educação”86. Se nos parece difícil traçar uma moral universal, é necessário, ao menos,
trabalhar uma moral que leve em consideração a realidade pessoal, comunitária e social de
uma dada comunidade em que a escola está inserida. Por isso, contrariamente a Rousseau,
considero-a importante, como Bogdan Suchodolski, porque
justamente, diz respeito à nossa vida cotidiana em situações sociais concretas. A
educação moral é o problema do homem no pleno sentido da palavra, do homem
que vive e sente. A ciência social deve tornar-se um instrumento da educação moral
assim concebida, pois permite compreender e justificar os deveres dos homens e
auxiliá-los a resolver os seus problemas de consciência frente às opções difíceis.
(...) A educação moral deve fundamentar-se na educação sistemática do homem
desde a sua mais tenra infância, numa educação que desenvolve e crie este impulso
do coração... 87
É com a educação religiosa ou com a educação moral, ou com ambas, que uma criança
pode crescer integralmente, porque estas realidades fazem parte da constituição humana e são
necessárias para uma convivência social equilibrada e respeitosa. La Salle trabalhou esta
dimensão de forma predominante, em suas escolas; não se trata, entretanto, de transpor essa
prática para as escolas de hoje, mas de encontrar um meio em que os alunos possam trabalhar
estes aspectos da personalidade de qualquer ser humano.
Aliás, como bem o expressa Byington, não se pode negligenciar esta dimensão da
nossa humanidade, querendo que a escola trabalhe apenas a dimensão racional humana:
A sabedoria da humanidade, expressa desde tempos imemoriais através de crenças,
mitos e religiões, sempre teve um denominador comum: expressar que o ser
humano está abaixo ou aquém de Deus. Na dimensão filosófica, os grandes
pensadores têm expressado o equivalente desse fato ao afirmarem que a razão
humana não tem capacidade de conhecer a essência da realidade. Seja através do
Mito da Caverna de Platão, segundo o qual a realidade à qual temos acesso é
formada por sombras no fundo de uma caverna oriundas de objetos que jamais
86
Jean-Jacques Rousseau. Emílio ou Da educação. Trad. bras. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 544.
Bogdan Suchodolski. A Pedagogia e as grandes correntes filosóficas. Trad. bras. São Paulo: Centauro, 2002,
p. 104-105.
87
75
veremos, ou da Crítica da Razão Pura de Kant, ou da limitação do método de
pesquisa das partículas atômicas descrita por Heisenberg, esta admissão da
limitação da razão humana é uma característica das tradições míticas e de muitas
das grandes inteligências da humanidade. 88
No capítulo nove desta primeira parte89, La Salle faz algumas indicações a respeito de
como devem ser dadas as aulas de Catecismo. Ainda que o conteúdo destas aulas fosse
exclusivamente referente aos ensinamentos e dogmas da fé católica, a metodologia empregada
para esta atividade merece a nossa análise e consideração.
A primeira indicação é de como o professor deve questionar os alunos durante a aula,
fazendo com que este momento não tenha a característica de sermão, mas de questionamentos
breves e claros acerca do tema trabalhado. Para isso, o professor deverá utilizar, em suas
perguntas, expressões simples e palavras de fácil compreensão, para que os alunos possam
entender claramente do que se está tratando.
Ainda neste tema, o Guia faz algumas indicações das obrigações do professor durante
esta aula:
Um dos principais cuidados que deve ter o professor durante o catecismo é
conseguir que todos os alunos estejam muito atentos e que retenham facilmente o
quanto lhes diz. Para este fim, terá sempre à vista todos os alunos, e velará sobre
tudo o que façam. Procurará interrogar muito e falar muito pouco; e somente falará
da matéria proposta para esse dia, tendo cuidado de não se afastar do tema. Falará
sempre de uma maneira tal que inspire respeito e comedimento aos alunos, e nunca
dirá nada vulgar ou que possa provocar riso. Terá o cuidado de não falar com
desleixo ou de forma que produza aversão. 90
Como La Salle também tinha a intenção explícita, em suas Escolas Cristãs, de
propagação da fé católica, havia esta preocupação com o momento do catecismo. Se
extrapolarmos esta preocupação lassaliana para a educação como um todo, temos a indicação
de alguns princípios fundamentais para que o processo de ensino e aprendizagem aconteça de
forma adequada: atenção e motivação dos alunos; observação de todos os alunos durante a
aula; utilização da pedagogia da pergunta; deixar que os alunos falem mais que o professor;
88
Carlos Amadeu Botelho Byington. Pedagogia Simbólica. A construção amorosa do conhecimento de ser. Rio
de Janeiro: Record, 1996, p. 36.
89
Cf. Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las
Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 58-67.
90
Juan Bautista de La Salle. Ibid., p. 60.
76
centralidade no tema preparado, sem divagação; tratar a aula, os alunos e o conteúdo com
respeito e seriedade; utilizar-se de recursos metodológicos para envolver os alunos.
O último capítulo desta primeira parte traz indicações acerca da saída dos alunos e dos
professores, orientando como cada um deve comportar-se neste momento de encerramento da
jornada escolar. Os alunos deveriam sair de dois em dois, cada um com um companheiro
indicado pelo professor. Primeiramente saíam os alunos menores; enquanto isto, os maiores
cantavam os cânticos religiosos preparados para o dia.
Extremamente interessantes são as indicações feitas por La Salle para os professores,
neste momento da saída da escola:
O Diretor ou Inspetor das Escolas, ou um dos professores encarregado desta tarefa,
se colocará na porta da rua e cuidará para que os alunos saiam em ordem,
compostura e modéstia. Terá cuidado de que não se separem um do outro nas ruas,
que não atirem pedras, que não corram nem gritem, e que não molestem a ninguém,
mas que caminhem sempre em silêncio. Os professores recomendarão
especialmente a seus alunos que não façam suas necessidades, nem sequer urinar,
nas ruas ao sair da escola; e lhes recordarão que os que tenham necessidade, o
façam antes de sair.91
Uma educação que, pelos indicativos do Guia, tinha a intenção de ser integral,
preocupava-se com os alunos até fora da escola. É evidente que o espírito ascético da
religiosidade da época exigia seriedade extrema, a ponto de não permitir aos alunos que
fizessem brincadeiras pela rua, ao voltar para casa.
Com a mentalidade de hoje, sabemos que a escola não pode mais exercer essa função
de vigilância sobre os alunos fora de seu âmbito específico; entretanto, naquele contexto se
justificaria, para fazer valer o espírito que permeia toda a obra educativa de La Salle: a ordem
das escolas.
Assim termina a primeira parte do Guia. Com ela podemos perceber que “La Salle
privilegia o francês em detrimento do latim e prefere lições práticas para os alunos, agrupados
em classe e por níveis de dificuldade”92 com grande preocupação com a ordem e o silêncio.
Na segunda parte, analisaremos as indicações de La Salle sobre os recursos e a maneira de se
garantir esta ordem e o silêncio.
91
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 67.
92
Maria Lúcia de Arruda Aranha. História da Educação. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1996, p. 111.
77
Capítulo III - A segunda parte do Guia das Escolas
Homens, sede humanos, este é vosso primeiro dever;
sede humanos para todas as condições, para todas as
idades, para tudo que não é alheio ao homem. Para vós,
que sabedoria há fora da humanidade? Amai a infância,
favorecei suas brincadeiras, seus prazeres, seu amável
instinto.
Jean Jacques Rousseau93
A segunda parte do Guia das Escolas – que ocupa 38% do texto original – trata dos
meios de estabelecer e manter a ordem nas Escolas Cristãs. Esta é uma característica
constante de La Salle, pois esta preocupação volta diversas vezes ao longo do texto do Guia.
Não somente neste texto: “na correspondência, La Salle indaga, várias vezes, se a escola
funciona bem. Para ele, a expressão supõe aulas atraentes, formadoras do caráter e da
inteligência, educadoras da vontade, da fé e dos hábitos”
94
, tudo convergindo para a boa
ordem da escola.
1. Da vigilância, ordem, silêncio e registro dos alunos
É importante salientar que esta questão da ordem não é criação ou de preocupação
exclusiva de La Salle. Outros documentos semelhantes ao estilo do Guia das Escolas também
já se referiam a este princípio. Dentre eles, faço menção à Didática Magna, de Comenius, que
afirmava que “a base de toda reforma escolar é a ordem exata em tudo. Se levarmos em
consideração o que conserva o universo em seu ser com todas as suas particulares
individualidades, descobriremos que não é nada mais que a ordem...”95 .
Esta questão da ordem, muito presente na obra lassaliana, nos remete a um fenômeno
ocorrido em sua época; quem nos descreve esse fenômeno é Alfredo Morales:
As Escolas Cristãs do senhor de La Salle tinham um estilo muito parecido ao das
Escolas de Caridade, que não eram concorrência para ninguém. Mas ao redimi-las
da desordem e da desorganização, João Batista provocou um fenômeno social
inesperado: recebeu uma segunda clientela, minoritária mas significativa. Eram os
93
Jean Jacques Rousseau. Emílio ou Da educação. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p.68.
Yves Poutet e Jean Pungier. La Salle e os desafios de seu tempo. Trad. bras. Canoas: Editora La Salle, 2001, p.
97.
95
Comenius. Didática Magna. 2. ed. Trad. bras. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 123.
94
78
filhos de pessoas da pequena burguesia, possuidora de alguns ofícios, e interessados
em beneficiar-se também da qualidade educativa das novas escolas. 96
Portanto, este contexto parece indicar que uma escola cumpre o seu papel e atende às
demandas da sociedade e dos pais, quando nela estiver presente a ordem, a boa organização, o
bom encaminhamento das atividades que nela se desenvolvem.
O artigo introdutório a esta parte do Guia já explicita quais são esses nove meios para
se garantir a ordem: a vigilância que deve exercer o professor na escola; os sinais que se
utilizam nas Escolas Cristãs; os registros dos alunos, com as diversas indicações a seu
respeito; os prêmios que se concediam aos alunos; as correções em geral, com as descrições
dos castigos empregados na escola e o modo de se proceder em relação a eles; as ausências, a
assiduidade e pontualidade dos alunos; a regulamentação dos dias de feriado; os ofícios na
escola e as diversas responsabilidades que os alunos assumiam; e a estrutura, a qualidade e a
uniformidade das escolas e dos móveis que se utilizavam.
Os primeiros responsáveis por garantir a ordem nas escolas são os professores. De
forma insistente, La Salle lhes solicita que assumam esta postura e, para tanto, indica que o
primeiro meio de fazê-lo é pela autoridade e vigilância sobre os alunos. Sobre a questão da
autoridade, é importante recordar que é tema corrente e, de certa forma, polêmico nos meios
educacionais. Moacir Gadotti nos lembra:
A Pedagogia sempre foi associada à autoridade. Na pedagogia
tradicional, o centro da atividade educacional era o mestre; sua
autoridade não admitia contestação. Já a pedagogia nova, deslocando
o centro de interesse para o aluno, questionou profundamente o
princípio da autoridade na pedagogia tradicional. A dialética entre a
autoridade do mestre e a liberdade do aluno parece não estar
inteiramente resolvida na pedagogia atual. 97
Não encontramos, portanto, até as discussões mais atuais, um consenso a respeito
desta questão. Para La Salle, a autoridade do professor era essencial e sobre ele pesavam
algumas incumbências específicas para se manter a ordem nas escolas; dentre elas, a
vigilância constante dos alunos. Para esta vigilância, tarefa essencial para quem exerce a
96
Alfredo Morales. Espíritu y vida: el ministerio educativo lasallista. Tomo I. Trad. Esp. Bogota: Monserrate,
1990, p. 297.
97
Moacir Gadotti. Pensamento pedagógico brasileiro. 7. ed. São Paulo: Ática, 2002, p. 64.
79
autoridade e nesta perspectiva educacional, constavam as seguintes indicações de atitudes98
exigidas do professor:
a) O professor deveria corrigir prontamente todos os erros que os alunos cometessem
na escrita, observando todas as letras, sílabas ou palavras. A maneira de fazer esta correção
também era regulamentada pelo Guia.
b) O professor deveria corrigir prontamente todos os erros que os alunos cometem na
leitura, tomando cuidado que o aluno pronuncie com a claridade necessária para que todos
possam ouvir facilmente. Há uma atenção, portanto, para a leitura em dois níveis: a leitura
silenciosa e a leitura em voz alta, feita para a classe.
c) O professor deveria fazer com que a classe estivesse sempre junto, na mesma
atividade, com os alunos todos na mesma lição. Isto era possível graças ao agrupamento
extremamente racional dos alunos por ordens e lições, o que possibilitava este
acompanhamento coletivo.
d) O professor deveria estar atento para que os alunos estivessem sempre sentados,
com o corpo direito, olhando para frente e ligeiramente voltados para ele. Esta indicação, que
aparece várias vezes no texto do Guia, deveria ser devidamente cumprida pelo professor.
e) O professor deveria observar estrito silêncio em classe. La Salle considera que o
silêncio é um dos principais meios para se estabelecer e manter a ordem na escola. O
professor somente poderia falar em voz alta para corrigir os alunos na lição, no catecismo, nas
reflexões e nos exames. Ele parte do princípio de que, se o professor quer silêncio na escola,
ele, pelo exemplo, também deve cultivar o silêncio. Indicação coincidente com a da Didática
Magna: “para orientar e guiar as crianças, são mais úteis os exemplos do que as regras”99; e o
próprio La Salle exige de seus educadores: “Quereis que vossos alunos pratiquem o bem?
Praticai-o vós. Convencê-los-eis muito melhor pelo exemplo de vosso comportamento correto
e modesto, do que com muitas palavras. Quereis que observem o silêncio? Observai-o vós
mesmos. Só na medida em que vós fordes modestos e recolhidos, conseguireis que vossos
alunos também o sejam”100.
Sobre esta última indicação, para que haja silêncio e o professor fale o mínimo
possível, La Salle vai estabelecer um interessante código de sinais e gestos, que, poderíamos
dizer, configura um sistema simbólico ou semiótico de indicação para as diversas
circunstâncias das aulas e das atividades da escola. E assim o justifica:
98
Cf. Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las
Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 69-72.
99
Comenius. Didática Magna. 2. ed. Trad. bras. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 86.
100
João Batista de La Salle. Meditações. Trad. bras. Canoas: Editora La Salle, 1988, p. 91.
80
De pouco serviria que o professor se esforçasse em tentar que se guarde silêncio se
ele mesmo não o guarda; ele lhes ensinará melhor esta prática com o exemplo que
com a palavra, e o mesmo silêncio do professor, melhor que qualquer outro meio,
produzirá suma ordem na classe, ao facilitar-lhe o meio de vigiar sobre si mesmo e
sobre os alunos. Por este motivo se estabeleceu o uso de sinais nas Escolas
Cristãs.101
Para a realização deste sistema semiótico, se utilizava um instrumento sonoro
denominado Sinal (que grafaremos com maiúscula). Com este instrumento, se empregava
uma série de códigos, tendo por objetivo manter, o mais possível, o silêncio durante as aulas.
Além do Sinal, havia outros; assim, “os sinais feitos com as mãos, com os olhos, com a
cabeça e com a vara do mestre, são uma linguagem muda de grande eficácia didática, que
permite poupar a palavra e preservar o silêncio, indicando ao aluno cada ação: ler, parar,
repetir, recomeçar, etc., como também as punições corporais.”102
No quadro a seguir, apresentamos, como exemplo, alguns desses sinais e gestos dados
pelo professor, e a resposta esperada do aluno, conforme as indicações do texto do Guia das
Escolas:
SINAL DO PROFESSOR
Juntar as mãos
Bater no peito
Fazer o sinal da cruz
Soar um sinal
Apontar um aluno com o Sinal
Soar duas vezes seguidas
Dirigir o Sinal para cima
Dirigir o Sinal para baixo
Levantar a mão direita
Levantar a mão esquerda
Dois toques separados
Três toques
Olhar o aluno e cruzar os braços
Dar uma palmada
Apontar o Sinal para o chão
Apontar o Sinal para a porta
RESPOSTA DO ALUNO
Recitar as orações
Respostas da missa
Respostas do catecismo
Parar de falar ou de ler
Ler ou falar
Repetir a leitura, porque errou
Falar ou ler mais alto
Falar ou ler mais baixo
Os da direita devem falar mais baixo
Os da esquerda devem falar mais baixo
Ler mais devagar
Começar a escrever
Olhar o professor e cruzar os braços
Iniciar uma oração
Não permitir que o aluno fale
Permissão para ir ao banheiro
Quadro 11 – Alguns códigos e sinais utilizados nas Escolas Cristãs de La Salle103
101
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 73.
102
Mario Alighiero Manacorda. História da Educação da Antigüidade aos nossos dias. Trad. bras. São Paulo:
Cortez, 1989, p. 233.
103
Adaptado de Juan Bautista de La Salle. Op. Cit., p. 73-79.
81
Ainda em relação a esses sinais, encontramos a indicação de cinco motivos para que o
aluno fosse castigado durante as aulas. Mais adiante veremos como La Salle entendia os
castigos. O Guia, neste aspecto, indica cinco pontos ou motivos que justificariam que um
aluno fosse castigado na aula: por não haver estudado; por não haver escrito; por ter-se
ausentado da aula sem motivo justificável; por não haver escutado o catecismo; e por não
haver rezado.
Seguindo a estrutura ordenada, cartesiana e meticulosa de La Salle, estas cinco
posturas eram de conhecimento prévio dos alunos e ficavam evidentes dentro da sala de aula,
em cartazes colocados nas paredes, com os seguintes dizeres, que correspondem às cinco
possibilidades de castigo: é preciso freqüentar a aula, sem chegar tarde; na classe é preciso
aplicar-se em estudar a lição; é preciso escrever sempre, sem perder tempo; é preciso escutar
atentamente o catecismo; é preciso rezar com piedade, na Igreja e na classe. 104
Diante dessa situação, quando o professor precisasse fazer uso dos castigos previstos
no Guia, deveria apontar a extremidade do Sinal para o aluno e, em seguida, o cartaz
correspondente à falta cometida. No caso de chamar a atenção dos alunos para alguma falta
que estejam cometendo, o professor deveria fazer soar o Sinal uma vez e, em seguida, após
todos os alunos da classe olharem para ele, apontar a extremidade para o cartaz
correspondente.
Todos esses recursos foram implementados por La Salle para garantirem, o mais
possível, que as suas escolas fossem organizadas, ordenadas, disciplinadas, silenciosas e
produtivas.
No capítulo seguinte do Guia, após as orientações sobre os sinais, La Salle, como
administrador e gestor escolar, faz as indicações de quais e de como devem ser feitos os
registros de dados referentes aos alunos. Se havia um sistema semiótico, que agilizava a
comunicação e garantia o silêncio, diríamos que aqui havia um sistema de documentação,
muito específico, muito organizado e objetivo, para que os professores pudessem acompanhar
a vida escolar dos alunos. Mais que isso, este sistema dependia da participação efetiva e direta
dos professores e dos alunos, conforme veremos a seguir.
Este sistema de documentação era composto pelo que o texto do Guia chama de
registros (que, por indicação de La Salle, deveriam ser muito bem precisos e muito bem
organizados). Tais registros deveriam ser dos seguintes seis tipos: o registro de admissão de
alunos; o registro de mudança de lição; o registro de ordens de cada lição; o registro de
104
Cf. Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las
Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 76.
82
qualidades e defeitos dos alunos; o registro dos primeiros de cada banco; e o registro dos
visitadores de ausentes.
Destes seis registros, havia uma divisão de competências e responsabilidades: os dois
primeiros seriam de responsabilidade dos Inspetores das escolas; os dois seguintes seriam de
responsabilidade dos professores; e os dois últimos seriam de responsabilidade dos alunos.
O primeiro tipo de registro eram os Registros de Admissão, que deveriam conter as
informações básicas sobre o aluno que ingressava nas Escolas Cristãs. Além disso, nesse
registro deveria haver um espaço para serem acrescentadas diversas informações sobre cada
um dos alunos, ao longo de sua permanência na escola. Tratava-se, portanto, de um registro
de acompanhamento de todo o histórico do aluno, enquanto estivesse nas Escolas Cristãs.
Além das indicações de como escrever neste tipo de registro, o Guia traz um modelo,
para que os professores pudessem ter uma informação mais concreta a respeito:
João Mulot, recebido no dia 31 de agosto de 1706, de 16 anos de idade. Confirmado
há dois anos. Recebeu a primeira comunhão na última Páscoa. Filho de José Mulot,
cortador de lã, domiciliado na Rua Contray, paróquia de Santo Estevão, perto de
Cruz de Ouro. Foi colocado na terceira ordem de escrita e na primeira de
urbanidade; precisa vir às 9 e às 3; esteve dois anos na escola do senhor Caba, na
rua de Santo Estevão, oito meses na do senhor Ralot, um ano na do senhor
Huysbecq, e quatro meses na do senhor Mulot, professor de escola. Ele os deixou
porque seus pais pensavam que aprenderia mais em outros locais. Do escrito acima,
do que haja sabido, seja por si mesmo, por sua primeira experiência, seja pelo
informe dos professores, especialmente pelo registro das boas qualidades e defeitos
dos alunos, que farão ao final de cada ano: é de espírito inconstante; se ausenta
umas duas vezes ao mês, por necessidades de sua mãe; aplica-se medianamente;
aprende com facilidade e raras vezes se há deixado de mudá-lo de lição; sabe o
catecismo, mas pouco as orações; tem inclinação à mentira e à gula; tem piedade
medíocre e nenhuma modéstia; deixou a escola durante três meses no inverno; saiu
definitivamente da escola no dia 31 de agosto de 1706 para aprender o oficio de
escultor...105
Este registro tem um caráter narrativo e descritivo. Não se tratava somente de anotar
dados objetivos a respeito do aluno, mas também de procurar interpretar a personalidade e o
temperamento do aluno a ser recebido. Tal registro deveria ser complementado ao final de
cada ano, conforme indicação.
105
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 78-79.
83
O segundo tipo de registro, o das qualidades e defeitos dos alunos, era feito com
intenção de acompanhamento pessoal e de conhecimento mais aprofundado. Mas o professor
tinha indicações precisas de como deveria fazer este registro, e não somente escrever o que
quisesse e da maneira que quisesse. Vejamos as indicações desse tipo de registro:
No final de cada ano escolar, durante o último mês de aula antes das férias, todos os
professores elaborarão um registro de seus alunos em que indicarão suas qualidades
e defeitos, segundo tenham observado durante o ano. Indicarão o nome e o
sobrenome de cada aluno, quanto tempo faz que vem à escola, a lição e a ordem de
lição em que se encontra, seu caráter, se mostra piedade na igreja e nas orações, se
está dominado por algum vício, como a mentira, a blasfêmia, o roubo, a impureza, a
gula etc.106
Neste registro, ficava anotado, para consultas futuras, uma espécie de retrato do aluno,
em que constavam algumas de suas particularidades, segundo o que foi observado pelo
professor ao longo do ano. Mas essas observações não eram feitas a partir da vontade ou do
critério pessoal do professor. Havia uma indicação bem objetiva do que precisava ser avaliado
por ele, ao longo do ano. La Salle, mais adiante, especifica107 quais seriam esses critérios de
análise do aluno:
a) se tem boa vontade para aprender e participar das atividades em classe;
b) se é incorrigível e não muda suas atitudes facilmente;
c) como se deve proceder com ele, diante das diversas circunstâncias;
d) se, quando necessário, a correção aplicada a ele é proveitosa;
e) se foi assíduo às aulas ou se faltou e quanto faltou;
f) se as eventuais faltas foram por motivo justo, com autorização ou não;
g) se foi pontual em chegar à escola;
h) se é um aluno aplicado em sala ou se brinca e conversa muito durante a aula;
i) se progride nos estudos, avançando de forma satisfatória;
j) se foi mudado para as lições seguintes no tempo esperado ou se teve dificuldades;
l) caso tenha tido dificuldade numa lição, quanto tempo a mais ficou nela;
m) se sabe o catecismo e as orações;
n) se é obediente em classe ou se é de caráter difícil, teimoso ou inclinado à rebeldia;
106
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 81.
107
Cf. Ibidem, p. 81-82.
84
o) se está excessivamente mimado por seus pais;
p) se exerceu algum ofício na classe e como o desempenhou.
Trata-se, portanto, de um registro que abrange aspectos pedagógicos, mas também
psicológicos, a respeito de cada aluno. Vejamos dois modelos deste tipo de registro,
apresentados pelo Guia, para termos uma noção do que esta documentação poderia indicar:
François de Terieux, de oito anos e meio de idade, freqüenta a escola desde há dois
anos. Está no Terceiro Nível de escrita, desde o dia 1º de julho último. É muito
irrequieto. Pouca piedade e pouca modéstia na igreja e nas orações, a não ser que
seja vigiado, devido à sua inconstância. Seu vício principal é a imodéstia. Tem
bastante boa vontade. Falta-lhe progredir e esforçar-se nisso. A correção de pouco
lhe serve, por ser volúvel. Falta à escola bem poucas vezes, algumas sem
autorização, para encontrar-se com amigos libertinos e por frouxidão. Chega
atrasado com freqüência. A aplicação ao estudo é medíocre. Facilmente se acomoda
a ficar desocupado, a não ser que seja vigiado. Aprende com facilidade. Perdeu
duas vezes a promoção de lição, do segundo ao terceiro nível, por falta de
aplicação. Sabe bem as orações. Nas correções é submisso, se feitas com
autoridade. É pouco dócil. Não é, contudo, de caráter difícil. Caso seja conquistado,
fará sempre o que o que é proposto. É amado por seus pais. Eles não estão muito de
acordo que receba castigos. Nunca foi nomeado responsável para nada, pois não
possui capacidade para tal. É cuidadoso, cumpre seus deveres, mas chega atrasado
freqüentes vezes.
Lambert du Long, de doze anos de idade, freqüenta a escola há quatro anos. Está no
sétimo nível de escrita, há seis meses. Está no quinto nível de Manuscritos e no
quarto de Aritmética, desde o dia 4 de maio último. É um pouco irrefletido e
volúvel. Aprende rapidamente e memoriza com facilidade. Pouco piedoso na igreja
e muito quando é humilhado. Por vezes a correção lhe é útil. Geralmente é bem
assíduo. Aplica-se ao Catecismo, à escrita e à aritmética. Sempre foi promovido no
tempo certo. Se estiver com o professor é submisso; caso contrário, é desobediente.
Seus pais não estão descontentes pela função que exerce, o de Presidente das
Orações e de Primeiro de Banco. Cumpre bem estas duas funções. 108
Evidentemente, estas indicações, que serviam para o ano seguinte, traduziam um
pouco da realidade do processo vivido pelo aluno ao longo de um ano de trabalho. Além de
registrar este período escolar, o documento fornecia ao professor uma série de indicações de
108
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 82-83.
85
como realizar o seu trabalho com cada aluno em particular. Isto significa que havia uma
preocupação em se tratar os alunos de forma diferenciada, ou seja, de acordo com a realidade
de cada um, levando em consideração suas qualidades, seus limites, suas posturas, seu
temperamento.
Outro registro interessante, apresentado pelo Guia, é o de responsabilidade dos
primeiros de banco; estes deveriam ser preenchidos pelos alunos que ocupavam este ofício em
particular. O Guia descreve109 que este registro era feito pelo primeiro aluno de cada banco,
que tinha a responsabilidade de registrar a presença de cada colega de seu banco. Esse registro
era feito por meio de um cartão, no qual constava o nome de cada aluno, na ordem em que se
sentava naquele respectivo banco. Este cartão ficava pendurado num local da classe. A cada
dia, o aluno responsável registrava a presença ou ausência de seus colegas no cartão de seu
banco.
Também sob a responsabilidade dos alunos, os registros dos visitadores de ausentes
eram assim constituídos:
Em cada classe haverá registros dos visitadores de ausentes, cada um dos quais
conterá no máximo quinze ou vinte alunos. Em cada um desses registros serão
incluídos alunos do mesmo bairro para que possam ser visitados facilmente pelos
visitadores desse bairro. Cada visitador terá seu registro e todos os dias assinalará
os ausentes, de acordo com o artigo dos visitadores de ausentes. Esses registros
serão feitos de papel cartão dobrado em dois, coberto de papel branco em seu
interior, e por fora de pergaminho. Cada lado do registro será aproximadamente de
duas polegadas de largura e de quinze centímetros de altura. Neles, os nomes dos
alunos estarão escritos em fichas de papel cartão, cujos dois extremos serão
introduzidos em dois cordões entrelaçados de cima para baixo no registro. Na
borda, nos dois lados de cada ficha, haverá uma fita de fio vermelho que se
colocada no lado esquerdo da ficha para indicar quando algum aluno chegar tarde, e
para o lado direito da ficha, para indicar quando estiver ausente. 110
Esta visitação de ausentes será explicitada a seguir, na descrição das funções exercidas
pelos alunos. Tratava-se de uma função muito especial no contexto da escola, pois, devido à
intensa preocupação com a assiduidade dos alunos, era preciso adotar diversos meios para
garanti-la. Um desses meios era este: a visita à casa e à família dos alunos faltosos. O quadro
109
Cf. Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las
Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 83.
110
Ibidem, p. 84.
86
abaixo apresenta o modelo que o Guia traz, no que se refere a esse tipo de registro de
visitadores:
•
•
•
•
•
•
•
Jean B. Lardier
André Gazin
•
Rue de Thillois
Rue Saint-Jacques
Nicole Ruvene
Quentin Dubré
•
Rue de Bourgresle
Rue Maillet
Nicole le Becq
Henry Guimbert
•
Rue de la Couture
À la Couture
Pierre Drotin
Jean Guimbert
•
Rue Bourgresle
À la Couture
Joseph d’Allure
Thiéry Guimbert
•
Rue Chativer
À la Couture
Nicolas Mulot
Pierre Henry
•
Rue de Tapissiers
Vieille Couture
Pierre Jobart
Nicolas Muet
•
Rue des deux Anges
Vieille Couture
Quadro 12 – Modelo do registro de visitadores de ausentes 111
•
•
•
•
•
•
•
Desta forma, com estes seis registros, era possível fazer um acompanhamento
completo da permanência do aluno na escola. Como eram descritivos, estes registros
possibilitavam uma indicação mais precisa e personalizada de cada aluno, proporcionando
uma visão mais fiel de sua real atuação nas atividades escolares.
2. Dos prêmios, correções e castigos
Era prevista, nas Escolas Cristãs, a concessão de alguns prêmios para os alunos que
“haviam cumprido seus deveres com maior exatidão, para incitá-los a que os pratiquem com
gosto e para estimular os demais com a esperança da recompensa”. 112
Tais prêmios, encarados como recurso de incentivo, eram concedidos pelos
professores tendo em vista a piedade dos alunos, a sua capacidade e a sua assiduidade,
refletindo as três grandes preocupações das escolas: que os alunos fossem devidamente
instruídos na religiosidade; que aprendessem a ler e a escrever corretamente; que não
faltassem às aulas. Os prêmios eram livros, estampas em pergaminho e em papel, e figuras em
gesso.
Depois de descrever os prêmios, o Guia começa a apresentar diversas orientações
sobre os castigos permitidos e indicados. Este capítulo do Guia das Escolas tende a causar
111
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 84.
112
Ibidem, 2005, p. 84.
87
mais polêmica, pelo seu conteúdo muito claro, objetivo e duro em relação às indicações de
castigos e correções em uso nas Escolas Cristãs, consideradas “em linha de princípio, como
meio pedagógico indispensável, mas, na verdade, com muita cautela e muitas observações
acuradas de ordem psicológica”113, como veremos adiante.
Diferentemente de Comenius, que era protestante e que pregava que “para ensinar não
se deve aplicar nenhuma chicotada”114, ou ainda, que a educação deve ser desenvolvida “sem
severidade e sem pancadas, sem nenhuma coarctação, com a máxima delicadeza e
suavidade”115, La Salle manteve, dentre os castigos, os que atingiam o físico dos alunos.
Entretanto, se existe este lado, também é conveniente assinalar o contexto em que foi escrito e
utilizado. Ressalte-se que, ao colocar inúmeras exigências, indicações e restrições, as
correções e os castigos propostos acabavam sendo quase que impossíveis de serem praticados.
Uma análise atenta a esses itens do Guia possibilita essa consideração.
Primeiramente, La Salle faz um preâmbulo, indicando a importância dessas correções
e salientando a maneira como deveriam ser aplicadas nos alunos. Esta primeira indicação é
extremamente clara no que diz respeito ao sentido da correção:
A correção dos alunos é das coisas mais importantes que se praticam na escola, e há
que ter o maior cuidado para administrá-la, com oportunidade e fruto, tanto para os
que a recebem, como para os que a presenciam. Por isso, são muitas as coisas que
há de se observar na prática das correções que se podem fazer nas escolas; delas se
falará nos artigos seguintes, depois de explicar a necessidade de unir a doçura com
a firmeza, na direção das crianças. 116
Com relação a isso, La Salle insiste no que, pela observação de seus escritos,
transformou-se numa de suas marcas características: o equilíbrio entre a “firmeza” e a
“ternura”, utilizando-se de suas próprias palavras. Para ele, este equilíbrio é fundamental na
educação das crianças, e deseja que isto seja feito de maneira a que o professor não chegue a
nenhum dos dois extremos. Se exige o rigor no processo educacional, por outro lado está a
dimensão do afeto: “a função afetiva é uma das mais importantes funções estruturantes dentro
da relação transferencial professor-aluno para o exercício da elaboração simbólica
113
Maria Alighiero Manacorda. História da Educação da Antigüidade aos nossos dias. Trad. bras. São Paulo:
Cortez, 1989, p. 233.
114
Comenius. Didática Magna. 2. ed. Trad. bras. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 179.
115
Ibidem, p. 109.
116
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 86.
88
pedagógica. O afeto cria universos”.117 La Salle trabalhou muito bem esta questão do
equilíbrio entre ambas as dimensões.
O texto do Guia, neste aspecto, é tremendamente incisivo, esclarecedor e equilibrado,
do ponto de vista educativo:
A experiência, apoiada na doutrina constante dos santos e nos exemplos que nos
deram, prova suficientemente que para fazer que se aperfeiçoem aqueles a quem se
dirige, há que proceder com eles de maneira suave e firme, ao mesmo tempo;
entretanto, muitos se vêem obrigados a confessar, ou ao menos o demonstram
suficientemente pelo modo de comportar-se com aqueles de que estão
encarregados, que não encontram facilmente, na prática, o modo de unir ambas as
coisas. Que haveremos de fazer, pois, para que a firmeza não degenere em dureza e
a doçura em languidez e frouxidão? Para esclarecer este assunto, que não se reveste
de pouca importância, parece que é conveniente expor, em poucas palavras, alguns
pontos essenciais... 118
Assim, tentando propor pistas, saídas e alternativas para a busca deste equilíbrio, La
Salle, primeiramente, descreve ao professor seis posturas119 que o tornam duro e insuportável
para com os alunos (estas palavras são textuais de La Salle), fazendo com que sua atuação
seja mais de dureza do que de firmeza e, portanto, inoportuna nas escolas:
a) Quando o professor impõe penitências demais, muito rigorosas, com pouca
discrição ou sensatez, fazendo com que os alunos não tenham forças de suportar. Neste caso,
de forma absolutamente inadequada e inaceitável, o processo educativo desloca-se todo para a
disciplina e os castigos.
b) Quando o professor ordena, manda ou exige dos alunos algo com palavras
demasiado duras ou de forma demasiado autoritária, sobretudo quando isso provém de algum
impulso desordenado de impaciência ou de raiva. O que La Salle quer evitar é que haja
postura autoritária dentro da sala de aula; exige-se autoridade, mas não extrapolação desta
característica do professor.
c) Quando o professor exige, com muita urgência, a execução de algo a um aluno que
não esteja disposto a isso, e não lhe deixa nem o sossego nem um tempo de descanso. Esta
117
Carlos Amadeu Botelho Byington. Pedagogia Simbólica. A construção amorosa do conhecimento de ser. Rio
de Janeiro: Record, 1996, p. 83.
118
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 86.
119
Cf. Ibidem, p. 86-87.
89
postura não leva em consideração a predisposição para aprendizagem, a motivação, a alegria
pelo prazer de aprender.
d) Quando o professor exige, com igual intensidade, as coisas de menor e de maior
importância. Esta postura denota um professor sem critérios claros acerca da importância e
dos valores atribuídos a diversas situações.
e) Quando o professor ignora, a priori, as razões e as desculpas dos alunos, não
querendo ouvir seu ponto de vista de nenhuma maneira. Aqui, de forma autoritária, o
professor não dá razão aos alunos, quando têm razão; não escuta as suas queixas,
justificativas, observações e seus pontos de vista.
f) Quando o professor, sem olhar a si mesmo, não sabe compadecer das debilidades
dos alunos, e exagera demasiadamente seus defeitos; e quando ao repreendê-los ou castigálos, mais parecem agir sobre um objeto insensível, que sobre uma criatura capaz de razão.
Neste caso, o professor parece incapaz de fazer uma autocrítica ou auto-avaliação, percebendo
que seus limites e dificuldades podem ser semelhantes aos dos alunos.
Esta última indicação também salienta a visão de aluno que La Salle tinha: é preciso
respeitar o aluno como pessoa dotada de razão. Talvez seja por este motivo que, ao expor as
condições para se castigar, vai exigir do professor que converse com o aluno para que, antes
do castigo, compreenda efetivamente o que fez, o que causou de mal e porque motivo deverá
reparar esse mal.
La Salle, neste trecho, assume extrema objetividade ao tratar das posturas que tornam
um professor insuportável e inaceitável para as Escolas Cristãs, para os alunos e para a tarefa
de educar. É este o tipo de professor que confunde a sua autoridade com o autoritarismo e não
consegue chegar ao equilíbrio esperado. Paulo Freire, em consonância com esta idéia, afirma
que “a autoridade é necessária como a liberdade. É preciso deixar de aceitar de um lado o
autoritarismo e, do outro, a licenciosidade”120; é preciso, portanto, assumir a busca consciente
pelo equilíbrio.
Mas La Salle também enfoca o outro lado desta questão. Em seguida, também indica
seis posturas que fazem com que o trabalho do professor em relação aos alunos seja
negligente e relaxada, fazendo que a doçura seja deturpada. Isto acontece, segundo La Salle,
nas seguintes situações:
120
Paulo Freire. In: Disciplina na escola: autoridade versus autoritarismo. São Paulo: EPU, 1989, p. 5.
90
a) Quando o professor não exige o suficiente dos alunos, naquilo que lhes compete, de
acordo com as práticas e normas da escola. Trata-se de permitir que certas obrigações e
deveres deixem de ser cumpridos.
b) Quando o professor aceita, facilmente, que se deixe de fazer o que está previsto.
Nesta situação, a autoridade do professor deixa de existir, pois sua função é exatamente a de
indicar e acompanhar as atividades previstas para as aulas.
c) Quando o professor, para conservar a amizade dos alunos, manifesta-lhes excessivo
afeto e ternura, fazendo concessões a alguns ou deixando-os em extrema liberdade. O
professor acaba confundindo amizade com licenciosidade e abdicando de seu papel de adulto
diante de um grupo de crianças e adolescentes.
e) Quando o professor repreende os alunos com tanta frouxidão ou tão friamente, que
não causa nenhuma impressão ou reação. Os alunos passam a não considerar a autoridade da
repreensão.
f) Quando o professor se esquece de que deve manter o respeito e a compostura, não
permitindo nenhum excesso ou vulgaridade. O professor ultrapassa os limites do aceitável no
ambiente da escola e da sala de aula.
Especificamente sobre este fato – o da autoridade do professor – que, até o presente,
tem incomodado a realidade escolar, parece ser oportuno refletir também a partir de outros
autores. De Fernando Savater, considero importante a reflexão sobre o papel de autoridade em
sala de aula, que não pode igualar professor e alunos:
A autoridade dos adultos se propõe às crianças como uma colaboração necessária
para elas, é claro, mas em certas ocasiões também deverá se impor. É um disparate
aplicar rigorosamente, desde a pré-escola, o princípio democrático de que tudo deve
ser decidido entre iguais, pois as crianças não são iguais a seus professores no que
se refere aos conteúdos educacionais. 121
A autoridade, portanto, deve ser exercida como tal, pois esta é a função do professor
em sala de aula. Negar a sua autoridade é um problema na sala de aula. Assim se expressa
Paulo Freire, a respeito desta temática: “É o meu bom senso que me adverte de que exercer a
minha autoridade de professor na classe, tomando decisões, orientando atividades,
estabelecendo tarefas, cobrando a produção individual e coletiva do grupo não é sinal de
121
Fernando Savater. O valor de educar. Trad. bras. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2005, p. 106.
91
autoritarismo de minha parte. É minha autoridade cumprindo o seu dever.”122 Resguardadas
as proporções de época e de avanço das ciências da educação, basicamente é esta a
preocupação que La Salle deixa transparecer em seu texto.
Embora sem essas considerações contemporâneas sobre autoridade, autoritarismo e
licenciosidade, La Salle soube captar a importância de se garantir este equilíbrio e as
condições precisas da atuação do professor. E é neste sentido que ele vai orientar seus
professores no tocante à aplicação dos castigos, fazendo toda uma série de considerações, de
maneira a garantir que este tema seja adequadamente vivenciado na escola.
