florianopolis - WordPress.com
Transcrição
florianopolis - WordPress.com
florianópolis rediscover rome O sossego prevalece em Lagoinha do Leste, a mais deserta e nativa das praias Floripa, lado B Praias lindas e vazias, traços fortes de cultura açoriana, descobertas para fazer. O lado sul da Ilha de Santa Catarina é o oposto da badalação da costa norte texto Luciano velleda | fotos Roberto seba 68 Fevereiro 2010 Fevereiro 2010 69 florianópolis Quase metade do sul de Floripa integra algum modelo de preservação ambiental Campeche não se atém para o fato de ela chamar-se Avenida Pequeno Príncipe. Assim como não percebem o marco que existe em homenagem aos antigos aviadores no local onde um dia existiu a pista de pouso do aeródromo, hoje confundida com um mero terreno baldio. De alguma forma, detalhes como esses demonstram o quanto a beleza e a história da parte sul de Floripa ainda é pouco conhecida dos exploradores do terceiro milênio que todo verão desembarcam aos milhares na ilha. O próprio Campeche, por anos alijado do turismo local, só agora começa a receber maior atenção dos visitantes e moradores da ilha. Fenômeno ainda a ser compreendido, por alguma razão os frequentadores da badalada praia Mole começaram a rumar suas cangas e cadeiras para uma área denominada de Riozinho do Campeche, novo point da galera bonita, de surfistas à procura de uma longa onda que, dizem, quando surge é das melhores do Brasil, e do pessoal do kitesurfe, agraciado por fortes ventos que costumam soprar na praia. Diante da orla, a poucos metros da areia, uma relíquia arqueológica de milhares de anos ainda é pouco conhecida por quem se limita a mergulhos no mar ou a ficar refestelado na areia: trata-se das muitas inscrições rupestres existentes na Ilha do Campeche. O silêncio da noite é rompido por um estridente barulho que vem do céu. Alguns poucos ilhéus agitamse em meio à escuridão profunda e, sem entender exatamente o que ocorre, aguardam ansiosos o desfecho da cena. Lampiões acesos com querosene e colocados no chão traçam a rota que deve ser seguida, a única iluminação existente a auxiliar o piloto que está prestes a pousar no campo do aeródromo do Campeche. A irregularidade do terreno é uma dificuldade adicional à perícia do aviador que está prestes a concluir um dos primeiros vôos noturnos da aviação mundial. A cena, brevemente descrita, refere-se ao ano de 1928, época em que a praia do Campeche, ao sul da ilha de Florianópolis, esteve na rota da Compagnie Générale Aéropostale, a empresa francesa de correio que traçara um extenso caminho aéreo entre a Europa e a América do Sul. A combinação de geografia com a limitada autonomia de voo dos aviões da década de 1920 pôs a praia catarinense no mapa da aviação entre os dois continentes. Naquele longínquo ano, Jean Mermoz foi o primeiro piloto a executar um voo noturno na América do Sul, tendo decolado do Rio de Janeiro e pousado no Campeche. Entretanto, foi um piloto colega seu que frequentou Florianópolis entre 1929 e 1931, que se tornaria não apenas um aviador reconhecido por suas habilidades técnicas, mas um dos escritores mais famosos da literatura mundial do século 20 – Antoine de Saint-Exupéry, autor do clássico O Pequeno Príncipe. A passagem de Saint-Exupéry na ilha catarinense é desconhecida da maioria dos turistas que anualmente frequentam as belas praias de Florianópolis. Mesmo os que transitam pela rua principal da praia do 70 Fevereiro 2010 No topo: opções próximas são os bares da Lagoa da Conceição. Acima: a pequena igreja do Campeche. À direita: as praias no sul da ilha, sempre livres de aglomerações O ilustre Zé Perri Controlada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que limita a 800 pessoas o número de visitantes que a ilha pode receber diariamente, os desenhos traçados em rochas e pedras são um prato cheio para antropólogos, arqueólogos e visitantes curiosos em ir além de uma beira de praia. O turismo ainda é incipiente, embora diversos monitores do Iphan recebam os visitantes e os incentivem a percorrer trilhas de cerca de 40 minutos para admirar os desenhos e conhecer o singular passado pré-histórico da ilha. Interessante é saber hoje que o destemor manifestado por Saint-Exupéry ao cruzar os ares em primitivas máquinas de voar, todavia, não o ajudou a aceitar o convite de um amigo pescador para atravessar o pequeno trecho de mar entre a praia e a ilha do Campeche para conhecer as mesmas inscrições rupestres. Histórias como essa, que relatam a curiosa amizade entre o famoso aviador e escritor francês com um humilde pescador chamado Manoel Rafael Inácio, o Deca, são contadas atualmente por seu