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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara ALEXANDRE MARQUES MENDES Classe Trabalhadora e Justiça do Trabalho: experiências, atitudes e expressões do operário do calçado (Franca-SP, 1968-1988) Araraquara/SP 2005 i ALEXANDRE MARQUES MENDES Classe trabalhadora e Justiça do Trabalho: experiências, atitudes e expressões do operário do calçado (Franca-SP, 1968-1988) Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – Campus de Araraquara, como requisito parcial à obtenção do título do Doutor em Sociologia. Orientadora: Profa. Dra. Leila de Menezes Stein. Araraquara/SP ii 2005 ALEXANDRE MARQUES MENDES Classe trabalhadora e Justiça do Trabalho: experiências, atitudes e expressões do operário do calçado (Franca-SP, 1968-1988) Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – Campus de Araraquara, como requisito parcial à obtenção do título do Doutor em Sociologia. Orientadora: Profa. Dra. Leila de Menezes Stein. Araraquara, ____ de _______ de 2005 BANCA EXAMINADORA __________________________________ Prof. Dr. Instituição __________________________________ Prof. Dr. Instituição __________________________________ Prof. Dr. Instituição __________________________________ Prof. Dr. Instituição __________________________________ Prof. Dr. iii Instituição À Ana Clara de Oliveira Marques Mendes iv AGRADECIMENTOS A dinâmica para a realização desse trabalho contou com muitas pessoas. Trago nessas linhas a história de amigos e familiares que, de uma forma ou de outra, convivem com o espírito operário dessa região. Quero que saibam de minha gratidão. Ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) pela bolsa de estudos e apoio financeiro imprescindível para a pesquisa. À Leila de Menezes Stein pela presença sincera e amiga em todas as horas, nas aulas, colóquios, debates e cafés. Por seu apoio em todos os momentos, nos bons e também nos mais difíceis. Ao Agnaldo de Sousa Barbosa, pela amizade e todo apoio intelectual essencial para tese. Também estender minha gratidão ao seu irmão Sérgio de Sousa Barbosa, responsável pela criação do programa de banco de dados. Ao Geraldo César Coelho Fernandes, por ser o verdadeiro braço direito nos levantamentos e sistematizações das informações obtidas dos processos trabalhistas. A todos que trabalham e são envolvidos com o Arquivo Histórico Municipal de Franca/ SP “Capitão Hipólito Antônio Pinheiro”: José Chiachiri Filho (diretor do Arquivo à época), Graziela Alves Correa (diretora do Arquivo atualmente), Maria Consuelo de Figueiredo, Maria Inês Paulino, Meire Saumazo Granero e a Maria das Graças Primon. É preciso ressaltar com ênfase toda dedicação e profissionalismo na manutenção e cuidado com o Arquivo, sendo este uma fonte de referência para distintos pesquisadores. A todos os funcionários da seção de Pós-graduação da FCL - UNESP Araraquara, no nome de Cristiana Gobato Lopes Castro. À mãe Júlia, pai Eurípedes e irmã Juliana, por quais minha vida está entregue e aos sogros Maria Conceição e Sebastião que me presenteiam com sentimentos puros. À Rita de Cássia, companheira de vida. Eis minha fortaleza, fonte de conhecimento que vai além dos livros. A você, Rita de Cássia, pois um pouquinho de nós está em cada linha, com você divido todo mérito e êxito da realização desse trabalho. v RESUMO Na presente tese de doutorado, procuramos refletir acerca da formação social e configuração de uma dinâmica de classe por parte do operariado do calçado (sapateiros) em Franca-SP no período que vai de 1968 a 1988, momento histórico que caracteriza a consolidação do município como pólo calçadista de significativa importância nacional e internacional. Nesse contexto, a inserção de trabalhadores em um universo que a eles era estranho, circunscrito à vigilância da fábrica e marcado por uma disciplina intensa, inventa o sentido de “ser sapateiro”, que ultrapassa a barreira das classes sociais e é sempre costurado pela valorização do trabalho. A perspectiva de abordagem adotada insere os direitos trabalhistas, via Justiça do Trabalho, no amplo leque de vivências e experiências da classe trabalhadora, as quais podem estar ou não alinhadas a instituições como o sindicato ou o partido político. A análise aqui apresentada indica que a dinâmica de judicialização das relações de trabalho, que levou à crescente demanda de processos trabalhistas nos anos 70-80, tenha certamente influenciado o substantivo aumento dos mesmos por todo Brasil na década de 1990. A pesquisa teve como principal substrato empírico os processos trabalhistas custodiados pelo Arquivo Histórico Municipal de Franca/ SP, fonte interpretada por meio de tratamento estatístico e da análise qualitativa. Palavras-chave: classe trabalhadora; indústria do calçado; Justiça do Trabalho; processos trabalhistas; judicialização da questão social. vi ABSTRACT At the present work we have tried to reflect on the social formation and configuration of the dinamic class by the shoemaking labor class (shoemakers) in the city of Franca-SP through the period 1968-1988, historical moment that caracterizes the city consolidation as a shoemaking center of significant importance both national and international. In this context, the workers insertion in a strange universe to them, circumscribed by the factory control caracterized by an intense discipline creates a sense of “being a shoemaker” that surpasses the social class bound and is always connected by the value of work. The perspective approach adopted inserts the workers rights in a broad range of life and experience of the labor class that can be, or not, in conformation to the institutions like the labor union or the political organization. The analysis presented here indicates that the dinamic of the work relations regulation, that has brought to an increasingly demand of work processes during the 70s and 80s, has surely influenced their increasing number throughout the country during the 90s. A research is based on the workers processes kept by the Arquivo Histório Municipal de FrancaSP, treated using statistics and qualitative analysis. Keywords: Labor class, shoemaking industry, Labor courts; labor disputes, social issue. vii LISTA DE ILUSTRAÇÕES GRÁFICO 1 - Assistência judiciária – Cartório 2º Ofício Cível de Justiça da Comarca de Franca/SP ............................................................................................ 38 GRÁFICO 2 - Assistência judiciária – Cartório 1º Ofício Cível de Justiça da Comarca de Franca/SP ............................................................................................ 38 GRÁFICO 3 -Processos trabalhistas assistidos pelo Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Calçados de Franca – STICF ............................................. 39 GRÁFICO 4 - Total geral de processos trabalhistas 1968-1988 ..................................... 61 GRÁFICO 5 - Arquivo Histórico Municipal de Franca “Capitão Hipólito Pinheiro” ..... 78 GRÁFICO 6 - Resultado da Reclamação – total geral de processos trabalhistas (1968-1988)............................................................................................... 100 GRÁFICO 7 - Resultado da Reclamação – Conciliado (1968-1988) .............................. 100 GRÁFICO 8 - Total geral dos processos trabalhistas no período de (1968-1988) – Objeto (Motivo da Reclamação) .............................................................. 102 GRÁFICO 9 - Total geral de processos por tipo de empresa 1968-1988 ........................ 103 GRÁFICO 10- Cancelamento de suspensão e conseqüências (indisciplina no trabalho) 1968-1988 ................................................................................................ 115 viii LISTA DE TABELAS TABELA 1 – Evolução das reclamações ajuizadas ........................................................ 104 TABELA 2 - Quantidade de processos contra a empresa Open Serviços Temporários e Efetivos Ltda ....................................................................................... 112 ix LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AHMF - Arquivo Histórico Municipal de Franca/SP “Capitão Hipólito Antônio Pinheiro” CAD - Computer Aided Design CAM - Computer Aided Manufacturing CAPS - Caixa de Aposentadoria e Pensões CEBRAP - Centro Brasileiro de Análise e Planejamento CTPS - Carteira de Trabalho e Previdência Social Cx. - Caixa DNT - Departamento Nacional do Trabalho FGTS - Fundo de Garantia por Tempo de Serviço IDH - Índice de Desenvolvimento Humano IPT - Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo ISEB - Instituto Superior de Estudos Brasileiros MP - Ministério Público PETI - Programa de Erradicação do Trabalho Infantil PROC. - Processo PT - Partido dos Trabalhadores SEADE - Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados SENAI - Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial STICF - Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Calçados de Franca USMC - United Shoe Machinery Corporation x SUMÁRIO 1 APRESENTAÇÃO........................................................................................................ 11 2 CLASSE E TRABALHADORES ................................................................................ 18 2.1 A análise das classes sociais no Brasil ...................................................................... 32 2.2 O sapateiro e o sindicato ............................................................................................ 36 3 JUSTIÇA DO TRABALHO E DIREITOS TRABALHISTAS NO BRASIL ............ 44 3.1 Breve histórico da Justiça do trabalho e da CLT ....................................................... 48 3.2 A judicialização da questão social ............................................................................ 60 4 FORMAÇÃO DA CLASSE OPERÁRIA E O PÓLO CALÇADISTA ....................... 70 4.1 Do artesanato à manufatura do calçado ..................................................................... 73 4.2 Considerações sobre a indústria e o operário moderno .............................................. 79 5 OS OPERÁRIOS DO CALÇADO E JUSTIÇA DO TRABALHO EM FRANCA/ SP: O UNIVERSO DAS RELAÇÕES SOCIAIS ....................................................... 92 5.1 A noção de Justiça ...................................................................................................... 95 5.2 Os processos ............................................................................................................... 99 5.3 O conflito do trabalho para além das fábricas ............................................................ 105 5.3.1 A tradição do trabalho a domicílio em Franca ........................................................ 105 5.3.2 Vigiar o banheiro: a intensa disciplina espalhada pelo chão-de-fábrica ................. 115 5.3.3 O conflito à flor da pele .......................................................................................... 132 5.3.4 Destruindo o capital: estragando matéria-prima ..................................................... 137 5.3.5 Expressões operárias ............................................................................................... 145 6 TRABALHO, TRABALHADORES E A ÉTICA DO TRABALHO HOJE ................ 157 6.1 A respiração do trabalho em Franca ........................................................................... 161 6.2 O sapateiro e o operário ............................................................................................. 162 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 167 REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 171 FONTES DOCUMENTAIS DO ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL DE FRANCA ......................................................................................................................... 181 ANEXOS ......................................................................................................................... 187 11 1 APRESENTAÇÃO O presente trabalho teve como intento analisar a situação e experiência da classe operária em Franca/ SP, em particular dos sapateiros. Franca tem seu município localizado na região nordeste do Estado de São Paulo, que tem na indústria calçadista a principal atividade econômica. Tecemos um debate constante com a literatura das ciências sociais que abordam o tema e consideramos a trajetória desses trabalhadores numa perspectiva que privilegiou um enfoque histórico-cultural. O desenvolvimento da pesquisa foi guiado por um atento levantamento das fontes primárias, a saber, os processos trabalhistas do Arquivo Histórico Municipal de Franca/SP “Capitão Hipólito Antônio Pinheiro”. A importante e volumosa documentação provocou novos direcionamentos quanto às expectativas das hipóteses, orientando-nos para um levantamento mais reflexivo dessas. Optou-se, dessa forma por eleger essa documentação, como fonte principal para elaboração da tese, atitude que será elucidada ao longo do trabalho. Há um relativo consenso entre pesquisadores e intelectuais de que, no Brasil, a história da classe operária ocorreu em um contexto de desenvolvimento tardio do capitalismo e essa história, associada ao processo de industrialização, paralelamente ao crescimento urbano e à diversificação de indústrias e serviços. No entanto, de fato, essa trajetória é mais perceptível em alguns grandes centros do país, como São Paulo e Rio de Janeiro. Mesmo assim, nos estudos mais clássicos sobre a dinâmica da classe operária brasileira, esta é colocada lado a lado às trajetórias do Estado brasileiro, dos partidos políticos, dos sindicatos e dos movimentos ideológicos, tais como anarquismo e comunismo. Para tais perspectivas, o amadurecimento e, mesmo a identidade da classe, dar-se-iam não apenas no embate com o capital; mas, sobretudo, pela adesão de seus membros à causa operária, que consistia na adesão ao projeto político de classe no modo como ele era delineado pelos chamados 12 “partidos operários”. Para essa vertente de análise, não existiria história da classe se seus membros não compactuassem com as cooptações ideológicas feitas pelo Estado brasileiro. Privilegiou-se o enfoque, entre outros autores, de Thompson (1987), que sustenta que a reconstrução fenomênica e específica das experiências da classe pode explicar as suas trajetórias, ainda que não privilegie seus pontos de chegada. Também vale colocar nessa introdução a referência de Przeworski (1989), que estabelece importante e minucioso estudo da trajetória histórica que envolve esse problema conceitual e teórico. Este autor entende que as classes não são determinadas unicamente por quaisquer posições objetivas, porque constituem efeitos de lutas e essas não são determinadas exclusivamente pelas relações de produção. Dessa feita, Przeworski (1989) salienta que as classes são formadas como efeito de lutas e que o processo de formação de classes é perpétuo, sendo continuadamente organizadas, desorganizadas e reorganizadas; assim, a formação de classes é um efeito da totalidade das lutas nas quais diversos agentes históricos procuram organizar as mesmas pessoas como membros de uma classe. No que tange aos objetivos mais gerais, pretendeu-se estudar o tema da classe dos sapateiros em Franca pelo eixo das mudanças no universo produtivo, pois esse, em seu cotidiano, possibilita a invenção de novas tradições (HOBSBAWN; RANGER, 1997) 1. Esse panorama, acerca do conceito de classe trabalhadora será enfocado na seção 2. A fabricação do calçado necessita, ainda para os padrões atuais, de importante emprego de trabalho vivo, assim essa característica também acompanha o sapateiro “moderno”, que diante do processo de fragmentação do trabalho produtivo e face aos novos métodos de gestão disciplinar, insere-se a esse sistema, criando e inventando novo ethos de sociabilidade e identidade. Os sapateiros, enquanto classe, inserem-se no processo fordistataylorista de produção, momento de consolidação do pólo calçadista em Franca, tecendo 1 Nos textos apresentados pelos autores, esse conceito de invenção da tradição é criado para compreender os aspectos culturais, sobretudo, que acompanham a classe trabalhadora no legado da Revolução Industrial. 13 comportamentos sociais peculiares nessa nova demanda da história. Essa nova realidade social e econômica, no universo de experiências “modernas”, é assimilada pelos trabalhadores em uma construção de classe. Essas vivências, atitudes e expressões vão desde a resistência direta à disciplina autoritária do sistema produtivo, mas se observa também nas passagens lúdicas, digamos assim, dentro dos ambientes fabris, como os namoros, as brigas, as brincadeiras, enfim, as tentativas mais sublimes de buscar e inventar um espaço, mesmo que virtual, para ser feliz, mesmo que fosse necessário para isso “estragar” matéria-prima, escrever poesias ou desenhar em distintos locais de trabalho. Essas vivências operárias estão além do ambiente fabril e de suas próprias casas. Perceber um pouco desse espírito operário foi nosso intento. Nessa perspectiva, verificamos que os espaços desses trabalhadores são variados e ultrapassam as instâncias mais oficiais e institucionalizadas (como o sindicato). Ser “sapateiro” significa se integrar e pertencer às distintas classificações da profissão e, ao mesmo tempo, inaugurar e alimentar um sentimento coletivo que revigora as suas expectativas. Em outras palavras, verificamos que o processo de formação da classe operária em Franca/ SP se insere no interior da própria ordem da indústria moderno-tecnológica, intensificada após a ocorrência de transformações sociais oriundas da migração, do aumento da produtividade e da inserção no mercado externo. Nesse contexto, pode-se verificar, com expressiva e visível singularidade, algumas características culturais e sociais inerentes à classe operária. Esses aspectos são abordados nas seções 4 e 6. Na secção 5, apresentaremos a análise dos processos trabalhistas, numa perspectiva qualitativa. O esforço se concentra no período de 1968 a 1988, embora tenhamos informações pesquisadas anteriormente à essa periodização oficial, ou seja, dados coletados deste o ano de 1945, cujos processos até 1968 eram acolhidos pelos Cartórios Cíveis Municipais. No mesmo ano, é implantada a Junta de Conciliação e Justiça no município. No período indicado, coincide com a consolidação do pólo industrial, verificando que as 14 exigências dos operários em relação aos seus contratos de trabalho cresceram consideravelmente a partir de então. Aliados a busca de direitos trabalhistas, os sapateiros também se deparam com certo grau de inserção de tecnologia e mecanização na produção do sapato. Outro aspecto importante foi eleger as fontes dos processos trabalhistas como principais, descartando logo em seguida a utilização do recurso das fontes orais. Essa guinada ocorreu quando percebemos a possibilidade de descobrir importantes detalhes da vida operária nessas fontes, como por exemplo, um pouco da experiência profissional, a diversidade de faixas etárias e tarefas profissionais e outros aspectos da vida e expectativas desses trabalhadores, a vida em família, a vida em grupos de vizinhança, em associações e em atividades culturais e de lazer. Embora fizesse parte como objetivo de consulta e um prévio levantamento no início da pesquisa, o contato primeiro com os processos trabalhistas foi indireto, uma vez que fizemos consulta apenas nos catálogos informativos do Arquivo Histórico Municipal de Franca. Naquele momento, não tínhamos de fato a dimensão da variedade de processos e informações arquivadas. Essa primeira impressão foi sendo desmontada pouco a pouco, à medida que o manuseio de alguns processos, na consulta provisória de algumas caixas, ofereceu-nos singularmente um questionamento em relação ao nosso tema predominante na pesquisa, qual seja, a classe dos operários sapateiros na cidade de Franca. O contato com as fontes primárias propiciou um levantamento de informações dos processos trabalhistas encontrados no Arquivo Histórico Municipal de Franca para, em seguida, iniciar os processos de sistematização das informações colhidas. Devido ao número de processos e pela riqueza dos dados, optamos por um levantamento mais criterioso e objetivo, ano a ano, passando por uma tabulação sistemática. 15 É importante frisar que os registros e as informações foram levantados dos processos trabalhistas encontrados no Arquivo Histórico Municipal de Franca. Ademais, ante ao volumoso número de processos arquivados, fomos obrigados a estabelecer critérios para o levantamento de dados. O número de processos arrolados mais à frente, nos gráficos, esse período não representa a quantidade exata dos casos julgados pela Justiça do Trabalho em Franca, uma vez que existem processos, mesmo os mais antigos, que não podem ser arquivados em outro lugar, senão na Junta de Conciliação e Justiça Regionais. Ademais, ao longo do tempo, temos que considerar os extravios ou mesmo perdas, como exemplo, temos a situação de descarte, via incineração, feita pela própria Justiça do Trabalho dos processos dos anos de 1991 e 1992, ou seja, desses anos existem apenas as estatísticas dos anuários. Foi realizado também, por esse motivo, um levantamento estatístico junto às 1ª e 2ª Varas do Trabalho em Franca, assim como ao Tribunal Regional do Trabalho, 15ª Região, de Campinas. Entretanto, os números estatísticos concedidos por esses órgãos institucionais revelam um panorama geral de todas as áreas e categorias de trabalhadores. O esforço de nossa pesquisa optou por selecionar dados e informações somente do universo do setor calçadista em Franca, ou seja, além das indústrias, as bancas (lugares de produção terceirizadas) e seguimentos que produzem artefatos para calçado. À medida que aprofundávamos o levantamento de dados, ficava evidente a complexidade temática e teórica que envolve os processos trabalhistas. Para tanto, não nos prendemos na evolução histórica das leis, enfatizando somente o universo conflituoso em si. Nossa análise foge em parte às expectativas de um estudo mais aprofundado sobre a CLT e até mesmo sobre o campo do direito trabalhista no Brasil, esses aspectos serão rapidamente abordados. Esse enfoque será desenvolvido na seção 3. Em Franca, nosso levantamento aponta que, a partir de 1944, iniciam-se, de maneira mais efetiva, as demandas de ações trabalhistas, certamente devido à influência direta 16 da implantação da CLT de 1943, e bastante intensificada com a instauração das Juntas de Conciliações em todo Brasil, a partir de 1966. Os números de processos, nessa fase, anterior a 1968, são bem tímidos, uma vez que a morosidade no andamento desses se fazia presente. Ademais, vale destacar que se percebe certa desconfiança da Justiça nesse momento. Ou seja, o “contrato moral” entre as partes é mais legítimo e a esfera dos direitos trabalhistas não aparece nos processos pesquisados de maneira mais abrangente. Por outro lado, os números indicam o ascendente aumento da demanda, levando em conta que a Justiça Trabalhista cresce em estrutura à mesma proporção desse aumento. Quanto a esse aspecto, inserimos, na seção 3, reflexões acerca da judicialização da questão social, via aumento do número da demanda de processos trabalhistas em todo Brasil, a partir do final da década de 1980 e durante toda a década de 1990. Esse tema vem sendo debatido com muito afinco por distintos setores acadêmicos, mas se refere, de maneira geral, ao papel crescente da justiça na vida social e política nas sociedades contemporâneas. Em nosso trabalho, esse aspecto da judicialização pode ser verificado também, em momento anterior ao citado, na maneira como os trabalhadores inventam sua relação com a Justiça do Trabalho. No que diz respeito à Justiça do Trabalho, não se pode deixar de perceber que as classes trabalhadoras, no conflito capital/trabalho, fazem leitura e uso dessa justiça de modo diverso, às vezes, guiados ou tutelados pelas representações classistas, outras, de forma individualizada, como o exemplo dos camponeses e trabalhadores rurais expropriados na década de 1960 (STEIN, 1997). Esse movimento representa uma busca ou uma saída alternativa de alguma adversidade. Para a realização da pesquisa empírica, foi elaborado um programa de banco de dados específico para nosso estudo, o qual contam com todas as informações arroladas nos gráficos e tabelas. Neste banco de dados, estabelecemos um eixo de coleta de informações 17 que segue basicamente os dados elencados nos processos trabalhistas, qual seja: a data, o nome do reclamante (em geral operários), o reclamado (empresas), assistência judiciária, advogados de ambas as partes, motivo da reclamação, o resultado da reclamação e a data de encerramento do processo. A essas informações, adicionamos especificamente: qual o tipo de empresa (indústria, banca ou outro seguimento), a quantidade de reclamantes, se haviam menores no processo e um espaço para observações gerais quando necessário. Conjuntamente ao levantamento de dados, sempre anotávamos e separávamos alguns processos, a exemplo dos citados acima, que vão merecer uma análise mais atenta mais adiante. 18 2 CLASSE E TRABALHADORES Certamente a antológica frase, “A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes” (MARX; ENGELS, 1980, p. 08), inaugura de fato um novo jeito de se entender os conflitos humanos, refletindo em perspectiva histórica o momento específico de profundas transformações sociais. Entretanto, seu essencial mérito não se restringe e nem tem a pretensão de exigir obrigatoriamente uma conceituação de “classe” para momentos históricos anteriores; não é a “classe” o foco analítico, mas sim o conflito, entre opressores e oprimidos, de patrícios, cavaleiros, plebeus e escravos na Antiguidade Clássica, assim como senhores feudais, vassalos, mestres, oficiais e servos na Idade Média. O que nos afirmam Marx e Engels é que essa sociedade que “brota das ruínas do feudalismo” não rompe com esse antagonismo, ao contrário, intensifica-o na divisão de duas classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado. Esse é o contexto da criação histórica das classes sociais, ou seja, não há classes sociais antes do advento da sociedade burguesa capitalista. Nesse sentido, refletindo sobre a ausência de definição formal de classes em Marx, Ridenti (2001, p. 13), fundamentando-se em diversos autores, define em um aspecto amplo, o termo classe, como os grandes grupos humanos que se relacionam e lutam entre si para produzir o próprio sustento, criando relações de dominação para apropriarem-se do excedente gerado além do mínimo necessário à subsistência. Na perspectiva marxista o proletariado é definido como classe no nível das relações econômicas, o qual adquire espontaneamente a consciência de sua missão histórica revolucionária, auxiliada em certo sentido pela função do partido político apoiando e participando da luta dessa classe economicamente definida. O problema então consistia em organizar esse proletariado em classe, separá-lo das massas, imbuí-lo da consciência de sua posição e missão e organizá-lo em um partido. Porém, como salienta Ridenti (2001, p. 24), a 19 existência da classe operária não se resolve num agrupamento de indivíduos, a classe operária não se confunde com a totalidade do proletariado, nem mesmo com um conjunto de agentes aos quais se atribui uma consciência possível. Ou seja, o caminho de constituição da classe, e da consciência de classe, não é predeterminável. Entretanto, a organização das classes sociais ocorre, de fato cria Marx, no decorrer das lutas e apenas no decorrer das lutas é uma classe. Porém não fica claro como Marx via a ocorrência da transformação de categorias econômicas em classes politicamente organizadas. Przeworski (1989)2 tece importante análise sobre a organização do proletariado em classe e o processo de formação de classes. Aponta uma dificuldade encontrada pela teoria marxista em analisar a estrutura de classes capitalistas que remonta à época do movimento socialista do século XIX. Segundo Przeworski (1989, p. 67), as raízes dessa problemática são encontradas na formulação de Marx, na qual os processos de formação de classes são vistos como uma transição necessária de uma “classe em si” para uma “classe para si”, formulação essa em que as relações econômicas são classificadas como condições objetivas e todas as outras relações são consideradas como pertencentes a esferas de ações subjetivas. Nesse sentido, na estrutura de relações capitalistas, as classes aparecem como categorias de pessoas ocupando posições semelhantes em relação aos meios e ao processo de produção. Quer dizer, pessoas concretas aparecem apenas como “personificações” de tais categorias, “portadores” ou “mantenedores” dos lugares. Esse é o nível da “classe em si”, da classe identificada em termos de características objetivas. Entretanto, alguns problemas aparecem nessa formulação, afinal qual é o caminho da transformação de uma classe em si em uma classe para si? Ademais, quais são as classes que movem a história: aquelas definidas como lugares nas relações de produção ou as que aparecem como lugares de produção ou as 2 Este estudo possibilita revigorar a teoria marxista das classes, integrando formalmente as esferas cotidianas de construção de interesses, valores e identidades ao mundo da produção, ou seja, articulando “estrutura” e “experiência”. 20 que surgem como forças políticas? Pensar sobre essas questões consiste necessariamente refletir sobre o processo de formação das classes. A classe em si era uma categoria definida em nível de “base”, simultaneamente objetiva e econômica. Porém, segundo a tendência mais ortodoxa, as condições objetivas não conduzem espontaneamente, “por si mesmas”, à organização política das classes. Num certo limite, levam à formação de uma consciência do proletariado de caráter reformista, sindicalista e burguês. Assim, as classes só se formam politicamente como resultado de uma intervenção organizada de um agente externo, ou seja, o partido. Nesse sentido, a função do movimento socialista é conferir à luta de classe do proletariado à forma mais eficaz, apoiar a classe trabalhadora em sua luta constante, incentivando suas instituições políticas e econômicas. Entretanto, cabe reiterar que em boa medida a idéia de socialismo só chegava à classe trabalhadora vinda “de cima”. Ao contrário da formulação teórica citada acima, as classes devem ser consideradas como efeitos de lutas estruturadas por condições objetivas que são simultaneamente de ordem econômica, política e ideológica. Por conseguinte, a formação das classes é efeito de lutas e o resultado desse processo é, em cada momento da história, em certa medida, indeterminado. Assim sendo, a análise de classes não se pode limitar às pessoas que ocupam lugares no sistema de produção. Na perspectiva marxista, por muito tempo, acreditou-se efetivamente que a constituição do proletariado em classe, de 1848 a 1890, era um fato consumado e assim permaneceria dali por diante. Portanto, cabe nesse momento inserir abordagens de autores que renovam essa perspectiva, incluindo a trajetória e os elementos sociais, culturais, econômicos e políticos que se inserem na experiência de classe em cada lugar e época, indicando sempre um momento privilegiado, no qual a classe trabalhadora aparece mais visível. 21 Observa Hobsbawm (1987b, p. 273) que, embora as classes nunca estejam prontas no sentido de acabadas, ou de terem adquirido sua feição definitiva, é somente a partir de 1820 e 1930, na Inglaterra e parte da Europa, que é possível aplicar esse termo de classe trabalhadora, em distinção aos trabalhadores tradicionais. De maneira parecida, Thompson (1987), salienta que a classe operária não surgiu tal como o sol em uma hora determinada e que por classe entende ser um fenômeno histórico que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Nessa reflexão, a classe não vista como uma “estrutura”, nem mesmo como uma “categoria”, mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas. Thompson imprime a seguinte reflexão: Contudo, uma vez tomadas todas as precauções necessárias, o fato relevante do período entre 1790 e 1830 é a formação da ‘classe operária’. Isso é revelado, em primeiro lugar, no crescimento da consciência de classe: a consciência de uma identidade de interesses entre todos esses diversos grupos de trabalhadores, contra os interesses de outras classes. E, em segundo lugar, no crescimento das formas correspondentes de organização política e industrial. Por volta de 1832, havia instituições da classe operária solidamente fundadas e autoconscientes – sindicatos, sociedades de auxílio mútuo, movimentos religiosos e educativos, organizações políticas, periódicos – além das tradições intelectuais, dos padrões comunitários e da estrutura da sensibilidade da classe operária. O fazer-se da classe operária é um fato tanto da história política e cultural quanto da econômica. Ela não foi gerada espontaneamente pelo sistema fabril. (1987, p. 17, v. 2). Na perspectiva de Thompson, a classe operária nesse momento é tomada como tendo uma existência real, capaz de ser definida quase materialmente, em uma quantidade de homens que se encontra em uma relação com os meios de produção. Uma vez isso assumido, torna-se possível deduzir a consciência de classe que “ela” deveria ter (mas raramente tem), se estivesse adequadamente consciente de sua própria posição e interesses reais. Há uma superestrutura cultural, por onde esse reconhecimento desponta sob formas ineficazes. Essas “defasagens” e distorções culturais constituem um incômodo, por isso fica mais fácil passar 22 para alguma teoria substitutiva, qual seja, o partido, a seita ou o teórico que pode “desvendar” a consciência de classe não como ela é, mas como ela deveria ser. É possível falar de uma nova forma de consciência dos trabalhadores em relação à sua situação enquanto classe, pois essa experiência coletiva passava por algumas circunstâncias que estavam presentes na sociedade inglesa do período referido, tais como a liberdade de imprensa, o aumento da força sindical, a experiência cooperativa, a consciência política, a educação popular (com exemplo da leitura coletiva dos periódicos, por causa dos preços), da cultura peculiar desses trabalhadores. Também ilustra que o lugar da classe operária era muito visível, nos cafés, livrarias ou estalagens os quais se tornavam lugares políticos por excelência. O proletariado, no período citado acima, oscila constantemente entre os proletários que eram os assalariados e executavam o trabalho manual na indústria, transporte e agricultura, e todos os que não possuíam meios de produção e precisavam vender sua força de trabalho para sobreviver. Mesmo a maioria dos agricultores, pequenos produtores e comerciantes, chegaram a ser considerados proletários. Segundo Przeworski (1989, p. 74), o conceito de proletário pode ser comparado a círculos na superfície da água: o centro é formado de trabalhadores manuais, especialmente empregados na indústria; em torno dele, flutuam várias categorias de pessoas separadas dos meios de produção; na periferia, situam-se aqueles que ainda detêm a propriedade dos meios de produção, mas cujas condições de vida os diferenciam dos proletários tão somente por suas “pretensões”. A noção de classe operária, intensificada pelo processo de proletarização, excluía secretárias e administradores de empresa, enfermeiras e advogados de grandes companhias, professores e policiais, operadores e diretores executivos. No entanto, são todos proletários, pois estão separados dos meios de produção e forçados a vender sua força de trabalho em troca de salário. Entretanto, a grande parte dos empregados de colarinho-branco não se 23 considera incluídos na classe operária, sendo predisposta à ideologia burguesa, contrariando, de certa forma, a afirmação de Marx e Engels a qual sustenta que “a burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas veneráveis e encaradas com piedoso respeito. Do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio fez seus servidores assalariados”. (1980, p. 11). Przeworski (1989, p.78), salienta que Sombart, em 1896, defende que para obtermos uma verdadeira concepção da classe operária, precisamos nos libertar daquela imagem da multidão esfarrapada que o termo nos trazia à mente antes de lermos Marx. O termo proletariado pouco a pouco passa a ser empregado em um sentido técnico para descrever a parcela da população que está a serviço de empresários capitalistas em troca de salários e elementos semelhantes. O problema torna-se ainda mais complexo pelo fato de os operários nem sempre serem as pessoas mais pobres de seu meio e alguns operários ganham mais que professores universitários; nos EUA, a renda média dessa classe se encontra em patamar não muito inferior ao da remuneração máxima de um extraordinário catedrático na Prússia. Não admira que Weber (1983)3 julgasse necessário distinguir entre “situação de classe” e “situação de status”. Sua crítica sobre o conceito de classe de Marx fornece o alicerce teórico para a análise da diferenciação social (estratificação) na sociologia burguesa. Segundo Weber (1983), a posição nas relações de produção (propriedade dos meios de produção) não é suficiente para determinar a situação de classe, uma vez que as posições nas relações de distribuição (mercado, estilo de vida e condição de dependência) e nas relações de autoridade (poder) não refletem unicamente as relações de propriedade. Ademais, o status e poder não são dicotômicos. O sistema de estratificação distribui as pessoas ao longo de estratos contínuos, com a classe média avolumando-se no meio. 3 Max Weber, ao separar analiticamente as dimensões econômicas, política e social da distribuição do poder nas sociedades foi mais longe: deu um sentido mais preciso ao termo “classe”, distinguindo-o dos fenômenos ligados à distribuição da honra e do prestígio sociais. Tal separação analítica permitiu que se pudesse problematizar, desvinculada da distribuição econômica de riquezas, a comunidade, nas sociedades modernas, dos fenômenos de distribuição da honra e do prestígio sociais. 24 Em relação às orientações weberianas, é preciso considerar que as sociedades capitalistas modernas consistem em numerosos grupos, estes, entretanto, não se formam arbitrariamente. São gerados por relações objetivas: relações de propriedade e de autoridade, mutuamente interdependentes. Entretanto, é bom salientar que a propriedade é apenas um exemplo especial de autoridade, por isso a sociedade capitalista é construída sobre a autoridade e não somente sobre a exploração. No que diz respeito ao processo de proletarização e formação das classes sociais, Przeworski (1989, p. 81) argumenta acerca do duplo significado desse conceito, primeiramente, em termos da destruição de lugares na organização da produção pré-capitalista e nos primórdios do capitalismo, significa a separação da propriedade dos meios de produção e da capacidade de transformar a natureza com recursos próprios. Em seguida, contudo, em termos de criação de novos lugares no interior da estrutura do capitalismo desenvolvido, o termo proletarização não denota, necessariamente, a criação de novos lugares relativos a trabalho produtivo manual. Artesãos, pequenos comerciantes e camponeses não se transformam, necessariamente, em operários manuais produtivos. Passam a compor uma variedade de grupos cujo status é teoricamente ambíguo. Esse é um problema conceitual que perdura até hoje e pessoas denominadas de empregados de colarinho-branco, operários nãomanuais, orvriers intellectuels, empregados de serviços, técnicos como “novas classes médias”. Essa reflexão teórica sobre o processo de formação das classes é pertinente para nosso trabalho, uma vez que enfatizamos a importância dos trabalhadores no processo que constituiu e consolidou o parque industrial em Franca. Vale a pena destacar, nesse sentido, que a identidade do sapateiro em Franca é construída fortemente com apelo ao trabalho, alinhando as classes sociais em torno dessa configuração, ou seja, tanto para o empresário como para o “passador de cola”, ser sapateiro parece ter um significado comum. Observar e 25 localizar o conflito de classes nesse jogo de relações não é tarefa fácil. Portanto, mais que abordar ao papel das classes sociais, é preciso entender antes um pouco dessa dinâmica. Esse elemento amortecedor do conflito de classe, encontrado na super-valorização do trabalho, pode ser esclarecedor, uma vez que o aspecto operário parece perpassar essas fronteiras, aspecto que foi trabalhado em recente reflexão4, a qual verifica que muitos empresários de sucesso do município fazem questão de afirmar essa característica nas suas condutas, dizendo-se sapateiros, omitindo sua condição social presente. Quanto à fabricação do calçado, alguns aspectos merecem já serem inseridos, os quais dão peculiaridades específicas a este setor. Historicamente, a indústria do calçado é uma atividade de nível tecnológico baixo, até mesmo para os dias atuais, constituindo em seu universo produtivo, em muitas funções, características manufatureiras. Esse aspecto manual, manufatureiro, o saber fazer, exige uma habilidade especial que cria um certo paradigma identitário para os operários, cunhada na trajetória do que significa ser sapateiro. Admitimos a dificuldade teórica em refletir acerca do processo de formação das classes, entretanto entendemos que fica patente a necessidade de abandonar a ficção de uma divisão dicotômica de classes nas formações sociais capitalistas. Afinal, quem são todas essas pessoas geradas pelo capitalismo a um ritmo cada vez mais acelerado, que são separadas dos meios de produção, forçadas a vender sua força de trabalho em troca de salário e que, contudo, não trabalham, vivem, pensam e agem realmente como proletários. Considerar todas as classes, menos o proletariado e a burguesia, como ascendentes ou descendentes em relação a esses pólos básicos no decorrer da história do capitalismo parece não se constituir a alternativa única. A contribuição de Poulantzas (1978), nesse contexto, foi reconhecer que as relações ideológicas e políticas são objetivas com respeito às lutas de classes. Nessa 4 Ver BARBOSA, Agnaldo de Sousa; MENDES, Alexandre Marques. Capital, trabalho e formação da classe na indústria de calçados. In.: ______. Políticas Públicas e Sociedade. v.1; n. 5; Jan./Jun.; 2003. p. 63-71. 26 perspectiva, a luta de classes é determinada pela totalidade das relações econômicas, ideológicas e políticas que caracterizam uma situação histórica específica, mas é determinada até os limites dos possíveis efeitos das lutas de classes sobre essas relações. Essa interpretação, que atribui às relações políticas e ideológicas o status de condições objetivas de lutas de classes, desliga-se dos elementos economicistas inerentes à formulação da “classe em si”. Ademais, a noção de classe traz consigo a noção de relação histórica. Considerando o que salienta Thompson: [...] a mais fina rede sociológica não consegue nos oferecer um exemplar puro de classe, como tampouco um do amor ou da submissão. A relação precisa estar sempre encarnada em pessoas e contextos reais. Além disso, não podemos ter duas classes distintas, cada qual com um ser independente, colocando-as a seguir em relação recíproca. Não podemos ter amor sem amantes, nem submissão sem senhores rurais e camponeses. A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõe) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são travadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe. (1987, p. 10). Dessa maneira, acrescenta Thompson, a classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, esta é sua única definição. Nesse intento de pensar sobre a dinâmica das classes, é crucial inserir algumas orientações defendidas por Pierre Bourdieu (2003), que faz uma crítica das construções teóricas sobre as classes sociais, principalmente a marxista, descrevendo, por sua vez, o campo social como um espaço multidimensional de posições tal que qualquer posição atual pode ser definida em função de um sistema multidimensional de coordenadas cujos valores correspondem aos valores das diferentes variáveis pertinentes. Bourdieu (2003, p. 134), entende que se pode representar o mundo social em forma de um espaço (de várias 27 dimensões) construído na base de princípios de diferenciação ou de distribuição construídos pelo conjunto das propriedades que atuam no universo social considerado. Os agentes e grupos de agentes são assim definidos pelas suas posições relativas nesse espaço. Cada um deles está acantonado em uma posição ou em uma classe, que precisa de posições vizinhas. Na medida que as propriedades tidas em consideração para se construir este espaço são propriedades atuantes, ele pode ser descrito também como campo de forças, quer dizer, como um conjunto de relações de força objetivas impostas a todos os que entrem nesse campo e irredutíveis às intenções dos agentes individuais ou mesmo às interações diretas entre os agentes. As propriedades atuantes, tidas em consideração como princípios de construção do espaço social são as formas de poder ou de capital que ocorrem nos diferentes campos. A posição de um determinado agente no espaço social pode assim ser definida pela posição que ele ocupa nos diferentes campos, quer dizer, na distribuição dos poderes que atuam em cada um deles, seja, sobretudo, o capital econômico – nas suas diferentes espécies –, o capital cultural, o capital social e o capital simbólico, geralmente chamado de prestígio, reputação, fama, etc. Esse é a forma percebida e reconhecida como legítima das diferentes espécies de capital. Assim, nessa perspectiva, para Bourdieu (2003, p. 136), com base no conhecimento do espaço das posições, podem-se recortar classes no sentido lógico do termo, quer dizer, conjuntos de agentes que ocupam posições semelhantes e que, colocados em condições semelhantes e sujeitos a condicionamentos semelhantes, têm com toda a probabilidade, atitudes e interesses semelhantes, logo, práticas e tomadas de posição semelhantes. Observa-se que a classe no papel, como sugere Bourdieu (2003), tem a existência teórica, enquanto produto de uma classificação explicativa. Não é realmente uma classe, uma classe atual, no sentido de grupo e de grupo mobilizado para a luta. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que é uma classe provável, enquanto conjunto de agentes que 28 oporá menos obstáculos objetivos às ações de mobilização do que qualquer outro conjunto de agentes. Bourdieu (2003, p. 137) sustenta que as classes que podemos recortar no espaço social (por exemplo, por exigências da análise estatística que é o único meio de revelar a estrutura do espaço social) não existem como grupos reais, embora expliquem a probabilidade de se constituírem em grupos práticos, famílias, clubes, associações e mesmo “movimentos” sindicais ou políticos. O que existe é um espaço de relações que é tão real como um espaço geográfico, no qual as mudanças de lugar se pagam em trabalho, em esforços e sobretudo em tempo. Não é por coincidência que, praticamente, em todos processos trabalhistas levantados e analisados nessa pesquisa, as diferentes e variadas categorias e funções no universo produtivo do calçado são representadas pelo termo sapateiro. Ser sapateiro e estabelecer-se sapateiro necessita de uma história de esforços de diversas naturezas que proporcionam, a um só tempo, a valorização simbólica da profissão e a possibilidade de ocupar novas posições nesse abstrato e rico espaço de relações. É pertinente considerar que o mundo social, por meio das propriedades e das suas distribuições, segundo Bourdieu (2003), tem acesso, na própria objetividade, ao estatuto do sistema simbólico. O espaço social e as diferenças que nele se desenham “espontaneamente” tendem a funcionar simbolicamente como espaço dos estilos de vida, isto é, de grupos caracterizados por estilos de vida diferentes. Nesse sentido, é importante reforçar, que uma classe não é sinônimo de um coletivo homogêneo e fechado, mas sobretudo, a classe passeia ou paira no âmbito do espaço das relações, não somente sociais e econômicas, mas também culturais e simbólicas e que, por isso mesmo, buscam uma distinção inerente à sua condição. Nessa perspectiva, ser sapateiro, entrelaçado às funções do fabrico do calçado, é ser reconhecido por todos, atribuindo uma faceta do capital simbólico, que impõe uma instância 29 oficial, sendo o título profissional de uma espécie de regra jurídica de percepção social, um ser-percebido que é garantido como um direito. Esse é um capital simbólico não apenas institucionalizado, mas legítimo. Do ponto de vista científico, segundo Bourdieu (2003, p. 150) o estudo das classes deve ter em vista estabelecer um conhecimento adequado não só do espaço das relações objetivas entre as diferentes posições constitutivas do campo, mas também das relações necessárias estabelecidas pela mediação dos habitus dos seus ocupantes. Por outras palavras, a delimitação objetiva de classes construídas, quer dizer, de regiões do espaço construído das posições, permite compreender o princípio e a eficácia das estratégias classificatórias pelas quais os agentes têm em vista conservar ou modificar este espaço – e em cuja primeira fila é preciso contar a constituição de grupos organizados com o objetivo de assegurarem a defesa dos interesses dos seus membros. De maneira sofisticada, Boudieu (2003, p. 160) argumenta que o modo de existência daquilo a que hoje se chama, em muitas sociedades (com variações, evidentemente), “classe operária”, é perfeitamente paradoxal: trata-se de uma espécie de existência em pensamento, de uma existência no pensamento de uma boa parte daqueles que as taxinomias designam como operários, mas também no pensamento dos ocupantes das posições, mas afastadas desses últimos no espaço social. Essa existência reconhecida quase universalmente se assenta ela própria na existência de uma classe operária em representação, quer dizer, de aparelhos políticos e de porta-vozes permanentes, vitalmente interessados, em crer que ela existe e em fazê-lo crer tanto àqueles que a ela pertencem como àqueles que a rejeitam, capazes de fazer falar a “classe operária” – e de uma só voz –, de evocar, como se evocam os espíritos, de a invocar, como se invocam os deuses e os santos patronos, e até mesmo de a exibir simbolicamente através da manifestação, espécie de aparato teatral da classe em representação, com o corpo da sua existência – siglas, emblemas, insígnias – por 30 um lado e, por outro, a fração mais convicta dos crentes que, pela sua presença, permite que os representantes detêm a representação da sua representatividade. Para Bourdieu, essa classe operária como “vontade e representação” nada tem da classe em ato, grupo real realmente mobilizado, que a tradição marxista evocava. Mas nem por isso ela é menos real, embora a sua realidade seja aquela realidade mágica que define as instituições como ficções sociais. Essa classe, verdadeiro corpo místico, criada à custa de um imenso trabalho histórico de invenção teórica e prática, incessantemente e sem fim que são necessários para produzir e reproduzir a crença e a instituição que garante a reprodução da crença, existe no corpo de mandatários (por meio dele), os quais lhe dão uma palavra e uma presença visíveis; na crença da sua existência, que este corpo de plenipotenciários consegue impor, pela sua existência e pelas suas representações, na base das afinidades que unem objetivamente os membros da mesma “classe no papel” como grupo provável. Segundo Przeworski (1989, p. 85), no papel, podem-se enquadrar as pessoas nas classificações que desejar, mas na prática política é preciso tratar com pessoas de carne e osso, com seus interesses e consciência dos mesmos. E tais interesses, quer sejam ou não ‘reais’, não são arbitrários; tampouco é arbitrária sua consciência e a própria prática política que os forja. As classes são formadas no decorrer de lutas, que essas lutas são estruturadas por condições econômicas, políticas e ideológicas sob as quais ocorrem, e que essas condições objetivas (simultaneamente econômicas, políticas e ideológicas) moldam a prática de movimentos que procuram organizar os operários em uma classe. Assim, as classes não são um elemento anterior à história das lutas concretas. A realidade social não se evidencia diretamente por intermédio dos nossos sentidos, é na esfera da ideologia que as pessoas tomam ciência das relações sociais. Aquilo em que passam a acreditar e o que fazem é efeito de um longo processo de persuasão e organização por forças políticas e ideológicas engajadas 31 em numerosas lutas pela realização de seus objetivos. As divisões sociais, a experiência da diferenciação social nunca se manifestam diretamente à nossa consciência. As diferenças sociais adquirem a condição de divisões em conseqüência de lutas ideológicas e políticas. A luta ideológica, na definição das classes, é uma luta a respeito de classes antes de ser uma luta entre classes. Consideramos que “classe” é o nome de uma relação. Nessa perspectiva, não é o operário que está sendo constantemente organizado como classe e sim uma variedade de pessoas, algumas das quais estão separadas do sistema de produção. Os processos de constituição dos operários em classe não ocorrem no vácuo, são intrinsecamente vinculados à totalidade dos processos pelos quais uma coletividade surge em luta em determinados momentos da história. A experiência imediata das relações sociais, aquela baseada na renda, caráter do trabalho, lugar no mercado, prestígio das ocupações, etc. não se transforma por si mesma em identificação coletiva, pois é mediada pelas práticas ideológicas e políticas dos movimentos engajados no processo de formação de classes. Por isso mesmo acreditamos que ser sapateiro, na inserção do movimento de classes, está permeado de uma nuance que se revela rica de um capital cultural e simbólico que, de tempos em tempos, pode ser valorizada ou mesmo desprezada. 32 2.1 A análise das classes sociais no Brasil No Brasil, a inserção e o debate acerca do conceito de “classes sociais” se desenvolvem conjuntamente com a academia. Entender o Brasil como uma “sociedade multirracial de classes” estava no horizonte de preocupações intelectuais. Cabe ressaltar que a análise sociológica passou a ter explicitamente as classes sociais, e seu desenvolvimento no Brasil, como objeto fundamental. O conceito de classes sociais entra nos anos 1960 com o claro predomínio daqueles que consideram a análise de classe central para a explicação sociológica. A análise de classe é um estilo de explicação sociológica que se fundamenta no princípio de que a estrutura social e sua reprodução dependem, fundamentalmente, da ação das classes. Segundo Guimarães (1999), a própria idéia de sociologia passa a ser associada ao conhecimento de uma estrutura – a estrutura social – regida por leis científicas e, portanto, o principal objeto da pesquisa sociológica, mas também à condição de explicação mais plausível para os fenômenos mais diversificados. Portanto, nos anos 1960 constata-se à consolidação da influência do marxismo e de todas as formas de explicação estrutural na sociologia brasileira. Quanto à trajetória dos estudos operários, sobretudo da classe operária no Brasil, um vasto campo teórico se avoluma. Entretanto, a historiografia desse campo guarda em seus primórdios, principalmente referente à Primeira República, as denominadas produções e estudos dos militantes, ou seja, sindicalistas ativistas políticos de esquerda, como também jornalistas e advogados vinculados ao movimento operário. Boa parte das fontes, desse período, como os históricos de associações operárias podem ser encontrados em artigos na imprensa operária e sindical. Essas produções, segundo Batalha (2000), enquadrar-se-iam em um contexto de pré-história da classe operária, uma vez que a fundação do Partido 33 Comunista, em 1922, seria, para muitos pensadores, um momento inaugurador e uma nova etapa na vida da classe operária. Outro período que forneceu forte impacto consensual entre os estudos foi a chagada de Getúlio Vargas controle do Estado brasileiro. Nos estudos sobre a classe operária, no geral, traçavam um diagnóstico de que os anos 1930 haviam marcado uma ruptura no processo de desenvolvimento brasileiro com o esgotamento da economia agroexportadora, proporcionando bases para o desenvolvimento de uma nova economia urbano-industrial. Essas novas classes sociais teriam sido geradas pelos agentes principais da mudança social e política: o operariado, as classes médias urbanas e a burguesia industrial. São estudos que buscavam avaliar a ação, a força e o potencial político dos trabalhadores industriais brasileiros e procuram situar a classe operária como agente coletivo. Com a ditadura militar no país a partir de 1964, com todo clima de resistência, ocorre um ressurgimento dos estudos5 de formação da classe operária, agora sobre nova ótica: trata-se de reavaliar criticamente a estrutura sindical brasileira e as relações entre sindicalismo e Estado, trata-se de explicar os limites estruturais da ação transformadora da classe operária no Brasil e não sua suposta falta de consciência política. Todo esse embate teórico propicia um balanço crítico da produção brasileira sobre o movimento de classes. Na década de 1980, há uma ampliação da ênfase na investigação dos condicionamentos subjetivos da ação de classe e da formação de uma cultura operária no 5 De maneira geral esses trabalhos discutem as restrições estruturais, históricas à ação da classe trabalhadora no Brasil e as condições, objetivas e subjetivas, para o surgimento de uma nova classe operária e de um novo sindicalismo a partir das condições materiais e políticas dadas pela grande indústria brasileira. Os instrumentais conceitual e analítico utilizados nesse período são os de Antônio Gramsci (a teoria da hegemonia) e de Poulantzas (a teoria das classes). Em São Paulo, o movimento expandido pelo CEBRAP, seus maiores expoentes Francisco Weffort, José Arthur Giannotti, na análise da dialética marxista e Francisco de Oliveira, na corrente de análise macroeconômica inspirada no Capital de Marx. E também o estudo de Luiz Werneck Vianna, preocupado em relacionar movimento operário em relação ao Estado. 34 Brasil. Também cabe mencionar estudos de Vianna (1993)6 que, nesse período, já elabora uma revisão bem atenta acerca dos estudos e tendências desse universo temático. No Brasil, nutrida pela expectativa do modo como os movimentos populares e o movimento operário seriam capazes de se expressar politicamente. Na década de 1980, notase, portanto, há uma mudança conceitual, qual seja, os estudos se utilizam, sistematicamente, conceitos como “experiência”, “imaginário”, “cotidiano”, originários da história social e da filosofia política. Tais conceitos expressam a preocupação em tratar os dominados como criadores de seus próprios mundos, comprometendo a análise com a emergência da consciência de direitos, individuais e coletivos, por parte não apenas dos operários, mas das camadas populares. Uma perspectiva de análise importante desse período foi desenvolvida por Sader e Paoli (1986), a qual procuram ampliar o conceito de classe social para nele incluir o movimento social, ou seja, o processo de formação das classes a partir das práticas dos atores sociais, nas diversas esferas da vida cotidiana, produtiva ou não. Argumentam um contexto de classes populares, posto que tal termo indica “que o esforço do analista desloca-se do campo da delimitação das fronteiras entre classes, frações, categorias sociais, para o campo da compreensão específica da prática dos atores sociais em movimento” (1986, p. 59). As classes para Sader e Paoli, “seriam [...] um movimento coletivo presente duplamente, primeiro, experiência única com aqueles que se identificam com e em cada uma dessas situações e, segundo, na elaboração mais geral de todos, reconhecendo algo em comum entre experiências distintas” (1986, p. 61). O que os autores vêem de novo, teoricamente, é a possibilidade de redefinir o conceito de classe, com a “[...] descoberta da multiplicidade de espaços onde se faz a classe” (1986, p. 61). 6 Vale verificar os trabalhos de VIANNA, Luiz Werneck. A classe operária e a abertura. São Paulo: Cerifa, 1983 e também a obra Travessia: da abertura à Constituinte 86. Rio de Janeiro: Taurus, 1986, do mesmo autor, que trata de estudos sobre sindicalismo e movimento operário. 35 Esse período, citado acima, assistiu à ampliação dos enfoques sobre as classes no Brasil. Assim, no que diz respeito à classe operária, sua história deixou de ser unicamente a história do movimento operário organizado. Portanto, os sindicatos, partidos, correntes ideológicas deixaram de ocupar o primeiro plano. Ganhou força uma nova vertente e um redobrado interesse pelas análises do processo de trabalho, antes restrito à sociologia industrial. Ritmo de trabalho, relações com o sindicato, com o departamento pessoal das empresas, lazer, sistemas de interação horizontais e verticais, etc., são temas que ainda fazem parte de um território a ser descoberto e explorado. Todo esse movimento foi acompanhado da diversificação das fontes tradicionais (fundamentalmente a imprensa e outras), com o recurso das fontes judiciais, à documentação policial, aos arquivos de empresa, à história oral. Parte da riqueza dessa vertente, entretanto, foi a de pôr os estudos da classe trabalhadora em contato com tradições disciplinares, não apenas diversas, mas, no Brasil, inusitadas, tais como a administração, a antropologia urbana, a engenharia de produção e, principalmente, os estudos feministas. Os estudos de processo de trabalho foram também a porta de entrada dos estudos sobre a mulher na academia brasileira. A mudança na conjuntura ocorrida em fins da década de 1980, marcada pelo descenso do movimento operário sindical, a crise da esquerda, em uma perspectiva internacional agravada pelo desmantelamento do socialismo real e transformações sócioeconômicas em nível global exerceram efeitos significativos nesse processo. A interpretação dessas mudanças, a partir de 19907, sugerem que a história operária deixou de ter valor explicativo para o presente, papel que parecia desempenhar no início dos anos 1980 quando o movimento operário-sindical ocupava o primeiro plano. Recentemente, observa-se uma diversificação pelo modo com que as fontes são usadas, pelo tratamento dado ao tema e pela consolidação dos instrumentos e instituições que 7 Citar Gorz e Offe. 36 contribuíram para esses estudos. No que diz respeito às fontes de pesquisa, já está patente em muitos trabalhos a necessidade de empreender uma reavaliação das fontes tradicionais e de ampliar o leque das fontes empregadas. Seguramente, é possível propor novas leituras de fontes tradicionais como jornais, texto literário e outras; mas, ao mesmo tempo, há toda uma série de “novas” fontes, como processos na Justiça do Trabalho ou a iconografia do movimento operário, que ainda precisam ser devidamente exploradas. Além disso, salienta Batalha (2000, p. 156), há uma necessidade em se aprofundar esse estudos em suas dinâmicas regionais. 2.2 O sapateiro e o sindicato Em Franca, alguns estudos acadêmicos iniciam abordagem acerca da classe operária em Franca associada ao novo sindicalismo. Nota-se uma tendência, o que discordamos, de dividem a trajetória da classe operária em Franca, sobretudo os operários da indústria calçadista, em fases distintas: uma antes do forte movimento sindical iniciado nos anos 1980 e outro com o sindicato forte, responsável por revelar a verdadeira classe operária. Entretanto, tentamos demonstrar, com a pesquisa, que a trajetória da classe operária em Franca, no sentido político, têm rica movimentação em períodos anteriores. Ademais, adiantamos que a relação que os trabalhadores constroem com a Justiça do Trabalho, na busca por direitos também deve se inserir nesse esforço de compreender sua trajetória. Portanto, a perspectiva que privilegiamos não coloca em seu centro a dimensão associativa e sindical, assim como não aprofundamos reflexão acerca do novo sindicalismo, no decurso dos anos 1970 e 1980, o qual propõe novas abordagens à classe trabalhadora no Brasil. Tampouco, foi intenção questionar com mais afinco a dinâmica e herança do sindicato corporativista. 37 Em Franca, segundo Malatian (1996, p. 195), os estudos que focariam o tema da classe operária em Franca, surgiram a partir da década de 1980, principalmente com estudos vinculados à área de Serviço Social e Urbanismo, influenciados pelas manifestações sociais e grevistas desencadeadas naquele período sob a influência do “novo sindicalismo”. Estudos que davam um viés da atuação dos operários, dos sapateiros, como classe sujeito, sob os auspícios da organização sindical, como portadora de uma função revolucionária. Segundo a autora, a preocupação com o desinteresse pela sindicalização, o caráter paternalista do sindicalismo montado a partir de 1930 e a persistência do corporativismo constituem o eixo da reflexão deste viés analítico que privilegiou a compreensão da classe a partir da evolução do movimento sindical. Para Dominicci (1988) e Canoas (1993), no final da década de 1980, a história da classe trabalhadora na cidade estava relegada a um segundo plano pelos pesquisadores francanos. Nessa perspectiva, para ambos, no período de 1941 (Fundação do STICF) a 1982, o sindicato dos sapateiros foi marcado pelo modelo corporativista, caracterizando-se como mero agente de colaboração com os poderes públicos, com uma clara intenção em “abafar a luta de classes”. Nessa linha de análise, o sindicato, antes de 1982, tinha por excelência uma prática sindical anestésica, ou seja, estancando o movimento contraditório por meio de uma ação “pelega” que, segundo os autores, agarra-se ao poder com unhas e dentes. Segundo Oliveira, “a partir de 1982 a história dos trabalhadores sofreria uma guinada, em boa medida orientada pela montagem da oposição sindical, nas reuniões na Paróquia São Benedito, com a participação latente da Pastoral Operária” (2002, p. 78). Com os gráficos a seguir, expõe-se a movimentação dos processos trabalhistas, desde 1944, assim como a assistência judiciária realizada pelo STICF. 38 Assistência Judiciária - Cartório 2º Ofício Cível de Justiça da Comarca de Franca/ SP 60 Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Artigos de Couro de Franca - STIAC 51 50 Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Calçados de Franca STICF 40 Reclamação particular 30 30 Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários 17 20 7 10 1 Promotoria Pública 1 Em branco 0 1944 - 1963 GRÁFICO 1 - Assistência judiciária – Cartório 2º Ofício Cível de Justiça da Comarca de Franca/SP Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Franca Assistência Judiciária - Cartório 1º Ofício Cível de Justiça da Comarca de Franca/ SP 30 30 25 21 20 Assist ência Grat uit a (FAC. Dir eit o de Fr anca, OAB, Lei 1060/ 50) 15 Reclamação par t icular 10 5 Sindicat o dos Trabalhador es da Indúst r ia de Calçados de Fr anca - STICF Promot oria Pública 1 3 0 1964 - 1967 GRÁFICO 2 - Assistência judiciária – Cartório 1º Ofício Cível de Justiça da Comarca de Franca/SP Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Franca 39 Processos Trabalhistas Assistidos pelo Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Calçados de Franca - STICF 1968 1969 1970 1971 1000 944 1972 1973 900 1974 800 715 700 600 532 500 565 553 176 200 90 174 618 573 1976 1977 1979 1980 356 300 607 1978 416 400 100 1975 635 1981 272 206 248194 249 1982 1983 112 1984 32 1985 1986 0 1 1987 1988 GRÁFICO 3 - Processos trabalhistas assistidos pelo Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Calçados de Franca - STICF Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Franca Observa-se nos gráficos que a presença sindical em termos puramente de assistência judiciária é tímida, comparando-se a presença da promotoria pública e as reclamações trabalhistas particulares, no período que vai de 1964 à 1970. Entretanto, devemos ressaltar alguns aspectos importantes, primeiro é o papel que a justiça representa nesse momento político-social do país para os trabalhadores; em segundo, observar que com da instauração das Juntas de Conciliação e Justiça, em 1968, verifica-se o paulatino crescimento da demanda dos processos trabalhistas. A partir de 1968, inicia-se uma dinâmica nova de procedimentos em relação aos processos trabalhistas, reduzindo, entre outros fatores, o tempo de julgamento dos casos. Os números e gráficos não expressam por si a complexidade social e política do período, mas o aumento gradual da demanda também sugere que o peso da 40 legislação trabalhista, e da Justiça do Trabalho, no Brasil baliza as formas de reivindicação da classe operária, assim como as possibilidades de ação sindical. Nessa perspectiva, de acordo com nossa pesquisa com os processos trabalhistas, a movimentação da classe operária, em sentido político, pode ser observada bem antes do período eleito como corte divisor de 1982, sobretudo poderá ser mais vislumbrada na seção 5 com exemplos analisados no interior dos processos trabalhistas. Em questão está a imposição desse corte, cronológico, da classe operária em antes e depois de 19828. Para Souza (2003, p. 23) os trabalhos que seguem essa abordagem, impondo esse corte, dão ênfase à condição da classe operária em Franca, ligada intimamente ao movimento do começo da década de 1980. Criando uma história de personagens bem marcados, na qual todo percurso anterior permanece renegado. Também, os demais trabalhadores que não se filiam à chapa de oposição são caracterizados como uma massa alheia a sua condição, em outras palavras, era “alienado” ou “pelego”, indiferente ao mundo, conseqüentemente, carente de interesse histórico. Nesse sentido, os serviços prestados pelo sindicato, antes desse período, teriam o simples objetivo de manter a classe amorfa. Entretanto, como ilustramos na seção anterior e no gráfico 3, não é bem isso que verificamos, ao contrário, vê-se um ambiente de movimentação constante em torno do sindicato e fora dele. A partir de 1982, com o novo sindicato, sua estratégia foi intensificar a cobrança por justiça, dessa forma todo movimento a seguir se daria em exigir o cumprimento dos Acordos Coletivos e da legislação trabalhista. Nesse aspecto, é preciso ressaltar que esse movimento de judicialização das relações trabalhistas, já estava em curso, vale dizer que, 8 Nessa data nova diretoria do STICF ganha eleições. A idéia de operário que passa a vigorar está ligada a virada sindical, segundo também Maria Isabel Guimarães (2001, p. 110), a história da categoria operária dos sapateiros em Franca se reflete e se concretiza na história de sua representação corporativa: o sindicato. Trabalho que apresenta outra perspectiva é o de NUNES, Renata de Cássia. Sociabilidade operária em tempos de expansão industrial: o bar em Franca (1968-1980). 1999. (Mestrado em História) FHDSS/ UNESP-Franca. 41 antes do movimento do novo sindicalismo, apesar dos “pelegos”, já se percebia forte orientação na busca dos direitos trabalhistas (observados no gráfico 3, na ascendência processual nos anos de 1979 a 1981). A CLT e seus conceitos já faziam parte do cotidiano dos trabalhadores. Nesse sentido, a legislação trabalhista desprivatizou o espaço fabril ao introduzir “direitos genéricos, mas públicos” na relação entre trabalhadores e patrões. Segundo Guimarães (2001, p. 112), na vertente de análise anterior, a suposta apatia operária, antes do período anterior a 1982, estaria fundamentada pela limitada ou ausência representativa. Segundo a autora, a categoria dos sapateiros não reagia coletivamente a essa situação. Amorfa e desmobilizada limitava-se a produzir, buscava soluções de forma isolada e individual. Assim, antes o trabalhador teria o sentimento de revolta, mas não teria coragem para agir. Seria o novo sindicato o elemento simbólico essencial do poder do trabalhador na luta por direitos. Guimarães (2001, p. 114), acrescenta que ao peso do trabalho aliava-se a humilhação pessoal como, por exemplo, a necessidade de tirar fichas com o chefe ou gerente para usar os sanitários da empresa (o número de fichas chegava, em algumas fábricas, a ser limitadas a duas) ou a sujeição a gritos e desmandos no interior da fábrica. Soma-se a tudo isso, a completa falta de segurança no trabalho que mutilava muitos trabalhadores. Segundo a autora, diante desses abusos, embora revoltados os operários sentiam-se impotentes para reagir. Isso ocorria de fato, mas o que procuramos demonstrar anteriormente, na seção 5 deste trabalho, não acontecia de maneira passiva, a reação se dava de distintas maneiras, desde uma ação direta burlando as normas internas ou estragando a matéria-prima, assim como em posturas mais coletivas que afinavam os discursos e intenções operárias nos depoimentos das audiências trabalhistas. Portanto, essa impotência e apatia dos trabalhadores são um equívoco, muitas vezes os operários se rebelavam, até mesmo por via de agressão física. Por outras palavras, os sapateiros não estavam amorfos, ou seja, para aceitar a 42 disciplina é preciso haver uma compensação, uma troca, seja pela via do “contrato moral”, num primeiro momento, ou ainda pela via da Justiça do Trabalho. Entender o sentido histórico da própria classe dos sapateiros em Franca, pela perspectiva dos próprios trabalhadores é um desafio já abordado por alguns pesquisadores, para Malatian (1996) a história operária deve abranger, além da tradicional história centrada em sindicatos e partidos, as experiências diversas a partir das quais foi possível constituir uma identidade coletiva. A autora perseguiu a composição dessa identidade coletiva dos trabalhadores das indústrias de calçados centrando-se na análise de sua fala direta, referido-se na prática da rememoração9 por meio da realização de entrevistas. Dessa maneira, o “ser sapateiro”, incorporando a noção de experiência, privilegiou os operários não sindicalizados, bem como a vida dentro e fora da fábrica, ampliando o objeto de estudo. Cremos, nessa perspectiva, que a inserção da análise dos processos trabalhistas também tenha contribuído para isso. Souza (2003, p. 32), por sua vez, salienta que deve ser apreciada a perspectiva de que o espaço fabril ensejaria a eclosão de lutas autônomas, que seria ponto chave para entender a vida dos trabalhadores no local de trabalho. Ou seja, a tentativa de apresentar formas de organização dos trabalhadores em seu local de trabalho que, necessariamente, são resultados de relações estabelecidas com o mundo do qual os mesmos fazem parte. Essa suposição entende que os trabalhadores não são determinantes do processo histórico, nem tampouco, apenas objetivações de projetos políticos que se traduziam, por muito tempo, em produção partidária. Dessa forma, é possível afirmar que a observação das práticas cotidianas no local de trabalho pode apresentar as imbricações da vida do trabalhador com as instituições representativas da classe ou com o Estado, mesmo que não se traduzam em grandes 9 Ronaldo Aurélio Gimenes Garcia (1997), Migrantes mineiros em Franca, estuda a inserção dos migrantes mineiros no trabalho industrial e sua condição de vida na cidade. Utilizando-se das fontes orais, Garcia buscou reconstruir a condição da vida rural destes migrantes e sua entrada no mercado de trabalho fabril. Aponta a questão da interação do trabalho rural e urbano e sua importância quando observadas as formas de sociabilidade dos migrantes voltadas a sua inserção no mercado de trabalho. 43 movimentos de massas populacionais nas ruas e ainda que não se apresentem como mobilizações de tal visibilidade, possam apresentar um pouco das ações continuadas e comuns à maioria das pessoas. 44 3 JUSTIÇA DO TRABALHO E DIREITOS TRABALHISTAS NO BRASIL Considerar a importância da Justiça do Trabalho na perspectiva da formação da classe operária no Brasil é uma tarefa incômoda para muitos estudiosos. Por isso mesmo reivindicamos, a argumentação de Maria Célia Paoli (1987, p. 56) e Jonh French (2001, p. 10), segundo os quais a formação da classe operária brasileira não pode ser entendida sem considerar a intervenção legal do estado nas relações de trabalho cotidianas e o modo como a CLT serviu para moldar a demanda dos trabalhadores por justiça para constituir um horizonte cultural comum do que deveria ser dignidade e justiça nas relações de trabalho. Não há como negar que a partir de 1930, com o governo de Getúlio Vargas, a Justiça do Trabalho é inserida de forma inexorável no universo social barsileiro, considerando é claro o espírito corporativista, ratificada com a Constituição de 1934. A partir de então, a regulamentação da Justiça do Trabalho ocorre paulatinamente, baseando o seu funcionamento no modelo das Juntas de Conciliação e das Comissões Mistas10. A essa altura, o Estado já assumia a prática de controle do mercado de trabalho, cooptando, de certa forma, o movimento operário para os sindicatos ligados ao Estado. Não reconhecendo o direito de greve, o Ministério do Trabalho estrutura um controle financeiro das entidades sindicais e, praticamente, tem o poder de administrá-las, instituindo-se o atestado ideológico para os candidatos aos cargos eletivos dos sindicatos. Ademais, o imposto sindical, a regulamentação do salário mínimo e do direito às férias, assim como a criação da Carteira Profissional são as principais ferramentas dessa política trabalhista. 10 Em 1932, foram criado dois organismos destinados a solucionar conflitos trabalhistas, as Comissões Mistas de Conciliação e as Juntas de Conciliação e Julgamento. As Comissões tratavam de divergências coletivas, relativas a categorias profissionais e econômicas. Eram órgãos de conciliação, não de julgamento. Se as partes não conciliassem, era proposta a solução do conflito por meio de arbitragem ou o caso era encaminhado ao Ministério do Trabalho. Foram instaladas apenas 38 Comissões e sua atuação foi irrelevante por não poderem impor suas decisões. 45 Por sua vez, a Justiça do Trabalho se consolida, tornando-se mais sistemática e orgânica, com o Decreto nº 1237 de 1939. Segundo Kazumi Munakata (1984, p. 105) o espírito é transformar uma questão política de correlação de forças entre o trabalhador e o patrão numa questão jurídica e técnica, com suas regras e normas só acessíveis aos especialistas, incluindo-se, nessa categoria, os vogais. Por isso, a Justiça do Trabalho, prevista já na Constituição de 1934, só foi instituída durante o Estado Novo, quando os sindicatos já estavam totalmente atrelados ao Estado e os trabalhadores sem condições de resolver por suas próprias mãos os conflitos de trabalho. A Justiça do Trabalho e o direito do trabalho a partir de 1930, sistematizados na CLT de 1943, desenvolvem-se praticamente ao mesmo tempo. Segundo Carlos Eduardo Bosísio (1992) na concepção tradicional o direito do trabalho se divide em duas grandes partes: o direito individual do trabalho e o direito coletivo do trabalho. O direito individual do trabalho é aquele que se propõe disciplinar conflitos entre empregado, de um lado, como pessoa física determinada, e empregador, do outro lado. O pressuposto e a filosofia que inspira todo o direito individual do trabalho é que, como o empregado é economicamente fraco diante do empregador poderoso, a liberdade, a autonomia da vontade, que é o princípio básico do direito civil, está prejudicada. Ou seja, nessa ótica, “a liberdade escraviza; a lei que liberta”. Então, o Estado intervém contra a autonomia da vontade, por uma técnica legislativa que é, basicamente, a da imposição de um contrato mínimo, obrigatório para as partes, isto é, um contrato individual de trabalho em que a pessoa que vai trabalhar, independentemente do que ela ou do que o patrão diga, tem direito a uma jornada máxima, a um salário mínimo, a férias mínimas por ano. Quanto ao direito coletivo do trabalho, cabe sublinhar rapidamente que é aquele em que se encontram os conflitos do trabalho, isto é, conflitos que opõem o capital ao trabalho. De um lado, categorias profissionais, num grau de abstração, de generalidade, que 46 não distinguem quais são os integrantes da categoria, e, de outro, os empregadores ou o sindicato dos empregadores. Basicamente, é o direito sindical. Nesse aspecto, o que se entende é que o Estado, em uma concepção ideal, deveria conceder liberdade de atuação aos sindicatos, pois quanto mais livres, mais fortes serão e quanto mais livres mais poderão atuar. Livres na sua organização e ação, livres na greve, por exemplo, eles terão mais força perante o empregador e as partes. Nesse sentido, a Justiça do Trabalho e o direito do trabalho se inserem dentro de uma matriz ideológica do Estado Novo que se convencionou chamar de “ideologia da outorga”, corporativista, marcada pela intervenção do Estado no domínio social que suprimia o direito coletivo do trabalho, atrapalhava o espaço da livre negociação e subordinava os sindicatos na sua organização, no seu funcionamento, ao Estado. No plano formal da lei do direito individual do trabalho, dada inexistência das convenções coletivas, estabelecia-se um contrato individual que não era uma mera garantia de direitos mínimos, mas uma garantia realmente bastante extensa e uniforme de direitos, como um pacote imposto a todos os segmentos da sociedade, sem distinção entre o trabalho técnico e trabalho intelectual. Alerta-nos Bosisío (1992, p. 49) que a justiça do Trabalho foi concebida para aplicar legislação, funcionando como arbitro dos conflitos sociais. Entretanto, essa função de arbitrar conflitos sociais não é própria da justiça. Por isso explica-se que a Justiça do Trabalho não tenha surgido dentro do Ministério da Justiça, mas sim dentro do Ministério do Trabalho, pois era um órgão administrativo do Ministério do Trabalho. Somente em 1946, com a nova Constituição, pela primeira vez, a justiça do Trabalho foi colocada dentro do Poder Judiciário, outorgando-lhe uma independência do poder Executivo, indispensável ao exercício da função jurisdicional. 47 De 1946 a 1964, a Justiça do Trabalho cresceu e se desenvolveu como um ramo do Poder Judiciário, porém sempre dentro desses limites. Segundo Bosísio (1992, p. 51), nem a fase fase desenvolvimentista dos anos JK foi suficiente para inspirar uma modernização da Justiça do Trabalho ou da legislação trabalhista. A prova disso foi na instauração do regime autoritário no país em 1964, quando não aconteceu qualquer modificação mais profunda nas estruturas de organização sindical e de funcionamento da Justiça do Trabalho, bem como na legislação trabalhista. Uma nova lei, entretanto, oferece impacto significativo: a lei do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço11. No momento incipiente da ditadura militar no País, todos os empregados estavam obrigados a fazer da Justiça do Trabalho uma justiça mais do desempregado do que do trabalhador. Ninguém se aproximava da Justiça do Trabalho como empregado, pois a estabilidade tinha sido afastada. Aquela estabilidade absoluta, talvez nociva, que anestesiava, tinha sido substituída por nenhuma estabilidade, o que tornava inviável, na prática, a reclamação de trabalhadores contra seus empregadores. A Justiça do Trabalho para os desempregados também não era boa, pois havia uma prescrição muito curta dos processos, de dois anos, se o cidadão fosse reclamar horas extras de dez anos de trabalho, perderia, de imediato oito anos, por exemplo, e, ainda assim, os dois anos a que teria direito receberia com prejuízo, porque não havia correção monetária, que só seria adotada a partir de 1965. Foi com essa legislação que a Constituinte de 1988 se confrontou. 11 A substituição da lei da estabilidade pelo FGTS, Vera Botta Ferrante investiga essa mudança em função das necessidades de modernização do capitalismo: “Nesse projeto global, os responsáveis pela política econômica passam a sentir a exigência de substituir o instituto da estabilidade, que expunha as empresas a riscos financeiros, por um sistema mais funcional, que aperfeiçoasse o desempenho das instituições existentes, sem causar manifestações críticas das categorias sociais inerentes ao modo de produção capitalista”. (VIANNA, 1983, p. 169). 48 3.1 Breve histórico da Justiça do trabalho e da CLT A presença da legislação trabalhista, corporificada na CLT, ao lado de uma peculiar trajetória histórica da Justiça do Trabalho no Brasil consolida-se sob embates profundos na sociedade a partir de 1943. Pensar o país, sem ela, hoje em dia, é praticamente impossível, embora se verifique um esforço deliberado na tentativa de flexibilizar e adaptar as leis às situações no mercado atual. Entretanto, como aborda Ângela de Castro Gomes (1992) a dinâmica capitalista brasileira, no final do século XIX e princípio do século XX, longe da configuração posterior das leis trabalhistas, “tratava a questão social como um caso de polícia”, ou seja, viveu-se longos períodos de negação por parte do Estado, desse espaço dos conflitos sociais e trabalhistas. A tradição liberal burguesa, não consistia numa simples “ficção jurídica”, assinala Luiz Werneck Vianna (1999), ao contrário, era um instrumento teórico e institucional perfeitamente adequado à dominação burguesa: garantia o domínio absoluto do patrão dentro da sua empresa (em cujos assuntos, privados, o Estado não podia intervir) e assegurava a intervenção policial quando esse domínio fosse perturbado pelas agitações operárias. O que se observa é uma permanência desse caráter autoritário, por parte dos empresários que, mesmo sob a égide de transformações de diversas naturezas, assim como a consagração das Leis Trabalhistas, não impedem reinvenções de estratégias, hora alinhando-se às Leis, hora criticando e pedindo sua flexibilidade. É preciso considerar que o movimento operário, nessa fase histórica, inseria-se à margem de uma regulação estatal no que diz respeito ao universo das relações de trabalho no universo produtivo. O funcionamento dos sindicatos e associais operárias ocorria fora dos domínios do Estado. A perspectiva corporativista é iniciada com Getulio Vargas. 