Tais orientações também contêm, implícita e explicitamente, a preocupação de La
Salle com os aspectos da personalidade do professor, pois se esta não for trabalhada e
considerada, o que se apresenta como recurso educativo, para a consciência da época, acaba
se transformando em tirania do professor sobre o aluno. Daí que a afirmação de Jung se
justifica:
Como personalidade, tem, pois, o professor tarefa difícil, porque se não deve
exercer a autoridade de modo que subjugue, também precisa apresentar justamente
aquela dose de autoridade que compete à pessoa adulta e entendida perante a
criança. Tal atitude não pode ser obtida artificialmente, mesmo com toda a boa
vontade, mas somente se realiza de modo natural à medida que o professor procura
simplesmente cumprir seu dever como homem e cidadão. É preciso que ele mesmo
seja uma pessoa correta e sadia; o bom exemplo é o melhor método de ensino.123
Para superar os extremos, para que o professor possa trabalhar as suas tendências e a
sua personalidade, ainda que não consciente desta questão, La Salle faz as seguintes
solicitações124: sobre a excessiva dureza e a excessiva doçura, o que é preciso evitar em uma e
em outra, são os extremos, para não ser nem demasiado duro nem demasiado brando; é
preciso ter firmeza para conseguir o objetivo; é preciso ter suavidade no modo de chegar a
ele; é preciso realizar este processo com muita caridade e zelo; é preciso ter muita
perseverança, sem permitir, contudo, que os alunos pretendam a impunidade e que façam o
que querem; é preciso que a firmeza não se manifeste em cólera ou paixão; é preciso que essa
firmeza seja compreendida como preocupação de pai; é preciso que a compaixão, a ternura e a
122
Paulo Freire. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática docente. São Paulo: Paz e Terra, 1996,
p. 68.
123
Carl Gustav Jung. O desenvolvimento da personalidade. Trad. bras. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 60.
124
Cf. Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las
Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 87.
92
doçura sejam compreendidas como preocupação de mãe; é preciso que este equilíbrio seja
vivo e eficaz; é preciso que se entendam as correções como necessidade de garantia do bem
comum.
Sobre este equilíbrio – entre a firmeza e a ternura –, e a título de conclusão desta idéia,
novamente me refiro a Paulo Freire, que também encara o professor como pessoa, que pode
ter os seus defeitos e limitações, mas deve trabalhar para superá-los:
Como prática estritamente humana, jamais pude entender a educação como uma
experiência fria, sem alma, em que os sentimentos e as emoções, os desejos, os
sonhos devessem ser reprimidos por uma espécie de ditadura reacionalista. Nem
tampouco jamais compreendi a prática educativa como uma experiência a que
faltasse o rigor em que se gera a necessária disciplina intelectual. 125
Após as ressalvas das possíveis posturas do professor, La Salle apresenta as diversas
classes de correções126. São seis: pela palavra, pela penitência, pela palmatória, pela vara, pelo
açoite e pela expulsão da escola.
Interessante acompanhar a descrição de cada uma das correções indicadas:
a) A correção pela palavra: La Salle recomenda chamar a atenção dos alunos, quando
estes cometem alguma falta; mas, mesmo este tipo de correção, orienta que seja executada
raras vezes e com muita prudência. Além disso, recomenda seriamente que, ao fazer alguma
advertência oral, tudo o que o professor disser, deverá cumprir posteriormente. Outra
recomendação é que essa advertência oral ou correção pela palavra deveria ser feita com
critérios bem claros e objetivos, e não apenas pela vontade do professor. Também recomenda
que, ao fazer esta correção, o professor o faça de forma enérgica e firme, mas sem afetação;
ou seja, que o bom senso predomine sempre.
b) Uso da palmatória: A palmatória era de uso freqüente nas escolas na época de La
Salle; da mesma forma, isso acontecia em suas Escolas Cristãs. Mas havia orientações bem
precisas quanto a seu uso. A palmatória somente poderia ser utilizada nas seguintes
circunstâncias: quando o aluno não seguia a lição, juntamente com os demais; por haver
brincado durante a aula; por haver chegado tarde na escola; e por não haver obedecido ao
professor, quando este fez alguma solicitação. Indicação objetiva e direta: no caso de usar a
palmatória, o professor poderia dar apenas um golpe na mão do aluno; ou dois, no máximo.
125
Paulo Freire. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática docente. São Paulo: Paz e Terra, 1996,
p. 165.
126
Cf. Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las
Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 88-90.
93
Nunca poderia ser dado na mão que o aluno utilizava para escrever. Nunca poderia ser
aplicada a algum aluno que tivesse algum tipo de enfermidade nas mãos; neste caso, o
professor deveria substituir a palmatória por outro castigo.
c) Uso de varas ou açoites: Também era de uso comum e corrente. Somente poderiam
ser utilizados nas seguintes situações: quando o aluno não obedecia prontamente a orientação
do professor; quando o aluno, insistentemente, não acompanhava os demais colegas nas
atividades indicadas; por haver rabiscado o papel, ao invés de ter escrito o que foi solicitado;
por haver brigado na escola ou na rua; por não rezar na igreja; por haver faltado, por culpa
sua, à Missa. Deveria ser aplicado com moderação e presença de espírito. Este castigo poderia
ser aplicado até, no máximo, com cinco golpes. Importante salientar que, diferentemente dos
relatos de outras escolas da época, a vara ou o açoite não ficavam na mão do professor, nem
sequer na sala de aula. Caso fosse preciso aplicar este castigo, o professor deveria solicitar a
vara ou o açoite ao Inspetor ou Diretor da escola, que era o responsável por guardar a única
vara e o único açoite que existiam na escola.
d) Expulsão do aluno da escola: Este castigo deveria ser aplicado somente com o
parecer do Diretor da escola. Poderiam ser expulsos os alunos costumeiramente
indisciplinados; os que faltam muito e facilmente à escola; os que, por culpa de seus pais,
faltam sistematicamente à Missa; e os considerados incorrigíveis, que, depois de receberem
várias advertências e castigos, não mudam de conduta.
Ainda que tenha escrito esta parte de forma abundantemente detalhada, La Salle
escreve sobre a freqüência dos castigos e do que se deve fazer para evitá-los na escola: “Se se
quer que uma classe funcione bem e com a ordem devida, é preciso que os castigos sejam
raros.”127 A indicação, portanto, é que não se utilizem estes castigos, a não ser em casos muito
específicos. La Salle equipara a freqüência de castigos com grave desordem da escola. Afirma
isto textualmente: “para evitar a freqüência de castigos, o que constitui grave desordem na
escola, é preciso assinalar claramente que o que promove a boa ordem na escola é o silêncio, a
vigilância e a boa compostura do professor, e não a dureza e os golpes.”128 Desta forma, La
Salle, preocupado com o bom andamento da escola, sugere que não fossem aplicados.
Uma indicação muito interessante e sugestiva a respeito da postura do professor, em
relação à aplicação dos castigos, é a de que este deveria exercitar-se muito em agir com
habilidade e talento para manter os alunos em ordem, sem ter que recorrer aos castigos. Para
127
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 90.
128
Ibidem, 2005, p. 90.
94
isso, sugere que o professor, com criatividade, utilize diversos meios e recursos para este fim,
inclusive perdoar a falta do aluno, algumas vezes. Esta última orientação, dada neste contexto,
sugere que La Salle tinha uma idéia muito clara de que o castigo, embora tivesse seu lugar na
escola, deveria ser uma exceção. La Salle também quer um professor observador e reflexivo.
Parece ser muito interessante esperar estas duas posturas de um professor, naquela época.
Ainda que o Guia tenha certa conotação de regulamento para todas as escolas, está
aberto às sugestões e propostas dos professores. Estes, em função de sua criatividade e prática
em sala de aula, poderiam falar com o Diretor e fazer sugestões a respeito do que se fazia em
sala de aula para manter a ordem, evitando-se o uso das correções indicadas pelo Guia.
Nesta linha de pensamento, em que La Salle se apresenta como regulador da aplicação
dos castigos, com a clara intenção de evitá-los, o texto do Guia tem mais indicações a
respeito. Depois de tantas e exaustivas observações e ressalvas, La Salle apresenta dez
condições129, para que um castigo possa ser proveitoso. Para ter esta característica, ele deve
ser: puro e desinteressado, sem nenhum desejo de vingança pessoal; caritativo, ou seja, com
intenção de ajudar no crescimento do aluno; justo, de maneira a ser objetivamente
considerado, principalmente se o aluno o merece; adequado e proporcional à falta cometida
pelo aluno, no que diz respeito à qualidade e à quantidade; moderado, sem ser duro ou rude, e
aplicado sem precipitação; sossegado, aplicado de maneira serena, para que não se arrependa
depois; prudente por parte do professor, que deve cuidar da maneira que o aplica, para não
realizar nada de inconveniente; voluntário e aceito pelo aluno, procurando fazer com que ele
reconheça que o merece; respeitoso por parte do aluno; e silencioso, por parte do professor e
do aluno.
Ao exigir essas dez condições para aplicar um castigo físico, de certa forma La Salle
dificultou a sua aplicação. Se, explicitamente, era um costume que ele não aboliu de suas
escolas, também não o incentivou. Seria possível reunir, freqüentemente e/ou facilmente,
estas dez condições para a aplicação de um castigo físico?
Uma crítica que se poderia fazer a esse respeito é se uma criança poderia discernir
entre o que é certo e o que é errado, para poder compreender claramente porque está
recebendo um determinado castigo. Para se contrapor a esta situação, Rousseau afirma que
“conhecer o bem e o mal, perceber a razão dos deveres do homem não são coisas para uma
criança. A natureza quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens.”130 Faz
129
Cf. Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las
Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 91.
130
Jean-Jacques Rousseau. Emílio ou Da educação. Trad. bras. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 86.
95
sentido que, em algumas situações, é preciso verificar em que circunstâncias uma falta foi
cometida e verificar se a criança de fato compreende se causou algum mal para si ou para
outrem.
Continuando com esta preocupação de La Salle na aplicação racional dos castigos,
mais adiante, no texto do Guia, ele explicita mais uma série de razões para que o castigo não
seja aplicado. Desta vez ele elenca onze defeitos131 que devem ser evitados para a aplicação
do castigo. Vejamos quais são:
a) Nunca se deve impor nenhum castigo sem considerar previamente que possa ser útil
e proveitoso; e assim, resulta pernicioso impor algum, sem ver antes se esse castigo será útil,
tanto ao aluno a quem se quer impor, como aos demais, que vão presenciá-lo.
b) Nunca há que se impor um castigo que possa ser prejudicial a quem se quer impor,
pois seria atuar diretamente contra o fim dos castigos, só estabelecidos para produzir o bem.
c) Nunca se deve impor nenhum castigo que possa ocasionar alguma desordem na
classe ou inclusive na escola, como, por exemplo, se somente serve para fazer um aluno
chorar, ou para desanimar, ou para indispô-lo contra o professor.
d) Nunca há que se castigar a um aluno por sentimento de repulsa ou de desagrado por
ele ou porque não lhe sinta simpatia. Todos esses motivos são injustificáveis para a aplicação
de um castigo.
e) Nunca se deve aplicar um castigo a um aluno simplesmente porque teve um
desgosto com ele ou com seus pais. Se algum aluno faltar com o respeito ou cometer alguma
outra falta, o professor deve utilizar-se da palavra para que o aluno reconheça a sua falta e se
corrija, ao invés de castigá-lo de pronto.
f) Nunca há que utilizar com os alunos palavras injuriosas ou inadequadas à escola,
por mais insignificantes que possam parecer. Nenhuma palavra pejorativa, palavrão ou
apelido devem estar na boca dos professores. Em outra circunstância, esta indicação é
reforçada na carta enviada por La Salle ao Irmão Dionísio, datada de 8 de julho de 1708: “É
indigno dar-lhes apelidos injuriosos. (...) Resulta indecoroso impor apelidos ofensivos aos
alunos; o que supõe, ademais, dar-lhes muito mau exemplo”132.
g) Nunca há que se utilizar outros castigos fora dos que estão em uso nas escolas,
indicados anteriormente. Portanto, nunca se deve golpear os alunos com a mão, com o pé, ou
131
Cf. Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las
Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 92-93.
132
Juan Bautista de La Salle. IN: Felix Paul. Las cartas de San Juan Bautista de La Salle. Trad. Esp. Madrid:
Talleres Tipograficos SCJ, 1962, p. 93.
96
com qualquer outro objeto, ou sacudi-los ou empurrá-los. Isto era considerados totalmente
contrário aos bons modos e à gravidade do professor das Escolas Cristãs.
h) Nunca há que se utilizar da palmatória de forma inadequada, ou seja, com intenção
de machucar o aluno. Estes golpes devem ser dados somente nas condições descritas
anteriormente, na palma da mão do aluno; jamais em outras partes do corpo.
i) Nunca se deve golpear um aluno tão fortemente, que lhe deixe marcas ou sinais no
corpo, e jamais em alguma parte em que o aluno apresente alguma limitação ou enfermidade.
j) Nunca se aplicará um castigo de forma a gesticular indevidamente, adotando alguma
postura indecorosa ou gritando, ou fazendo qualquer gesto ou postura contrários à gravidade
do professor.
l) Nunca se castigará um aluno ao primeiro impulso ou quando se sente com o ânimo
alterado. O professor deverá velar sobre si mesmo, de tal modo que o castigo não seja
aplicado no momento de cólera ou impaciência.
Nestas indicações, chama a atenção o uso repetitivo da expressão “nunca”, em caráter
proibitivo sobre o uso de certos castigos em certas situações: evitá-los. Ainda nesta linha de
raciocínio, podemos perceber mais um indicativo de vontade explícita de minimizar o castigo
físico nas suas escolas, quando La Salle determina quais são as pessoas que podem aplicá-los:
a palmatória ficava com o professor, em sala de aula; a vara ou o açoite ficavam com o
Diretor, e somente poderiam ser utilizadas com sua autorização.
Hoje é intolerável, pela consciência social, psicológica e ética a que a humanidade
chegou, a imposição de castigos físicos na escola. Entretanto, os regimentos escolares e
documentos afins, indicam, com clareza e precisão, que existem meios de correção e
reparação das faltas cometidas pelos alunos, seja em sala de aula, seja na escola como um
todo. Há medidas legais, que orientam a sociedade atual, no que diz respeito à violação de
regras, correção e reparação das mesmas, por parte de quem as violou.
Se não há, hoje em dia, a indicação de castigos físicos, é importante salientar que há
outros meios punitivos para os que extrapolam a legislação. A questão, aqui colocada, diz
respeito, sobretudo, à disciplina escolar, entendida como “um conjunto de regras que devem
ser obedecidas para o êxito do aprendizado escolar” ou como um “conjunto de regras éticas
para se atingir um objetivo. A ética é entendida, aqui, como critério qualitativo do
comportamento
humano
envolvendo
e
preservando
o
respeito
ao
bem-estar
97
biopsicossocial”133. A escola e a sala de aula são espaços de convivência humana e precisam
ser regidos por regras que garantam esta boa convivência.
De qualquer modo, seja com os castigos físicos, seja com as penalidades impostas nos
dias atuais, o importante é este espírito do Guia das Escolas: a escola precisa ir bem, atingir
seus objetivos e quem não contribui para isso, tem que ser devidamente punido; mas que isso
se faça dentro do que estabeleceu coletivamente, não pela vontade o desejo de pessoas ou
grupos individualmente. “O fato é que o ensino sempre implica uma certa forma de coação, de
luta entre vontades”134 e, num grupo coletivo, as vontades individuais devem ser atendidas
somente se não colocarem em risco as vontades coletivas.
Além disso, é importante ressaltar que, ao longo da História da Educação, o uso da
vara e do açoite, como castigos físicos no âmbito educacional, foi considerado necessário
desde a mais remota Antigüidade. Para sermos justos com este posicionamento de La Salle,
podemos citar diversos outros: João Crisóstomo, Pacômio, Bento, Isidoro, Santo Agostinho,
São Bento, Santo Inácio, São Pedro Fourier, senhora da Acarie, o Ratio Studiorum dos
jesuítas, Fénelon, Démia etc. que também o recomendaram, de uma forma ou de outra135.
Hoje não há quem defenda, em hipótese alguma, seja por força de lei seja por
consciência social, o uso do castigo físico nas escolas. Mas também a escola, com toda a sua
realidade, não pode negar-se a fazer o seu papel:
É decisiva a participação da escola no amadurecimento das articulações entre
direitos e deveres, da instância do público e do privado. Nós, educadores, não
podemos nos eximir da tarefa de educar para a cidadania, de contratar normas de
disciplina, de estudos, de trabalho em grupo, de convivência, etc. Para tal,
necessitamos receber uma criança em condições maturacionais para viver e recriar
esse processo social. O trabalho de preparar a criança para essas experiências é da
família. 136
Na questão entre direitos e deveres dos alunos na escola, existe, evidentemente, a
participação da família neste processo de amadurecimento. Não compete somente, nem
primeiramente, à escola este papel de construção da consciência da vida em comunidade.
Também levando em consideração este aspecto, La Salle apresenta mais uma postura
133
Içami Tiba. Disciplina: o limite na medida certa. São Paulo: Editora Gente, 1996, p. 99 e 145.
Fernando Savater. O valor de educar. Trad. bras. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2005, p. 89.
135
Cf. Henrique Justo. La Salle, Patrono do Magistério. 5. ed. Canoas: Editora Salles, 2003, p. 249.
136
Isabel Cristiana Hierro Parolin. Um desafio para pais e educadores. In: Temas em Educação II. Ribeirão
Preto, PubliCOC, 2003, p. 104.
134
98
limitante dos castigos físicos, na indicação de quais crianças se deve e não se deve castigar,
levando-se em consideração sua realidade familiar.
Interessante observar que, ao descrever o caráter de cada tipo de aluno, La Salle
demonstra a compreensão de princípios de psicologia da idade, chegando a evidenciar certa
tipologia específica137, conforme descrita a seguir:
a) La Salle identifica que existem meninos mal-educados e caprichosos. Sobre eles
afirma que isto acontece porque os pais têm pouco cuidado com eles, e às vezes, nenhum.
Desde manhã até a noite somente fazem o que têm vontade. Não respeitam seus pais, não
obedecem e reclamam. Para La Salle, esses defeitos não são de responsabilidade do
temperamento dos alunos, mas por serem totalmente abandonados pelos pais. Neste caso, ele
recomenda aos professores que é muito importante ganhá-los, e também corrigir seu
temperamento; e, quando em classe, cometerem alguns desses defeitos, é necessário corrigilos prontamente. Se alguns destes alunos são de espírito atrevido e altivo, é necessário
confiar-lhes algum dever em aula, como o de inspetor, se forem considerados capazes disso,
ou encarregado de recolher os cadernos; ou encarregá-los de alguma coisa, como na escrita,
na aritmética etc., para inspirar-lhes carinho pela escola e ao mesmo tempo corrigi-los, sem
abandoná-los aos seus caprichos. Se estes alunos são pequenos, não é necessário tomar tantas
medidas; mas devem ser corrigidos para que não prossigam com má conduta. La Salle propõe
que se utilize de certas capacidades naturais dos alunos para a vida escolar cotidiana.
b) Também existem os meninos que são naturalmente atrevidos, insolentes e maleducados. Para La Salle, é necessário falar pouco com eles, e sempre com gravidade quando
cometerem alguma falta; não tolerar que contestem tudo o que o professor diz; adverti-los e
repreendê-los com suavidade e em particular, sobre seus defeitos, mas sempre com gravidade
e de modo que se mantenha o respeito. É claro, neste trecho, um profundo respeito pela
capacidade e pela auto-estima do aluno: repreensão em particular, feita com suavidade,
gravidade e respeito. No contexto brasileiro atual, a questão do constrangimento de menores,
exposto no Estatuto da Criança e do Adolescente, parece encontrar eco neste texto de La
Salle, principalmente em seu artigo 18, que afirma que “é dever de todos velar pela dignidade
da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento,
aterrorizante, vexatório ou constrangedor.”138 Por outro lado, não existe nenhuma indicação
legal de que a criança e o adolescente possam ser mal-educados ou possam provocar a
137
Cf. Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las
Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 95-99.
138
República Federativa do Brasil. Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 2000, p. 38.
99
violação dos direitos das demais crianças e dos adultos com os quais convivem. Neste sentido,
é preciso educar para a responsabilidade de reparar o estrago feito para outrem, de forma
exigente. Quem provoca algum mal, deve corrigir o mal provocado.
c) Há alunos considerados agitados demais (talvez La Salle empregasse o termo
hiperativo). É necessário castigar pouco os meninos com esta forma de ser, pois são
geralmente pouco reflexivos e, pouco depois de haverem sido castigados, voltam a cometer a
mesma falta ou outra que mereça o mesmo castigo. Suas faltas não procedem de malícia, a
não ser de agilidade de espírito. É necessário prevenir, manifestando-lhes afeto, mas sem
atribuir-lhes ofício algum; colocá-los o mais perto possível do professor, com qualquer
pretexto, mas na realidade para vigiá-los melhor; ou colocá-los entre dois alunos de
temperamento tranqüilo, que comumente não cometem faltas. De vez em quando é necessário
dar-lhes alguma recompensa, para que sejam obedientes e gostem da escola, já que são os que
faltam à aula com mais facilidade, e para animá-los a manterem-se tranqüilos e em silêncio
enquanto estão em aula.
d) Sobre os alunos considerados teimosos, La Salle orienta que devem ser corrigidos
sempre por suas teimosias, principalmente os que são teimosos no castigo. Em tais ocasiões, o
professor não deve ceder de nenhum modo, e quando resolver castigar o aluno, deve fazê-lo,
apesar de todas suas resistências. Portanto, adotará duas precauções com eles. A primeira
seria a de não tentar castigá-los, sem antes examinar bem a falta que cometeram e assegurarse de que merecem esse castigo. A segunda, quando algum resistir, não querendo submeter-se
ao castigo, ou negando-se a sair do lugar, será conveniente então deixar passar o
aborrecimento e não deixar transparecer que se tem o propósito de castigá-lo. Algum tempo
depois, o professor o chamará para conversar e, com suavidade, fará que reconheça e revele
sua falta, tanto a primeira que cometeu como a que cometeu depois, ao resistir; depois o
castigará de maneira exemplar. Algum tempo depois do aluno ter recebido o castigo, o
professor o chamará, quando julgar que já se acalmou, o fará ponderar com doçura e o fará
confessar sua falta.
e) Com relação aos meninos educados com brandura e fraqueza, La Salle afirma que
assim o são porque seus pais os educam de tal maneira, que lhes dão tudo o que pedem, não
lhes contrariam em nada e nunca lhes corrigem suas faltas. Parece que temem causar-lhes
desgostos, e quando se incomodam por algo, os pais e, sobretudo as mães, fazem todo o
possível para acalmá-los e devolver-lhes o bom humor. Em todo momento lhes manifestam
extrema ternura e não suportariam que lhes dessem o mínimo castigo. Desde essa época,
100
encontramos as crianças que carecem de limites no que diz respeito à educação. Estas crianças
também, estão presentes na França, na época de La Salle.
f) Com relação aos alunos de temperamento calmo e tímido, La Salle orienta que,
geralmente, não haverá necessidade de castigá-los. O exemplo dos que se comportam bem e
dos que são castigados, o temor que sentem naturalmente aos castigos aplicados, e algumas
penitências, bastam para conseguir que cumpram com seu dever.
g) La Salle também reconhece que há alguns meninos curtos de inteligência, que
somente se mexem quando são castigados. Geralmente não haverá necessidade de castigá-los.
Se perturbam na escola, é necessário expulsá-los; se não perturbam e não ocasionam nenhuma
desordem, deve-se deixá-los tranqüilos. As faltas comuns deste tipo de aluno consistem em
não seguir a lição, não ler bem, não aprender devidamente, não estudar bem o catecismo e não
aprender nada ou pouquíssimo. Não é possível exigir-lhes mais do que são capazes. É
importante procurar que avancem, animá-los de vez em quando e contentar-se com o pouco
progresso que conseguem.
h) Havia os alunos portadores de deficiências físicas. A orientação era clara: não se
aplicará o castigo àqueles que padeçam de algum mal no lugar que se deveria aplicar, quando
o castigo possa aumenta o mal; é necessário qualquer outra correção, castigo ou penitência.
Cabe aqui uma observação interessante: evidentemente que a deficiência física não abarca
toda a realidade que se pretende comentar, mas poderíamos supor, pela indicação deste tipo
de alunos, que eram aceitos normalmente nas escolas de La Salle. Trata-se, portanto, de uma
situação de inclusão deste tipo de aluno.
i) La Salle aceitava em suas escolas alguns meninos muito pequenos, que não
deveriam ser castigados em absoluto, ou somente muito raramente, pois não têm uso da razão,
não são capazes de tirar proveito. Com estes há que proceder mais ou menos, com relação aos
castigos, como com os curtos de inteligência, ou com os meninos calmos e tímidos.
j) Também havia a indicação de não se castigar os alunos recém admitidos. É
necessário conhecer primeiro seu caráter, sua índole e suas propensões. De vez em quando,
indicar-lhes o que devem fazer, e colocá-los junto aos que cumprem bem seus deveres, para
que aprendam com o exemplo e a prática. O aluno deve ficar ao menos um mês na escola
antes de ser castigado. Os castigos impostos aos recém admitidos os desanimam e os afastam
da escola.
l) La Salle considerava um tipo de aluno a quem denominou de acusadores. Trata-se
daquele tipo de aluno que, costumeiramente, faz queixas aos professores contra seus colegas.
Os professores não darão facilmente ouvidos às acusações e informes feitos contra os alunos.
101
Entretanto, não desanimarão aqueles que os apresentem; mas terão cuidado em examiná-los
atentamente e não castigarão, nem de imediato nem com precipitação, baseando-se nesses
informes.
Esses tipos possíveis de alunos, a que La Salle se refere, evidenciam que “as clássicas
teorias psicológicas não estão sendo suficientes para a compreensão do atual comportamento
dos alunos e o adequado procedimento preventivo e terapêutico dos conflitos vividos em sala
de aula. Há necessidade de introduzir elementos novos, como disciplina, gratidão,
religiosidade, ética e cidadania, para a avaliação da saúde relacional.”139 Isto significa que a
escola precisa ampliar o conceito de relações humanas comunitárias e trabalhar neste sentido,
com a participação das famílias, com a definição clara das regras de convivência e das
reparações para os possíveis infratores dessas regras.
Na seqüência do Guia, ainda sobre a aplicação dos castigos, La Salle é categórico ao
exigir que seus professores nunca toquem os alunos ao aplicar as correções: “o professor terá
cuidado de não tocar no aluno, por nenhuma razão, enquanto aplica o castigo.”140 Além da
indicação no texto do Guia das Escolas, La Salle, em suas correspondências pessoais,
inúmeras vezes exorta, pede e exige de seus professores que nunca o façam. Vejamos algumas
dessas correspondências, em que aprece essa exigência:
a) Carta ao Irmão Clemente, de 26 de junho de 1706: “Guarde-se de pegar os alunos
com a mão, pois já sabe que isto o proíbem as regras”.141
b) Carta ao Irmão Roberto, de 1 de maio de 1708: “É desonroso dar bofetões nos
alunos. Evite a impaciência”. 142
c) Novamente, carta ao Irmão Roberto, de 26 de abril de 1709: “Evite, a todo custo,
golpear os meninos; é falta muito notável. (…) Procure conservar a igualdade de humor na
escola, e não se deixe levar pela impaciência. Não é sério lançar a palmatória nos alunos, e
resulta vergonhoso dar-lhes socos”. 143
d) Carta sem indicação precisa de destinatário e de data: “Por amor de Deus, não dê
sopapos aos meninos. Não se conduzem as almas a Deus nem ao bem à força de golpes. Tão
139
Içami Tiba. Ensinar aprendendo. Como superar os desafios do relacionamento professor-aluno em tempos de
globalização. São Paulo: Editora Gente, 1998, p. 27.
140
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 100.
141
Juan Bautista de La Salle. IN: Felix Paul. Las cartas de San Juan Bautista de La Salle. Trad. Esp. Madrid:
Talleres Tipograficos SCJ, 1962, p. 88.
142
Ibidem, p. 284.
143
Ibidem, p. 291-292.
102
pouco se usa com eles a vara. E quanto ao açoite, não o empregue senão por necessidade. E
devolva-o após usá-lo, para não o tê-lo à mão nos momentos de impaciência”. 144
Com esta dura e explícita exigência feita aos professores, de não tocar nos alunos, La
Salle ainda estende a sua orientação, propondo que os castigos sejam substituídos por outras
penitências. Segundo La Salle, o seu uso, conforme apresentado a seguir, “será muito mais
corrente que o dos castigos, já que as penitências desalentam menos os alunos, causam menos
desgosto aos pais e são mais úteis.”145
O Guia diz que as penitências devem ter sentido curativo; devem ser proporcionais às
faltas cometidas pelos alunos; devem servir de remédio e com a intenção de impedir que os
alunos cometam as mesmas faltas novamente; nunca poderão provocar riso por parte dos
alunos; não podem fazer perder tempo ou serem inúteis.
Além disso, os professores não podiam inventar que penitências poderiam ser
aplicadas aos alunos. Para isso, La Salle lista quais são essas penitências146:
a) Quando um aluno chegar tarde pela segunda vez em uma semana, em lugar de
administrar-lhe um castigo, se aplicará como penitência que, durante oito ou quinze dias,
esteja na escola no momento em que se abre a porta.
b) Quando um aluno coma de tal forma que seu comportamento o impeça de escutar
ou responder as orações durante a refeição, ele deverá ficar sem o café da manhã.
c) Quando um aluno cometer várias faltas ao ler, por não haver estudado, ele deverá
aprender de memória alguma passagem de um livro ou toda a lição que não estudou, ou se
poderá mandar que leia, segundo sua capacidade, uma ou duas páginas, depois que os demais
alunos lerem.
d) Quando um aluno não escreve o que deveria escrever, ou não o fez da maneira
como deveria, ele deverá escrever uma ou duas páginas em casa.
e) Quando um aluno não se comportar de forma adequada durante a missa, ele deverá
participar de uma segunda missa, de maneira adequada.
f) Será deixado de pé por algum momento os que se apóiam na mesa ou tenham
posturas descuidadas ou inconvenientes. Parece que La Salle e seus primeiros professores
também estão preocupados com a postura que os alunos assumem durante as atividades na
144
Juan Bautista de La Salle. IN: Felix Paul. Las cartas de San Juan Bautista de La Salle. Trad. Esp. Madrid:
Talleres Tipograficos SCJ, 1962, p. 345.
145
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 102.
146
Cf. Ibidem, p. 103-104.
103
escola. Há orientações para sentar-se e ficar de pé, de maneira a que a coluna possa estar
sempre bem.
g) Quando um aluno não saiba perfeitamente a lição que devia haver aprendido na
semana anterior, ele deverá aplicar-se para aprendê-la e recitá-la para a classe na semana
seguinte.
h) Quando um aluno se puser a jogar ao voltar da escola, antes de haver levado para
casa seus livros, se lhe proibirá de jogar durante três dias.
i) Uma das penitências mais convenientes e proveitosas é solicitar aos alunos que
aprendam alguma coisa de cor.
Todas essas indicações e preocupações de La Salle evidenciam, de forma objetiva, a
sua intenção de que a escola e seus professores evitassem o mais possível a aplicação dos
castigos físicos; e, quando o fizesse, que fosse sob a estrita observação de normas
estabelecidas para garantir que o castigo tenha exclusivamente o caráter de reparar alguma
falta.
Ao encerrar este capítulo do Guia, retomo algumas citações, com a intenção de
explicitar algumas idéias importantes a respeito deste tema, que, embora não diga respeito aos
castigos físicos, ainda faz parte das discussões sobre educação.
a) Primeiramente, de Fernando Savater, a consideração de que, nesta temática, todo
extremo e, portanto, toda falta de equilíbrio, é prejudicial ao processo educativo:
O quanto são absurdos e até inumanos os recorrentes movimentos antieducacionais
que ocorreram ao longo da história, em certas épocas, em nome de alguma
iluminação religiosa que prefere a ingenuidade da fé aos artifícios do saber e, nos
tempos modernos, invocando a espontaneidade e a criatividade da criança diante de
qualquer disciplina coercitiva. 147
b) Também do mesmo Savater, é contundente a afirmação de que, dependendo do
ponto de vista, a presença do poder disciplinar vivenciado na escola acontece em qualquer
situação ou em qualquer postura adotada:
As análises detalhadas de Foucault, prolongadas por seus seguidores com
perspicácia às vezes não inferior à do mestre, constituíram uma importante
contribuição ao estudo do desenvolvimento da escola, relacionaram-na com outros
campos de controle social, como o reformatório, o cárcere, o manicômio ou o
147
Fernando Savater. O valor de educar. Trad. bras. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2005, p. 32-33.
104
hospital, e desmistificaram a idealização atemporal e a-histórica do processo
educacional. No entanto, às vezes também se ressentem de uma consideração ao
mesmo tempo excessivamente global e ambígua do poder: por um lado, o poder
disciplinar é o responsável final por qualquer procedimento moderno de educação,
tanto dos mais coercitivos quanto dos mais liberais, tanto dos que regem tudo a
partir da onipresença vigilante do professor quanto dos que interiorizam o controle
sob forma de espontaneidade criativa do discípulo; por um lado, não sabemos se
diante dessa difusão generalizada do disciplinar devemos manter uma atitude
crítica, apologética, cúmplice, rebelde ou neutra. Uma vez estabelecido que os
procedimentos psicológicos da pedagogia atual são uma técnica do poder
disciplinar assim como foram antes as palmatórias ou as tarefas de copiar, uma vez
aceito que a formação flexível e polivalente hoje proposta como ideal serve aos
interesses do capitalismo vigente assim como ontem outro modelo de poder
econômico preferiu a especialização e, em outras latitudes, impôs-se a submissão
ao evangelho marxista... o que devemos reter de tudo isso? 148
c) Rousseau, com seu Emílio, sugere que o castigo não tem efeito algum. Por outro
lado, o mesmo Rousseau, na mesma obra, sugere que o educador deve proporcionar certa
reação ao aluno que age de forma inadequada a determinado contexto. Sugere que o aluno
seja trancado no escuro, num lugar sem janelas149, após todo um trabalho sobre este aluno que
havia quebrado o vidro das janelas de um quarto. De qualquer forma, quase que contraditória,
afirma que o castigo não deveria fazer parte da educação:
Não deis a vosso aluno nenhum tipo de lição verbal. Ele deve receber lições
somente da experiência; não lhe ordenei nenhum tipo de castigo, pois ele não sabe
o que é ser culpado; não façais nunca com que peça desculpas, pois não saberia
ofender-vos. Carente de qualquer moralidade em suas ações, ele nada pode fazer
que seja moralmente mau e mereça castigo ou reprimenda. 150
d) Leon Laurarie, autor de uma reflexão sobre o conteúdo do Guia das Escolas,
considera que o posicionamento assumido por La Salle foi muito mais de caráter preventivo
do que repressivo, em relação aos castigos físicos:
Muitos historiadores que tratam do Guia das Escolas se fixam e insistem sobre o
capitulo das correções ou dos castigos, como se esta fosse a principal característica
148
Fernando Savater. O valor de educar. Trad. bras. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2005, p. 100-101.
Cf. Jean-Jacques Rousseau. Emílio ou Da educação. Trad. bras. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 101-102.
150
Ibidem, 1995, p. 89.
149
105
da obra. Uma leitura rápida e superficial da obra os leva a formular apreciações
aproximativas. Como resultado, podem ter chegado à idéia de que a pedagogia
preconizada por São João Batista de La Salle e os primeiros Irmãos,
era
essencialmente repressiva. É verdade que esse capítulo é o mais longo do Guia,
mas, sem nenhuma dúvida, é também o mais matizado, o mais minuciosamente
estudado, pois esse tema era melindroso na época. Na mentalidade do século XVII
e no sistema de sanções em vigor na sociedade, era muito difícil escapar
inteiramente aos castigos corporais. O Guia das Escolas Cristãs não é precisamente
uma afirmação de angelismo, mas o capítulo das correções ou castigos tenta,
sobretudo explicar aos professores a maneira de agir para não ter que corrigir ou
castigar. Não podia ser de outra maneira, porque o Fundador e os Irmãos
consideravam que a direção e a educação das crianças era, antes de tudo, uma
operação do coração, e que era essencial criar laços de afeto e de cordialidade com
todos os alunos. Foi desta convicção que nasceu uma pedagogia essencialmente
preventiva. 151
3. Da freqüência e da ausência às aulas
Vimos anteriormente que, embora a educação, na França, começasse a ser gratuita e o
trabalho proibido para menores de catorze anos, ainda assim os mais pobres da sociedade
precisavam da contribuição de seus filhos menores no trabalho. Por isso, a questão da
assiduidade na escola era um problema a ser enfrentado. Uma das preocupações de La Salle
foi com a ausência dos alunos na escola. Para isso, o texto de seu Guia traz observações,
recomendações e análises152 a respeito desta questão. Destacamos as mais interessantes.
Havia as ausências reguladas e autorizadas, para os alunos que pediam permissão para
ausentarem-se sistematicamente todos os dias da semana, durante certo tempo a cada dia. La
Salle afirma que se lhes pode conceder esta permissão com moderação, depois de haver
ponderado devidamente, as razões desta ausência. Por exemplo: era permitido a alguns alunos
que faltassem à aula alguma vez na semana, nos dias de mercado ou feira, para trabalhar, ou
por causa de seu emprego, com tanto que não fosse pela tarde e que fosse exclusivamente para
trabalhar, e não para qualquer outra coisa. Neste caso, se leva em conta a realidade do aluno,
que trabalha em alguma atividade. Considerando que a grande maioria dos alunos das Escolas
Cristãs de La Salle vem da camada mais pobre da sociedade francesa da época, é natural que
151
Leon Laurarie. El Guía de las Escuelas Cristianas. Proyecto de educación humana y cristiana. Cuadernos
MEL 12. Roma: Hermanos de las Escuelas Cristianas, 2004, p. 11.
152
Cf. Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las
Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 105-113.
106
tenha a preocupação de flexibilizar a participação dos alunos na escola, quando isso acontece
por força do trabalho.
Em seguida, apresenta algumas considerações a respeito das causas das ausências e
dos remédios que podem ser usados para evitá-las. La Salle afirma que os alunos se ausentam
facilmente da escola por culpa dos próprios alunos e de seus pais ou por culpa dos professores
e dos visitadores. Em seguida, mantendo seu estilo descritivo e de enumeração cartesiana, faz
as seguintes explicações:
a) A primeira causa da ausência dos alunos provém dos mesmos alunos, por esperteza,
ou por indisciplina, ou porque estão entediados com a escola, ou porque têm pouco afeto pelo
professor, ou porque estão desgostosos com ele. Os que se ausentam por inquietude são os
que se deixam levar pela primeira sugestão que lhes vem à mente ou à imaginação, e vão
correr, brincar ou passear com o primeiro que encontrarem; ordinariamente atuam sem
reflexão. Estes alunos devem ser castigados pouco por suas ausências. Será melhor conduzilos à escola, usando de amabilidade e animando-os com qualquer outro motivo, em vez dos
castigos e o rigor. Os professores tentarão animar os alunos dessa classe de temperamento,
estimulá-los com recompensas e farão com que sejam obedientes na aula, por meio de algum
emprego exterior que os ocupe, se são capazes disso; mas, sobretudo, nunca ameaçá-los com
o castigo. Há, portanto, uma preocupação com a conquista afetiva do aluno.
b) A segunda causa da ausência dos alunos é a ânsia de liberdade, o não poder
agüentar permanecer toda a jornada no mesmo lugar, atentos e aguçando a mente; ou porque
gostam de correr e brincar. Por isso é necessário esforçar-se com muito cuidado em remediar
suas ausências, e não há nada que se deva fazer para preveni-las e impedi-las. Será muito
proveitoso dar a estes alunos algum oficio, se os considerarmos capazes; isso os levará a
afeiçoarem-se com a escola, e em alguns casos até os levará a transformá-los em modelo para
os demais. É necessário conquistá-los e animá-los, sem renunciar-lhes a firmeza, e castigá-los
quando atuarem mal e faltarem à aula. É necessário manifestar-lhes muita consideração
quando agirem corretamente, e premiá-los pelo pouco que fizerem, coisa que somente se deve
fazer com estes tipos de temperamentos e características de inquietude.
c) A terceira causa da ausência dos alunos é o tédio para com a escola. Isto pode
originar-se porque o professor é novo, não está suficientemente formado e não sabe como
conduzir a aula e tratar os alunos; ou porque é um professor extremamente fraco, que não
mantém a ordem e em cuja classe não existe o silêncio. La Salle, portanto, não se recusa a
constatar que a escola, por sua própria estrutura, pode contribuir negativamente para a
permanência do aluno nela.
107
d) A quarta razão da ausência dos alunos é sentir pouco afeto pelo professor, que não
lhes é simpático, nem conhece a maneira de conquistá-los, e que mostra um exterior sombrio
e rude; ou porque estão fartos dele, porque grita ou implica com facilidade, e em qualquer
ocasião não tem outro recurso a não ser o rigor, a dureza e os castigos. Por isso os alunos não
querem assistir à aula e têm que ser obrigados. O remédio para todo este tipo de ausências
será que os professores se esforcem por ser atraentes e manter um exterior afável, digno e
aberto, sem cair na vulgaridade ou na familiaridade; que façam de tudo para ganhar a todos e
que se convençam de que a autoridade se alcança e se mantém na classe mais com a firmeza,
a gravidade e o silêncio, do que com os golpes e a dureza. Em uma palavra: a causa principal
das freqüentes ausências dos alunos é a freqüência dos castigos. Implicitamente, La Salle
afirma a importância do afeto, do bom relacionamento, da empatia entre o professor e seus
alunos para que estes freqüentem a escola com alegria.
De fato, para que a escola possa ser desejada pelos alunos, é preciso que, nela, o aluno
encontre prazer. Desta forma, afirmamos, como Hugo Assmann, que “a escola deve ser um
lugar gostoso. Sabemos que muitas vezes não o é.”153 Estas considerações de La Salle
transparecem certa preocupação em que a escola seja realmente um espaço agradável para o
aluno, o que ajudaria a evitar as ausências.