filho Getúlio Manoel Inácio, de 58 anos, que encontrei junto a um rancho de pescadores na mesma praia frequentada por seu pai e o amigo voador. Com o intuito de preservar a memória paterna e da própria Ilha de Fevereiro 2010 71 florianópolis A amizade de Saint-Exupéry com um pescador é uma linda e pouco lembrada história dessa região Florianópolis, Getúlio lançou em 2001 o livro bilíngue intitulado Deca e Zé Perri, como era despretensiosamente chamado o autor de O Pequeno Príncipe. “No início eles se comunicavam por mímica e riam quando não se entendiam. Sempre que Saint-Exupéry estava no Campeche, eles gostavam de caçar e pescar juntos. Meu pai contava que ele escrevia o tempo todo”, diz ele, ex-oficial da Aeronáutica e professor de música. Raízes preservadas A observação atenta mostra ao viajante que, além das praias mais preservadas, a história de Florianópolis e os costumes dos ilhéus, conhecidos como “manezinhos”, são o diferencial do sul da ilha, em contraste com o agito e a badalação em clima internacional que caracteriza as praias do norte, como Canasvieiras, Jurerê e Ingleses, entre outras. Da Lagoa da Conceição para baixo, é onde podemos encontrar ainda hoje preservadas as bucólicas comunidades de pescadores, como as da praia da Armação ou de Pântano do Sul, ou, ainda, a origem da fundação da ilha, em 1526, pelo navegador veneziano Sebastião Caboto. Às margens do canal que a separa do continente, no bairro Ribeirão da Ilha, Caboto batizou-a de Ilha de Santa Catarina. Quase cinco séculos depois, as ruas de pedra do Ribeirão, com casas coloridas e bem preservadas, ainda expressam a nítida influência arquitetônica e cultural Muitos portuguesa. Essa região de não percebem a homenagem na Florianópolis, além de simbolizar o início da colonização da ilha no principal rua da praia do século 16, ampliada a partir de 1748 Campeche com o desembarque dos primeiros casais açorianos, transformou-se nos últimos dez anos numa saborosa rota gastronômica impulsionada pelo cultivo de ostras. Proliferam no Ribeirão da Ilha restaurantes cujo nome referem-se ao 72 Fevereiro 2010 Acima, da esquerda para a direita: detalhe do marco que reconstitui o traçado das pistas do aeródromo; e réplica do passaporte de Saint-Exupéry. Abaixo: Getúlio preserva a memória do famoso escritor na ilha Fevereiro 2010 73 florianópolis Na página ao lado: os milhares de bilhetes são, há mais de 30 anos, a principal decoração do famoso bar do Arante, no Pântano do Sul. À esquerda: Lagoinha do Leste, a mais bela praia da ilha É preciso dispender algum esforço para desfrutar as mais lindas praias de Florianópolis 74 Fevereiro 2010 cobiçado molusco, tais como: Ostras e Ostras Coisas; Ostras da Ilha; e Ostradamus. Esse último, possivelmente o mais fino e elegante, oferece aos seus selecionados clientes pratos de frutos do mar de altíssimo padrão, como o Pérola Negra (ostra com acetato balsâmico e suco de laranja), a Canoada (polvo defumado com molho de ostra e amêndoas) ou a impressionante Sinfonia dos Náufragos (camarões absurdamente gigantes assados na brasa). A qualidade e o sucesso do Ostradamus, situado numa área pouco conhecida dos visitantes que vão à capital catarinense, é melhor compreendida a partir do momento em que se conhece a História do dono Jaime José de Barcelos, 44 anos, e o modo peculiar como administra seu restaurante. Entre uma ostra e outra, com o acompanhamento de um bom vinho chardonnay fabricado em São Joaquim, escuto ele recordar o tempo em que trabalhara numa oficina mecânica até decidir vendê-la e mudar de vida. O novo caminho iniciou-se com uma pequena sorveteria. No ano seguinte, em 1997, acrescentou a venda de cachorro-quente. Logo depois expandiu para um humilde restaurante, cuja cozinha era a mesma de sua casa. Com o tempo, os turistas começaram a demandar por ostras. O ex-mecânico então teve um estalo, interessou- se pelo assunto e passou a estudar e pesquisar o cultivo do molusco em outras partes do mundo. “Botar dinheiro dentro d’água não é fácil. Eu sabia que as coisas tinham que acontecer com os pés no chão”, diz Jaime, para logo em seguida explicar que foi o turista de São Paulo que ditou o ritmo de seu negócio após a diminuição da presença de argentinos na ilha, resultado da crise econômica que abalou o país vizinho em 1998. Ecoturismo de alto nível “Quem impôs a nossa necessidade de investimento foi o próprio cliente, pois quem consome ostra tem um nível mais elevado, é mais exigente.” Desse modo, cada lucro gerado era investido novamente, seja na decoração, na arquitetura, em taças de cristal ou numa melhor carta de vinhos. Sentado numa mesa que lhe dava