49 Segundo Adalberto Moreira Cardoso (2002, p. 497), é frágil o diálogo da sociologia brasileira com a ciência do direito e que a concepção a respeito do modelo brasileiro de relações trabalhistas demanda uma revisão, qual seja, do qualificativo corporativismo. É freqüente conceber, continua o autor em sua argumentação, que esse modelo de relações de trabalho se deve a seu “mau berço”, a inspiração fascista que presidiu sua elaboração durante o primeiro período Vargas. É inegável que o pensamento corporativista era uma das traves mestras de todo o empreendimento revolucionário de 1930, como demonstra Vianna (1999). Para Ângela Maria de Castro Gomes (1992, p. 09), a grande ironia da história da legislação trabalhista brasileira é o contraste entre a década de 1920 a de 1930. Cabe ressaltar o papel de Getulio Vargas na montagem de um sistema de resolução de conflitos inteiramente preso à lei e ao governo. Foi a partir 1930 que se deu o surgimento de uma legislação previdenciária e trabalhista no Brasil, foi no espaço de tempo entre 1931 e 1934 que a maioria dos projetos de leis sociais foi articulada. O Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio é um lócus estratégico da política nacional. Dessa forma, o sistema corporativista privilegia o Estado como centralizador na estruturação, no apoio e na regulação dos interesses dos grupos com o objetivo de controlar seus assuntos internos e as relações entre eles. Segundo Munakata (1984, p. 64), no Estado Novo, a indústria não poderia ser abandonada ao jogo da livre concorrência, deveria ser defendida por um organismo exterior, qual seja, o Estado. Esse Estado, que preconizava a melhoria da vida da população e, em particular, da classe operária, dependia da industrialização, e esta, precisava do protecionismo estatal. Nessa perspectiva, as leis trabalhistas e sua aplicação passou ser controlada não pelo movimento operário e os sindicatos, mas por um Estado tecnicamente aparelhado para essa função, inclusive absorvendo e controlando os próprios sindicatos. Nesse sentido, a criação, em novembro de 1930, do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (denominado 50 Ministério da Revolução) seria o aparelho estatal munido de instrumentos teóricos, técnicos, racionais, neutros, objetivos capazes de operar a redefinição do lugar das leis trabalhistas. É importante salientar que a tentativa do Estado, com o corporativismo, é substituir a noção de classe, pela idéia de corporação, grupo capaz de realizar a moralidade e a solidariedade social. Essa substituição “classe” para “corporação” representaria uma proposta de reordenação da sociedade, de modo que não haja mais luta de classes, organizando os patrões e os trabalhadores de uma mesma profissão como meras funções daquela profissão. Na corporação, portanto, os patrões e os trabalhadores formam um só grupo cujo interesse é apenas um: o da defesa da profissão. Portanto, todas as esferas da sociedade e as relações sociais são mediadas pelo Estado e sua presença é justificada como um meio de equilibrar a relação entre o patrão e o trabalhador que, nessa nova órbita, são denominados de empregadores e empregados. O impedimento da luta de classes se faz através da criação de canais competentes que absorvam os conflitos. Em outras palavras, procura-se exterminar a luta de classes retirando dos trabalhadores todas as possibilidades de controle e decisão sobre seu próprio destino. Entretanto, na relação das classes com o Estado, não funcionava o caráter corporativo em sentido forte, tinha sim um desenho legal corporativo utilizado para repressão e controle dos trabalhadores, como insistiu Vianna (1999). A legislação trabalhista, na noção corporativista, era pensada como um instrumento que o Estado julgava ser um caminho para instauração da verdadeira igualdade. Nesse sentido, a lei não deve ser igual para todos, mas explicitamente favorável aos mais fracos. Há de fato uma intromissão do Estado na questão social, como exemplo à participação explicita do Governo Federal como parte co-responsável pela previdência. Um universo que o Estado invade é o controle do mercado de trabalho, que antes era a grande questão do movimento operário. Para tanto os sindicatos devem atuar como agências controladoras desse mercado, porém esses também devem ser controlados. A 51 solução para o governo foi o corporativismo, que impõe essa perspectiva de uma nova estrutura sindical, que regula a sindicalização, a partir de 1931, como uma das primeiras medidas do Ministério do Trabalho. Ou seja, os sindicatos, subordinados ao Ministério do Trabalho, teriam a função de “para-choque” dos conflitos sociais. O movimento operário condena e critica os sindicatos “ministerializados” e a lei de sindicalização, apelidando Ministério do Trabalho de “Ministério de Tapeação” ou “Ministério do Trabalho Alheio”. Sobre esse aspecto, não é nossa intenção aprofundar esse debate tão prolífico, mas vale ressaltar que no início do Estado Novo, este instaurou uma verdadeira batalha para por em prática seu projeto corporativista, pois o controle dos sindicatos não se deu do dia para noite. Ou seja, a resistência dos trabalhadores e também a pouca eficácia das agências ministeriais em consolidar o projeto estatal, além do mais os sindicatos não oficiais – anarquista, comunista ou trotskista – prosseguem a sua busca do controle do mercado de trabalho, seja através das agências de colocação dos próprios sindicatos, seja através da elaboração de novas reivindicações (por exemplo, tabelas de salários) e a decretação de greves. É nesse contexto, em 1932, que se torna compreensível o dispositivo da lei que concede férias apenas aos associados pelo Ministério e também o surgimento da carteira profissional, que teria o status tal qual uma certidão de nascimento cívico. Assim, a estratégia estatal foi eleger a carteira profissional como um documento necessário para a apresentação de queixas às Juntas de Conciliação, para a obtenção de empréstimos pelas Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPS). Nessa perspectiva, a carteira profissional, que se constitui num documento cívico, como uma garantia e arma do trabalhador, nasce como um instrumento de controle e dominação. Para Munakata (1984, p. 90), além de ser documento para efetivar a “obrigatoriedade indireta” de sindicalização, a carteira profissional – cuja emissão é de exclusiva responsabilidade do DNT através do Serviço de Identificação 52 Profissional e das Inspetorias Regionais – visa substituir as antigas carteiras emitidas pelos sindicatos, que serviam para controlar as férias e para identificar o seu portador como um trabalhador idôneo e qualificado, garantido pelo sindicato. A luta contra a carteira profissional, bandeira do movimento operário naquela época, aos poucos foi se revertendo e esta foi se tornando um símbolo de inserção aos direitos trabalhistas. De maneira geral, lugar por excelência de formulação das normas e regras de uso do trabalho (legislação trabalhista), bem como das normas e regras da distribuição do fruto do trabalho (legislação social), era o Estado. Segundo Adalberto Moreira Cardoso (2002, p. 503), ao constituir o mercado de trabalho como espaço de regulação pública minuciosa, o direito do trabalho, em nosso país, minimizou essas potências instituintes de regras contratuais que são os órgãos de representação de classe. Assim, o aparelho de Estado12 se torna um lugar privilegiado da solução do conflito de direito não por ser esse aparelho de corte corporativista, mas por ser ele o lócus de produção de regulação sobre o mercado de trabalho. O conflito de interesse, típico do capitalismo, que opõe coletividades em luta pela distribuição da riqueza produzida pelo trabalho, foi tornado universal ao transformar-se em conflito de direito, e isso independentemente do caráter mesmo da assimilação dos órgãos de classe ao aparelho de estado. Utilizando de forma inédita a propaganda a seu favor como instrumento eficaz para a legitimação do governo, através da Secretaria da Presidência da República (SPR), no período posterior a 1930, o Estado varguista consegue impor sua hegemonia política e social, 12 Sobre Getulho Vargas, diversas tendências de estudos cristalizam a trajetória do Governo Vargas num “consenso corporativo”, em que parte dos códigos foram copiados da legislação da Carta del Lavoro, de Mussolini, visando o controle dos sindicatos. Entretanto, sublinha Jonh French, uma desvantagem desta vertente do “consenso corporativo” foi ter buscado uma “essência” por detrás da legislação. Desse modo, a lei não era vista como uma construção cultural, mas como um reflexo direto de uma ação intencional do Estado “burguês”. Por conseguinte, posteriormente a CLT seria uma imposição capitalista sobre os trabalhadores. Em O ABC dos operários, Jonh French diverge radicalmente da interpretação acima, segundo a qual o intervencionismo estatal, simbolizado pela CLT, seria uma “fraude burguesa”. Portanto, admitir que os direitos instaurados a partir de então serviam somente para iludir os trabalhadores é perigoso. 53 no que se convencionou denominar de Estado Benfeitor. Entretanto, a posição de Jorge Ferreira, assim como Ângela de Castro Gomes (1992), redimensionam o debate acadêmico sobre o governo de Vargas e sua figura mítica, de maneira a recusar a noção de que tenha sido realizada uma política de um Estado Benfeitor, dentro de uma filosofia da outorga. Segundo Ferreira (1997, p. 16), por exemplo, a repressão policial e judiciária, a propaganda e a doutrinação políticas, por mais avassaladoras que sejam não garantem o sucesso dos governantes. Ainda que a propaganda no primeiro governo Vargas tenha sido sistemática e coordenada, é muito difícil admitir que uma campanha publicitária, por si mesma, pudesse elevar seu nome à categoria de “homem providencial”. Não há propaganda que transforme um personagem em líder político, em figura legendária, sem realizações que afetem a vida material e simbólica dos homens e mulheres que o reverenciam. O reconhecimento político e a valorização simbólica que os trabalhadores dedicaram a Getúlio Vargas, bem como a permanência de seus feitos e realizações na memória popular por tanto tempo, não podem ser apenas reduzidos a uma eficiente máquina de fabricar mitos. Por isso mesmo, é preciso considerar que as ideologias dominantes naqueles anos eliminaram completamente as idéias, crenças, valores e tradições anteriormente presentes na cultura popular. Segundo Ângela de Castro Gomes (1992), o relevante é observar e analisar como os trabalhadores e as pessoas comuns recebiam esse discurso dominante, como apropriaram-se dele, como reagiram e mesmo resistiram a ele. Jorge Ferreira (1997)13 e Ângela de Castro Gomes (1992) trabalham com a noção de pacto na análise das relações entre Estado e classe trabalhadora, em que a lógica simbólica 13 Segundo Jorge Ferreira (1997, p. 49), o “mito” Vargas, portanto, não foi criado simplesmente na esteira da vasta propaganda política, ideológica e doutrinária veiculada pelo Estado. Não há propaganda, por mais elaborada, sofisticada e massificante, que sustente uma personalidade pública por tantas décadas sem realizações que beneficiem, em termos materiais e simbólicos, o cotidiano da sociedade. O ‘mito’ Vargas, assim, exprimia um conjunto de experiências que, longe de se basear em promessas irrealizáveis, fundamentadas tão-somente em imagens e discursos vazios, alterou a vida dos trabalhadores. Portanto, nas concepções e valores políticos de trabalhadores e populares, o movimento político-militar de 1930 foi marco para definir a justiça e a injustiça nas relações entre Estado e classe trabalhadora. 54 foi tão importante quanto a lógica material. Afinal os trabalhadores manipulavam todo o arcabouço doutrinário do estado varguista, selecionavam aquilo que poderia beneficiá-los – a legislação, os discursos sobre a família, o trabalho, o progresso, o bem-estar – e deixavam de lado todo o aparato autoritário, repressivo e excludente. Ou seja, inventavam uma estratégia de vida utilizando a legislação estado-novista em benefício próprio. Procuravam, na verdade, “se virar” em um quadro econômico e social de grandes dificuldades. Há uma intervenção governamental efetiva nas relações empregador/empregado e essa perspectiva vai muito além, por exemplo, da inspiração mussoliniana da legislação trabalhista de Vargas. De fato, muitas análises ignoram o impacto complexo e ambíguo que essa intervenção estatal teve sobre as relações entre operários e empregadores. Segundo Adalberto Moreira Cardoso (2002), a resistência das ciências sociais em fazer a crítica do direito do trabalho no país, impediu, a até muito recentemente, que incorporássemos em nosso campo conceitual uma forma de abordagem das relações de classe que vige nas ciências jurídicas há tempos: a de que o modelo brasileiro de relações de trabalho não é corporativo, mas legislado, por oposição a modelos negociados ou contratualistas. José Pastore (1987, p. 20) analisa os sistemas de relações de trabalho principais no mundo ocidental, caracterizando em dois blocos: o sistema estatutário e o sistema negocial. O primeiro, estaria ligado à trajetória de lutas sociais na Europa, a qual ligou as manifestações trabalhistas sempre a um movimento social mais ampliado. Nesse sistema centralizado a concepção classista do movimento sindical induziu uma “unidade básica” mais abrangente, ou seja, o estilo europeu forjou uma longa tradição de busca de benefícios mínimos pela via legislativa. Enquanto que, nos Estados Unidos, o movimento trabalhista seguiu uma trajetória bem distinta, alinhando-se ao segundo exemplo. Ali, segundo Pastore (1987), em nenhum momento, o sindicalismo se preocupou em reformar a sociedade capitalista e, tampouco, em conquistar direitos políticos básicos para os trabalhadores. Nesse exemplo, no estilo 55 americano, a lei garantiu apenas o direito e, sobretudo, a responsabilidade de negociar, ficando para as partes a prática da própria negociação. Dessa forma, pode-se distinguir aos que davam ênfase à lei e os que enfatizavam o contrato. Entretanto, em qualquer um dos sistemas, o resultado da interação entre capital e trabalho é um conjunto de regras que passam a governar a utilização da mão-de-obra pelas empresas e tais regras incluem desde os níveis de remuneração (salário mínimo, salários ocupacionais, pagamento de horas extras, etc.) e os benefícios indiretos (férias, descanso semanal, planos de assistência médica, planos de aposentadoria, etc.), até os limites para a utilização do fator ou descanso semanal. Para Pastore (1987, p. 42), o modelo brasileiro segue uma trajetória peculiar, pois na sua composição, ele apresenta uma mistura de elementos dos dois sistemas acima descritos. A montagem do sistema brasileiro foi realizada sob um certo medo do conflito, com excessiva preocupação com a manutenção da ordem social. Desde o final do século XIX, o conflito aberto entre empregados e empregadores foi imediatamente encarado como algo “muito perigoso”. De certa forma, o país precisava se industrializar rapidamente e em paz. Disputas e conflitos entre empregados e empregadores eram vistas como incompatíveis com as necessidades de industrialização e crescimento, pelas classes dominantes. Criar um sistema de relações do trabalho capaz de minorizar os efeitos do conflito entre capital e trabalho era uma crença que poderia ser feito por lei e pela ação de governo. No Brasil, encontrar um modo de conviver com as desigualdades e com o sistema parecia ser o grande desafio, pois, criar uma legislação que introduzisse algumas concessões, mas que, sobretudo, fosse capaz de garantir a paz social para a efetivação do desenvolvimento industrial. A estratégia era a de abafar o conflito e não a de administrá-lo. Nessa perspectiva, segundo Pastore (1987, p. 42), o intuito de abortar o conflito pela via da legislação social é bem anterior a Getulio Vargas e à CLT. Havia, de fato, um 56 esforço protecionista no primeiro quartel do século XX, o que não evitou as inúmeras greves e manifestações violentas no Rio de janeiro e em São Paulo. Entretanto, já estava firmemente consolidada a crença de se eliminar o conflito entre capital e trabalho por meio da força da lei. Acreditava-se que, pela via da lei, empregados e empregadores poderiam conviver civilizadamente em clima de harmonia. Entretanto, eliminar o conflito é interferir na própria relação histórica entre capital e trabalho. Esclarece Adalberto Moreira Cardoso (2002, p. 505) que, enquanto os modelos negociais ou contratuais têm na contratação coletiva o espaço privilegiado de produção das normas, nos modelos legislados, o Estado é o lugar por excelência (no executivo ou no parlamento). Essa forma de direito do trabalho decorre de uma síntese das tradições jurídicas germânica e romana, caracterizadas, respectivamente, por direitos estatutários e contratuais. Neste último, obrigações e direitos das partes na relação de prestação de serviços contratados. No outro, direitos individuais, o indivíduo como objeto do direito que, como tal, se transforma em instrumento de proteção e cidadania. É interessante observar que, no Brasil, embora haja a existência da lei, a busca da proteção legal parece ser um contorno histórico esclarecedor para a formação da classe operária. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) se estrutura com a clara função de ganhar a simpatia das massas trabalhadoras anônimas, em boa medida direcionada aos trabalhadores urbanos. Para Jonh French (2001, p. 8), a CLT pode ser considerada a “mãe dos ricos” e o “pai dos pobres”. Nesse momento, o destino do dissídio entre as classes passa obrigatoriamente pela Justiça do Trabalho. Sustenta o autor que os trabalhadores estariam “afogados em leis, mas famintos por justiça”. Desde 1943, o mundo dos trabalhadores e profissionais liberais brasileiros, bem como daqueles que os empregam, tem sido governado por um “código de trabalho altamente estruturado e, minuciosamente, regulado” que há tempos tem sido caracterizado como “a mais avançada legislação social do mundo”. Portanto, 57 esse “sistema CLT”, disposições legais criadas para proteger os direitos do trabalho, têm um impacto considerável na formação política e cultural da classe trabalhadora brasileira. Segundo Verneck Vianna (1999, p. 299), a CLT pretendeu ser a sistematização da legislação produzida desde o início da nova ordem implantada em 1930. Essa concepção da ordem legal para a disciplina do mercado de trabalho se assentava, pois, na integração das classes subalternas nas instituições reelaboradas pela CLT, que não dispensava a força coercitiva do Estado para consumar esse intento. A CLT é um verdadeiro corpo caleidoscópico de leis, argumenta Jonh French (2001, p. 13) que fornece orientação em quase todos os aspectos importantes do mundo do trabalho. Tem funcionado como código de trabalho nacional e, assim, vem contribuindo para a estabilidade legal e institucional que tem caracterizado os sistemas de relações industriais de trabalho brasileiros desde então. A CLT estabelece, por exemplo, as regras para a criação das organizações de classe de empregadores, empregados, profissionais liberais e autônomos. Além disso, define as prerrogativas, as jurisdições e os procedimentos internos do Ministério do Trabalho e da Justiça do Trabalho, que estão no centro de toda a estrutura trabalhista. Outra função da CLT é estabelecer padrões referentes aos termos de contratação e às condições de trabalho, assim como definir procedimentos para a resolução de disputas individuais e coletivas. Mas sua abrangência não pára por aqui, pois também influi estabelecimento de horas de trabalho, salários e remunerações (incluindo salário mínimo, horas-extras e pagamentos extraordinários); disciplina, admissões, demissões, pedidos de demissão; carteira de trabalho e pensões; trabalho feminino, de menores e de estrangeiros; saúde e segurança no trabalho; garantia de estabilidade no trabalho e assim por diante. A CLT também possui seções dedicadas às particularidades de 14 subcategorias especializadas de trabalhadores, abrangendo desde ferroviários, estivadores e doqueiros até músicos profissionais, jornalistas e químicos. Ademais, além de estabelecer os procedimentos para as 58 inspeções fabris, a CLT também estabelece dois mecanismos básicos para a resolução de disputas. No caso de dissídios individuais, os tribunais de trabalho ouvem os apelos de indivíduos ou pequenos grupos de trabalhadores contra as violações da lei ou, mais freqüentemente ainda, as queixas individuais contra o que é considerado tratamento injusto de acordo com a lei. Os dissídios coletivos, ao contrário, cobrem as negociações sobre salários legalmente estabelecidos, que ocorrem entre empregadores e empregados anualmente, seja em nível municipal, regional, estadual ou nacional. Esse procedimento para negociação coletiva opera dentro de uma estrutura mais ampla, baseada, em última instância, na arbitragem compulsória de tais disputas pelos tribunais trabalhistas. Como sugere Adalberto Moreira Cardoso (2002), recentemente, os empresários estariam abdicando da orientação legal, da aceitação da lei, para exigir sua flexibilização, mas em jogo está a maximização de seus lucros, uma vez que a aceitação da norma jurídica parece não compensar atualmente. Entretanto, essa posição, de modo diferente, também existia no início da implantação do sistema CLT, uma vez que não foi bem acolhido entre os empregadores. Por isso mesmo, a extensiva e avançada legislação trabalhista do Brasil foi completamente ignorada nas fábricas por um bom período, pois a lei não resolvia problema algum. Por muito tempo, para os trabalhadores, a Junta de Conciliação e Julgamento local podia não ser confiável. Queremos ressaltar que, embora as coisas existam no papel, mas não na realidade, os trabalhadores, a reboque dos sindicatos e movimentos oficiais, lêem essa nova situação à sua maneira. Sem dúvida, a inspiração que formula as leis trabalhistas são influências diretas da situação social e econômica do país. Por isso mesmo, no embate da sua existência, esta influenciaria decisivamente não apenas o modo como as pessoas percebem a lei (sua “consciência legal”), mas também como moldam suas ações e seu discurso em resposta a ela, na defesa da legalidade, dos direitos. Cabe ressaltar que a CLT, em sua gênese, ancorada pelo 59 corporativismo estatal, opunha-se à organização autônoma da classe, mas não era “em essência”, ou necessariamente, antioperária. Ademais, contribuiu para a criação de um espaço que poderia ser e foi usado para a auto-organização e a mobilização dos trabalhadores. Aos poucos, com o fim do Estado Novo, os trabalhadores começam a usar a nova “legalidade” nas relações de trabalho. Passa a ser uma nova estratégia operária, possível pela existência de um aparelho estatal para fazer cumprir a lei. É uma nova arma em suas lutas. Por isso, cabe ressaltar que o desenvolvimento da relação entre trabalhadores e a CLT é uma relação complicada, conflituosa, mas aos poucos, a Lei passa a vigorar como um paradigma possível de justiça: vamos nos impor! Vamos à justiça! Dessa forma, acreditamos que para entender melhor a classe trabalhadora brasileira em formação em meados do século XX, precisaremos investigar mais profundamente esse aspecto bastante evasivo do fenômeno da legislação trabalhista e sua dimensão subjetiva. Em outras palavras, qual foi o impacto da lei trabalhista na consciência, individual e coletiva, e no comportamento tanto de trabalhadores de base como de lideranças sindicais e embora nossa pesquisa talvez careça de mais aprofundamentos nessa perspectiva, acreditamos sugerir uma apresentação nesse caminho. A partir de 1985, com os movimentos sociais e com a Constituição de 1988, nas palavras de Jonh French (2001, p. 39), a lei é como uma filha a deixar o lar, ou seja, o pai não tem mais controle sobre o seu destino e ela pode se transformar numa “santa” ou numa “mundana”. Entretanto, acreditamos que esse ambiente prévio à década de 1990 constituiu sustentação para fenômenos como a explosão de demandas nos processos trabalhistas, dimensionando um debate acerca da judicialização da questão social. Se, no início, esse aparato institucional trabalhista era útil somente para controlar a classe trabalhadora, aos poucos esta se abre como possibilidade de ampliar direitos efetivos por parte dos trabalhadores. Nessa perspectiva, ao contrário de Munakata (1984, p. 105), o qual argumenta 60 que a CLT é o signo da derrota dos trabalhadores, que teria uma função de expropriar do trabalhador a capacidade de decisão e controle sobre sua vida, cremos que se estabelece uma relação peculiar do trabalhador com o arcabouço legal, propiciando uma relação que utilizará, a seu modo, a legislação a seu favor. 3.2 A judicialização da questão social A partir de 1988, o fortalecimento e sofisticação da legislação trabalhista já estava posto e ainda que timidamente, algumas tendências modernas do direito do trabalho foram inseridos. Por exemplo, a organização dos trabalhadores dentro da própria empresa, indicando a concepção de que a empresa deixa de ser um quartel onde o empregado despe a sua roupa de cidadão trabalhador na porta, com o oficial do dia e veste sua farda, dali por diante. Segundo Bosísio (1992, p. 52), esta e outras características, como a idéia de participação nos lucros da empresa e até na organização autônoma dos trabalhadores dentro da própria empresa, é um conceito moderno, irrecusável, do direito do trabalho. Outra tendência é a flexibilização do direito do trabalho, opondo-se à intervenção ampla do Estado. Essa procura atender as conveniências individuais dos empregados e as circunstâncias específicas das empresas e, finalmente, a Constituição dá grande importância aos sindicatos no campo da autonomia da sua organização e, sobretudo, no campo da ação sindical, seja assegurando o direito de greve com amplitude bastante significativa (e realmente existe hoje uma lei de greve que, longe de ser ideal, torna viável a greve legalmente declarada), seja legitimando os sindicatos para as chamadas ações coletivas. A Constituição assinala que o sindicato pode representar todos os membros da categoria em ações individuais, sem que as pessoas se exponham individualmente ao reclamar contra seus empregadores. 61 Esse ambiente, seguramente, propiciou o que Adalberto Moreira Cardoso (2002, p. 493) classifica como judicialização da questão social, em boa medida alavancado pela explosão de processos trabalhistas14 nas Varas do Trabalho de todo país. Para se ter uma noção, enquanto nas décadas de 1970 e 1980 a média de acréscimo no número de processos era pouco superior a 35 mil por ano, na última década do século 20 esse valor saltou para mais de 110 mil processos por ano. Em 1998 as 1.109 Varas do Trabalho existentes no país acolheram perto de dois milhões de processos trabalhistas, 98% dos quais relativos a conflitos individuais. No gráfico abaixo, demonstramos o crescimento paulatino dos processos trabalhistas em Franca, chamando atenção que esses registros dizem respeito ao universo produtivo calçadista, ou seja, indústrias de calçados, curtumes e componentes para calçados. Total geral de processos trabalhistas 1968-1988 1000 995 900 800 775 700 645 600 500 655 606 452 655 623 452 Total geral de processos 395 369 400 368 333 298 300 200 681 599 256 227 204 164 146 100 0 1968 1969 1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 GRÁFICO 4 – Total geral de processos trabalhistas 1968-1988 Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Franca 14 Pochmann (1998), demonstraram que dentre as características do sindicalismo nos anos 90 está o aumento dos processos - individuais e coletivos - ajuizados na Justiça do Trabalho , a despeito de todo o movimento contrário a isso nos anos 1980. Para estes autores, tal aumento se deve ao desemprego crescente bem como às dificuldades colocadas pelos patrões à negociação. 62 A pesquisa empírica que fizemos no AHMF, com os processos trabalhistas, demonstra uma perspectiva de aumento gradual das demandas de processos trabalhistas antes da década de 1990, o que sugere que esse fenômeno da judicialização venha se fortalecendo desde então. No entanto, ao longo dos anos 1990 se observa que os sindicatos perdem posição de representação e os trabalhadores, aos poucos, passam intensificar solicitações à Justiça como respostas às novas demandas da reestruturação produtiva no país, privilegiando mais esse espaço de suas lutas, além dos sindicatos. Vale sublinhar que esse fenômeno da judicialização da questão social é mundial no âmbito do trabalho, uma vez que esse passa por profundas transformações que se compreendem dentro do processo de reestruturação produtiva. Dessa feita, por mais que nossas pesquisas sejam focadas em realidades bastante pontuais, inserimos as conclusões dentro de um contexto mais estrutural. Cabe avaliar que o crescente aumento numérico de processos trabalhistas, ou seja, conflitos entre capital e trabalho dirimido no âmbito da Justiça do Trabalho, redimensiona a relação com o Estado e, por outro lado, isso acontece em um mesmo momento em que as tendências estruturais são de declínio do emprego formal. Nessa perspectiva, segundo Stein, Mendes e Campos (2003), as mudanças materiais no sistema produtivo, impulsionam novas relações jurídicas que, por sua vez, propiciam uma nova materialidade. Quanto ao processo de judicialização, como um fenômeno social, esse é recente nas sociedades modernas e introduz nova caracterização para os conflitos sociais. Esses processos indicariam efeitos da expansão do Poder Judiciário no processo decisório das democracias contemporâneas. Estes não expressam mais a luta pela institucionalização de direitos. Expressam de novo uma interpretação desses direitos já institucionalizados perante as cortes judiciais nacionais, ou mesmo internacionais. Segundo Agripa Faria Alexandre (2000), parte dessa conceituação se deve a Habermas que denomina de juridificação da 63 política ou positivação do direito natural15, como sendo uma espécie de adensamento do direito nas esferas da vida social (fato típico do Estado de Bem-Estar Social), tem lugar então a judicialização da política como resultado da interpretação das cortes judiciais sobre as políticas legislativas ou executivas do Estado. As tarefas de resposta do Estado face aos embates jurídicos crescentes sobre direitos também ganham um aumento de reflexividade, uma vez que os métodos judiciais padrões de resolução dos conflitos introjetados nas esferas da vida social despertam o interesse de grupos ávidos por garantir conquistas e demanda novos interesses políticos, tornando assim o ‘mundo da vida’ não somente juridificado ou positivado, mas também tensamente judicializado16. Em suma, para nos restringirmos apenas ao contexto político brasileiro, recentemente instaura-se uma luta por direitos diferente das demandas daqueles movimentos sociais da década de 1980 que era mais interessada em garantir a formalização jurídicoinstitucional de direitos sociais. A juridificação da vida social força a judicialização da política. Os magistrados são obrigados a assumir a administração da tensão dos conflitos sociais inerentes à sociedade capitalista. Essa nova face da política também tem a ver com o andamento da Promotoria Pública. Esse termo e conceito tem sido implementado por Werneck Vianna (1999)17 para descrever as transformações constitucionais pós-88, que permitiram o maior protagonismo 15 Ver HABERMAS, J. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997. Vol., I, p. 48. 16 Entretanto para alguns juristas, como o caso de André Luís Alves de Melo (2005), Promotor de Justiça, em seu artigo A judicialização do Estado brasileiro: um caminho antidemocrático. Disponível no site<www.direito moderno.cjb.net>, argumenta que esse conceito, acerca da judicialização é bastante polêmico, pois existem aspectos positivos e outros nem tanto. Segundo Melo, a judicialização do país traz um enorme prejuízo à sociedade e enriquecimento da classe jurídica em face de conflitos infindáveis que poderiam ser resolvidos de outra forma, mas o monopólio do mercado de trabalho de juristas proporciona o empobrecimento da sociedade. Para ele, “o Fórum não produz riqueza, indústria e empregos, sim. Um país não pode passar mais tempo gerindo conflitos do que produzindo trabalho rentável”. 17 VIANNA, Luís Werneck. et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 354-355. Esse trabalho consiste em abordar o perfil dos magistrados e o papel das instituições do sistema judicial pós-1988. Nesse momento, Werneck Vianna e Marcelo Burgos, já indicavam uma adesão ao universo analítico habermasiano, o qual as formas de vida do homem comum seriam, potencialmente, criadoras de uma eticidade não contraposta ao Estado, mas seu pressuposto e extensão necessária para o não insulamento do direito na formalização burocrática e no ritualismo processual. Nesse sentido, as 64 dos tribunais em virtude da ampliação dos instrumentos de proteção judicial, e que teriam sido descobertas por minorias parlamentares, governos estaduais, associações civis e profissionais. De um modo geral, tem-se notado que a expressão é utilizada em sentido normativo, tanto em relação ao papel atual dos agentes do sistema judicial, assim como em relação a propostas sobre a extensão adequada do seu papel na democracia brasileira. Ou seja, os juristas usam o termo judicialização para se referirem à obrigação legal de que um determinado tema seja apreciado judicialmente. Mas também, a expressão recebe um sentido de processo social e político, quando é usada para se referir à expansão do âmbito qualitativo de atuação do sistema judicial. De toda forma, constata-se que o fenômeno da judicialização das relações sociais está, efetivamente, ocorrendo e o direito tem realmente influído na vida social das pessoas, também a judicialização da política e a politização da Justiça são fenômenos universais e o Brasil não escaparia disso. Nesse sentido, não só em relação à justiça trabalhista, mas nota-se uma grande procura ao recurso judiciário para resolver os conflitos cotidianos dos mais variados tipos. Há uma grande procura judiciária, em distintos níveis, privilegiando um desempenho judicial que passou a ter uma relevância social novo. Mesmo assim, de acordo com Sorj (2000, p. 104), no caso brasileiro, a realidade da década de 1990, em termos sociológicos, ainda aponta para uma triste carência de acesso dos setores menos privilegiados à Justiça, o que nos faz perguntar também se a judicialização da política não estaria apenas a favorecer os setores historicamente mais privilegiados da sociedade brasileira (partidos políticos e movimentos sociais mais amplos). De toda forma, o autor acima citado reitera a existência de uma crescente judicialização da vida social, ou seja, transformações contemporâneas do direito teriam tornado aberto às aspirações e necessidades coletivas sem, contudo, atrela-lo ao conjunto de imperativos morais substantivos de uma comunidade ética fechada. A institucionalização do direito no mundo contemporâneo teria incorporado princípios da filosofia política da modernidade, transformando-os em formas de ação à disposição do homem comum para participar da criação do direito estatal tanto através da democracia representativa como pela via judicial. 65 a transferência dos macroconflitos sociais para o Judiciário. Esse é um dado que apresenta Jorj: [...] focalizando unilateralmente no funcionamento do Judiciário, pode-se perder a perspectiva sociológica mais ampla sobre os mecanismos de integração social que sustentam a vida societária e funcionam através da absorção de normas e valores na conduta cotidiana. Nesse sentido, a sociedade brasileira apresenta um grau relativamente alto de consenso e interiorização de valores e normas, o que faz com que as práticas de sociabilidade e expectativas no intercâmbio diário sejam bastante previsíveis. O desafio fundamental está no patrimonialismo, que produz relações perversas entre os interesses privados e a esfera que deveria ser ocupada pelo espaço público, incentivando condutas oportunistas e o descumprimento da lei pelos diversos atores sociais. (2000, p. 119). Queremos ressaltar que existe uma dinâmica social nas últimas duas décadas de recepção e defesa de um sentimento democrático, de permanente luta de organismos da sociedade civil e de setores do governo contra a violação dos direitos fundamentais, os quais jamais foram plenamente garantidos nas sociedades modernas. Acreditamos que o trabalho de pesquisa que apresentamos expressa um pouco essa dinâmica social. Por isso mesmo, queremos sugerir que os processos de judicialização no Brasil exprimem também uma tensão positiva, com ampla repercussão, não se limitando, como entende Sorj (2000) aos setores privilegiados da sociedade brasileira. Dessa forma, o entendimento sobre a justiça no Brasil passa também a associar-se a uma questão de política e de interpretação de direitos daqueles setores subalternos. Cremos que a judicialização da vida social, propicia um processo de reconhecimento de valores morais particulares decorrentes dessa institucionalização de direitos. Em outras palavras, as normas jurídicas vêm reconhecendo e criando valores culturais18. 18 Por exemplo, os direitos de povos indígenas, de etnias, de comunidades caiçaras, quilombolas, etc., assegurados na Constituição de 1988. Mas também as representações valorativas conferidas pelas cortes de justiça e pelo Ministério Público na defesa de interesses sociais amplos ou de minorias (religiosas, grupos sociais marginalizados, ecologistas, homossexuais, deficientes físicos, velhos, jovens, etc.) 66 Semelhante à tendência reflexiva de Sorj (2000), no estudo de exposto por Rogério Bastos Arantes (1997), a idéia de judicialização da política referir-se-ia ao ativismo voluntarista do Ministério Público, daí as suas implicações negativas seja para a integridade das funções políticas das instituições representativas, ou ainda, para a própria manutenção da independência funcional da instituição. Sua postura bastante crítica em relação à ampliação dos poderes do sistema judicial proporcionada pela Constituição Federal de 1988 e critica de forma negativa os poderes de controle dos governantes do Ministério Público ampliados pela Constituição, assim como o uso que os promotores fazem da sua legitimidade ativa para propor ações civis públicas, sugerindo o substitucionismo da sociedade civil por parte da instituição, além de problemas de legitimidade da ampliação das fronteiras do sistema judicial sobre as instituições representativas. O livro de Arantes (1997) concentra-se na reconstrução institucional do Ministério Público a partir da transição democrática e sustenta-se em duas vertentes de análise: uma institucional que aborda as mudanças legislativas e constitucionais das atribuições do Ministério Público e a outra que investiga o universo ideológico de promotores e procuradores de justiça. Sua análise chega a enquadrar essas mudanças e a ampliação dos poderes do Ministério Público ao “quarto poder da República”, tornando, de certa forma, a sociedade civil incapaz de defender seus interesses. Nesse sentido, ao MP caberia o papel de promotor da conscientização e de responsabilidade da sociedade brasileira com vistas ao alargamento do acesso à Justiça das demandas sociais, ao mesmo tempo, reforçando, em perspectiva histórica, a visão tutelar da sociedade brasileira, prova disso seria o elevado número de ações iniciadas pelo MP, em comparação com as associações civis. Esse “agente político da lei” seria a contrapartida da judicialização da política no Brasil. Por outro lado, Luiz Werneck Vianna (2002), em uma obra coletiva, reforça uma idéia, ao tratar os fenômenos em termos de procedimentalização do direito e da ampliação dos 67 instrumentos judiciais como mais uma arena pública, de propiciar a formação de uma opinião e acesso do cidadão à agenda das instituições políticas. Em outras palavras, propõe dois eixos de análise, a relação “horizontal” entre os poderes do Estado e destes com a sociedade civil. Esse trabalho oferece perspectiva ampliada de análise das interseções entre política e justiça. Na perspectiva proposta pelo amplo estudo de Vianna (2002), o constitucionalismo democrático priorizou a ampliação do âmbito de proteção dos direitos e a redefinição das relações entre os poderes do Estado e Judiciário toma dimensão de um novo espaço público. Nessa perspectiva, a judicialização da política seria o “processo por meio do qual uma comunidade de intérpretes, pela via de um amplo processo hermenêutico, procura dar densidade e corporificação aos princípios abstratamente configurados na Constituição”. (VIANNA, 2002, p. 39). O trabalho de reflexão organizada por Vianna coloca em questão a tese do substitucionismo da sociedade civil operado pelo MP, defendida por Arantes. Segundo Vianna (2002), a ação da MP faz como parte da constituição de um complexo sistema de complementaridade e interdependência entre os poderes do Estado, a mídia, a cidadania organizada e os indivíduos. Mais do que transferência, prevalece o compartimento de responsabilidades entre os diferentes atores envolvidos. Dessa forma, o MP não substituiria o Judiciário, mas funcionaria muitas vezes como uma instância que agrega esforços, visando construir uma base institucional para o cumprimento do direito. A figura do MP atuaria mais como um agente de mediação entre agentes sociais e poderes políticos do que um agente de judicialização, que provoca a intervenção de um poder externo e, supostamente despolitizado, a fim de solucionar de forma tutelar os conflitos. Afinal o MP é um mediador institucionalizado que dispõe de legitimidade jurídica e recursos organizacionais para a proposição de ações judiciais. 68 Na perspectiva do mundo do trabalho, Adalberto Moreira Cardoso (2002, p. 520) argumenta que a crescente demanda de processos individuais no Brasil decorre da paulatina deslegitimação do direito do trabalho entre os empregadores que estão se evadindo de sua obediência. Os controles e limites impostos por trabalhadores ou estado, e os incentivos seletivos de um e de ouro parecem ter perdido eficácia na obrigação dos capitalistas à conformidade com a norma. Nesse sentido, esse aumento expressa tanto a deslegitimação do direito do trabalho pelos capitalistas quanto a tentativa dos trabalhadores de fazerem valer as regras a ordem. Segundo o autor, é a ordem legal como um todo que está em crise, e o seu sintoma mais conspícuo é o crescimento das demandas judiciais. A judicialização é a resposta dos trabalhadores a essa crise. Ocorre recentemente uma dinâmica de deslegitimação da norma trabalhista, nesse sentido, os capitalistas sentem-se crescentemente, desobrigados, flexibilizando a frio o mercado de trabalho ao cobri-lo com o manto negro da ilegalidade. Como o modelo é legislado, o resultado esperado não é outro senão o recurso à justiça, que leva naturalmente à judicialização das relações de trabalho. Parece fora e dúvida que cada pico de crescimento ou queda coincide com momentos salientes das relações de classe ou da conjuntura política mais geral. Há razões para acreditar que o processo de judicialização das relações de trabalho está contaminado por aspectos da conjuntura política bem além do que seria de se esperar se o fenômeno fosse estritamente jurídico, afinal o judiciário trabalhista acompanhou pari passu o crescimento das demandas e os saltos na abertura de novas Varas do Trabalho que coincidem com o ritmo de processos que elas passam a acolher. Isso é muito evidente desde 1987 em diante, quando à explosão do número de demandas se fazem acompanhar explosões intermitentes de criação de Juntas de Conciliação e Julgamento. 69 Portanto, o recurso à Justiça nesse processo histórico que se inicia antes de 1988 representa a incorporação paulatina dos direitos trabalhistas no universo das relações sociais e de trabalho dos trabalhadores. 70 4 FORMAÇÃO DA CLASSE OPERÁRIA E O PÓLO CALÇADISTA O texto a seguir reúne o esforço de inserir aspectos da cidade de Franca e sua história, assim como aborda a trajetória do desenvolvimento do processo de confecção do sapato e a industrialização na cidade. Também destacamos em vários pontos a situação da classe operária nesse contexto. Realizamos um diálogo com alguns estudos e pesquisas, que elegemos como as mais relevantes, acerca da cidade e do tema que estudamos. Estabelecer uma trajetória de reflexão acerca da classe operária em Franca, considerando os processos trabalhistas, pode ser oportunidade de perceber distinções dos quadros mais clássicos da literatura acadêmica, indicando novas perspectivas sobre o assunto. Entretanto não temos o interesse de aprofundar no campo de investigação sobre a formação histórica da cidade de Franca vinculada ao setor coureiro calçadista. O objetivo é centrar atenção na classe trabalhadora, em especial os operários do calçado. Contudo, não se trata de uma abordagem fragmentada e localizada de estudo, no espaço e no tempo, muito pelo contrário, queremos refletir sobre a inserção dessa dinâmica local influenciada pelo processo de industrialização capitalista. A cidade de Franca19, segundo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em 2000, está entre as regiões consideradas de alto desenvolvimento humano, pois seu índice 19 É sede da 14ª Região Administrativa do estado, localiza-se na região Nordeste do estado de São Paulo. A sede do município se encontra a 400 Km da Capital do Estado de São Paulo 92 Km da cidade de Ribeirão Preto. Segundo dados do IBGE, em 1991 o município possuía 233.098 habitantes, em 2000 o censo demográfico registrou 287.737 habitantes, ou seja, houve um crescimento populacional de 23,44%, sendo que 5.534 pessoas vivem na zona rural. Seu comércio é de natureza variada com 2.461 estabelecimentos e 2.150 indústrias, classificadas entre micro, pequena, média e grande. A indústria calçadista é sua maior fonte de renda, empregando (em números oficiais) 36.777 pessoas e mais 15.935 em outros tipos de serviços formais, segundo dados do SEADE no início de 2003. A cidade aponta para uma renda per capta anual de US$5.000,00. Constitui também, o maior pólo fabricante de calçados masculinos do país, com produção anual em torno de 30 milhões de pares (6% da produção nacional), e valores de exportação que chegaram a US$ 97,5 milhões em 2002. Pode-se destacar que 11% da mão-de-obra empregada hoje nesse seguimento fabril trabalha nas fábricas de Franca. (BARBOSA, p. 9, 2004 apud, ABICALÇADOS, 2002). No período de 1950 a 1990, houve um crescimento demográfico de cerca de 334,75% decorrente da intensificação do fluxo migratório para a cidade e a aceleração do seu ritmo de urbanização. 71 é de 0,820. De 1991 a 2000, Franca cresceu 4,73%. A educação foi o item que mais se desenvolveu, de 0,827 para 0,906. Quanto a longevidade que agrega condições de saúde, o índice alcançou o valor de 0,8, porém cresceu muito pouco nos últimos dez anos (1,02%). O indicador de renda foi o que mais sofreu com as mudanças na área do trabalho nessa referida década. De 1991 a 2000, houve um pequeno aumento de 10,7%. (PNUD, 2005). Nesse período, Franca passava por grande instabilidade econômica devido aos incentivos fiscais às empresas para se estabelecerem no nordeste do país. Além disso, no setor inicia-se um movimento de reestruturação produtiva, fundamentada em boa medida na redução dos quadros de empregados. A história de Franca sempre foi tema relevante em muitos estudos, dentre eles, estão autores como Alfredo Henrique Costa (1966), Alfredo Palermo (1980) e José Chiachiri Filho (1974). Eles abordam em seus estudos, de maneira geral, a tendência do município e região à atividade criatória e sua condição de entreposto de sal, presente desde as origens de sua ocupação nas décadas do final do século XVIII. Essa característica teria sido decisiva para a importância que a produção de artigos de couro, em especial a produção de calçados. Parece não haver dúvida da abundância de gado existente na região propiciava farta matéria-prima às fábricas de curtume e aos ofícios de seleiro e sapateiro. A partir do primeiro quartel do século XIX, já se havia formado em Franca um artesanato numeroso, dedicado à produção curtumeira e à fabricação de sapatões e chinelos. Assim como os autores e estudiosos acima citados, Maria Ignez F. Vilhena (1968) também sustenta que a indústria de elaboração do couro deveu-se graças à existência de matéria-prima local, do setor pecuário. Ademais Mauro Ferreira (1989) e, sobretudo, Pedro Tosi (1998), argumentam que a localização de Franca na Estrada de Goiás seria o fator determinante para o desenvolvimento da produção de artigos de couro no município e não apenas a existência da 20 Este índice tem variação de 0 (zero) a 1(um), quanto mais o índice se aproxima de 1, maior é a qualidade de vida de determinado país ou município. 