Em seguida, La Salle também apresenta uma série de considerações de
responsabilidade dos pais em relação às ausências dos seus filhos:
a) Há pais que se descuidam em enviar os filhos à escola, não se preocupando se
realmente a freqüentam, ou que sejam obedientes, o que é comum entre os pobres, ou porque
sentem indiferença e frieza pela escola, convencidos de que seus filhos não aprendem nada ou
pouquíssimo; ou porque os fazem trabalhar.
b) O meio de remediar a negligência dos pais, sobretudo dos pobres, será, em primeiro
lugar, falar com os pais e fazê-los compreender a obrigação que têm de fazer com que seus
filhos se instruam, e o prejuízo que lhes ocasionam em não fazerem com que aprendam a ler e
a escrever; o quanto isso pode prejudicá-los e que dificilmente serão capazes de realizar algo
em qualquer emprego, se não sabem ler e escrever. É fundamental fazê-los compreender isto.
Há uma preocupação com o diálogo, de caráter educativo, até com os pais dos alunos.
c) Como este tipo de pobres são aqueles a quem freqüentemente se dá esmola, é
necessário conseguir dos sacerdotes da paróquia e das Damas da Caridade, que estas não
sejam dadas, e que não lhes consigam nenhuma esmola até que enviem seus filhos à escola.
153
Hugo Assmann. Reencantar a educação. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 23.
108
Inclusive terá que ser entregue uma anotação com todos os que não freqüentam a aula, com
seus nomes e idade, ou de seus pais e mães, com sua paróquia e domicílio, para que não seja
dada nenhuma esmola para seus pais e possam os padres obrigá-los a enviar seus filhos à
escola. Trata-se, portanto, de um recurso que vincula o auxílio à freqüência à escola, à
semelhança de programas sociais utilizados atualmente por alguns governos.
d) É necessário tentar atrair este tipo de crianças, conseguir que freqüentem a escola e
animá-los de todas as maneiras possíveis, o que freqüentemente pode dar bom resultado, já
que comumente os filhos dos pobres só fazem o que querem e, como seus pais não têm
nenhum cuidado com eles, e inclusive idolatram seus filhos, o que querem os filhos é também
o que querem os pais e as mães; portanto, bastará que os filhos queiram ir à escola para que os
pais estejam satisfeitos em enviá-los. Aqui, a preocupação é a conquista dos filhos, para se
conquistar os pais, para se conquistar a freqüência regular às aulas.
e) Quando os pais tiram seus filhos da escola muito jovens, ou sem estarem
suficientemente instruídos, para trabalhar, é necessário mostrar-lhes que os prejudicam muito,
e fazendo com que ganhem pouco, eles perdem vantagens consideráveis. Para convencê-los é
necessário mostrar-lhes o quão importante é para um artesão saber ler e escrever, pois com
pouco alcance que tenham, sabendo ler e escrever, serão capazes de tudo. É fundamental que
os pais se comprometam e enviem seus filhos uma hora pela manhã e outra pela tarde, ou a
tarde completa. Também é necessário vigiar especialmente este tipo de alunos e ter cuidado
com eles. La Salle considera a realidade social e familiar e procura atender a esta necessidade,
sem abdicar da importância da escolarização.
f) Se acontecer dos pais reclamarem que seus filhos não aprendem nada ou
pouquíssimo, e quiserem tirar seus filhos por este motivo, este inconveniente deve ser
solucionado: primeiro, não colocando em uma aula de escrita, um professor que não seja
capaz de ensinar a escrever; segundo, procurar não colocar ou deixar em nenhuma classe um
professor que não seja capaz de cumprir seu dever e ensinar devidamente os meninos que
estão a seu encargo. Trata-se, aqui, de reconhecer que estes problemas, às vezes, acontecem e
a escola deve tomar atitudes objetivas para corresponder à sua função educativa.
g) Como a capacidade dos professores não é igual em todos, e alguns possuem
naturalmente mais firmeza, vigilância e aplicação que outros, também podem ensinar um
maior número de alunos que aqueles cujas qualidades são menores ou de menor alcance.
Deve-se proporcionar o número de alunos à capacidade dos professores, para que possam
ensinar adequadamente aqueles que são de sua responsabilidade. Esta exigência de qualidade
109
do trabalho feito pelo professor, evidentemente, contribui para a permanência dos alunos na
escola.
h) Os Diretores ou Inspetores das Escolas devem vigiar com suma fidelidade,
sobretudo os professores aos quais estão encarregados, e especialmente aqueles cuja
capacidade é menor, e procurar que se apliquem com esmero a ensinar os seus alunos. Que
suas dedicações sejam iguais para todos, e inclusive maior para os mais atrasados e para os
mais negligentes; que todos os professores façam observar a ordem nas classes; e que os
alunos não se ausentem facilmente, já que a liberdade para ausentarem-se é a causa de que
não aprendam nada. La Salle solicita a realização de um bom trabalho, por parte do professor,
e dedicação igual a todos, com uma atenção especial aos alunos que apresentam dificuldades.
Uma terceira situação apresentada por La Salle diz respeito à atuação dos Inspetores
das escolas e dos próprios professores, que se mostram tolerantes com as ausências e
desculpam os alunos quando faltam à aula sem permissão; ou porque os professores
concedem com muita facilidade permissão para ausentarem-se. Para corrigir esta situação, La
Salle recomenda:
a) Cada professor seja exato em vigiar os alunos visitadores (cujas funções específicas
trataremos a seguir); que estes indiquem fielmente os ausentes de seu bairro, que vão à casa
de cada um, que não se deixem enganar com motivos falsos e que os visitadores consigam
com que os professores apresentem os motivos que lhes forem alegados; que o Inspetor exija
que os pais levem seus filhos quando estes se ausentarem, e que não admita que nenhum
aluno se ausente sem conhecer e examinar cuidadosamente as razões que tenham para
ausentarem-se.
b) Em uma escola haverá, quando muito, três ou quatro que peçam para faltar à aula;
se lhes concede, serão causa para que os outros se ausentem facilmente. É preferível expulsar
estes alunos e ter cinqüenta que sejam muito obedientes, a ter uma centena que faltam à aula a
todo o momento; ou em caso de necessidade, que faltem mais alguns dias por semana, ou que
venham todos os dias somente a determinadas horas. A este respeito, o Inspetor terá cuidado e
será muito rígido e muito firme em fazer observar este artigo. Contudo, antes de expulsar os
alunos por esses motivos ou por outras razões, o Inspetor falará várias vezes com os pais, para
explicar-lhes o quão importante é que seus filhos assistam à aula com assiduidade, e que, sem
isso, é quase impossível que aprendam algo, pois esquecem em um dia o que aprenderam em
muitos.
c) Nem o Inspetor das Escolas nem os professores expulsarão os alunos, a menos que
vejam que nem eles nem seus pais se importam. Antes de expulsar os alunos por suas
110
ausências ou outras causas, podem-se utilizar alguns meios, como, por exemplo, privar o
aluno que tenha faltado à aula, inclusive com permissão, de todas as autorizações e
recompensas que lhes foram dadas por ter sido obediente; ou não passá-lo de lição na próxima
data de mudanças, inclusive se souber ler perfeitamente ou estiver preparado para ser mudado.
d) É necessário que o professor seja fiel em ler todos os dias, toda vez que houver
aula, os registros dos visitadores e dos primeiros de banco, e que se apresse para que uns e
outros não deixem de cumprir a hora indicada do artigo de seu ofício; e que, ao lê-los,
examine se estão indicados exatamente todos os ausentes nos catálogos, e se coincidem um
com o outro.
e) Os alunos que tenham faltado à aula não entrarão na escola até que a pessoa que os
leva tenha falado com o que recebe os ausentes. O lugar em que se desculparão os ausentes
será em frente da porta de entrada da escola.
f) Se quando os pais levarem os alunos e expressarem queixas sobre o professor, quem
os receberá terá cuidado de desculpar sempre o professor, inclusive se acreditar que o
professor agiu mal. Logo informará o professor sobre os avisos que considere necessários, se
for o Diretor. Se não for, encaminhará ao Diretor tudo o que lhe tenham dito, as queixas que
tenham expressado e a propósito do que.
g) Se o aluno esteve ausente por culpa de seus pais, o aluno entrará na escola, e depois
será falado com os pais em particular, para que se conscientizem sobre a falta e o mal que
tenham causado a seus filhos, ao ocasionar ou permitir suas ausências, e lhes comprometerá a
serem fiéis em obrigar o aluno a freqüentar assiduamente; inclusive lhes manifestará que, se
voltarem a faltar por esse tipo de motivos, isso não será admitido.
h) Se o aluno faltou à aula por sua culpa, o Inspetor, ou quem ocupe seu lugar, o
repreenderá na presença do pai que o tenha levado, e depois, em particular, dará ao pai os
avisos que considere necessários para impedir essas ausências.
i) Os alunos que tenham faltado à aula sem permissão, uma vez admitidos, serão
colocados em suas classes nos bancos dos negligentes, reservado aos que se ausentam sem
permissão e aos que chegam tarde. Permanecerão nesse banco o dobro do tempo que faltam
na escola.
Também existem indicações a respeito dos feriados e das férias escolares. O próprio
La Salle considera que “é importante que nas escolas estejam sempre devidamente regulados
111
os feriados e as férias, e é uma das coisas que contribuem muito com a manutenção da
ordem.”154
Muito comuns na sua época, os feriados, inclusive aqueles de caráter religioso,
interferiam bastante na seqüência das atividades desenvolvidas nas escolas. Por isso, La Salle
dedica um capítulo todo do Guia para regulamentar155 como seriam os feriados e o período de
férias em suas escolas:
a) Será feriado todas as quintas-feiras das semanas em que não ocorrer nenhuma festa.
Quando houver uma festa na semana, se esta festa cair na segunda-feira, ou terça ou sábado,
será dado feriado na quinta-feira pela tarde. Se a festa cair na quinta-feira ou sexta-feira, será
dado feriado na terça-feira pela tarde; e se a festa cair na quarta-feira, não haverá feriado essa
semana. Quando na semana houver duas festas ou mais, não haverá feriado.
b) Não será dado nenhum feriado extraordinário sem necessidade evidente e
indispensabilidade; e quando o Diretor de uma casa for obrigado a dar algum, pedirá o parecer
ao Superior do Instituto, antes de dá-lo, em caso de poder prever. As ocasiões em que são
dados feriados extraordinários serão as seguintes: nos dias de feira; no dia em que se enterre
um Irmão falecido na casa dessa cidade; nos dias em que houver uma cerimônia na cidade ou
algo extraordinário; no dia da festa do padroeiro de cada paróquia nas que há escolas; nos dias
de determinadas festas, sempre que sejam guardadas na cidade ou na paróquia onde se
encontra a escola.
c) Todos os anos e em todos os lugares não haverá aulas durante um mês, pois será o
período das férias.
d) Não será trocada a lição no último dia antes das férias, a não ser que seja esperado
para depois das férias. Aqueles que se aplicam pouco em classe, deverão estudar e ler
freqüentemente em casa, e inclusive escrever, se estão aprendendo a escrever, para não se
esquecerem do que aprenderam, e para não ter que voltar para lições inferiores, ou inclusive a
uma lição inferior àquela em que se encontram.
e) No último dia de aula antes das férias: haverá o catecismo, na parte da tarde; em
seguida, o professor orientará os alunos sobre o modo como devem passar o tempo de férias;
haverá a entrega dos prêmios aos alunos, de acordo com suas capacidades; os cadernos serão
devolvidos; e o professor incentivará os alunos a exercitar a escrita e a leitura em casa.
154
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 113.
155
Cf. Ibidem, p. 113-117.
112
A comunicação aos alunos e familiares sobre os feriados e as férias era feita todos os
domingos, num dado momento da celebração da missa. O Diretor ou o Inspetor das escolas
anunciava o programa e o horário das atividades da semana seguinte. Desta forma, La Salle
também organizou e regulamentou o calendário letivo de suas escolas, de forma a garantir,
com certa consistência, um processo e um período sistemáticos de aprendizagem.
Se esta regulamentação é óbvia, nos dias de hoje, na época de La Salle não existia de
forma regulamentada e sistemática. A organização criada por La Salle definia com clareza
quais eram os dias letivos, os dias reservados para os feriados e os dias de férias, de modo a
ordenar o processo escolar.
4. Das funções exercidas pelos alunos
Uma outra importante regulamentação da escola de La Salle é o estabelecimento de
alguns ofícios ou funções, que deveriam ser exercidos exclusivamente pelos alunos. Estas
funções, ressaltava La Salle, não podiam e não deveriam ser feitas pelos professores, de
maneira que os alunos tivessem certas responsabilidades.
Mas, além desta questão do aluno poder sentir-se responsável, também existe esta
perspectiva de trabalho com os dons de cada pessoa, que contribui para o desenvolvimento
pessoal. Por isso “faz-se necessário que as capacidades e habilidades especiais de cada aluno
sejam reconhecidas e entendidas pelo sistema escolar e pela escola como uma grande
possibilidade de individualização positiva na sua formação.”156 Responsabilidade,
desenvolvimento das habilidades pessoais e o sentido de co-responsabilidade dentro da sala e
da escola são os resultados que se supõem sejam alcançados com esta metodologia de
trabalho com os alunos.
Para escolher os responsáveis de cada uma das funções apresentadas por La Salle, os
alunos deveriam ser nomeados pelo professor em cada classe, e trocados conforme a
necessidade. As funções157 apresentada pelo Guia são as seguintes:
a) Em cada escola haverá dois alunos que se encarregarão de recitar as orações
previstas, um pela manhã e outro pela tarde. Estes dois devem substituir-se mutuamente, caso
quem deva exercer esta função chegue tarde ou falte à aula. Aquele que exercer esta função
pela manhã, na semana seguinte deverá exercê-la pela tarde, e vice-versa. Para exercer esta
156
Alexandre Thomaz Vieira (org.). Bases para a construção de uma nova organização escolar. IN: Gestão
Educacional e Tecnologia. São Paulo: Avercamp, 2003, p. 59.
157
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 117-129.
113
função, o aluno deve saber perfeitamente todas as orações e ter uma voz adequada, clara, e
que possa ser ouvido por todos. Estes dois recitadores serão nomeados todos os meses.
b) O ajudante da missa será encarregado de repassar as respostas da missa durante o
café da manhã. Neste momento, permanecerá de pé, sempre no mesmo lugar a cada manhã.
Deverá ter bom comportamento e será trocada a cada mês.
c) Em cada classe haverá um aluno encarregado de recolher as esmolas, ou seja, os
pedaços de pães que se entregam aos pobres, durante o café da manhã e a merenda. Cada
professor cuidará de que o encarregado deste ofício tenha piedade e amor aos pobres e,
sobretudo, não seja inclinado à gula; não poderá pegar para si nada do que for destinado à
esmola. Este aluno será mudado quando o professor o considere oportuno ou necessário.
d) Em cada escola deveria haver um aluno responsável pela água benta, colocada na
entrada da Igreja, para que os participantes pudessem se benzer. Este aluno também era
encarregado de ir à frente dos demais quando da ida à missa.
e) Haverá em cada escola um aluno encarregado de levar os rosários à Igreja, todos os
dias, para a missa. Este aluno receberá os rosários do professor e distribuirá aos alunos,
recolhendo-os ao final da cerimônia.
f) Em cada escola haverá um aluno cuja função será tocar a campainha, para começar
a classe e os exercícios da escola. Este aluno deveria tocar a campainha para o início e o
encerramento da aula e das demais atividades. A precisão de La Salle especifica que o aluno
deve tocar a campainha exatamente vinte vezes. Este encarregado deve ser assíduo à escola,
cuidadoso, vigilante, exato e muito pontual para tocar no momento estabelecido. Este aluno
será trocado somente se o professor o julgar conveniente.
g) Haverá inspetores em cada classe quando se ausenta o professor, durante o café da
manhã e a merenda, e não os haverá em nenhum outro momento. A missão deste aluno
consistirá em vigiar tudo o que ocorre em classe durante a ausência do professor, sem dizer
nenhuma palavra e sem sair de seu lugar. Não poderá nunca ameaçar nenhum aluno, nem por
sinais nem de qualquer outra forma, seja qual for a falta que cometa. Será fiel em informar ao
professor de todas as coisas, tal como tenham ocorrido e com todas suas circunstâncias; será
exato em não dizer nem mais nem menos. O professor explicará ao inspetor que sua função
não será somente vigiar sobre tudo o que se passa na classe, mas para ser modelo e exemplo
aos demais. O professor examinará atentamente o que o inspetor lhe transmitir, consultará
outros alunos a respeito, antes de decidir que decisão tomar. O professor escutará as queixas
contra o inspetor, se houver. As qualidades exigidas para exercer esta função serão: ser
vigilante, fiel, esperto para dar-se conta do que ocorre na classe, que seja silencioso e
114
comedido; que não seja preguiçoso, nem dissimulado, nem mentiroso; que seja incapaz de
fazer acepção de pessoas e, sobretudo que nunca receba nenhum presente de ninguém.
h) Em cada classe haverá dois alunos que estarão encarregados de vigiar o
comportamento do inspetor de alunos, quando este desempenha seu ofício. Sua função é
verificar se o inspetor se deixa corromper com algum presente; se exige algo dos demais para
não comunicar suas faltas ao professor; se guarda silêncio; se ele mesmo é causa de desordem
na classe; se abandona seu lugar e se mistura com os outros; enfim, se cumpre seu dever com
exatidão. O professor procurará que o inspetor não saiba quem são esses dois vigilantes. Os
vigilantes serão dos alunos mais sensatos, dos mais piedosos, dos mais diligentes em ir à
escola e que tenham suficiente habilidade para observar o comportamento do inspetor sem
fazer-se notar. O professor lhes indicará em privado que observem o comportamento do
inspetor. Em semelhante função, haverá os vigilantes encarregados de observa o
comportamento dos alunos nas ruas próximas à escola.
i) Haverá a função denominada primeiro de banco. O primeiro aluno de cada banco
está encarregado do registro de seu banco, e assinalará as ausências de seus companheiros à
aula e apresentarão sua lista ao professor. Estes alunos serão dos mais assíduos, mais
ajuizados e modestos da classe. Este ofício será dado como prêmio por sua assiduidade,
modéstia e capacidade. Não serão mudados, a menos que o professor o considere necessário,
por alguma falta que tenham cometido o por algum outro motivo importante.
j) Em cada classe, haverá dois ou três alunos com a função de visitadores de ausentes.
Estes estarão encarregados de velar pela assiduidade dos alunos de várias ruas de determinado
bairro da cidade, que lhes seja designado. Cada um deles terá uma lista desses alunos, com os
nomes e endereços correspondentes. Cada visitador informará ao professor, na aula seguinte,
sobre o que lhe disseram na casa visitada, as causas de sua ausência, com quem falaram e
quando o aluno ausente votará à escola. Os visitadores também deverão visitar a casa dos
alunos enfermos, informando ao professor sobre seu estado de saúde. Os visitadores deverão
falar sempre com o pai, mãe ou responsável pelo aluno ausente, procurando certificar-se se o
que diz é verdadeiro. Falarão sempre com muita educação e saudarão em nome do professor.
Os visitadores terão cuidado de não se deixar corromper, seja pelos alunos ou por seus pais,
para transmitir ao professor falsos motivos de sua ausência. Os visitadores serão escolhidos
dentre os mais assíduos da escola. Deverão ser espertos, honrados e de bom comportamento.
Esta função será mantida ao longo de todo o ano.
l) Nas classes em que os alunos já escrevem, haverá um ou dois alunos exercendo a
função de distribuidores e recolhedores de papel, quando começa e quando se encerra a aula
115
da escrita. Estes alunos terão o cuidado de colocar os papéis seguidos, segundo a ordem que
ocupam os alunos, a fim de que possam entregar, com segurança, a cada um o seu papel. Ao
recolher os papéis, cuidarão que todos dobrem os papéis, conforme costume.
m) Em cada classe havia certo número de livros de cada lição, para emprestar aos
alunos muito pobres e que não tinham condições de comprá-los. Por isso, havia dois alunos
encarregados de distribuir e recolher os livros. Esses livros não deveriam ser entregues, a não
ser aos alunos nesta situação. Estes alunos eram responsáveis pela conservação destes livros.
Notamos, portanto, que além da atividade de distribuir e recolher os livros, a estes alunos era
dada a responsabilidade pela conservação dos mesmos.
n) Em cada classe haverá um aluno encarregado de varrer a sala e deixá-la limpa e
decente. Deverá exercer esta tarefa uma vez por dia, ao final da manhã. Antes de começar a
varrer, deverá colocar os bancos junto à parede. Os varredores de cada sala se ajudarão
mutuamente para fazer este trabalho de tirar e recolocar os bancos no lugar. Varrerá a sala e
levará o lixo no local indicado, na rua. Cuidará de conservar sua vassoura e solicitar outra ao
professor quando a sua não mais estiver em condições. Estes alunos não devem ser lentos,
para não empregarem muito tempo nesta tarefa. Serão escolhidos a cada mês e receberão um
presente ao final de cada mês.
o) Em cada escola haverá somente uma porta de entrada. Haverá um aluno, chamado
porteiro, da classe mais próxima à porta, encarregado de abrir e de fechar esta porta, cada vez
que alguém entra ou saia da escola. Não permitirá entrar na escola mais que os professores e
os alunos, e ao senhor pároco da paróquia em que está a escola. Não deixará entrar nenhuma
outra pessoa, a não se esta for indicada pelo diretor. O porteiro, por causa de sua função,
deverá ser o primeiro a chegar à escola. Este encarregado será escolhido dentre os mais
diligentes e assíduos, devendo ser ajuizado, comedido, modesto, silencioso, e capaz de
edificar os que recebe à porta.
p) Além do porteiro, haverá um encarregado das chaves da escola. Será muito exato
em se fazer presente todos os dias, na hora em que se deve abrir a porta, ou seja, antes das sete
e meia da manhã e antes da uma da tarde. Por este motivo, será escolhido um aluno que more
perto da escola. Sob os cuidados deste aluno ficarão as chaves da escola. Será escolhido
dentre os mais assíduos e será trocado somente em caso de necessidade.
O primeiro aspecto a se considerar, desta organização interna das Escolas Cristãs, é a
que dividia os alunos em grupos, com responsabilidades, o que aproxima esta indicação do
Guia da Didática Magna: “Se dividir os alunos em grupos, por exemplo, de dez pessoas,
116
encabeçados por responsáveis que serão controlados por outros, e assim por diante até o
último responsável” 158
As funções descritas anteriormente dão certa noção de responsabilidade comunitária a
todos os alunos na escola. De fato
a escola terá de ser vista como uma organização constituída socialmente; portanto,
com ênfase no processo de interação social que aí se desenvolve antes que nos
aspectos formais que a caracterizam, impondo limites rígidos e intransponíveis (...)
Uma vez que a escola é responsável pela formação das novas gerações e estas terão
de ser preparadas para participar ativamente da sociedade, não há como ignorar as
demandas provindas desse contexto social.159
Neste sentido, os ofícios atribuídos aos alunos proporcionavam o crescimento e o
desenvolvimento de responsabilidades individuais e comunitárias, trabalhando, num universo
restrito, a dimensão de cidadania e de co-responsabilidade num universo mais amplo.
Esta organização, envolvendo os alunos, possibilitava a percepção e a consideração de
que a escola era realmente um espaço comunitário, no qual cada um tinha sua importância,
sua responsabilidade e sua parcela de contribuição. Trata-se de uma estrutura fortemente
marcada pelo caráter educativo.
5. Da estrutura e móveis das escolas
Outra importante indicação do Guia das Escolas é a estrutura dos locais onde
acontecem as aulas. A escola, segundo o Guia, deveria ter uma certa disposição das salas, de
iluminação, e demais características necessárias ao bom desenvolvimento deste trabalho.
Conforme verificamos anteriormente, a realidade dos espaços físicos destinados às escolas era
totalmente inadequada. De fato, não havia salas e muito menos mobiliário para que as
atividades pudessem acontecer de forma adequada.
Atento a esta realidade, La Salle traça uma série de orientações de como deveriam ser
constituídos os prédios e espaços das Escolas Cristãs. Esta situação também foi uma das
razões do sucesso de suas escolas e da perseguição sofrida por ele e os primeiros professores
pelos Mestres Calígrafos e sua corporação.
158
159
Comenius. Didática Magna. 2. ed. Trad. bras. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 210.
Alexandre Thomaz Vieira (org.). Gestão Educacional e Tecnologia. São Paulo: Avercamp, 2003, p. 34-35.
117
O Guia apresenta as seguintes normas e orientações160 em relação ao prédio escolar:
a) As escolas deveriam estar dispostas de tal maneira que os professores e os alunos
pudessem cumprir com facilidade suas obrigações. Os locais deveriam estar no mesmo nível,
assim na planta baixa como na alta. A porta de entrada, quanto possível, há de estar disposta
de tal modo que os alunos não tenham que passar por outras salas para entrar na sua.
b) Quando as classes estiverem em um local que dá para rua ou para um pátio comum,
deve-se procurar colocar as janelas ao menos a sete pés do solo, para que os transeuntes não
possam ver o interior da classe.
c) Também deveria haver banheiro para as crianças, pois se considerava muito
inconveniente que elas saíssem para as ruas ou vias de acesso. Esta preocupação óbvia, que
nem se cogita na atualidade, também foi objeto de regularização por parte de La Salle e os
professores.
d) É necessário que as classes desfrutem de boa iluminação e ventilação, e para isso,
que haja janelas nos dois extremos de cada classe, se possível, por causa do suor; que tenham
ao menos 18 ou 20 pés quadrados, ou no máximo 25, pois as classes muito grandes ou
estreitas são incômodas.
e) Que as classes pequenas e médias tenham pelo menos de 15 a 18 pés de lado; e que
a porta de comunicação esteja disposta de tal modo que seja possível colocar a mesa do
professor junto à parede, frente a frente de tal porta.
f) Os bancos nas classes devem ser de diversas alturas, a saber: de 8, 10, 12, 14 e 16
polegadas de altura, e largura entre 12 e 15 pés; todos unidos. A espessura de cada banco deve
ser ao redor de polegada e meia, e a largura de seis polegadas; cada banco deve ter três pés, e
cada pé, dois suportes e um encosto abaixo.
g) Nas classes inferiores deve haver dois bancos de 8 polegadas de altura, para os
alunos menores, três de 10 e três de 12 polegadas para os médios e para os maiores, que
poderão ser aumentados ou diminuídos segundo o número de alunos.
h) Nas classes de maiores deve haver certo número de mesas, segundo a quantidade de
alunos, para o exercício da escrita: duas mais altas para os alunos maiores, e as outras mais
baixas, para os menores e mais baixos; e bancos de mesma longitude.
i) As mesas mais altas devem ter dois pés e três polegadas, por detrás, e dois pés e uma
polegada para frente, para que a mesa tenha inclinação; os bancos que servem para essas
160
Cf. Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las
Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 129-134.
118
mesas devem ter 16 polegadas de altura. As mesas mais baixas devem ter dois pés de altura
por detrás e um pé e 10 polegadas de frente; os bancos que servem para estas mesas devem ter
14 polegadas de altura. As mesas devem ter 15 polegadas de largura, e ao menos uma
polegada e meia de espessura; de largura serão de 9, 12 e 15 pés, em proporção às dimensões
da classe. Sobre as mesas, na medida do possível, haverá tinteiros para as plumas.
j) Com relação a esses bancos e mesas, é importante salientar que eram construídos
pelos próprios professores, segundo as orientações e medidas fornecidas. Mas há uma ressalva
interessante: contudo, se algum professor encontrar outra maneira de construir os bancos e as
mesas de forma mais sólida ou mais simples, poderá propor aos demais e assim as construir.
l) O Guia também apresenta, de forma detalhada, a maneira e o formato de se fazer
todos os cartazes, que deveriam ser colocados em todas as salas de aula, de forma igual:
alfabeto, sílabas, vogais, consoantes, pontuação, números, números romanos. Além destes,
também deveria haver as estampas de caráter religioso e os cinco cartazes com as sentenças
apresentadas anteriormente: é preciso freqüentar a aula, sem chegar tarde; na classe é preciso
aplicar-se em estudar a lição; é preciso escrever sempre, sem perder tempo; é preciso escutar
atentamente o catecismo; é preciso rezar com piedade, na Igreja e na classe. Todos os cartazes
possuem, no texto do Guia, a minuciosa e detalhada indicação de: altura e largura; tamanho e
espaçamento entre as letras; quantidade de letras ou números por linha; quantidade de linhas e
de colunas por cartaz; formato e dimensão das letras e números.
m) Em cada classe também deveria haver um grande painel, com 5 pés de largura por
3 pés de altura, fixado na parede, a partir de 5 pés do solo. Este painel deveria ser pintado com
tinta à óleo preta. Tratava-se, portanto, do quadro-negro da sala, no qual o professor orientava
sobre a maneira de se escrever as letras e se faziam as operações de aritmética.
n) Este capítulo também descreve, de forma minuciosa, como deveria ser
confeccionada a cadeira do professor e o armário em que se guardavam os cadernos, livros e
demais objetos e materiais de uso na sala de aula.
La Salle cria, portanto, com estas indicações e exigências, um verdadeiro espaço
destinado à escola; seria um esboço bem organizado do espaço escolar, tal como o
compreendemos hoje. Evidentemente não podemos comparar esta realidade com a que temos
hoje, em termos de qualidade de materiais e tecnologia educacional. Entretanto, num período
em que a precariedade era patente, construir uma escola desta forma significa proporcionar
um avanço considerável na qualidade do ensino disponível às camadas mais pobres da França.
Além disso, esta postura indica a dedicação exclusiva de uma Sociedade de professores à
criação de escolas bem estruturadas e bem organizadas.
119
6. Das virtudes do bom professor
Ao final desta segunda parte do Guia, aparece um breve texto, denominado “As Doze
Virtudes do Bom Professor”. Entretanto, este texto é constituído apenas pela indicação dessas
doze virtudes, sem maiores explicações ou recomendações. Isto parece sugerir que, conforme
dito anteriormente, La Salle e seus professores tinham o costume de revisar o texto do Guia,
inserido ou modificando procedimentos para o cotidiano das escolas. Talvez este tenha sido o
motivo de que essas doze virtudes apareçam aqui, com a intenção de que sua explicitação
fosse desenvolvida posteriormente.
Textualmente, sem explicar cada item, o Guia apresenta as doze virtudes desta forma:
“Gravidade, silêncio, humildade, prudência, sabedoria, paciência, mesura, mansidão, zelo,
vigilância, piedade e generosidade.”161
Nossa pesquisa nos levou a descobrir que, posteriormente, um dos superiores gerais do
Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs, sucessor de La Salle, chamado Irmão Agatón,
retomou essas doze virtudes e acrescentou uma explicação a cada uma delas. A este pequeno
livro, publicado em 1785, o Irmão Agatón deu o título de “As doze virtudes do bom professor
segundo João Batista de La Salle”162.
Como não se trata de enfocar esta temática em nossa pesquisa, transcrevemos apenas
alguns trechos das explicações e comentários de cada uma das doze virtudes elencadas pelo
Irmão Agatón:
a) A Gravidade: A gravidade é uma virtude que ordena todo o porte exterior do
professor, em conformidade com a modéstia, o decoro e a boa ordem.
b) O Silêncio: Com este nome designamos aqui certa prudente discrição no uso da
palavra, de maneira que o professor saiba calar quando não deve falar, e falar quando não
deve calar.
c) A Humildade: A humildade do professor é caritativa, pois lhe torna amável, atento,
serviçal, acessível, sobretudo aos pobres e àqueles que são antipáticos. Por isso, jamais adotará com seus alunos ar arrogante, de despeito ou de desdém.
d) A Prudência: A prudência é uma virtude que nos dá a conhecer o que devemos
evitar e nos indica os meios seguros e legítimos de conseguir um fim adequado. Esta virtude
determina o uso que devemos fazer do entendimento para não ter do que nos arrepender de
161
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 134.
162
Hermano Agatón. Las doce virtudes del buen maestro según Juan Bautista de La Salle. Disponível em
<http://www.ulsa.edu.mx/%7Eestrategias/biblioteca/lecturas/educacion_lasallista/12_virtudes/2_AGATON_12V
IRTUDES.doc> Acesso em 07 out. 2006.
120
nossos intentos ou empresas. Porém, os meios por ela empregados serão sempre legítimos se
forem inspirados pela razão e pela fé, e serão seguros se não forem insuficientes nem
excessivos.
e) A Sabedoria: A sabedoria é a virtude que nos dá a conhecer as coisas segundo os
princípios mais excelentes, e nos move a trabalhar conforme eles. Difere da Prudência na
medida em que esta supõe tão somente um fim adequado, qualquer que seja; ao passo que a
Sabedoria mira diretamente ao objeto deste fim, e o aprecia, não só como bom e estimável,
mas também como muito nobre e importante.
f) A Paciência: Justamente se aplica ao bom professor. Como continuamente vive com
os alunos, esta virtude serve para ele suportar as moléstias e desgostos inerentes a sua
profissão, e por conseguinte, em não se incomodar pelas insolências, zombarias ou maus
modos dos alunos ou de seus pais; em compadecer-se da fraqueza de juízo dos meninos, tão
natural a seus anos, assim como a agilidade de seu espírito e de sua inexperiência; em não
desalentar-se nunca nem cansar-se de repetir aos alunos, muitas vezes e por muito tempo, as
mesmas coisas, sempre com bondade e carinho, para gravarem na memória, por maior que
seja a dificuldade e tédio que isto possa causar. Pois, cedo ou tarde, alcança o fim a que se
propõe, de tanto instruir, admoestar, e repreender. Com o passar do tempo, começam a criar
raízes as idéias exatas e razoáveis que incessantemente foram inculcando.
g) O Comedimento: O comedimento é uma virtude que nos inclina a falar e agir com
discreta moderação e modéstia.
h) A Mansidão: É uma virtude que nos inspira bondade, clemência e ternura.
Distinguem-se, em geral, quatro classes de mansidão: a primeira é a do espírito, que consiste
em julgar as coisas sem paixão, sem preocupação do próprio mérito ou de suposta capacidade.
A segunda é a do coração, que inclina a desejar as coisas sem obstinação e de maneira justa.
A terceira é a dos costumes, que consiste em conduzir-nos por princípios retos sem nos
intrometer-nos a reformar os outros, quando não temos autoridade sobre eles, nem a nos
misturarmos em coisas que não nos competem. E, finalmente, a quarta, é a da conduta, que
nos move a trabalhar com simplicidade e retidão, sem contradizer os demais quando não há
justo motivo nem obrigação de fazê-lo, e guardando sempre a moderação conveniente.
i) O Zelo: O professor zeloso começa seu ensino pelo constante bom exemplo com que
acompanha todas as suas atividades; essa é a primeira lição que deve dar a seus alunos.
j) A Vigilância: A Vigilância é uma virtude que nos infunde diligência e exatidão no
cumprimento de nossos deveres. O professor necessita desta virtude para si e para seus
alunos.
121
l) A Piedade: O professor deve possuir em grau elevado a virtude da Piedade; ou seja,
que sua Piedade há de ser interior e sincera; se só aparentasse tê-la, seria hipócrita. Daí que
deve viver esta virtude de modo manifesto e exemplar; assim se mostrarão os sentimentos de
que seu coração está cheio.
m) A Generosidade: Para adquirir a virtude da Generosidade, o professor deve estimar
seu emprego, desempenhá-lo com carinho e sem negligência, compadecer-se em servir ao
próximo e em fazer-lhe todo o bem possível, gratuitamente e sem outro motivo que o bem do
próximo.
Nessas doze virtudes, La Salle pressupõe a existência de uma postura do professor e
faz isso, com base na sua concepção de educador. Morin nos diz que
Educar para compreender a Matemática ou uma disciplina determinada é uma
coisa; educar para a compreensão humana é outra. Nela encontra-se a missão
propriamente espiritual da educação: ensinar a compreensão entre as pessoas como
condição e garantia da solidariedade intelectual e moral da humanidade. 163
Quando falamos de professores que buscam cultivar certas virtudes – ainda que não
sejam estas apresentadas por La Salle, pois dizem respeito a uma realidade específica –
estamos querendo cultivar um processo educacional e uma postura profissional baseados em
valores significativos que, de certa forma, influenciam os alunos.
Aquela colocação famosa de Paulo Freire, acerca de que, a um tempo, somos todos
educadores e educandos, nos convida fortemente a repensar que devemos, enquanto
professores, aprender a cultivar algumas virtudes essenciais à nossa profissão, pois
tudo aquilo que quisermos mudar nas crianças, devemos primeiro examinar se não
é algo que é melhor mudar em nós mesmos, como por exemplo, o nosso entusiasmo
pedagógico. Talvez devêssemos dirigir esse entusiasmo pedagógico para nós
mesmos. Talvez estejamos entendendo mal a necessidade pedagógica, porque ela
nos recorda, de modo incômodo, que de qualquer maneira somos crianças e
precisamos muitíssimo da educação. 164
163
Edgar Morin. Os sete saberes necessário à educação do futuro. Trad. bras. 5. ed. São Paulo: Cortez; Brasília:
UNESCO, 2002, p. 93.
164
Carl Gustav Jung. O desenvolvimento da personalidade. Trad. bras. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 176.
122
Talvez estejamos fortemente necessitados de rever as nossas teorias e práticas e
recolocar, de forma direta e objetiva, refletida, mas pragmaticamente, que virtudes devemos
cultivar em nós mesmos para podermos educar hoje.
123
Capítulo IV – A terceira parte do Guia das Escolas
A vocação para transmitir o saber; para difundi-lo e partilhálo com outras pessoas. Uma aula é um ágape, uma fagulha da
comunhão da inteligência do mundo com a luz da
consciência dentro do amor. Vivenciar aquele momento
mágico, no qual professor e aluno constroem o saber. O
entusiasmo do professor e o brilho dos olhos dos alunos
confirmam a transcendência do Ego.
Carlos Amadeu Botelho Byington165
A terceira parte do Guia das Escolas ocupa 27% do texto e apresenta uma orientação a
respeito da burocracia e da organização escolar criada para atender as necessidades das
Escolas Cristãs de La Salle. Esta parte, portanto, trata dos seguintes temas: as
responsabilidades do Inspetor das Escolas para com os diversos setores; a admissão dos
alunos e os critérios para fazê-lo; a distribuição dos alunos e a organização das lições; os
critérios e procedimentos para a mudança dos alunos de uma lição a outra; orientações para a
formação dos novos professores; as orientações para os responsáveis pela formação dos
internos, ou seja, dos que aderem à Sociedade e passam a viver como religiosos educadores; e
os distintos tipos de casas do Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs.
É nesta parte que La Salle, ao propor um estilo de formação de professores, faz
referência implícita à sua importância no processo educativo: ao longo de sua vida,
constatamos a dedicação especial de La Salle aos processos formativos dos professores, pois
considerava este emprego de suma importância. Como ele, Fernando Savater também afirma
que considera professores e professoras o grupo mais necessário, mais esforçado e generoso,
mais civilizador dentre todos os que trabalham para atender as demandas de um estado
democrático166 e é justamente para e com este grupo que La Salle vai dedicar a maior parte de
seus esforços.
1. Do Inspetor e da distribuição dos alunos
Ao organizar as Escolas Cristãs, La Salle, como bom administrador, criou uma função
específica para coordenar todo o trabalho das escolas. Desta forma, em cada Escola Cristã
deveria haver um Diretor e/ou um Inspetor, que teria(m) certas responsabilidades sobre o que
165
Carlos Amadeu Botelho Byington. Pedagogia Simbólica. A construção amorosa do conhecimento de ser. Rio
de Janeiro: Record, 1996, p. 115.
166
Fernando Savater. O valor de educar. Trad. bras. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2005, p. 12.
124
acontecia na escola. Em alguns casos, estas duas funções eram exercidas pela mesma pessoa;
em outros, a mesma pessoa exercia essa função em mais de uma unidade escolar.
O Inspetor das Escolas, determina La Salle, deveria estar sempre presente e não
poderia se ausentar da escola a não ser por extrema necessidade. Tinha a incumbência de
velar sobre tudo o que acontecia nas classes, dando especial atenção para que as regras e os
costumes das escolas fossem observados exatamente, sem nenhuma alteração, conforme
apresentado no Guia.
O Guia apresenta as três funções básicas que o Inspetor das Escolas deveria exercer: a
vigilância das classes, dos professores e dos alunos; a distribuição dos alunos nas classes; a
mudança dos alunos de lição. 167
Sobre este trabalho do Inspetor das Escolas nas classes, o Guia assinala que é de sua
competência garantir que haja: um recipiente com água benta na entrada da escola; crucifixo e
imagens e objetos religiosos; os cartazes previstos no Guia; um cesto para recolher o pão que
se dá aos pobres durante o café da manhã e da merenda; os livros de todas as lições, para os
alunos e professores; papel suficiente para as atividades de escrita; uma estante ou um armário
para guardar o material escolar; o material utilizado para a escrita, como tinteiro e a tinta;
vassouras e cestos de lixo para a limpeza da sala; somente uma vara ou açoite para todas as
salas da escola; os móveis utilizados pelos alunos em bom estado de conservação. Além disso,
o Inspetor deveria garantir a limpeza da sala como um todo, evitando os pedaços de papel,
plumas, frutas, pão, barro, ou outra coisa no chão.
Com relação aos professores, era tarefa do Inspetor velar e garantir: que andassem
pelas ruas com suma modéstia, procurando ser motivo de edificação para todos que os vissem;
que todos começassem as atividades exatamente na hora indicada, e seguir regularmente o
horário estabelecido; que durante as aulas se esforçassem para que os alunos lessem e
escrevessem corretamente; que procurassem manter a ordem e o silêncio; que dessem atenção
especial aos alunos mais pobres e com dificuldades; que não tivessem preferências de alunos,
tratando a todos de maneira igual; que não se familiarizassem com nenhum dos alunos; que
sempre falassem com os alunos e com seus pais com muita educação e cortesia; que não
aplicassem os castigos em momento de impaciência.
