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O PROF. MÁRIO T. CHICÓ A PROPÓSITO DE «A ARQUITECTURA GÓTICA EM PORTUGAL» Quando se planeava este volume «in memoriam» do Professor Mário T. Chicó saiu a segunda edição da sua obra A Arquitectura Gótica em Portugal que pela primeira vez se publicara em 1954. Há muito que a edição, feita com aparato de luxo e em pequena tiragem, se encontrava esgotada. A nova publicação, devida a «Livros Horizonte», sem perda de qualidade documental e com imediato acrescento de moderna perfeição gráfica, no seu formato mais razoável e no seu preço acessível, tornou-se num verdadeiro instrumento de trabalho universitário—que já à sua origem fora mas não parecia. Instrumento de trabalho universitário. Detenhamo-nos nesta constatação que é extremamente importante. A bibliografia nacional de que dispõem os aprendizes de história de arte em Portugal é pràticamente nula — ou menos do que isso, na medida em que o pouco que existe em letra de forma que diga respeito aos seus programas leva a situações metodológicas lamentáveis. Por outras e talvez mais graves palavras: pouco há de válido, no domínio da história da arte em Portugal, nas épocas ditas clássicas, a não ser, e quase sòmente, uma ou outra monografia, limitada em páginas e em ambições culturais. É esta a triste verdade—e o tristíssimo resultado do total desprezo que desde sempre os poderes públicos, de todas as cores, manifestaram pela cultura artística por via historiográfica (para só desta falar, que de outras, estéticas ou oficinais, será pior ainda). No último quartel do século passado, em vão um homem culto e erudito se bateu por uma reforma de mentalidade em que ninguém estava nem havia de estar interessado. Chamava-se Joaquim de Vasconcelos, valia mais do que a teoria de medíocres que entretanto assumiam funções docentes—e morreu octogenário, sem conseguir ensinar o que sabia, deixando uma vasta obra que nem sempre pôde levar a cabo. Pelo seu saber e pela inteligência e fineza do seu entendimento problemático, Joaquim de Vasconcelos foi um caso único na historiografia portuguesa. Compiladores honestíssimos de documentos, ou brilhantes (sequer!) e apressados generalizadores, faltando a uns o que sobrava aos outros, lhe sucederam, sem lhe suceder, porque iam por outros caminhos muito portuguêsmente cómodos, e muito provincianamente arredados duma consciência cultural dos problemas que a historiografia da arte do nosso tempo põe, ou leva a pôr. Com uns ou outros defeitos a mancharem as qualidades que naturalmente também exibiam, quase não conheço excepção a este prolongado estado de coisas — que tende a eternizar-se em licenciaturinhas por tabela, sem saída prática numa docência ou numa pesquisa aplicadas. Um homem porém trabalhou em Portugal, que pôde ser a excepção desejada. Foi Mário T. Chicó, professor de História de Arte na Faculdade de Letras de Lisboa. Conheci-o bem, nunca foi meu professor, convidei-o a colaborar na direcção de uma obra de que me encarregaram, e com ele bastante aprendi, culturalmente. Aprendi, por exemplo, que nada se podia aprender em Portugal nesta matéria. Ele o dizia: «tudo quanto aprendi foi no estrangeiro»—e segui-lhe obrigatòriamente o exemplo. Ele dizia também, quando se falava em doutoramentos que não tinha: «mas quem é que pode dar o grau, em Portugal?» Ninguém, certamente—e não só, decerto, por razões burocráticas. Também nisso lhe segui a lição... Foi ele professor de duas espécies de alunos: uns, que se tornaram os melhores dentro do estreito quadro da investigação nacional (dois ou três); muitos outros que dele se queixavam, do seu irregular ritmo de trabalho, das suas faltas, do que supunham ser o seu desinteresse. É claro que uma acção docente é sempre discutível e, dela muito, ou tudo, há a exigir — o muito que Mário T. Chicó não dava, dando, para quem o merecesse, outras coisas que se encontram mais relacionadas com a cultura do que o número de capitéis da igreja românica de Santa Cunegundes... Mário T. Chicó teria sido um excelente professor a um nível superior que a faculdade não exigia nem podia suportar, dentro dos seus esquemas pós-liceais. Teria sido um mestre de pensamento e de cultura, capaz da mais sensível e da mais fina decifração de qualquer objecto artístico, plástico ou literário, numa leitura relacional, sempre situada para além da erudição que também tinha. Teria sido—mas não foi, a não ser para quem o conheceu bem e o respeitou. Não foi, nem poderia sê-lo nas tristes, e tragicómicas, condições de trabalho da nossa universidade — sem bibliotecas, sem laboratórios, sem grupos de trabalho, sem cultura anterior, sem saída profissional na especialidade que era a sua e amava profundamente. Diante do que a realidade lhe oferecia, que podia ele fazer? Disso tudo me lembro de o ter acusado e louvado, uma noite de deambulação, quando nos deixámos à entrada da minha porta. Mostrava ele então uma esperança assaz irónica não sei em que possível instituto. Concordou comigo, silenciosamente, olhando-me bem. Foi a última conversa que com ele tive. ... Saíu agora, dizia eu, ao princípio deste texto, a segunda edição da sua obra A Arquitectura Gótica em Portugal. Foi a única que publicou — o que é pouco, sem dúvida. Mas muito é, vendo o que ninguém mais deu à estampa. Fossem outras as suas condições de trabalho e outras coisas teria produzido —ele, e os discípulos que formaria. E também, muito provàvelmente, outros universitários que idênticos prejuízos de organização docente sofrem. O livro em questão é uma obra exemplar, tal como nos anos 50 devia ser pensada e escrita—com uma dimensão erudita e aguda consciência duma problemática gramatical que evoluía já então do campo da sintaxe das estruturas formais para o campo da semântica «significativa» dessas estruturas. A todo o momento, Mário T. Chicó relaciona, pondo nessa operação mental, e altamente sensível sempre, um sentido de pesquisa e uma formulação crítica que ultrapassa os dados imediatos, morfológicos (tantas vezes apenas aparentes) dos problemas. É um livro para ser aprendido e ser meditado, a um nível metodológico. Naturalmente que outras problemática pode ser articulada à de Mário T. Chicó, vinda de processos críticos mais recentemente explorados; naturalmente que hoje o livro se faria de outro modo, e o próprio autor seria provàvelmente levado a realizá-lo em outra perspectiva—agora que tantos estudos (e a grande exposição de Paris, em 1968) lançam nova luz sobre «a transformação social e espirítual» que carrega a estética gótica. De qualquer modo, esta obra sólida, inteligente e única no panorama da ciência histórica nacional, serve, melhor do que qualquer outro argumento, para fazer, muito sentidamente, o elogio póstumo do Professor Mário T. Chicó. JOSÉ-AUGUSTO FRANÇA