72 pecuária. Mesmo assim, por si não explicaria o florescimento do artesanato coreurocalçadista, embora seja um dos motivos que fazem com que a atividade surja como expressão econômica. Noutro sentido, sendo zona de criação e, por conseguinte, de fácil obtenção de matéria-prima, tropeiros e viajantes que aqui faziam pouso, aproveitavam para consertar os arreios, ao mesmo tempo que iniciam em princípios do século XIX, a fabricação, embora de maneira rústica, de pequenas peças de couro cru. Fica claro, na abordagem dos autores, que o mercado oriundo a essa atividade, no bojo de uma ampla rede social peculiar do período, é bastante primário, em um sentido mais estrito. A função econômica de Franca é muito recente, seu comércio do século XIX não conseguia enriquecê-la ou torná-la um mercado de capitais. Era um comércio baseado na troca. Em 1887, com a chegada da ferrovia, Franca se confirma novamente como importante pólo de convergência comercial entre o Estado de São Paulo e Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais. Em 1885, é criado o primeiro curtume em Franca, pelo padre Alonso Ferreira de Carvalho. Um dado curioso, que ilustra o nível da carência de capitais que afetava a indústria coureiro-calçadista, sendo necessário, na ausência de instituições bancárias e em razão da falta de credibilidade (no sentido monetário do termo), que um religioso se imiscuísse na atividade de fornecimento de crédito. Conhecido como padre-agiota, ele foi importante protagonista dessa história da indústria francana. Embora com técnicas rudimentares de curtição e preparo do couro, esta indústria é a principal atividade até, pelo menos, a II Guerra mundial. A expansão da cafeicultura aliada ao afluxo imigratório estimulado pela ampliação da lavoura de exportação – que adensou o contingente populacional na região – e a condição de entreposto comercial novamente adquirida por Franca, condição que se manteve até 1905, quando é inaugurada a estação de Uberaba da Companhia de Estrada de Ferro Mogiana, 73 possibilitaram o desenvolvimento da produção de valores de troca no município, o que incluía a existência de um curtume. Foi essa conjugação de fatores, e não apenas a localização geográfica estratégica, que explica a não extinção e a posterior difusão da atividade coureirocalçadista em Franca. Em outras palavras, a atividade coureiro-calçadista só se expande, no município, à medida que se retrai a produção de valores de uso, de produtos para o uso próprio, em favor da generalização de produtos que assumem a forma de mercadoria. 4.1 Do artesanato à manufatura do calçado Em 1910, Franca já contava com três curtumes, entretanto nesse período eram poucas as fábricas de calçados e selaria. Predominava oficinas artesanais, frequentemente conjugadas às moradias. O trabalho era todo manual, com o uso do ‘prego e a banqueta’. Além das selas, arreios e outros objetos de montaria, produziam-se chinelos, calçados grosseiros utilizados principalmente por trabalhadores rurais (chamados sapatões), botas e outros tipos de calçados por encomenda. Segundo Vilhena (1968, p. 65-66), a incipiente indústria coureira (que no nosso entendimento não pode ser concebida como indústria) começava a se consolidar, produzindo mais intensamente esses produtos. Por volta de 1909, tem início um processo de ampliação da produção de chinelos e calçados rústicos em Franca, em boa medida, determinado pelo empreendimento de Carlos Pacheco de Macedo e Cia. Esse possuía casa de arreios e couros, uma oficina de selaria e ferraria, artigos para sapatarias, dispondo de pessoal habilitado para qualquer encomenda. Segundo a referência encontrada no Almanack de Franca (FRANCO, 1912, p. 102), por volta de 1910 essa única empresa respondia por 75% do total de artigos, produzidos por aproximadamente 18 sapatarias existentes nesse período em Franca. 74 Um elemento importante e revelador apontado no recente trabalho de Navarro (1998, p. 34)21 sobre a produção de calçados em Franca, é que nesse período de 1910, uma novidade no âmbito produtivo foi implantada na empresa de Carlos Pacheco de Macedo e Cia: o pagamento por peças ou por pares produzidos. Observa-se que, desde o princípio, o trabalho familiar, sem remuneração individual dos membros da família, foi o mais freqüente nas pequenas oficinas, unidades situadas nas residências dos proprietários dos negócios, com emprego reduzido de assalariados. O que vale ressaltar, de acordo com Malatian (1996, p. 193-206) é que, nesse período, era em torno do ofício que se construía a identidade do sapateiro, ainda não definido como operário (em termos modernos), no qual o processo produtivo baseava-se na habilidade do artesão em trabalhar o couro utilizando instrumentos como faca, martelo, torquês, alicate e lamparina à álcool. As Guerras Mundiais foram fonte de estímulo para produção de calçados em Franca, acompanhadas de uma expansão do mercado interno. Nesse contexto, além desses aspectos, o desenvolvimento da produção de couros e insumos, assim como o acesso às máquinas através da importação e, mesmo de arrendamento destas22, foram cruciais para esse estímulo. Em 1917, Carlos Pacheco de Macedo adquire e remodela o Curtume Progresso, inaugurando uma nova etapa na produção de calçados, mecanizando seu estabelecimento, importando o maquinário capaz de efetuar quase todas as operações necessárias à produção23. A calçados Jaguar (mesmo proprietário), primeira fábrica mecanizada a se estabelecer em Franca, foi fundada em 1921. É a primeira indústria a operar em grande escala na cidade, 21 Ver também FERREIRA, Mauro. O espaço edificado e a indústria de calçados em Franca. 1989. Dissertação de Mestrado (Pós-graduação em Engenharia). Departamento de Arquitetura da escola de Engenharia de São Carlos – USP, 1989, p. 70. 22 “A United Shoe Machinery Corporation (USMC), empresa americana destinada à indústria de calçados, foi autorizada a estabelecer-se no país em 1918, através da prática de arrendamento de máquinas para produção de calçados”. Wilson Suzigan considera que a USMC, desempenhou papel decisivo no desenvolvimento da indústria brasileira de calçados, ao fornecer maquinaria moderna para a fabricação de calçados sob a forma de arrendamento, induzindo uma mudança drástica no processo de produção. (NAVARRO, 1998, p. 37). 23 Quanto aos curtumes, Barbosa (2004, p. 37, nota 34) salienta que era uma atividade que exigia investimentos bem maiores que a indústria do calçado. 75 permitindo uma maior apropriação da força de trabalho, prolongando a jornada e intensificando o ritmo de trabalho. Muitos autores e pesquisadores atribuem a esse momento de mudanças radicais no processo produtivo em Franca, salientado que, já nesse momento, o “ritmo da produção passa a ser ditado pela máquina”. No entanto, ao contrário, devemos assinalar que essa experiência da Calçados Jaguar não logrou muito êxito, embora haja indícios de que, naquele momento, Franca já estivesse preparada no que diz respeito a existência de mão-de-obra para o setor. Essa experiência da Jaguar em Franca, não extinguiu a produção realizada em moldes artesanais, mas coexistiu com ela. Dessa forma, o sonho da Calçados Jaguar e do Curtume Progresso durou pouco, apenas meia década. É preciso considerar que, somente ao longo dos anos 1940, quando por volta de 1945 a produção local atinge a marca de 1 milhão de pares fabricados anualmente, as principais empresas locais, por meio de um gradativo avanço do processo de mecanização e modernização dos processos produtivos, haviam superado o estágio artesanal. Ou seja, é no início dos anos 1940 que as principais fábricas locais atingem o nível de empresas de médio porte. Na década anterior, ilustra Barbosa (2004, p. 58) que a maior fábrica de Franca, a “Honório e Cia” (calçados peixe), possuía capital de 80 contos e 16 funcionários. A segunda maior, a “calçados Maniglia”, contava com capital de 70 contos e 31 operários; a “Palermo” e a “Spessoto”, importantes na fase de consolidação, contavam, respectivamente, com 40 e 17 de capital, e 6 e 15 operários cada uma. A calçados “Mello”, a terceira maior em meados dos anos 1940, o número de operários não chegava a duas dezenas e o capital perfazia apenas 20 contos. No que diz respeito a “calçados Edite” (futura Samello), sabemos que seu capital de 25 contos, quando foi fundada em 1935; com efeito, o memorial da empresa relata que a essa época seu proprietário, Miguel Sábio de Mello, “compra as primeiras máquinas nas quais aprende trabalhar rapidamente e que são em maior parte operadas por ele mesmo” (SAMELLO, 200, s/p). Como se observa, a separação entre trabalhador e os meios de 76 produção, característica fundamental da separação da fase artesanal, não era uma realidade nos primeiros anos desta que é hoje uma das maiores e mais importantes empresas do setor calçadista brasileiro. A julgar pela incipiente mecanização apresentada por estas empresas, a década de 1930 marcou o momento de sua transição da fase artesanal para a fase manufatureira. A combinação do trabalho manual intensivo e a utilização de algum maquinário para as tarefas mais pesadas, características que parecem ser comum às empresas acima mencionadas, se identificam com a observação de Karl Marx: O período manufatureiro estabelece conscientemente como princípio a diminuição do tempo de trabalho necessário para a produção de mercadorias, e de maneira esporádica chega a utilizar máquinas, sobretudo para certos preliminares simples que têm de ser executados em larga escala e com grande emprego de força (1996, livro I, v I, p. 399). Barbosa (2004, p. 61) faz importante reflexão no fato de antigos artesãos/ sapateiros estarem à frente das primeiras unidades manufatureiras de sucesso, expressa nitidamente a evolução por fases da indústria do calçado em Franca; de igual modo, o fato de os mesmos sujeitos seguirem participando do processo de produção em suas empresas, depois de suplantada a etapa artesanal, confirma a concepção marxiana de que a habilidade profissional do artesão continua sendo o fundamento dinâmica produtiva na fase da manufatura. Assim, ao longo dos anos 1930 ainda não dá para falar de indústria no sentido da absorção de maquinaria, mas sim de manufaturas. Conseqüentemente, não se pode também falar de aparecimento da grande empresa em meados dos anos 1940, momento histórico em que a indústria do calçado se consolidou, entretanto as cinco maiores fábricas já se encontravam no patamar dos estabelecimentos de médio porte ou em aproximação gradativa dessa categoria. Em 1945, essas empresas locais contavam com uma média de mais de 50 operários cada uma em seus estabelecimentos. 77 Outro aspecto que esclarece Barbosa (2004, p. 64) é que a indústria do calçado facilita a entrada de novos empreendedores e possibilita a ascensão de pequenos fabricantes à condição de empresários. O baixo nível tecnológico, resultante da lentidão das inovações no setor, refletiu-se em uma indústria de mão-de-obra intensiva na qual as exigências de capital, sobretudo nas primeiras décadas do século XX, tendiam a ser muito baixas24. O trabalho a domicílio, característico da fase pré-fabril, persiste ainda hoje como forma produtiva predominante na indústria do calçado, mesmo em um estágio avançado do capitalismo. Em O Capital, o trabalho domiciliar de costuradores e costuradeiras de calçado é exemplo recorrente utilizado por Karl Marx para tratar do moderno trabalho a domicílio; segundo Marx (1996), o trabalho familiar na fabricação de sapatos e botas absorveu boa parte da produção de máquinas de costura, que eram, já naquela época, alugadas aos trabalhadores domiciliares que não tinham condição de comprá-las. Marx assinala ainda que, em Londres, após o surgimento da máquina de costura, a distribuição de trabalho a domicílio para a fabricação de calçados foi à última a desaparecer, entre os setores nos quais esse tipo de trabalho era comum, e a primeira a reaparecer depois de algum tempo (Tópico 8, cap. XIII – Livro I, v. I). Em Franca, até o olhar mais despretensioso perceberá o quão comum são as fabriquetas de fundo de quintal, responsáveis por parte considerável de toda produtividade do calçado, além de ser por excelência lugar formador de mão-de-obra. Mesmo em países onde a indústria calçadista apresenta maior evolução técnica, o processo de fabricação do sapato mantém poucos traços que possibilitem identificar procedimentos tecnológicos avançados. Um exemplo singular é o estudo sobre o operariado da indústria de calçados portuguesa, no qual Elísio Estanque assinala que: 24 De acordo com Maurice Dobb, em seu clássico A evolução do capitalismo, mesmo na Inglaterra, a transformação das oficinas e manufaturas de calçados em fábricas se deu muito lentamente, predominando as pequenas oficinas especializadas na fabricação de calçados; conforme observa, por quase todo o século XIX a produção de sapatos “estava em sua esmagadora maioria em mãos de firmas pequenas que empregavam de dez trabalhadores cada e só na última quadra do século é que a produção de botas e sapatos, com a introdução trazida da América da máquina de Blake de costura e outros instrumentos automáticos como a fechadura, mudou do sistema de trabalho em casa ou manufatura para uma base fabril”. (1976, p. 324). A máquina de Blake foi inventada em 1858 e era uma adaptação da máquina de costura têxtil para a execução do pesponto. 78 Pode dizer-se que o calçado é um daqueles sectores em que a automação é assaz limitada. Mesmo nas tarefas mais mecanizadas, a componente manual tem um peso significativo. Em todas as posições da linha de montagem essa componente está presente, muito embora haja umas que são mais facilmente efectuadas do que outras. (2000, p. 246). Portanto, o contexto da indústria do calçado oferece a possibilidade, mais intensa em seus primórdios, de pequenos artesãos e operários se converterem em futuros donos de fábricas e empresários. Esse aspecto é crucial para entendermos, por exemplo, um pouco da dinâmica da classe operária na região, porque essa dinâmica rege um “contrato moral” entre patrão e empregado, operário e empresário do calçado, que deixa fora direitos trabalhistas orientados pela CLT no primeiro momento. Aliás, a presença da Justiça do Trabalho, nesse período inicial da consolidação do pólo calçadista é tímida, incipiente, como demasiada morosidade e incertezas. Em Franca, registramos no ano de 1944 a primeira reclamação trabalhista, acolhida nessa época, até 1968, nos Cartórios de Ofício Cíveis de Justiça. Arquivo Histórico Municipal de Franca "Capitão Hipólito Pinheiro" 9.903 10000 8000 6000 4000 2000 55 107 CARTORIO PRIMEIRO OFICIO CÍVIL DE JUSTIÇA DA COMARCA DE FRANCA (1964-1967) CARTORIO SEGUNDO OFICIO CÍVIL DE JUSTIÇA DA COMARCA DE FRANCA (1944-1963) JUNTA DE CONCILIAÇÃO E JUSTIÇA DO TRABALHO – J. C. J. FRANCA (1968-1988) 0 Quantidade de Processos GRÁFICO 5 – Arquivo Histórico Municipal de Franca “Capitão Hipólito Pinheiro” Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Franca Esses registros se limitam ao Arquivo Histórico Municipal, levando em conta que, possivelmente, esses números não expressem de forma absoluta a realidade. Há um panorama da distinção e evolução do número de processos que podem ser observados empiricamente no 79 volume de processos indicados no gráfico acima depois de 1968. Portanto, em nosso entender, desenvolve-se uma cultura de valorização dos direitos trabalhistas, fazendo parte da dinâmica das classes sociais e sua formação. 4.2 Considerações sobre a indústria e o operário moderno Pequenas oficinas, cujos proprietários não se tornaram grandes industriais também incorporavam algumas máquinas à produção, o que não é sinônimo de eliminação do trabalho manual. Quanto à questão que tentamos refletir acerca da formação da classe trabalhadora em Franca, outro aspecto importante é sobre a condição peculiar que nasce o empresário francano, uma vez que está diretamente envolvido com o processo produtivo, sendo ele mesmo, o proprietário quem se encarregava de fazer determinadas operações à máquina, na qual os oficiais e seus ajudantes competiam às etapas manuais do processo produtivo. Necessitando de maior aprofundamento nesses exemplos, podemos suscitar por enquanto, que as hierarquias dessa incipiente "classe" operária sugerem peculiaridades próprias. Pode-se concluir para o momento que, até 1940, foi a forma artesanal de produção que predominou, na qual a concentração de capitais era ainda incipiente e o fator trabalho determinante. Como já foi indicado acima, a produção era feita em pequenas unidades familiares, situadas nas residências dos proprietários dos negócios, com emprego reduzido de assalariados. Era em torno do ofício que se construía a identidade do sapateiro25. A fase inicial de produção de calçados, freqüentemente, é associada ao domínio do saber, da técnica, pelo trabalhador, que resultava da associação entre trabalho e arte. No entanto, a separação 25 Ainda não definido como operário em Franca, nesse momento. O ofício de sapateiro, é historicamente associado ao caráter de político e intelectual assumido por seus integrantes. Para mais informações consultar HOBSBAWM, E.J; SCOTT, J.W. Sapateiros Politizados. In.: ______. Mundos do trabalho. 3. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. p.149-191. Também o texto de WEID, Elisabeth Von Der. Características do mercado de trabalho industrial no Rio de Janeiro e evolução da mentalidade operária. In: SZMERCSÁNYI, Tamás & MARANHÃO, Ricardo. História de Empresas e Desenvolvimento Econômico. 2. ed. São Paulo: Edusp: Hucitec: Imprensa Oficial, 2002. p. 189-205. 80 entre o curtimento do couro e a confecção do calçado, somando-se a introdução de motores que permitiram maior rapidez na produção, aos poucos, começam a fazer parte do cotidiano do operário, ou seja, a presença de novas ferramentas. As alterações no processo produtivo intensificaram-se a partir da década de 1950, principalmente em decorrência de novos mercados, das facilidades de obtenção de crédito (muito embora essa afirmação se confirme mais em outros segmentos) e, posteriormente, da supressão de impostos sobre a importação de equipamentos. Inserida no processo amplo de industrialização substitutiva de importações pela qual passava o país, a aceleração da concentração de capitais se fez acompanhar pela modernização de equipamentos, ampliação de fábricas, mecanização e incremento à produção. Teve início a produção de calçados de tipo médio e fino, visando atender o mercado interno em expansão. No final dos anos 1960, a produção voltou-se para o mercado externo. Essas transformações vão alterar diretamente o cotidiano dos trabalhadores na fábrica. Nesse instante, o aprendizado da profissão, articula-se às transformações ocorridas no processo produtivo, às relações entre trabalhador e máquina, à disciplina fabril. Nesse ambiente de mudanças, é preciso ressaltar com ênfase, que até então, a família predominava como trabalhadora coletiva, como unidade produtiva e co-existira com a implantação da grande indústria em Franca, fator que predomina até hoje, principalmente em algumas atividades específicas. Nesse sentido, segundo Barbosa (1998, p. 143)26, a Calçados Samello, que foi constituída em 1926 e em 1953 inaugurou novo prédio, especialmente construído, para receber o maquinário novo, torna-se referência para o setor calçadista brasileiro. Essa atitude instala um contato com novas técnicas produtivas de gerenciamento da produção e de comercialização de calçados, sendo a empresa calçadista brasileira a que mais 26 O autor discute, particularmente, como os princípios fordistas penetrou na indústria de Franca a partir do início dos anos 1950, por influência da empresa Samello, cujo proprietário, Miguel Sábio de Mello, havia enviado os filhos para os EUA para estudar na Lynn Industrial Shoemaking School, em Boston. 81 incorporou a orientação da USMC, em boa medida pela influência direta de Miguel Sábio de Mello e seu filho Oswaldo, ambos fizeram estágios nos EUA. Ademais é preciso adicionar outra indústria que não é inserida com muita freqüência nos estudos sobre o tema por ser de componentes para calçados, estamos nos referindo a Amazonas S.A (também denominada em sua gênese de Pucci S.A) responsável pela produção de solados de borracha e afins. Verificamos na pesquisa um número considerável de registros de processos trabalhistas contra essa empresa. Esses nos dão à dimensão da abrangência operária na cidade, inserindo a empresa citada como uma das responsáveis também pelo processo de disciplinarização da classe operária no município e região. Para se ter uma noção, conferimos o registro de 73 processos em nome da empresa Pucci S.A., no período de 1965 a 1971, e 231 processos para Amazonas Produtos para Calçados S.A. até 1988, com o total de 304 registros, que se concentram, em sua maioria, no final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Para ilustrar, contrariando a ditadura disciplinar de maneira peculiar, os trabalhadores expressam atitudes peculiares, como o prenseiro da empresa citada acima, Manuel Ferreira Prado, que “Alegou que estava chovendo um período do dia 18.12.68” (AHMF, Cx. 08 – Proc. 154/1968) (ANEXO AB), por isso não fora trabalhar. A indústria de calçados é, historicamente, caracterizada pelo emprego intensivo de trabalho vivo, apresentando baixo índice de concentração de capital e adota um processo de produção que, de forma geral, não se utiliza de tecnologias sofisticadas. Um ramo de indústria que absorve uma quantidade significativa de força de trabalho barata e, em boa medida, especializada, detentora de conhecimentos, habilidades e destreza manuais ainda imprescindíveis à produção do calçado de couro. Dessa forma, segundo recentes estudos de Piccinini (2001), no caso brasileiro, as empresas produtoras de calçados, mesmo pertencendo a um setor considerado tradicional, buscam uma atualização tecnológico-organizacional, 82 ainda que de forma mais lenta e desorganizada, distantes de uma automatização pelas condições específicas da economia do setor, que ainda conta com uma mão-de-obra barata. No entanto, em algumas empresas, consideradas "de ponta", esforços para uma atualização tecnológica e/ou organizacional ocorrem de fato para enfrentar a concorrência. A mesma autora afirma que não existe, no Brasil, empresa fabricante de calçados de couro que utilize tecnologias integradas entre o CAD e CAM27. Por isso mesmo, a fabricação do calçado exige certo nível de qualificação da maioria dos operários que, segundo o nível de exigência da produção industrial, só é verdadeiramente competente após um ou dois anos de experiência. Para a confecção de um calçado, geralmente são necessárias de 120 a 130 operações, sendo que 70 a 80% dessas são mecanizadas atualmente. Como ilustração e de maneira geral, segundo Navarro (1998), nas diversas tarefas realizadas pelos sapateiros envolvidos na produção de calçados, algumas são consideradas ‘principais’ de determinada seção da produção e outras consideradas ‘tarefas auxiliares’. Entre essas encontram-se a seção de corte (cortador de vaqueta, cortador de forro e auxiliar de corte); a seção de preparação para o pesponto (chanfradeira, dobradeira, colocadeira de peças, coladeira de espumas, coladeira de enfeites, colocadeira de tressê ou tresseteira); a seção de pesponto (pespontador e auxiliar de pesponto); seção de costura manual na forma (costurador manual, moldador de contraforte, montador manual, montadores de bico, montadores de lado, montadores de base e auxiliares de seção); seção de montagem (moldador, moldador de contraforte, montador manual, montadores de bico, montadores de lado, montadores de base e auxiliares de montagem); seção de acabamento (lixadores ou alisadores de planta, giradores, fresadores, passadeiras de cola, apontadores de sola, prensistas, blaqueadores, ponteadores e auxiliares de acabamento); seção de plancheamento (lustrador, escovador, jogador de brilho e 27 Computer Aided Design (CAD) e Computer Aided Manufacturing (CAN). O CAD é utilizado na elaboração do ‘design’ dos modelos e na modelagem do calçado. O CAN permite o acionamento de um sistema computadorizado de corte da matéria-prima do calçado a jato d’água a laser ou com facas mecânicas. 83 plancheador). Ademais, deve-se ressaltar o trabalho a domicílio realizado pelas costuradeiras manuais. Por isso, é a partir de 1960 que as indústrias calçadistas de Franca começam a intensificar a mecanização da produção e as operações produtivas, antes realizadas em domicílios ou em bancadas, passam a ser realizadas no interior das fábricas. É nesse momento específico que acreditamos residir a gênese de um novo tipo de trabalhador, o qual passa gradualmente a manter, de agora em diante, um contato íntimo, que extrapola os limites da fábrica, com o modelo fordista-laylorista. A busca de maior produtividade estimula a incorporação e o desenvolvimento de novas maneiras de produzir o calçado. Essa nova dimensão da produção e da produtividade surge com a organização científica do trabalho. Segundo boa parte dos autores, essa mudança deriva pioneiramente, do empreendimento da Samello, cuja visão empresarial é aguçada em virtude dos conhecimentos adquiridos nos EUA, privilegiando a racionalização do trabalho e sua melhor organização. Dentre as inovações advindas do processo de racionalização da organização trabalho, descobertas aparentemente sutis também fizeram parte das transformações e uma delas foi a descoberta de um modelo de confecção de sapato que casava com a idéia de racionalizar a produção. Esse modelo foi o mocassim28. É necessário salientar que o mocassim representa exatamente o moderno no que diz respeito ao estilo, que propicia uma inovação radical na concepção técnica de fazer o sapato, liberando uma produtividade considerável a partir de então. Ademais, a produção de calçados começa a incorporar outros tipos de materiais como saltos e solados de borracha. Passa a conjugar o couro com outros materiais, contribuindo para o barateamento e ampliação do produto. É preciso ressaltar que 28 Esse modelo se popularizou bastante desde meados de 1960, dado o seu conforto, praticidade e ao seu custo de produção inferior, sendo um modelo com característica mais esportiva que participa de uma inovação de vestuário, de um estilo modista que incentivava o uso de roupas e calçados diferentes em situações distintas, incentivando o ‘estilo’ mais adequado para cada situação. 84 não é a grande indústria que expande a produção calçadista em Franca, mas toda uma ampla gama de pequenas e médias indústrias que se formam nesse período. Quanto à produção do calçado, outro aspecto que deve ser mencionado, além do modelo tipo mocassim, é a inserção de campanhas publicitárias, preconizada em seu início de forma intensa principalmente pela Samello Nesse momento, verifica-se um aumento substancial da divisão do trabalho, que começou a ser organizada em seções, por exemplo: de corte, de pesponto, de montagem, de acabamento, de plancheamento. Com o aumento do fluxo da produção, era impraticável que os montadores permanecessem acomodando os calçados em produção ao seu redor ou mesmo que se deslocassem até as prateleiras. Assim, introduziu-se as “prateleiras moveis” ou “carretas”, substituindo pouco a pouco com as conhecidas “banquinhas”. A adoção dessas carretas buscava agilizar o transporte do calçado de uma seção para outra. Gradativamente, esse aumento de produtividade pressiona o trabalhador que teme, a partir daí, perder seu emprego e sua profissão. Coloca-se uma questão para a memória social, pois os sapateiros mais velhos que vão perdendo o domínio sobre o saber produtivo, paulatinamente são associados à perda e destruição de uma identidade profissional particular. O sapateiro começa a deixar de ser considerado um artista, cujo prazer estava em visualizar o produto final em suas mãos. Muitos desses sapateiros ainda sobrevivem com a permanência na produção doméstica de sapatos ou mesmo na pequena sapataria de consertos. Na primeira fase da introdução da maquinaria, anterior à automatização, tratava-se de indústria simples, nos anos 1920 e 1930 o proprietário se encarregava de fazer determinadas operações na máquina, nas raras máquinas existentes. Aos oficiais e seus ajudantes competiam as etapas manuais do processo produtivo, ou seja, a produção de calçados manteve paralelamente atividades mecanizadas e artesanais. Disso resultou uma forma peculiar da produção calçadista, que persiste até os dias de hoje: das fabriquetas de 85 fundo de quintal, local de produção, comércio e residência. Surge a fábrica que, ao crescer, solicita mais espaço e afasta do local de produção e comércio a família do proprietário (RINALDI, 1987). Entretanto deve-se salientar que o elemento manufatureiro na produção de calçados sempre foi, e continua sendo, determinante, apesar de toda espécie de evolução tecnológica do setor. Dessa forma, a maioria dos empresários do setor29, nessa primeira fase, originou-se das fábricas nas quais vendiam sua força de trabalho para estabelecer-se por conta própria com pequeno capital e emprego de pessoas da família na produção (FERREIRA, 1989). Cremos, com isso, cremos que é, somente a partir de 196030, que novas tendências tecnológicas e administrativas são incorporadas definitivamente ao processo de produção de calçado. Naquele momento, o cronometrista foi incorporado à produção de calçados e a intensificação do trabalho ficou evidente, pois o trabalho na esteira não pode ser interrompido, pois esta não pára. Surge então uma categoria de trabalhador muito peculiar, que será uma regra nos anos 1980–90, que é o trabalhador “coringa”, capaz de executar todas as operações ali realizadas, pronto para ocupar o posto de qualquer trabalhador que precisasse interromper uma tarefa. Um dado curioso é que a institucionalização desse trabalhador deveuse à observação gerencial das empresas uma vez que os trabalhadores, em um processo de resistência às inovações, criavam mecanismo de troca de funções, das idas e vindas aos banheiros, dentre outros artifícios, como regra de uma espécie de proteção coletiva. Com a esteira e o sistema de racionalização do processo de trabalho, as operações desenvolvidas em cada seção foram ainda mais divididas. Criaram algumas seções, com novas funções auxiliares, com ampliação do número de operários nas fábricas. É justo nesse momento que 29 Segundo Barbosa (2004), essa condição é importante do ponto de vista do trabalho, pois reúne os pioneiros da grande indústria em Franca. 30 “A partir dos anos 1960, Franca assistiu uma verdadeira febre em torno do calçado, que conjugava a euforia em relação ao sucesso do principal produto [...] incorporado à vida local e a consolidação do seu parque fabril. A afirmação do título de ‘capital nacional do calçado masculino’, a instituição do dia do calçado francano e a proposta de realização da Exposição Bienal da Indústria de Calçado de São Paulo, antecipando em quase dez anos a Francal. O slogan publicitário da Samello era: se depender de Franca o Brasil andará calçado’” (BARBOSA, 1998, p. 50) 86 identificamos o início de uma forma de unidade de classe distinta de outras épocas. Jovens trabalhadores, com idade entre 14 e 18 anos, são incorporados às atividades industriais. Para os trabalhadores que se integram às fábricas e, mais ainda, para os que não conheceram a produção artesanal, a resistência à mecanização está sempre presente na dificuldade de aceitar a extrema divisão do trabalho, a rigidez da disciplina do espaço fabril. Adaptar-se ao novo sistema significa dominar o corpo e enquadrá-lo nos espaços delimitados como seu, manter-se em silêncio no trabalho e transformar-se, na intenção da fábrica, em uma engrenagem. Sobre esses aspectos, a análise dos processos trabalhistas vai demonstrar com mais detalhes. Segundo nossa pesquisa, esse processo contribuiu para a configuração de uma nova identidade, na qual a passagem do artista-artesão ao trabalhador disciplinado inaugura novas possibilidades de auto-conhecimento e ação como classe, inclusive, como vamos demonstrar noutro capítulo, consolidando e reiventando novos aspectos positivos na perspectiva de ser sapateiro. Estamos indicando que a formação do operário moderno em Franca foi moldada pelo antigo sapateiro, mas com rupturas e distinções visíveis. A constituição de uma nova identidade coletiva dos trabalhadores da indústria calçadista fez-se através das experiências sociais no universo produtivo disciplinado fordista-taylorista, tecidas por práticas e dificuldades cotidianas comuns, pela rememoração constante das vivências misturada à antiga situação fora da cidade, negando ou integrando seu passado a sua nova condição de operário. A indústria de calçados, nesse estágio, desqualificou o sapateiro antigo, mas em contrapartida exigiu que desenvolvesse novas habilidades, algumas manuais, inexistentes quando o sapateiro era o trabalhador que produzia calçados de couro ou era identificado como um artesão. Ser sapateiro a partir daí, não é somente aquele que faz um sapato por inteiro e sabe de todas as suas operações, mas sobretudo, é aquele que se identifica com um novo modo de vida, um estilo de ver e pensar o mundo estreitamente ligado à sua ação, seja no mundo produtivo ou fora dele. 87 É preciso notar que a introdução da "esteira mecânica", ícone simbólico do modelo fordista, não se configurou, segundo Navarro (1998), no caso da confecção de calçados, a principal inovação técnica, pois a tentativa de regular o ritmo da produção, com a adoção das carretas e de sua versão mais sofisticada, a esteira, esbarrou na contradição do processo de produção de calçados, qual seja: a mecanização da produção não é sinônimo de mecanização de todas as operações necessárias para a realização dessa produção. Ou seja, as novas maneiras de se construir um calçado não eliminaram, e não eliminam o caráter manual de muitas das operações de montagem, que sempre envolveu um grande número de operações e de trabalhadores. Devido às especificidades de cada etapa do processo de produção, a implantação de uma esteira unindo todas as seções das fábricas foi se revelando inadequada. A produção do calçado não permite mecanização ampla das atividades produtivas, o caráter manual é imprescindível para muitas funções, portanto, quando percebido por algumas empresas, o trabalho manual também opera dentro de uma espécie de marketing, recentemente, passam a agregar o fator artesanal à qualidade do produto, aumentando assim o seu valor. Na década de 1970, a demanda crescente do mercado interno, estimulada pelo processo de industrialização e urbanização vivido no país, somou-se a expansão da produção destinada à exportação. Esse contexto criou um quadro de incremento do volume da produção de calçados, de ampliação do número de unidades produtivas instaladas e uma grande oferta de empregos pelo setor calçadista (GARCIA, 1997). Estímulos oficiais são implantados visando à exportação, à isenção de impostos, à concessão de créditos e de incentivos fiscais, subsídios às exportações e uma política de câmbio apoiada em taxas que desvalorizavam a moeda nacional, aumentando o crédito a ser recebido pelos exportadores. Nessa nova fase, um dado que, para nosso estudo tem importância central, é que se instaura uma exigência maior não só pela quantidade e cumprimento de prazos, mas uma 88 exigência da qualidade do produto, sobretudo para o mercado externo. Assim, não é somente o aumento da mesma aliada às mudanças tecnológicas e organizacionais que devem ser considerada. Nesse instante, um rigoroso sistema de controle de qualidade vai exigir a intensificação de um tipo específico de trabalhador. A ampliação do volume de produção obriga a procura de trabalhadores qualificados. Segundo Garcia (1997), em meados dos anos 1970, são instaladas em Franca duas instituições destinadas a dar suporte ao setor: o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), atuando na área de treinamento de mão-deobra e o Núcleo Tecnológico de Couros, Calçados e Afins, do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo). Com a indústria calçadista, crescem também outras atividades diretamente ligadas a ela, como a metalurgia. Por exemplo, cresce o número de empresas dedicadas ao aluguel e venda de máquinas novas e usadas, assim como o número de oficinas para consertos, reparos e adaptações de máquinas utilizadas na produção de calçados. Verifica-se um aumento de empregados também nas atividades indiretas ligadas às indústrias calçadista. Um dado que para nosso estudo tem importância central é que se instaura uma exigência maior não só pela quantidade e cumprimento de prazos, mas sobretudo exigência da qualidade do produto. As indústrias diziam estar em falta de mão-de-obra no período, assim destacamos que não era qualquer mão de obra, estava em falta de mão-de-obra qualificada, afinal, a cidade teve um período de migração significativa no período. Segundo Navarro (1998), em 1974 os cursos no SENAI, chegaram a ser ministrados em três turnos, com uma procura muito grande. Os cursos mais procurados eram de pesponto e corte, cujos empregos eram certos após o término, sendo "o bom trabalhador disputado" pelas indústrias. A mão-de-obra abundante e barata é um dado econômico importante e determinante para o crescimento da indústria calçadista que deve fazer parte de qualquer análise. 89 Outro aspecto importante são as formas de pagamento que variavam de empresa para empresa e mesmo no interior de cada uma. Dividia-se em pecistas, horistas e mensalistas. O pagamento por peça estabelecia funções-chave, como o corte e acabava imprimindo o ritmo de trabalho de toda a fábrica, encontrando respaldo na mentalidade operária, valorizando do trabalho, pois quanto mais o trabalhador trabalha, mais ganha. Outras estratégias também devem ser consideradas, como as políticas de premiações aos trabalhadores por produtividade, muitas dessas implementadas não somente pelas indústrias, mas pelos sindicatos. Queremos ressaltar que as mudanças ocorridas no processo produtivo não ocorrem somente nas grandes indústrias. Segundo Rinaldi (1987), nas fábricas o espaço físico fica pequeno, assim parte da produção vai ser realizada fora dela, por exemplo, a costura manual e o pesponto. Essa prática do trabalho em domicílio, tradicional em Franca, associada às estratégias de constituição e reprodução das pequenas e médias empresas calçadistas, começou a ser reestimulada, passando a ser crescentemente utilizada a partir de meados dos anos 1970. A fabricação de uma ampla variedade de modelos de calçados, como os mocassins e o semi-sociais, que demandam muita costura manual, tressê e outros enfeites, ampliou a oferta de trabalho para as costuradeiras manuais. As fábricas renunciaram ao aumento dessas seções, passando a recorrer ao trabalho em domicílio. Esse tipo de trabalho não requer o uso de máquinas (os instrumentos de trabalho necessários são apenas a agulha, a tesoura e uma sovela), um trabalho realizado majoritariamente por mulheres e não é difícil a transferência para os limites do domicílio. Importante adicionar alguns elementos que irão fazer parte de nossas reflexões finais, por exemplo, que esse tipo de trabalho é muito específico, não necessitando de mão-de-obra altamente especializada, com certa facilidade de aprendizado. Ademais, e esse é o ponto principal, das funções sofridas pela fragmentação da produção são as mais estigmatizadas, de forma depreciativa digamos assim. Em outra ponta, o emprego ou 90 a função que exige uma melhor qualificação, aliando-se à máquina é valorizada, conferindolhe um certo status. Ou seja, queremos sugerir que o fascínio pela mecanização e pelo processo de disciplinarização não se restringe ao espaço produtivo, muito pelo contrário, atinge a classe operária com muita eficácia, influenciando para se construir uma vasta hierarquização em importância de funções eleitas pelo próprio operário do sapato. Essa é uma tendência que acompanha todo universo produtivo e, em Franca, assume proporções peculiares ao "inferiorizar", na escala dessa hierarquia, o trabalho manual e, em segundo, o trabalho doméstico, para não inserirmos um problema de gênero31 que envolve essas atividades. Esses exemplos serão mais esclarecidos na seção 5, a seguinte, em que apresentaremos a análise dos processos trabalhistas em si. As costuradeiras, no princípio, mantendo relação estreita com a indústria onde trabalhavam, conservavam alguns vínculos empregatícios. Aos poucos, o trabalho realizado em domicílio começou a ser repassado pela costuradeira para suas amigas, vizinhas e parentes. A relação direta entre as trabalhadoras envolvidas na execução da costura manual, do tressê e a empresa foi se distanciando, com isso cada vez mais essa relação foi contando com um número de intermediários, ao mesmo tempo em que as relações trabalhistas formais entre as trabalhadoras a domicílio e as empresas foram desaparecendo. Aqui um ponto crucial, o alcance da Justiça do Trabalho, justamente no momento de maior ampliação do pólo calçadista em Franca, é muito limitado. Dessa forma, com a intensificação da terceirização que ocorre também na cidade, algumas atividades desde já inserem tipos de relacionamentos sociais e econômicos que merecem ênfase e mais aprofundamento. Essa forma de sociabilidade desempenhada por essas costuradeiras, por exemplo, e pela própria tradição do trabalho doméstico em Franca, incorpora indiretamente as formas de organização produtiva ditada pela indústria numa ampla teia de novos trabalhadores, em sua maioria, pessoas ligadas 31 Mais informações na Tese de TOMAZINI, Maria Lúcia Vannuchi. A mulher na fábrica de sapatos: trabalho e gênero na indústria calçadista de Franca/ SP. 2003. Tese de doutoramento (Pós-graduação em Sociologia) – Universidade Estadual Paulista - Araraquara/ São Paulo: FCL, 2003. 91 por laços familiares e vizinhança. Esse aspecto fortalece a construção e a validade do acordo moral, a revelia da Justiça do Trabalho. Entendemos que essa forma de ação da classe operária francana merece mais atenção, pois, nesse aspecto, considerando ou não o nível de inserção da Justiça do Trabalho em seu cotidiano, a classe está em ação e começa dentro de casa. E esse tipo de trabalho, em casa, passa a ser remunerado por peça, assim, no domicílio, a participação e “ajuda” da família, filhos e maridos, em suas “horas de folga” são constantes. Em outras palavras, o horizonte da Justiça estava longe ou em outra dimensão no momento de consolidação da indústria calçadista e na própria gênese da classe operária em Franca. Entretanto, isso não significa que esses trabalhadores estavam alheios aos seus direitos, muito pelo contrário, o que verificamos foi o oposto. 92 5 OS OPERÁRIOS DO CALÇADO E JUSTIÇA DO TRABALHO EM FRANCA/ SP: O UNIVERSO DAS RELAÇÕES SOCIAIS Pesquisar os processos trabalhistas32 representa um campo amplo de possibilidades, por exemplo, observar a constituição das diferentes formas de relações no ambiente de trabalho, bem como os conflitos originados no mesmo. Considerando também essa perspectiva, nosso enfoque priorizou o movimento da classe operária em ação, em sua dinâmica de conflito, dentro do universo produtivo e também nos embates políticos e sociais via reclamação trabalhista. Para tanto, os procedimentos utilizados para a análise dos processos não tiveram como ponto de partida a busca do que realmente aconteceu, mas sim a tentativa de compreender como as distintas versões foram produzidas. Os processos trabalhistas são ricos em detalhes. Enquanto que na sentença judicial e na argüição dos advogados, os argumentos são formais, na fala dos depoentes (reclamantes, reclamados e testemunhas), existe a sugestão de intrigas que possibilitam desvendar o embate que se processa nos meandros das relações sociais. A intenção de fazer uma interpretação do universo do trabalho e da classe operária a partir dos processos trabalhistas não pretende focar a atenção no trâmite judicial, nem mesmo a relação do trabalhador com a estrutura jurídica. 32 O uso de processos trabalhistas em pesquisas relacionadas ao universo do trabalho não é excepcional, mas somente vem sendo realizado recentemente. Como exemplos temos os estudos de Ângelo Priori. O protesto do trabalho: história das lutas sociais dos trabalhadores rurais do Paraná (1954-1964). Maringá: EDUEM, 1996. E o trabalho de Leila de Menezes Stein. A construção do sindicato de trabalhadores rurais no Brasil (1954-1964). Doutorado. Unicamp, 1997. Utilizam os processos trabalhistas para compreender as condições na Justiça do trabalho rural, Ângelo no Paraná e Leila em São Paulo. Outro autor que procura discutir o percurso da Legislação Trabalhista e observar seu funcionamento nas experiências dos trabalhadores nos processos trabalhistas é Rinaldo José Varussa. Trabalho e legislação: experiências de trabalhadores na Justiça do Trabalho (Jundiaí/ SP, décadas de 40 e 60). 2002. Tese de Doutorado (Pós-graduação em História Social) PUC, São Paulo, 2002. Segundo o autor, a perspectiva do trabalhador com o trâmite na Justiça do Trabalho não encerra a possibilidade de construir um quadro das condições de vida dos trabalhadores relacionado ao processo de migração, no período de constituição da “cidade industrial”. 