Sobre seu trabalho com os alunos, o Inspetor deveria garantir: que chegassem cedo
para o início das aulas; que não faltassem, a não ser por extrema necessidade; que fossem
modestos, comedidos e edificantes nas ruas, evitando qualquer espécie de inconveniente; que
167
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p.135-140.
125
não brigassem; que fizessem suas necessidades na escola, antes de sair, e não nas ruas; que
entrassem e permanecessem na escola com modéstia e compostura; que fizessem as atividades
indicadas pelo professor de forma adequada; que procurassem manter o silêncio.
O Guia apresenta, em seguida, algumas orientações referentes aos procedimentos de
admissão dos alunos nas Escolas Cristãs. Estes procedimentos são bem detalhados168, de
maneira a garantir certa uniformidade na escola:
a) Somente o Inspetor ou o Diretor poderia admitir os alunos que se apresentassem
para freqüentar a escola.
b) Somente eram admitidos meninos que fossem apresentados por seu pai ou sua mãe,
ou pela pessoa em cuja casa vivessem; e que tivessem idade suficiente.
c) Ao receber um aluno para a escola, o pai, a mãe ou a pessoa responsável pelo
menino deveria informar os seguintes dados: nome e sobrenome; os de seu pai e de sua mãe; a
profissão dos dois; seu domicílio; a idade do menino; se estava confirmado e se fez a primeira
comunhão; se já freqüentou alguma escola e por que motivo saiu dela.
d) Em caso de ser apresentado um menino de maior idade, além dessas informações,
os pais deviam informar se queriam que ele aprendesse algum ofício e em quanto tempo; a
capacidade que tinham para ler e para escrever; quais os bons e maus hábitos e qualidades do
rapaz; se tinham alguma doença ou precisavam de algum cuidado especial.
e) Ao ser admitido na escola, se exigia dos pais e do aluno que tivessem todos os
livros necessários para as atividades escolares.
f) Pais e aluno deveriam ser informados sobre a exigência de que este deveria ser
extremamente assíduo à escola, evitando faltas desnecessárias e chegando pontualmente para
o início das atividades, seja pela manhã ou pela tarde.
g) Os pais deveriam ser conscientizados de que, quando quisessem falar com o
professor ou tivessem alguma queixa, deveriam fazê-lo sem que seus filhos estivessem
presentes.
h) A família deveria assumir o compromisso de mandar o aluno vestido
adequadamente, com roupa limpa, cabelo lavado e bem penteado, livre de parasitas.
i) Os pais deveriam informar e garantir que o aluno não dormisse em casa com seus
pais, ou sua mãe ou alguma de suas irmãs.
Estas orientações de La Salle mostram a sua preocupação com o envolvimento da
família neste processo educativo. Neste sentido, faz referência ao que nos apresenta,
168
Cf. Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las
Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 140-142.
126
atualmente, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em seu artigo primeiro, ao
considerar que “a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida
familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos
movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.”
169
As
Escolas de La Salle foram organizadas para garantir esta participação da vida familiar no
contexto escolar, conforme era possível em sua época.
Tal postura é evidenciada quando, para admissão, La Salle faz as exigências elencada
anteriormente: presença do pai e da mãe para a matrícula; informações precisas sobre a
criança; explicitação do desejo dos pais em relação à formação requerida para seu filho;
compromisso dos pais com a compra do material escolar, a assiduidade, o contato periódico
com a escola, a garantia de asseio corporal e da roupa da criança para freqüentar a escola. Ao
proceder desta maneira, La Salle não só organizava a forma de se matricular o aluno, mas
também, de certo modo, educava os pais e os envolvia no processo escolar.
Ainda sobre esta questão da admissão de alunos na escola, o Guia prevê quais alunos
podem ser admitidos e quais não podem, explicitando os motivos e procedimentos para tais
posturas 170:
a) O Guia reconhece que as escolas podem ser procuradas por quatro classes de
alunos: os que estiveram em outras escolas; os que nunca foram a nenhuma escola; os que já
foram à escola, mas a deixaram por algum motivo; e os que foram expulsos de outras escolas.
b) Não poderia ser admitido nenhum aluno que não tivesse completado seis anos de
idade, a menos que se comprovasse que sua inteligência ou desenvolvimento físico suprisse a
sua falta de idade.
c) Não poderiam ser admitidos meninos pequenos somente para freqüentar a escola
durante o verão, quando o tempo é mais suave, ou para chegar mais tarde que os demais.
d) Não poderia ser admitido nenhum aluno que estivesse tão atrasado mentalmente,
que pudesse prejudicar os demais, ou que tivesse alguma doença contagiosa.
e) Não poderia ser admitido nenhum aluno que, de princípio, não pudesse ser assíduo à
escola.
f) Não poderiam ser admitidos alunos que tivessem freqüentado e deixado outras
escolas, sem que se soubesse por que motivos as deixaram. Neste caso, o Inspetor ou o
Diretor deveria conversar com os pais para saber os reais motivos e orientá-los a respeito.
169
República Federativa do Brasil. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. São Paulo: SIEEESP, 1998,
p.3.
170
Cf. Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las
Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 142-145.
127
g) No caso de alunos que freqüentaram outras escolas, mas não estivessem de acordo
com as regras utilizadas nas Escolas Cristãs, o Inspetor deveria comunicar aos pais quais os
procedimentos seriam adotados com seus filhos, para que pudessem ser admitidos.
h) Os alunos que já foram expulsos de alguma escola seriam recusados, e os motivos
da recusa deveriam ser explicados aos pais. Se estes insistissem, o Inspetor poderia aceitar o
aluno em questão, fazendo sérias ressalvas aos pais, na esperança de que o aluno pudesse
adequar-se aos regulamentos da escola.
Após a admissão dos alunos, cabia ao Inspetor ou ao Diretor, fazer a distribuição dos
mesmos nas diversas classes, ordens e lições previstas no Guia. Esta distribuição obedecia a
um critério único de capacidade do aluno em acompanhar o grupo em que fosse indicado:
A um aluno recém admitido, procurará colocá-lo junto a algum que lhe possa
ensinar a seguir com facilidade, e que não se dedique a falar com ele. Em cada
classe haverá lugar indicado para os alunos das diversas lições, de maneira que
todos os da mesma lição estejam colocados no mesmo lugar, sempre fixo, a menos
que esta lição se mude para outra classe. Os alunos das lições superiores se
colocarão nos bancos mais próximos da parede, e, em seguida, os outros, segundo a
ordem das lições, avançando para o centro da classe. O Inspetor das Escolas terá
cuidado de que as mesas dos que escrevem estejam colocadas de tal maneira que
possam escrever quando o dia é claro e luminoso. (...) Terá cuidado de que os
alunos estejam colocados com ordem e prudência. 171
A distribuição dos alunos por classe também era objeto de orientação do Guia.
Pretendia-se que uma classe tivesse um número razoável de alunos, agrupados de tal maneira
que se garantisse o trabalho a ser realizado. O princípio era que os alunos fossem agrupados
por nível de lição em que se encontravam, mas se houvesse um número muito grande de
alunos de uma mesma lição, estes poderiam ser divididos em mais grupos.
Em seguida, o Guia apresenta, de forma extremamente minuciosa e detalhista, como
era feita essa distribuição de alunos. Apenas para exemplificar, citaremos uma dessas
indicações, no que diz respeito aos alunos que estavam na lição de escrita em letra cursiva:
Na primeira ordem dos que escrevem colocará os que acabam de começar, e
procurará que os desta ordem se apliquem em manter bem o corpo e a pluma, e a
realizar bem os dois movimentos, reto e circular. Na segunda ordem colocará
171
Cf. Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las
Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 145.
128
somente os que mantêm bem o corpo e a pluma, e que já adquiriram facilidade para
fazer esses dois movimentos. Na terceira ordem somente colocará aqueles que não
somente mantêm bem o corpo e a pluma, mas que também dominam a ordem das
letras c, o, i, f, m. Na quarta ordem dos que escrevem somente colocará aqueles que
formam bem todas as letras, sem exceção de nenhuma; que fazem as uniões nítidas,
tal como devem ser. Na quinta ordem não colocará mais que aqueles que, além de
formar e unir bem e adequadamente todas as letras, escrevem as linhas direitas,
colocam bem as letras, formam o corpo das letras com a mesma altura, e dão aos
riscos ascendentes ou descendentes a longitude que devem ter segundo a norma...
172
O Guia também faz a indicação de como e quando devem ser mudados os alunos de
lição173:
a) Como o número de alunos não é sempre o mesmo em cada lição, a não ser quando
se muda os alunos de lição, ou quando chegam alunos novos, ou quando saem da escola, o
tempo que deve empregar cada professor para que os alunos da mesma lição aprendam a ler
não se pode regulamentar, nem pode ser sempre o mesmo. É obrigação do Diretor ou do
Inspetor das Escolas regular este tempo em todas as classes.
b) Para cada lição o tempo deve regular-se em proporção ao tempo que o professor
deve empregar em fazer ler, ao número de alunos que haja em cada lição, à facilidade ou
dificuldade que os alunos tenham para ler em cada lição, e ao número aproximado de linhas
que cada aluno deve ler nela.
c) Uma das coisas de maior importância em uma escola é mudar os alunos de lição de
forma adequada, e o Inspetor das Escolas deverá fazê-lo com sumo cuidado. Para este fim, as
mudanças de lição se farão segundo certas normas e com ordem: primeiro, cada professor
preparará seus alunos para isso; segundo, o Inspetor fará essas mudanças e tomará
determinadas precauções para realizá-lo bem; terceiro, procurará que os alunos tenham as
condições e qualidades necessárias para serem mudados; e quarto, as mudanças serão feitas
em tempo e forma regulamentados.
d) O Inspetor das Escolas avisará os professores sobre o dia, no final de cada mês, em
que examinará os alunos que possam ser mudados; conversará com os professores sobre os
alunos com dificuldades e sobre os procedimentos que deverão ter com eles.
172
Cf. Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las
Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 147-8.
173
Cf. Ibidem, p. 152-166.
129
e) Neste processo, o Inspetor não terá preferência por nenhum aluno, nem atenderá a
nenhuma recomendação, nem mudará nenhum aluno de lição ou de ordem se este não tiver a
capacidade e todas as condições necessárias. Procurará, também, com grande cuidado, que os
professores não lhe apresentem alunos para esta análise, se estes não estiverem preparados
para tal.
f) É de suma importância não passar nunca um aluno a uma lição para a qual ainda não
esteja preparado. Por isso não se deve ter em conta a idade, nem a estatura, nem o tempo que
um aluno leva numa lição, quando se lhe quer passar a outra mais avançada, a não ser
somente sua capacidade.
g) Não se mudará de lição nenhum aluno que não haja passado pelas três ordens
(principiantes, medianos e avançados) e não tenha permanecido nelas o tempo suficiente.
h) Os alunos de todas as lições, exceto os que apreendem o alfabeto, não serão
mudados durante o transcurso do mês, mas somente no final. Após a mudança, o Inspetor
solicitará aos alunos que, no dia seguinte, tragam o livro da próxima lição.
i) Caso o Inspetor constate que algum aluno não tenha condições de fazer a mudança
de lição, dará a conhecer ao professor os motivos pelos quais não poderá ser mudado, para
que este dedique mais atenção e procure que o aluno se corrija.
Assim, a Escola de La Salle estava organizada de maneira a garantir a aprendizagem e
respeitar as características de cada aluno, pois
uma organização assim permitia a diferenciação. No Guia das Escolas, a passagem
de uma classe à seguinte não se prendia a uma média de notas ou conceitos: O
aluno podia estar situado em grupos diferentes, conforme a matéria lecionada. Essa
flexibilidade permitia, pois, cursos escolares personalizados, ainda que as técnicas
de trabalho não fossem as da atual pedagogia personalizada, uma vez que os alunos,
em cada matéria, trabalhavam em pequenos grupos homogêneos. Disso resultou
uma forma específica de trabalhar que respeitava os níveis, os ritmos, as
capacidades, e mesmo os projetos de futuro de cada um.
Para realizar isto:
procedia-se a um exame inicial que determinava o nível de início, avaliava-se
mensalmente, observava-se o comportamento dos alunos para apreciar suas
aptidões, e se atendia à preocupação de saber o que cada aluno cogitava para seu
futuro. 174
174
Leon Laurarie. La Guía de las Escuelas Cristianas. Proyecto de educación humana y cristiana. Cuadernos
MEL 12. Roma: Hermanos de las Escuelas Cristianas, 2004, p. 3.
130
A mudança de lição, ou seja, de fase de aprendizado, acontece com critérios muito
claros e bem definidos. Somente mudam para a lição mais avançada aqueles que já
aprenderam bem a lição em que estão. Isto parece fazer um contraponto com a realidade
educacional de alguns estados brasileiros, em que existe a promoção automática ou
continuada, sem uma evidente verificação do aprendizado.
Na escola de La Salle, para se avançar, seria preciso estar bem na lição em que se
encontra; nenhum aluno avança se não puder avançar de forma perfeita. Este perfeccionismo
exigido por La Salle vem ao encontro do que diz Fernando Savater: “educar é crer na
perfectibilidade humana, na capacidade inata de aprender e no desejo de saber que a anima, é
crer que há coisas (símbolos, técnicas, valores, memórias, fatos...) que podem ser aprendidas e
que merecem sê-lo, que nós, homens, podemos melhorar uns aos outros por meio do
conhecimento”175. Este conhecimento, construído e transformado na escola, deve ser
garantido para todas as crianças, de forma completa. Por isso a exigência é simples e objetiva:
para se avançar, é preciso aprender. Nada de utilizar outros recursos, a não ser a observação
da capacidade do aluno.
2. Da formação dos novos professores
La Salle também faz indicações a respeito dos professores novos e de como se deve
ajudá-los no exercício de sua profissão. Trata-se de um verdadeiro manual de orientações
sobre a formação inicial e continuada desses novos professores. Mas La Salle não se
preocupou somente com este caráter profissional, pois “não basta cuidar da formação de
professores, no sentido de melhor prepará-los para exercerem a sua função de agentes
transmissores de cultura; é preciso repensar o seu papel e a sua responsabilidade social frente
a inúmeras demandas que a sociedade faz à escola...”
176
Na sua realidade, em um contexto
cheio de contradições, a necessidade das pessoas mais pobres, por uma escola adequada à sua
situação, exigia certas posturas.
A formação de educadores para esta realidade, portanto, com certa consistência, talvez
tenha sido a principal contribuição de La Salle ao mundo da educação. Mais que compreender
a tarefa do professor como emprego, La Salle conferiu-lhe o nível de vocação e de missão. Se
esta terminologia nos remete a uma consideração religiosa do tema, também é verdadeiro
175
176
Fernando Savater. O valor de educar. Trad. bras. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2005, p. 22.
Alexandre Thomaz Vieira (org.). Gestão Educacional e Tecnologia. São Paulo: Avercamp, 2003, p. 12.
131
dizer que existe, do ponto de vista da humanidade, ainda que não queiramos dar este recorte
religioso, uma missão no ato de educar.
Parte desta questão, ainda que com outro enfoque, também é apresentada por Morin,
com um aspecto mais abrangente, mas com igual significado; o professor tem uma missão:
É nesse sentido que podemos responder à questão colocada por Karl Marx, em uma
de suas teses sobre Feuerbach: ‘Quem educará os educadores?’ Será uma minoria
de educadores, animados pela fé na necessidade de reformar o pensamento e de
regenerar o ensino. São os educadores que já têm, no íntimo, o sentido de sua
missão. (...) O caráter funcional do ensino leva a reduzir o professor ao funcionário.
O caráter profissional do ensino leva a reduzir o professor ao especialista. O ensino
deve voltar a ser não apenas uma função, uma especialização, uma profissão, mas
também uma tarefa de saúde pública: uma missão. 177
Estas considerações acerca da missão dos professores também são sustentadas por
outros estudiosos do tema, que reforçam que, no ato educativo, desenvolvido nas salas de
aula, o trabalho exercido pelo professor se reveste de um caráter extremamente importante.
Não se trata apenas de uma profissão – embora deva ser, em todo o sentido do termo e com
todas as condições para tal –, mas de um trabalho que pode garantir o pleno e sadio
desenvolvimento dos alunos. Por isso, às vezes professores e educadores são diferenciados. É
Rubem Alves que afirma e questiona: “Educadores, onde estarão? Em que covas terão se
escondido? Professores há aos milhares. Mas o professor é profissão, não é algo que se define
por dentro, por amor. Educador, ao contrário, não é profissão; é vocação. E toda vocação
nasce de um grande amor, de uma grande esperança” 178.
E é exatamente a constatação desta diferença, de que existem profissionais que vão
além do caráter profissional e mergulham em toda a realidade que um grupo de crianças ou
jovens, numa sala de aula, podem requerer, com seus aspectos positivos e negativos. Esta é
uma postura de quem se sente responsável por uma missão e é assim que, pela obra escrita de
La Salle, se pode constatar a sua consideração pelo magistério.
Paulo Freire também confirma esta idéia:
É digna de nota a capacidade que tem a experiência pedagógica para
despertar, estimular e desenvolver em nós o gosto de querer bem e o
177
Edgar Morin. A cabeça bem-feita. Repensar a reforma. Reformar o pensamento. Trad. bras. 10. ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 101.
178
Rubem Alves. Conversas com quem gosta de ensinar. Campinas: Papirus, 2000, p. 16.
132
gosto da alegria sem a qual a prática educativa perde o sentido. É esta
força misteriosa, às vezes chamada vocação, que explica a quase
devoção com que a grande maioria do magistério nele permanece,
apesar da imoralidade dos salários. E não apenas permanece, mas
cumpre, como pode, seu dever. Amorosamente, acrescento. 179
Assim, movido por essa “força misteriosa”, que La Salle, por causa de sua condição
cultural e religiosa, considerou seus professores. Para eles redigiu uma série de obras,
organizou e sistematizou o trabalho. Mas é no texto do Guia das Escolas que ele apresenta, de
forma eminentemente prática, como deveria ser feita esta preparação.
Com seu estilo pragmático e cartesiano, La Salle apresenta duas coisas que o
responsável pela formação de novos professores deveria buscar: eliminar o que estes
professores têm e não deveriam ter; e procurar que consigam ter o que não têm e que é muito
necessário que tenham.
Se pudéssemos considerar estas limitações nos dias de hoje, muito provavelmente
todas elas seriam indicadas como dificuldades a serem superadas por todos os professores,
sobretudo os mais novos. Nota-se, neste trecho, um profundo conhecimento, não somente de
questões didáticas, mas também de aspectos de psicologia das crianças e de como elas reagem
diante destas posturas. La Salle procurou cuidar “de formar educadores que tenham a vocação
de ensinar com a totalidade da sua personalidade e não somente com sua habilidade
cognitiva”180, orientando a prática educativa, de maneira a abranger o maior número possível
de situações.
Mais que simplesmente dizer que essas limitações podem atrapalhar o andamento das
aulas, La Salle especifica e indica, quase que ao modo de receita, o que deve ser feito para se
eliminar cada um desses itens citados. La Salle busca, com isso, a qualidade do professor. E
“a qualidade do professor é o condicionamento principal da qualidade educativa da escola”181
que ele sempre procurou construir.
Vejamos algumas dessas indicações a seguir, no que diz respeito aos meios para
eliminar as limitações que, segundo La Salle, podem estar presentes na atuação dos novos
professores: o falar demasiadamente; a atividade excessiva; a ligeireza; a precipitação; o
179
Paulo Freire. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática docente. São Paulo: Paz e Terra, 1996,
p. 161.
180
Carlos Amadeu Botelho Byington. Pedagogia Simbólica. A construção amorosa do conhecimento de ser. Rio
de Janeiro: Record, 1996, p. 191.
181
Elisa Pereira Gonçalves et alii. Desafios da qualidade em educação. IN: Interfaces da Gestão Escolar.
Campinas: Alínea Editora, 1999, p. 45.
133
excessivo rigor e a dureza; a impaciência; a acepção de pessoas; a lentidão; a torpeza de
movimentos; a frouxidão; o desalento fácil; as preferências e as amizades particulares; o
espírito de inconstância e improvisação; o exterior dissipado, vago e parado182. Para cada uma
dessas situações, La Salle orienta como o Inspetor das Escolas deve agir, de maneira a ajudar
o professor novo a superar suas dificuldades.
a) Primeiramente La Salle aponta os meios para eliminar o falar demasiado do
professor, por acreditar que esta característica dificulta o trabalho nas escolas. Sendo assim,
como um dos possíveis exercícios práticos, o Guia indica que o Inspetor deve solicitar ao
novo professor que não fale absolutamente nada durante algum tempo, por nenhuma razão.
Em princípio, sugere que se mantenha silêncio durante um quarto de hora, depois durante
meia hora, uma hora ou mais, segundo se julgue oportuno para acostumá-lo assim, pouco a
pouco, a guardar o silêncio. Quando perceber que fala inutilmente, deve fazer-lhe notar de
imediato, ou ao final da aula, a inutilidade de suas palavras, e ao mesmo tempo dizer-lhe o
que deveria ter feito, ao invés de falar. No começo, esta dificuldade deve ser trabalhada aos
poucos, para não incomodar demasiadamente o novo professor.
b) Em seguida, há as indicações do que o professor deve fazer para eliminar a
excessiva atividade e a precipitação, pois ainda que não seja conveniente estar sempre na
classe como uma estátua, sem ação nem movimento, também não é conveniente ser
demasiado ativo ou inquieto. É preciso evitar ambos os extremos. O professor deve procurar
manter-se tranqüilo. Quanto aos movimentos, orienta-se para que não se mova com excessiva
facilidade, e que não mude continuamente de posição, de postura ou de lugar.
c) Há situações em que o novo professor é agitado, gesticula muito, é impaciente. Para
isso La Salle recomenda assumir as seguintes posturas: deve-se procurar observar o silêncio
com muita exatidão, procurando falar apenas o essencial. É preciso que perceba e se exercite
em compreender quando é necessário que fale e quando não é necessário. O Inspetor deve
vigiar muito sobre ele para não lhe consentir que faça nunca nada em classe que transpareça
agitação ou impaciência. É preciso cuidar para que não faça nada que resulte inconveniente e
ridículo, por pouco que seja, e fazer-lhe algum sinal, de maneira que possa perceber quando
comete algum deslize neste aspecto.
d) Também La Salle está preocupado com os professores que têm tendência a serem
muito exigentes, duros, impacientes e rigorosos, o que dificultaria o bom relacionamento
deles com os alunos. Recomenda que não apliquem os castigos freqüentemente. Para isso, é
182
Cf. Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las
Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 167-173.
134
preciso persuadi-los de que a dureza e o rigor não são o que produzem a boa ordem na classe,
mas a vigilância contínua, unida à circunspecção e à mansidão. Velar sobre todos os castigos
que venham a aplicar, observar suas deficiências e fazê-los perceber isso. Acostumá-los a
manter sempre aspecto tranqüilo, rosto sereno, e um exterior que indique um modo de ser
firme e, ao mesmo tempo, cheio de bondade. Indicar-lhes, na medida do possível, as ocasiões
em que devem castigar, e ensinar-lhes com freqüência o modo de fazê-lo com moderação.
Não lhes permitir que golpeiem com excessiva dureza com a palmatória, e jamais permitir que
ultrapassem o número de golpes previstos. Não consentir jamais que toquem os alunos com a
mão ou que os empurre; ou que facilmente castiguem com a vara ou com o açoite e,
sobretudo, que sempre o façam na presença do Inspetor. Também não devem atirar objetos
aos alunos. Exigir que nunca imponham nenhum castigo, a não ser depois de algum momento
de reflexão pessoal. Mandar que reavaliem todos os castigos que tenham empregado com os
alunos, os motivos pelos quais os aplicaram e o modo como procederam. Exigir que observem
profundo silêncio e suma moderação quando se sentem movidos pela impaciência; e que
permaneçam muito tranqüilos durante todo o tempo em que sintam que seu ânimo está
agitado.
e) Os professores também deveriam trabalhar, em sua personalidade, se tivessem
repugnância por algum tipo de aluno. Para isso, a todos os professores novos é preciso
solicitar que trabalhem a caridade desinteressada, em relação ao próximo, seja ele quem for.
Sugerir-lhes que manifestem mais amizade e afeto para com os mais pobres, do que para com
os mais ricos. É preciso que compreendam a importância da obrigação que têm de amar a
todos com igual caridade, quando percebem que estão evitando determinado aluno; neste
caso, solicitar que mostrem mais cordialidade e maior afeto a este aluno, que aos demais. Que
somente lhes falem com afabilidade e doçura. Que lhes dêem algum dos prêmios previstos,
inclusive se ainda não o tivessem merecido totalmente.
f) La Salle sentiu a necessidade de traçar algumas indicações para ajudar os
professores novos a superar a tendência ou a predisposição ao desalento que alguns
manifestam. Para isso, orienta que eles não se fixem em vários defeitos ou dificuldades que
encontrem no exercício de sua profissão; é preciso que se concentrem em alguma dessas
dificuldades, facilitando-lhes os meios para superá-la. O Inspetor também deve animar e
incentivar os professores novos continuamente. Com este tipo de temperamentos há que se
tomar certas precauções, procurando sempre tratá-los com suavidade e condescendência, de
modo que não desanimem facilmente.
135
g) Para eliminar a familiaridade ou a intimidade com os alunos, os professores novos
devem evitar falar demasiadamente com alguns alunos em especial. Algumas posturas devem
ser estritamente observadas: não falar aos alunos sem verdadeira necessidade; não falar com
eles nem permitir que falem consigo levantando a voz, ou com falta de respeito; não se
envolver em gracejos, brincadeiras ou situações de intimidade; não assumir uma postura
demasiado tolerante, em relação às faltas cometidas; que, em qualquer circunstância, não
converse com os alunos como se fosse seu companheiro. La Salle adverte que a familiaridade
ou a intimidade levam ao menosprezo e quando um professor é menosprezado por seus
alunos, já não garantem o respeito necessário para as aulas, os seus ensinamentos carecem de
autoridade e os alunos se tornam insolentes. Apesar destas severas indicações, La Salle não
quer eliminar esta proximidade: recomenda que se pode manter com os alunos um
relacionamento familiar, mais próximo, sem cair na familiaridade desrespeitosa.
h) Para eliminar a lentidão e a preguiça, é preciso velar sobre os professores que
tenham esta limitação, de maneira a exigir deles que cumpram integralmente todos os seus
deveres e todas as suas tarefas previstas. Eles devem proceder nas aulas conforme as
indicações do Guia, procurando garantir que os alunos aprendam aquilo que se está
trabalhando, fazendo todas as atividades e exercícios previstos. Também devem ter cuidado
de que trabalhem todas as lições dentro do tempo, e que lhes sobre tempo, em vez de faltarlhes. Que nunca estejam na classe sem fazer nada, mas que trabalhem conforme as exigências
do Guia.
i) Para eliminar as preferências e as amizades particulares, que podem surgir, é preciso
trabalhar com os professores novos para que, antes de assumir uma turma, compreendam bem
que devem ter uma caridade geral e igual para com todos os alunos. Evidentemente deve
haver uma dedicação maior do professor para com os alunos com maior dificuldade, mas isto
não deve transformar-se em preferência pessoal. Da mesma forma, seria natural querer bem
aos alunos que manifestam mais bondade, fidelidade, docilidade, assiduidade às aulas,
empenho e demais qualidades. O importante é que, diante da turma, o professor deve ser
orientado a não expressar essas suas preferências, mas procurar tratar a todos com a mesma
benevolência e amizade. Da mesma forma, o professor novo deve evitar as amizades
particulares com os alunos, que podem vir a causar problemas para si mesmo e para a escola.
j) Uma outra dificuldade ou limitação a ser superada é quando o professor tende a ter
um exterior dissipado ou o olhar vago, desinteressado, fixo em algum ponto. Neste aspecto,
La Salle é extremamente incisivo em exigir que, na escola, os olhos do professor devem olhar
continuamente os alunos. O Inspetor deverá cuidar para que nenhum dos professores caia no
136
extremo da superficialidade nem no extremo do recolhimento. Os olhos servem para olhar; o
professor deve manter contato visual com os alunos.
Depois de listar aquilo que os professores novos devem evitar, La Salle também
apresenta aquilo que os professores devem procurar adquirir. Para ele, essas posturas seriam:
decisão, autoridade, firmeza, circunspecção, exterior grave, digno e modesto, vigilância;
atenção sobre si; compostura; prudência; ar simpático e atraente; zelo; facilidade para falar e
expressar-se com claridade e ordem, e ao alcance dos meninos.
Para que eles adquiram estas características, La Salle orienta para que haja um
treinamento, uma espécie de estágio junto aos outros membros da Sociedade: “Há que
exercitá-los muito, durante o noviciado, em dar aulas; ensinar-lhes o modo de conduzir uma
aula em tudo; depois que tenham uma boa idéia da aula antes de mandar-lhes que entrem
numa classe para dirigi-la.” 183
Depois disso, o novo professor poderá começar a exercer sua função, dando aula nas
classes indicadas pelo Diretor. Mas para isso, o novo professor deve seguir estritamente
algumas orientações: entrar na sala com ar decidido e grave, com a cabeça levantada e
olhando a todos os alunos com autoridade, como se tivesse trinta anos de prática; realizar
exatamente tudo o que está programado para a aula, sem manifestar nenhum temor, de
maneira decidida e ágil; dar a devida atenção e cuidado com tudo o que ocorre durante a aula;
evitar a aplicação dos castigos previstos nos primeiros dias de atividade; não permitir, de
forma alguma, que nenhum aluno lhe falte com o devido respeito; não transparecer excessiva
bondade e ternura; falar pouco e com muita mesura, de forma pausada e resolvida, sem
precipitações; não se movimentar em excesso, sugerindo indecisão ou receio; mandar fazer o
que deseja de forma imediata e objetiva.
O Guia também apresenta outras orientações de como deve portar-se o novo professor,
frente à sua tarefa educativa. Para isso, o Diretor da escola deve deixar que este professor vá
assumindo, aos poucos, toda sua autoridade no que é seu dever. Na medida do possível, um
professor novo será colocado para dar as aulas perto de outro, mais experiente, que
desempenha bem o seu dever. Além disso, o Guia sugere o acompanhamento permanente da
formação, talvez por intuir que a “prática pedagógica constitui-se em algo complexo e
singular que exige do docente a necessidade de uma formação contínua, não só para estar
183
Cf. Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las
Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 174.
137
atualizado em relação aos progressos de sua área de conhecimento e atuação, mas
especialmente para poder constituir no dia-a-dia, conhecimentos a partir de suas ações.” 184
Novamente, o Guia insiste na postura do professor diante do temperamento de alguns
alunos. Neste caso, as indicações185 são as seguintes:
a) É preciso procurar que os meninos saiam sempre contentes da escola, de modo que
não possam contar a seus pais nada que pudesse desgostá-los. Há, portanto, uma preocupação
com o cuidado dispensado pelo professor à satisfação de seus alunos e de seus pais.
b) Quando em uma classe não há ordem, é preciso que o professor seja muito firme ao
princípio, e que corrija os alunos mais e com maior rigor; mas também é necessário
recompensá-los quando agem bem. Em momento algum, La Salle perde de vista esta questão
do equilíbrio entre firmeza e ternura, repetindo-a várias vezes, ao longo do texto.
c) Quanto aos castigos, o professor deveria levar em consideração que não se deve
atuar contra aqueles alunos que são tímidos de caráter e que só incorrem na falta raramente, e
não o fazem por malícia. Além de todas as regulamentações para aplicação dos castigos,
vistas no capítulo anterior, La Salle, aqui, mais uma vez reforça seu uso moderado. O aluno
deve ser mais importante que o castigo.
d) É necessário conhecer muito bem o temperamento, os hábitos e as inclinações dos
meninos, para poder proceder com eles do modo que seja mais conveniente, procurando
adverti-los e orientá-los, antes de aplicar um castigo. Conhecer o aluno, portanto, é a postura
primeira. É a partir deste conhecimento que o professor deve procurar agir.
Estas quatro breves indicações e as feitas anteriormente nos permitem considerar um
aspecto importante da formação requerida por La Salle:
O que importa, na formação docente, não é a repetição mecânica do
gesto, este ou aquele, mas a compreensão do valor dos sentimentos,
das emoções, do desejo, da insegurança a ser superada pela segurança,
do medo que, ao ser educado, vai gerando a coragem. Nenhuma
formação docente verdadeira pode fazer-se alheada, de um lado, do
exercício da criticidade que implica a promoção da curiosidade
ingênua á curiosidade epistemológica, e do outro, sem o
184
Anterita Cristina de Sousa Godoy. Gestão Escolar e prática reflexiva. IN: Interfaces da Gestão Escolar.
Campinas: Alínea Editora, 1999, p. 80.
185
Cf. Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las
Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 175-176.
138
reconhecimento do valor das emoções, da sensibilidade, da
afetividade, da intuição ou adivinhação. 186
La Salle reconhece que os professores novos possuem sentimentos que, ao serem
vivenciados, têm implicação nas atividades desenvolvidas na sala de aula. Por isso pede
atenção, seja dos próprios professores ou de seu Diretor, no sentido de que reconheçam esses
sentimentos e trabalhem com eles: medo, insegurança, agitação, impaciência, desânimo etc.
Trata-se, portanto, da formação do professor não somente enquanto profissional, mas,
sobretudo enquanto pessoa. A análise atenta destas observações feitas por La Salle leva-nos a
concluir que há muito pouco de indicação didática e muito de indicação psicológica. É muito
mais uma preocupação com a personalidade do professor, que leva a uma postura pedagógica,
do que o contrário. Neste caso, é Jung quem severamente orienta e, de certa forma, respalda a
postura de La Salle, no sentido de se preocupar com a educação do professor:
Fala-se continuamente que a criança deve ser educada para adquirir
uma personalidade Admiro naturalmente esse levado ideal de
educação. Mas quem educa para a formação da personalidade? (...)
Por isso, naturalmente, se espera mais do pedagogo, que é especialista
formado e a quem se ensinou, bem ou mal, a psicologia. Mas esta
psicologia conta de pontos de vista desta ou daquela orientação – em
geral completamente opostos – a respeito de como se supõe que a
criança seja dotada e de como deva ser tratada. (...) Todo o nosso
problema educacional tem orientação falha: vê apenas a criança que
deve ser educada, e deixa de considerar a carência de educação do
educador adulto. 187
É exatamente esta carência de educação do educador adulto que parece fazer com que
La Salle tenha traçado as indicações propostas neste capítulo do seu Guia das Escolas.
3. Das casas mantidas pela Sociedade
Nesta parte final do Guia, há dois breves capítulos, que descrevem quais os tipos de
casas deveriam ser mantidos pela Sociedade dos Irmãos das Escolas Cristãs e, em especial,
186
Paulo Freire. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996,
p. 50-51.
187
Carl Gustav Jung. O desenvolvimento da personalidade. Trad. bras. 7. ed. Petrópolis, Vozes, 1986, p. 174175.
139
descreve e orienta como o Diretor de uma casa de preparação de professores deveria ser
organizada. Esta casa equivaleria ao seminário de formação de sacerdotes, onde os futuros
professores das escolas receberiam a formação exigida por La Salle. Poderia ser entendida,
esta casa, como uma espécie de Escola Normal, de formação de professores para a atuação
nas Escolas Cristãs.
Ainda na linha de pensamento de Jung, podemos questionar:
É, pois, absolutamente necessário que se empreguem métodos
pedagógicos
mais
razoáveis.
Se
é
para
atacar
o
mal
verdadeiramente pela raiz, então será preciso perguntar com toda a
seriedade: como aconteceu e como acontece ainda que se
empreguem na educação métodos tolos e estultos? Com certeza,
pela razão única e exclusiva de existirem educadores tolos, que não
são seres humanos, mas autômatos de métodos sob a forma de
gente. Se alguém quer educar, que primeiro seja educado. 188
Com esta perspectiva, de se trabalhar a própria educação e a própria humanidade do
professor, La Salle faz algumas interessantes indicações e prescrições de como se deve
proceder nestas casas de formação de internos, os futuros Irmãos e professores das Escolas
Cristãs. Apresentamos, de forma esquemática, quais as indicações189 a esse respeito, no
tocante à organização destas casas e das responsabilidades do Diretor:
a) Ao receber um novo interno, o Diretor desta casa fará uma lista, semelhante a um
inventário, sobre tudo o que o novo candidato terá para seu uso, ou seja, roupa, utensílios e
objetos pessoais. Este inventário será registrado num livro especialmente destinado para este
fim.
b) O Diretor orientará os internos para que cuidem que todas as suas roupas e seu
dormitório estejam permanentemente limpos; deverá tomar cuidado para que não falte nada
aos internos, cuidando da alimentação e da saúde de todos eles; e velará que não tenham
parasitas nem na cabeça nem no corpo, revistando a cabeça de todos uma vez por semana.
Estas orientações bem precisas e pontuais configuram uma preocupação com a limpeza e a
higiene, e aparecem várias vezes no texto do Guia, evidenciando a atenção dada à formação
integral, seja dos alunos ou dos novos professores.
188
Carl Gustav Jung. O desenvolvimento da personalidade. Trad. bras. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 174-175.
Cf. Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las
Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 177-179.
189
140
c) A cada semana, dará conta à Sociedade do comportamento dos internos. Isto
demonstra o espírito de conjunto, de grupo, de sentido associativo e de co-responsabilidade
que La Salle procurou imprimir na Sociedade.
d) Orientará para que vivam a sua religiosidade e garantirá a realização das orações e
demais atividades religiosas previstas. Trata-se, aqui, portanto, da manutenção dos costumes e
tradições da vida religiosa católica da época.
e) Velará particularmente sobre seus costumes, tratando de inspirar-lhes amor à
virtude e à prática do bem, não consentindo a gula, as brigas, as rivalidades, os menosprezos,
a maledicência, a mentira, e outros vícios que possam conduzir à impureza. A formação, mais
uma vez evidenciada, visava não somente trabalhar o caráter profissional, mas também os
aspectos da moral e da personalidade de cada um.
f) Corrigirá suas faltas, por meio de comparações adequadas à sua inteligência; e o
fará com tanta doçura e caridade, que se sintam mais afetados pelas faltas cometidas do que
pela correção; caso necessário, evitará corrigi-los com veemência, mas, se necessário, é
preciso que compreendam que o faz com razão e caridade. Novamente se orienta ao equilíbrio
da firmeza e da ternura, sem evidenciar nem excluir um ou outro.
g) Tratará de fazer-se querido mais que temido. Contudo, nunca deixará de repreendêlos, quando necessário. Esta é uma postura educativa fundamental para que a relação entre o
Diretor e os internos possa ser positiva: ser querido é mais importante que ser temido.
h) Nunca manifestará mais amizade a uns que a outros. O bom relacionamento
esperado não poderia ser excludente nem exclusivista.
i) Nunca deixará a alguns sozinhos e separados dos demais, durante os recreios. Volta
a preocupação com o grupo, com o bom relacionamento, com o bom entrosamento entre
todos, evitando-se a segregação de alguns, por qualquer motivo.
j) Ensinará os internos a ler, a escrever, a aritmética e a regras de urbanidade. Somente
na última indicação aparece a formação pedagógica, propriamente dita.
La Salle termina o Guia das Escolas, apresentando e regulamentando os três tipos de
casas que deveriam ser mantidas pela Sociedade. O primeiro tipo de casa é aquela na qual
moravam e estudavam os próprios Irmãos, já devidamente preparados, e os novos internos,
que pretendiam dar aulas nas Escolas Cristãs. Esta casa era a chamada Comunidade dos
Irmãos, na qual conviviam e se preparavam para atuar nas escolas.
O segundo tipo de casa eram as escolas, propriamente ditas, onde aconteciam as aulas.
Os Irmãos não moravam nestes ambientes; somente trabalhavam nelas. Numa mesma cidade,
portanto, poderia haver várias escolas e somente uma casa onde os Irmãos moravam. Esta
141
configuração, característica das ordens religiosas, possibilitou a La Salle e demais professores
atingir um número considerável de alunos.
Um terceiro tipo de casa eram aquelas em que os Irmãos já formados e mais
experientes davam orientações e formação para os que quisessem ser professores em outras
cidades ou na zona rural. Neste caso, esta casa servia como escola de formação para os
professores que não atuariam nas escolas da mesma cidade. Além dos membros da Sociedade,
também se aceitava preparar outras pessoas para o magistério.
Apesar de indicar somente três tipos de casas, há uma observação acerca da
possibilidade de se abrir um quarto tipo, para abrigar os Irmãos já velhos e que necessitavam
de descanso; possivelmente, La Salle se referia aqui aos aposentados e impossibilitados de
continuar a trabalhar nas escolas.
O Guia ainda ressalva que nas casas reservadas para a residência e formação deveria
haver, pelo menos, cinco Irmãos, e não menos que isso, garantindo a formação de uma
pequena comunidade, no sentido de estruturação da vida religiosa.
Com o passar do tempo e a expansão das obras, a sociedade – hoje Instituto dos
Irmãos das Escolas Cristãs – mantém os seguintes tipos de casas190, à semelhança das
indicadas no Guia: as chamadas Casas de Formação, onde os futuros Irmãos residem e são
preparados para a Vida Religiosa; as Comunidades Religiosas, onde residem os Irmãos já
formados e que atuam nas escolas e demais obras educativas; as Escolas ou Obras, nas quais
se dá o trabalho da instituição; e as Casas de Saúde, que abrigam os Irmãos idosos ou em
tratamento de saúde.
190
Roque do Carmo Amorim Neto. Entrevista sobre o Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs. São Paulo, jul.
2006.
142
Capítulo V – O Guia das Escolas Cristãs
A educação é um parto, um autêntico nascimento cheio
de riscos e expectativas. É o progressivo aparecimento
do autêntico Eu, o emergir da consciência pessoal e
crítica. Por isso mesmo, a educação é um mistério,
embora seja também uma ciência com suas leis e seus
princípios. Por isso, no ato educativo sempre haverá um
elemento imponderável, um fator surpresa, vale dizer
explosivo, diante do qual o educador sente e pressente
que está beirando a fronteira do mistério, do
transcendente e absolutamente imprevisível.