ampla visão do restaurante, com fone no ouvido e microfone na roupa, o astuto Jaime comunicava-se o tempo todo com seus cozinheiros e garçons, orientando-os sobre como atender determinados clientes de acordo com seus gestos e exigências. “Samuel (garçom), o senhor daquela mesa já te olhou duas vezes, vê lá o que ele quer”, disse, sem perder o fio da meada de nossa conversa. “Samuel, aquele senhor está com cara de feliz, vai lá e faz um agrado nele.” O plano para 2010 é possuir sua própria fazenda de ostra e propiciar ao cliente um tour para conhecer o cultivo antes de saboreá-la no restaurante. O restaurante de Jaime fica na rua principal do Ribeirão da Ilha, e diante de sua fachada passam os poucos turistas que se motivam a percorrer uma das mais interessantes trilhas de Florianópolis, que principia já no bairro de Caieira da Barra do Sul e termina na bela e distante praia de Naufragados, a última ao sul da ilha. Aqueles que, como eu, não possuem um elogiável preparo físico, precisarão de pouco mais de uma hora para vencer seus parcos 3 quilômetros de um considerável aclive seguido de um respeitável declive. Esbaforido, caminho os últimos metros da trilha parecendo algum marujo que após muito nadar anseia piedosamente pôr os pés em terra firme. Somente cerca de 15 famílias moram em Naufragados, uma praia de águas plácidas e areia branca, cuja tranquilidade é a principal recompensa de quem se habilita a visitá-la. Aos que preferem menos esforço, há a alternativa de desembarcar via mar, num passeio de barco de pouco mais de dez minutos – opção que, sensatamente, escolhi para o caminho de volta. O pescador Amâncio Varreira, que coordena o serviço, conta que a maioria dos turistas que escolhem passar o dia na praia são canadenses e europeus, principalmente os franceses, demanda que o faz planejar aprender a língua de Zé Perri em 2010. Não muito longe de Naufragados, os pescadores da comunidade do Pântano do Sul igualmente louvam a chegada dos Fevereiro 2010 75 florianópolis Aventura e alta gastronomia aguardam os viajantes que procuram o extremo sul da ilha meses de verão. Prejudicados pela época ruim para a pescaria, o sustento da família nesse período é garantido graças aos intrépidos visitantes que buscam conhecer a praia mais bela de Florianópolis: a Lagoinha do Leste, um dos últimos redutos de Mata Atlântica da ilha, alçada a parque municipal desde 1992. Com pouco mais de 1 quilometro de extensão, areia fofa e um mar que oscila muito, ora agradando banhistas e ora fazendo a alegria dos surfistas, a praia é de longe a mais virgem da ilha. Para conhecê-la, não há muitas opções: ou sobe-se num barco, ou é preciso ter bom fôlego e encarar morro acima a trilha que parte do Pântano do Sul, totalizando o trajeto em torno de uma hora e meia de uma forte pernada. Asas à imaginação “No verão não tem pescaria e o turismo safa a gente”, diz o pescador José Gonçalves, conhecido entre os amigos como o Zeca Piranha, precursor do transporte de barco de turistas do Pântano até Lagoinha, numa viagem de aproximadamente 25 minutos. Satisfeito com o trabalho que há dez anos é crucial para ele e outras 15 famílias de pescadores, Zeca e seu colega Gilson Nunes só lamentam que o período de proveito seja tão curto, já que nos outros meses do ano a escassez de visitantes e as difíceis condições do mar inviabilizam o serviço. Após passar a manhã na praia, deixo Lagoinha do Leste e regresso de barco para o Pântano do Sul. O silêncio na embarcação só não é completo devido ao barulho contínuo do motor. Em seu ponto mais alto do dia, o sol é abrasador e os poucos passageiros a bordo observam as escarpas da costa, que exibem a mata virgem e algumas apertadas fendas que se abrem abruptamente no mar. Observo com afinco a leveza do voo dos atobás que plainam em círculos a poucos metros do barco. Os pássaros espreitam a superfície do mar até que, num gesto brusco, 76 Fevereiro 2010 Na página ao lado: o ex-mecânico Jaime comanda o fino Ostradamus. À esquerda: a trilha rumo à praia de Naufragados. À direita, no topo: detalhe do antigo bairro de Ribeirão da Ilha recolhem as asas e mergulham velozmente n’água à procura de algum peixe desprevenido. Enquanto admiro o perfeito movimento aerodinâmico das aves, lembro-me dos primitivos aviões do início do século passado que impulsionaram o desenfreado sonho de voar do ser humano. Penso em Saint-Exupéry e no seu eterno pequeno príncipe a viajar pelos céus e visitar outros planetas e culturas. Semelhante à vida do ilustre personagem, o sul de Florianópolis permanece um vertiginoso devaneio à espera de quem queira vivenciá-lo. LP Fevereiro 2010 77