93 O espaço da lei trabalhista instituída proporciona um campo de atuação que, paulatinamente, é vislumbrado como passível de utilização. Entretanto, embora pudesse ser visto como recurso contraditório, uma vez que nem sempre as sentenças favoreciam o empregado, a perspectiva de eqüidade, proposta no funcionamento da instância jurídica, proporcionava ao trabalhador uma possibilidade quando a sensação de injustiça se instaurava. Considerando a abordagem de Vianna (1983, p. 20-30) acerca da fábrica e sistema político, essa não se comporta neutra quanto à estruturação do poder e à forma do sistema político, ou seja, a fábrica não está localizada em um território estranho à política. Isso, independentemente, do comportamento da classe operária como ator na arena política, da sua expressão partidária e sindical. Esse conceito é importante para dimensionar uma reflexão acerca da pecha histórica de conservadorismo que a cidade sustenta no seu embate econômico, social e político. Portanto, refletir sobre a situação do trabalho e a classe operária em Franca serve de ponto de partida e busca contribuir na discussão de questões suscitadas pelas correntes teóricas mais recentemente acerca do tema. Ao abordar parte do percurso dos conflitos trabalhistas relacionados ao universo produtivo da indústria calçadista em Franca e a dinâmica da formação da classe operária, elegemos como fonte principal os processos trabalhistas e o mérito desse intento é de estabelecer uma tentativa de enxergar além das querelas expostas formalmente nos processos trabalhistas, conferindo-lhes um espaço de análise rico e variado. Segundo o exemplo que assinala Souza (2003)33, os sapateiros utilizam a Justiça para defender seus direitos. Nesse sentido, a história social dos trabalhadores das indústrias de calçado em Franca está ancorada em uma clivagem de processos que suporta uma relação ampla entre fatores que cercam e dinamizam a vida social pela qual passa a força econômica e 33 Souza elege alguns processos concentrados principalmente no início da década de 1970 e aprofunda reflexão sobre eles. No Caso de Souza, optou em uma amostragem, no início da década de 1970, que focou atenção na utilização de todos os processos relacionados às indústria de calçados que foram objeto de recurso (enviado ao Tribunal Regional do Trabalho, em São Paulo), opção, segundo Souza, foi mais proveitosa devido aos processos terem mais documentos anexados. No seu trabalho, Souza analisa 149 processos de 1970 a 1980. 94 simbólica das indústrias francanas, pelos sindicatos, pela dinâmica das classes e pela relação com o estado via Justiça do Trabalho. A maioria dos conflitos mais rotineiros relacionados a problemas nos locais de trabalho, como é o caso das demissões, é tratada por meio da ação individual legal via Justiça do Trabalho. Esse fato explícito, dos processos serem “individuais”, pois são assim classificadas pela legislação, indica uma força em si da classe social em questão uma vez que, nesse contexto, não há como estancar esse indivíduo em si mesmo, mas deve-se inserir essas ações individuais em uma perspectiva de uma relação social. Portanto, é infinita a variedade da fonte em questão, afinal, em cada processo poderíamos trilhar distintos caminhos de reflexão uma vez que nele não está somente o ato judicial em si, mas esconde uma trajetória de vida que não se resume às intenções e aos resultados da ação judicial. Por isso mesmo, em trabalho posterior, urge a partir desses estudos, certamente a necessidade de aprofundar uma análise dos inúmeros relatos apresentados em cada processo trabalhista. Seja pela via o discurso jurídico e toda sua linguagem que exerce um poder peculiar, seja pelas descrições ricas em detalhes de muitos conflitos. Quanto à Justiça do Trabalho, vamos mencionar esquematicamente sua trajetória em Franca. A Junta de Conciliação e Julgamento instaurada no local no final de 1968, em única Vara, vai até 1986, inserida ao TRT da 2ª Região em São Paulo, que respondia pelos processos trabalhistas de todo os Estados de São Paulo e parte do Mato Grosso do Sul. A partir de dezembro desse ano, Franca se inclui no TRT 15ª Região34, em Campinas/ SP, continuando com Vara única até 1992, quando é instaurada a 2ª Vara de Trabalho. Antes da 34 Na primeira Instância, a Justiça do trabalho é formada pelas Varas do Trabalho, que julgam apenas dissídios individuais e cuja jurisdição é local (abrange geralmente um ou alguns municípios). No segundo grau de jurisdição estão os Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs), que julgam recursos contra decisões das Varas do Trabalho além de ações de competência originária, que ingressam diretamente no Tribunal, sem passar pela 1a instância, como por exemplo os dissídios coletivos, que envolvem sindicatos patronais ou de trabalhadores. A mais elevada Instância da Justiça Trabalhista é o Tribunal Superior do Trabalho, o TST, cuja principal função é uniformizar a jurisprudência trabalhista de todo país. 95 implantação da Junta de Conciliação e Justiça em Franca em 1968, que intensifica de fato o âmbito da demanda de processos trabalhistas, os quais eram acolhidos nos Cartórios Cíveis de Justiça de Franca, o 2º Ofício, de 1964-1967 e o 1º Ofício, de 1944-1963. A presente seção é essencial para a tese que defendemos, pois tem a pretensão de apresentar uma análise dos processos trabalhistas mais detalhados no sentido de buscar um elo com todo escopo teórico já alinhavado. Ao iniciar então, não é demais destacar que vemos, nessas ações ou atitudes operárias, um exemplo de como a classe trabalhadora age em seu cotidiano; como opera os anseios de uma vida melhor no universo produtivo do calçado, não deixando de fora a busca de direitos que estão, a princípio, em um horizonte bem distante. 5.1 A noção de Justiça A lei consiste em um complexo repertório de significados e de categorias, entendidos de forma diferente pelas pessoas, dependendo de suas experiências e conhecimentos jurídicos. Essa forma diferenciada de como as pessoas entendem e usam a lei é conceituada por French (2001, p. 60) como consciência legal. Tal consciência é um importante instrumento que se insere na análise da formação da classe, uma vez que consegue impor certas restrições, ainda que pequenas, à liberdade de ação dos industriais. Afinal de contas, proporciona aos operários o direito de apresentar reclamações e ter esperança de merecer uma justa consideração. A reboque da pressão disciplinar produtiva, das perseguições políticas, as listas negras, leis sem garantias de cumprimento e apadrinhamentos não escapavam aos olhos dos trabalhadores. Os depoimentos nos processos trabalhistas dão sinais de que os trabalhadores não estavam alheios aos acontecimentos políticos, bem como de que tinham capacidade de perceber a prática política como efetivo exercício da dominação social. 96 A noção de justiça na convivência com a legislação trabalhista recoloca a questão social brasileira na ordem do dia, inserindo-se na dinâmica da formação da classe trabalhadora. Nesse sentido, mesmo aos que defendem a eficácia da manipulação e controle sobre a classe trabalhadora, seja pelos sindicatos corporativos pós 1945, seja pela estratégia burguesa, o clamor por justiça não surge como o efeito espetacular da propaganda política, desenvolvendo nos trabalhadores uma suposta “falsa consciência”, mas ao contrário, mas sim vinculado ao emprego, ao salário, ao bem-estar dos filhos, enfim, a uma vida melhor. Assim, a estratégia predominante entre trabalhadores e sindicatos (antes e depois do novo sindicalismo) é reivindicar a justiça por meio do cumprimento da legislação oficial, ou seja, o cumprimento da lei. Em termos associativos, já destacamos uma corrente de análise acerca da classe operária em Franca privilegiando uma abordagem que antes da “virada sindical” em 1982, o sindicato dos sapateiros (STICF) pautava-se pela conciliação e colaboracionismo com o patronato e contribuía para forjar um operariado dócil e cheio de receios e desconfianças em relação aos seus representantes sindicais. Entretanto, cremos que essa docilidade da classe operária opera-se mais na disciplina fabril e está em outra dimensão na ação política. Na perspectiva de Przeworski (1989) esses aspectos não devem ser entendidos em termos psicológicos ou morais, mas sim na dimensão cognitiva e comportamental. Para o autor “os agentes sociais, individuais ou coletivos não andam por aí repletos de ‘pré-disposições’ que simplesmente põem em prática. As relações sociais estabelecem estruturas de escolhas segundo as quais as pessoas percebem, avaliam e agem [por exemplo, na relação com a Justiça do Trabalho]. As pessoas consentem determinadas linhas de ação quando seguem na prática escolhas” (1989, p. 175). Portanto, conformismo, passividade e ‘alienação’ muitas vezes estão nos olhos de quem vê. Sendo assim, cremos que o objetivo dos trabalhadores é dar um passo à frente, avançar, conseguir um emprego, um aumento salarial ou melhorar de 97 vida. Essas práticas, anteriores a 1982, enfim, não implicavam, necessariamente, resignação ou conformismo. Em conseqüência desse ponto de vista, não foi apreciada a perspectiva de que o espaço fabril ensejaria a eclosão de lutas autônomas, importante para entender a vida dos trabalhadores e tentativa de apresentar formas de organização dos trabalhadores em seu local de trabalho que, necessariamente, são resultados de relações estabelecidas com o mundo do qual os mesmos fazem parte. Segundo Souza (2003, p. 32), é possível afirmar que ao observar as práticas cotidianas no local de trabalho vê-se as imbricações da vida do trabalhador com as instituições representativas da classe ou com o Estado, mesmo que não se traduzam em grandes movimentos de massas populacionais nas ruas e ainda que não se apresentem como mobilizações de tal visibilidade, demonstrando que um pouco das ações continuadas e comuns à maioria das pessoas. Cabe aqui um parêntese para inserir, mesmo que rapidamente, as reflexões de Olson (1999, p. 13) 35 acerca da ação coletiva. Segundo o autor, freqüentemente, é dado por certo, ao menos quando há objetivos econômicos envolvidos, que grupos de indivíduos com interesses comuns, usualmente tentam promover esses interesses comuns. Espera-se que os grupos de indivíduos com interesses comuns ajam por esses interesses tanto quanto se espera que os indivíduos isoladamente ajam por seus interesses pessoais. Nesse sentido, ninguém se surpreende quando um homem de negócios persegue individualmente mais lucros, quando trabalhadores perseguem individualmente salários mais altos, ou quando consumidores perseguem individualmente preços mais baixos. A idéia de que os grupos tendem a agir em favor de seus interesses grupais é concebida como uma extensão lógica dessa premissa amplamente aceita do comportamento racional e centrado nos próprios interesses. Entretanto, 35 O autor (1999) discute a noção amplamente difundida, presente em todas as ciências sociais, “de que os grupos tendem a promover seus interesses é, portanto, injustificável, pelos menos quando se baseia, como geralmente ocorre, na pressuposição (às vezes implícita) de que os grupos agem em interesse próprio porque os indivíduos também o fazem. Portanto, a costumeira visão de que grupos de indivíduos com interesses comuns tendem a promover esses interesses parece ter pouco mérito, se é que tem algum”. (p. 15). 98 adianta Olson (1999, p.14), não é verdadeira a idéia de que os grupos agirão para atingir seus objetivos numa seqüência lógica da premissa do comportamento racional, centrado nos próprios interesses. Não é fato que só porque todos os indivíduos de um determinado grupo ganhariam se atingissem seu objetivo grupal, agiriam para atingir esse objetivo. Assim, os indivíduos racionais e centrados nos próprios interesses não agirão para promover seus interesses comuns e grupais. Portanto, observa-se com os dados apresentados, que as reclamações trabalhistas são em sua ampla maioria individuais. Assim, de acordo com Olson (1999), nos grupos pequenos pode muito bem ocorrer alguma ação voluntária em prol dos objetivos comuns dos indivíduos do grupo, mas na maioria dos casos, essa ação cessará antes que os resultados atinjam um bom nível para os membros do grupo como um todo. Em outras palavras, os operários do calçado em Franca, segundo a pesquisa empírica, souberam otimizar suas expectativas de acordo com o modelo de associação, ou sindicato, que se apresentava, não esquecendo de todo o contexto político por que passava o país. A luta dos trabalhadores é para garantir o cumprimento dos direitos, dessa forma para muitos, o sindicato tinha uma referência apenas na institucionalização das reclamações trabalhistas. Não cabe a esse trabalho, divagar acerca das inclinações revolucionárias da classe operária e colocar a experiência desses atores sociais nessas bases teóricas. Entretanto, considerando as orientações de Moore Jr. (1987, p. 248), a tarefa mais difícil de apreender é como os trabalhadores enfocam suas próprias vidas e como construíram a noção de justiça ao longo do tempo. 99 5.2 Os processos De maneira geral, segundo Cardoso (2002, p. 510), a idéia de que, tanto na tradição das ciências jurídicas quanto na tradição sociológica, o direito do trabalho é encarado como introdutor de um elemento civilizatório nas relações de classe, que está relacionado a mudanças culturais de caráter geral que atribuem novo estatuto à noção de pessoa humana, de indivíduo em sua singularidade, identidade e liberdade. Nos modelos legislados, a adesão à regra decorre, também, de valores últimos baseados em algum critério civilizatório. Em outras palavras, a adesão à norma jurídica, no âmbito das leis trabalhistas, por parte dos empresários, está estritamente ligada aos seus interesses. Entretanto, o tempo pode mudar as percepções dos agentes, e mesmo a adesão a critérios de justiça. Segundo Cardoso (2002, p. 515), a competição capitalista é um desses elementos mutantes que incide poderosamente sobre as convicções dos empresários. Não há nenhuma convicção de um capitalista que resista ao diagnóstico de seus diretores executivos de que seguir a regra legal levará à falência da empresa. Portanto é mais provável que esse tipo de empresário tente negociar com os trabalhadores algum outro expediente para a redução de custos, sendo a diminuição de quadros funcionais uma das soluções possíveis. Os gráficos abaixos demonstram que o esforço empresarial, em negociar com o trabalhador o desfecho do processo trabalhista, utilizando a “conciliação” como estratégia de acordo. 100 Resultado da Reclamação Trabalhista Total geral de Processos Trabalhistas 6000 5217 Arquivado por não comparecimento 5000 Conciliado 4000 Desistência dos reclamantes Improcedente 3000 Procedente 1907 2000 Procedente em parte 887 798 623 1000 Outros 336 135 0 GRÁFICO 6 – Resultado da Ação – total geral de processos trabalhistas (1968-1988) Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Franca RESULTADO DA RECLAMAÇÃO TRABALHISTA Ano 1968 Ano 1969 CONCILIADO Ano 1970 Ano 1971 600 553 Ano 1972 Ano 1973 500 Ano 1974 Ano 1975 389 400 356 306 288 294 271 300 239 217 213 193 120 100 Ano 1977 260 Ano 1979 232 Ano 1980 Ano 1981 164 200 Ano 1976 Ano 1978 196 253 383 136 Ano 1982 101 Ano 1983 53 Ano 1984 Ano 1985 Ano 1986 0 1 Ano 1987 Ano 1988 GRÁFICO 7 - Resultado da Ação – Conciliado (1968-1988) Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Franca 101 Os gráficos acima demonstram em números, conforme já mencionado anteriormente, o quanto o recurso à conciliação é importante, inclusive como estratégia das empresas, na dinâmica de resolução dos processos trabalhistas. Para demonstrar a proporção em que se davam boa parte das conciliações em seguida ilustraremos alguns processos pesquisados. Nesse primeiro exemplo, João Batista Ribeiro, menor, move reclamação trabalhista (AHMF, Cx. 12 – Proc. 334/1968) contra Calçados Ruy de Melo S.A no ano de 1968. A empresa foi sentenciada a pagar NCR$850,00 dos NCR$1.377,62 solicitados inicialmente. A empresa recorreu da decisão em 22 de junho do mesmo ano e, em nova audiência, conciliou com o operário em NCR$550,00. Em outro processo (AHMF, Cx. 18 – Proc. 733/1968), o sapateiro Gabriel de Castro solicita NCR$843,27, mas concilia por NCR$200,00. Neste outro processo trabalhista (AHMF, Cx. 37 – Proc. 576/1969) Paulo Graciano Lopes (herdeiros), operário da Pucci S.A (Futura Amazonas S.A), solicitava NCR$504,46, contudo foi conciliado por NCR$250,00. O trágico desfecho foi que não houve tempo para o acerto final, pois com grave crise cardíaca o operário faleceu no dia 08 de outubro de 1969. No seguinte processo (AHMF, Cx. 148 – Proc. 505/1973), João Batista de Lima, menor, com 12 anos, solicitou Cr$271,00 e conciliou por Cr$81,00. Nesse último exemplo o processo (AHMF, Cx. 284 – Proc. 739/1977), Maria Aparecida Damante Garcia solicitou Cr$9.458,80 incluindo salário maternidade, pois trabalhava em domicilio como costuradeira de sapatos e teve um filho naquele período. Os termos da conciliação foram os seguintes: Cr$3.000,00 referente a esta reclamação trabalhista e será registrada a partir desta data com um ano de estabilidade garantido provisoriamente. Não cabe avaliar cada um dos exemplos citados acima e do sentido de justiça traçado por esse resultado final. Cabe inserir outros fatores, como o período inflacionário vivido pelo país, os picos de crise do setor que, certamente influenciava nesses acertos, assim 102 como a estratégia declarada das empresas pela conciliação. Entretanto, os resultados dos processos legais não eram fictícios, ou seja, inteiramente desvantajosos para o trabalhador individual, afinal o recurso financeiro imediato muitas vezes fazia a diferença, por isso à opção por esses acordos ao invés da espera até o final do processo. A função histórica da Justiça do Trabalho, no sentido de “amortecer” o conflito de classe, com o seu papel conciliatório, não impede o crescimento da leitura e atuação dos trabalhadores junto à Justiça. Muito pelo contrário, o aumento gradual e ascendente dos números dos processos, ano a ano, indica que a judicialização da questão trabalhista e social passa por um amadurecimento político dos trabalhadores, paralelamente a questão sindical. Total geral dos processos trabalhistas no período de 1968-1988 Cancelamento de Suspensão e Conseqüênte Remuneração (Ind. Trabalho), Revogação Penalidades (advertências) Objeto (Motivo da reclamação) 7000 Anotação CTPS (trabalho sem registro em carteira) Retificação na Carteira Profissional Contribuições de Associados (STIAB, STICF) = [contrib. Sindical/assistencial] 6041 6000 Desconto Indevido, Pagamento Afastamento Médico, Pagamento Dias Afastamento 5000 Diferença FGTS, Liberação FGTS – FGTS, Liberação FGTS à Dependentes 4000 Diferenças Férias em Dobro, Férias, Férias em Dobro 3000 2000 1000 0 Diferenças Salariais (sálario, av. prévio, férias e 13º prop., horas extras, sal.fam., FGTS) e Outros Itens Agregados** 1181 444 318 387 524 160 322 219 302 Indenização Adicional (Lei 6.708 de 30/10/1979 art. 9)e(Lei 7.238/84 art. 9), Multa ("quitação verbas rescisórias" Ac. Coletivo) Reintegração, Estabilidade Provisória e Auxílio Maternidade Outros GRÁFICO 8 – Total geral dos processos trabalhistas no período de 1968-1988 – Objeto (Motivo da Ação) Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Franca ** (Ver nota de rodapé n. 36). 103 Como demonstrado no gráfico acima, a maioria dos processos está ligada à questão salarial36, às dispensas sem justa causa, as diferenças nos descontos e as anotações de Carteira Profissional. O fato de ser, em sua maioria conciliados revela que a tradição de acordos “amigáveis” sempre favorecia o empresário, em termos econômicos, à medida que ficava menos oneroso este que a sentença da Justiça. Por detrás dessas estatísticas, percebe-se primeiro, uma busca por direitos que estão amparados na legislação trabalhista e, segundo, resposta política às transformações ocorridas no universo produtivo. Percebe-se em muitos processos, nessa perspectiva, nas entrelinhas, uma resignação e resistência aos novos métodos de gerenciamento da produção, que afetavam a produtividade e a disciplina produtiva desse operário. Alguns processos, analisados adiante com mais atenção, mostram-nos detalhes de um relacionamento bastante truncado nos limites do espaço fabril, o qual passa a ditar uma conduta em nível cultural na cidade. Total geral de processos por tipo de empresa 1968-1988 8187 9000 8000 7000 6000 5000 4000 3000 2000 1000 0 Artigos para calçados (componentes) Bancas Curtume Indústria de artefatos de borracha Indústria de calçados Outras Em branco 479 730 107 346 48 1 GRÁFICO 9 – Total geral de processos por tipo de empresa 1968-1988 Fonte: Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Franca 36 Optou-se, na pesquisa, em observar o que está expresso na capa dos processos trabalhistas quanto ao objeto da reclamação trabalhista. Portanto, por diferenças salariais, deve-se inserir diversas categorias de reivindicações legais, como: aviso prévio; férias proporcionais; décimo terceiro proporcional; salário família, horas extras, estabilidade provisória (para gestantes); multa (no atraso de quitação); saldo salarial; férias interrompidas; atualização de CTPS; adicional noturno; diferenças de horas; insalubridade; PIS. 104 O gráfico acima demonstra o expediente analítico que foi privilegiado acerca do universo produtivo, ou seja, a opção em levantar elementos circunscritos às indústrias e unidades diretamente ligadas ao fabrico do calçado. No registro da pesquisa consta mais de 1386 nomes, considerando que muitas destas unidades entraram em falência e reabriram com outro nome. Ademais, sobre os números que indicam as bancas, foram somente apontados os que expressavam diretamente, porém provavelmente, em diversos nomes que supostamente seriam indústria de calçados consistiam também nessas unidades produtivas, denominadas de bancas. EVOLUÇÃO VARAS D O 1986 TRABALHO 1987 Franca ( 1ª ) Franca ( 2ª ) TOTAL GERAL 1.756 1.756 386 386 1988 1.703 1.703 1989 1.833 1.833 TABELA 1 DAS AÇÕES 1990 1991 1992 AJUIZADAS 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2.213 2.139 2.363 1.034 2.522 1.834 1.805 1.864 1.916 1.542 1.473 187 1.232 1.766 1.800 1.870 1.933 1.570 1.478 2.213 2.139 2.550 2.266 2.522 3.600 3.605 3.734 3.849 3.112 2.951 Fonte: Boletins Estatísticos das Varas do Trabalho. Observação: Em novembro/1992 foi instalada a 2ª Vara de Franca. A tabela acima demonstra como é expressiva a movimentação dos processos trabalhistas circunscritos ao universo produtivo do calçado, uma vez que os números abaixo revelam processos de todas as categorias profissionais no município e região37. 37 2000 Os municípios a seguir fazem parte das Varas de Trabalho: Patrocínio Paulista, Itirapuã, Cristais Paulista, Pedregulho, Rifaina, Ribeirão Corrente, Restinga, São José da Bela vista e Batatais. 105 5.3 O conflito do trabalho para além das fábricas Em seguida, iniciaremos uma abordagem do conteúdo pesquisado nos processos trabalhistas numa perspectiva narrativa, de maneira a apresentar um movimento que se inicia e se expande para além das fábricas. Antes, destacamos a necessidade de dissociar parte do expediente jurídico das intenções analíticas acerca do universo da vida dos trabalhadores. Nesse sentido, o processo trabalhista, como objeto jurídico, é antes fruto de relações sociais que, necessariamente, devem estar calcadas em vivências e experiências cotidianas daqueles envolvidos. 5.3.1 A tradição do trabalho a domicílio em Franca Um aspecto que merece um rápido panorama, diz respeito ao trabalho a domicílio, ou façonista, dentro do processo de produção do calçado em Franca. Esse aspecto é importante ser analisado uma vez que inserir essas características nos moldes flexíveis de produção recentemente não equivale à realidade. quando se acirrou a crise em torno do trabalho na década de 1980, a indústria francana de calçados registrou um desempenho positivo, atraindo para a cidade um conjunto significativo de pessoas em busca de emprego, oriundas de cidades de municípios vizinhos, da capital do estado assim como de outros estados, como Minas Gerais, Goiás e Paraná. Para se ter uma idéia, em 1983 quando o total da produção foi de 15,1 milhões de pares, 7,5 milhões comercializados no país e 7,6 milhões no exterior e em 1984, esse volume dobrou, coube ao mercado interno 15,2 milhões de pares e ao mercado internacional 16,8 milhões, segundo dados do IPT, em Franca. Em 1986, a produção francana alcançou a marca histórica de 35 milhões de pares. Foi justamente nesse período que ocorreu as mais intensas 106 manifestações operárias na cidade, com inserção do novo sindicato da categoria. Ademais, naquele momento, houve também o aumento da demanda de processos trabalhistas. No final da década de 1980 e na próxima década, por distintos fenômenos de ordem econômica e política, que não vamos comentar nesse momento, a dinâmica do crescimento da produção calçadista sofreu uma queda brusca38, ocasionando, como é sabido, a falência de várias empresas, fechamento de bancas e a redução do volume de trabalho enviado para ser feito a domicílio. Esse contexto favoreceu ao aparecimento e adoção de novas estratégias de gerenciamento da produção, ou seja, a associação de novas tecnologias e a adoção de estratégias de reestruturação do processo produtivo. O que queremos enfatizar é que esses fatores, por si, não indicam uma inserção ou um mergulho em novas dinâmicas produtivas, ditas flexíveis. A partir de então, fica nítida a tendência de extinção de parcela dos postos formais de trabalho nas fábricas, ou seja, aqueles com carteira assinada, com a sua substituição pelo trabalho realizado através da prestação de serviços, nas bancas e a domicílio. Lembramos que essa forma de produção já existia anteriormente, como uma tendência histórica. Ou seja, ocorre uma reinvenção da terceirização em Franca, se é que podemos dizer assim, pois essas práticas de “terceirizar” serviços são comuns no setor calçadista, haja vista os exemplos do pesponto, do corte e da costura manual. O que se nota, nesse momento, é uma busca para investimentos em tecnologia e modificações na organização das empresas, de maneira simultânea ou isoladamente, almejando uma “modernização”, vista sob o prisma do empresariado como um elemento vital e necessário para a retomada do crescimento econômico, estagnado por toda a década de 38 A partir de 1994, com o plano real, a valorização da moeda nacional frente ao dólar, penaliza o setor calçadista. Ademais, com a concorrência internacional intensificada, imposta por outros fabricantes, como países asiáticos, Tailândia e Indonésia, e a China, além de concorrer com países já tradicionais no setor como Portugal e Espanha. Esses fatores contribuíram para a retração da produção calçadista francana e à intensificação da eliminação de postos de trabalho da indústria. Os efeitos desta retração se traduziram em falências e concordatas, que atingiu toda a cadeia produtiva do calçado. 107 1980. Entretanto, essa crise que custou muito à classe operária do município e região, não inaugura, de forma radical, mudanças advindas do modelo japonês, por exemplo, porque em um universo produtivo baseado na pequena indústria, no qual muitas vezes processos fordistas nem fazem parte ainda dessa dinâmica, falar de reestruturação toyotista pode ser problemático. Não cabe aqui um aprofundamento desse aspecto, mas afirmar que o modelo japonês (no Brasil) e à adoção (ou à tentativa) de uma ou mais técnicas ou sistemas tais como ‘just in time’, ‘kan-ban’, ‘manufatura celular’, ‘círculos de controle de qualidade’, ‘polivalência’, ‘controle de qualidade total’, entre outros, não estabelece alterações substanciais na organização da produção, como se a empresa tivesse adotado tal modelo como um todo. No que diz respeito ao processo do trabalho a domicílio e terceirização em Franca, com o levantamento estatístico que realizamos no decurso da pesquisa, registraram-se 730 reclamações trabalhistas, no período de 1968 a 1988, contra as unidades produtivas denominadas de bancas39. Reiterando, cabe afirmar que somente anotamos os registros que se expressavam nominalmente como bancas ou que ficasse claro o caráter domiciliar da produção, pois acreditamos que os números apontados no gráfico 9 revelam pouco desse universo do trabalho realizado nas residências, em boa medida bancas, embora muitas também tenham se especializado em alguma atividade (como o pesponto) tornando-se também indústria. Quando o conflito explodia as barreiras do “contrato moral”, ou seja, uma relação mais amistosa entre as partes, na qual o confronto direto e a Justiça do Trabalho não se faziam presente, o que observamos é a tentativa dos trabalhadores em comprovar a existência de relação empregatícia com as empresas para as quais prestava serviço. Entretanto, no entendimento dos advogados das empresas, esse tipo de relação não se enquadrava nos 39 As Bancas são por excelência lugares que indicam a descentralização da produção. 108 dispostos da CLT uma vez que caracterizaria atividade de prestação de serviços autônomos, qualificando, aquele trabalho como atividade de terceirização empresarial de serviços. Ao contrário, como expressa a sentença do Juiz no processo contra à Calçados Granero: “Trata a presente reclamação trabalhista do chamado trabalho a domicílio, circunstância que, absolutamente, não desnatura a relação empregatícia”. (AHMF, Cx. 30 – Proc. 375/1969, p. 39). Continua, afirmando que [...] os elementos integradores à estruturação da relação de trabalho, prescinde de qualquer importância o fato de o trabalho ser exercido nas próprias dependências do domicílio do empregado. É o que dispõe de forma expressa o art. 6º da C.L.T. que não distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento e o executado no domicílio do empregado, desde que esteja caracterizada a relação de emprego. (AHMF, Cx. 30 – Proc. 375/1969, p. 39). Nesse período, nota-se uma confusão em torno dessa questão, desconsiderando a tradição da condição do trabalho façonista, já abordado por Rinaldi (1987), na cidade, ou seja, do trabalho realizado nas próprias residências. Queremos dizer que a condição que expressava o nexo empregatício, segundo a legislação, que consistia na prestação pessoal de serviços, continuidade, subordinação jurídica e salário, extrapolava o sentido real da relação social do trabalho no setor calçadista. Esse próximo processo trabalhista é essencial para entender uma dinâmica muito comum, até nos dias de hoje. Trata-se da qualificação profissional e a carência de profissionais gabaritados para certas funções nesse momento da produção calçadista na cidade. Neste exemplo, o sapateiro, com 21 anos, era cortador e entra com ação trabalhista contra a Indústria de Calçados Martiniano S.A. após ser demitido. Alega a empresa que [...] o reclamante de uns tempos para cá, deixou de apresentar o lucro na vaqueta, fato que antes não acontecia, pois o mesmo sempre mostrava-se funcionário dos que apresentavam maior produtividade para a empresa. Que o motivo alegado acima é depreendido pela razão de o reclamante trabalhar durante o dia para a reclamada e à noite fazer ‘serão’ para outra fábrica de calçados, conforme patenteia o documento anexo a presente contestação. (AHMF, Cx. 157 – Proc. 692/1973, p. 11). 109 Essa expressão, lucro na vaqueta, talvez seja uma das mais peculiares do setor calçadista que, em linhas gerais, significa um melhor aproveitamento da matéria-prima. Como se vê, a empresa, nas entrelinhas, quer essa mão-de-obra exclusivamente para ela, pois compartilhar o empregado com outra empresa significa menor dedicação deste ao processo produtivo. O funcionário deve estar em sua plena condição física e mental para o trabalho. Também deve-se levar em conta que existe competição entre as empresas e dividir o mesmo trabalhador não é interessante para o empregador. Em contrapartida, o sapateiro, pelo departamento jurídico do Sindicato, salienta que [...] a procura de melhores condições de vida é uma constante na vida do homem, daí muitos trabalhadores dedica-se a outro emprego tangente e, como a Lei não veda à acumulação de empregos, o reclamante após cumprir suas obrigações e fora do horário normal, jornada da reclamada, este fim de ano, com o desejo de passar um natal melhor, é que procurando um pequeno bico para alguns dias, se colocou nestas circunstâncias, sem ferir qualquer cláusula contratual, uma vez que, repetindo, assim agiu depois de cumprir suas obrigações para com a reclamada, se necessário provará. (AHMF, Cx. 157 – Proc. 692/1973, p. 02). Essa fala vem demonstrar que o valor salarial percebido pelo empregado não era suficiente para a manutenção de sua qualidade de vida e de sua família. Qualidade de vida, segundo Sen (2000), é aquilo que a pessoa valoriza para si. No entanto, ter vários empregos ao mesmo tempo significa também o contrário, pois ao buscar o complemento de sua renda, coloca em questão a sua própria qualidade de vida. O atestado de pobreza (ANEXO A) expedido pela Delegacia de Polícia de Franca é um documento importante para ilustrar essa condição de vida. Como estratégia operária fica expressa nesse processo, no documento da dispensa por justa causa: [...] para que não alegue ignorância do fato, que estava fazendo ‘serão’ em outra firma, e, como se não bastasse, no dia 05 p.p., esteve na firma pedindo para ir ao médico que não estava passando bem de saúde, foi ao médico, pediu atestado médico e foi trabalhar na mesma firma, que estava fazendo ‘serão’. (AHMF, Cx. 157 – Proc. 692/1973, p. 06). 110 Para encerrar esse conflito, a outra empresa, a Calçados Netto, registra em Cartório o seguinte: “Declaramos para todos fins de direito, que o Sr. José Ferreira as Silva Filho, exerce as funções de cortador de vaqueta nesta firma, no período noturno. Por ser verdade firmo a presente. Franca, 05 dezembro de 1973”. (AHMF, Cx. 157 – Proc. 692/1973, p.15). Em um outro exemplo, processo (AHMF, Cx. 301 – Proc. 521/1978), a sapateira é uma costuradeira autônoma e a reclamação trabalhista é contra uma banca de pesponto. A alegação da outra parte foi a seguinte: Que não houve dispensa por parte da reclamada, visto que os reclamantes não tinham vínculo algum com a reclamada. Foi com tal espanto que a reclamada recebeu a notificação dos reclamantes, postulando aviso prévio, férias, 13º salários, e registro em Carteira de Trabalho sendo que, [...]; b) Os reclamantes não eram empregados da reclamada; c) Não houve dispensa alguma por parte da reclamada uma vez que os reclamantes é que se ofereceram para auxiliá-la até que terminasse aquela remessa de costura. (AHMF, Cx. 301 – Proc. 521/1978, p. 09). Portanto, quando é rompido o acordo moral entre as partes, a saída é sempre a Justiça do Trabalho. Notem que a exigência é pelo direito adquirido e ignorado pela classe empresarial e patronal que desemboca, em boa medida, sempre em conciliações. A dificuldade em estabelecer-se dentro da legalidade trabalhista diz respeito ao perfil do trabalho em Franca, uma vez que muitas dessas bancas iniciam serviços clandestinos, nos fundos das casas e, por isso mesmo, a relação de trabalho, em um viés de exploração absoluta, fica muito circunscrita à relação informal de contrato. Este outro processo (AHMF, Cx. 388 – Proc. 468/1981) contra a Indústria de Calçados Kátia, ilustra, entre outros fatores, que por detrás das exigências de reparações salariais pura e simplesmente, o que move os trabalhadores é muito mais que isso. A 111 argumentação da sapateira, pespontadeira, cujo trabalho exercia em seu próprio domicílio (ANEXO B), [...] foi admitida a serviço da Reclamada. Em 20 de setembro de 1979, com as funções de pespontadeira de corte-de-calçados, em seu próprio domicílio. Foi registrada em data de 01 de março de 1981, tendo trabalhado sem o devido registro, durante o período de 17 (dezessete) meses, ou seja, 01 (hum) ano, 05 (cinco) meses e 11(onze) dias. [...] nada recebeu sobre as férias referentes do período em que trabalhou sem o devido registro. [...] está afastada dos serviços da Recda., por se encontrar no 9º (nono) mês de gestação. (AHMF, Cx. 388 – Proc. 468/1981, p. 2). Na argumentação da empresa, [...] a reclamante não fora registrada e não poderia ser, pois, neste período, ela não prestava qualquer serviço à reclamada, sendo o início de sua prestação de serviço somente em fevereiro de 1980, sem qualquer vínculo empregatício, isto porque em nenhuma oportunidade firmara qualquer contrato de trabalho [...] tão pouco fora contratada como tal, exercendo sim transitoriamente e esporadicamente trabalho de natureza especificamente ocasional e eventual, sem qualquer exclusividade, continuidade, e subordinação ou obediência hierárquica, trabalhando em sua própria residência. [...] Seu trabalho não lhe outorgou o status jurídico de empregada, pois não prestava serviços contínuos e sim respondendo a uma necessidade ocasional da empresa, não obedecendo horário ou exigência no cumprimento da obrigação. [...] Não prestava serviços cotidianamente, pois dependia dos pedidos de calçados que utilizavam costura manual. (AHMF, Cx. 388 – Proc. 468/1981, p. 13). A defesa da empresa chega ao ponto de refutar o caráter empregatício, apresentando nos autos cópia da inscrição municipal da sapateira, alegando que esta se apresentou à firma como Costuradeira Manual de Calçados Autônoma. Ademais é curioso a forma que as empresas se utilizam da CLT, provando ademais, como cada um se apropria do instrumento jurídico. A busca pelo reconhecimento dos vínculos empregatícios, posterior a contratação do trabalhador, vem demonstrar que esse ato não se faz importante logo no início do estabelecimento das relações, no entanto, nesse exemplo, a trabalhadora grávida se vê lesada, pois com seu afastamento não terá salário como outra empregada registrada teria. Com os vínculos são firmadas as garantias trabalhistas, como é o caso do salário maternidade, pago 112 pelo INSS através das empresas. Nesse caso o raciocínio da trabalhadora indica o seguinte: se existe uma relação de trabalho, ou seja, de deveres, deve também existir os direitos, mesmo que não exista concretamente o registro na carteira. Esse processo (AHMF, Cx 450 – Proc. 485/ 1983) é importante para esclarecer o aparecimento, já no início da década de 1980, de procedimentos empresariais que se tornariam comuns daí por diante, os quais dizem respeito ao processo de terceirização propriamente dito. Notamos, com a pesquisa, a delegação de toda parte contratual e de recursos humanos da empresa Vulcabrás Vogue S.A. Indústria e Comércio de Exportação, sediada em Franca, à empresa Open Serviços Temporários e Efetivos Ltda, de São Paulo, Capital. No período de 1982 a 1988 os processos trabalhistas somaram 46. Nota-se que no ano de 1983 ocorreram a maioria das incidências de processos, como ilustra a tabela abaixo. Outro detalhe que vale atenção foi o esforço em conciliar, em chegar a um acordo com os sapateiros, portanto todos os registros dos processos que verificamos foram, em seu resultado final, conciliados. TABELA 2 Quantidade de processos contra a empresa Open Serviços Temporários e Efetivos Ltda Ano Quantidade de processos 1982 3 1983 26 1984 6 1985 5 1986 5 1987 0 1988 1 Total 46 Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Franca O eixo de enfoque pelas partes, nos processos, são parecidos, assim o exemplo deste único processo ilustrará bem. O sapateiro que move ação trabalhista, assistido pelo sindicato de classe, é encarregado de pesponto, 113 [...] foi admitido pela primeira reclamada em 04.01.78, para exercer o cargo de pespontador de primeira [com alta qualificação profissional]. Ocorre que na data de 01.09.81, a primeira reclamada promoveu a baixa do contrato de trabalho na CTPS do reclamante, sem haver a prestação laboral e promoveram às páginas 52 das anotações gerais da CTPS, um contrato de trabalho pro prazo determinado com a segunda Reclamada. O contrato com a segunda reclamada teve somente a finalidade de burlar as leis trabalhistas, haja vista que o reclamante sofreu diminuição em seus vencimentos, pois recebia em 01.09.81 C$160,55 por hora e passou a receber, a partir de 02.09.81 C$ 112,62 por hora, sem haver ocorrido à mudança do local do trabalho e exercendo a mesma função. (AHMF, Cx 450 – Proc. 485/ 1983, p. 02-03). Embora fique patente nos processos a exigência por parte dos trabalhadores das diferenças salariais, é também evidente o descontentamento dos mesmos com a nova situação imposta pela empresa. Portanto, não é somente o aspecto financeiro o primordial. Vamos expor em seguida a versão impetrada na defesa da empresa pelos seus advogados: Não é verdade a alegação do reclamante, ‘data vênia’, de que ambas as empresas acionadas teriam agido com objetivo de fraudar os direitos trabalhistas do reclamante. Na verdade o que ocorreu, foi real e efetiva dispensa do reclamante, em data de 01.09.81, conforme se vê na rescisão contratual. Por ocasião da rescisão do contrato de trabalho do reclamante, foram-lhe pagas todas as verbas devidas inclusive o Aviso Prévio indenizado, e demais consectários legais. A partir de 02.09.81, o reclamante passou a prestar serviços à segunda reclamada, embora, como afirma, tenha continuado a prestá-los no recinto da primeira reclamada, embora desta não fosse funcionário. A prestação de serviços à segunda reclamada, mediante contrato escrito, foi devidamente formalizado e o reclamante regularmente registrado na empresa. (AHMF, Cx 450 – Proc. 485/ 1983, p. 26). É preciso notar na citação acima que, em momento algum, faz alusão sobre o decréscimo nos vencimentos do trabalhador. Ademais o discurso de defesa continua longo e com muitas incursões ao universo da Lei, mas cabe mencionar pontos que escapam e deixam aflorar uma atitude conservadora. Por exemplo, quando continua o texto: Entende-se, outrossim, que foi o reclamente efetivamente dispensado da primeira reclamada, antes de firmar o malfadado contrato de trabalho; caso não tivesse sido absorvido pela segunda reclamada, fatalmente estaria desempregado, o que faz presumir a necessidade da mantença do contrato de trabalho, e o reconhecimento da existência da segunda empregadora, 114 principalmente para eliminação da crise do desemprego, que afeta esse país de há muito tempo. (AHMF, Cx 450 – Proc. 485/ 1983, p. 28). Esse discurso acima não procede, pois o período em questão é o maior surto produtivo de calçados da toda história do município. Ademais, é o momento que muitos pesquisadores também vão identificar a classe operária associada à “virada sindical”. Sobre a questão da mão-de-obra e a qualificação desta para o setor de calçado Franca parece ocorrer distintamente ao exemplo de outros lugares, como sugere Cocco (2002), onde há uma proteção entre si dos produtores e fabricantes da região. Em Franca, nem os empresários e muito menos os sindicatos ampararam bem o gerenciamento da mão-de-obra do setor calçadista. Não é por acaso que empresas, como as citadas acima, tenham facilidade de se inserir com tanta facilidade nesse universo. Outro exemplo comum, nesse processo, entre as reclamações que envolvem o aspecto do trabalho domiciliar é o recurso de pespontadores autônomos, muitos inclusive com alvará municipal (ANEXO C) e também donos de bancas, de entrar na Justiça do Trabalho para exigir da empresa que presta serviços, direitos trabalhistas referentes a um vínculo empregatício que sempre é muito conflituoso. O argumento de defesa por parte dos empresários tenta ilustrar essa prestação de serviços, demonstrando o contrato das atividades. Ademais ilustra esse exemplo o seguinte, por parte da empresa: [...] o reclamante tinha vários empregados devidamente registrados, entre eles a sua esposa. Os reclamantes nunca foram empregados da reclamada, pela total ausência, sempre dos elementos necessários e indispensáveis (conditiones quibus num ed), para a configuração do vínculo laborial; (a) trabalho continuado; (b) dependência econômica e (c) subordinação hierárquica. (AHMF, Cx. 527 – Proc. 146/1985). Continuando cita o artigo 651 da CLT, em que os trabalhadores mencionados “nunca foram empregados da reclamada, por tal motivo não a de se falar em admissão 15 de 115 junho de 84, muito menos em dispensa a partir de Janeiro de 1985”. (AHMF, Cx. 527 – Proc. 146/1985, p. 21). Como se nota mais uma vez, o recurso à Justiça se dá pelo rompimento do acordo moral e nesse caso fica vidente a dilatação da fronteira da classe operária, que se expande e demonstra a sua complexidade, sendo palco das vivências e conflitos, mas não alinhando, objetivamente, os vieses da classe nitidamente. 