Alfredo Morales191
Dado o contexto que La Salle tinha nas mãos, conforme explicitado no Capítulo II, a
elaboração do Guia das Escolas foi fundamental para garantir a realização de seu projeto: a
organização das escolas gratuitas, em seus aspectos físicos, materiais, de conteúdos, de
horários, de procedimentos etc; a formação de professores que pudessem trabalhar nessas
escolas, tendo orientações precisas da maneira como deveriam educar e se portar; a garantia
de que todas as escolas dessa sociedade de professores pudessem ter as mesmas características
e os mesmos procedimentos. Neste capítulo, portanto, queremos evidenciar como se deu a
elaboração desta obra de La Salle.
1. De sua elaboração
Poderíamos dizer que, à luz da pesquisa realizada, historicamente o Guia das Escolas
está entre três grandes obras de natureza e caráter semelhantes: a Didática Magna, de
Comenius e a Ratio Studiorum dos Jesuítas. Com relação a esta última, Hengemülle, em sua
dissertação de mestrado, em que enfoca o que os autores da História da Educação falam sobre
La Salle, cita diversos autores que consideram o Guia das Escolas como a Ratio Studiorum
dos Irmãos Lassalistas.192 É considerável esta influência e inspiração de La Salle, até mesmo
pelo fato de ter estudado em instituições mantidas pelos Jesuítas, em pleno vigor da Ratio. A
característica principal do Guia, no entanto, que o distingue das outras duas obras citadas, é
mais o seu caráter pragmático, com forte acento na organização escolar, muito mais que no
conteúdo em si do processo educativo.
191
Alfredo Morales. O desafio de ser educador. Trad. bras. Canoas: La Salle, 1998, p. 18-19.
Edgard Hengemülle. La Salle: uma leitura de leituras. O Padroeiro dos professores na História da Educação.
Canoas: Editora La Salle, 2000, p. 130.
192
143
No dizer de Manacorda, em sua História da Educação, o Guia é um documento
onde o velho e o novo se misturam de maneira singular. Poderíamos ter citado
tantos outros estatutos de escolas e de colégios, especialmente do século XVI, e
tantos projetos, embora parcialmente realizados, como as Leges Scholae Bene
Ordinatae de Comenius. Mas este é, talvez, o mais pormenorizado. Se quisermos
ler algum documento análogo onde apareça com maior evidência (embora com as
suas contradições) a procura do novo, é preciso esperar o fim do século...193
Cabe aqui evidenciar que La Salle “dedica-se a uma formação integral do homem,
através da união entre instrução e educação religiosa”, tendo no Guia das Escolas o seu “credo
pedagógico, uma minuciosa organização das escolas e o programa didático, que prevê a
leitura e escrita da língua materna, as quatro operações e o catecismo, acompanhando uma
formação técnico-científica de caráter profissional. Sempre na direção do crescimento cultural
do povo, La Salle promove a fundação de escolas dominicais e de um instituto para menores
infratores.” 194
Escrito há mais de trezentos anos, com a óbvia influência do seu contexto, como
vimos, La Salle elenca, de forma excessivamente precisa e minuciosa, como suas escolas
deveriam funcionar. Para um grupo de professores, como os que La Salle reuniu,
provenientes, em sua maioria, da classe pobre, alguém interessado prepará-los de forma
adequada para trabalharem de maneira decente numa escola, parece não haver outro jeito,
senão entrar em extremos detalhes, como os do texto do Guia, que veremos a seguir.
Leon Laurarie faz uma apresentação importante do Guia, num estudo sobre seu
conteúdo e sobre o projeto de La Salle; assim se expressa, dizendo que o Guia tem um caráter
de regulamentação prática e
não é um tratado geral sobre o professor, o aluno, a pedagogia, mas uma ação
pensada, que deliberadamente opta por suas situações de intervenção, e orienta suas
estratégias para um objetivo claro. Esta característica, com freqüência, tem
intrigado os teóricos da educação, que perceberam como um pouco insuportável
essa conformação rigorosa a detalhes. Mas, como proceder diferentemente,
colocado todos os dias, diante de 60 ou 70 crianças fervilhando de energia?! Por
fim, esse texto desabrochou no Instituto uma atitude dialética nunca desmentida
nem abandonada desde as origens: ter uma visão clara, exata, argumentada, do
193
Mario Alighiero Manacorda. História da Educação da Antigüidade aos nossos dias. Trad. bras. São Paulo:
Cortez, 1989, p. 235.
194
Franco Cambi. História da Pedagogia. Trad. bras. São Paulo: UNESP, 1999, p. 299.
144
projeto de educação humana e cristã e, ao mesmo tempo, a permanente interrogação
sobre as condições reais, práticas, adaptadas ao seu progressivo desenvolvimento. É
nisto que reside a perenidade de uma tradição educativa. Esse texto é, pois, um dos
grandes mananciais do Projeto Lassalista. 195
Nesses três séculos que nos separam do texto original do Guia, muitas coisas
aconteceram e a humanidade pôde desenvolver-se muito, no que diz respeito à educação. Não
podemos comparar a proposta educacional e de gestão da escola do Guia com a realidade
atual, mas verificar que princípios nortearam sua escrita e a práxis de La Salle. Neste sentido,
Saturnino Gallego afirma que o Guia é o “melhor do século XVII, sem dúvida. No século
XVIII francês se fez dominante a sua metodologia – e também sua filosofia – ao menos nas
escolas para meninos. Há três séculos de distância se aprecia com facilidade o envelhecimento
de muitas de suas páginas, mas também a nobreza venerável de outras”. 196
Como o foco de nossa pesquisa se concentrou nos princípios educacionais e
administrativos das Escolas Cristãs de La Salle, fizemos observações acerca de trechos do
Guia das Escolas somente no que diz respeito a esses aspectos. Toda a questão que envolve a
religiosidade e o caráter catequético, presentes no texto, não foram analisados aqui, em
profundidade, conforme já salientamos.
Tudo indica que este guia, da maneira como foi escrito, tinha a exata intenção de
orientar o trabalho prático dos professores que, em geral, não tinham boa formação para dar as
aulas. Ao redigir o Guia, La Salle e os primeiros professores – os Irmãos das Escolas Cristãs –
tiveram o cuidado de especificar, minuciosamente, todos os procedimentos esperados.
Muitas das indicações deste texto lassaliano não se aplicam à nossa realidade,
sobretudo pelo avanço que tivemos em relação às ciências que sustentam ou apóiam a
Pedagogia. É evidente que esta obra deve ser lida a partir de seu contexto e, somente a partir
dele, é possível captar a riqueza de suas indicações.
Levando-se em conta que se trata da organização de uma rede de escolas que
começava a crescer, evidente que era necessário fazer um mínimo de organização para que ela
pudesse ser concretizada. La Salle e os primeiros professores passaram, então, a organizar as
escolas da mesma forma e com as mesmas atividades.
195
Leon Laurarie. La Guía de las Escuelas Cristianas. Proyecto de educación humana y cristiana. Cuadernos
MEL 12. Roma: Hermanos de las Escuelas Cristianas, 2004, p. 5-6.
196
Saturnino Gallego. Vida y pensamiento de San Juan Bautista de La Salle. Madrid: Editorial Catolica, 1986, p.
737.
145
Ainda que outras instituições religiosas da Igreja Católica também se preocupassem
com a educação, a Sociedade dos Irmãos das Escolas Cristãs, liderada por La Salle, foi o
primeiro grupo, dentro dos muros eclesiais, a ser criado com a estrita preocupação de abrir e
trabalhar com escolas, fato evidenciado na constituição desta sociedade: à exceção de La
Salle, todos foram (e ainda são) leigos, não sacerdotes.
Decorrente deste dado, é importante que a leitura do texto do Guia seja feita levandose em conta alguns aspectos significativos, além da questão de contexto histórico: La Salle era
sacerdote católico, mas os primeiros professores não pertenciam ao clero; os primeiros
professores eram pessoas do povo, muitos deles pobres; estes professores precisavam ser
formados professores, pois não o eram, de fato; La Salle era extremamente meticuloso,
metódico e sistemático; exigia que suas escolas fossem muito bem organizadas; a intenção das
Escolas Cristãs era proporcionar educação gratuita; a postura de gratuidade visava aos pobres,
mas era aberta a todas as classes; todo o processo esteve marcado pela visão católica francesa
dos séculos XVII e XVIII.
Também consideramos importante salientar que o Guia das Escolas pode ser lido sob
vários enfoques. Por isso, neste estudo, privilegiamos três enfoques, a título de investigação e
de análise crítica. O primeiro enfoque foi de caráter interdisciplinar, ou seja, procuramos fazer
a leitura crítica do texto do Guia não com base numa única visão de seu conteúdo. Embora
seja uma obra voltada para os professores das Escolas Cristãs de La Salle, na França dos
séculos XVII e XVIII, observamos seu caráter de administração escolar, organização
pedagógica, formação profissional, didática, psicologia das crianças e adolescentes, postura
de universalização do acesso à educação pelos mais pobres.
O segundo enfoque foi de caráter textual, no sentido de perceber as posturas,
princípios e dimensões da educação promovida por La Salle diretamente pelo que diz o texto,
mas também pelo que está nas entrelinhas. Neste sentido, privilegiamos o Guia como
principal documento e foco de nossa investigação, e não a obra de La Salle como tal.
O terceiro enfoque foi o de procurar relacionar, na medida do possível, esses
princípios verificados no texto com outros textos e contextos, sobretudo da nossa realidade,
que procuram enfocar idéias, realidades ou problemática semelhantes.
Para a realização desta pesquisa acerca do texto do Guia, optamos por seguir a ordem
do texto original, reproduzindo todas as partes consideradas relevantes. Sendo assim, o texto
de nosso trabalho foi revestido, continuamente, com citações do Guia, de maneira a apresentar
literalmente o texto e, a partir dele, fazermos nossa investigação crítica e aproximação com a
realidade educativa atual.
146
A primeira impressão do Guia das Escolas, entretanto, conforme se observa na
introdução das obras completas de La Salle em espanhol, é de 1720, mas o livro foi composto
antes:
A primeira edição impressa é de 1720, quer dizer, no ano seguinte da morte de São
João Batista de La Salle. Mas no preâmbulo se adverte que a existência do livro
vem de tempos atrás, e que para se chegar ao texto que se oferece, foi corrigido
duas vezes. O manuscrito que se conserva em Paris não se pode datar com total
exatidão, mas há indícios que induzem datá-lo entre 1704 e 1706. Em várias
ocasiões, nos modelos de registro que se oferecem, se dá a data de 1706. Alguns
indícios nos permitem atestar a origem desta obra. Uma delas é a aprovação que se
incluiu ao final da edição de 1720. Vai assinada pelo inquisidor Petrus La Crampe,
que somente podia dá-la no tempo em que ocupou tal cargo, ou seja, entre 1704 e
1706. 197
Também é relevante a informação de que esta obra, ainda que produzida inicialmente
por La Salle, sofreu uma série de alterações, em função de estar submetida à apreciação dos
demais professores da Sociedade das Escolas Cristãs, sobretudo dos que já haviam estado na
sala de aula, experimentando realizar o que o texto propunha. Trata-se, portanto, da obra de
um autor, a partir da qual um grupo pôde experienciar, comentar, criticar, sugerir, alterar,
acrescentar.
A imagem a seguir é a reprodução da página de rosto da primeira edição impressa,
datada de 1720:
Figura 3 – Página de rosto da primeira edição impressa do Guia das Escolas198
197
José Maria Valladolid. Presentación de la obra. In: Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y
escolares. Guía de las Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San
Pio X, 2005, p. 1.
198
Juan Bautista de La Salle. Guía de las Escuelas Cristianas. Lima, Perú: Editorial Stella, 1997, p. 14.
147
Dados históricos, propostos na cronologia oficial de La Salle, apontam que, em 1694,
já havia um esboço do Guia; em 1703 ele já era aplicado nas escolas, em caráter experimental;
em 1717, no dia 19 de maio, numa reunião com os professores da Sociedade, ele foi revisto e,
posteriormente, reescrito. Isto se pode atestar verificando a introdução ao livro, como
transcreveremos adiante.
Sobre isso, a apresentação da tradução espanhola faz a seguinte indicação:
É o livro que recolhe tudo o que os Irmãos das Escolas Cristãs haviam de ter em
conta na maneira de dar aula e manter as escolas do Instituto. O conteúdo do livro
foi elaborado depois de se discutirem todos os temas, em numerosas ocasiões, entre
os Irmãos mais capacitados do Instituto, e depois de uma experiência de vários
anos, praticando-o nas escolas. Tudo isto significa que é uma obra que foi tomando
corpo pouco a pouco, desde que o Fundador e os Irmãos se deram conta de que era
necessário adotar uma série de normas para ensinar, e conseguir que em todas as
escolas se observassem por igual as mesmas práticas. 199
Faz-se necessário observar que, tanto para os Irmãos como para a História da
Educação, o Guia das Escolas tem um valor pedagógico de primeira ordem, pois apresentou
um estilo próprio de ensinar e de educar, que caracterizou as Escolas Cristãs, e do qual muitos
outros pedagogos, alguns deles fundadores de institutos docentes, utilizaram-se de suas idéias
educativas.
Ainda que inscrito numa realidade educativa particular, este estilo criado por La Salle
foi responsável por proporcionar uma educação com qualidade aos mais pobres de sua época,
bem como de possibilitar aos professores um preparo mais adequado ao exercício de sua
função. Mais que isso, na linguagem religiosa em que vivia La Salle, ele considerava a escola
como um dos meios de salvação das crianças e o professor como uma vocação especial junto
a essas crianças. O Guia nos apresenta outros aspectos deste estilo educativo,
que se baseia na pessoa e nos valores do educador, em suas relações com a criança,
na maneira de ensinar e de educar, no funcionamento e organização geral da escola,
no modo de viver o sentido religioso, etc. Diríamos que há algo essencial, que
permanece através do tempo; e algo, também, que muda, como fruto da experiência
diária, e às vezes são assuntos de grande importância e com enfoques muito
profundos. Toda esta evolução ajuda a medir o imenso valor do Guia das Escolas
199
José Maria Valladolid. Presentación de la obra. In: Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y
escolares. Guía de las Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San
Pio X, 2005, p. 2.
148
na História da Pedagogia. Ainda que muitos teóricos da Pedagogia o desconheçam,
foi uma obra que marcou profundamente a evolução da escola e das idéias
pedagógicas. 200
O texto do Guia das Escolas, que utilizamos como fonte primária em nossa
investigação, é a tradução oficial do Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs, em sua versão
espanhola. A título de esclarecimento, é importante salientar que as traduções oficiais da
referida obra encontram-se nas três línguas oficiais daquele instituto: francês, espanhol e
inglês.
Sobre a tradução espanhola, cabe esclarecer que ela foi feita a partir do manuscrito de
1706. Os tradutores ressalvam que se procurou manter, antes de tudo, extrema fidelidade ao
texto original francês. Deste texto, poderemos perceber a forte influência de Descartes no
pensamento e no estilo redacional que La Salle utilizou nesta obra, e também nas outras que
escreveu. Verificaremos o sentido lógico e minucioso do conteúdo do Guia, em que La Salle
parece seguir à risca a indicação cartesiana de “conduzir por ordem meus pensamentos,
começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir aos poucos,
como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem
entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros.” 201
Tendo esta visão geral do contexto do Guia, iniciemos com o seu prefácio, no qual La
Salle indica que “foi necessário elaborar este Guia das Escolas Cristãs para que tudo fosse
uniforme em todas as escolas, em todos os lugares onde haja Irmãos deste Instituto e os usos
fossem, nelas, sempre os mesmos.”
202
Com esta indicação, na abertura do livro, fica clara a
intenção e o objetivo da obra: a uniformidade das escolas, de maneira que, independente da
cidade ou bairro onde se encontrasse uma Escola Cristã, ela teria as mesmas normas e
procedimentos.
No mesmo prefácio, La Salle justifica o motivo dessa uniformidade: “Está o homem
tão sujeito ao relaxo e também à mudança que necessita de normas escritas que o mantenham
em seu dever e que lhe impeçam de introduzir alguma novidade ou eliminar o que
prudentemente foi estabelecido”. Trata-se, portanto, de garantir que, dentro da uniformidade,
nenhum dos professores, por impulso ou vontade pessoal, introduza alguma novidade que não
200
José Maria Valladolid. Presentación de la obra. In: Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y
escolares. Guía de las Escuelas. Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San
Pio X, 2005, p. 3.
201
René Descartes. Discurso do método. Trad. bras. Porto Alegre: L&PM, 2005, p. 55.
202
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 9.
149
tenha sido testada ou realizada de forma positiva, com toda a prudência requerida por La
Salle.
Se esta afirmação, por um lado, parece indicar a limitação da atuação do professor,
podando sua criatividade e sua ação, também garante a construção coletiva de uma proposta
pedagógica. Não se trata, aqui, ao que parece, de uma limitação à personalidade do professor,
mas à atuação didática propriamente dita.
Mais à frente, ainda no prefácio, La Salle informa a todos os professores das Escolas
Cristãs que o texto escrito por ele sofreu modificações e, sobretudo, correções em função da
experiência concreta em sala de aula. Assim, ele esclarece que o Guia “foi redigido em forma
de regulamento somente depois de numerosos intercâmbios com os Irmãos deste Instituto,
mais velhos e melhor capacitados para dar aula; e depois da experiência de vários anos, não se
incluiu nele nada do que não havia sido bem acordado e provado.” 203
Conclui-se, portanto, que o Guia, em sua forma final, texto que utilizamos na pesquisa,
foi resultado da experiência de vários anos, testada pelos professores mais experientes, através
de intercâmbios, trocas de experiências, reuniões. Além disso, todo o seu conteúdo foi
aprovado coletivamente, pelos professores, depois de bem acordado entre todos.
Se a distância temporal não nos permite fazer tal aproximação, ao menos podemos
considerar interessante que, aquilo que está regulamentado na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional brasileira, sobre a participação dos professores na elaboração da proposta
educativa das escolas204, já fora vivenciado por La Salle e os primeiros professores.
La Salle também tem consciência das limitações dos professores com quem trabalha.
Talvez por isso tenha denominado este texto de Guia, e não de Regra ou Estatuto. Embora
haja a insistência de que todos devam seguir as suas orientações, há, também, a ressalva de
que nem tudo o que ele contém possa ser executado por todos os professores:
Ainda que este Guia não tenha sido elaborado como regra, já que há nele muitas
práticas que só visam ao melhor, e talvez não poderão ser observadas facilmente
por quem tenha pouca habilidade para a classe, e já que muitas delas se
acompanham e se reforçam com razões que as explicam e indicam o modo de
proceder ao aplicá-las, os Irmãos, contudo, procurarão, com sumo cuidado, ser fiéis
203
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 9.
204
Cf. Lei de Diretrizes e Bases da Educação, artigo 13, inciso I e artigo 14, inciso I.
150
em observar todas elas, convencidos de que não haverá ordem em suas classes e em
suas escolas a não ser na medida em que sejam exatos em não omitir nenhuma.205
Na seqüência de sua apresentação, o texto insiste para que todos os professores
estudem, em profundidade, o seu conteúdo e as suas indicações, normas e procedimentos,
salientando que todos devem seguir exatamente o que se indica.
Reiteramos que “uma concepção jamais pode ser abrangente, pois sempre está
dependendo do ponto de vista adotado”206 e o Guia das Escolas é a expressão concreta de uma
concepção de educação, que tem os seus limites e suas contribuições. Vimos, nos capítulos
anteriores, quais são esses limites e contribuições, procurando discernir entre o que poderia ter
vigência no atual estado da educação e o que não mais corresponde à nossa realidade.
Este ponto de vista adotado por La Salle, e expresso no texto do Guia, não é fruto de
uma criação inovadora sua. Trata-se de uma sistematização e de um assumir de determinadas
posturas, que não podem ser classificadas de forma homogênea ou pura; assim como qualquer
outra postura ou procedimento pedagógico. Isto porque
tentou-se variadísimas vezes, como é sabido, efetuar uma classificação do rico
patrimônio constituído pelo pensamento pedagógico moderno. Utilizaram-se vários
princípios de classificação, o que tornou possível agrupar de vários modos autores,
pontos de vista, correntes e posições. Delinearam-se assim quadros muito diversos
da pedagogia moderna. Esses quadros têm, sem dúvida, valor didático, pois ao
classificá-los de modos distintos evidenciaram-se múltiplos aspectos das diferentes
posições pedagógicas; isto pode contribuir para a compreensão de um fato
histórico, a saber: que as posições pedagógicas defendidas nunca foram
homogêneas; no entanto, quer pela genealogia, quer pelas suas repercussões,
revelaram sempre numerosos elementos de contato. Assim, se percorrermos o
extenso conjunto de pontos de vista e de posições pedagógicas tomando como
referência princípios de classificação diferentes, dá-se uma boa lição de antiesquematismo e de pensamento analítico que mostra em que medida a realidade,
aparentemente homogênea, é de fato variada. 207
O Guia das Escolas e seu autor, portanto, demonstram uma determinada posição
pedagógica, mas receberam influência de diversas fontes de sua época: da própria Igreja e de
205
Juan Bautista de La Salle. Obras Completas. Tomo II. Obras pedagógicas y escolares. Guía de las Escuelas.
Reglas de cortesía y urbanidad cristiana. Trad. Esp. Madrid: Ediciones San Pio X, 2005, p. 9.
206
Carl Gustav Jung. O desenvolvimento da personalidade. Trad. bras. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 5.
207
Bogdan Suchodolski. A Pedagogia e as grandes correntes filosóficas. Trad. bras. São Paulo: Centauro, 2002,
p. 11.
151
sua combativa postura da Contra-reforma; do pensamento ordenado, sistemático e gradativo
de Descartes; da estrutura da Ratio Studiorum dos Padres Jesuítas; das posturas pedagógicas
de Comenius e de suas obras; da experiência percebida das Escolas Paroquiais de
Bathencourt; da própria experiência pessoal nas universidades que freqüentou. De fato, o
Guia recebeu inúmeras influências, mas é inovador no fato de ser absolutamente pragmático e
voltado para a necessidade da população que pretendia atingir.
2. De sua evolução
Já tratamos, anteriormente, de observar que o Guia da época de La Salle teve sua
importância, embora estivesse circunscrito a um tipo específico de escola, numa realidade
social que não tinha as indicações e a organização dos sistemas de ensino. O Guia das
Escolas, como tal, não teve aplicabilidade exatamente como no original em todas as escolas
da Sociedade dos Irmãos Lassalistas, pois cada realidade e cada sistema de ensino solicitava
um tipo de orientação.208 Portanto, hoje o Guia não é utilizado como regulador das atividades
da escola, mas é um documento histórico e inspirador das escolas de La Salle.
No caso brasileiro, as escolas lassalistas estão agrupadas em duas grandes regiões,
denominadas Províncias Lassalistas, com sede em Porto Alegre e São Paulo. Cada uma dessas
duas regiões produziram e revisam, periodicamente, um documento com a participação de
Irmãos e leigos, acerca das propostas educativas que as escolas dessas regiões assumem, em
referência a La Salle.
Estes dois documentos, não muito extensos, estão apresentados nos Anexos 1 e 2 desta
pesquisa, apenas como fonte de informação. Como se poderá constatar, não seguem,
entretanto, a estrutura do Guia das Escolas Cristãs original, mas apresentam, em linhas gerais,
a filosofia e os princípios que norteiam as escolas lassalistas da atualidade.
Durante esta pesquisa, também tivemos acesso a um documento importante, que nos
apresenta uma nova redação do Guia das Escolas, com sua devida adaptação a uma realidade
da França. A obra, em razoável estado de conservação, tem a data de impressão em 1930, mas
se trata de um texto redigido no início do século, no ano de 1903, conforme se verifica no
prefácio da mesma. A estrutura desta outra versão do Guia é extremamente semelhante à
versão do Guia original, conforme se pode observar pelo conteúdo de suas partes e capítulos,
apresentado nos quadros a seguir:
208
Roque do Carmo Amorim Neto. Entrevista sobre o Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs. São Paulo, jul.
2006.
152
Parte I – Da Educação
Capítulo 01. Considerações gerais
Capítulo 02. Da educação física
Capítulo 03. Da educação intelectual
Capítulo 04. Da educação da sensibilidade moral
Capítulo 05. Da formação da consciência
Capítulo 06. Da educação da vontade
Capítulo 07. Da educação religiosa
02 páginas
02 páginas
10 páginas
05 páginas
02 páginas
04 páginas
02 páginas
Parte II – Dos exercícios da escola
Capítulo 01. Do regulamento diário
Capítulo 02. Da entrada na escola
Capítulo 03. Dos exercícios de memória
Capítulo 04. Do catecismo
Capítulo 05. Dos exercícios de piedade na escola
Capítulo 06. Dos exercícios piedosos na paróquia
Capítulo 07. Da leitura
Capítulo 08. Da escrita
Capítulo 09. Da língua materna
Capítulo 10. Da aritmética
Capítulo 11. Da história nacional
Capítulo 12. Da geografia
Capítulo 13. Das lições de coisas
Capítulo 14. Do desenho
Capítulo 15. Do canto
Capítulo 16. Da ginástica
Capítulo 17. Da cortesia
Capítulo 18. Da saída dos alunos
06 páginas
02 páginas
06 páginas
10 páginas
05 páginas
03 páginas
10 páginas
12 páginas
19 páginas
10 páginas
04 páginas
03 páginas
05 páginas
02 páginas
03 páginas
01 página
02 páginas
02 páginas
Parte III – Da organização da escola
Capítulo 01. Da organização material da escola
Capítulo 02. Observações gerais acerca do ensino
Capítulo 03. Do método e dos sistemas de ensino
Capítulo 04. Da comprovação do ensino
Capítulo 05. Do regime da escola
Capítulo 06. Da autoridade do professor
Capítulo 07. Dos estímulos
Capítulo 08. Dos castigos
04 páginas
02 páginas
05 páginas
07 páginas
11 páginas
08 páginas
17 páginas
13 páginas
Parte IV – Das virtudes do professor
Capítulo 01. Da piedade
Capítulo 02. Do zelo
Capítulo 03. Da prudência
Capítulo 04. Da humildade
Capítulo 05. Da paciência
Capítulo 06. Da mansidão
Capítulo 07. Da firmeza
Capítulo 08. Da constância
Capítulo 09. Da gravidade
Capítulo 10. Do silêncio
Capítulo 11. Da vigilância
Capítulo 12. Da simplicidade
Capítulo 13. Do saber
Capítulo 14. Da generosidade
03 páginas
02 páginas
04 páginas
03 páginas
03 páginas
02 páginas
02 páginas
02 páginas
02 páginas
02 páginas
02 páginas
03 páginas
03 páginas
02 páginas
Quadros 12 a 15 – Partes e capítulos do Guia das Escolas Cristãs de 1903 209
209
Conforme apresentado em Hermanos de las Escuelas Cristianas. Guía de las Escuelas Cristianas. París:
Procuraduría General, 1930, p. 249-260.
153
Pelas partes e capítulos desta edição, podemos verificar que o contexto histórico
determinou significativas alterações no texto e no conteúdo do Guia, apesar de manter uma
linguagem semelhante.
Este novo texto do Guia, em sua parte primeira, ao tratar da educação, já afirma qual a
sua intenção e como considera seu conteúdo:
Educação é a arte de criar, de dirigir as crianças. (...) A educação tem seus
princípios; e ao professor lhe incumbe o dever profissional de conhecê-los e de
estudar suas conseqüências pedagógicas. Tais princípios se acham expostos nas
obras especiais que tratam de psicologia, de lógica, de moral e de higiene. Ao Guia
das Escolas, diretório essencialmente prático, não lhe corresponde mais que
formulá-los brevemente. 210
Desta primeira parte já podemos perceber que o enfoque principal é outro, ainda que
mantendo o caráter de ser um indicativo de atividades práticas do que se faz na escola. Além
disso, fica evidente o reconhecimento de que o Guia não pretende substituir os conhecimentos
e os campos específicos de outras áreas do conhecimento, extremamente importantes para a
educação.
Ainda nesta primeira parte, este texto apresenta o seu enfoque sobre como considera a
educação: como uma atividade extremamente necessária. A educação tem o caráter de
unidade e de complexidade, uma vez que considera o ser humano como um todo e esta não
pode trabalhar apenas uma parte do aluno.
Comparando com o texto original de La Salle, que tinha objetivos diferentes desta
edição, elaborada e dirigida às escolas de educação elementar da França no começo do século
XX, o Guia trata dos seguintes conteúdos, que não estavam explicitamente presentes na
edição original:
a) Educação Física: era entendida de forma muito mais abrangente, do que
simplesmente a realização de atividades ou exercícios físicos; esta dimensão da escola deveria
tratar de questões de higiene e de saúde. Há um enfoque acentuado, portanto, nas questões das
ciências naturais, muito mais que nos exercícios.
b) Educação Intelectual: era compreendida como educação dos cinco sentidos;
exercitar a atenção; a memória, a imaginação, o juízo e o raciocínio. A escola, portanto,
deveria trabalhar efetivamente com a pessoa como um todo.
210
13.
Hermanos de las Escuelas Cristianas. Guía de las Escuelas Cristianas. París: Procuraduría General, 1930, p.
154
c) Educação da sensibilidade moral: consistia em trabalhar a questão dos sentimentos,
as inclinações morais, a afetividade, auto-estima, curiosidade, felicidade, liberdade, honra,
solidariedade, fraternidade. Abre-se, aqui, um leque muito maior e muito mais abrangente do
que o texto original, evidenciando uma preocupação efetiva com a complexidade da formação
humana.
d) Formação da consciência: tratava de questões de ética e de moral, de consciência
pessoal acerca das opções e dos costumes sociais.
e) Educação da vontade: trabalhavam-se questões referentes à personalidade, ao
caráter, às inclinações pessoais. Verifica-se uma dedicação a questões de ordem psicológica.
f) Dos exercícios de memória: os alunos deveriam exercitar a memória,
periodicamente, ao longo do dia, repetindo textos ou resumos de textos, das lições e/ou
atividades trabalhadas ao longo do dia. Ao descrever este exercício, esta edição do Guia
apresenta um roteiro significativo de leitura e interpretação de texto, bem como a orientação
de como resumir um texto.
g) História Nacional: tratava-se de temas ligados à história do país e do mundo. O
Guia indica dois enfoques importantes: trabalha-se com aspectos e fatos da história regional e
questões de civismo. Um recurso didático utilizado é o de solicitar dos alunos que relatem, a
cada início de aula, os temas principais da aula anterior, de maneira a compreender a
seqüência histórica.
h) Geografia: trabalha-se com mapas e globos, acerca dos territórios e características
da França e dos demais países do mundo, exercícios de cartografia. Já há aqui um germe do
trabalho interdisciplinar, pois há a indicação de trabalhos interligados entre a Geografia e a
História.
i) Lições de coisas: com este título, entendiam-se as experiências práticas e as teorias
referentes às ciências físicas e naturais. Fazia parte deste conteúdo: a análise de diversos
instrumentos e objetos de uso cotidiano; os experimentos científicos básicos; as atividades
referentes às questões agrícolas.
j) Desenho: trabalhava-se, de forma gradativa, orientando os alunos sobre técnicas de
desenho, das mais simples às mais complexas, cópias de objetos, ou mesmo de outros
desenhos.
l) Ginástica: consistia em atividade essencialmente prática, de exercitar os músculos,
trabalhar com a respiração etc.
Além destes conteúdos, muito mais abrangentes, ainda se mantinham, com enfoques
bem diferentes do original, a língua francesa, a aritmética, a educação religiosa, a escrita e a
155
leitura. O horário semanal de atividades, conforme vimos no Guia original de La Salle,
também sofreu modificações. As atividades continuam em período integral, mas das oito da
manhã às quatro e meia da tarde. As novas disciplinas preenchem o horário, de acordo com os
dias da semana e os níveis de ensino.
Na terceira parte desta edição, que é de caráter muito mais administrativo e de gestão
da escola, há orientações específicas sobre como se deve organizar a escola. No capítulo II,
por exemplo, há uma indicação de como os lassalistas encaram a educação primária, ou seja,
que características211 esta etapa deve ter: ser metódica e racional; adaptada ao alcance dos
alunos, viva e ativa; lentamente progressiva; avaliada continuamente; prática; moral e cristã.
É nesta parte que se concentram, de forma mais trabalhada, todas as orientações acerca
de como deve ser o dia-a-dia da escola. Ainda que se repitam, basicamente, os mesmos itens
do Guia original de La Salle, aqui houve o acréscimo de informações ou de contribuições do
avanço das ciências que tratam ou contribuem para a educação.
No capítulo dos castigos, por exemplo, há uma redução significativa das indicações e
há a completa ausência de referência a castigos físicos ou de caráter similar. Trata-se somente
de posturas comumente adotadas até os dias de hoje, como advertência, suspensão,
comunicado aos pais.
A última parte retoma o que o Guia de La Salle apenas citava: as virtudes do bom
professor212, que, no texto original eram levemente diferentes: piedade, zelo, prudência,
discrição, humildade, paciência, mansidão, firmeza, constância, gravidade, silêncio,
vigilância, sensatez, sabedoria e generosidade.
3. De seus limites e aproximações
Qualquer que seja o texto, o original de La Salle, de 1706, ou o dos Irmãos Lassalistas
da França de 1903, ele traz uma série de questionamentos e limitações, que constatamos ao
longo da pesquisa e que aqui evidenciamos:
a) De onde La Salle tirou inspiração para escrevê-lo? Seguramente, foram várias as
fontes. A história pessoal de La Salle nos permite afirmar que o Guia nasceu: de sua
experiência escolar, feita nas escolas e universidades dos jesuítas; dos seus estudos pessoais;
211
Cf. Hermanos de las Escuelas Cristianas. Guía de las Escuelas Cristianas. París: Procuraduría General, 1930,
p. 149.
212
Cf. Ibidem, p. 212-247.
156
de sua observação das escolas de sua época; da leitura de outras obras semelhantes, já citadas
anteriormente.
b) Os professores de sua época realmente o utilizaram e de que maneira? Tudo indica
que o Guia foi efetivamente utilizado nas primeiras escolas, sobretudo pelas cartas escritas
entre La Salle e os demais professores. Tais cartas, devidamente catalogadas, expressam as
observações, comentários e demais indicações neste sentido. Obviamente, como o próprio La
Salle escreve no prefácio do Guia, o texto é uma indicação a ser seguida por todos, dentro da
capacidade de cada um.
c) As escolas Lassalistas de hoje fazem uso dele? De fato, não o fazem. A pesquisa
revelou que o Guia não pode ser aplicado como tal em nossa realidade, pois refletia uma
sociedade e uma concepção, que não existem mais. O que se verifica é que a maior parte dos
princípios evidenciados no texto podem ser aplicados atualmente; mas somente enquanto
princípios e posturas, não como normas. Também é importante ressaltar que o volume de
conhecimento com que se trabalha hoje em dia extrapola e muito a realidade trabalhada pelo
Guia.
d) A predominância do caráter religioso expresso no Guia não encontra eco na
realidade da sociedade de hoje. Há escolas lassalistas em países em que o ensinamento
religioso não é permitido; ainda assim, Irmãos Lassalistas e professores leigos continuam a
trabalhar com escolas, geralmente bem conceituadas, em seus locais de origem. Esta realidade
evidencia um outro princípio, subjacente à própria realidade das escolas iniciadas por La
Salle: a intenção primeira da instituição, que recai sobre a educação e não sobre a
evangelização ou a catequese, de caráter doutrinário e proselitista. Se fosse de outra forma,
não haveria escolas da entidade em países de maioria muçulmana ou cujo ensino religioso
fosse terminantemente proibido.
e) O Guia das Escolas também não se aplica hoje em dia em relação aos castigos
físicos, que sequer são mencionados ou levados em consideração. Ainda que nossa realidade
próxima apresente casos de uso de castigos físicos, não faz sentido a sua utilização.
f) A escola de hoje não pode ser reduzida àquela realidade de La Salle, em que, além
da religião, se ensinava basicamente a ler, a escrever e a contar. Embora, em alguns casos,
diante da complexidade de nossa realidade hoje, ainda existam crianças com dificuldades em
ler, escrever e contar, não se pode fechar a escola somente nesse âmbito.
g) As legislações e os variados sistemas de ensino dos diversos países do mundo
inviabilizariam a aplicação das orientações do Guia, dependendo de sua realidade. Nem todas
as legislações prevêem ou permitem as mesmas situações ou estímulos educativos.
157
h) O conhecimento extremamente vasto das ciências específicas relacionadas à
educação, quer seja pedagogia, didática, psicologia etc., com toda a sua evolução e
enriquecimento, estão distantes das posturas apresentadas no Guia das Escolas. Se, por um
lado, o Guia foi inovador em sua época e ainda assim permite que seus princípios possam ser
considerados, a sua totalidade, diante dos conhecimentos científicos de agora, impedem de
fazê-lo.
i) A escola de hoje, com todos os recursos de comunicação a que temos acesso, não
pode trabalhar exclusivamente no silêncio, utilizando um sistema de códigos, gestos e sinais
como o estabelecido no Guia. O princípio de comunicação coletiva é importante e
significativo, mas não como sistema para garantir o silêncio. O silêncio não pode ser utilizado
como sinônimo de disciplina nem pode ser o objetivo dos professores; não se pode exigir
silêncio dos alunos, simplesmente para que o professor fale constantemente.
Ao lado dessas possíveis limitações, também podemos aproximar o texto do Guia das
Escolas de alguns documentos atuais a respeito da realidade educacional. Evidentemente, o
foco desta pesquisa não foi o de fazer comparações do texto de La Salle com outros; ainda
assim, consideramos importante a aproximação que fazemos com os indicados a seguir.
Primeiramente, considero importante esta aproximação com o documento da
UNESCO, “Educação, um tesouro a descobrir”, quando fala dos quatro pilares da educação.
Fizemos referência a este aspecto anteriormente, mas retomamos aqui. Tal texto propõe que
Para poder dar resposta ao conjunto das suas missões, a educação deve organizar-se
em torno de quatro aprendizagens fundamentais que, ao longo de toda a vida, serão
de algum modo para cada indivíduo, os pilares do conhecimento: aprender a
conhecer, isto é adquirir os instrumentos da compreensão; aprender a fazer, para
poder agir sobre o meio envolvente; aprender a viver juntos, a fim de participar e
cooperar com os outros em todas as atividades humanas; finalmente aprender a ser,
via essencial que integra as três precedentes. 213
A partir desta breve citação das quatro aprendizagens, podemos constatar a atualidade
do Guia das Escolas em alguns aspectos:
a) Aprender a conhecer, adquirir os instrumentos da compreensão: a aprendizagem, na
época do Guia, era fundamentada na transmissão do conhecimento, do professor para o aluno,
de forma expositiva. Entretanto, havia, nas escolas de La Salle algumas práticas interessantes
de caráter ativo e participativo, uma vez que os alunos dos níveis mais avançados ajudavam
213
UNESCO. Educação: um tesouro a descobrir. São Paulo: Cortez; MEC; UNESCO, 1998, p. 88.
158
os colegas dos níveis anteriores; de certa forma, passavam a exercer a função de professores.
Outras situações práticas também evidenciavam este enfoque, como na descrição de como se
deve preparar as penas para escrever. O exercício das funções, descritas na segunda parte do
Guia, também são uma evidência desta aprendizagem.
b) Aprender a fazer, agir sobre o meio envolvente: todos os alunos exerciam alguma
função específica no cotidiano da escola, conforme acabamos de nos referir. Os ofícios,
descritos de maneira detalhada, apontam para um verdadeiro processo de envolvimento e
aprendizagem dos alunos numa determinada função. De caráter essencialmente prático, essas
funções proporcionavam aos alunos a aprendizagem efetiva de como fazer determinadas
atividades.
c) Aprender a viver juntos, participar e cooperar com os outros nas atividades
humanas: tal aprendizagem também é evidenciada no exercício dos ofícios; nas refeições
tomadas em conjunto; nos minutos iniciais do dia, reservados para a convivência entre os
alunos; na própria realidade escolar criada por La Salle, ao agrupar os alunos em níveis de
aprendizagem; na estrutura de co-responsabilidade pelo cotidiano da escola.
d) Aprender a ser: esta dimensão integradora pode ser constatada através de uma série
de posturas e procedimentos que considerava o aluno como pessoa, na reflexão diária, ao final
do dia; na exigência de adequada postura física em sala de aula; nos registros feitos pelos
professores e inspetores, que traziam indicações sobre a realidade pessoal do aluno; na
consideração rigorosa pela aprendizagem individual como pré-requisito para o avanço nas
lições.
Uma outra aproximação possível do texto do Guia das Escolas poderia ser feita com
alguns dos princípios apresentados em nossa Constituição Federal, em seus artigos 205 e
206214, e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, nos seus artigos 2º. e 3º.
215
A
partir deles, podemos destacar:
a) Princípio da educação como dever da família e do Estado: refletido na insistência de
La Salle para que houvesse uma dedicação intensiva ao convencimento dos pais para a
importância de mandar seus filhos para a escola.
b) Princípio da liberdade e da solidariedade humana: se a questão da liberdade, como a
concebemos hoje, não fazia parte das intenções do texto do Guia, quanto à solidariedade,
podemos vê-la refletida quando da partilha dos alimentos e na divisão dos ofícios na escola.
214
215
República Federativa do Brasil. Constituição. São Paulo: Melhoramentos, s/d., p116-117.
Idem. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. São Paulo: SIEEESP, 1998, p. 3-4.
159
c) Princípio do pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho; valorização da experiência extra-escolar e
vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais: por diversas vezes, o
texto do Guia explicita a orientação de La Salle para que a realidade social e familiar do aluno
seja contemplada nas atividades da escola; indicação evidente quando do trabalho com os
textos manuscritos, de caráter comercial, dado que grande número de alunos eram filhos de
artesãos e pequenos comerciantes.
d) Princípio de igualdade de condições para o acesso e permanência na escola: o Guia
expressa a intenção inequívoca de La Salle em atender uma camada mais pobre da sociedade,
sem, entretanto, de fechar suas portas a outras camadas nem exigir dos mais pobres o
Certificado de Indigência.
e) Princípio da coexistência de instituições públicas e privadas de ensino: La Salle
buscou, ao lado do ensino privado que existia na época, atender às necessidades dos mais
pobres, tendo iniciado a educação popular organizada em escolas.
f) Princípio da valorização do profissional da educação escolar: La Salle foi um
importante e considerável colaborador para elevar o prestígio do professor, escrevendo obras
para a formação dos professores e sendo considerado, na História da Educação, como o
primeiro a sistematizar a formação dos profissionais da educação.
g) Princípio da garantia de padrão de qualidade: todo o texto do Guia das Escolas é
uma evidência de que havia uma grande preocupação com a qualidade de ensino e a qualidade
das Escolas Cristãs, dada a sua especificidade e detalhamento de procedimentos.
Outra importante e possível aproximação que pode ser feita é com relação à
Declaração Mundial sobre a Educação para Todos – Satisfação das Necessidades Básicas de
Aprendizagem, conhecida como Declaração de Jomtiem216, organizada pela UNESCO em
1990. Tal declaração expressa o que deveria ser feito para que todas as crianças, jovens e
adultos possam ter as suas necessidades de aprendizagem atendidas de forma satisfatória. Os
dez artigos desta declaração poderiam ser confrontados com o texto do Guia e/ou as posturas
assumidas por La Salle, em sua época. Apenas como referência, seguem os dez artigos:
a) “Cada pessoa – criança, jovem ou adulto – deve estar em condições de aproveitar as
oportunidades
educativas
voltadas
para
satisfazer
suas
necessidades
básicas
de
aprendizagem”. Nesta afirmação, o documento elenca que essas necessidades básicas são as
seguintes: a leitura, a escrita, a expressão oral, o cálculo, a solução de problemas, as
216
UNESCO. Declaração de Jomtiem. Declaração Mundial sobre Educação para todos. Disponível em:
<http://www.unesco.org.br/publicacoes/copy_of_pdf/decjomtien> Acesso em 02 nov. 2006.
160
habilidades, os valores e as atitudes. Basicamente, todas as dimensões trabalhadas nas Escolas
Cristãs, descritas no Guia.
b) “Lutar pela satisfação das necessidades básicas de aprendizagem para todos exige
mais do que a ratificação do compromisso pela educação básica. É necessário um enfoque
abrangente, capaz de ir além dos níveis atuais de recursos, das estruturas institucionais; dos
currículos e dos sistemas convencionais de ensino, para construir sobre a base do que há de
melhor nas práticas correntes”. Conforme já assinalamos, para organizar a sua Escola Cristã,
La Salle reuniu o que experienciou e o que pôde estudar de outras realidades de ensino
existentes em sua época; a partir delas, estabeleceu o texto do Guia.
c) “A educação básica deve ser proporcionada a todas as crianças, jovens e adultos.
Para tanto, é necessário universalizá-la e melhorar sua qualidade, bem como tomar medidas
efetivas para reduzir as desigualdades”. A principal intenção de La Salle e seus primeiros
professores, ao abrir as Escolas Cristãs, era atender à camada mais pobre, com uma escola de
qualidade, capaz de proporcionar meios para que a desigualdade social fosse diminuída.
d) “Concentrar a atenção na aprendizagem: a educação básica deve estar centrada na
aquisição e nos resultados efetivos da aprendizagem, e não mais exclusivamente na matrícula,
freqüência aos programas estabelecidos e preenchimento dos requisitos para a obtenção do
diploma”. Todo o sistema de promoção das escolas de La Salle está assentado na real
capacidade de aprendizagem, de maneira que somente se promove um aluno quando se
garante esta sua aprendizagem.
e) “O principal sistema de promoção da educação básica fora da esfera familiar é a
escola fundamental. A educação fundamental deve ser universal, garantir a satisfação das
necessidades básicas de aprendizagem de todas as crianças, e levar em consideração a cultura,
as necessidades e as possibilidades da comunidade”. La Salle conseguiu, com sua visão
administrativa extremamente organizada, garantir um número razoável de funcionamento de
escolas em todos os lugares da França em que foi solicitado. A manutenção dessas escolas era
garantida pelas paróquias ou por benfeitores.
f) “Propiciar um ambiente adequado à aprendizagem. A educação das crianças e a de
seus pais ou responsáveis respaldam-se mutuamente, e esta interação deve ser usada para
criar, em benefício de todos, um ambiente de aprendizagem onde haja calor humano e
vibração”. Foi La Salle quem organizou, de forma adequada, um ambiente escolar acolhedor e
propício às atividades escolares, conforme as indicações presentes no Guia das Escolas. Da
mesma forma, ao buscar garantir um ambiente físico adequado, La Salle orientou seus
professores a atender os alunos e seus pais de forma afetuosa.
161
g) “Novas e crescentes articulações e alianças serão necessárias em todos os níveis,
entre todos os setores e formas de educação, reconhecendo o papel especial dos professores,
dos administradores e do pessoal que trabalha em educação”. Ao considerar a escola como
uma comunidade específica, La Salle a concebeu com a participação e envolvimento de todos,
descrevendo as funções e responsabilidades de todos.
h) “A educação básica para todos depende de um compromisso político e de uma
vontade política, respaldados por medidas fiscais adequadas e ratificados por reformas na
política educacional e pelo fortalecimento institucional”. Embora La Salle não tenha
trabalhado no âmbito das políticas governamentais para a educação, ao firmar sua postura em
relação a suas escolas propiciou que a França desse um salto de qualidade na educação de seu
povo mais pobre.
i) “Para que as necessidades básicas de aprendizagem para todos sejam satisfeitas
mediante ações de alcance muito mais amplo, será essencial mobilizar atuais e novos recursos
financeiros e humanos, públicos, privados ou voluntários”. Para garantir a educação das
crianças pobres, La Salle aceitou todas as contribuições que lhe foram proporcionadas pelas
paróquias ou pelos doadores ricos, que lhe garantiam o sustento e o bom funcionamento das
escolas.
j)
“Satisfazer
as
necessidades
básicas
de
aprendizagem
constitui-se
uma
responsabilidade comum e universal a todos os povos, e implica solidariedade internacional e
relações econômicas honestas e eqüitativas, a fim de corrigir as atuais disparidades
econômicas.” Embora esta questão não se aplique à realidade das Escolas Cristãs de La Salle,
a sua iniciativa, com a decidida atuação dos seus primeiros professores, garantiu o surgimento
e o crescimento desta rede de escolas, com presença e atuação educativa junto a diversas
comunidades pobres do mundo todo, atualmente.
Por fim, o que podemos constatar é que, à margem de todas as suas limitações e/ou
aproximações, o Guia das Escolas Cristãs, de João Batista de La Salle deveria ser considerado
como um importante documento histórico, que registrou um projeto educativo eficiente,
eficaz, orgânico, abrangente, assistencial e transformador e que possibilita, nas devidas
proporções, a aplicação e adequação de alguns de seus princípios básicos à educação de hoje.
162
Conclusão
Ao descrever e analisar o conteúdo das três partes do Guia das Escolas Cristãs, escrito
por La Salle em 1706, pude perceber algumas das características típicas deste educador
francês. O texto do Guia pôde proporcionar a observação de que algumas posturas e
princípios sempre estiveram presentes em sua concepção e prática educativa.
Retomo, aqui, o objetivo inicial desta pesquisa, que era o de procurar responder à
seguinte questão: qual seria o conteúdo desta obra e, em que medida e de que maneira, ele
poderia ter vigência na atualidade e contribuir para a Educação.
Conforme enfatizei na introdução, parti da hipótese de que seu conteúdo, com suas
orientações e indicações, não poderia ser transposto tal qual é apresentado no texto original.
Por outro lado, considerei, como hipótese plausível, que certos princípios, práticas ou posturas
propostos no texto permaneceriam como indicativos importantes e consideráveis para a
realidade de uma escola brasileira, de nossa época, pública, privada ou comunitária, leiga ou
confessional.
Neste estudo, portanto, foi possível destacar, seja no texto analisado, seja nas posturas
assumidas por La Salle e os primeiros professores, os seguintes indicativos, os quais
considero que respondem à questão colocada no início desta pesquisa:
a) Pragmatismo: primeiramente, é importante destacar o caráter extremamente
pragmático das opções de La Salle em relação às suas escolas. Ele e os professores
organizaram a um tipo de escola em função da prática e da vida cotidiana dos alunos
atendidos; não fizeram da escola um laboratório para experiências nascidas de concepções
teóricas, mas partiram da realidade da camada da população que procuraram educar. O
conteúdo estabelecido devia ser útil para a vida do aluno, ser prático e fazer sentido.
b) Necessidade: decorrente desta postura pragmática, pudemos constatar que
realmente organizaram a escola em função da necessidade dos alunos, estabelecendo
currículo, horário e procedimentos para atender a essa demanda.
c) Firmeza: procuraram ter clareza e postura adequada, trabalhando os limites da boa
convivência, a disciplina e a autodisciplina; sob a denominação de firmeza, trabalharam a
questão do limite e das regras de convivência coletiva. Nesta perspectiva, estabeleceram, com
rigor, os horários de atividades, as responsabilidades de professores e alunos, as funções e
posturas de cada um.
163
d) Ternura: trabalharam a dimensão afetiva, não como negligência da dimensão da
firmeza. A busca do equilíbrio na prática educativa visava conquistar o coração do aluno, ao
mesmo tempo em que mantivesse a ordem e o silêncio nas escolas.
e) Organização e padronização: adotaram um sistema único escolar, que pôde
proporcionar a todos os alunos as condições necessárias para o aprendizado em qualquer parte
do país. De certa forma, o Guia serviu de instrumental para regulamentar todas as escolas
pertencentes à Sociedade das Escolas Cristãs, determinando um mesmo padrão básico em
qualquer local.
f) Castigo e reparação: dentro do limite de seu contexto, sistematizaram a aplicação
dos castigos e elaboraram uma considerável reflexão acerca do seu significado, de maneira a
racionalizar o seu uso e sua aplicação.
g) Trabalho coletivo dos professores: desde o nascimento e o início das atividades das
Escolas Cristãs, o trabalho educativo foi feito de forma coletiva, em que todos os envolvidos,
sob a liderança de La Salle, puderam acompanhar e participar do nascimento e da estruturação
de tal sociedade.
h) Formação permanente dos professores: continuamente, assumiram uma
preocupação com a qualidade do processo educativo das escolas, o que exigia a formação
adequada e permanente de todos os professores da sociedade.
i) A dignidade da profissão de professor: pela teoria e pela prática, foram construindo,
de forma sistemática e consistente, uma profissionalização do magistério. Tal postura foi
conseqüência da preocupação com a formação inicial e permanente; a dedicação exclusiva a
esta função, ao longo do dia todo; a preocupação com a pessoa do professor, em seus aspectos
mais humanos; a criação e o cultivo de um espírito comunitário e de equipe que garantiu a
existência e o crescimento da sociedade.
j) Registros sobre o aluno: para a época, criaram um completo e complexo sistema de
registro e de acompanhamento do desenvolvimento de cada aluno, de maneira a garantir um
histórico mais qualitativo que quantitativo deste processo.
l) Participação da família: procuraram envolver a família no processo educativo,
buscando, de forma insistente, a orientação para que compreendessem a necessidade e a
importância de que seus filhos pudessem freqüentar a escola e, principalmente, de forma
assídua e constante.
m) Formação integral: embora a escola estivesse marcada pela influência ideológica
católica de então, procuraram trabalhar de forma a proporcionar o crescimento em diversas
áreas: saber ler, escrever e contar; saber o catecismo; saber produzir certos tipos de textos que
164
seriam utilizados posteriormente; conviver, usando de regras de boas maneiras e civilidade;
assumir responsabilidades com o grupo.
Além destas questões, referentes às posturas assumidas por La Salle e os primeiros
professores, considero importante salientar, como conclusão desta pesquisa, alguns aspectos
que transparecem do texto do Guia e, a partir deles, algumas possíveis reflexões e sugestões
para a realidade educacional atual. A seqüência destes itens segue o apresentado em cada uma
das três partes do Guia das Escolas:
1. Que a escola elabore um horário de atividades, capaz de atender às necessidades dos
alunos, professores e pais e de proporcionar um processo educativo eficaz, eficiente, coerente
e voltado para a realidade social em que se desenvolve. Esta postura, assumida como
princípio, significa organizar o tempo escolar de forma adequada e que possa responder às
necessidades da comunidade escolar. A adaptação do horário e do próprio calendário letivo a
determinadas realidades já acontece em algumas regiões do país.
2. Que a escola seja organizada em período integral, atendendo à realidade integral dos
alunos, de maneira a proporcionar uma educação integral, sem que se privilegiem
determinadas dimensões em detrimento de outras. O termo integral – propositadamente
repetido – quer acentuar essa característica necessária da educação atual, de maneira a
realmente proporcionar o desenvolvimento e o crescimento dos envolvidos no processo
educativo. Ao ser humano, com toda sua complexidade, tem que corresponder uma educação
complexa, integrada e integradora.
3. Que a escola tenha momentos específicos e explícitos de convivência, seja em
situações formais e informais, de maneira a possibilitar o sadio desenvolvimento da boa
educação em situações coletivas. Atividades em classe não proporcionam esta convivência; é
importante resgatar momentos mais informais ao longo do período letivo, nos quais o
relacionamento social possa ser trabalhado, seja de forma implícita ou explícita.
4. Que a escola proporcione, ao final de cada dia, um momento bem ordenado de
avaliação das atividades e do desempenho de cada um, seja para o crescimento pessoal quanto
para o crescimento do grupo. Trata-se de um momento de auto-avaliação e de avaliação da
escola, do trabalho realizado, do próprio professor e do próprio transcurso do processo
educacional. Evidentemente, é preciso adaptar o processo de avaliação e reflexão do dia à
idade e à capacidade dos alunos, mas trata-se de um importante recurso para o crescimento
das pessoas que atuam na escola e da própria escola, enquanto instituição educacional mais
abrangente.
165
5. Que a escola se organize de maneira a se evitar o desperdício e a se promover o uso
consciente e a partilha solidária dos bens e recursos entre todos os membros da comunidade
educativa, de maneira a atender as necessidades básicas de cada um. É uma atividade que
concretiza a solidariedade, mas também educa para a boa convivência, a cidadania
comprometida e o respeito pelos bens de consumo, que são de caráter esgotáveis, alimentos,
objetos, etc.
6. Que a escola seja um ambiente de ordem, de maneira que essa ordem, estabelecida
com a participação de todos os envolvidos, de acordo com a sua competência, possa
proporcionar o crescimento das pessoas e a garantia da aprendizagem. A ordem não precisa
ser entendida como limitante ao processo de crescimento e liberdade; trata-se, tão somente, de
organizar os procedimentos, responsabilidades, competências e possibilidades de cada um, de
maneira a garantir a aprendizagem de todos e o bom andamento das atividades escolares.
7. Que a escola tenha e a comunidade respeite os momentos e os espaços destinados ao
cultivo do silêncio como atitude educativa fundamental para a concentração, a reflexão, a
leitura, o estudo, a meditação, a interiorização. Atualmente, no contexto em que vivemos, há
dificuldades de encontrar espaços de cultivo desses momentos de silêncio, mas são
necessários ao bom desenvolvimento.
8. Que a escola trabalhe, de forma livre, aberta, tolerante e não exclusiva, as
dimensões religiosa e moral dos alunos e professores, considerando-as como um aspecto
essencial da identidade humana e que também depende da educação. Não convém, dada a
pluralidade religiosa brasileira, que a escola assuma um princípio religioso específico para ser
trabalhado, salvo as escolas confessionais, cuja existência é garantida pela Constituição
Federal. O que não poderia ser negligenciado é o fato de que o fenômeno religioso faz parte
da história e da cultura da humanidade e precisa ser trabalhado, assim como as implicações de
opções de caráter moral. Não se trata de trabalhar o moralismo, falso e limitante, mas de
cultivar princípios de moralidade que garantam a formação do ser humano equilibrado e
cidadão, comprometido consigo mesmo e com os outros. Levar em consideração que um
trabalho com a dimensão religiosa dos alunos – que não pode ser negada – não significa
retirar o caráter laico da escola.
9. Que a escola busque, através da boa formação de seus professores, as metodologias
e os recursos mais adequados para garantir que os alunos aprendam efetivamente e possam
intervir, de forma criativa, naquilo que aprenderam. Nenhum processo educativo que se deseja
ser feito com qualidade pode dispensar a boa e adequada formação dos professores, para que
estes possam exercer a sua profissão de forma eficiente e eficaz.
166
10. Que a escola seja um espaço comunitário, ordenado e organizado, em que se possa
efetivamente ensinar e aprender, construir e transformar o conhecimento, utilizando-se de
recursos, estruturas e regras para que esta sua função seja desempenhada de forma satisfatória
e adequada. Em resumo: a escola existe para proporcionar aprendizagem; ela não pode negarse a esta função primeira; consideramos, portanto, que este princípio de La Salle é
absolutamente válido para as escolas da atualidade.
11. Que a escola, em sua organização cotidiana, além de intensa e livre comunicação
entre todos, possa proporcionar momentos específicos de silêncio, visando à concentração, à
interiorização, ao estudo individual, ao cultivo da leitura, ao exercício do respeito pela
coletividade. Novamente volta esta questão dos momentos de silêncio, já aludido na primeira
parte do Guia. La Salle considerava o silêncio essencial numa escola. De fato, ainda o é; não
no sentido de ausência ou impedimento da comunicação; não usado ideologicamente a serviço
da submissão ou da apatia; mas do silêncio que proporciona concentração, estudo, criação.
12. Que a escola crie, desenvolva e aperfeiçoe um sistema de comunicação capaz de
aproximar as pessoas, agilizar as trocas, favorecer o relacionamento, aproximar os grupos,
melhorar o ambiente e, conseqüentemente, criar um clima propício à aprendizagem. La Salle
criou um sistema de sinais para agilizar a comunicação; também as escolas de hoje poderiam,
e muita já fazem, criar, coletivamente, esse sistema comunicativo, que possibilitaria uma
integração maior entre os membros da comunidade escolar.
13. Que a escola crie e mantenha um sistema integrado de registro de documentação
dos envolvidos no processo educacional, de maneira a garantir a preponderância dos aspectos
qualitativos sobre os quantitativos, envolvendo, de acordo com sua competência, pais, alunos,
professores, coordenadores e gestores. Este sistema de documentação, além do que as
legislações estipulam, poderiam ser abertos ao conhecimento dos alunos e familiares, bem
como implementados, de maneira a refletir a história da unidade escolar em questão, e de cada
um de seus integrantes. Que a documentação não tenha apenas o caráter de atender à
legislação; mas que ela vá além disso, com a intenção de contribuir para o registro histórico
das pessoas e, sobretudo, de seu crescimento enquanto ser humano.
14. Que a escola possa proporcionar, por diversos meios, que o relacionamento entre
todos seja construído, cultivado e vivenciado com base na ternura e na firmeza, na razão e na
emoção, na objetividade e na subjetividade, de maneira a garantir um crescimento equilibrado
de todos. Para isso é preciso que se trabalhem estas dimensões complementares na escola,
sem prejuízo de uma em acento de outra. No equilíbrio dessas duas dimensões, é possível
167
construir um ambiente escolar mais adequado e equilibrado, propício à realização das
atividades escolares.
15. Que a escola, em sua Proposta Político-pedagógica e em seu Regimento,
estabeleça, de forma clara, objetiva e participativa, os direitos e deveres de todos, as punições
e reparações exigidas dos que violarem as regras assumidas comunitariamente, de maneira a
garantir a boa convivência social. As regras devem ser de conhecimento de todos, elaboradas
com a maior participação possível. Da mesma forma, as regras para a reparação das regras
violadas devem ser explícitas e de conhecimento de todos. O que não se pode permitir é a
flexibilidade daquilo que é essencialmente objetivo e a impunidade, por qualquer motivo.
Também é preciso trabalhar, com todos da escola, que a existência de regras e limites é
essencial na vida comunitária; sem eles, não poderíamos conviver de forma adequada.
16. Que a escola seja um espaço de envolvimento de toda a comunidade em diversas
atividades de caráter educacional, realizadas de forma adequada, de maneira a refletir a
realidade comunitária e a garantir a freqüência dos alunos. Há vários recursos que auxiliam
para que o nível de freqüência seja elevado e o de evasão seja diminuído.
17. Que a escola possa organizar um sistema de co-responsabilidade, envolvendo
todos os alunos na realização de atividades práticas e concretas do cotidiano escolar,
garantindo o compromisso comunitário e o desenvolvimento da cidadania. Há diversas tarefas
e atividades na escola que poderiam ser desenvolvidas pelos alunos, individualmente ou em
equipes. Por exemplo: seria extremamente educativo que equipes de alunos se revezassem na
limpeza das salas de aula, pátios e demais espaços da escola, o que, seguramente,
proporcionaria um cuidado melhor de todos na conservação da limpeza. Há diversas
atividades que trariam excelentes resultados em termos de educação, entendida de forma
realmente integral, e que possibilitariam, inclusive, um maior comprometimento mútuo dos
alunos e familiares entre si e com a escola.
18. Que a escola seja construída e constituída de um espaço físico adequado ao seu
contexto, com todos os recursos materiais necessários à realização de suas atividades e à
garantia de aprendizagem. O ambiente escolar deve ser acolhedor e devidamente adaptado à
realização de suas atividades.
19. Que a escola possa construir, comunitariamente, um perfil esperado ou código de
conduta para pais, alunos, professores e demais agentes escolares, como sinalizador do ideal
de pessoas que se espera ou se deseja que a educação possa ajudar a construir. Este princípio,
assumido pela comunidade escolar, tem um caráter extremamente prático e reflexivo. Para
168
estabelecer este código, é preciso refletir sobre o que se é e sobre o que se quer ser, o que
implica um forte sentido de reflexão, inclusive de caráter filosófico.
20. Que a escola tenha uma definição clara e precisa das responsabilidades e funções a
serem exercidas pelos professores, coordenadores e diretores e que essas competências sejam
avaliadas sistematicamente pela comunidade escolar, no sentido de garantir a qualidade dos
serviços educativos prestados. Evidentemente, uma pessoa não pode ser definida pela função
que executa; mas, no processo educativo, é importante deixar claro para todos os envolvidos
quais são as competências e os limites de atuação de cada um.
21. Que a escola estabeleça os critérios e as exigências para a admissão de alunos,
assegurando os direitos da escolarização universal, mas também evidenciando e exigindo que
os alunos e seus pais cumpram os deveres decorrentes dessa escolarização. Admissão não
significa freqüência, por isso a comunidade escolar precisa trabalhar de maneira a garantir que
todos estejam sempre presentes em todas as atividades previstas.
22. Que a escola adote critérios claros e objetivos para o agrupamento de alunos em
classes, turmas, projetos e/ou atividades, sem posturas preconceituosas ou excludentes,
sempre levando em consideração a pessoa do aluno e sua evidente capacidade de
aprendizagem. Este agrupamento deveria ser feito todas as vezes que o processo educativo
assim o exigisse.
23. Que a escola garanta um mínimo de aprendizagem em cada nível de ensino
adotado, possibilitando ao aluno que avance somente se esta prerrogativa for atendida, ou
seja, se atingiu os objetivos ou adquiriu as competências, habilidades ou pré-requisitos para o
nível subseqüente. Evidentemente, com o volume de conhecimento com que La Salle
trabalhou, isto era muito mais fácil. Hoje em dia, seria necessário estabelecer um mínimo e
garantir que este mínimo seja atingido.
24. Que a escola e toda a sua comunidade, principalmente o próprio professor, tenham
consciência de que um bom trabalho docente depende da qualidade profissional, mas também
do compromisso ético e afetivo com os alunos, com o próprio trabalho e com a intrínseca
missão de humanização que lhe é característica.
25. Que a escola possa contar com a atuação de profissionais que tenham sido
formados de maneira adequada, que tenham qualificação específica para o nível em que
atuam, e que tenham a possibilidade e o dever de continuar em processo de formação e
qualificação ao longo de toda a sua atuação.
26. Que a escola possa contar com um grupo de professores que tenham a preocupação
de trabalhar, pessoal e grupalmente, no crescimento sadio e equilibrado de sua personalidade,
169
expressando seus sentimentos de forma adulta e possibilitando aos alunos a compreensão de
sua plena humanidade.
27. Que a escola, como construção física, possa abrigar uma comunidade de pessoas
que se integram e interagem para o crescimento de todos, formando uma família de famílias
que se respeitam e que buscam objetivos comuns. Esta noção de família, com toda sua carga
afetiva, sem dúvida, poderia proporcionar um ambiente mais adequado às relações que se
estabelecem na escola.
À margem destes princípios, posturas ou procedimentos, bem como das sugestões
colocadas, saliento uma importante limitação que, de certa forma, determinou o conteúdo
desta pesquisa e que, portanto, dá margem ao aprofundamento, sob outros enfoques, da obra
lassaliana.
O forte acento na dimensão religiosa da obra de La Salle limita, em vários aspectos, o
estudo de sua experiência educativa. Reduzido a uma visão marcadamente teocêntrica,
católica, ascética e em pleno processo de Contra-reforma, La Salle só pode ser estudado a
partir desta sua realidade. Tinha consciência de tal limitação, já evidenciada na introdução
deste trabalho. Entretanto, acredito que, dentro do objetivo de estudo proposto, pudemos
responder à questão colocada em princípio. O Guia das Escolas de La Salle não pode ser
transposto para a nossa realidade; somente é possível considerar e adaptar alguns de seus
princípios, conforme apresentado.
Concluindo, retomo a observação com a qual abri este trabalho: qualquer estudo sobre
a Educação deve levar em conta que, ao longo da História, há muitas contribuições. Nenhuma
delas pode ser tomada como definitiva e abrangente; nenhuma delas pode ser considerada de
forma pura e aplicada, como tal, às realidades concretas de nossos sistemas de ensino atuais.
Da mesma forma que não existem pessoas exatamente iguais, não me parece ser
possível utilizar uma única corrente, escola ou teoria pedagógica para todas as pessoas. La
Salle teve e tem uma contribuição a dar, que pode ser significativa em alguns casos, e
inadequada em outros.
Em educação, os limites sempre existem. Que também sempre existam, por parte dos
pesquisadores em educação: a ilimitada dedicação a fazer avançar a ciência; a consideração
devida aos corajosos pesquisadores e educadores do passado – como La Salle, dentre tantos
outros – que contribuíram para melhorar o ensino; e a vontade de sempre buscar uma
educação mais democrática, mais efetiva, mais afetiva, enfim, mais humana.
170
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MORIN, Edgar; CIURANA, Emilio-Roger; MOTTA, Raúl Domingo. Educar na era
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POUTET, Yves e PUNGIER, Jean. La Salle e os desafios de seu tempo. Trad.
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SAUVAGE, Michel y CAMPOS, Miguel. Juan Bautista de La Salle. Anunciar el
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aprendendo.
Como
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VIEIRA, Alexandre Thomaz. Gestão Educacional e Tecnologia. São Paulo:
Avercamp, 2003.
178
Anexo 1 – Proposta Educativa Lassalista da Província de Porto Alegre
1. Fundamentos Lassalistas
1.1. Introdução
Como integrantes da Província Lassalista de Porto Alegre, Irmãos e Colaboradores
Lassalistas, queremos ser fiéis a Deus que nos criou e nos mantém em e por seu amor.
Queremos ser criativamente fiéis à verdade profunda que existe em cada um, tanto a nível
pessoal quanto comunitário, bem como à missão que nos foi confiada por Deus. Buscamos
construir o Reino de Deus, exercendo cristãmente nossa missão educativa em todas as
instâncias e estruturas organizacionais. Por isso nos constituímos em Comunidades Religiosas
e Educativas renovadas, alicerçadas numa vida cada vez mais integral e integradora, e
dinamicamente organizadas em vista do cumprimento de nossa missão. Este texto é uma
fundamentação para a ação lassalista. Seu conteúdo define nossa compreensão de pessoa e de
educação, a partir da qual definimos nosso modo de ser presença libertadora na sociedade,
lugar onde atuamos e onde se realiza nossa vocação individual e comunitária de construir o
Reino de Deus.
1.2. A Pessoa
1.2.1. Aspectos Gerais
Nossa fé nos recorda a importância da pessoa no mundo, especialmente por ser criada à
imagem e semelhança de Deus. Esta importância que Deus dá à pessoa nos mereceu a
Encarnação do Filho de Deus, Jesus Cristo. Procurar viver e configurar as pessoas a Jesus
Cristo é uma das tarefas básicas de toda verdadeira e completa humanização. Esta concepção
de pessoa orienta nosso enfoque, e dela decorrem nossas opções de educação cristã. Olhar a
pessoa como Deus a criou e dialoga com ela, nos coloca em contato com características mais
estáveis, tais como a sua vocação ao transcendente, a capacidade de dialogar com Deus e estar
com Ele, a unidade nos níveis físico, psíquico e espiritual, a importância de saber amar com
todo o coração, com toda a mente e com todas as forças. Define também nela elementos de
eternidade. Não olhá-la com estas características de estabilidade e eternidade, pode levar a
supervalorizar o fenômeno circunstancial, e a pensar que qualquer interferência repercute
decisivamente no conjunto da pessoa. Importa, portanto, centrar a atenção naqueles aspectos
mais globais e estáveis. Todos, individual e comunitariamente, temos acesso uns aos outros.
Este acesso está ligado ao próprio ser das pessoas, e ao modo pelo qual, na comunicação,
interferem e interagem mutuamente. É a participação e o compromisso mútuo na
179
humanização. Na pessoa considera-se o seu conteúdo e o seu processo. O conteúdo é aquilo
que caracteriza seu ser enquanto imagem e semelhança de Deus. Os processos são a dinâmica
relacional usada para viver e expressar o conteúdo. Em geral captamos mais diretamente o
processo que o conteúdo. Em questão de prioridade, importa estar mais atento ao conteúdo.
Os conteúdos e processos são usados na experiência humana, seja na organização estrutural,
seja no ambiente, seja na construção do conjunto das variáveis para se ter uma individualidade
autônoma, dentro da visão cristã. Os conteúdos e os processos precisam ser vistos e vividos de
forma harmônica, hierárquica, coerente, abrangente e interdependente. Todo relacionamento
humano envolve o conjunto da pessoa de forma mais significativa ou menos significativa;
atinge mais o todo da pessoa ou mais alguma parte dela. As intervenções numa parte precisam
sempre ter presente o conjunto unitário dela.
1.2.2. Unidade em distintos níveis
Em qualquer encontro com a pessoa percebemos que ela se expressa como um todo, e atinge o
todo do outro. Nossa visão de pessoa, concebe-a constituída em três níveis: físico, psíquico e
espiritual. Nosso processo educativo tem isto presente, de forma implícita ou explícita. Há
uma experiência corporal, uma dimensão física na pessoa. Ela tem um corpo com uma
identidade masculina ou feminina. Estas características e suas conseqüências são conhecidas,
bem como as possibilidades e limites decorrentes da idade, da saúde... Ela tem suas leis e sua
importância no conjunto da pessoa. A co-responsabilidade, a liberdade pessoal, bem como o
sentido transcendente da vida repercutem na forma pela qual se trata e valoriza o corpo. No
processo de comunicação usa-se mais o nível psíquico, ou seja, a capacidade de perceber,
sentir, compreender, querer, julgar, interagir, criar senso coletivo... Esta dimensão humana
tem abrangência maior que a física, e se orienta muito pelo significado dos conteúdos
envolvidos, sejam eles idéias, valores, pessoas ou relacionamentos. Existe uma conexão entre
o sentimento geral e o sentido global da vida, e as formas pelas quais as pessoas usam e vivem
a sua dimensão psíquica. Neste nível se situa o processo de liberdade, participação, integração
e consciência. Quando olhamos a pessoa a partir do sentido existencial último, entramos em
contato com a dimensão espiritual, que existe e que caracteriza a realidade humana, toma o
próprio Deus como modelo do ser e do agir. Esta dimensão inclui a busca de um sentido para
a vida, a vivência religiosa, o diálogo com Deus, o sobrenatural... Tudo, em última análise,
tem a ver com o nível espiritual. Esta aproximação orienta direta ou indiretamente, a saúde
global da pessoa e dos grupos. Este nível determina a qualidade dos conteúdos dos outros dois
níveis, bem como a forma de configuração deles. Por isso, uma intervenção profunda nele tem
180
repercussões mais fortes nos outros dois do que se viesse de um deles. A educação cristã
privilegia o terceiro nível e, a partir dele, escolhe os conteúdos e processos educativos: modo
de valorizar a dimensão física, os conteúdos intelectuais, os modelos de relacionamento, os
conteúdos de conscientização, o conceito de liberdade, a participação responsável...
1.2.3. O ser e o agir humanos e as três potencialidades
A pessoa expressa seu ser em seu agir. Nesse processo atuam três potencialidades, três
atividades de nível psíquico e/ou espiritual: afeto, inteligência e vontade. O afeto compreende
as forças emotivas e sentimentais. A inteligência é a compreensão e interpretação dos dados
em questão. A vontade é um posicionamento diante do afeto e da compreensão. Estas
potencialidades compõem o conjunto de aspectos usados quando se trata com a realidade. Por
natureza intrínseca elas têm ou deveriam ter uma coerência interna. Mas não é isso o que
necessariamente acontece. Elas têm sua unidade qualitativa no amor. Por isso, nunca se
esgotam as palavras conhecidas: “Amar a Deus de todo o coração, de toda a mente, de todas
as forças, e ao próximo como a si mesmo”. Existe uma certa ordem cronológica nestas três
potencialidades, já expressa na forma de elencá-las. As pessoas, em geral, têm acesso à
realidade externa através de fatos, idéias, experiências..., e o primeiro impacto se dá na área
emocional, que inclui as experiências anteriores acumuladas, guardadas na memória afetiva.
A mediação se dá através do físico e do psíquico. A partir do conteúdo acumulado de natureza
afetiva, cognitiva e hábitos de comportamento (memória afetiva), somado à realidade nova,
cada pessoa elabora uma compreensão, uma interpretação do significado da realidade atual
para o todo da pessoa. Esta interpretação desemboca num posicionamento, numa decisão,
numa conclusão para o presente e para o futuro. Esta elaboração interna é importante
enquanto conjunto, e enquanto cada um dos elementos intervenientes. Por isso, convém dar a
devida importância a uma profunda, verdadeira e integrada formação do afeto, da inteligência
e da vontade para um são equilíbrio das pessoas e dos grupos. A dinâmica das três
potencialidades acontece no nível psíquico e espiritual, no consciente e no inconsciente.
1.2.4. A Pessoa como ser-em-relação
A pessoa é um complexo de formas de comunicação, à imagem do Deus que a criou. Deus é
comunicação consigo mesmo, na Trindade, e com a humanidade, por seu Filho e outras
formas de revelação. O fato, em si, de se comunicar, bem como os processos de comunicação,
as formas criativas e diversificadas de realizá-lo, o equilíbrio afetivo, o espiritual, a
felicidade... dependem muito do êxito nos relacionamentos. A compreensão de pessoa implica
181
estender seu limite até incluir nela o outro e o processo usado para interagir com ele. A
comunicação sempre acontece no consciente e/ou no inconsciente, e nos três níveis. Importa
ver a sua qualidade, bem como o seu conteúdo dentro de princípios e de óptica
transcendentes. A pessoa pode relacionar-se consigo, com Deus, com outro ser humano, com
a natureza. A complexidade destes relacionamentos explica por que de tempos em tempos um
destes conteúdos objetivos (Deus, eu, homem, natureza) é descurado e depois novamente
retomado, muitas vezes, de forma intensiva. Em geral, usa-se mais uma das três
potencialidades, em detrimento de outra ou das outras. Estas, posteriormente, reaparecem com
insistência maior. O mesmo acontece com os distintos níveis da pessoa. E, mesmo dentro de
cada nível, no físico, por exemplo, pode-se privilegiar um aspecto e descurar outro. É o
processo histórico-dialético inerente ao ser e ao agir humano. Por isso, a necessidade de uma
vigilância permanente na educação sobre os diversos aspectos da pessoa, para que se
desenvolva e viva com equilíbrio. Através deste complexo relacional, a pessoa expressa o seu
interior positivo ou negativo: - Positivo, quando usa aspectos de vida, de liberdade, de
solidariedade, de consciência, de integração, de busca da verdade para si e para os outros, de
responsabilidade, de respeito, de confiança... Estas e outras similares são características das
distintas formas de expressão do amor. - Negativo, na vivência de experiências e processos
que revelam o desamor: ignorância, dispersão, utilitarismo, hedonismo, egoísmo, exploração,
alienação, injustiça..., todas formas que impedem ou dificultam a salvação, entendida como
promoção integral da pessoa nos níveis físico, psíquico e espiritual. A partir desta expressão
de amor e de desamor se organiza um conjunto de aspectos que se fazem perceber nos gestos,
no tipo de gostos, nas expressões afetivas, na forma de organizar o ambiente, no tipo de
escolhas musicais e artísticas, nos valores e preferências... Este conjunto revela a motivação
central para o crescimento ou para a diminuição da dignidade humana. São os processos
simbólicos. O conteúdo do amor e de desamor interfere nas formas de elaborar e organizar os
conteúdos da comunicação, as preferências, os posicionamentos existenciais decorrentes de
uma determinada filosofia de vida... Este complexo abrange a totalidade da experiência
humana e também é uma autodefinição da pessoa, bem como um projeto que envolve a
estrutura, o sistema educacional e formativo. Ele se presta para a elaboração de enfoques
existenciais e filosofias de vida, de estruturas, de teorias educacionais... e indica pistas
metodológicas para elas.
182
1.2.5. Identidade Lassalista
A pessoa se constitui como tal a partir de uma identidade própria: ser ela mesma. Isto
significa ter criado um senso justo de autonomia, um limite claro entre o eu e a realidade
externa, uma interação harmoniosa com o mundo circundante, sem dominá-lo, sem deixar-se
dominar por ele, mas vivendo em interdependência com ele. A identidade requer ter
conhecimento suficiente sobre si mesmo, e boa auto-aceitação. Requer maturidade nos
relacionamentos afetivos, e experiências exitosas em aspectos profissionais, ideológicos, em
processos de comunicação com iguais, superiores e subordinados. Significa ainda ter
adquirido um bom e saudável senso de pertença a uma instituição ou a uma família. Para nós,
lassalistas, a identidade significa estar existencialmente satisfeitos, por pertencer a um grupo
que, inspirado em São João Batista de La Salle, têm uma consciência clara das próprias raízes
culturais e religiosas; assume a fé como princípio inspirador de vida e a fraternidade como
ideal evangélico; se empenha, através da educação humana e cristã, para que todos cheguem
ao conhecimento da verdade e sejam salvos; e procura viver uma dinâmica de integração
através da participação, da construção de uma liberdade responsável e inserida na realidade
atual.
1.2.6. Jesus Cristo, protótipo de pessoa
Deus criou o homem e a mulher por amor, e os criou à sua imagem e semelhança. Para
compreendê-los bem, olhamos para a Trindade, um Deus em três Pessoas que possuem
identidade própria, com uma profunda comunicação entre si. Olhamos, sobretudo, para Jesus
Cristo. Sua pessoa e sua mensagem são profunda revelação não só sobre a Trindade, mas
sobre nós mesmos. Ser como Ele e ter sua forma de agir e suas preferências e processos de
comunicação constituem-se no desafio e na meta da pessoa humana. Jesus é o referencial para
o ser, o viver e o relacionar-se. Em seu ser, viver e agir descobrimos e conhecemos um
conteúdo e um método. Ele conhece a realidade humana. Suas intervenções sempre são
salvíficas, verdadeiras, abrangentes e integradoras. Sua atenção sempre está em fazer e dar a
conhecer a vontade do Pai. Preocupa-se em anunciar um Reino que é salvação integral.
Conhece a unidade da pessoa, intervém em seu físico, psíquico e espiritual. Questiona
sentimentos, dados intelectuais e decisões e ações. Ele tem objetividade ao falar da realidade.
Mostra o positivo, o limite, as possibilidades e alternativas de transformação daquilo que
precisa mudar. Suas insistências são sobre a verdade, a importância de fazer a vontade do Pai,
de amar profundamente a Deus, a si mesmo e ao próximo, de mudar o coração para mudar a
183
estrutura. Em síntese, sua pessoa se nos apresenta como um conteúdo antropológico, bem
como um caminho de verdadeira humanização.
1.3. Educação
1.3.1. Formação e Educação
A formação abrange o conjunto e cada um dos diferentes aspectos da pessoa. Enfatiza mais
alguns aspectos do que outros, dependendo isto da visão antropológica assumida. A formação
considera a pessoa em si mesma e em seus relacionamentos. Tem presente a continuidade, a
realidade da não-plenitude, a possibilidade e a necessidade de sempre crescer mais. Tem
presente tanto as experiências positivas quanto as negativas. Disto decorrem alguns
conteúdos: a construção da pessoa dentro de uma identidade a partir de certos referenciais
duradouros, os valores; a qualidade e a quantidade dos relacionamentos a serem criados,
reforçados ou corrigidos; a realidade circundante em suas múltiplas manifestações. Estes
conteúdos da formação podem ser expressos como objetivos, como metas, como programas...