5.3.2 Vigiar o banheiro: a intensa disciplina espalhada pelo chão-de-fábrica Para inserir essa subseção, sobre a disciplina fabril, é preciso ressaltar que a idéia de direitos constitui-se a partir da convivência com outros trabalhadores que, porventura, recorreram à Justiça. Por isso, o recurso à Justiça é também uma forma dos trabalhadores se postarem como sujeitos e não como “vítima” desse processo de disciplina. Em última instância, valeram-se da CLT, na via judicial do trabalho, para contestar o poder que a mesma conferia aos industriais no controle da força produtiva. CANCELAMENTO SUSPENSÃO E CONSEQUÊNCIAS (INDISCIPLINA NO TRABALHO) Ano 1968 Ano 1969 Ano 1970 Ano 1971 Ano 1974 Ano 1975 118 Ano 1976 97 100 80 20 0 Ano 1973 141 140 120 60 40 Ano 1972 153 160 92 89 86 Ano 1977 Ano 1978 Ano 1979 67 Ano 1980 52 42 Ano 1982 34 21 19 19 11 7 Ano 1981 47 27 21 Ano 1983 13 9 Ano 1984 Ano 1985 Ano 1986 1 Ano 1987 Ano 1988 GRÁFICO 10 – Cancelamento de suspensão e conseqüências (indisciplina no trabalho) 1968-1988 Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Franca 116 A ilustração acima demonstra que não é somente o aspecto econômico que predomina no embate desses conflitos trabalhistas, pois por detrás dos números temos que ver as formas que os operários se relacionaram com essa disciplina fabril, rompendo as amarras das “normas” internas das empresas que assumiam uma função extra de vigilância, quando criava e arquivava uma série de documentos, a exemplo das advertências e suspensões, que serviriam a seu favor em um embate com a Justiça do Trabalho. Esse universo disciplinar40 do setor calçadista é muito rico e variado. Por isso vamos destacar alguns processos que ampliam um pouco mais as bases das experiências e atitudes dos sapateiros. Alguns processos dão a dimensão do caráter operário da cidade. Em uma atividade diretamente ligada ao setor calçadista, empresas de produção de vários artefatos, como da borracha, se destacam. A empresa Pucci S.A., a mesma empresa denominada futuramente de Amazonas, assim como a Samello, foi responsável pelos processos disciplinares condizentes ao universo fordista-taylorista, ou seja, exerceu papel de paradigma do processo de disciplinarização da classe operária no município e região. Para se ter uma noção, conferimos o registro de 73 processos em nome da empresa Pucci S.A., no período de 1965 a 1971, e 231 processos para Amazonas Produtos para Calçados S.A., com o total de 304 registros, que se concentram em sua maioria no final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Certamente pode 40 Sobre esse aspecto da disciplina fabril, vale observar a alegação da empresa A. Lopes de Mello e Cia, justificando a suspensão e advertência do funcionário pela queda de produtividade: “em 3 três dias de trabalho, o reclamante produziu 988 pares e sua colega, no mesmo período, fez 1125 pares havendo assim uma diferença apenas de 137 pares de talões. Ocorre que a diminuição de produção é maliciosa e intencional. A principio foi bom operário, mas de uns tempos a esta parte, naturalmente sentindo ‘o sinal dos tempos’. Ademais, um homem é bom até o dia em que pratica um crime. Nem por isso deve ser absolvido, só por ser bom, do crime cometido [...]” (AHMF, Cx. 467, Cartório 2º Ofício, Proc. 1763/1953, p. 37). “A prevalecer a ‘birra’, ‘a greve individual’ do reclamante, todos os demais colegas poderiam fazer o mesmo e onde iria parar a produção da indústria?!” (AHMF, Cx. 467, Cartório 2º Ofício, Proc. 1763/1953, p. 38). Em outro processo, a mesma empresa A. Lopes de Mello & Cia, alega que “nessa fábrica trabalham dezenas e dezenas de operários. Não havendo espírito de ordem, de disciplina, de hierarquia, é lógico que a indústria pode entrar em colapso. A função da Justiça é equilibrar o capital com o trabalho, não transigindo com a indisciplina e a imoralidade na empresa”. (AHMF, Cx. 467, Cartório 2º Ofício, Proc. 1779/1955). 117 parecer pouco em uma perspectiva histórica, mas em comparação a outras empresas verificamos o contrário. Na empresa citada acima, a Pucci S.A., o modelador Cândido Vitor Vieira foi “suspenso por 5 dias ao faltar injustificadamente nos dias 16 e 17 de fevereiro de 1968”. (AHMF, Cx. 10 – Proc. 225/1968, p. 4). Em audiência, o depoimento pessoal do reclamante fala por si: [...] por ter chegado atrasado no dia 16.2.68, 3 minutos, não lhe tendo sido permitida a prestação de serviço pelo Marcolino, motivo pelo qual não trabalhou no período, ‘ter perdido a hora’, [...] por ter ido a Batatais buscar uma sobrinha menor, que vive com seus pais na roça e que necessitou viajar a esta cidade de Franca, para estudar; esta menor foi enviada da roça a cidade de Batatais pelo caminhão do leite, não tendo sido possível ao depoente buscar a referida menor no período da tarde (período em que o depoente não trabalha aos sábados) porque ela estuda a partir da 14 horas, [...] o depoente nunca havia procurado trazer a sobrinha antes, pois era o genitor do depoente quem ia buscá-la sempre antes de falecer. (AHMF, Cx. 10 – Proc. 225/1968, p. 18). Por sua vez a empresa, em depoimento, alega que [...] o chefe do reclamante não informou à empresa se o reclamante havia ou não avisado que faltaria; na reclamada há tolerância de 8 a 10 minutos para os atrasos; o empregado marca o cartão de ponto no relógio, quando chegar dentro da tolerância, depois não. (AHMF, Cx. 10 – Proc. 225/1968, p. 19). A verdade histórica e social relatada não nos cabe julgar. Mas um aspecto rico dos depoimento nas audiências requeridas em muitos processos, oferece-nos uma perspectiva de análise importante, uma vez que nesses relatos percebe-se um rompimento da barreira individual do processo trabalhista, ou seja, notamos a cooperação entre os trabalhadores nos depoimentos que acompanham as versões defendidas pelos mesmos. Ou seja, constata-se um movimento de classe nesse espaço jurídico. A sentença do Juiz é sintomática: 118 [...] trabalhador que em mais de 3 anos de empresa faltou apenas em 2 oportunidades (2 meias jornadas) não pode ser considerado campeão de absenteísmo, mas de assiduidade. [...] deverá ter o limite das necessidades humanas normais. Mesmos os dirigentes empresariais e os líderes das demais atividades, cônscios de suas responsabilidades não poderão negar que em certas oportunidades são obrigados a deixarem seus afazeres profissionais para atenderem uma necessidade premente de sua vida particular em geral ou familiar em particular. (AHMF, Cx. 10 – Proc. 225/1968, p. 32-33). O processo a seguir, entre tantos que ilustram esse expediente, demonstra o sistema de exploração da mão-de-obra, controlando as idas e vindas ao banheiro. Nesse caso, uma menor inicia essa reclamação trabalhista para cancelar sua suspensão decidida pelas normas internas da Calçados Peixe S.A., segundo a qual essa operária estaria “desreipeitando as normas internas da fábrica, indo ao vestiário sem a devida chave, com o nº da seção”. (AHMF, Cx. 14 – Proc. 469/1968). Ou seja, a suspensão aconteceu por ter ido ao banheiro sem senha e descumprir determinação de apenas três pessoas no banheiro. Noutro processo, (AHMF, Cx. 284 – Proc. 762/1977) verifica-se como a vigilância do banheiro serve para ampliar a mais-valia (ANEXO D). A empresa citada anteriormente, no ano de 1968, repreende outra sapateira, advertindo-a em 31.05.1967 “por não acatar instruções do chefe e conversar em demasia no horário de trabalho”. (AHMF, Cx. 17 – Proc. 675/1968, p. 11). O exemplo vale para mostrar que, nesse ambiente, era-se advertido por escrito até mesmo por “olhar para trás”. Em 1968, quando é instalada em Franca a Junta de Conciliação e Justiça, boa parte dos processos é oriunda dos anos anteriores acolhidos pelos Cartórios de Ofício Cíveis do município. Esse processo demonstra o discurso das empresas e o nível da disciplina exigida aos funcionários, assim como uma tática comum quando se trata da alegação de desídia por 119 parte dos operários, qual seja, enquadrar as atitudes operárias no artigo 482 da CLT41. Dessa forma, argumenta o advogado da Amazonas S.A: Relatório de ato de incontinência de conduta, ou mau procedimento no local de trabalho, desídia no desempenho das respectivas funções e ato de indisciplina e insubordinação, conforme determina o artigo 482 da consolidação das leis do trabalho, alíneas “b” , “e” e “h”. [...] ser advertido verbalmente pelo Edson Durvan, chefe [...] sem razão desacatou com violência e palavrões, continuando por vários dias com ameaças. (AHMF, Cx. 10 – Proc. 225/1968, p. 29). Como no processo anterior, também na mesma empresa, a reclamação trabalhista se dá pela exigência no cancelamento da suspensão. Alega a empresa que o operário foi suspenso no dia 17.06.68, “[...] em virtude da morosidade proposital na confecção de fôrmas, e, ainda, pela sua indisciplina e insubordinação ao deixar a seção de serviços, dirigindo-se à outra, sem prévia autorização.” (AHMF, Cx. 14 – Proc. 463/1968, p. 4). Mais adiante, fica expresso o motivo da suspensão: “[...] as empresas não podem tolerar as faltas cometidas e devem punir, de imediato, aqueles que cometem faltas no serviço, porque a tolerância resultaria no perdão, não se somando para uma futura demissão, se se repetirem as faltas de igual natureza”. (AHMF, Cx. 14 – Proc. 463/1968, p. 14). Não esqueçamos o caráter da produtividade, “[...] pois que cada fôrma requer o tempo de 90 horas para ser confeccionada, e, o reclamante vinha consumindo 130 horas nessa obra, [...] prejuízo para a empresa”. (AHMF, Cx. 14 – Proc. 463/1968, p. 14 - 15). O pano de fundo é demonstrado no depoimento pessoal do operário, em audiência, relata o seguinte: “[...] quando o depoente ingressou na empresa todos trabalhavam na base horária, inclusive depoente, 4 anos depois, [...] é que alguns dos empregados passaram a 41 Art. 482. Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador: a) ato de improbidade; b) incontinência de conduta ou mau procedimento; c) negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço; d) condenação criminal do empregado, passada em julgado, caso não tenha havido suspensão da execução da pena; e) desídia no desempenho das respectivas funções; f) embriaguez habitual ou em serviço; g) violação de segredo da empresa; h) ato de indisciplina ou de insubordinação; i) abandono de emprego. (PINTO, 2005, p. 123). 120 trabalhar por produção”. (AHMF, Cx. 14 – Proc. 463/1968, p. 26). O que está em questão é a mudança do ritmo de produção e o discurso da empresa é defender o trabalho por produção, afinal. [...] o trabalho por produção ser mais rápido é devido a varias razões: maior interesse para ganhar mais, o fato de os que trabalham por produção terem privilégio sobre os demais para serem atendidos nas máquinas e no recebimento de material e ainda porque os que trabalham por hora são chamados, às vezes, a executar pequenos serviços de intensidade variável. (AHMF, Cx. 14 – Proc. 463/1968, p. 27). Mesmo assim, a sentença do Juiz é a seguinte: [...] a suspensão do empregado por sete dias, representando a quarta parte do ganho mensal, é exagerada, tratando-se como se trata da primeira vez que a morosidade na execução do trabalho se apresenta. Observa-se, ainda, que o ambiente de trabalho na secção do autor desta ação não é satisfatório, como se verifica pelo depoimento de todas testemunhas, inclusive a da empresa, chefe de secção. A promessa de novas bases de pagamento das fôrmas não está sendo cumprida pela ré, o que é desastroso em termos de relações humanas. (AHMF, Cx. 14 – Proc. 463/1968, p. 40- 41). Como já salientamos há o uso contínuo de uma série e complexa rede de anotações e recibos assinados pelos trabalhadores em “concordância” com as normas da empresa. Dessa forma, esses próprios documentos são utilizados pela empresa de acordo com seus interesses da empresa. A padronização das normas, via Departamento Pessoal (ANEXO E), cria uma verdadeira central de informações42 que serve também para intimidar o operário. Entretanto, o aparato burocrático de seus departamentos não era infalível. Nesse outro processo, por exemplo, que se inicia em novembro de 1966, pois o operário recebeu uma carta de demissão por ter provocado desordens no ambiente trabalho, segundo a empresa com a “[...] intenção de provocar uma greve no dia 11 do corrente, conforme nos faculta o art. 42 A empresa Calçados Terra S.A, usa a legislação trabalhista com a intenção de pressionar, e intimidar, a trabalhadora, pois nas guias de comunicação interna que imprime escreve o seguinte: "Lembramos que a repetição destas faltas, seremos forçados a tomar medidas mais enérgicas a respeito, conforme nos permite a lei trabalhista." (AHMF, Cx. 266 – Proc. 253/1977, p. 7). 121 723 da Consolidação das Leis do Trabalho, rescindir teu contrato de trabalho. Cabeça de coligação, [...] orientando os seus colegas para abandonarem o serviço”. (AHMF, Cx. 22 Proc. 911/1968, p. 21). Pois, essa atitude operária ocorreu dentro da fábrica, na seção de prensa, com a queixa do atraso no pagamento. A observação que queremos ressaltar é que na audiência todos os operários que testemunharam se orientaram no seguinte discurso: [...] resolveram fazer um movimento no sentido de pedir a firma que lhes pagasse naquele dia; depois de picotarem os seus cartões, mandaram chamar o chefe da secção, Sr. Edson, o qual ali chegando, por intermédio do reclamante, ficou inteirado da reclamação dos presentes; [...] o movimento não tinha nenhum chefe; que, então o Sr. Edson saiu e foi chamar o Sr. Carlos, chefe do Departamento Pessoal; [...] a paralisação do trabalho durou uns 10 minutos, mais ou menos; que as demais secção da fábrica não pararam; que uns 30 operários participaram desse movimento. (AHMF, Cx. 22 -Proc. 911/1968, p. 26). O conflito trabalhista seguiu até o TRT, mas teve a mesma sentença da primeira instância: [...] não há prova segura e convincente de que o reclamante foi o cabeça, o organizador e instigador do movimento de protesto. [...] pelo simples fato de ter sido o reclamante quem se dirigiu ao chefe da secção, [...] como assinalam as testemunhas do reclamante, o movimento não teve chefe, pois todos estavam de acordo, e se foi o reclamante que serviu de porta-voz. Rigorosa foi a punição aplicada ao reclamante, que não merecia a demissão enquanto outros, também participantes do movimento, nada sofreram. (AHMF, Cx. 22 - Proc. 911/1968, p. 40-41). Esses movimentos diretos ocorriam frequentemente no espaço produtivo, entretanto o conflito de classe levado à Justiça do Trabalho indica um viés político dos trabalhadores que acompanham até a última instância o final do processo. No processo a seguir, o sapateiro exige na Justiça a retomada da função anterior, que exercia na Squalo Calçados. Uma das testemunhas na audiência informa a situação: [...] o serviço de examinar o calçado antes da expedição é de mais responsabilidade, pois este é o último que pega no sapato, [...] a pessoa que ficou no lugar do reclamante é um menor de aproximadamente 16 anos que já trabalhava na firma, [...] o menor que substituiu o reclamante aprendeu 122 este serviço com o próprio reclamante. (AHMF, Cx. 21 – Proc. 884/ 1968, p. 34). Ou seja, verificamos a luta, nesse caso, de continuar na função anterior que lhe conferia maior status ou, por outra, pela qualificação profissional. Pois era revisor de calçados e foi colocado para passar tinta. Entra na Justiça para voltar ao cargo anterior, o que é consentido, favoravelmente, ao trabalhador. Os artifícios que a empresa, no exemplo da Pucci S.A, utiliza-se para auxiliá-la na tentativa de comandar a disciplina produtiva são vários, entre os quais destacamos os memorandos, as advertências e as suspensões, em que os próprios operários teriam que assinar esses procedimentos. Outro aspecto, utilizado pelo advogado da empresa, é a atenção aos detalhes no discurso jurídico, no qual é exposto nos processos com muitos anexos como fichas de produtividade dos operários, assim como os memorandos, relatórios e folhas de advertência do operário. Vejamos um exemplo em um memorando do dia 27.08.69: “[...] é objetivo atingir a produção de 255 prensadas. [...] este funcionário nunca atingiu a produção”. Em 03.09.69, continua noutro memorando interno: O referido acima, estava tirando salto do aro da fôrma com a chave que só serve para abrir fôrmas, o mesmo tem a ferramenta apropriada, de borracha, para evitar o estrago na fôrma. O elemento trabalha a mais de 1 (um) ano com estas fôrmas e já teve instruções a respeito. O auxiliar Higino Bereta encontrou-o batendo nas fômas com a ferramenta de abrir, ao passo que deveria bater com a ferramenta de borracha. Ele foi chamado atenção, em resposta disse que iria fazer o que bem queria, e se não servisse que mandasse embora. N.E. disse que iria manter choques físicos com o Higino na rua. (AHMF, Cx. 43 – Proc. 770/1969, p. 28). Nessa tentativa de aprofundar uma análise diversificada dos processos trabalhistas, verifica-se uma diversidade de fatos, os quais poderão, futuramente, ser melhor estudados. Nesse processo, observamos como a indústria, nesse período, apresentava-se em relação ao ambiente de trabalho e sua insalubridade. O exemplo é na própria Calçados Samello, como bem sabido uma das responsáveis pela implantação de um novo modelo arquitetônico da 123 indústria francana. Vejamos o que os sapateiros dizem nos processos acerca desse ambiente. Mais uma vez, o que move as sapateiras na reclamação trabalhista é a revogação das penalidades impostas pela empresa, pois segundo elas, “ambas reclamantes foram advertidas” sem que houvesse “justo motivo”. Continua o discurso jurídico do advogado do Sindicato de classe: [...] por um pequeno lapso de tempo, despojaram-se do avental em virtude da quase insuportável ‘canícula’ (calor insuportável) reinante do local de trabalho. Uma das reclamantes vive acometida de uma má função renal e, em conseqüência do calor, o aumento da ‘sudoreze’ lhe causa um mal estar geral. O elevado número de pessoas, cerca de 900 (novecentos), [...] não existe ‘refrigeração artificial’, sempre que os ‘vitrais’ localizados próximo ao lugar em que trabalham as reclamantes, são colocados em tal altura, que não forma a necessária ventilação renovadora de ar. (AHMF, Cx. 105 – Proc. 175/1972, p. 2-3). A punição em advertência, como se vê, foi por causa do não uso do avental, que figurava como uniforme da empresa. Em contrapartida, o advogado da empresa argumenta que: [...] as reclamantes, através da presente, escondem um propósito escuso, qual seja, desejam forçar uma rescisão contratual, conseguindo ou tentando conseguir algum dinheiro, pois não fizeram qualquer segredo: estão noivas. Isso é sintomático. Algumas empregadas da secção de ‘enfeite’, resolveram não mais usar o uniforme. O local de trabalho é amplo arejado, com extraordinária ventilação. Está a indústria absolutamente dentro dos princípios de segurança e higiene do trabalho. Franca, pelas suas condições climatéricas, jamais oferece oportunidade à “canícula”, a temperatura máxima aqui observada é perfeitamente suportável. (AHMF, Cx. 105 – Proc. 175/1972, p. 14). Vamos expor em anexo, neste trabalho, algumas das advertências e suspensões selecionadas de distintas empresas. Esta contra a empresa C. R. Mello Indústria de Calçados revela bem os termos que utilizavam as empresas, como já dissemos, enquadrando a CLT no seu artigo n. 482. Os motivos alegados são: Brinca e conversa muito em serviço, atrapalhando assim a sua produção e a dos seus colegas, que ficam prejudicados visto que trabalham por peças. [Continuam:] a) Falta de honestidade e de responsabilidade na prestação do seu trabalho, pois estava estragando vaqueta, com o propósito de prejudicar a firma.; b) Conversa demais em serviço.; c) Sai muito da sua mesa de 124 trabalho.; d) Atrapalha o trabalho dos seus colega, que saem prejudicados, pois, produzem menos e por isso também ganham menos; e) Não está dando a sua produção normal dos meses anteriores, conforme se nota claramente pelas suas fichas de produção. (ANEXO F). (AHMF, Cx. 130 – Proc. 150/1973, p. 5-6). Outros são: “Faz hora e não produz e também não deixa os seus colegas produzirem normalmente, devido ao excesso de conversa e de constantes saídas da sua mesa de trabalho”. (AHMF, Cx. 130 – Proc. 150/1973, p. 7). O processo a seguir mostra como o sapateiro utiliza a lei a seu favor. Punido internamente pelas normas da empresa, “[...] portando-se de maneira inconveniente no ambiente de trabalho, desrespeitando não só uma colega (chamando-a de neguinha e puta), mas os demais elementos de trabalho naquela empresa”. (AHMF, Cx. 142 – Proc. 371/1973, p. 13). Apesar disso, a alegação em sua defesa foi enquadrar o motivo de “[...] estar sendo incorporado compulsoriamente para prestar o serviço militar como é dever de todo cidadão”. (AHMF, Cx. 142 – Proc. 371/1973, p. 2). Saber dos motivos que levam o operário a entrar na Justiça é uma intenção sempre incompleta. Nesse caso, por exemplo, mesmo a provável improcedência final do processo, arriscou. Foi contra a Calçados Terra S/A, que segundo a empresa: [...] passou a mão em parte pudenta de uma empregada da Reclamada, de nome Maria Aparecida Ribeiro; originou-se uma discussão entre ambos, [...] mandou esta funcionária, em voz alta, tomar no [...] Sofrera suspensão por um dia, pelas atitudes que vinha tomando na Reclamada, [...] por mera revolta, uma máquina. Colocou duas (2) peças na referida quando estava cansado de saber que somente poderia trabalhar de peça em peça. Acabou confessando o seu ato ilícito. (AHMF, Cx. 154 – Proc. 655/1973, p. 9). A sentença foi categórica: A prova, no sentido de que o autor desta ação teria deslizado a mão, propositalmente, pelas nádegas de uma empregada, é convincente. Também é convincente a prova no sentido de que o reclamante teria dirigido palavras injuriosas à testemunha. Que a quebra da máquina se deu conscientemente; isto porque afirmou que não poderiam ser dobradas simultaneamente duas 125 peças e que havia solicitado a revisão da máquina. (AHMF, Cx. 154 – Proc. 655/1973, p. 21-22). Como se observa, essa ação abusiva teve sua pena, qual seja, a improcedência do processo. Ou seja, não é qualquer ação operária que pode costurar experiências comuns. Na reclamação trabalhista em questão, a sapateira, costuradeira de mocassim, de 21 anos, solteira, revela o quanto as questões fabris expandem-se para além das fábricas. Numa análise panorâmica, verifica-se que a operária foi demitida por, segundo a empresa, “[...] ter-se incompatibilizado com o chefe de sua secção”. (AHMF, Cx. 150 – Proc. 557/1973, p. 11). Segundo a sapateira, o “[...] chefe disse que a costura daquele pé estaria errada, ele diz ‘você vai refazer este pé ou ‘te mando embora’, a maltratando com uma linguagem nada recomendável para [...] uma moça (chamando-a de Fubá e de biscate)”. (AHMF, Cx. 150 – Proc. 557/1973, p. 2). Entretanto, ao verificar os depoimentos das audiências, verificamos que, na realidade, existia uma tentativa frustrada deste chefe de seção em dar uma carona à sapateira e mais duas amigas, até o recinto da Francal43. Nesse outro processo, contra a Calçados Marquinho, fica evidente o desamparo do trabalhador em relação à segurança no trabalho. O que merece aprofundamento, noutra oportunidade e, com novas perspectivas, é o questionamento do porquê as firmas não aceitarem, muitas vezes, atestados médicos que não do convênio de sua empresa. O relato pessoal, em audiência, pode falar um pouco mais: [...] tendo aparecido moléstia em sua perna direita, [...] erisipela, [...] situação de sua perna que não lhe permitia permanecer em pé; procurou o médico da empresa, pela manhã, e o mesmo não se encontrava nas dependências da empresa; que o chefe disse ao depoente que esperasse até ás 12.00 horas; que o depoente esclarece ainda que para consultar o médico da UNIMED, empresa pertencente ao convênio da reclamada, necessário se faz uma autorização desta; [...] depoente foi ao INPS, tendo sido atendido pelo Dr. Odimar Almeida Luz; [...] o aludido médico submeteu o depoente á cirurgia da perna, tendo lhe passado atestado de fls. 6; que o depoente 43 Feira de calçados realizada de 1969 até 1982 na cidade de Franca. Depois desta data, esta ocorre todos os anos em São Paulo, capital. 126 quando de retorno exibiu atestado para a empresa e esta recusou. (AHMF, Cx. 260 – Proc. 69/1977, p. 23). O processo a seguir oferece exemplo de forte efeito, contra a Cia de Calçados Palermo, pois revela o nível de revolta e consciência do trabalhador, encurralado pelas ordens e regras, além do baixo salário, constatado em seu depoimento. Não estamos analisando o mérito da sua dispensa e seus fundamentos legais, vale destacar a frase que fala por si: “Nem o rei me manda, quanto mais o dono da fábrica”. (AHMF, Cx. 283 – Proc. 719/1977, p. 10). Outro aspecto é a questão econômica da empresa, que não está fora dos conflitos, em relação à pressão disciplinar dos operários. O borracheiro da Amazonas S.A. elucida isso quando foi suspenso por três dias por causa de um acidente. A empresa, pelo advogado, argumenta: A suspensão foi justa. Decorreu do legítimo exercício do direito da reclamada consistente na prerrogativa legal que tem para conduzir a prestação dos serviços. A sua própria negligencia está confessada na peça vestibular. [Reiterando sempre que o operário não é novato, continua:] [...] o reclamante, demonstrando total falta de zelo, de dedicação, de atenção, de interesse ou empenho, fez com que se danificasse a matriz. Compete ao ‘prenseiro’ verificar, antes de proceder o fechamento do ‘plator’, se na parte destinada ao molde há algum objeto estranho. Esta verificação é tanto mais imperiosa quando se trabalha com molde de altíssimo valor. Seu descuido, contribuiu para a paralização da produção de sua máquina, com prejuízos [...] que a empregadora sofreu em decorrência do dano verificado. (AHMF, Cx. 334 – Proc. 886/1979, p. 10-11). Mais um exemplo do aprofundamento em detalhes na defesa da empresa. Nesse caso, são expostas no processo as amostras de saltos que o operário teria estragado. Mais uma vez o enquadramento é o artigo 482 e 483 da CLT. Eis um pouco do grau de documentos produzidos pela empresa e, nessa hora, utilizada contra o operário: O reclamante jamais cumpriu, como devia, as obrigações decorrentes do seu contrato de trabalho, [...] bastando para afirmação do alegado, uma rápida e resumida digressão sobre a sua conduta e comportamento no serviço, desde a data de sua admissão: a) foi admitido em 17.4.80 e já no dia 10.7.80, foi advertido, verbalmente, por ter faltado injustificadamente ao serviço; tendo 127 faltado injustificadamente, [...] novamente foi advertido, verbalmente; b) desídia no desempenho de suas funções, freqüentes idas ao banheiro, onde permanecia por 15 ou 20 minutos. Incidiu em falta disciplinar punida com um (1) dia de suspensão, brincado no serviço, além de ter danificado e inutilizado um par de saltos e um pé de facheta. Ademais, faltas injustificadas, indisciplina, brincadeiras no serviço, danificação de materiais, recusa a ordem direta emanada de seu superior hierárquico, recusa de assinatura em documento de penalidade disciplinar, ofensa moral de companheiros de trabalho e ameaça à integridade física de seu chefe de secção. (AHMF, Cx. 374 – Proc. 1042/1980, p. 11-12). Os elementos apontados acima também se verificam noutro processo (AHMF, Cx. 355 – Proc. 421/1980) que expõe a estratégia das advertências e suspensões, na Calçados Marquinhos. O conteúdo delas consta desde “estar fazendo serviço mal feito”, brincadeiras durante o horário de trabalho, desrespeito ao superior hierárquico, até mesmo escrevendo em um papelão com os dizeres, “bobo”, certamente se referindo ao chefe de seção. O perfil intimidador acompanha a tensão que é se inserir nessa incursão à Justiça do Trabalho, esse aspecto explica em parte a escolha em se construir uma relação pautada pelo “contrato moral”. Uma vez rompida essa relação, o destino seria a Justiça do Trabalho, ou seja, está no horizonte dos trabalhadores, mas em primeiro instante, procura-se um outro tipo de relação para estabelecer as demandas de direitos. Em um outro exemplo, a sapateira entra com reclamação trabalhista contra a indústria de Calçados Jota Jota Ltda, pois estava grávida de 3 meses e “a empresa obrigava-a a subir e descer degraus de nove lances quando, na realidade poderia, para ter acesso à sua seção, passar pela porta do escritório que não tem degraus e dá acesso direto à sua máquina". (AHMF, Cx. 366 – Proc. 776/1980, p. 2). Foi suspensa por 8 dias ao reclamar. Observa-se a separação panóptica entre as seções e a divisão de hierarquias que impedia o acesso de trabalhadores em certos espaços. Continuando essa esteira de exemplos, mais advertências e suspensões, dessa vez na Indústria de Calçados Nelson Palermo S.A. As “centrais de inteligência”, Departamento 128 Pessoal, registram todos acontecimentos com data, dizeres empregados, quantidade de faltas com ou sem motivo, etc. Neste, no dia 17.11.1977, advertência: “[...]tem abandonado periodicamente seu local de trabalho, vindo atrapalhar a produção diária. [...] estava fazendo hora no banheiro, permanecendo no mesmo durante 14 (quatorze) minutos.” (AHMF, Cx. 379 – Processo 58/1981, p. 19). Noutro dia, 22.06.1978, advertência por insubordinação (ANEXO G e AC): “[...] estava praticando atos não recomendáveis (queimara barbantinho provocando odor insuportável)”. (AHMF, Cx. 379 – Processo 58/1981, p. 20). No dia 27.05.1980, suspensão por indisciplina: “[...] abandonando seu local de trabalho, indo conversar com seu colega [...] que se sua chefe não estivesse de acordo que lhe aplicasse uma suspensão de cinco ou dez dias”. (AHMF, Cx. 379 – Processo 58/1981, p. 21). Por fim, no dia 16.01.1981, suspensão por insubordinação: “[...] não vem trabalhando a contento, abandonando constantemente seu local de trabalho, deixando que seu colega de trabalho faça o serviço sozinho, sendo que o seu sistema de trabalho é por grupo”. (AHMF, Cx. 379 – Processo 58/1981, p. 22). Este processo mostra um pouco do ambiente de transição que existia nesse período. João Alves da Silva, casado, sapateiro e sindicalista move reclamação trabalhista contra a Calçados Charm S.A. Alega o operário, que “[...] a partir de 29.09.1973 afastou-se de suas funções junto à empresa para atuar como diretor efetivo daquela entidade, até 24.10.1982, quando voltou a assumir seu cargo na empresa, por não ter sido reeleito para o exercício da atividade sindical”. (AHMF, Cx. 442 – Proc. 210/1983, p. 2). Ocorre que, nesse espaço de tempo, a função de espianador manual (ANEXO H) mudou bastante. Dessa forma, ele “nunca trabalhou nesta máquina, não poderia e não tem condições práticas e físicas para bem exercer suas atividades, com riscos de acidentes na manipulação da matéria prima e talvez na própria máquina”. (AHMF, Cx. 442 – Proc. 210/1983, p. 3). Por sua vez, a argumentação da empresa, por seu advogado, revela o seguinte: 129 Em 1967, eleito para cargo de dirigente sindical, afastou-se de suas funções. [...] ocasião das dificuldades que tal decisão traria, esteve afastado à mais de nove anos e sem condições técnicas para apresentar a produção desejada. Durante os nove anos esteve afastado de suas funções, nesse tempo a indústria calçadista sofreu diversas modificações com o surgimento de novas máquinas e sistema de produção. [...] com a evolução do sistema produtivo, sofreu modificações de caráter técnico, com a introdução de máquina para tirar rugas e máquina automática de rebater calcanheiras, [...] tem a finalidade a qualidade do produto, aliada ao menor desgaste do funcionário que a opera. A máquina em que está trabalhando [...] é das mais modernas, [...] conforto ao operário, com pequeno desgaste físico, [...] é totalmente automatizada, sem risco de acidentes. (AHMF, Cx. 442 – Proc. 210/1983, p. 13-14). Nesse tempo, que mostra a evolução técnica na fabricação do calçado em alguns setores é curioso observar no argumento da empresa a constatação da distância do dirigente sindical à produtividade do calçado, assim como de sua evolução técnica. Ou seja, a atenção ao universo produtivo em si, como parte intrínseca do amadurecimento da classe operária, no sentido político também, no enriquecimento qualitativo na formação de mão-de-obra, parece não estar nos planos sindicais a essa altura. Como em exemplos anteriores, aqui também percebemos a alegação de perseguição. A reclamação trabalhista de Mauro Aparecido Dias, casado, pespontador, contra a Indústria de Calçados Nelson Palermo S.A. Segundo o operário, “[...] a partir da data em que o reclamante obteve registro de chapa, terminando com a vitória no mês de agosto de 1982, passou a sofrer pressões dentro da empresa, sob a falsa alegação de faltas injustificadas”. (AHMF, Cx. 485 – Proc. 670/1984, p. 3). Por sua vez, a empresa alega o [...] desinteresse do mesmo e sua constante desídia e falta de responsabilidade. Não é justo que um elemento, escudado na estabilidade provisória que a lei lhe dá em virtude de ocupação de cargo sindical, venha a conturbar e atrapalhar o bom andamento dos serviços em detrimento de centenas de outros operários e, ainda, em prejuízo dos compromissos assumidos pela Reclamada com seus compradores, a maioria do exterior. (AHMF, Cx. 485 – Proc. 670/1984, p. 14-15). Fica a indagação oriunda da posição da empresa. Tampouco queremos minimizar 130 ou descaracterizar essas perseguições44 que de fato ocorreram, mas o que vale frisar é que o aproveitamento da Lei em favor do operário parece ser levado a cabo mais que nunca nesse contexto. Outro processo também ilustra esse ambiente de mudança, na reclamação trabalhista de Mauro Aparecido Dias, contra a Indústria de Calçados Nelson Palermo S.A. O sapateiro, admitido em 27.04.79, foi candidato a dirigente sindical nas últimas eleições e desde então se diz perseguido pela empresa. Nesse processo, além desse aspecto, há uma direta contestação à forma que a empresa criou para idas ao banheiro: “[...] criou um sistema de fichas para ida dos funcionários ao banheiro, [...] é uma verdadeira afronta aos direitos trabalhistas, [...] não respeitando senhoras grávidas etc.” (AHMF, Cx. 491 – Proc. 854/1984, p. 3). Consta no processo um documento assinado pelos trabalhadores que segue na íntegra: Aos diretores, Franca, 05 de outubro de 1984. Nós abaixo assinado, trabalhadores da Indústria de Calçados Palermo por não concordar-mos com o uso de fichas para ir ao banheiro e com tempo determinado. Sendo que isso tem causado sérios problemas para nós trabalhadores, principalmente mulheres grávidas e pessoal das esteiras, pedimos providências urgente a ser tomada pela empresa no sentido de que pelo menos nós funcionários tenhamos condições de sanar nossas necessidades sem represálias abolindo o sistema de fichas utilizado. (AHMF, Cx. 491 – Proc. 854/1984, p. 9). Cabe mencionar que, nessa fase de transição, a Justiça do Trabalho permeia o universo de ação da classe trabalhadora como forma de exigir o cumprimento dos Acordos 44 Entre outros processos, nesse ambiente de profundas mudanças, este contra a Trigger Calçados Ltda, ilustra como esta impôs pressão na relação com seus funcionários. No exemplo, evidencia uma forma arbitrária de intimidar uma reunião dos funcionários com fiscais do Ministério do Trabalho, que estiveram no recinto da empresa no dia 27.06.1985, com demissões coletivas. (AHMF, Cx. 543 – Proc. 645/1985). Noutro exemplo, a Calçados Guaraldo Ltda advertiu um operário, pois este estaria distribuindo panfletos do Sindicato dos Sapateiros no portão de entrada da empresa, segundo os quais ofendiam a honra dos empregadores. Segundo argumento do advogado: “[...] assim, estava causando distúrbios no desempenho do trabalho de seus companheiros, que induzidos pelos citados panfletos, se desinteressavam em desenvolver normalmente seus serviços, causando prejuízos à reclamada”. (AHMF, Cx. 000 – Proc. 225/1985, p. 11). Entretanto, em duas sentenças verifica-se que não há de fato ofensas ao empregador e tão pouco a distribuição dos panfletos na porta da fábrica perturbou o local de trabalho. Nota-se o envolvimento da Justiça do Trabalho nessas intermediações, assim como nos acordos coletivos firmados. Os processos oferecem amostras do mesmo expediente: (AHMF, Cx. 590 – Proc. 961/1986; 984/86; 988/86). 131 Coletivos e os direitos da CLT. Porém, essa ação operária também muda pouco a pouco o perfil de relacionamento com os empresários no afrontamento de questões internas, como é demonstrado na regulação das idas e vindas ao banheiro. Outro processo demonstra esse momento, desta vez contra a H. Betarello S.A Curtidora e Calçados, de diretor do Sindicato dos Sapateiros, Valdir Luis Barbosa, que trabalhava na empresa desde 1982, alegou que vinha sofrendo represália e perseguição. Segundo advogado da empresa, [...] em razão dessa circunstância de ser protegido pela CLT em termos de estabilidade, essa condição não lhe assegura vantagens ou tipo de comportamento diferente dos demais empregados dentro da empresa reclamada. O reclamante promoveu uma pequena reunião no local de trabalho, incentivando seus companheiros a “pararem” de trabalhar. (AHMF, Cx. 575 – Proc. 395/1986, p. 14-15). Esse processo (AHMF, Cx. 000 – Proc. 514/1986) mostra que a Calçados Samello S.A também se utiliza do recurso da demissão em massa, por causa de movimentação grevista do período, na tentativa de intimidar os trabalhadores. Nesse caso, a empresa também se utiliza do artigo 482 da CLT, entretanto não se sustenta ante o conflito ampliado que insere capital e trabalho nesse instante. Não há procedência alguma tentar conferir justa causa aos trabalhadores que reivindicam melhores condições de trabalho. Acerca da estratégia de estragar matéria-prima, que não é nova, historicamente, vamos expor essa reflexão mais à frente. No exemplo a seguir, o operário da Calçados Keller S.A, foi dispensado porque estragou mais de vinte pares de sola de calçados no ato da função, entretanto vamos ressaltar o caráter do peso da disciplina. No próprio depoimento, em audiência o sapateiro afirma que [...] realmente estragou solas de calçados, quando estava fazendo o serviço de molhá-las, mas pode assegurar que estragou no máximo três pares; [...] o estrago ocorreu porque o depoente estava trabalhando rapidamente para não atrasar o serviço dos embonecadores e, com isso, não percebeu que estava molhando de forma errada; o depoente assinou o documento de fls. 16 no 132 departamento pessoal, mas não leu o seu conteúdo antes de assiná-lo. (AHMF, Cx. 540 – Proc. 568/1985, p. 23). Nota-se que a busca da perfeição e a pressa, vigiadas pela disciplina, nem sempre tem seu êxito. A vigilância deve ser uniforme. O processo (AHMF, Cx. 538 – Processo 507/1985) em questão ilustra como o estopim de muitos conflitos passa pelo guarda-pó. É claro que isso é somente o pano de fundo, mas ao exigir o cancelamento da suspensão, está em jogo também o caráter desses trabalhadores e conseguinte da classe operária. O sapateiro, cortador, move reclamação trabalhista contra a Indústria de Calçados Nelson Palermo S.A por não concordar com a penalidade disciplinar (ANEXO I). Na argumentação da empresa, a advertência se deu porque houve uma transgressão, qual seja, a não utilização do guarda-pó. Em um último exemplo, a sapateira Ilza Antônia Barbosa, menor, entra com reclamação trabalhista contra a N. Martiniano e Cia, alegando que “a empresa descontava Cr$3,50 do lanche, de cada lanche fornecido ao trabalhador que fazia ‘serão’. Trabalhou em 33 serões e mesmo que não quisesse consumir o lanche mencionado, deveria pagá-lo, a não ser que o trouxesse de sua casa. Mesmo assim, não podia trazer o seu lanche porque não era avisada com antecedência". (AHMF, Cx. 269 – Proc. 332/1977, p. 43-44). 5.3.3 O conflito à flor da pele É certo que o conflito social, dentro da fábrica e de todo o universo produtivo do calçado é guiado por uma espécie de tensão invisível que pode muitas vezes tornar-se violenta. Esse é o aspecto que vamos abordar nessa categoria de análise, ou seja, dos atos que desencadearam uma ação direta de violência. 133 Começamos com uma reclamação trabalhista contra a Calçados Samello S.A, a qual o operário que trabalhava desde 1959 na empresa, argumenta na exposição de sua tese: [...] um dos diretores da ora reclamada ‘agrediu’, com palavras de baixo calão, com ‘pontapés’ e arremesso de segurador-metálico, arremessado um ‘cinzeiro de madeira’ no Reclamante que, por sorte, não atingiu o mesmo. Mas que, o Reclamante, foi atingido pelo ‘segurador metálico’, no ‘rosto’; Que o ‘cinzeiro de madeira’ arremessado no Reclamante, foi impulsionado com tal violência, que atingiu e quebrou a vidro que separa a sala de um dos diretores, indo cair na outra sala, contígua [...]. (AHMF, Cx. 131 – Proc. 181/1973, p. 3). Esse nível de situação revela sintomas de tensão aguda no universo de trabalho. Em outro exemplo, a empresa H.Betarello S.A abre inquérito para apurar falta grave e outro do sapateiro exigindo seus direitos, expõe o nível de recurso que se utiliza a empresa para sua defesa, nesse caso, solicitando um exame psicológico do empregado. Segundo a empresa o funcionário vem [...] desrespeitando às normas internas da Empregadora, ora ameaçando, ora, ficando completamente parado de braços cruzados, conforme a inclusa fotografia. Respondeu com veemência e ameaçou de morte o referido Diretor da Empregadora, fato, testemunhado por outros operários da firma, com ocorrência policial da ameaça de morte. (AHMF, Cx. 136 – Proc. 281/1973; 277/1973, p. 3). O laudo médico do exame psicológico revelou [...] bom estado geral, tipo normalíneo, cor preta, com base no exame destes quesitos: 1º) É o examinando portador de alguma deficiência mental? 2º) No caso positivo, isto é, sendo portador de alguma deficiência mental, importa a mesma em prejuízo para o trabalho? 3º) No estado de saúde em que se encontra o paciente, está o mesmo incapacitado temporária ou permanentemente para o trabalho? [Às respostas:] 1º) Não; 2º) Não; 3º) Não; [...]. (AHMF, Cx. 136 – Proc. 281/1973 e 277/1973, p. 24; 62). A sentença determinou, ao final, a reintegração do operário à empresa. Outro aspecto que ilustra essa tensão é o caráter das brincadeiras oriundas de apelidos. Nesse processo, o operário com idade de prestar o Serviço Militar, move reclamação trabalhista contra o Curtume Schirato S.A. O motivo é bem sugestivo, pois envolve dimensões amplas, uma vez que se trata dos apelidos e estigmatizações que estes traziam. Em 134 audiência, em junho de 1973, o depoimento pessoal do operário revela: “[...] respondeu [...], ‘quem parece é você’, porque este lhe havia dito que se parecia com Mazzaropi; o outro, dando risada, afastou-se para trás e deixou cair uma xícara no chão”. (AHMF, Cx. 138 – Proc. 315/1973, p. 19). Observa-se, contudo, que esse universo rural nunca esteve distante das indústrias fancanas, é força propulsora de encontros e desencontros sociais. Entretanto, a simbologia envolta com o caipira Mazaropi, não parece se alinhar, aos olhos de muita gente, com a face modernizadora45 que a cidade tenta impor, principalmente com a consolidação do parque industrial. Assim, a vinculação desse estereótipo é vista de forma negativa pela boa parte dos trabalhadores, muitos desses oriundos do campo. Embora saibamos que o cuidado às adjetivações devam fazer parte das análises científicas, não é demais dizer que o espaço fabril é um “barril de pólvora”. O exemplo a seguir revela isso, no processo contra a Calçados Guaraldo Ltda. A empresa argumenta o seguinte: [...] que Rubens Oliveira da Cunha, [...] lhe passou a mão pelas nádegas, o autor, em vez de comunicar o fato a seus superiores hierárquicos, para punir aquela falta de seu colega, preferiu ele próprio, à sua maneira, penalizar Rubens, agredindo-o violentamente, a empurrões e tapas, e, em virtude da reação [...] envolveram-se em luta corporal dentro da reclamada, em pleno horário de trabalho. (AHMF, Cx. 393 – Proc. 691/1981, p. 11). Noutro exemplo, após ser demitido por justa causa, pela Calçados Terra S/A, porque: “No dia anterior, brigara com outro funcionário na saída [...] no dia da dispensa, [...] portando uma grande faca (verdadeira “peixeira”) para acerto de contas com o elemento com que brigara.” (AHMF, Cx. 380 – Proc. 85/1981, p. 10). Também outro episódio que terminou na Delegacia Policial foi o do sapateiro, menor, que dispensado por justa causa, por “[...] brincadeiras em serviço, atingindo seu colega de trabalho com a faca na sua perna direita ferindo-o mesmo.” (ANEXO J e AD). (AHMF, Cx. 385 – Proc. 295/1981, p. 24). 45 Nesse aspecto em particular, vale a leitura do livro de FOLLIS, Fransérgio. Modernização urbana na Belle Époque paulista. São Paulo: Editora Unesp, 2004. 