A idéia original de educação se aproxima do conceito de formação, enquanto processo de
desenvolvimento da originalidade de cada qual, acrescido das experiências acumuladas da
cultura, e da realidade atual, em vista de uma presença mais significativa na sociedade do
presente e do futuro. A isto nós ainda acrescentamos aspectos específicos do carisma
lassalista. Esta opção é mais ontológica que fenomenológica, ou seja, está mais ligada aos
aspectos estruturais da pessoa descritos acima, que aos elementos externos e passageiros; é
mais antropológica do que circunstancial. A educação quer ser mais do que cultivo da
inteligência, mais que ajustamentos sociais. Quer ser uma formação humana e cristã de
qualidade, a partir do fundamento e referencial de todo empreendimento humano e cristão:
Jesus Cristo. Esta experiência de uma identidade cristã em conteúdos e processos, tanto
individuais quanto comunitários, é estruturada, organizada e partilhada com aqueles que ainda
estão longe da salvação, dentro dos distintos níveis e aspectos da pessoa. Inserida na realidade
atual, a educação lassalista é processo contínuo e progressivo de crescimento das pessoas em
comunidade. Disto decorre o princípio de que a pessoa, respeitada sua dignidade e sua
individualidade diferenciada, ocupa lugar central na ação educativa lassalista. Neste prisma se
compreende nossa opção de realizar uma séria e responsável educação humana e cristã,
inspirada em Jesus Cristo, sua pessoa e seus valores, formando pessoas com características
tais como: consciente, livre, responsável e solidária, participativa e aberta ao transcendente,
em vista da construção do Reino de Deus. A Comunidade Educativa quer ser um sinal da
184
presença do Reino, bem como o testemunho da possibilidade real de construir uma cultura de
inspiração cristã.
1.3.2. Educação e Formação Integral
Todo processo educacional inclui uma teoria, uma cosmovisão de pessoa. Esta cosmovisão
pode estar mais próxima ou menos próxima de uma visão cristã. Os efeitos finais do processo
educativo dependem, em grande parte, dessa cosmovisão e das metodologias decorrentes. A
educação lassalista aceita que a pessoa é uma unidade com três dimensões e três
potencialidades, e que é influenciada por seu passado e pelo mundo circundante. Valoriza,
portanto, todos os dados da realidade e não apenas os imediatos e utilitaristas. A educação
lassalista atinge a dimensão física do educando, dentro de critérios éticos cristãos, sobretudo
naquilo que se refere à aceitação e ao respeito profundo de sua individualidade física, de sua
identidade corporal e da dos outros. Inclui o respeito à dimensão material do mundo, o
diálogo sempre mais aperfeiçoado com a matéria. No nível psíquico, ela valoriza os
relacionamentos humanos, a liberdade, a fraternidade, a participação e a consciência
responsável. Valoriza o cultivo da inteligência com conteúdos significativos para o conjunto
da pessoa e da humanidade. Promove uma expressão afetiva segundo a capacidade real, a
cultura e os valores cristãos, a concretização humana do Reino de Deus, tanto no aspecto
pessoal quanto no comunitário. Incentiva a participação e o engajamento responsável através
de decisões que melhorem e humanizem a presença de cada educando e de cada educador
dentro da Comunidade Educativa e na sociedade. A educação lassalista privilegia a dimensão
espiritual da pessoa, sua abertura ao transcendente, seu diálogo com Deus, a busca de sua
vontade, a adesão à pessoa de Jesus Cristo, à sua mensagem e a seu estilo de vida. Manter
viva e atualizada a vontade salvífica de Deus através da mediação da educação cristã significa
construir a fraternidade universal, buscar um sentido existencial amplo e concorde com a
vontade de Deus, expressa em variadas formas. A educação lassalista zela pelos conteúdos e
pelos processos coerentes que construam a verdadeira identidade humana, através do
desenvolvimento harmônico do afeto, da inteligência e da vontade, em unidade, a partir e para
o amor.
1.3.3. Educador e Educando - uma Missão Comum
A educação é um caminho e um processo dialético com interação educador-educando. A um
tempo, todos são, de alguma forma e sob algum aspecto, educadores e educandos. O
educador, cuja responsabilidade consiste em transmitir sabedoria aos que se iniciam no
185
processo de humanização, recebe também a contribuição dos educandos. Estes lhe oferecem
indícios e subsídios que lhe fazem sentir a necessidade de uma contínua renovação, de uma
abertura ao novo, de uma escolha ética dos conteúdos e experiências para a realização da
educação cristã. Para ser mediador da sabedoria na vida pessoal, familiar, eclesial, social, o
educador necessita de uma sólida formação na linha de uma maturidade cada vez maior em
todos os aspectos significativos da pessoa. Educador e educando, no processo da educação
cristã lassalista, desenvolvem e vivem uma missão comum: chegar ao conhecimento da
verdade e, seguindo-a, alcançar a salvação. O comunitário é dimensão intrínseca da missão
educativa lassalista, assim como também é uma das características do Reino de Deus, que
construímos aqui e agora. A constituição em Comunidades Educativas favorece e requer a
união, a participação, a integração de todos para manter viva a missão lassalista de salvar o
homem de hoje, o jovem e a criança, sobretudo os novos rostos dos pobres, nos diferentes
níveis e potencialidades humanas.
1.3.4. Estrutura a Serviço do Reino
A experiência se consolida quando se estrutura. A estrutura protege, preserva e promove a
experiência quando se mantém em conexão íntima com o cerne desta. Neste sentido, a
estrutura é posterior, mas indispensável. É nesta perspectiva que se compreende a organização
das Comunidades Educativas, dos processos de educação com lugar, horário, calendário,
previsão econômica, formas de administração... Uma estrutura educacional cristã é realista,
atenta à legislação pertinente, fiel à especificidade e aos objetivos da escola. Ela está a serviço
do Reino de Deus na medida em que parte dos princípios e valores específicos deste e tenta
desenvolver, no aqui e agora, as experiências que garantam a vida. Sua qualidade está ligada à
sua capacidade de autêntica humanização. Por isso, nos organizamos em Comunidades
Educativas, com visão integral da pessoa, e com atenção aos valores evangélicos, em todos os
setores que a integram.
1.4. Sociedade, Igreja, Instituto
1.4.1. La Salle Hoje
Desde o início do Instituto, São João Batista de La Salle renovou a escola para torná-la
acessível aos pobres e propiciá-la a todos como sinal do Reino e meio de salvação. Realizou
esta renovação a partir de uma dupla contemplação: da realidade ambígua - com sinais do
efeito do pecado e da graça, do amor e do desamor - e da vontade salvífica de Deus,
realizando sua justiça. Hoje, o Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs quer manter o
186
equilíbrio nesta tensão entre o estar no mundo e, ao mesmo tempo, estar aberto ao
transcendente teocêntrico. Realizar isto requer um compromisso com a realidade social e
eclesial, bem como com a dimensão de transcendência dentro desta mesma realidade. O
espírito de fé ajuda a ver todas as realidades a partir de Deus e de seu plano salvífico, a
atribuir tudo a Deus e a tudo fazer em vista de Deus. Ajuda também a superar o egoísmo, a
exploração..., a ultrapassar a ambigüidade dos relacionamentos, e a purificá-los em suas
motivações. Esta contemplação, em Deus, da realidade necessitada de salvação, leva ao zelo
ardente e a engajar-se ativa e decididamente na promoção humana integral. Nosso
compromisso consiste, portanto, em conformar a realidade existente àquela desejada e
preconizada por Jesus Cristo: um reino de fraternidade, onde todos são um, onde todos são
irmãos, onde um e mesmo Pai é o de todos.
1.4.2. Fidelidade Criativa
A grande finalidade da missão lassalista é proporcionar o acesso à salvação integral. A
fidelidade consiste em aproximar cada vez mais a realidade da intenção original de Deus ao
criar o mundo; em manter os valores evangélicos; em respeitar a verdade sobre o homem em
sua realidade ontológica e histórica, em sua totalidade e em suas formas particularizadas. A
criatividade consiste na atenção às novas situações sociais e eclesiais; no discernimento dos
sinais dos tempos; na sensibilidade para novos problemas, novos anseios, e novas conquistas
de humanização; na busca de respostas eficazes frente aos novos desafios, de novas maneiras
de expressão e novas formas motivadoras; na determinação de novos objetivos e programas, e
na utilização de novos métodos no campo da educação. A pessoa vive em sociedade. Pessoa e
sociedade têm uma e mesma vocação última: ser uma expressão do Reino de Deus. De um
lado, a formação da pessoa consciente, livre e responsável, integrada, participativa e aberta ao
transcendente... é forma de construir a sociedade. De outro, a constituição de uma sociedade
comprometida com o bem comum de todos, com uma estruturação e administração
evangélico-libertadoras..., incide também numa promoção de todas as pessoas e da pessoa
toda.
1.4.3. Educação num Mundo em Mudança
A realidade atual nos coloca em contato com uma nova ordem social, com uma nova postura
filosófica e histórica. Esta situação reforça a consciência de ser artífice e protagonista da
história, com a responsabilidade que dela decorre; permite maior subjetividade e
individualidade, com possibilidade, porém, do desenvolvimento apenas parcial dos
187
protagonistas; produz modificação na hierarquia dos valores sociais, bem como nas variáveis
humanas envolvidas nessa realidade. O mundo de hoje nos coloca em contato com uma certa
auto-suficiência antropológica, com a construção de um mundo autônomo sem clara relação e
estruturação da dimensão transcendente teocêntrica. Isso beneficia a valorização do relativo,
da transitoriedade dos valores, das opções e dos compromissos. Tal forma de ver e viver
proporcionou a liberação de condicionamentos estruturais, e desenvolveu uma atitude de
carência, valorizou o subjetivismo na busca de satisfação e gratificação dos desejos,
sentimentos, aspirações e lacunas percebidas em algumas áreas e dimensões da pessoa. Entre
as conseqüências disso está a tendência a uma difundida e sentida passividade e agressividade
em vários setores sociais, geradoras, inclusive, de uma certa decepção, depressão, indiferença,
vazio de sentido. Paralelamente, constatam-se: uma consciência do valor da individualidade
pessoal; a busca de igualdade de dignidade; a sensibilidade ao meio ambiente; a melhor
percepção da pessoa dentro de uma totalidade; a recuperação da dimensão espiritual. A
educação integral se defronta com a fragilidade de sustentação da dimensão espiritual em
favor da supervalorização da dimensão corporal e psíquica, tanto a nível pessoal como
coletivo. Os reflexos disso se fazem sentir em todas as formas de expressão da pessoa
humana, em todos e em cada um dos níveis e em todas e em cada uma das potencialidades.
Diante desta nova realidade se faz necessária uma nova ordem moral e ética: ética de
solidariedade e de responsabilidade, a partir da vocação transcendente à qual todos somos
chamados.
1.4.4. Processo de Diálogo Permanente
Uma sociedade pluralista, que facilita as expressões mais diversificadas nos diferentes níveis,
tanto pessoal como comunitariamente, requer uma profunda capacidade de diálogo para
administrar as diferenças e as divergências, não sincrética e complacentemente, mas
dialeticamente. Todas as manifestações diferenciadas são expressões humanas e em sua
intenção e/ou forma manifestam ou recuperam aspectos humanos. O discernimento em suas
diferentes formas e níveis ajuda a manter o equilíbrio dinâmico e a vigilância evangélica
diante dos fatos e da realidade. Há séculos, a educação e a sociedade se interpenetram. Desde
séculos, a dupla contemplação da realidade a ser salva e do desígnio salvífico de Deus
mantém o processo dialético de crescimento. Estabelecem-se as várias instâncias de diálogo
entre fé e cultura, entre razão e experiência (vida), entre pessoa e grupo, entre processo
educacional e sociedade. Nossa contribuição na construção da sociedade e do Reino de Deus
nós a damos através da educação humana e cristã de qualidade nesta parcela da sociedade, da
188
Igreja e do Instituto que é nossa Província, constituída por Comunidades Religiosas e
Educativas. Esta nossa forma de realizar e construir o Reino de Deus envolve todas as forças e
todos os aspectos de nossa vida e missão, tanto a nível pessoal quanto comunitário.
2. São João Batista de La Salle
2.1. Contexto Educacional
A vida de São João Batista de La Salle (1651-1719) coincide, em grande parte, com o reinado
de Luís XIV, cujo governo pessoal começou em 1661 e terminou em 1715. A área da
educação, em toda a Europa e, em especial na França, deixava muito a desejar quantitativa e
qualitativamente. Não havia atendimento direto, por parte do governo, à educação e,
sobretudo, a preparação de professores era improvisada, por falta de instituições com esta
finalidade. A educação do tempo era condicionada particularmente pelas condições sociais,
que privilegiavam as ordens do clero e da nobreza sobre o Terceiro Estado, e pela realidade
religiosa, que fazia com que a presença da Igreja fosse determinante na fixação dos fins,
conteúdos e administração do ensino. Apesar de restrições à generalização do ensino popular,
sobretudo em níveis mais elevados, verificava-se uma corrente de ampliação e melhor
atendimento a ele. Corrente na qual La Salle se integrou de forma saliente.
2.2. Itinerário de La Salle
João Batista de La Salle, filho de família ilustre de Reims, foi beneficiado com boa educação
humana e da fé, e estudos qualificados. Conduzido por Deus e atento à realidade, foi-se
envolvendo com grupo de professores iniciantes e pobres, dedicados à educação das pessoas
menos favorecidas física, psíquica e espiritualmente. Em seu itinerário evangélico, começou a
trabalhar para eles, ajudando-os em sua formação. Depois passou a viver com eles, alojandoos em sua própria casa. Pouco depois, foi morar com eles em casa alugada. E, finalmente,
decidiu-se a viver como eles, desfazendo-se de seu canonicato e distribuindo os seus bens aos
pobres. Nessas condições criou e consolidou o Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs, hoje
conhecido também como Congregação dos Irmãos Lassalistas.
2.3. Intuições Lassalianas
Ao contribuir para a melhoria do ensino popular de seu tempo, La Salle orientou-se por
algumas intuições, a saber:
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2.3.1. Necessidade da Educação
João Batista de La Salle considerava a educação como uma necessidade para a promoção
humana e cristã dos filhos dos artesãos e pobres.
2.3.2. Obrigatoriedade
Advogava a tomada de medidas concretas para que os pais menos esclarecidos não privassem
seus filhos dos benefícios da instrução e da educação.
2.3.3. Pessoas atendidas
A escola de La Salle estava aberta às famílias que a ela recorressem. Mas ele tinha uma
preferência clara e específica: os pobres.
2.3.4. Gratuidade
Para que os benefícios da instrução e da educação fossem realmente acessíveis a todos, sem
discriminação, La Salle considerou como essencial a gratuidade para os alunos, e procurou
garanti-la a todos, buscando, para isso, meios junto a instâncias diversas.
2.3.5. Escola
O instrumento de formação integral de que ele se serviu foi a escola. A concretização destas
intuições ele a realizou em meio a muitas dificuldades por parte de mestres e, inclusive, de
setores eclesiásticos.
2.4. A Escola de La Salle
Para João Batista de La Salle, a escola que ele criou devia ser: cristã, renovada, adaptada,
formadora e fraternal.
2.4.1. Cristã
Para ele, a escola devia ser um instrumento de evangelização, um meio para que o plano
salvífico de Deus se cumprisse nos pobres: “Deus quer que todos os homens sejam salvos e
cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2,4). O objetivo fundamental da Escola era que
o aluno desenvolvesse a fé como visão de mundo – espírito do cristianismo – e como
compromisso de vida – as verdades práticas do Evangelho. Os meios que utilizou para isso
foram: a oração, uma de cujas formas é a prática da lembrança freqüente da presença de Deus;
190
a reflexão no início das aulas e o exame ao final; a catequese; a participação na celebração da
eucaristia e a recepção dos sacramentos; a exercitação nas virtudes cristãs; a presença
educativa e o exemplo pessoal dos mestres...
2.4.2. Renovada
Com organização seqüencial em classes e ordens; criação de ambiente propício, com
valorização do silêncio; equilíbrio entre o emprego do método simultâneo e o atendimento
individual; promoção conforme o ritmo pessoal; participação ativa do aluno, particularmente
pelo exercício de variadas funções e atribuições; iniciação à leitura pelo vernáculo, e
avaliação sistemática.
2.4.3. Adaptada
Com a criação de escolas conforme as necessidades dos alunos: Escola cristã e gratuita para
as crianças pobres; Noviciado para os Irmãos e Seminários ou Escola Normal para os mestres
rurais; Escola Dominical para jovens obrigados a trabalhar durante a semana; Pensionato para
jovens de famílias de posse; Escolas específicas para exilados, para filhos de portuários e para
delinqüentes; conhecimento do aluno (fichas individuais, presença educativa...) e atenção
decorrente às características individuais; currículo em vista das condições concretas da vida
do aluno: catequese, leitura, escrita, cálculo...
2.4.4. Formadora
Oferecendo: Educação integral, desde o domínio de instrumentos culturais básicos até
elementos de preparação para a vida real (ler, escrever, calcular, desenhar...); Educação
integradora, que prepara não só para o domínio das diversas habilidades para a vida, mas que
dá uma unidade, um direcionamento e um sentido a essa vida com as suas variadas
dimensões. E isso pela comunicação de um modo evangélico de sentir, pensar e atuar.
2.4.5. Fraternal
Com clima de respeito às pessoas (mitigação do castigo físico, atenção ao ritmo pessoal...) e
com educadores que se consideram irmãos maiores dos educandos; atuam como sacramentos
do amor de Deus para com seus alunos, marcam uma presença educativa junto a eles, anjos da
guarda, bons pastores; e que equilibram suas relações com o educando, firmeza de pai e
ternura de mãe.
191
2.5. O Educador conforme La Salle
A escola assim concebida, só seria possível com um novo tipo de educador. Formá-lo veio a
ser um dos empreendimentos mais importantes de La Salle.
2.5.1. Ele formou dois tipos de educadores: Os Religiosos (Irmãos), iniciados no magistério
em um Noviciado; e os Colaboradores Lassalistas, preparados em Seminários para mestres
rurais.
2.5.2. La Salle queria que seus mestres fossem profissionais competentes e dedicados inteira e
estavelmente ao magistério; comunitários em seu espírito e vivência; e humana e cristãmente
exemplares. Para ajudá-los em sua formação, supervisionava a iniciação deles no magistério,
nas escolas onde atuavam. E, para orientar, tanto os iniciantes quanto os que já exerciam o
magistério, escreveu, com a colaboração dos seus discípulos mais experientes, um manual
pedagógico: o Guia das Escolas.
2.5.3. Para garantir o estilo da escola que idealizou, procurou infundir em seus mestres uma
alma de apóstolo. Desenvolveu neles uma espiritualidade de educadores, caracterizada pelo
espírito de fé. Pela fé e na fé, o educador lassaliano: a) Discerne a ação de Deus nas pessoas e
na história. b) Descobre a sua própria ação (de ajudar às pessoas a crescerem) como
participação na realização do plano salvífico de Deus, que enviou seu Filho Jesus Cristo, para
que “todos tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10). c) Aceita, portanto, conceber
e viver sua função magisterial como uma vocação (chamado) e missão (envio) de ministro de
Deus e cooperador de Jesus Cristo. d) Esforça-se por vivê-la com zelo, como quem prestará
contas de uma missão recebida. e) Consciente de suas limitações, recorre à oração e se entrega
ao Espírito de Deus. f) Vive a sua experiência pessoal, familiar, social, profissional... numa
dimensão espiritual que a unifica e direciona.
3. Educação Lassalista
3.1. Lassalistas: quem somos e para quem somos
3.1.1. Lassalistas são os Irmãos das Escolas Cristãs e os Colaboradores Lassalistas que a eles
se associam para realizar o ministério apostólico da educação, inspirados na espiritualidade e
na pedagogia de São João Batista de La Salle.
192
3.1.2. Como Lassalistas somos presença de Igreja no mundo da educação e, através desta,
buscamos contribuir na construção do Reino de Deus.
3.1.3. Para nós, a identidade lassalista significa sermos pessoas que integram em si os
distintos níveis e potencialidades que as constituem, e que, vivendo em comunidade: a) têm
consciência das próprias raízes culturais e religiosas; b) zelam pela educação humana e cristã
dos que lhes são confiados; c) vivem seu carisma fundacional como forma de realizar seu
compromisso batismal de cristãos; d) assumem a fé como princípio inspirador de vida, o zelo
como característica apostólica e a fraternidade como ideal evangélico; e) vivem uma dinâmica
de integração através da participação, da construção de uma liberdade responsável e inserida
na realidade; f) desenvolvem um processo permanente de valorização de todos quantos
integram sua missão educativa.
3.1.4. A Escola Cristã é nosso instrumento privilegiado de ação. Contudo, abrimo-nos
também a outras formas de ensino e de educação, adaptadas às necessidades de nosso tempo e
dos lugares onde atuamos.
3.1.5. Os destinatários preferenciais de nossa ação educativa são as crianças, os adolescentes e
os jovens pobres. Ao exercermos nossa missão com adultos e classes mais favorecidas temos
com eles a mesma atenção às pessoas e fazemos a necessária adaptação dos métodos.
3.1.6. Onde atuamos, sempre temos presente a óptica do pobre e a promoção da justiça
evangélica pela educação.
3.2. A Educação que assumimos
3.2.1. Lassalistas, nós assumimos a visão de pessoa e de educação conforme descritos acima
(Fundamentos Lassalistas). Em particular, assumimos: a) Uma educação como processo
integral, progressivo e contínuo de crescimento das pessoas e das comunidades; como forma
de transformação do homem e da sociedade na perspectiva do Reino de Deus; como ação
pastoral de Igreja, realizada à luz de suas orientações; b) Uma educação que tem presente as
mudanças culturais, científicas e tecnológicas, e o meio em que as pessoas vivem, com suas
possibilidades e limites. c) Uma educação que seja um posicionamento crítico diante da
realidade sócio-político-econômico-cultural-religiosa em que vivemos, a partir dos princípios
e valores cristãos. d) Uma educação que seja fundamento orientador de nossa ação educativa,
193
e a concepção da pessoa humana como imagem e semelhança de Deus. e) Uma educação que
privilegie a dimensão espiritual da pessoa, sua abertura ao transcendente, seu diálogo com
Deus e a busca da sua vontade. f) Uma educação que adire à pessoa de Jesus Cristo, à sua
mensagem e a seu estilo de vida.
3.2.2. No conteúdo
a) Consideramos a pessoa humana como objeto central da educação, enquanto constituída em
nível físico, psíquico e espiritual, com uma dimensão afetiva, intelectual e volitiva. b)
Anunciamos, explicitamente, Jesus Cristo, seus valores e sua mensagem, através do ensino
religioso, da catequese, do ambiente cristão, do testemunho e de outras atividades. c)
Facilitamos o acesso existencial e intelectual à cultura: o saber acumulado pela humanidade e
as descobertas atuais. d) Prezamos, acolhemos e participamos da - elaboração de novos
conhecimentos, - valorização das culturas, - evangelização das e pelas disciplinas de estudo.
3.2.3. Em nosso processo educativo
a) Queremos ser fiéis à verdade profunda que existe na pessoa e ajudá-la a formar-se física,
psíquica e espiritualmente, e a crescer, de forma harmônica e unitária, em sua inteligência,
afetividade e vontade. b) Propomo-nos ajudar a desenvolver as pessoas a nós confiadas na
qualidade de seres conscientes, livres, responsáveis e criativos, justos e solidários,
participantes na construção da sociedade e abertas ao transcendente. c) Buscamos realizar a
síntese existencial entre fé, cultura e ciência. d) Na sistemática de nosso agir: adotamos o
processo básico e permanente da ação-reflexão-ação; priorizamos a metodologia participativa
no planejamento, execução e avaliação de nossas atividades; revisamos regularmente os
objetivos, conteúdos e processos à luz da proposta educativa. e) Ajudamos as pessoas a se
orientarem acertadamente em sua vida familiar, social, profissional e religiosa.
3.3. Organização e ação que realizamos
a) Constituímo-nos em Comunidades Religiosas e Educativas organizadas integradamente em
vista da nossa missão. b) Vivemos em comunidade de: fé, experiência de Deus e partilha;
fraternidade, marcada por relações justas com base no diálogo, apoio e colaboração; serviço,
especialmente às crianças, aos jovens e aos mais necessitados. c) Atuamos no interior de
comunidades mais amplas, atentos às suas necessidades e interagindo com elas em
interdependência dialética. d) Adotamos, no exercício da educação humana e cristã, uma
postura consciente e responsável. e) Promovemos a formação inicial e permanente dos
194
agentes de transformação na busca do ideal de La Salle e dos valores evangélicos. f)
Assumimos consciente e responsavelmente estes princípios e posicionamentos, e nos
reconhecemos solidários em sua realização.
Projeto Pedagógico da Província Lassalista de Porto Alegre
Introdução
1. A Sociedade Porvir Científico, assim denominada desde a sua fundação e constituição, em
7 de fevereiro de 1908, constituída por Religiosos do Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs
(Irmãos Lassalistas), da Província Lassalista de Porto Alegre, é uma associação civil de
direito privado, sem fins econômicos, de caráter educativo, cultural, beneficente, filantrópico
e caritativo, que tem por fim especial a educação e assistência social.
2. A Sociedade Porvir Científico mantém, dirige e cria estabelecimentos de ensino em todos
os níveis e modalidades, de sua propriedade, ou dirige e administra outros estabelecimentos a
ela confiados. Tem por missão institucional “promover o desenvolvimento integral da pessoa
e a transformação da sociedade, através da educação humana e cristã, solidária e
participativa”.
3. Somos uma Instituição cristã católica, inspirada em São João Batista de La Salle, o qual,
com um grupo de educadores, iniciou, nos finais do século XVII, na França, uma
Congregação Religiosa dedicada à educação cristã, a qual perdura, até hoje, com o nome de
Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs. Comprometidos com essa história, Irmãos e
Colaboradores Lassalistas1 procuramos atualizar, criativamente, as intuições originais do
Fundador, seguindo sua inspiração, mantendo escolas cristãs eficientes e eficazes, atualizadas,
fraternas e formadoras.
Cenário
4. Vivemos num mundo marcado por um modelo econômico de exclusão e concentração de
renda. Somos uma nação dependente dos países mais desenvolvidos, sofrendo de problemas
internos de autonomia política e econômica. Esta dependência acaba trazendo conseqüências
sociais que se manifestam no desemprego, na exclusão social, na marginalização e no
aumento da pobreza em geral.
195
5. Na sociedade brasileira, percebemos uma variedade de manifestações religiosas e culturais.
Tais manifestações são a expressão das nossas origens e dos nossos desejos. Percebemos que
elas constituem, por um lado, fonte de sentido para a vida e de melhorias para o coletivo da
sociedade, através de valores, como a solidariedade e a participação, mas que, por outro lado,
em muitas situações, são usadas como mediação para a busca de soluções imediatistas e que
pouca repercussão têm sobre o todo da pessoa.
6. A sociedade em que vivemos apresenta-nos algumas características, como uma progressiva
globalização de diversas esferas da atividade humana; aceleração de vários processos
humanos; reordenação do espaço do tempo; biocentralidade2 e interação do ser humano com
as outras formas de vida; crescimento da sensibilidade com relação à pessoa humana e sua
dignidade, com maior consciência e respeito à individualidade e subjetividade; mudanças no
modelo familiar; desvelamento de uma realidade multicultural e surgimento de novas culturas
juvenis; consciência da necessidade de uma nova ética universal da solidariedade; valorização
da educação básica para todos.
7. O atual quadro educacional do país é marcado por acentuadas disparidades regionais e
desigualdades educativas, associadas às divisões de gênero, raça, classe social e grupos
etários. Constituem, também, problemas os altos índices de analfabetismo, a pouca
valorização do educador, seja pelo pouco investimento em sua formação, seja pela baixa
remuneração percebida, fatores que são impeditivos para alavancar processos quantitativos e
qualitativos de nosso ensino em nível geral.
8. Em nossa missão de educadores lassalistas, enfrentamos novos desafios: formar
integralmente, num mundo fragmentado; buscar alternativas de desenvolver, a um tempo, a
criatividade e a solidariedade, num mundo competitivo e empreendedor; formar em valores
humanos e cristãos, num mundo do imediato e do relativo; exercitar linguagens que permitam
a comunicação, num mundo globalizado; fidelizar os educandos; sustentar financeiramente as
escolas.
Proposta Educativa Lassalista
9. Nossa Proposta Educativa Lassalista explicita nossa compreensão de pessoa e de educação,
a partir da qual definimos nosso modo de ser presença libertadora e promotora, na sociedade,
196
no lugar onde atuamos e onde realizamos nossa vocação individual e comunitária de construir
o Reino de Deus.
10. A Sociedade que almejamos e para cuja construção queremos contribuir, através da
educação, é uma sociedade conforme o Plano de Deus, revelado em Jesus Cristo. Uma
sociedade, portanto, organizada em função da pessoa, respeitada em sua condição e dignidade
e ordenada por valores ético-morais. Uma sociedade que vivencie e promova a justiça, a
liberdade, a fraternidade, a solidariedade, a igualdade, a democracia, a participação e o
respeito às diferenças. Uma sociedade em que sejam respeitados os direitos das pessoas aos
bens necessários para uma vida digna.
11. Enquanto instituição da Igreja Católica, desejamos e queremos ajudar a construí-la através
da educação. Uma Igreja sempre mais sinal e construtora do Reino de Deus; comunidade de
amor; presença de serviço e de compromisso com o ser humano; Povo de Deus esclarecido
em sua fé, consciente do seu chamado à santidade e fiel aos compromissos do seu batismo;
participante do diálogo ecumênico e inter-religioso.
Princípios Antropológicos
12. Cremos na pessoa como um ser criado à imagem e semelhança de Deus. Olhamos,
sobretudo, para Jesus Cristo. Sua pessoa e sua mensagem são revelação sobre a Trindade e
sobre nós mesmos. Ser como Ele e ter sua forma de agir e suas preferências e processos de
comunicação constituem-se no desafio e na meta da pessoa humana. Ele é o referencial para o
ser, o viver e o relacionar-se.
13. Concebemos a pessoa como um ser que se expressa como um todo, constituído em três
níveis: físico, psíquico e espiritual; e em três potencialidades: afeto, inteligência e vontade,
que a fazem relacionar-se consigo, com Deus, com outras pessoas e com a natureza.
Compreendemos e tratamos a pessoa como sujeito de seu próprio desenvolvimento. Por isso,
procuramos conhecê-la e respeitá-la, tanto em sua individualidade quanto em suas relações.
14. Temos uma filosofia de vida, uma forma de percebê-la e vivê-la. Possuímos uma
compreensão de mundo, de sociedade, de pessoa. Centramos nossa ação educativa nesta
pessoa, e procuramos educá-la integralmente. Queremos ajudá-la a desenvolver-se em sua
originalidade, acrescida das experiências acumuladas da cultura e da realidade atual.
197
15. Queremos ajudar a educar e formar o ser humano. Uma educação que se caracteriza pela
formação de pessoas conscientes, livres, responsáveis, solidárias, participativas e abertas ao
transcendente, em vista da construção do Reino de Deus.
Princípios Epistemológicos
16. Concebemos o conhecimento como social e historicamente constituído, perpassado por
componentes subjetivos e permeado de intencionalidades, gerando distintos olhares sobre a
realidade.
17. Possibilitamos que o conhecimento seja processo explicativo3, oportunizando ao
educando e ao educador representarem e explicarem as experiências do mundo e de si,
enquanto edificarem saberes científicos - os saberes serão os resultados da contínua
investigação sobre o mundo natural e humano.
18. Possibilitamos que o conhecimento seja construção dialética, oportunizando ao educando
e ao educador construírem suas cognições de várias ordens, numa unidade plural e coerente –
os saberes serão os conjuntos de superações das contradições dos vários conhecimentos
particulares num todo sempre mais unitário e global.
19. Possibilitamos que o conhecimento seja intuição fenomenológica, oportunizando ao
educando e ao educador analisarem e contextualizarem suas intencionalidades de
aprendizagem – os saberes serão expressão da conscientização das intencionalidades
subjetivas que povoam os conhecimentos objetivos no horizonte do mundo da vida.
20. Possibilitamos que o conhecimento seja compreensão hermenêutica, oportunizando ao
educando e ao educador interpretarem e articularem suas vivências como portadoras de
significado nas suas relações consigo e com outrem – os saberes serão compreensão do
sentido existencial de suas ações históricas com outros, no mundo.
21. Privilegiamos, nestes vários modos de produzir conhecimento, ações educativas pautadas
por relações representativas dinâmicas do sujeito com o objeto, através da dialogicidade entre
os agentes construtores de conhecimento; por relações mediadoras de elevação de
informações anteriores a conhecimentos significativos, reconhecidos pelo grupo investigativo;
pela consciência da provisoriedade dos saberes que se constituem e pela pluralidade de
198
compreensão de sentido dos agentes educativos envolvidos, a partir de seus contextos sóciohistóricos, sem abdicar a possibilidade de um sentido transcendente absoluto da vida humana.
Princípios Ético-Morais
22. Concebemos o ato educativo como meio privilegiado de estruturação e realização do agir
ético. Desejamos educar o indivíduo para a responsabilidade pessoal e social.
23. Realizamos o processo educativo de forma a favorecer: a autonomia de cada pessoa
humana; a responsabilidade por si e por suas atitudes em relação aos outros e ao meio em que
vive; o espírito de solidariedade para com a vida, nas suas mais diversas manifestações; o
respeito ao bem comum; a sensibilidade ante a verdade, o bem e o belo; a criatividade e o
espírito inventivo; a aceitação da diversidade de manifestações artísticas, culturais, religiosas,
ideológicas e políticas.
24. Buscamos, através da escola, a inclusão e a integração das pessoas. Em nossa ação
Educativa, atendemos, prioritariamente, aos menos favorecidos economicamente, ou
procurando atuar diretamente com educandos pobres ou formando a consciência social dos
que dispõem de melhores condições financeiras.
25. Em nosso cotidiano, estamos vinculados a uma comunidade cristã e exercemos a vida
cidadã através da articulação de aspectos como: saúde, sexualidade, vida familiar, religiosa,
eclesial e social, meio ambiente, trabalho, política, ciência e tecnologia, cultura e linguagens.
Princípios Teológico-Pastorais
26. Cremos que a pessoa é um ser criado à imagem e semelhança de Deus, com a proposta de
“amar a Deus de todo o coração, de toda a mente, com todas as forças e ao próximo como a si
mesma”.
27. A vida, a prática, a mensagem, as propostas e os valores de Jesus Cristo são os
referenciais de nossa Educação e do ser humano que desejamos ajudar em sua formação para
as decisões e ações. Para nós, Lassalistas, Jesus Cristo é o referencial para o ser, o viver e o
relacionar-se das pessoas.
199
28. Concebemos a pessoa como um ser de relações, consigo mesmo, com Deus, com os
demais seres humanos e com o meio em que vive.
29. A fé em Jesus Cristo compromete-nos a contribuir, através da educação, no crescimento
das pessoas e na transformação da sociedade, na perspectiva do Reino de Deus.
30. Enquanto Lassalistas, assumimos o espírito de fé e zelo como princípio inspirador de vida;
a fraternidade, como ideal evangélico; e o serviço em favor de uma educação humana e cristã,
preferentemente dos pobres, como missão apostólica.
31. Na Comunidade Educativa Lassalista, buscamos viver um processo de “escola em
pastoral”, irradiando um jeito próprio de ser, de viver e de fazer educação, inspirado e
fundamentado na Pedagogia de Jesus Cristo, ao estilo de São João Batista de La Salle.
32. Enquanto cristãos, buscamos respeitar e promover os aspectos referentes ao ecumenismo e
ao diálogo inter-religioso.
33. A educação na fé propõe uma evangelização que envolve o serviço, o diálogo, o anúncio e
o testemunho. Essa educação leva a pessoa a amadurecer sua resposta de fé como opção livre,
responsável e integral por Jesus Cristo. Vivemos uma espiritualidade de comunhão.
Princípios Administrativos
34. Organizamos a Instituição Lassalista para funcionar como Comunidade Educativa, na qual
nos relacionamos numa interação fraterna. Mantemos diálogo continuado entre os setores
pedagógico-pastoral e administrativo.
35. Fomentamos o envolvimento de todos os integrantes da Comunidade Educativa no
planejamento, desenvolvimento e avaliação da vida institucional e na elaboração, vivência e
revisão de seus textos orientadores.
36. Assumimos uma gestão participativa que permite a interação e tomada de decisões, de
forma dialogada e responsável, considerando a Missão, os Princípios e os Objetivos da
Instituição.
200
37. Primamos pela responsabilidade social e administrativa, zelando pelo cumprimento dos
princípios éticos e legais, seja na gestão de pessoas e dos recursos materiais, seja nos
relacionamentos com a sociedade em geral.
38. Buscamos a viabilidade e a sustentabilidade econômico-financeira da Instituição, através
de iniciativas e projetos que garantam sua continuidade e seu avanço, em vista da excelência
educativa.
Princípios Pedagógicos
39. Propomo-nos oportunizar ao educando uma pedagogia que viabilize a produção e a
apropriação do conhecimento, necessário para a compreensão da realidade que o cerca, a
mudança de suas relações com ela, e para que sua intervenção, nela, progressivamente,
alcance níveis mais complexos do desenvolvimento de suas capacidades humanas.
40. Acreditamos na capacidade humana de aprender e de aprender continuamente, e sabemos
que, para o processo de aprendizagem, contribuem, entre outros, os seguintes fatores: a
qualificação do educador, os vínculos afetivos, as relações interpessoais, as mediações
interativas, o respeito às diferenças, a legitimidade do educando, a dialogicidade, o
comprometimento e a significação do ato de aprender, a escuta atenta e o cuidado com o ritmo
e o tempo para as aprendizagens.
41. Reafirmamos a importância de conhecer o educando e conectar-se ao seu percurso
histórico, para que a intervenção pedagógica resgate o desejo, a alegria e o sabor de aprender.
42. Incentivamos e assumimos a participação cooperada entre a escola e as famílias dos
educandos, no processo de desenvolvimento e aprendizagem destes, e no seu modo de
conviver em diferentes contextos sócio-culturais.
Currículo
43. Entendemos por currículo o conjunto das oportunidades e experiências disponibilizadas ao
educando para seu crescimento integral. O currículo é compreendido como um processo
coletivo, discernido em diálogo com todos os segmentos da comunidade escolar, sendo
selecionados saberes, competências, conhecimentos e habilidades.
201
44. Acompanhando as novas concepções pedagógicas, aceitamos ultrapassar a idéia de
currículo como a simples seleção e organização de conteúdos predeterminados.
45. Para estarmos sempre sintonizados com as novas realidades e necessidades, nosso
currículo é objeto de atualização permanente.
46. Tratamos de forma problematizadora o conteúdo de estudo, relacionando-o com interesses
e necessidades presentes e futuras, a fim de torná-lo significativo e intencional para os
educandos.
47. Procuramos ultrapassar a fragmentação e os limites das especialidades, tratando os
componentes curriculares global e integradamente, organizando-os por áreas de
conhecimento, por projetos, por complexos temáticos, e desenvolvendo-os interdisciplinar,
transdisciplinar e transversalmente.
Planejamento
48. Entendemos por planejamento um processo de reflexão, de tomada de decisão sobre a
ação a partir da realidade; processo de previsão de necessidades e racionalização dos recursos,
visando à concretização de objetivos, em prazos determinados e etapas definidas.
49. Na Instituição Lassalista, realizamos o planejamento da Comunidade Educativa, tendo
como grandes referenciais a realidade que nos cerca e os documentos: a Proposta Educativa
Lassalista, o Projeto Pedagógico, o Plano Estratégico, o Regimento Escolar e o Plano de
Formação.
50. Assumimos um planejamento possível e viável e, ao mesmo tempo, prospectivo, que
estabeleça as metas, que defina as estratégias e que organize e estruture da melhor forma
possível os espaços, os recursos e os tempos pedagógicos para facilitar e incentivar as
inovações.
Metodologia
51. Como Instituição Lassalista, proporcionamos às pessoas, respeitando suas peculiaridades e
necessidades, uma educação humana e cristã, participativa e solidária, quanto aos objetivos,
conteúdos e metodologias.
202
52. Realizamos a produção e a apropriação do conhecimento na escola, através das mais
variadas formas de organização curricular, possibilitando a cada pessoa ser sujeito do próprio
desenvolvimento e assumi-lo de forma livre, autônoma e co-responsável.
53. No processo de construção e reconstrução do conhecimento, desafiamos os integrantes das
Comunidades Educativas que pensem, questionem, levantem hipóteses, investiguem e
busquem soluções.
54. Assumimos uma metodologia caracterizada pela reflexão-ação-reflexão. Queremos que a
construção do conhecimento se dê de forma participativa, interativa e dialógica, valorizando o
aprender contínuo. Para tanto, nos propomos realizar um trabalho que promova a cooperação,
o respeito mútuo, a tomada de consciência, o empenho e a prontidão para superar desafios.
55. A partir da proposição desafiadora do ensino como pesquisa, que ocorre no aprender a
aprender, propomos alteração na prática pedagógica da sala de aula. Desafiamos os educandos
a terem espírito investigativo e problematizador. Desejamos inovar e ousar para criar novos
conhecimentos.
Avaliação
56. Concebemos a avaliação como o processo de diagnosticar, acompanhar e controlar,
sistematicamente, a operacionalização do currículo, realizado com a participação de todos os
segmentos da Comunidade Educativa, através de representação.
57. Entendemos a avaliação que abrange dois focos distintos: a Escola, como Instituição, e o
educando, em seu desempenho. Consideramos que a avaliação do desempenho do educando é
diagnóstica, cumulativa, processual e participativa; que ela é o resultado do desenvolvimento
do educando, durante todo o processo ensino e aprendizagem; e que ela pode ser expressa
através de Objetivos, Pareceres, Relatórios, Menções, Notas, de acordo com os critérios
utilizados em cada curso.
58. Em todos os níveis, a avaliação tem função reorientadora. Quando o diagnóstico o indicar,
provocará modificação do e sobre o educando e o educador, e readequação da prática
educativa da Instituição.
203
59. Na Comunidade Educativa, procedemos à avaliação das realizações. Essa avaliação nos
ajuda a identificar e refletir sobre a eficiência e a eficácia de nossa ação educativa e nossos
limites e potencialidades. Serve, assim, de base para melhorar nosso processo educativo e
nossas práticas pedagógicas e para aperfeiçoar e fortalecer nossa instituição.
Perfil do Educador Lassalista
60. No desempenho de nossa função de educadores lassalistas, caracterizamo-nos por sermos
competentes e éticos; zelosos pelo crescimento integral dos educandos; comprometidos com a
Proposta Educativa Lassalista e o Projeto Pedagógico; exemplares para nossos educandos.
61. Desenvolvemo-nos no ensinar e educar, através da formação permanente, da pesquisa e
investigação pedagógica. Nossa ação educativa é focada na aprendizagem, na apropriação e
produção do conhecimento e na formação humana e cristã dos educandos.
62. Em nossa escola lassalista, confessional católica, convidamos os educadores que nela
atuam para assumirem e viverem o magistério na fé, isto é, como uma vocação a que foram
chamados e como um ministério que Deus lhes confia.
63. Na escola lassalista, planejamos e desenvolvemos nossa formação de educadores em
aspectos como: os conhecimentos de nossa área de ensino; os fundamentos teóricos de nossa
ação; a prática dialética entre teoria e ação; a pesquisa; o planejamento, de maneira a
apropriar-nos de metodologias eficientes e eficazes e utilizarmos procedimentos de avaliação
condizentes com a Proposta Educativa Lassalista e do Projeto Pedagógico; nossa qualidade
pessoal, humana, cristã e lassalista.
Perfil do Educando Lassalista
64. Propomos ao nosso educando inspirar-se em Jesus Cristo. Procuramos orientá-lo para ser
e agir de acordo com seus ensinamentos, suas vivências e seus valores.
65. Ajudamos nosso educando lassalista a: conhecer os seus direitos e deveres; exercer seu
papel de cidadão; ter consciência e acreditar na possibilidade de vivenciar um mundo melhor
e, para isso, buscar formas de construir, em comunidade, na escola, em grupos de jovens e/ou
organizações estudantis uma sociedade justa e fraterna; ser espontâneo e participativo, na
constante busca do conhecimento; agir de forma proativa; mostrar-se criativo e voltar-se às
204
ações empreendedoras; envolver-se com atividades próprias da sua idade e preocupar-se com
o bem-estar das pessoas que convivem com ele; valorizar a amizade; assumir seu
protagonismo estudantil e sua mística; incluir o diferente, sabendo acolher e respeitar o outro.
205
Anexo 2 – Proposta Educativa Lassalista da Província de São Paulo
Quem somos
Natureza
A escola lassalista é uma escola católica, orientada pelo Instituto dos Irmãos das Escolas
Cristãs, denominados, também, Irmãos Lassalistas.
Origens
As escolas católicas Lassalistas nasceram em 1680, na cidade de Reims, França, e têm como
seu Fundador São João Batista de La Salle (1651-1719).
Fatos a destacar na vida de La Salle
Família
Pertencente a uma família rica e muito cristã, João Batista de La Salle nasceu em Reims no
dia 30 de abril de 1651 e faleceu em Ruão, em 07 de abril de 1719. Era o primogênito de 11
filhos. Seu pai, Luís de La Salle, era Conselheiro de Luís XIV para a região de Reims e sua
mãe, Nicolle Moët de Brouillet, filha de nobres. Além de La Salle, mais dois de seus irmãos
escolheram a vida sacerdotal e uma das irmãs, a vida religiosa.
Infância e Juventude
Aos 11 anos, João Batista decidiu ser sacerdote. Aos 15, já integrava o grupo de cônegos da
catedral de Reims. Seguiu seus estudos de filosofia e teologia em Reims e em Paris. Aos 21
anos, perdeu o pai e a mãe e assumiu a responsabilidade plena por seus irmãos, irmãs e pela
casa. Continuou, porém, na sua vocação e, com 27 anos, foi ordenado sacerdote.
Inícios da Obra Lassalista
Em 1678, logo depois de sua ordenação sacerdotal, La Salle assume a orientação da
Congregação Religiosa das Irmãs do Menino Jesus, para a educação de meninas pobres,
fundada por seu Orientador Espiritual Padre Nicolau Roland, que acabara de falecer e lhe
pedira este favor. Na escola das Irmãs, La Salle recebe, em março de 1679, a visita do
professor Adriano Nyel, vindo de Ruão, com recomendação da Sra. Maillefer, prima de La
Salle, para estabelecer em Reims escolas para meninos pobres. La Salle dá apoio à iniciativa
de Nyel, mesmo tendo de enfrentar dificuldades com seus familiares, porque passou a alojar
em casa tanto Nyel como os primeiros professores recrutados e que eram de classe social
206
muito pobre. A primeira escolinha foi aberta no dia 15 de abril de 1679, na paróquia São
Tiago. Em 1680, percebendo as improvisações de Nyel, La Salle assume a coordenação das
pequenas escolas e passa a dar-lhes orientação como escolas da Igreja. Preocupa-se
principalmente com a formação dos professores, pois na época nada havia para eles,
recrutados entre voluntários. O sucesso aparece logo e mais escolas são fundadas. La Salle
percebe que, sem uma associação solidamente constituída, a pequena rede de escolas não teria
consistência e continuidade. No dia 24 de junho de 1682, ele deixa a sua família e vai morar
com os professores numa casa alugada e começa a ajudá-los na formação de uma associação
educativa.
Dificuldades e perseguições
Após um certo tempo, alguns dos dez professores sentiram que as exigências da vida
comunitária, em estilo conventual, eram muito fortes para eles e abandonaram a obra. Novos
voluntários, porém, não tardaram a aparecer. La Salle conseguiu deles a adesão a um estilo de
vida e docilidade às suas orientações pedagógicas e espirituais. Assim, em 1684, com doze
dos mais de trinta professores, num retiro de dezessete dias, La Salle estrutura a nova
Associação, que passa a ser denominada Sociedade dos Irmãos das Escolas Cristãs. Os
membros da nova Associação se decidem pela consagração a Deus e fazem voto de
associação para o serviço educativo dos pobres e de obediência à vontade de Deus e às
normas de organização interna da associação. Assumem, então, um estilo de vida próprio,
distinguindo-se tanto dos sacerdotes como dos seculares ou leigos. Dedicam-se integralmente
à vida de oração, à fraternidade entre si e à missão cristã de educar segundo os valores do
Evangelho, prioritariamente os pobres. Desejam testemunhar Jesus Cristo Mestre, totalmente
consagrado ao Pai e à salvação do mundo. A confiança em Deus, a coesão interna do grupo e
a certeza de que a missão era importante geram o grande sucesso da nova Associação. As
perseguições não demoram, vindas de todos os lados. São lideradas especialmente pela
Associação dos Mestres em Caligrafia, em parte donos do ensino particular da época. As
escolas de La Salle são muitas vezes saqueadas, fechadas, incendiadas e ele mesmo é
processado. Apesar disso, a obra floresce e se consolida.
Consolidação e futuro
La Salle insiste com os Irmãos para confiarem em Deus, que nunca abandonaria uma obra tão
importante para o Estado e para a Igreja. Eles, porém, lhe dizem: "Para o senhor é fácil
confiar, pois é rico e tem como sobreviver, mas se nossa obra fracassar, nós ficaremos na
207
pior". Ele resolve, então, abdicar de todas as suas riquezas e seguranças e viver efetivamente
pobre como os Irmãos. Em 1691, ele e dois Irmãos fazem um "Voto Heróico" de jamais
desistir da obra, custe o que custar, mesmo que para isso tivessem de pedir esmolas e viver a
pão e água. La Salle dedica o restante de sua vida a consolidar o Instituto nos campos
espiritual, pedagógico, organizativo e administrativo. Convence os Irmãos a escolher um
deles para a chefia geral do Instituto. Visita as escolas, prega retiros, escreve cartas e diversos
livros, especialmente meditações, livros para o ensino da religião e vários de caráter didático,
e, com a colaboração dos Irmãos, um marcante manual de pedagogia e administração escolar,
denominado Guia das Escolas. Em 1719, ao falecer em fama de santidade, havia, na França,
22 Escolas Cristãs, 100 Irmãos Lassalistas e uma escola em Roma como sinal de fidelidade à
Igreja Católica. Naquela época havia, na França, um forte movimento por uma Igreja Católica
nacionalista (Galicanismo). E os católicos viviam pressionados por mais duas correntes,
competindo entre si: o Jansenismo, que propunha um exigente rigorismo na doutrina e na
prática do cristianismo, e Quietismo, que pregava a passividade na fé, porque Deus já nos
havia salvo. La Salle foi um homem muito atento ao seu tempo, dominado na França pelo rei
Luís XIV, o Rei Sol. A França vivia o paradoxo de crescente pobreza do povo (guerras,
carestias diversas, falta de atenção aos pobres por parte da Corte) e, ao mesmo tempo, os
grupos sociais já ricos se enriqueciam cada vez mais. A época de Luís XIV e de La Salle foi
de aceleradas mudanças no pensamento e na cultura: em literatura, música, teatro, filosofia,
ciências em geral. Este desenvolvimento aconteceu, também, no mundo religioso. A história
registra o final do século XVII e os inícios do século XVIII, como o século das luzes. Quase
dois séculos depois, em 1900, no dia 24 de maio, La Salle foi proclamado, pelo Papa Leão
XIII, herói nas virtudes cristãs, ou seja, Santo. E sua festa litúrgica ficou sendo o dia 15 de
maio. E em 1950, às vésperas do tricentenário de seu nascimento, o Papa Pio XII o proclamou
Patrono Universal dos Educadores Cristãos, homens e mulheres. Depois do Concílio Vaticano
II, a festa litúrgica de La Salle passou para o dia 7 de abril, data de sua morte, mas, por muitas
vezes coincidir com a Semana Santa, o Instituto recebeu autorização para continuar
comemorando-a no dia 15 de maio.
La Salle hoje
No decorrer do século XX, as escolas lassalistas, que eram só para meninos e unicamente
tendo à sua frente Irmãos Religiosos, passaram a ser mistas e a aceitar, no quadro docente, nas
coordenações e na direção, Leigos e Leigas, aos quais se oferece a possibilidade de,
mantendo-se como Leigos e Leigas, assumirem voluntariamente, como opção de fé, aspectos
208
da espiritualidade, da pedagogia e da missão lassalista. É o que se denomina Missão
Partilhada. Para voluntários da grande Família Lassalista, o Instituto, no 43º Capítulo Geral,
em 2000, passou a possibilitar uma vinculação especial a La Salle. Os que se sentem
chamados vocacionalmente a se associar num compromisso lassalista de “Associação para o
serviço educativo dos pobres”, à semelhança e em cooperação com os Irmãos, o Instituto
oferece a possibilidade de ser membros associados. Isso enriquece e amplia ainda mais o
serviço educativo aos pobres segundo o carisma de La Salle. A modalidade prática de como
ser membro associado lassalista, devido à novidade que representa e às possíveis implicações
jurídicas, está em estudo e em experimentação. Atualmente o Instituto Lassalista está em 82
países, com mais de 63.000 professores e professoras, 6.000 Irmãos e mais de um milhão de
alunos em todos os tipos de escolas, de obras culturais e de assistência social de cunho
educativo. No Brasil, os Irmãos se estabeleceram em 1907, no Rio Grande do Sul. Desde
1959 há duas sedes administrativas, denominadas Províncias. A Província de Porto Alegre
mantém obras no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Amazonas, Pará, Maranhão e Distrito
Federal. A Província de São Paulo se faz presente no Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato
Grosso, Tocantins e Distrito Federal, com um início em Sergipe. As duas Províncias juntas
coordenam a obra missionária lassalista em Beira, Moçambique. Por exigência das leis
brasileiras, as duas Províncias se organizaram em entidades civis. Assim, a Província
Lassalista de São Paulo é, ao mesmo tempo, Associação Brasileira de Educadores Lassalistas
(ABEL), com estatuto jurídico específico e todos os registros e documentos em conformidade
com a legislação sobre o assunto. Além do Instituto dos Irmãos Lassalistas, são considerados
associados lassalistas: as Irmãs Guadalupanas de La Salle, com comunidades no Brasil desde
1991, este Instituto foi fundado em 1948, no México, pelo Servo de Deus Irmão Juan Prosper
Fromental Cayroche, familiarmente chamado de Irmão Juanito; as Irmãs Lassalianas do
Vietnã, fundadas em 1952 pelo Irmão Bernard Lê-Van-Tam; a União de Catequistas de Jesus
Crucificado e de Maria Imaculada, um Instituto Secular fundado pelo Venerável Irmão
Teodoreto Garberoglio, em Turim, Itália, aprovado pela Igreja em 1914, e que já possui um
núcleo, desde 1998, com sete membros, em São Paulo, SP; a Fraternidade Signum Fidei, uma
organização mundial para leigos e leigas engajados no carisma lassalista, fundada em 1976
pelos Irmãos Paulus Adams e Manuel Olivé. A Signum Fidei funcionou em nossa Província
por cinco anos, em começos da década de oitenta, mas não teve continuidade. A de maior
número de membros Signum Fidei está nas Filipinas e no Peru, com cerca de 300 em cada um
deles e assumindo o controle de várias obras educativas próprias, segundo o carisma
lassalista.
209
O que buscamos
Buscamos, como escola lassalista, concretizar o objetivo do Instituto: “O fim do Instituto dos
Irmãos das Escolas Cristãs é proporcionar educação humana e cristã aos jovens,
especialmente aos pobres, segundo o ministério que a Igreja lhe confia” (Regras 3).
Para isso, as escolas são organizadas de modo a garantir que todos os que nelas agem
sintonizem e se comprometam com essa finalidade.
Anualmente as comunidades educativas lassalistas, levando em conta os desafios do mundo,
especialmente dos educandos, as orientações da Igreja e do Instituto dos Irmãos das Escolas
Cristãs, priorizam, no planejamento da Missão Educativa e em sua execução e avaliação,
algumas características que identificam de modo significativo a educação lassalista, expressas
no IX Capítulo Provincial, número 31.
O documento apresenta, como características atuais da Educação Lassalista, os seguintes
itens: excelência acadêmica; o sentido de fraternidade e de solidariedade; a luta contra a
pobreza e as situações de injustiça; a formação sólida e abrangente na fé cristã; a abertura ao
ecumenismo e ao diálogo inter-religioso; a iniciação prática ao aprender a aprender, aprender
a fazer, aprender a conviver, aprender a amar e aprender a ser.
Em fidelidade a La Salle, a educação lassalista tem uma visão cristã do ser humano e da
sociedade. Esta visão é colocada como a grande utopia que nos atrai e para a qual, de modo
bem orquestrado, caminhamos. É fundamental que, ao integrar a comunidade educativa
lassalista, cada família, aluno, cada profissional da educação e funcionário, conheça e aceite
colaborar na busca incansável desta utopia.
Cada pessoa, dentro da comunidade educativa, é acolhida em sua inteireza e identidade. Nela
recebe apoio e ajuda para, dentro da tarefa específica de uma escola cristã lassalista,
desenvolver suas quatro relações fundamentais, que lhe facilitam construir a felicidade para si
e para os outros e uma sociedade justa, solidária, fraterna e de paz. Estas relações são as
seguintes: relação consigo mesmo; relação com os outros; relação com a natureza; relação
com Deus.
Na “relação consigo mesmo”, a escola lassalista deseja contribuir para que cada pessoa seja
um ser humano equilibrado na compreensão e na posse de si mesmo. Por isso esforça-se por
210
fornecer a cada um o conhecimento progressivo de si mesmo, das próprias potencialidades e
limites, nas dimensões biológica, psicológica, social e espiritual. Nesse processo, ela ajuda
cada pessoa a ser sujeito de sua própria educação e um eficiente colaborador na educação dos
outros. Criada à imagem e semelhança de Deus, mas fragilizada pela condição de pecado, a
pessoa, ajudada pela graça e pelo processo educativo cristão, é incentivada a ter vida que,
segundo o Evangelho, deve ser vida em plenitude (cf. Jo 10, 10b).
Na “relação com os outros”, a escola lassalista trabalha intensamente as relações humanas de
qualidade, marcadas pela fraternidade evangélica. Proporciona experiências de acolhida uns
dos outros e do diferente e o cultivo permanente do respeito, da colaboração e da amizade.
Possibilita aos educandos o engajamento solidário com os mais necessitados e com a
construção de uma sociedade justa e solidária. O mandamento novo de Jesus “Amai-vos uns
aos outros como eu vos amei”, constitui uma das mais fortes marcas da escola lassalista (cf.
Jo 13,34-35).
Na “relação com a natureza”, a escola lassalista trabalha um sadio e construtivo
relacionamento com o meio ambiente. Une teoria e prática que ajudam a compreender a
absoluta necessidade de preservação e promoção da natureza, indispensável para garantir um
desenvolvimento sustentável para a qualidade de vida hoje e para as futuras gerações. Para
isso está atenta, sensível e solidária com os movimentos ecológicos nacionais e internacionais.
Na “relação com Deus”, a escola lassalista, dá ênfase à busca do transcendente. A partir de
sua especificidade cristã católica, educa a fé, a esperança e a caridade, tendo como ideal o
cumprimento dos dois mandamentos maiores: “Amar a Deus sobre todas as coisas”, - o DeusPai, revelado por Jesus de Nazaré, a ser glorificado por Jesus, na moção do Espírito Santo - , e
“amar o próximo como Jesus nos ama”, acolhendo o outro como irmão/irmã, por causa de
Jesus Cristo. Para isso oferece 0000orientações seguras e experiências no cultivo de valores
como amor, justiça, solidariedade, vida de oração, diálogo e respeito em relação a todas as
outras opções religiosas. Procura sempre, em sua missão educativa cristã, a síntese entre fé e
vida, fé e cultura.
A busca do desenvolvimento do educando nestas quatro relações fundamentais do ser
humano, à luz do Evangelho, condiciona toda a vida da escola lassalista, todo o seu contexto
educativo: as relações humanas, a escolha e o tratamento dos conteúdos das disciplinas
211
escolares, a metodologia a ser utilizada no processo de ensino/aprendizagem, a orientação
vocacional e profissional, as atividades esportivas, artísticas, sociais, religiosas e outras.
Os projetos educativos de todas as obras lassalistas devem ter como características, junto com
a excelência do ensino/aprendizagem e da cultura geral requerida pelo mundo de hoje: o
sentido de comunidade e de fraternidade, em face do individualismo e a massificação: a luta
contra a pobreza e as situações de injustiça; a educação para a justiça, a paz, a solidariedade e
a tolerância; a formação de pessoas livres e ao mesmo tempo justas; a contextualização e
compromisso com a realidade na qual estão situados (entorno e contexto sócio-econômicopolítico-cultural e religioso).
A sociedade é vista e concebida, na educação lassalista, como espaço de socialização de dons,
talentos, bens simbólicos e bens reais em prol da convivência solidária, fraterna e alegre das
pessoas. Neste contexto, é fundamental, no processo educativo lassalista, a compreensão e
vivência dos valores da cidadania, os direitos humanos, a participação consciente e crítica na
construção, preservação, desenvolvimento e administração do bem-comum, e um
engajamento muito especial em favor da promoção educativa dos mais necessitados. O futuro
depende do que somos e do que fazemos hoje.
A escola lassalista empenha-se em ajudar a família a procurar os meios para cumprir sua
missão de primeiro e principal agente educativo dos filhos, conforme o entendeu S. João
Batista de La Salle e a Igreja o confirmou oficialmente no Concílio Vaticano II, no
documento Gravissimum Educationis (Sobre a Educação). Para isso considera de grande
importância um intercâmbio entre família e escola, visando ao conhecimento mútuo, ao apoio
e à melhoria do atendimento das necessidades do educando.
O professor, na escola lassalista, é por vocação um Educador que assume, em comunhão com
seus colegas e em sintonia com a proposta educativa lassalista, o seu compromisso
profissional baseado em três forças: amor, competência e qualidade. Acolhe a totalidade de
seus alunos, com firmeza e ternura, dando especial atenção aos mais necessitados econômica
e intelectual e educativamente, e procura responder às exigências do mundo em mudança.
Na escola lassalista, os integrantes dos corpos técnico, administrativo e de serviços gerais são
também agentes educativos, pois seus atos e procedimentos exercem influência na formação
212
dos alunos. Da maneira como atendem os pais, os alunos, os professores e os que procuram a
escola depende, em grande parte, a imagem social que dela se tem. Para isso, tanto na
contratação como ao longo da permanência desses funcionários na escola, os responsáveis
pela mesma oferecem-lhes as devidas orientações e providenciam a formação adequada no
espírito que anima uma obra lassalista.
Para que a Comunidade Educativa Lassalista possa cumprir bem a sua missão, é importante
que todos os seus membros sejam criativamente fiéis a São João Batista de La Salle e atentos
aos ‘Sinais dos Tempos’. Para isso interessam-se em conhecer La Salle e suas orientações,
bem como o Instituto Lassalista e as orientações dele emanadas. Cabe à Comunidade
Educativa plantar esperança no coração das crianças e jovens e proporcionar o necessário para
garantir-lhes uma sólida educação humana e cristã.
O que nos marca
Os critérios fundamentais
A realidade provoca sonhos e os sonhos transformam a realidade. Foi assim que aconteceu
com São João Batista de La Salle. A realidade de sua época invadiu razão e coração e
questionou o seu modo de viver. Olhos de crianças sem escola, empobrecidas e abandonadas,
cruzaram os seus. Deste impacto nasceu uma contemplação da qual nasceu um sonho de
transformação, o sonho de um mundo melhor para as crianças e os jovens e uma decisão que
mudou
por
completo
sua
vida
e
seu
compromisso
com
o
Evangelho.
“Atento, pela ação de Deus, ao abandono humano e espiritual dos “filhos dos artesãos e dos
pobres”, São João Batista de La Salle consagrou-se à formação de professores inteiramente
dedicados à instrução e à educação. Reuniu-os e, com eles, fundou, depois, o Instituto dos
Irmãos das Escolas Cristãs” (Regra 1).
La Salle tomou consciência de que, através da educação humana e cristã, é possível resgatar a
"imagem e semelhança de Deus", cuidar dela e torná-la brilhante. Organizou, então, Escolas
Cristãs, que buscam este objetivo, a partir da visão de pessoa e sociedade, segundo os critérios
do Evangelho. Para estas escolas ele prioriza rigorosa formação dos professores, excelência
acadêmica, educação cristã, e lhes dá como uma de suas marcas distintivas as seguintes três
grandes dimensões: a Fé, a Fraternidade e o Serviço. E de acordo com estas dimensões enfoca
sua missão de ensinar e de educar.
213
Educação que se fundamenta na Fé
A escola lassalista é uma comunidade que acredita nas pessoas, no potencial que elas têm e
acredita em Deus. Pela fé religiosa cristã ela propõe e alimenta o sentido da vida e a missão de
cooperar na construção de um mundo novo, fundamentado em Jesus Cristo. Neste sentido a
pedagogia lassalista baseia-se na fé e alimenta a fé: fé em Deus. Ele quer a salvação de todos
os homens e mulheres; fé na própria pessoa, como filho(a) de Deus, vocacionado(a) à
felicidade e dotado(a), por Deus,de potencialidades para construir a felicidade para si e para
os outros; fé no processo educativo lassalista, na interação entre as pessoas, na base do amor e
da cooperação, que fornece os meios para as pessoas se construírem e construírem uma
sociedade justa, fraterna e solidária.
Em coerência com esta opção de fé o Mestre primeiro e principal, na educação lassalista, é
Jesus Cristo. Os alunos são os “discípulos”. Os educadores são os "ministros",
"embaixadores", "representantes" de Jesus. Ser educador é, na visão de fé, uma vocação e um
ministério como o de Jesus Cristo.
Nesta visão na qual Jesus é centro e referência, a escola lassalista é uma Comunidade
Educativa cristã, parcela da Igreja que procura viver o Mandamento Maior: amar a Deus sobre
todas as coisas e ao Próximo como Jesus nos ama. Tudo o mais é feito em conformidade com
este mandamento maior.
Educação que se realiza na Fraternidade
Uma das características fundamentais da educação lassalista é a solidariedade fraterna,
segundo o Evangelho. Jesus Cristo nos revelou que Deus é nosso Pai e que, portanto, somos
todos irmãos e irmãs entre nós. E para concretizar esta fraternidade, que deve perpassar todas
as relações humanas, os objetivos, o método e os conteúdos do processo educativo, a escola
lassalista: busca profunda integração entre as pessoas e os serviços, impulsionando o
verdadeiro espírito e a vivência significativa de fraternidade evangélica; cria condições para
que todos interiorizem e vivenciem o companheirismo, a cooperação, a solidariedade, a
disponibilidade, a participação, a partilha, a vivência dos valores evangélicos; estimula
convicções interiores, que levam à superação do egoísmo, da competição e da busca dos
interesses pessoais; convicções que favorecem atitudes de abertura, acolhida, diálogo e
canalizam as energias para o bem estar de todos; promove o envolvimento e a participação de
todos, pessoal e comunitariamente, na transformação evangélica da realidade social; favorece,
214
com estímulos e meios concretos, o aperfeiçoamento profissional, moral, religioso e lassalista
de todos.
A educação para a solidariedade e para a fraternura, se fundamenta no respeito e no amor para
com todos os seres. Ela é uma resposta profética à crise nas relações humanas, que perpassa a
sociedade capitalista, dominada pelo egoísmo, pela idolatria e pelo consumismo. A educação
lassalista exercita as pessoas no diálogo, no perdão e na cooperação.
A solidariedade, em si, não depende de religião, mas deve receber desta um impulso vital. É
um elemento ético de cunho antropológico, portanto, profundamente humano, mas que
necessita ser trabalhado ao longo da vida. A solidariedade é um pressuposto para a
fraternidade, que é fruto de uma opção de fé. O cristianismo dá uma conotação especial à
fraternidade, a partir de Jesus Cristo.
A escola lassalista, a partir de sua opção cristã, assume a fraternidade evangélica, que se
fundamenta na revelação trazida por Jesus Cristo: Deus é nosso Pai (Pai Nosso), por causa de
Jesus (o Filho de Deus) somos filhos de Deus Pai, e, conseqüentemente irmãos e irmãs entre
nós. É vontade de Jesus que sejamos irmãos uns dos outros, como ele o expressa no
mandamento novo do Amor entre irmãos e irmãs, na fé.
A fraternidade evangélica é um diferencial importante para os cristãos na sociedade face a
todas as demais iniciativas e experiências, que lutam validamente por um mundo justo e
solidário, e com as quais os cristãos, respeitando as diferenças procuram fazer parceria.
Na escola lassalista a fraternidade é, ao mesmo tempo, objetivo, conteúdo, e caminho
metodológico. E neste propósito os responsáveis pela coordenação geral da escola procuram,
permanentemente, estimular estreitamento de laços fraternos em todas as pessoas, em todos os
setores em que atuam e interdependência na consecução dos objetivos educacionais da Escola.
Não existe receita pronta para todos os problemas de relacionamentos em relação a Deus, ao
próximo, a si mesmo e à natureza, mas há princípios fundamentais que, devidamente
respeitados e cumpridos, desencadeiam processos práticos de superação destes problemas. É
dever dos agentes responsáveis educacionais – os educadores – elucidar estes princípios e
ajudar a criar, cooperativamente, as soluções práticas. Saber ouvir até o fim, com atitude de
215
acolhida e de interesse, o que o outro tem a dizer, e recorrer ao diálogo fraterno é um dos
caminhos mais diretos para a solução dos problemas entre as pessoas.
Educação que se efetiva no Serviço
A escola lassalista é uma comunidade educativa que quer: estar a serviço da pessoa humana,
para ajudá-la a crescer em todas as suas dimensões; crescer é olhar e assumir o presente como
um dom, um presente de Deus, é buscar o futuro com esperança, é aprender com o passado; a
Escola La Salle coloca-se a serviço da salvação dos alunos e da nobre causa de possibilitar a
libertação e promoção das pessoas, de ajudá-las no desabrochar de suas potencialidade e em
sua busca da felicidade; estar a serviço da Igreja, como partícipe de sua missão
evangelizadora; estar a serviço da sociedade para ajudá-la a se estruturar e funcionar em
benefício do bem comum, particularmente em prol dos pobres.
Por isso, a escola lassalista trabalha, com uma dedicação especial, no desenvolvimento físico,
psicológico, social, afetivo, intelectual e espiritual de seus membros. Somente no equilíbrio
destas dimensões humanas é possível proporcionar ao homem e à mulher as condições básicas
para que se tornem pessoas a serviço felicidade, isto é, da harmonia no relacionamento
consigo mesmas, com os outros, com a natureza e com Deus.
O serviço educativo prestado pela escola lassalista busca sempre ser de alta qualidade, a partir
especialmente das atitudes dos educadores lassalistas: zelo pela competência humana e
profissional, atenção e cuidado com relação às preocupações, angústias, dificuldades e
necessidades dos educandos; sintonia com a filosofia educativa da escola, atenção à realidade
sempre em mudança do mundo de hoje.
Como parte integrante da atitude de serviço, a escola lassalista se volta com prioridade para os
mais pobres, também a que destinada atender a classe privilegiada e dinamiza projetos
educativos para os empobrecidos em obras próprias ou em parceria com entidades que os
atendem educacionalmente. Nestes projetos ela possibilita o maior envolvimento possível de
seus membros, mediante o incentivo a uma espiritualidade missionária e, também, mediante
contrato legal de voluntariado.
216
O jeito lassalista de educar
Para facilitar o conhecimento e a vivência do espírito lassalista, cada membro da comunidade
educativa, (Irmãos, Alunos, Pais, Professores, Funcionários, Voluntários), é convidado a ler,
meditar e assimilar alguns princípios básicos vividos e deixados como herança por São João
Batista de La Salle. Neste capítulo, esta Proposta Educativa Lassalista, tem parágrafos
específicos para cada grupo de componentes da Escola. Pensamentos de La Salle ilustram os
textos.
Educadores
Atitude de fé. O educador lassalista se considera um vocacionado por Deus para exercer a
missão de educador, como ministro e representante do Mestre Jesus Cristo. Imbuído desta
convicção ele se coloca diariamente em comunhão com Deus, lê as sagradas Escrituras,
invoca a iluminação do Espírito Santo e desempenha seu emprego, interiormente convencido
de que é enviado pelo próprio Deus para ajudar os educandos a desenvolverem todas as suas
capacidades humanas e espirituais. “Já que Deus, em sua misericórdia, vos confiou este
ministério, não adultereis a sua palavra... Considerai-vos nisso como ministros de Deus e
dispensadores de seus mistérios.” (Meditação 193,1)
Atitude de humildade e cooperação. O educador lassalista sabe que o agente principal da
educação é o próprio educando e que os pais são os primeiros e principais educadores de seus
filhos. Ele se considera, porém, um agente muito importante como auxiliar deste processo
educativo e para isso, se prepara, se qualifica, se enriquece espiritual, pedagógica e
culturalmente e se coloca à disposição do Senhor. "Vendo Jesus que, no vosso emprego, o
considerais como quem pode tudo, e a vós, apenas como sendo meros instrumentos, movidos
unicamente por ele, não deixará de vos conceder o que lhe pedirdes." (Meditação 197,1); "(Os
educadores lassalistas) realizam sua missão 'juntos e por associação” (Regra 16)
Atitude de doação amorosa. O educador lassalista cria e desenvolve em si uma atitude de
alegre disponibilidade e doação para atender com firmeza, ternura e competência as
necessidades
intelectuais,
comportamentais
e
espirituais
de
seus
alunos.
"Deveis considerar a vossa obrigação de conquistar o amor dos alunos como um dos
principais meios de levá-los a viver cristãmente." (Meditação 115,3)
217
Atitude de educador. O educador lassalista tem consciência clara de que deve educar seus
alunos e não somente ensinar-lhes o que lhe é solicitado contratualmente com base em sua
profissão. Mais que instrutor e professor ele deve visar a ser educador que, portanto, considera
o aluno como um todo, particularmente no sentido da ética e dos valores humanos, sociais e
religiosos. "Vossa obrigação de estado é educar as crianças." (Meditação 115,3)
"Deus vos designou para a educação... Eis aí o principal cuidado que deveis ter com os alunos
e a razão fundamental por que Deus vos encarregou de tão santo ministério." (Meditação
197,3)
Atitude de ternura e firmeza. O Educador Lassalista cuida para ser simpático e procura tratar
sempre seus alunos com profundo equilíbrio entre ternura e firmeza, de modo que a adesão
deles a uma necessária disciplina para o ensino-aprendizagem e aos valores que lhes são
propostos provenham da liberdade e do amor e não da dureza e das exigências que irritam e
levam à rebeldia. Se tendes para com os alunos a firmeza de pai para tirá-los ou afastá-los do
mal, deveis ter-lhes também a ternura de mãe para atraí-los e fazer-lhes todo o bem que
depende de vós." (Meditação 101,3) "Quanto mais ternura tiverdes para com os membros de
Jesus Cristo e da Igreja, confiados a vossa solicitude, tanto mais admiráveis frutos de graça
Deus produzirá neles." (Meditação 134,2) "Induzis, mediante vossa amabilidade e sabedoria,
aqueles que vos estão confiados a deixarem o vício e a serem piedosos ?" (Meditação 114,1)
Atitude de segurança pessoal e flexibilidade. O educador lassalista procura a máxima
segurança e certeza em suas convicções e no que ensina, dedicando-se à preparação cuidadosa
das lições e a exercícios espirituais que alimentam sua mística cristã lassalista.
"Tendes a obrigação, por vosso ministério, de conhecer bastante a doutrina para ensinar às
crianças que vos foram confiadas, a boa e sã doutrina da Igreja." (Meditação 120,1)
Atitude de confiança nas potencialidades dos alunos. O educador lassalista utilizará
procedimentos que estimulam a reflexão criativa dos alunos e cria em suas aulas um processo
participativo, de modo que eles desenvolvam o sentido de cooperação e, também, que
assumam
responsabilidades
e
desempenhem
com
esmero
o
que
podem
fazer.
"Haverá vários ofícios (atividades) nas escolas lassalistas, para executar diferentes funções,
que os professores não podem ou não devem executar por si mesmos." (Guia das Escolas)
"O professor não falará aos alunos como se estivesse pregando, mas perguntará quase
continuamente por meio de sub-perguntas, a fim de lhes tornar compreensível o que é
218
ensinado." (Guia das Escolas) "Ensinai as crianças, não com palavras rebuscadas... Importa
que as pessoas que as ajudam a se salvarem, o façam de um modo tão simples, que todas as
palavras que empregam sejam claras e de fácil compreensão." (Meditação 193,3)
A busca da santificação através do magistério: La Salle sabe que por meio da função docente
o educador não só estimula a santificação dos seus alunos, mas encontra a sua própria
santificação. Ao elevar o magistério à categoria de Ministério da Palavra, La Salle compara a
função docente ao Ministério do Apóstolo São Paulo: “Sem querer comparar-vos a este
grande apóstolo Paulo e guardada a devida proporção entre o vosso emprego e o dele, podeis
dizer que fazeis a mesma coisa e exerceis idêntico ministério em vossa profissão. Por isso,
deveis considerar vosso emprego, de que estais encarregados por parte dos pastores, dos pais
e das mães, como uma função das mais importantes e mais necessárias na Igreja.” (Meditação
7).
A gratuidade no magistério: Uma das características fundamentais da pedagogia lassalista é a
doação que o educador faz de si e de seu tempo a quem mais precisa de ajuda. A opção
preferencial pelos pobres foi uma das marcas das origens do Instituto Lassalista e continua
sendo ainda hoje. O engajamento em forma de voluntariado é uma das maneiras concretas de
os membros da Comunidade Educativa Lassalista expressarem a doação de si aos mais
necessitados. E outra manifestação desta doação de si é o engajamento na busca de meios para
fazer chegar aos mais carentes a educação lassalista. Mas este espírito de voluntariado
humanitário e cristão se desenvolve a partir da consciência de que um profissional cidadão
tem atitudes éticas e um compromisso vocacional, que não se restringem aos limites do
contrato de trabalho.
Educando
Na escola lassalista o aluno, respeitado em sua identidade pessoal, é estimulado a viver,
experiências que favorecem o seu crescimento total: físico, psicológico, social, afetivo,
intelectual e espiritual.
Os alunos são iniciados e relembrados periodicamente dos objetivos e procedimentos
educacionais específicos de uma escola lassalista, sendo, ao mesmo tempo, incentivados a
darem sua adesão e cooperação para a melhor efetivação possível do Projeto Político
Pedagógico adotado.
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Os alunos são motivados, também, a se integrarem na comunidade educativa, como sujeitos e,
ao mesmo tempo, como agentes da educação. Da participação consciente e cooperante deles
resulta um clima escolar de solidariedade, e de ajuda mútua e o exercício da cidadania, que
muito favorecem a educação humana e cristã de qualidade que a escola busca proporcionar.
Os alunos são convidados a terem um grande respeito pela mensagem cristã, que lhes é
proposta, assumindo, na liberdade, os passos de crescimento na fé, na esperança e na caridade,
alimentando atitude de respeito, acolhida e diálogo com os que seguem outras opções
religiosas. Um dos frutos deste processo será o desenvolvimento do sentido comunitário, do
amor aos irmãos, da hospitalidade, da solidariedade e do desejo de participação política e
social, em favor da justiça.
Os alunos recebem orientações seguras para que possam aprender a ler a realidade em suas
múltiplas facetas, tornando-se críticos ante esta realidade e comprometidos com a verdade.
Com isso eles aprendem, também, a discernir, à luz da fé, os valores e contra-valores da
civilização atual e como se engajar no desenvolvimento cultural, científico e social do país,
ajudando a superar a injustiça social.
Família
A escola lassalista procura conscientizar os pais de que eles são os "primeiros e principais
educadores" de seus filhos, conscientes de sua missão e de sua responsabilidade perante Deus,
seus filhos, a Igreja, a sociedade e a escola.
Nesta cooperação com a família a escola lassalista põe em evidência a graça especial com que
Deus enriquece o lar, a missão de ser pai e mãe, portanto, de serem ambos co-partícipes da
criação e responsáveis pela vida e pela educação humana e cristã dos filhos.
Diz La Salle, em sua Meditação 193, "Entre os deveres que incumbem aos pais, educar
cristãmente os filhos e ensinar-lhes religião é um dos mais graves".. A família é a primeira
escola de virtudes humanas e sociais de que todas as sociedades precisam.
A escola lassalista oferece meios para que os pais conheçam as riquezas da educação
lassalista e as modalidades de participação e colaboração no processo educativo que ela
oferece. Além disso, possibilita a quem se interessar chances para assumir e viver a
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espiritualidade e a filosofia educacional lassalista. Este procedimento não só beneficiará os
próprios pais, mas, também, de modo especial os próprios filhos, alunos lassalistas.
A escola lassalista estimula as famílias para que, atentas às necessidades da grande maioria do
povo, cresçam no sincero desejo de uma sociedade melhor para todos e, na medida de suas
possibilidades, se engajem, concretamente, na busca e construção de uma sociedade justa e
solidária.
Em relação aos pais, a escola lassalista, anima a Pastoral Familiar, oferecendo-lhes
orientações claras de como podem desempenhar, de fato, sua missão educativa junto de seus
filhos, como um ministério que receberam da Igreja no Sacramento do Matrimônio.
Os demais agentes educativos da escola
Na escola lassalista, os auxiliares da administração, e os funcionários da limpeza e
manutenção da escola, são agentes educativos, pois seus atos e procedimentos têm influência
na formação dos alunos. Eles fazem parte do processo evangelizador da escola lassalista e
para isso se beneficiam das oportunidades de formação que lhes são oferecidas. Estes agentes
educativos não docentes devem ser conscientizados de que, através de atendimento sério,
atento e educado, podem ser canal da mensagem evangelizadora da escola para as pessoas que
contata. Para isso esforcem-se constantemente para desempenhar suas tarefas com qualidade e
pontualidade.
A escola lassalista zela para que os agentes educativos não docentes sejam tratados pelos
demais membros da Comunidade Educativa com respeito e consideração. Eles recebem da
Direção da escola a autoridade suficiente para intervir responsavelmente no crescimento dos
educandos, particularmente quando estes apresentarem comportamentos indesejáveis.
A escola lassalista estimula os agentes educativos não docentes para que participem, com
liberdade, das atividades religiosas, cívicas e sociais da escola. E os convida para que, nelas,
de acordo com as possibilidades e capacidades ofereçam sua valiosa colaboração.
A escola lassalista motiva a todos para o sentido profundo dado por La Salle ao termo
“Associação” em favor da missão educativa dos pobres. Para isso oferece oportunidade de
estudo dos documentos do Instituto sobre o assunto.
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Tarefas para todos
Todos os membros da Comunidade Educativa Lassalista são convidados a assumir, de forma
progressiva e coerente, as seguintes tarefas: a) Redimensionar a rotina do cotidiano,
descobrindo e valorizando a interioridade, a liberdade, o amor e a luta pela justiça e pela paz.
A cotidianidade, formada pelas atitudes e atividades do dia-a-dia, na ótica da fé, constitui o
habitat da educação não-formal que plasma o segredo do processo educativo humano e
cristão. b) Evangelizar constantemente os três componentes da vida humana que facilmente
conduzem à infelicidade, quando viram ídolos: o ter, o poder e o prazer. c) Iluminar com a fé,
de modo permanente, a afetividade, a sexualidade e a vida matrimonial, o trabalho, a política
e a cultura, o serviço e a criatividade. d) Comprometer-se na construção de uma Comunidade
Educativa, na fidelidade criativa a São João Batista de La Salle e aos dias de hoje, plantando
esperança no coração das crianças e jovens, dando-lhes o necessário para garantir-lhes uma
sólida educação humana e cristã.

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