135 Em outro episódio, o operário, menor, move reclamação trabalhista, contra a calçados Passaport Com. e Indústria Ltda, alegando que foi agredido fisicamente pelo chefe de seção, cujo fato foi pautado por um Boletim de Ocorrência Policial que resumia o seguinte: [...] foi covardemente agredido pelo indiciado (no interior da Fábrica onde trabalha), que, sem nenhum motivo justificado, puxou-lhe fortemente os cabelos, dando-lhe alguns empurrões. Esclarece que esta não é a primeira vez que o mesmo o agride, que a agressão hoje sofrida foi por estar sentado, juntamente com outros companheiros de trabalho, pois em sua secção não há serviço por falta de couro. (AHMF, Cx. 000 – Proc. 193/1981). Por sua vez, a empresa alega que: [...] em verdade, [...] sua falta grave no emprego, [...] pegou 1(uma) lata de ativador (material químico) (para limpeza de calçados), e preparo de fabricação, jogando o conteúdo líquido no rosto de seu colega de trabalho, de nome Gaspar de Oliveira, menor, funcionário da empresa; [...] representou Agressão física a colega de trabalho e falta disciplinar, caracterizando Falta Grave. (AHMF, Cx. 000 – Proc. 193/1981, p. 11). Na sentença desse processo, atesta que “foram lacunosas as explicações da reclamada à justa causa”. Em mais um exemplo, entre vários, agora contra J.P. Salomão & cia Ltda, o sapateiro foi dispensado por justa causa porque: “[...] em brincadeiras em pleno horário de trabalho, com isso chegando à vias de fatos inclusive se agredindo mutuamente, [...] pontapés, empurrões, [...] arma [...] uma tesoura”. (AHMF, Cx. 538 – Proc. 501/1985, p. 7). Continuando nessa linha de apresentação dos processos, na perspectiva que vai além da fábrica, a sapateira Ilda Mizael move reclamação trabalhista contra a Calçados Guaraldo Ltda, expondo o seguinte: [...] ocorre que, por desinteligências entre sua irmã Maria Luiza Vieira Alves e o referido sub-chefe Geronimo Conceição Garcia, a reclamante, sua e o marido desta agrediram o já mencionado subchefe, quando este se encontrava no ponto de ônibus, aguardando a chegada do coletivo que os levaria ao trabalho, pois a empresa dispõe de frota que conduz seus operários. (AHMF, Cx. 545 – Proc. 691/1985, p. 18-19). 136 É importante salientar que sua irmã, citada acima, havia sido despedida grávida e move reclamação contra empresa também. (AHMF, Cx. 545 – Proc. 692/1985). Antes de encerrar, vale destacar mais dois processos. O primeiro contra a empresa H. Bettarello S.A, o operário, segundo a empresa, foi [...] dispensado por ter cometido falta grave, ensejadora da resilição contratual com fulcro no disposto no artigo 482 letra “j” da CLT. No dia 30 de maio, estava sendo chamado à atenção o funcionário Alan Rogêrio Martins, menor de idade, com 15 anos, pelo seu superior hierárquico. Ao notar esse fato, o reclamante começou a fazer “gozações” com o menor, pelo que este ofendeu aquele com palavras de baixo calão. O reclamante desferiu um “soco” na boca do menor Alan, e este jogou uma lata de tinta no reclamante. (ANEXO K). (AHMF, Cx. 000 – Proc. 690/1986, p. 13-14). O segundo, a Castaldi Indústria de Calçados Ltda se defende na reclamação trabalhista, movida pela sapateira Aparecida de Fátima Batista, argumentando que [...] a funcionária vinha sistematicamente insuflando suas colegas à desobediência às normas internas e determinações de serviços emanadas dos superiores hierárquicos. Desentendeu-se com a mesma e sem qualquer motivo passou a agredi-la fisicamente causando vários ferimentos, exigindo cuidados médicos inclusive tendo sido vacinada antitétano conforme atestado incluso, nas imediações, conforme BO do 1º Distrito. (AHMF, Cx. 000 – Proc. 852/1986, p. 21). Em audiência, no dia 09 de setembro 1986, o depoimento pessoal da sapateira nos traz o seguinte: [...] realmente brigou com Simone, [...] a briga ocorreu já perto da Vila onde a depoente mora, distante bem mais de cem metros da fábrica; a depoente faltou um dia, [...] meio período, por estar doente; no dia seguinte, logo de manhã, foi chamada ao departamento pessoal porque segundo disseram Simone tinha dito que a depoente aconselhara as outras a não assinar um acordo para compensação de horas de trabalho em razão do jogo do Brasil na Copa do Mundo; [...] no local de serviço Simone ficou rindo da depoente; ao saírem para o almoço ambas discutiram e brigaram. (AHMF, Cx. 000 – Proc. 852/1986, p. 34). Cabe destacar a sentença auferida pelo TRT, uma vez que essa ação trabalhista chegou a essa instância: 137 Não importa que problema tenha se verificado algo distante do âmbito da fábrica. Tampouco [...] uma briga [...] agressão. E menos ainda importa a menor idade da vítima, [...] Importa, sim, que a conduta da reclamante foi de todo inadequada, perpetrando o ato contra a companheira de labor [...] Sendo violenta, ‘pavio curto’, [...] configurou merecida penalidade de a quem já não gozaria de ambiente com os demais obreiros [...] pelo seu gênio outras anormalidades dentro de um recinto [...] onde é imperativo maior a manutenção da paz e cordialidade. [...] mas nego provimento [...] integra a sentença fls. 36/37. (AHMF, Cx. 000 – Proc. 852/1986, p. 54). Note-se que a fábrica, como já salientamos, vai além do espaço fabril envolvendo o tema do futebol e da Copa do Mundo. Assim, torna intensamente pessoal o sentimento que rege as relações sociais e produtivas em uma fábrica que são os mais imprevisíveis, muitas vezes pouco profissionais, no qual a “vontade” dos chefes e donos de empresas prevalece de forma, não somente autoritárias, mas, debochadamente, com casos de perseguição explicita. Nessa perspectiva que ilustra um pouco o ambiente do “contrato moral”, no qual o bom empregado é aquele que é o “amigo” do chefe. Este aspecto, de ser “amigo”, é que suscita uma reflexão mais apurada, pelo menos em outro momento, pois nos parece, que em Franca, a classe operária tem que aprender “a ser”, ou dissimular que é, amigo do chefe e do patrão. Quando não há espaço para isso ou esse manto falso é rasgado, a Justiça do Trabalho aparece de forma inexorável no horizonte. 5.3.4 Destruindo o capital: estragando matéria-prima No decurso da categoria analítica, pretendemos apresentar um pouco do conteúdo das atitudes operárias na perspectiva que denominamos de materiais estragados que indicam muitos aspectos da ação operária. A pressão pela qualidade do produto aliada à disciplina fabril desemboca muitas vezes no desperdício e estrago da matéria-prima. Mas como se sabe, isso é uma característica histórica da classe operária, como já ressaltamos, estragar material também pode ter outro significado. 138 No exemplo a seguir, o sapateiro, espianador46, move reclamação trabalhista contra Calçados Sândalo S.A. Vamos ver a explanação do caso, no viés do sapateiro: [...] trabalha na empresa desde 21.07.1969. Espiana os calçados por carrinho, terminando um, passa para outro, além de identificar com um número, que para isso ele tem. Depois do serviço que o reclamante faz, os seguintes são de lixar salto, lixar sola ou embonecar, passar tinta, ginga ou lustro, digo, giga ou acertar a sola, passar tinta novamente e lustrar, tirar da fôrma, foi aqui que o pretenso serviço mal feito foi achado, ou seja, um pé de calçado modelo mocassim de verniz, que se lhe imputa ao reclamante, ter queimado. (AHMF, Cx. 91 – Proc. 445/ 1971, p. 2). Na argumentação da empresa, em sua defesa, confirma o estrago do material, mas antes se mune de outros documentos disciplinares, como advertências e suspensões para sustentar melhor a posição da empresa. Assim, são anexadas no processo advertências por negligência na execução da função e desrespeito às ordens de seu superior hierárquico, por atos de indisciplina e também por “[...] oito visitas ao banheiro com demora de 8 a 10 minutos, bate-papo constante com companheiros, namoro com colega de serviço e trabalho mal executado”. (AHMF, Cx. 91 – Proc. 445/ 1971, p. 12). É bom frisar que as punições e advertências teriam a função expressa de disciplinar o universo produtivo, mas a incidência reiterada em vários expedientes sugere que esse domínio não é tão legítimo assim. A minuciosa descrição do advogado da empresa, em um nível sofisticado do discurso jurídico, quando tece uma explicação da ordem produtiva e as ilustra com fotos (ANEXO L) desse espaço produtivo o descumprimento espacial do operário em relação a sua função. Vejamos a explanação: Existem cinco carrinhos contendo sapatos, que procedem de uma operação anterior, entregue ao frizador de sola (vide fotografia n.1), sendo o carrinho n. 5 sempre entregue ao Reclamante, invariavelmente. O serviço é executado, seguindo os sapatos rumo à esquerda, passando pelos operários cujos carrinhos são de n. 4, 3, 2 e 1, em ordem decrescente. Assim, os calçados do carrinho n. 5 não passam pelas mãos dos demais empregados, já que seria um repetição de trabalho, uma vez que todos eles utilizam fogo e realizam a mesma tarefa. Quando o carrinho n. 5 chegou às mãos do lixador de saltos (fotografia n. 2), estava perfeitamente identificado o 46 Espianador, tarefa que consiste em tirar os caroços dos sapatos, através do uso de fogo a gás; essa execução compreende, também, a utilização de um ferro apropriado para tirar rugas do couro. 139 empregado, que outro não era senão o Reclamante. (AHMF, Cx. 91 – Proc. 445/ 1971, p. 12). Ao que tudo indica, o esforço de questionamento para justificar o mau uso da matéria-prima é soberano, mesmo que na foto indica um outro problema: o trabalhador fica exposto ao risco eminente ao desenvolver suas funções ao lado de botijões de gás. Noutro exemplo, temos a sapateira Romilda da Luz Goulart, também contra a Calçados Sândalo S.A, que contesta na Justiça do Trabalho a suspensão de dois dias e a alegação da sua falta de atenção ao trabalho e desobediência ao chefe de seção. Na defesa da empresa, fica claro que o aspecto econômico é central: Seu procedimento no local de trabalho e no exercício de suas funções [...]. Com ágio desidiosamente na execução das tarefas, de tal modo que danificou diversos pares de calçados de alto custo e destinados à exportação, causando conseqüentemente, prejuízos à empresa, não se podendo deixar de considerar que os produtos (calçados) destinados à exportação não podem conter um mínimo de defeito, que, se verificado e constatado pelos importados, pode provocar a devolução de toda a mercadoria constante de um pedido e o seu – cancelamento, o que trará graves e imprevisíveis conseqüências à empresa. As fotos anexas (doc.s 5/8) mostram perfeitamente os estragos ocasionados pelo descuido, descaso e falta de interesse e atenção da Reclamante. (ANEXO M). (AHMF, Cx. 130 – Proc. 153/1973, p. 10). Colocar as amostras do material estragado como provas de desatenção ao trabalho é recurso corrente entre os empresários e se alia aos outros documentos já elucidados anteriormente. São vários os processos em que se encontram amostras de distintos materiais estragados. Vale notar que a pressão por qualidade é ainda maior dentro da fábrica quando se trata dos produtos de exportação. Outro processo contra a Calçados Sândalo S.A. reitera nossa reflexão, que verifica a evidência do aspecto econômico nas contestações das empresas e, além das conciliações, o objetivo aberto é diminuir os custos da empresa no acerto requerido pelos operários. Por isso é que o espaço da Justiça, aquém de ser um espaço neutro e de consenso, torna-se espaço de 140 conflito, palco legítimo da luta de classes. Segundo a versão da empresa, que cita, mais uma vez, o artigo 482, letras ‘e’, ‘h’, ‘j’ e ‘k’ da CLT, alegando que [...] no dia 02 de agosto de 1978, por volta das 14h45, ao ser solicitado para cortar outras peças que deviam substituir algumas que haviam sido anteriormente cortadas defeituosamente pelo Reclamante, e que, em conseqüência não podiam ser aproveitadas e passadas para a seção seguinte, revidou e respondeu grotescamente ao seu superior hierárquico e chefe da secção de corte de peles, dizendo que “ia enguiçar” e que não ia cortar outras peças. [...] na presença dos seus colegas de serviço, mandou-o ‘ir tomar no jiló’ e que fosse transmitir o que havia dito ao Sub Chefe Geral de Racionalização, Sr. Luiz Liboni Sobrinho. (AHMF, Cx. 302 – Proc. 556/1978, p. 9). Cabe nesse exemplo expor o veredito final, que tenta amortecer o conflito: “Entretanto, houve apenas discussão de serviço. O reclamante foi grosseiro e mal educado. Uma punição se impunha. Mas a que lhe foi aplicada foi drástica ante a falta cometida”. (AHMF, Cx. 302 – Proc. 556/1978). A posição dos Juízes demonstram um profundo conhecimento do universo produtivo, com avaliações amplas como um todo do jogo social entre capital e trabalho. Outro aspecto que cabe notar é a alta rotatividade de operários nas firmas, ou seja, a baixa qualificação profissional e a falta de mão-de-obra combinam numa dispensa periódica de funcionários. O exemplo de Carlos Antônio de Carvalho é singular. Move reclamação trabalhista contra a Cia. de Calçados Palermo, depois de menos de 1 ano no emprego. Queremos supor, com isso, que não existiram em Franca amplos planejamentos de carreira dentro do universo calçadista, tanto por parte das empresas que desconheciam até por muito tempo a existência do SENAI e do IPT no município, tanto para os sindicatos, que desprezavam esse fenômeno. Vejamos o que relata a empresa: Na data acima citada, o reclamante saiu de seu local de trabalho, sem autorização, e foi até a lixa (serviço de outra pessoa), com a finalidade de arranhar o fundo de um calçado, para colocar sola. Ocorre que o reclamante, não tendo prática de lixação, o resultado foi que o calçado escapou de suas mãos e ao invés de arranhar o fundo do mesmo, quem acabou sendo 141 arranhada foi a pala, não havendo possibilidade de reparação do dano causado. Diante do ocorrido, o reclamante foi levado ao setor do pessoal da empresa, onde concordou em pagar a peça estragada. Voltando ao local de trabalho, o reclamante foi ao banheiro, não tendo avisado seu chefe de secção, como fazia habitualmente, a fim de colocar outro em seu lugar. [...] o reclamante que já ficara parado fora do local de trabalho, respondeu em altos brados que não iria cumprir a determinação, acrescentando mais: você é chefe aqui dentro, quero ver se você é chefe lá fora. (AHMF, Cx. 326 – Proc. 594/1979, p. 9-10). Havia a exigência por parte das empresas, de pagamento do material estragado, o que aumentava o nível de pressão. Isso revela um pouco o clima de conflito, entretanto, mirar atenção para o que não está nos processos e na Justiça do Trabalho também pode ser ponto para diversas reflexões em um outro momento. Afinal, todo esse ambiente de conflito escapa às linhas de qualquer processo. Sobre o processo de qualificação técnico-profissional, vale a pena abrir esse parêntese, em especial da trajetória do SENAI em Franca47, cabe ilustrar rapidamente que começa em 1978 seus estudos para implementar e implantar uma escola técnica. Nesse intento, além de uma passagem pela estrutura industrial da cidade, buscou-se conhecer o tipo de formação da mão-de-obra quanto a sua qualificação. Nesse sentido, foram as fábricas, bancas e o trabalho a domicílio as principais responsáveis pela formação da mão-de-obra qualificada do universo produtivo calçadista. Nessa perspectiva, o baixo nível de qualificação da mão-de-obra abria possibilidade para o treinamento dos funcionários no interior da própria fábrica. Em outras palavras, o ofício de ser sapateiro, como em seus primórdios, poderia ser aprendido informalmente na casa de parentes. Em relação ao SENAI, seu Centro de 47 A diferenciação das categorias profissionais apresentada pelo autor (Samuel) é a seguinte: “BRAÇAIS: reúne trabalhadores de ocupações que envolvem a execução de tarefas ou operações simples, que podem ser aprendidas em pouco tempo, não requerendo qualquer tipo de conhecimento técnico, mas sim, em geral, força física. SEMIQUALIFICADOS: são assim chamados os que possuem ocupações caracterizadas por utilização de destreza manual limitada a operações sujeitas a automatismo, cuja execução exige, normalmente, atenção, coordenação psicomotora e conhecimentos técnicos rudimentares; QUALIFICADOS: Profissionais no exercício de ocupações que demandam habilidade manual em mais alto grau, conhecimento de processos e técnicas operacionais, capacidade de julgamento e iniciativa e, em certos casos, responsabilidade por produtos e materiais de alto custo; TÉCNICOS: profissionais de ocupações que, basicamente, requerem conhecimentos relacionados como matemática e desenho em nível de 2º grau, bem como conhecimento tecnológico aprofundado em relação às ocupações qualificadas; [...]”. (SENAI, 1978). 142 Treinamento foi criado em 1973 e oferecia um curso voltado para as atividades de corte de pele e pesponto abrangendo turmas de apenas 12 alunos. Somente em 1984, foi criado o curso com habilitação de Técnico em Calçados. Para ilustrar esse aspecto, o sapateiro Sidney Valeriano da Silva, menor, move reclamação trabalhista contra a Indústria Calçados Ruy de Melo S.A. porque foi suspenso por "brincadeiras, desobediências ao chefe de serviço". Entrou na firma em fevereiro 1963 e “alega que foi trabalhar como arrancador de prego e continuou até (5) meses antes de ser despedido, mas ultimamente estava trabalhando como costurador de mocassim, alega que não esteve sujeito a uma aprendizagem específica da função". (AHMF, Cx. 37 – Proc. 574/1969, p. 22). O curioso foi observar a existência, anexo ao processo, de um contrato de aprendizagem entre a empresa e reclamante com vencimento 30.06.1967, demonstrando, em certa medida, como a produtividade do calçado atropela o processo de aprendizagem. Quanto à rotatividade dos operários, outro exemplo é este processo contra a N. Martiniano e Cia. O sapateiro foi admitido em outubro de 1980 e demitido em outubro de 1981. A empresa, que menciona o artigo 482 da CLT, alega o seguinte: Sua atividade é de ‘pregação de viez’ em cortes de calçados, tipo tênis, efetuando a operação de pesponto (tipo de costura à máquina em calçados). Aqueles viezes têm por objetivo ‘dar vida’ ao produto de fabricação, e deveriam ser costurados na seguinte ordem: azual-vermelho-amarelo, no sentido ‘traz para diante’. Ocorre que, a produção diária do autor, sempre oscilou de 500 a 600 pares diários, sendo certo que, até a data de sua demissão houvera trabalhado de forma satisfatória, pregando regularmente os viezes. Entretanto no dia 14.10.1981, no período da tarde, após quase todo o expediente de trabalho, constatou-se que o Reclamante laborou de forma irregular, pregando os viezes da produção daquele dia, de forma completamente errada, não obstante houvesse o autor, até aquela data, laborado de forma regular. Nesta referida data, o autor pregou irregularmente os viezes, em 550 pares de calçados, modelo tênis, efetuando verdadeira micelânia de cores, sem obedecer a ordem da modelagem, sendo ainda mais grave, pois, não obedeceu o local exato de pregação daqueles enfeites, pregando-os fora do ponto assinalado de cada pé de calçado. (AHMF, Cx. 405 – Proc. 1032/1981, p. 11). Fica evidente que a atitude operária foi proposital, agora vejamos nas entrelinhas o motivo, seguindo na argumentação da empresa: 143 O motivo aparente desse ato de anarquia proposital no ato de sua função, foi que em dias anteriores este pretendia sacar o FGTS, o que lhe foi negado. Esse ato de desídia, segundo a empresa, ou seja, o erro do autor inutilizou 1.000 metros de viezes, provocando à empresa danos na ordem de CR$ 52.000,00, posto que o metro desse material custa CR$ 52,00. (AHMF, Cx. 405 – Proc. 1032/1981, p. 12). Vale ressaltar, antes de tudo, a criatividade na “micelânea de cores” que fez, chamando a atenção para o seu caso que, por outro lado, ocorreu pela quebra do “acordo moral” e invisível que sugere as relações na empresa. Esse outro processo, contra Mamede Calçados Ltda, expõe claramente um aspecto que indicamos anteriormente, qual seja, sobre os produtos de tipo exportação. Em sua defesa, a empresa alega que “foi confeccionado um guia de serviço para se colocar em todas as máquinas de pesponto, isso para que o serviço saia perfeito, visto ser os nossos artigos tão somente para exportação”. (AHMF, Cx. 391 – Proc. 599/1981, p. 9). Dessa forma, há uma pressão psicológica que é muito mais intensa e que extrapola a busca pela qualidade. Outro exemplo como esse recurso de estragar matéria-prima, em variados casos, é proposital, consta, neste processo de Adil Bárbara da Silva, contra a Calçados Martiniano S.A. Segundo esta, a suspensão ocorre “[...] por estar fazendo serviço errado, e ao ser chamada a atenção que estragou o sapato propositalmente, para que lhe dessem aumento salarial”. (ANEXO N). (AHMF, Cx. 380 – Proc. 116/1981, p. 11). Mais um processo ainda, contra a Calçados Eber Ltda, sugere um questionamento: porque, trabalhando na empresa desde maio de 1981, a partir de [...] setembro de 1982, em duas oportunidades passou a desempenhar desidiosamente suas funções, tendo sido objeto de punições disciplinares de advertência. Em março de 1983, passou a desempenhar irregularmente suas funções, apresentando defeituosos vários pares de sapatos esfolados, por irregular manuseio da friza. (AHMF, Cx. 442 – Proc. 216/1983, p. 10- 11). A carência de mão-de-obra qualificada e o aumento dos pedidos para exportação podem explicar, pelo menos em parte, porque empresas, como Calçados Charm S.A, insistiam 144 com funcionários que, segundo julgamento das mesmas, eram desidiosos. Neste processo (AHMF, Cx. 484 – Proc. 646/1984), o sapateiro Altamiro Victor dos Santos foi admitido em 17.01.1979 e demitido em 23.07.1984. Nesse período, a empresa atesta a “vida pregressa” do funcionário, no âmbito profissional, com várias amostras das advertências e suspensões que teve na empresa, que vão desde faltas injustificadas, proferir palavras de baixo-calão, desrespeitar ordens de superior hierárquico, desatenção ao trabalho a danos à matéria-prima. (ANEXO O). Nesse outro exemplo, é possível observar que o motivo para não cumprir a função devidamente pode ser outro além do exposto, pois Valdinei Garcia Facioli, em reclamação trabalhista contra H. Bettarello S.A. Curtidora e Calçados, revela o seguinte, na própria fala da empresa: [...] o reclamante se revelou indisciplinado. Na data da dispensa, o reclamante provocou o estrago numa peça destinada à confecção de “bota” que é um tipo de calçado produzido pela reclamada, disse em alto e bom som que estragaria mais botas, quantas fossem necessárias para ser dispensado.(ANEXO P). (AHMF, Cx. 584 – Proc. 775/1986, p. 21- 22). Nesse último exemplo, o sapateiro Antônio de Pádua Nascimento, menor, cortador, move reclamação trabalhista contra Calçados Keller S.A. Podemos perceber o grau de qualificação que se exige dessa função, pelos fragmentos dos depoimentos colhidos na audiência. Nas palavras do próprio operário, [...] ao receber as peças para corte, elas já possuem, na vaqueta, as marcas de tenalhas, que procura evitar as marcas de tenalhas, ao proceder os cortes, que o depoente achou que as marcas existentes nos cortes realizados não afetariam a qualidade do produto, pois acreditava que ficassem na parte coberta, que normalmente evita as marcas de defeito que existem no couro, que ao receber as peças inteiras para cortes, as marcas de tenalhas vêm nas pontas ou nas partes laterais. Em um dia, produz mais do que a quantidade de peças anexadas aos autos, que de vez em quando voltam peças cortadas pelo depoente. Anteriormente voltavam na base de 5 a 6 por dia. No último dia de serviço, voltaram aproximadamente 40 peças. Alega que têm outros companheiros que faziam o serviço equivalente. (AHMF, Cx. 489 – Proc. 793/1984, p. 21). 145 Por sua vez, a empresa alega o seguinte: “O reclamante era considerado como cortador médio. Não sabia o que tinha acontecido com ele para errar aquela quantidade de serviço. Que não tem conhecimento de qualquer atrito entre o reclamante e seu Chefe”. (AHMF, Cx. 489 – Proc. 793/1984, p. 22). As testemunhas, a primeira do operário, reitera que “[...] o depoente nunca foi advertido pelo setor de peças. A produção do Reclamante pode ser considerada normal”. (AHMF, Cx. 489 – Proc. 793/1984, p. 22). A segunda, pela empresa, revisor de Corte, sapateiro, que “o reclamante foi dispensado em razão das peças que acompanham os autos; que as marcas de tenalhas ficam nas partes laterais do couro; que houve volta de serviço também para os outros cortadores de serviço, mas em quantidade menor”. (AHMF, Cx. 489 – Proc. 793/1984, p. 23). 5.3.5 Expressões operárias Segundo Jorge Ferreira (1997, p. 23), nem sempre temos à nossa disposição o registro das idéias, das representações sociais e da maneira pela qual as pessoas, em especial os trabalhadores, organizaram a realidade social em suas mentes. Acreditamos, porém, que essa possibilidade, pelo menos em parte, pode ser percebida nos processos trabalhistas. Nesse esforço de análise que realizamos até o momento, acompanhado de todo esboço teórico, segue o sentido de investigar as condições de vida dos operários no seu ambiente de trabalho, nesse período, ilustrado nos processos trabalhistas. A formalidade, o discurso jurídico dos processos trabalhistas e todo seu cunho de poder não eximem o trabalhador de deixar sua marca, sua atitude. Assim, tentamos estabelecer uma linha de raciocínio para entender como os trabalhadores recebiam e reagiam às demandas de sua inserção no universo produtivo calçadista, através da Justiça do Trabalho. Em outras palavras, a vida operária exige uma estratégia e o que vemos nos processos trabalhistas expressa bem isso. 146 Dessa forma, percebe-se uma apropriação do discurso oficial, via Justiça do Trabalho, criando-se uma estratégia de diálogo. A opção de entrar na Justiça do Trabalho, por si, já orienta uma estratégia operária. Inserindo-se na dinâmica da Lei, ou seja, aceitando as formulações normativas criadas, como já salientamos, de uma perspectiva dominante, a seu modo, o trabalhador procura tirar proveito da situação, barganhando, digamos assim, a própria “dominação”. Queremos com isso ilustrar, considerando a perspectiva dos autores citados, que as imagens, relatos e idéias dominantes não são aceitos passivamente pelas pessoas, mas interpretados e transformados. Acreditamos com isso que a relação dos trabalhadores com a Justiça do Trabalho no Brasil tenha indicado esse embate, afinal esse universo das Leis e suas ramificações escapam ao trabalhador em um primeiro momento, inserindo-se na dinâmica de sua vida pouco a pouco. Assim, procuramos também seguir a interpretação de Thompson (1979, p. 60), para quem o processo de hegemonia não impede as pessoas de defenderem seus interesses, de buscarem saídas alternativas de procurarem brechas nas regulamentações autoritárias e de perceberem os limites impostos. Esse é o sentido dessa próxima categoria de análise. Nos processos a seguir vamos mostrar uma série de fatos que, a princípio, parecem curiosos, mas cremos expressar exemplos de atitudes operárias importantes. Acreditamos, entretanto, que cada processo, em sua dimensão histórica, representa um universo bem mais amplo que fatalmente escapa às lupas da ciência mais atenta. No primeiro exemplo, João Narciso dos Santos, sapateiro, move reclamação trabalhista contra a empresa de Américo Palermo e Irmão. O motivo é o desconto de um bilhete de futebol, segundo o qual [...] seu patrão descontou a quantia de vinte cruzeiros de seu ordenado do mês de fevereiro, alegando que, como diretor que é da Sociedade Esportiva Palmeiras, estava cobrando a entrada do jogo de futebol realizado no dia 15.02.1949, entre Palmeiras e C.R. Flamengo, da capital Federal. Em absoluto, o reclamante entrou no jogo sem pagar entrada, e por isso não é 147 justo que seu patrão João Palermo Filho desconte de seu ordenado. (AHMF, Cx. 342, Cartório 2º Ofício, Proc. 1337/1949, p. 03). No termo da sentença, [...] foi dito que concordava com o pagamento pedido na inicial, desde que o reclamante se comprometesse a não mais tratar de assuntos de futebol no recinto da Fábrica, estando disposto a mantê-lo, como o mantém como empregado da firma. Pelo reclamante, assistido pelo Dr. Promotor Público, foi dito que aceitava as condições. (AHMF, Cx. 342, Cartório 2º Ofício, Proc. 1337/1949, p. 06). O sapateiro Roque Torquato Paiva, move reclamação trabalhista contra a empresa H. Rocha Filho. Em audiência, o depoimento pessoal revela que [...] sofreu várias penas, suspensão por 8 dias, uma vez que, ganhando por peça, era irrelevante que tivesse perdido algum tempo no comer bananas em hora de serviço e que, além disso, outros empregados, não se limitavam a comer bananas, mas comiam mesmo sanduíches. A sua última suspensão foi motivada porque ele enfiara um corte de sapato debaixo da blusa, a fim de aparentar que era tão musculoso quanto um outro empregado, que o desafiara. (AHMF, Cx. 474, Catório 2º Ofício, Proc. 2513/1959, p. 20). Vejamos outro exemplo, no qual a Calçados Samello S.A. instaura inquérito para apuração de falta grave, contra o sapateiro José Aímola, casado. Trata-se de um funcionário antigo, que ingressou na empresa em fevereiro de 1949. Entretanto, segundo a empresa, [...] no dia 10.04.72, entre 15 e 16 horas, o requerido, aproveitando-se de um descuido de sua colega de serviço, não titubeou e ‘passou as mãos nas coxas’ de Maura Imaculada Carrijo, fato presenciado por alguns colegas de serviço. Que, passados os primeiros instantes e o susto que levou, Maura Imaculada se dirigiu ao seu chefe imediato. (AHMF, Cx. 106 – Proc. 198/1972, p. 2). A empresa solicita a dispensa por justa causa, citando o enquadramento também no artigo 482, letras b e j da CLT, que descreve os atos de imoralidade no ambiente profissional constituem justa causa para dispensa do empregado, por caracterizarem mau procedimento ou incontinência de conduta. (AHMF, Cx. 106 – Proc. 198/1972, p. 6). 148 Temos que frisar atenção no aspecto moral dado ao fato, além de configurar o aspecto econômico na tentativa de dispensar o operário. Ademais não fica claro no processo analisado a dimensão do episódio, parecendo-nos uma tentativa de punição prévia via de um moralismo longe de fazer parte deste ambiente. Outro aspecto que queremos assinalar em uma perspectiva que avaliamos ser nobre, acerca da construção da classe operária, é a invenção deste sapateiro moderno em Franca. Ou seja, verificamos, pelos processos, que esse termo tem uma conotação peculiar, uma vez que não somente identifica os operários, em suas diversificadas funções, mas também dá o tom de uma identidade própria. Dessa forma, em sua maioria, e nas vezes que foram especificadas as funções do operário (por exemplo: pespontador, cortador, chanfrador, etc.), é também adicionado o sinônimo genérico da categoria em seguida: sapateiro. Também notamos em muitos processos apenas a referência direta ao trabalhador como sapateiro. Cremos, ademais, que esse termo possui uma significação ainda mais amplo e que assume nesse período estudado um certo ar de estatuto jurídico também. Seguindo a análise acima, o sapateiro Wanderley dos Santos, com a função especificada no processo também como pespontador, move reclamação trabalhista contra a Calçados Terra S.A. Foi contratado pela reclamada para os serviços em 03.11.59 e registrado somente em 01.06.62, dois anos e 7 meses após a real admissão. É pespontador especializado, mas faltando serviço trabalhador foi transferido da seção de corte de fôrro, função que exerceu aproximadamente por 8 meses, como uma alteração unilateral. Os colegas da seção de corte reclamaram da equiparação salarial. Enquanto o reclamante se encontrava substituindo, emprestado à seção de corte, a empresa concedeu vários aumentos aos pespontadores [...] Quando solicitado o aumento também foi negado pela empresa, alegando que este tinha somente 3 meses de casa. Assim, acharam outro motivo para a dispensa. (AHMF, Cx. 156 – Proc. 678/1973, p. 02). Por sua vez, a empresa alega que [...] o trabalhador foi registrado como SAPATEIRO [escrito exatamente assim] e, portanto, para o exercício de qualquer mister relacionado com o 149 fabrico de calçados. Não obstante tal fato, nunca exerceu ‘função especializada de pespontador’ como pretende a inicial; exercia o mister de ‘fechador de zig-zag’, na seção de pesponto, serviço que até os menores fazem e sem qualquer segredo; passou, posteriormente, para a função de “cortador de conserto”, a qual vinha exercendo ultimamente, não a título de empréstimo ou substituição e sem qualquer redução de seus vencimentos. Alega a empresa que este nunca foi pespontador. (AHMF, Cx. 156 – Proc. 678/1973, p. 11). Esse processo merece ser melhor analisado, pois representa um pouco da história de vida de muitos sapateiros em Franca. Ocorre que [...] no dia 21.11.73, foi flagrado (pelo Chefe) desenhando no horário de serviço; Inquirido sobre o fato pelos chefes, simplesmente virou-lhe as costas, numa demonstração inequívoca de indisciplina e insubordinação, além da desídia já ‘quantum satis’ comprovada e demonstrada através do documento-desenho. (ANEXO Q). (AHMF, Cx. 156 – Proc. 678/1973, p. 11). Na ocasião com o enfrentamento na Justiça do Trabalho, a empresa se utiliza do arquivo pessoal que construiu do operário nesses anos na empresa, mostrando as 11 comunicações referentes à indisciplina, desde advertências e suspensões. Além desses, coloca em anexo documento da empresa que representa o contrato de aprendizagem, ministrada na própria empresa, na função de aprendiz-sapateiro. Em seu depoimento pessoal, em audiência dia 16.01.1974, reitera que [...] começou a trabalhar para reclamada em 9.11.59 e nessa época o depoente possuía 9 anos de idade. Trabalhou dois anos no cordonê, trabalhou no pesponto de 1967 a 1972 (zig-zag, fantasia e cordonê [...]), depois passou ao corte de forro, onde trabalhou 12 meses aproximadamente, passando durante os 3 últimos meses a cortar peças estragadas para aproveitamento. O desenho (fl.14) o depoente tinha feito antes de iniciar o horário de trabalho, rasgou o mencionado papel e quando o chefe chegou até o depoente e solicitou o papel, foi entregue [...]. (AHMF, Cx. 156 – Proc. 678/1973, p. 37-38). Evidenciamos que os depoimentos que testemunharam para o operário são evidentemente solidários ao colega, mas o curioso foi perceber a contradição na fala das testemunhas da empresa, uma vez que no depoimento pessoal da empresa (certamente realizada pelo advogado) defende que 150 [...] a função de pesponto não é ‘especializada’, nesta expressão o depoente se refere somente aos que são pespontadores especializados; o pespontador deve ter 5 ou 6 anos de especialização, sendo que o reclamante não o é; Despedido por ser surpreendido terminando de desenhar a folha constante neste processo e porque rasgou a folha perante Zarino e Antonio Carlos, ambos chefes e porque, admoestado, virou as costas e os deixou falando sozinhos [...]. (AHMF, Cx. 156 – Proc. 678/1973, p. 38-39). Considerando, em parte, essa assertiva, a 3ª testemunha da empresa sugere que “o cordonê é considerado pesponto, mas de 2ª categoria; quem trabalha no zig-zag está ligado ao pesponto, mas não é considerado profissional pespontador [...]”. (AHMF, Cx. 156 – Proc. 678/1973, p. 41). Este outro processo, de Valdez Ferreira de Melo, menor, contra a empresa H. Rocha S.A Indústria de Calçados, indica mais uma atitude dentro da fábrica que foi contestada pela empresa no seu aspecto moral. Sublinhando as várias punições internas aplicadas ao funcionário, nove no total, enquadrando no artigo n. 482, letra “b”, da CLT, a empresa se defende alegando que “um empregado que, com um ano e três meses de serviço, sofre 10 punições, tem antecedentes negativos que não o recomendam, antes, que fazem pressupor um verdadeiro desajustamento social”. (ANEXO R). (AHMF, Cx. 258 – Proc. 39/1977, p. 12). Percebe-se em vários processos, como esses, a incidência do trabalho infantil nas fábricas. Independente da idade a punição é uniforme para todos, não levando em consideração que se trata de um menor de idade, que está em desenvolvimento. Atualmente, mesmo com as proibições legais e incentivos como o PET (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) e o Pró-Criança (instituição privada, criada e mantida por empresas), que tem a função de fiscalizar o trabalho infantil e oferecer programas educacionais às crianças e aos adolescentes, o trabalho a domicílio de costura manual ou mesmo de pequenas bancas escapam ao controle, visto que o trabalho infantil é um dos meios para se complementar a renda familiar. 151 Não nos cabe julgar o aspecto se o operário era um bom ou mau funcionário. Ao contrário, queremos ressaltar as distintas formas de atitudes que, em nosso entender, mesmo que desconexas ilustram a trajetória da classe operária. Nesse processo, por exemplo, o real motivo da demissão parece se misturar a aspectos preconceituosos, tentando ser colocado moralmente pela empresa: No dia 15 de dezembro de 1976, por volta das 14 horas, Valdes Ferreira de Melo, em pleno recinto da fábrica da reclamada, sem respeito por moças e menores que lá trabalhavam, começou a praticar atos obscenos com Clésio, passando a mão em suas nádegas, como se tratasse de um pederasta. Este, por sua vez, dirigiu-se para o menor José Donizete de Souza e praticou o mesmo gesto, que este descreveu como ‘passou a mão na minha bunda’, sendo obrigado a fugir para pôr termo à obscenidade. (AHMF, Cx. 258 – Proc. 39/1977, p. 12-13). Um mês antes, “no dia 11.11.87, retirou seus órgãos genitais para fora das calças, mostrando-o para a funcionária [...]” (AHMF, Cx. 258 – Proc. 39/1977, p. 23). Observa-se que esse assunto sobre a homossexualidade é tratado de forma equivocada no processo trabalhista. Entretanto, esses eventos acontecem invariavelmente em todos os lugares, mas no universo de trabalho e sendo exposto dentro de um processo trabalhista da forma como está é um aspecto que merece mais atenção. Durvalino Maia Batista, sapateiro, moveu reclamação ação trabalhista contra a Calçados Martiniano S.A. Fica exposto, neste exemplo, a amplitude do espaço fabril. Segundo a empresa, [...] é casado, com filhos, no dia 25.03.77, por volta de 16,00 horas, o chefe de seção entregou ao chefe do Departamento Pessoal um bilhete, no qual o reclamante estava a fazer declarações de amor à funcionária Ivete Galvão de Oliveira, uma menor. Aplicada a pena de suspensão, outros bilhetes no mesmo estilo foram apreendidos, conforme comprovantes em anexo. No mesmo dia 25 (suspensão) o reclamante. Ficou nas imediações da fabrica, a fim de tirar satisfações com a srta. Lenir Alves dos Santos, a qual nada tinha a ver com o incidente do bilhete, sendo também menor de idadde; agrediua, então barbaramente, com socos e pontapés, simplesmente porque pensou que teria sido esta menor a entregar o bilhete ao aludido chefe. [...] A menor voltou correndo para o interior da fabrica, relatando o fato ao chefe de Pessoal, tendo este acalmado-a mandando que fosse para sua casa; mas, para surpresa e indignação de todos, [...] foi novamente agredida a menor pelo recte. Em vista de tais graves fatos o chefe de pessoal intereviu de 152 imediato, dizendo que a atitude do reclamante era a de um covarde, porque deveria fazer aquilo com um homem e nunca com uma mulher, mormente sendo menor. Diante de tal argumentação também foi agredido o chefe, com socos e pontapés, cumprindo acrescentar que ainda passou para o campo das ameaças, logo após as vias de fato, dizendo que ainda iria ‘acertar’ o chefe, dando-lhe um tiro. (ANEXO S, T, U). (AHMF, Cx. 268 – Proc. 315/1977, p. 8-9). Nesse processo, a dispensa por justa causa, segundo a empresa Makerli, foi devido à falsa informação e desmotivação de um recém contratado. Revelando a questão de fundo que é a da produtividade e desempenho profissional. Também podemos perceber como se configurava, na declaração abaixo, como que as conversas operárias, ou por outra, a consciência do trabalho e de suas adversidades, assim como de como burlar as disciplinas, eram passadas e repassadas de distintas formas. Vejamos a íntegra do documento expedido pela empresa: Ao Sr. Luiz Antonio Gomes: Participando-lhe a dispensa de seus serviços, por Justa Causa, motivado pelo fato ocorrido hoje, quando um funcionário recentemente admitido foi abordado por V.As, em horário de serviço e que com intuito de evitar que o mesmo continuasse na Empresa, deu más informações a ele dizendo inclusive que se fosse casado iria passar fome com salário que a firma paga para a função, tentando desanimar o funcionário. Esclarecemos ainda que o novato funcionário que efetuou as tarefas na firma pela 1ª vez deu uma produção aproximadamente de 200 pares com enfeite, sendo que V.As com experiência e tempo de serviço tem capacidade comprovada para tirar a mesma produção ou mais, enquanto insiste em tirar menos de 150 pares fazendo pressão para que a firma aumente o salário, e se não bastasse ainda, procurou interferir na admissão de um funcionário conforme fato acima exposto. 03.10.1978. (AHMF, Cx. 306 – Proc. 681/1978). A utilização da dispensa por justa causa pela quebra da disciplina no ambiente de trabalho (ANEXO V), neste processo contra a Calçados Samello S.A, levanta mais uma vez o aspecto moralista das empresas. A alegação foi porque, “no dia 12 de janeiro de 1978, o Reclamante foi suspenso do trabalho por mau comportamento e, principalmente, por estar 153 lendo, no horário de trabalho, revista pornográfica (ANEXO W)48. Assim, foi o reclamante orientado que tal procedimento, se repetido, “obrigar-nos-ia” a tomada de enérgicas providências para a manutenção da disciplina em nosso parque fabril”. (AHMF, Cx. 295 – Proc. 313/1978, p. 09). Neste outro processo, estabelece o mesmo exemplo acima citado. A Calçados Marquinhos contesta reclamação trabalhista movida por Carlos Eurípedes de Souza, menor. Encontra-se anexado no processo um exemplar da revista Playboy, motivo imperioso da justa causa. Além desse fato, a empresa demonstra as várias advertências e suspensões, promovidas por brincadeiras na jornada de trabalho, adverte a empresa. Levando-se em conta a contramão de intenções que fazem parte do universo produtivo e das crianças trabalhadoras da fábrica, muitos dos menores pesquisados nos processos trabalhistas fazem do ambiente da indústria um palco para suas brincadeiras. Nesse exemplo, além da “exibição da revista pornográfica”, no dia 24.10.78, “foi encontrado com brincadeiras, com um pedaço de pano velho amarrado em uns do pares e sapato” e no dia 27.09.78, foi advertido por “estar brincando com uma bola feita de cola de sapato”. (ANEXO X). (AHMF, Cx. 511 – Proc. 584/1979). Uma revista pornográfica em outra situação não indicaria nenhuma brecha para maiores questionamentos, entretanto, anexada a um processo trabalhista, em vários casos registrados, esse evento assume uma importância ímpar na conjugação de fatores que confluem numa dimensão de classe. Nesse processo, o menor Valmir Antônio da Silva move reclamação trabalhista contra a Calçados Martiniano S.A. Aqui também são expostos vários documentos que 48 Noutro processo, a empresa Sparks Calçados Ltda alega falta grave durante o trabalho e dispensa o sapateiro por justa causa em data de 26/10/79, Pois “em plena lida do trabalho, o reclamante provocou ligeiro tumulto dentro de seu ambiente de trabalho na reclamada, quando, de posse de uma fotografia de mulher nua passou a mostrar para suas colegas de serviço, homens, mulheres, menores de ambos o sexo. Este ato de improbidade e indisciplina atentou contra pudor de várias funcionárias. Ofendidas, levaram ao conhecimento da empregadora". (AHMF, Cx. 339 – Proc. 1084/1979, p. 8). 154 demonstram, segundo a empresa, sua indisciplina e insubordinação. Entretanto, o que chama atenção, é o fato da empresa alegar como face dessa indisciplina, o desenho que o sapateiro fez do emblema do time de futebol do Corinthians em um pedaço de couro (ANEXO Y). O argumento da empresa, em sua defesa, é sempre para não pagar as verbas rescisórias requeridas pelos operários. (AHMF, Cx. 384 – Proc. 279/1981). A nuance moralista também se verifica no processo em que Antonio Eustáquio Cunha, sapateiro, propõe reclamação trabalhista contra a Calçados Samello S.A. Essa por sua vez, alega que No dia 20 de janeiro de 1982, o reclamante juntamente com a Srta. Luciane da Silva Candido (menor), dentro do recinto e horário de trabalho, iniciaram a troca de carícias amorosas, que culminaram com um abraço intimo e caloroso debaixo da esteira de montagem de calçados, local em que ambos exerciam a atividade para a qual foram contratados. A Reclamada exige em seu recinto de trabalho o máximo de respeito e cooperativismo, não admitindo, em hipótese alguma a tomada de posições mais íntimas, muito ao ponto em que chegou o reclamante, em total desrespeito ao local de trabalho e aos princípios básicos que norteiam o bom comportamento. (AHMF, Cx. 000 – Proc. 61/1982, p. 13). Vejamos os depoimentos de testemunhas acerca do ocorrido. Segundo testemunha do operário, Ione Mendes Rosa, sapateira, “Anteriormente a este fato, o casal costumava brincar e falar ‘besteiras’, como contar piadas maliciosas; que a esteira apresenta-se em forma oval dentro de um salão e os funcionários ficam trabalhando de ambos os lados da mesma”. (AHMF, Cx. 000 – Proc. 61/1982, p. 22). Outra testemunha do operário, Margarida Maria Pereira, sapateira, revela que A depoente trabalhava na mesma seção do reclamante à época; Que o fato entre o reclamante e Luciane ocorreu numa época de pouco serviço, estando o depoente próximo do casal, que conversava a respeito de sapato novo e batizá-lo, pisando sobre o mesmo; que o Rte. estava com um calçado novo, ocasião em que a menor Luciane de 15 anos pisou no pé do mesmo e ato contínuo fugiu; que o reclamante perseguiu a menor, correndo para trás da maquinaria, ocasião em que tropeçou numa das mangueiras de ar da máquina, caindo ao solo; que Luciane ao cair permaneceu sentada ao chão com as pernas cruzadas e os braços entre as pernas, ocasião em que o reclamante tentando pisar no pé da mesma passou sobre o seu corpo; que não houve tumulto na seção e nem paralisação de serviço; que no momento 155 a menor Luciane estava parada sem serviço. (AHMF, Cx. 000 – Proc. 61/1982, p. 23). O processo em que Sara Ribeiro, menor, move contra a Indústria de Calçados Washington Ltda demonstra o universo vivido pelas trabalhadoras que ficavam grávidas, muitas delas vítimas de perseguição. Foi dispensada “[...] sob alegação de justa causa, mas encontra-se em estado de gravidez (cerca de cinco meses)”. (AHMF, Cx. 000 – Proc. 704/1982, p. 2). Assim, pleiteia estabilidade e verbas rescisórias conforme acordo coletivo. O motivo é singular, pois [...] em 2.11.82 recebeu carta de dispensa, por justa causa, por motivo de desenhar cama, armário, em prancheta que é usada para passar tintas, e ornamentando o nome escrito na mesma com pregos de montagem, em pleno horário de trabalho, atrasando o seu serviço além do desperdício de material e atraindo a atenção dos demais colegas. (AHMF, Cx. 000 – Proc. 704/1982, p. 6). Por sua vez, a empresa alega que [...] nunca se portou como uma exemplar funcionária, advertida verbalmente e por escrito várias vezes e suspensa por indisciplina. A reclamante dentro da fábrica em seu local de trabalho, passou a fazer desenhos em prancheta de papelão, enfeitando-os com preguinhos (anexados ao processo), deixando com isso a esteira passar, sem executar seu trabalho, além do desperdiço de material que empregou no desenho e no enfeito. Encaminhada por seu chefe ao departamento do pessoal, [...] a mesma confirmou ter sido ela quem fez, ao ser dispensada, a reclamante ficou nervosa e passou a ofender o gerente e o chefe de pessoal, chamandoos de ‘sem vergonha’, batendo a porta de saída com muita força, [...] num ato abusivo e provocador. (AHMF, Cx. 000 – Proc. 704/1982, p. 20- 21). A empresa alega que desconhecia o estado de gravidez da funcionária e ganha ação em primeira instância. Entretanto, o TRT atesta a seguinte sentença: Não ficou devidamente provado ter sido a reclamante a autora do cartão de (fl. 35). Além do que, não há qualquer prova de que tivesse havido algum prejuízo ou que a reclamante tivesse interrompido o trabalho para brincar. A falta grave, para permitir a dispensa do obreiro, sem ônus para a empresa, deve ser sobejamente comprovada nos autos. [...] Houve excesso de rigor no poder de comando da empresa. Dou provimento ao apelo da reclamante. (AHMF, Cx. 000 – Proc. 704/1982). 156 No processo a seguir, a empresa Agabê – H. Bettarello S.A Curtidora e Calçados contesta reclamação trabalhista de Mauricio Mendes Baia, alegando que no dia 14.03.85, “este funcionário fez este ‘rabo’ de fita adesiva e colocou nas costas de um outro funcionário na fábrica, foi punido e nossa punição, sendo dispensado por justa causa”. (AHMF, Cx. 532 – Proc. 312/1985, p. 15). No processo consta um envelope com o ‘rabo’ anexado (ANEXO Z e AA) e a advertência rasgada pelo operário. Outro problema que ocorre com certa freqüência no universo produtivo, claro que não sendo exclusivo dele, é o assédio sexual. Rosilma Maria da Silva, menor, sapateira, representada por sua mãe Euripa Brasilina da Silva, movem reclamação trabalhista contra a Calçados Sarina. Segundo a sapateira, admitida em outubro de 1984, [...] seu patrão de nome de Mauro vem a tempos lhe dirigindo gracejos, bem como lhe fazendo convites indecorosos tendo às vezes usado palavras de baixo calão que fizeram a reclamante ruborizar-se haja vista que vinda de uma pessoa que serve para ser seu pai, pois tem apenas 15 anos. Não se conformando com as escusas seu patrão passou a segui-la durante o trajeto de sua casa e por fim passou a lhe impingir serviços dentro da fábrica obrigando-a a parar de trabalhar, o que ocorreu em 11 de outubro último. (AHMF, Cx. 557 – Proc. 1051/1985, p. 02). O espaço fabril não oferece oportunidade para sonhos, essa perspectiva alia-se ao conflito de classe. 157 6 TRABALHO, TRABALHADORES E A ÉTICA DO TRABALHO HOJE Em relação à ética do trabalho e o peso deste em nossas vidas atualmente, vamos comentar sua perspectiva histórica rapidamente. Esse universo temático há muito vem sendo debatido atualmente, portanto o peso do trabalho hoje segue nuances distintas da que Weber (1983) analisou, ou seja, a disposição de poupar mais que gastar inventou um ato de autodisciplina, um novo tipo de homem, decidido a provar seu valor moral para o trabalho. Entretanto, esse homem motivado, segue uma busca de reconhecimento dos outros e de autoestima, significando aceitar a si mesmo. A ética protestante, como análise econômica, omite de certa maneira o consumo como força motivadora no capitalismo. Esse aspecto pode ser compreendido com Werner Sombart (1953, p. 248), que sustenta que o capitalismo nada deve à ética puritana ou qualquer outra, pois as virtudes burguesas já existiam há aproximadamente duzentos anos antes de nascer o puritanismo. A ética do trabalho atualmente, não é motivo de felicidade humana, mas sim de disciplina, é um ato de auto-punição49. Ou seja, o homem motivado é oprimido. Nessa perspectiva, poder-se-ia pensar que o enfraquecimento da ética do trabalho seria um ganho para a civilização, mas ao contrário, nota-se que esse aspecto valorativo do trabalho ganha nova força atualmente. As reflexões de Paul Lafargue (1999) são emblemáticas nesse sentido, pois ao contrário do que defendia, o trabalho é reivindicado historicamente como um direito, em uma extrema valorização do mesmo. Sabe-se que o lugar do trabalho está em mutação, pois a idéia de que o trabalho não cria mais riqueza e que os empregos não dão mais lucros acumula uma crise social que não é muito legível. Certamente a clássica ética do trabalho de adiar a satisfação e provar-se para o trabalho árduo, dificilmente pode exigir a afeição das pessoas atualmente, mas 49 Abordagem sofisticada sobre a dinâmica dessa disciplina em nossa sociedade pode ser encontranda em Foulcault. FOUCAULT, Michel. Vigir e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977. 158 tampouco o trabalho desligado de um sentido mais entrelaçado com o social pode indicar a saída. Considerando as reflexões de Sennett (2001) para o contexto atual do trabalho no capitalismo, indica que o novo capitalismo é um sistema de poder muitas vezes ilegível. Nele, o caráter (valor ético que atribuímos aos nossos próprios desejos e às nossas relações com os outros) é corroído a cada instante. Afinal, o caráter de alguém depende de suas ligações com o mundo, alinhando sua experiência emocional, expressada por uma espécie de lealdade, um compromisso mútuo, uma busca de metas á longo prazo, numa prática de adiar a satisfação em troca de um bem futuro a longo prazo. A rotina industrial ameaça degradar o caráter humano em suas próprias profundezas, pois a divisão do trabalho embrutece a explosão espontânea, a criatividade das pessoas. Adam Smith (1983)50 acreditava que a livre circulação de moedas, bens e trabalho, exigiria que as pessoas fizessem tarefas cada vez mais especializadas. Ademais, ilustra em seu exemplo clássico da produção de alfinetes o processo dessa divisão do trabalho. Para o autor, a separação de casa e trabalho foi a mais importante de todas as modernas divisões de trabalho. Dessa forma, a rotina embrutece o espírito humano e os relógios mecânicos ditam os tempos da produtividade na fábrica, que é um lugar sinistro. Não é por acaso que o tempo da rotina do século XX pode ser o sinônimo de fordismo (GRAMSCI, 1978)51. Em uma perspectiva taylorista de administrar o tempo de produção, a ética do trabalho tem seu período mais intenso. Assim sendo, os trabalhadores no mundo lutam com a disciplina. Sabiam que poderiam temperar as dores do tédio, mas não as abolir naquela jaula de ferro do tempo. As dores da rotina de mais de um século culminaram em gerações que aprenderam a perder a vida para ganhá-la. 50 Sobre esse tema, cabe sublinhar os trabalhos de MORAES NETO, Benedito Rodrigues de. A organização do trabalho sob o capitalismo e a “redoma de vidro”. Revista de Administração de Empresas. Rio de Janeiro, 27 (4), out./dez. 1987, p. 19-30. E também, do mesmo autor: A divisão do trabalho em Marx e a “angústia smithiana”. Departamento de Economia – Unesp/ Araraquara), s/d. 51 Segundo Gramsci, tem-se a necessidade de aperfeiçoar um novo tipo de trabalhador e através de uma racionalização que determinou a elaboração de um novo tipo de humano, conforme ao novo tipo de trabalho e de produção. É ainda a fase da adaptação psicofísica à nova estrutura industrial. 159 A grande questão é como reconhecer ou encontrar liberdade nesse tipo de trabalho, guiado pela extrema rotina. Para as gerações acostumadas com o “tempo fordista” a métrica do tempo é diferente, não mais um ato de repressão e dominação praticado pela administração em nome do crescimento da gigantesca organização industrial. Os sindicatos eram fortes, pois o tempo rotinizado se tornara uma arena onde os trabalhadores podiam afirmar suas próprias exigências, arena que dava poder. Muitos, com a obsessão aos horários rotineiros, criavam uma narrativa positiva para suas vidas. Verifica-se que a rotina, a dura disciplina fabril pode degradar, mas também pode proteger. Pode decompor o trabalho, mas compor a vida noutra perspectiva, pois valorizar o hábito das práticas sociais é importante e se revela também no processo de relação com a Justiça do Trabalho. Dessa forma, imaginar uma vida de impulsos momentâneos, numa ação a curto prazo, despida das rotinas sustentáveis, uma vida sem hábitos, é imaginar, na verdade, uma existência irracional. Para a nova linguagem da flexibilidade sugere-se que a rotina está morrendo nos setores dinâmicos da economia, contudo, a maior parte da mão-de-obra permanece inscrita no círculo do fordismo. Esse aspecto acima é importante ponto de partida para uma questão, a de que o processo de trabalho inserido atualmente na cidade de Franca precisa ser mais aprofundado, respeitando as ressonâncias históricas e não querendo impor de forma substitutiva aleatória, em uma dinâmica teórica, na troca de um sistema produtivo por outro. Ou seja, o aspecto determinante do trabalho em Franca continua sendo a aplicação de mão-de-obra direta, sendo assim, salvo aspectos como a informação e marketing, é improvável que as mudanças alardeadas pela flexibilização tenham assumido de fato grande influência em Franca. O caráter dos trabalhadores expressa-se no trabalho, no agir com honra, trabalhando, cooperativa e honestamente, com outros. Nesse sentido, fatores como segurança do emprego e compromisso com a empresa, mantinha as pessoas em seus lugares. Os trabalhadores hoje tendem a não ficarem presos ao lugar. Ocorre uma apreensão cotidiana 160 com emprego, essa apreensão aumenta quando as experiências passadas parecem não servir de guia para o presente. A reboque das transformações recentes, a qual o uso da expressão “perda de centralidade do trabalho”52 tenta sintetizar parte das mudanças estruturais sofridas pelas formações capitalistas contemporâneas, particularmente em relação ao papel do capital e trabalho enquanto forças motrizes da nova configuração societária, é preciso ressaltar que, em perspectiva histórica, a aquisição de direitos pelo trabalhador individual, no sistema de emprego capitalista, mesmo que o cumprimento das leis tenha distintas variações, é uma característica intrínseca da formação da classe trabalhadora e influi na invenção cotidiana da categoria do trabalho contemporâneo. Pois, mesmo sendo os processos trabalhistas, em sua maioria de ordem individual, como já demonstramos, quando um conflito colocava o indivíduo contra a empresa, abria-se uma oportunidade para a ação de classe, para uma alteração de consciência que possibilitava mobilizar os trabalhadores. Dessa maneira, a tarefa fundamental dos trabalhadores em suas reclamações trabalhistas foi elevar sua consciência por meio da sua participação, cujo impacto tem efeito mobilizador e favorece a criação de laços sociais, independentemente dos resultados obtidos. Na pesquisa que apresentamos, verifica-se na trajetória da experiência da classe trabalhadora em Franca uma continuada necessidade do setor calçadista com o emprego da mão-de-obra direta, sendo um exemplo prático da continuidade do paradigma do trabalho, o qual se observa valorização intensa do mesmo passando por uma teia de sociabilidade que explode as dicotomias das classes sociais. 52 Sobre esse universo temático, que indica nova abordagem de leitura da sociedade, ressaltamos a necessidade de considerar as reflexões de André Gorz (GORZ, André. Adeus ao proletariado: para além do socialismo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982); Claus Offe (OFFE, Claus. Capitalismo desorganizado. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 178) no qual discorre sobre o que denomina “trabalho reflexivo”, apontando a perda da validade da categoria trabalho como chave para a pesquisa sociológica. Também a leitura sobre o “trabalho imaterial” de LAZARRATO, Maurizio; NEGRI, Antôio. Trabalho imaterial: formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro, DP&A, 2001. p. 25-41. Assim como a abordagem de Zygmunt Bauman (BAUMAN, Zygmunt. Modernidade liquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001) e GILDDENS, Anthony, BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização reflexiva. São Paulo: Editora Unesp, 1997. 161 As transformações atuais no âmbito da categoria trabalho sublinhadas acima, como ser ontológico da sociedade capitalista, deixa-nos perplexos. Entretanto, o trabalho vivo ainda é o motor de toda história, ou seja, é a força determinante do sistema, a resposta ao truncamento da sociedade capitalista na fase atual. Cabe destacar a observação de David Harvey, o qual salienta que: [...] a crise de superacumulação iniciada no final dos anos 1960, e que chegou ao auge em 1973, gerou exatamente esse. A experiência do tempo e do espaço se transformou, a confiança na associação entre juízos científicos e morais ruiu, a estética triunfou sobre a ética como foco primário de preocupação intelectual e social, as imagens dominaram as narrativas, a efemeridade e a fragmentação assumiram precedência sobre verdades eternas e sobre a política unificada e as explicações deixaram o âmbito dos fundamentos materiais e político-econômicos e passaram para a consideração de práticas políticas e culturais autônomas. O esboço histórico que propus aqui sugere, no entanto, que mudanças dessa espécie de modo algum são novas, e que a sua versão mais recente por certo está no alcance da pesquisa materialista-histórica, podendo até ser teorizada com bases na metanarrativa do desenvolvimento capitalista que Marx formulou. (2002, p. 295). Portanto, continuamos sob o primado do sistema de expropriação da mais-valia, a qual se acirra de maneira intensa. A precarização da condição operária não é negociada, mas sim imposta à classe trabalhadora, que busca espaços de enfrentamentos os mais distintos, dentre os quais estão as reclamações trabalhistas. 6.1 A respiração do trabalho em Franca O operário do calçado, no período de consolidação da indústria calçadista, participa do mercado de trabalho, inserindo-se em um universo produtivo muitas vezes estranho a ele e isso implica muito mais que uma estratégia de vida. A fim de escapar das amarguras do desemprego na encruzilhada modernizadora, “concordava” em se colocar nessa 162 ordem disciplinar que, como salientamos, está além dos muros das fábricas. Entretanto, também reelaborava em proveito próprio, de alguma forma, a ditadura dessa disciplina, pois nesse sentido, atrás do emprego o que se pretende é uma vida melhor. Não é o trabalho representado pela função, mas uma melhor qualidade de vida (na contra-mão do índice oficial do IDH) que querem esses operários. As formas de experiências, atitudes e expressões que ilustramos, expostas nos processos trabalhistas, mostram reações muito além de um conformismo, passividade ou resignação, reivindicando uma apropriação, que lhes permitem fazer leituras criativas e singulares. Nesse sentido, o aparente conformismo pode fazer parte de uma estratégia de vida para alcançarem seus objetivos mais imediatos. Vivendo em difíceis situações existenciais, ao recorrerem à Justiça, produtor de toda uma legislação que os “beneficiava” materialmente, em termos econômicos os trabalhadores procuravam uma alternativa a mais em suas vidas. Afinal, a base para o conflito de classes é a vida cotidiana. 6.2 O sapateiro e o operário A identidade do sapateiro em Franca é construída fortemente com apelo ao trabalho, alinhando as classes sociais em torno dessa configuração. Ou seja, tanto para o empresário como o passador de cola, ser sapateiro parece ter um significado comum. Observar e localizar o conflito de classes nesse jogo de relações parece ser o maior desafio. Assim, mais que abordar o papel das classes sociais é preciso entender antes um pouco dessa dinâmica. O trabalhador que controlava o saber de ofício, na fase inicial da produção do calçado, estava inserido em um universo produtivo que privilegiava o seu domínio intelectual sobre as técnicas de produção do calçado. Assim, a unidade produtiva formava novos 163 profissionais ao garantir o banquinho do aprendiz ao lado do oficial. No entanto, o aprendizado deveria ser custeado pelo iniciante seja na forma de trabalho não remunerado, seja mediante pagamento direto, ou ainda, como parte das relações informais de solidariedade, associadas ao parentesco. O domínio da técnica era considerado um bem precioso, dotado de valor econômico, a ser repassado pelos mais experientes, detentores dos segredos de ofício. Essa formação dos aprendizes, embora implicasse em trabalho não remunerado e camuflasse a exploração de mão-de-obra barata, em uma relação de poder sustentado exatamente por esse saber fazer, nas oficiais artesanais, adquire uma certa valorização positiva (MALATIAN, 1996). Com a consolidação da unidade calçadista, ou do parque industrial, verifica-se que ocorre uma ruptura radical dessa herança social, com uma configuração que se sustenta no moderno (SEVCENKO, 1992)53, do novo e do jovem. Os sapateiros mais velhos, na transferência do domínio sobre o saber produtivo, paulatinamente se associam à perda e mesmo destituição de uma identidade profissional particular. Dessa forma, além de deixar de ser considerado um artista, cujo prazer estava em visualizar o produto final realizado por suas próprias mãos, não há praticamente vínculos entre uma fase à outra, nessa trajetória do ofício ao operário moderno. Assim, a permanência dos sapateiros antigos, por vezes, sobrevive ainda na permanência da produção doméstica ou na pequena sapataria de consertos. Já para os que se integraram às fábricas e à disciplina fabril e, mais ainda, para os que não conheceram a produção artesanal, a resistência ao novo está sempre presente na dificuldade em aceitar a extrema divisão do trabalho, a rigidez da disciplina e até o espaço fabril: adaptar-se à esteira, dominar o corpo, enquadrá-lo nos horários rígidos, no espaço delimitado como seu, manter-se em silêncio durante o horário de trabalho. A nova tecnologia não apenas expropriou o saber operário, mas impôs a ele condições de trabalho que alteraram sua identidade. 53 A diversão, os lazeres da classe operária estão ligadas a um novo estilo de vida, na qual a ação é ritualizada e coletiva. A rua e o universo produtivo são palcos do espetáculo moderno, que envolvem as massas num culto à maquina, ao esporte e ao carnaval. 164 No novo espaço produtivo, a máquina e a disciplina facilitam o trabalho e expandem a produtividade, redimencionando a inserção do aprendizado e ampliando o leque de operários. O universo produtivo do calçado emprega muitos jovens, pois exige habilidade, atenção e agilidade. Neste processo produtivo, o ponto fundamental do aprendizado passou a ser a relação com a máquina e ferramentas. Conhecer seus segredos, dominá-la sem deixar-se triturar por ela, passou a ser o grande salto que qualifica o sapateiro na profissão. Os aprendizes já não contam com o ensino dos mestres, pois são treinados pelas fábricas, por escolas profissionais (como exemplo do SESI) ou ainda mediante pagamento a outro trabalhador. Esse novo contexto representa a possibilidade de romper o monopólio do saber dos artesãos tradicionais, com a possibilidade de “ganhar mais”. Porém, no setor calçadista o fator principal sempre foi o trabalho, facilmente suprido com o exército de reserva da migração rural-urbana decorrente dos avanços do capitalismo no campo (MENDES, 1999), pois há de se considerar a relativa facilidade de qualificação profissional no setor calçadista moderno. Dessas transformações resultou a configuração de uma nova identidade, na qual a passagem do artista-artesão ao trabalhador taylorizado, inaugura novas possibilidades de autoconhecimento e ação como classe operária em sua forma clássica. Nesse sentido, destacamos que o novo momento periodizado pela disciplina industrial, a qual será responsável por moldar o novo trabalhador, assiste o surgimento de um sentimento comum dos sapateiros-operários francanos. Nessa perspectiva, não é a aparente apatia ou o silêncio54 (aspectos que demonstramos não proceder em todo período estudado) desses trabalhadores, anteriormente à década de 1980, em uma instância política e mesmo sindical, que determinam o grau de 54 “Contra as estratégias de enquadramento do proletariado ao modelo disciplinar imaginado pelos dominantes, a criatividade operária opõe inúmeras formas de resistência, surdas, difusas, organizadas ou não. O questionamento prático da lógica da organização capitalista do trabalho assume expressões diferenciadas, como o roubo de peças, a destruição de equipamentos, a sabotagem, o boicote, além das greves [...]” (RAGO, 1985, p. 27). 165 mobilização e formação da classe operária. Deve-se mirar atenção também sobre as experiências dos não-sindicalizados e dos trabalhadores informais, em suas ações dentro e fora da fábrica, ou seja, além do universo fabril, a partir de um momento singular de industrialização e modernização na década de 1960. Assim, provavelmente a construção de uma identidade coletiva dos trabalhadores das indústrias calçadistas, dos sapateiros em particular, fez-se através de experiências sociais dentro de um novo universo produtivo e social, assim como as experiências dos conflitos na Justiça do Trabalho, tecidas por práticas e dificuldades cotidianas comuns e pela rememoração constante dessas vivências, misturadas a antiga situação fora da cidade, negando ou integrando o seu passado à sua nova condição, os operários “crescem” com a indústria francana. Enfocamos na seção 5, nos exemplos analisados, um aspecto que é forte no universo produtivo do calçado, qual seja, o “contrato moral” que se estabelecia entre o operário e o contratante. Nesse aspecto, os empresários tentavam manter, principalmente os serviços de terceiros, na “base da confiança”, em que o trabalhador não moveria reclamação trabalhista contra o empregador. Entretanto o “fantasma” da reclamação judicial estaria sempre rondando. Portanto, essas reclamações trabalhistas representam um movimento de classes, o qual tece uma experiência singular e fortalece o sentimento de pertencimento pela construção de um capital social e simbólico forte, qual seja, o de ser sapateiro. Essa categoria histórica que poderia ser percebida em suas distinções de tempos em tempos, engloba um sentimento comum que expande as barreiras das classes sociais. Estudar o movimento operário fora da perspectiva associativa e sindical, como se sabe, ocorre com boa freqüência há muito tempo, mas ainda parece ser um problema, pois em geral se tende associar imediatamente a história da classe operária ao movimento sindical, nem sempre claro e engajado. 166 Na relação com a Justiça do Trabalho, os trabalhadores criaram estratégias e se utilizaram das brechas da legislação para defesa dos seus interesses. Cumpre pensar como a “consciência legal”55 dos trabalhadores pode ser entendida como elemento da composição de uma cultura de classe em sua formação. Nesse sentido, é possível afirmar que a legislação trabalhista favoreceu a organização do movimento operário. Ademais, a experiência dos trabalhadores na Justiça do Trabalho confere a eles um estatuto político. Portanto, essas reclamações trabalhistas representam uma parte do movimento da classe operária, suas experiências e fortalecem o sentimento de pertencimento fortalecido pela construção de um capital social e simbólico forte, qual seja, o de ser sapateiro. 55 Hipótese formada por Paoli (1987), segundo a qual a formação da classe operária brasileira não pode ser entendida sem considerar a intervenção legal do estado nas relações de trabalho cotidianas e o modo como a CLT serviu para moldar a demanda dos trabalhadores por justiça para constituir um horizonte cultural comum do que deveriam ser dignidade e justiça nas relações de trabalho. 167 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Certamente, no campo temático sobre a classe trabalhadora e o universo do trabalho, a observação de distintas instâncias da vida operária tem sido cada vez mais freqüentes, como o exemplo da abordagem que apresentam uma reflexão do trabalhador em seu cotidiano, em sua experiência vivida, ou seja, histórias a partir do próprio trabalhador, suas maneiras de interpretar e interferir na realidade. Nossa singela contribuição foi, nesse sentido, demonstrar parte desses aspectos na análise dos processos trabalhistas. No entanto, não tivemos a pretensão de esgotar o assunto, mas, ao revés, abordar reflexões, considerando a perspectiva sublinhada por Vianna (1983, p. 30), na qual a história da classe operária é mais que a sua história e o sentido do seu movimento político-social é dado pelas suas relações com as outras classes, com o Estado e pela história dessas relações. Portanto, a classe é um fenômeno histórico unificador das experiências dos trabalhadores no processo produtivo, de suas tradições intelectuais, de seus padrões de relacionamento social, de seus valores culturais e de suas vivências políticas. Nessa perspectiva, as lutas de classes são estruturadas pela totalidade das relações econômicas, políticas e ideológicas e produzem um efeito autônomo sobre o processo de formação de classes. De outra maneira, segundo Bourdieu, classe pode ser representada por um espaço multidimensional de posições, ou seja, não existem como grupos reais (embora expliquem a probabilidade de se constituírem em grupos práticos: famílias, clubes, associações e mesmo “movimentos” sindicais ou políticos), o que existe, é um espaço de relações o qual é tão real como um espaço geográfico. Elegemos os processos trabalhistas, como fonte, para observar a classe trabalhadora, em especial o operário do calçado, nesse espaço de relações. No embate exposto, os trabalhadores tecem expressões e atitudes através de uma produção de idéias, 168 valores e códigos próprios. Foi possível decifrar muitos desses aspectos e demonstrar que a sua trajetória, o processo de formação, está muito além dos territórios institucionalizados. No universo produtivo do calçado, a necessidade da mão de obra direta é imprescindível. Ou seja, mesmo com os avanços tecnológicos e a inserção de máquinas, o personagem central de todo processo é o sapateiro que consegue imprimir uma configuração que perpassa a barreira das classes. Por isso mesmo, ser sapateiro e estabelecer-se sapateiro há de ter uma história de esforços de diversas naturezas que proporcionam, a um só tempo, a valorização simbólica da profissão e a possibilidade de ocupar novas posições nesse abstrato e rico espaço de relações. Ser sapateiro, ser reconhecido por todos, eis a faceta desse capital simbólico. Quanto à construção do sentimento de Justiça, não há uma reprodução, e mesmo aceitação, mecânica e passiva do discurso dominante. Porém se percebe, com a análise, a apropriação do discurso oficial, via legislação trabalhista, em proveito próprio. Criase uma estratégia de diálogo. Nesse sentido, a aquisição de direitos pelo trabalhador individual, que entra no sistema de emprego “protegido” pela legislação, mesmo que seu cumprimento fosse incerto, é uma das principais especificidades do processo de formação da classe trabalhadora no Brasil. Portanto, a “consciência”, derivada da existência dos direitos trabalhistas, participa da trajetória da formação da classe trabalhadora. Não se deve refutar que há o medo, por parte do trabalhador, de ser perseguido pelos patrões e do desemprego. Existe ainda a desconfiança de que a lei (trabalhista) seja, de certo modo, fraudada em benefício dos empregadores, em uma tentativa de enfraquecer o grau de reivindicação dos trabalhadores e desencorajar seu recurso à Justiça do trabalho. Entretanto, um dos méritos da legislação trabalhista, via Justiça do Trabalho, é colocar a reclamação do trabalhador em um terreno político e público, não mais circunscrito autoritariamente pelo espaço fabril. Assim, o ponto central é a possibilidade de estabelecer 169 uma relação, na qual o trabalhador individual pode ajudar a transformar sua “consciência legal”, passo a passo, por meio de seu envolvimento com a Justiça do Trabalho. Essa consciência não é estática, desenvolve-se por meio da experiência individual. Os trabalhadores têm a possibilidade de serem criativos, de resistir e mesmo de mudar sua consciência, enquanto a testam em suas experiências cotidianas. A Justiça do Trabalho foi criada para intervir no terreno das relações sociais diretamente ligadas ao universo produtivo e mercantil, como instrumento de participação e de expressão legítima do Estado. Contudo, pode até desempenhar um papel central na promoção da cidadania social, mas este será tanto maior quando ela não se tornar um instrumento, no âmbito do direito, para substituir os interlocutores sociais responsáveis por isso. Ao findar o trabalho, sentimos a ausência de um estudo mais aprofundado do lugar do direito do trabalho na sociedade, algo que requer um tipo de abordagem que não pode prescindir de incursões pela teoria jurídica, para entender, assim, a virtude última do conceito de modelo legislado de relações de trabalho e que possa revelar a chave de interpretação para os processos recentes de mudança no país. A pesquisa revela a ascensão paulatina da demanda de processos trabalhistas no período indicado, movimento que contribui, em nosso ver, para a explosão dos conflitos trabalhistas na década de 1990, momento pelo qual se percebe que a qualidade do trabalho compreendida dentro dum sistema produtivo se universaliza, enquanto qualquer regulação possível permanece no âmbito da jurisdição nacional. Neste sentido, o que existe de uniformidade legal apenas é sustentado pelo poder do Estado por meio da Justiça do Trabalho. Os sindicatos, ou mesmo outros movimentos sociais atuantes na sociedade civil, não dão conta de coletivizar a dispersão que se abre em pontos individuais e singularizados. Em outras palavras, intensifica-se o processo de judicialização, que sugere indicativos de 170 mudanças na maneira de se fazer política no país, contribuindo, nesse sentido, para uma cultura de incorporação de direitos, no Brasil. Nessa perspectiva, é preciso compreender que o recurso à Justiça do Trabalho torna-se a saída possível, uma vez que regula solenemente as relações de trabalho e permite o diálogo (embate) entre as partes envolvidas. É também saída por que representa alternativa de representação real, ainda que insatisfatória. Se de fato a cidadania em suas múltiplas dimensões vai além do recorte de representação classista restrita ao ambiente de trabalho, o aumento da demanda judicial para dirimir conflitos trabalhistas tem muito a nos dizer. Os ecos não são de resultados, mas de complexidade. Esse contexto indica, certamente, um redimensionamento do papel do Estado em sua relação com a sociedade civil. Após o envolvimento com parte da literatura específica ao tema, nessa pesquisa, no desenvolvimento da análise e nessas linhas, a sensação que fica é de não se encerra todo esse processo em caráter definitivo, pois as fontes e a força das informações atropelam o desejo de uma conclusão absoluta. Em outras palavras, sentimos que a pesquisa empírica em si ultrapassa essa expressão objetiva de sistematizá-la. Ao pensar sobre o porque que esse espírito operário, do ser sapateiro, perpassa a dinâmica das classes, descobre-se que não dá para medir o esforço histórico desses trabalhadores, seus sonhos e ansiedades, de compreender todo mecanismo que constrói gerações de sapateiros, alguns de sucesso financeiro e tantos outros nem perto disso. Enfim, porque há uma dificuldade em reconhecerse no esforço do trabalho. Sobretudo, percebemos que as repetições de experiências e vivências tecem efetivamente essa colcha de retalhos, nesse espaço de relação social rico e ilimitado. 171 REFERÊNCIAS ALEXANDRE, AGRIPA FARIA. Questão de política como questão de direito: a judicialização da política, a cultura instituinte das CPIs e o papel dos juízes e promotores no Brasil. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas (UFSC), Santa Catarina, n.13, dez. 2000. ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho. São Paulo: Cortez, 1995. ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 5. ed. São Paulo: Boitempo, 2001. ARANTES, Rogério Bastos. Judiciário e política no Brasil. São Paulo, Sumaré: FAPESP/ EDUC, 1997. BARBOSA, Agnaldo de Souza. Política e modernização em Franca (1945 – 1964). Franca: UNESP/FHDSS, 1998. ________. Empresário fabril e desenvolvimento econômico: empreendedores, ideologia e capital na indústria do calçado (Franca, 1920-1990). 2004. 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Cx. 000 – Proc. 514/1986 (Ação Coletiva com 22; Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo Ação: diferenças salariais; Resultado: procedente em parte; TRT: Idem.). ______.Cx. 000 – Proc. 690/1986 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo Ação: diferenças salariais; Resultado: improcedente). ______. Cx. 000 – Proc, 704/1982 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo Ação: diferenças salariais; Resultado: improcedente). ______. Cx. 000 – Proc. 852/1986 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo Ação: indenização adicional; Resultado: improcedente). ______. Cx. 08 – Processo 154/68 (Assistência Judiciária: particular; Tipo empresa: artefatos de borracha; Motivo Ação: diferenças salariais; Resultado: improcedente). ______. Cx. 09 – Proc. 185/1968 (Assistência Judiciária: promotoria; Tipo empresa: artefatos de borracha; Motivo Ação: cancelamento suspensão; Resultado: procedente em parte p/ diferenças salariais e improcedente p/ Cancelamento de suspensão). ______. Cx. 10 – Proc. 225/1968 (Assistência Judiciária: STIAB; Tipo empresa: Artefatos Borracha; Motivo Ação: Cancelamento de suspensão; Resultado: procedente). ______. Cx. 12 – Proc. 334/1968 (Assistência Judiciária: particular; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferença salariais; Resultado: procedente em parte). ______. Cx. 18 – Proc. 733/1968 (Assistência judiciária: particular; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferença salariais; Resultado: conciliado). ______. Cx. 17 Proc. 675/1968 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: improcedente). ______. Cx. 14 – Proc. 469/ 1968 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: cancelamento suspensão; Resultado: procedente em parte). 182 ______. Cx. 14 – Proc. 463/68 (Assistência Judiciária: particular; Tipo empresa: artefatos borracha; Motivo: cancelamento suspensão; Resultado: procedente). ______. Cx. 22 – Proc. 911/1968 (Assistência Judiciária: promotoria; Tipo empresa: artefatos borracha; Motivo: diferenças salariais; Resultado: procedente em parte; TRT: Idem.). ______. Cx. 21 – Proc. 884/ 1968 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: procedente em parte). ______. Cx. 30 – Proc. 375/1969 (Assistência Judiciária: particular; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: procedente em parte; No TRT: procedente). ______. Cx. 37 – Proc. 574/1969 (Assistência judiciária: particular; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferença salariais; Resultado: procedente em parte). ______. Cx. 37 – Proc. 576/1969 (Assistência judiciária: particular; Tipo empresa: artefatos de borracha; Motivo: diferenças salariais; Resultado: conciliado). ______. Cx. 43 – Proc. 770/1969 (Assistência Judiciária: assistência gratuita; Tipo empresa: artefatos de borracha; Motivo: diferenças salariais; Resultado: improcedente). ______. Cx. 91 – Proc. 445/ 1971 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de Calçados; Motivo: cancelamento suspensão; Resultado: Conciliado). ______. Cx. 105 – Proc. 175/1972 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: revogação penalidades; Resultado: conciliado). ______. Cx. 106 – Proc. 198/1972 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de Calçados; Motivo: inquérito; Resultado: desistência reclamante). ______. Cx. 130 – Proc. 150/73 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de Calçados; Motivo: Cancelamento suspensão; Resultado: conciliado). ______. Cx. 130 – Proc. 153/1973 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: cancelamento suspensão; Resultado: procedente em parte). ______. Cx. 131 – Proc. 181/1973 (Assistência Judiciária: Particular; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: conciliado). ______. Cx. 136 – Proc. 281/1973 e 277/1973 (Assistência Judiciária: Particular; Tipo empresa: Outras; Motivo: inquérito; Resultado: improcedente). ______. Cx. 138 – Proc. 315/1973 (Assistência Judiciária: assistência gratuita; Tipo empresa: curtume; Motivo: reintegração; Resultado: procedente). ______. Cx. 142 – Proc. 371/1973 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de Calçados; Motivo: reintegração; Resultado: procedente; TRT: Idem). 183 ______. Cx. 148 – Proc. 505/1973 (Assistência judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: conciliado). ______. Cx. 150 – Proc. 557/1973 (Assistência Judiciária: Assistência gratuita; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo Ação: diferenças salariais; Resultado: conciliado). ______. Cx. 154 – Proc. 655/1973 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo Ação: diferenças salariais; Resultado: improcedente). ______. Cx. 156 – Proc. 678/1973 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: conciliado). ______. Cx. 157 – Proc. 692/1973 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: conciliado). ______. Cx. 258 – Proc. 39/1977 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: conciliado). ______. Cx. 260 – Proc. 69/1977 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: salários; Resultado: procedente). ______. Cx. 266 – Proc. 253/1977 (Assistência judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: cancelamento de suspensão e conseqüente; Resultado: conciliado). ______. Cx. 268 – Proc. 315/1977 (Assistência Judiciária: particular; Tipo empresa: Indústria de Calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: conciliado). ______. Cx. 269 – Proc. 332/1977 (Assistência judiciária: particular; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: procedente em parte). ______. Cx. 283 – Proc. 719/1977 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: improcedente). ______. Cx. 284 – Proc. 762/1977 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: cancelamento suspensão; Resultado: conciliado). ______. Cx. 284 – Proc. 739/1977 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: conciliado). ______. Cx. 295 – Proc. 313/1978 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: conciliado). ______. Cx. 301 – Proc. 521/1978. (Assistência Judiciária: particular; Tipo empresa: banca; Motivo: anotação CTPS; Resultado: conciliado). ______. Cx. 302 – Proc. 556/1978 (Assistência Judiciária: particular; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: procedente em parte). ______. Cx. 306 – Proc. 681/1978 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: conciliado). 184 ______. Cx. 326 – Proc. 594/1979 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: Ind. Calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: improcedente). ______. Cx. 328 – Proc. 664/1979 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: improcedente). ______. Cx. 334 – Proc. 886/1979 (Assistência Judiciária: STIAB; Tipo empresa: artefatos de borracha; Motivo: cancelamento suspensão; Resultado: procedente em parte). ______. Cx. 339 – Proc. 1084/1979 (Assistência judiciária: particular; Tipo empresa: banca; Motivo: anotação de CTPS; Resultado: arquivado por não comparecimento). ______. Cx. 355 – Proc. 421/1980 (Assistência Judiciária: particular; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: conciliado). ______. Cx. 336 – Proc. 776/1980 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: estabilidade provisória; Resultado: conciliado). ______. Cx. 374 – Proc. 1042/1980 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: improcedente). ______. Cx. 379 – Proc. 58/1981 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: cancelamento de suspensão; Resultado: improcedente). ______. Cx. 380 – Proc. 116/1981 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: cancelamento suspensão; Resultado: procedente). ______. Cx. 380 – Proc. 85/1981 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: improcedente). ______. Cx. 384 – Proc. 279/1981 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: conciliado). ______. Cx. 385 – Proc. 295/1981 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: cancelamento suspensão; Resultado: homologado). ______. Cx. 388 – Proc. 468/1981 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: conciliado). ______. Cx. 391 – Proc. 599/1981 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: cancelamento suspensão; Resultado: improcedente). ______. Cx. 393 – Proc. 691/1981 (Assistência Judiciária: particular; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: improcedente). ______. Cx. 405 – Proc. 1032/1981 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: conciliado). 185 ______. Cx. 442 – Proc. 210/1983 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: estabilidade provisória; Resultado: conciliado). ______. Cx. 442 – Proc. 216/1983 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: cancelamento suspensão; Resultado: procedente). ______. Cx 450 – Proc. 485/ 1983 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: conciliado). ______. Cx. 484 – Proc. 646/1984 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: cancelamento suspensão; Resultado: conciliado). ______. Cx. 485 – Proc. 670/1984 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: cancelamento de suspensão; Resultado: improcedente). ______. Cx. 489 – Proc. 793/1984 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: procedente). ______. Cx. 491 – Proc. 854/1984 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: cancelamento de suspensão; Resultado: improcedente). ______. Cx. 511 – Proc. 584/1979 (Assistência Judiciária: particular; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: procedente em parte). ______. Cx. 527 – Proc. 146/1985 (Assistência Judiciária: particular; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: Sine die). ______. Cx. 532 – Proc. 312/1985 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: procedente em parte). ______. Cx. 538 – Proc. 507/1985 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: cancelamento de suspensão; Resultado: procedente em parte). ______. Cx. 538 – Proc. 501/1985 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: Diferenças salariais; Resultado: arquivado). ______. Cx. 540 – Proc. 568/1985 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: improcedente). ______. Cx. 543 – Proc. 645/1985 (Três operários; Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: indenização adicional; Resultado: conciliado). ______. Cx. 545 – Proc. 691/1985 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: procedente em parte). ______. Cx. 557 – Proc. 1051/1985 (Assistência Judiciária: particular; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: conciliado). 186 ______. Cx. 575 – Proc. 395/1986 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: cancelamento de suspensão; Resultado: conciliado). ______. Cx. 584 – Proc. 775/1986 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: conciliado). ______. Cx. 590 – Proc. 961/1986 – anexos os processos 984/86 e 988/86 (Assistência Judiciária: particular; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: inquérito; Resultado: improcedente). ______. Cx. 657 – Proc. 1634/1987 (Assistência Judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: improcedente). ______. Cx. 467 – Proc. 1779/1955, Cartório 2º Ofício, (Assistência judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: procedente). ______. Cx. 474 – Proc. 2513/1959, Catório 2º Ofício, (Assistência judiciária: STICF; Tipo empresa: indústria de calçados; Motivo: diferenças salariais; Resultado: improcedente).