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florianópolis
rediscover
rome
O sossego
prevalece em
Lagoinha do
Leste, a mais
deserta e nativa
das praias
Floripa,
lado B
Praias lindas e vazias, traços fortes de
cultura açoriana, descobertas para fazer.
O lado sul da Ilha de Santa Catarina é
o oposto da badalação da costa norte
texto Luciano velleda | fotos Roberto seba
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florianópolis
Quase metade
do sul de Floripa
integra algum
modelo de
preservação
ambiental
Campeche não se atém para o fato de ela
chamar-se Avenida Pequeno Príncipe.
Assim como não percebem o marco que
existe em homenagem aos antigos aviadores
no local onde um dia existiu a pista de pouso
do aeródromo, hoje confundida com um
mero terreno baldio. De alguma forma,
detalhes como esses demonstram o quanto
a beleza e a história da parte sul de Floripa
ainda é pouco conhecida dos exploradores
do terceiro milênio que todo verão
desembarcam aos milhares na ilha.
O próprio Campeche, por anos alijado do
turismo local, só agora começa a receber
maior atenção dos visitantes e moradores
da ilha. Fenômeno ainda a ser
compreendido, por alguma razão os
frequentadores da badalada praia Mole
começaram a rumar suas cangas e cadeiras
para uma área denominada de Riozinho do
Campeche, novo point da galera bonita, de
surfistas à procura de uma longa onda que,
dizem, quando surge é das melhores do
Brasil, e do pessoal do kitesurfe, agraciado
por fortes ventos que costumam soprar na
praia. Diante da orla, a poucos metros da
areia, uma relíquia arqueológica de
milhares de anos ainda é pouco conhecida
por quem se limita a mergulhos no mar ou
a ficar refestelado na areia: trata-se das
muitas inscrições rupestres existentes na
Ilha do Campeche.
O
silêncio da noite é
rompido por um
estridente barulho que
vem do céu. Alguns
poucos ilhéus agitamse em meio à escuridão
profunda e, sem
entender exatamente o que ocorre,
aguardam ansiosos o desfecho da cena.
Lampiões acesos com querosene e
colocados no chão traçam a rota que deve
ser seguida, a única iluminação existente
a auxiliar o piloto que está prestes a pousar
no campo do aeródromo do Campeche.
A irregularidade do terreno é uma
dificuldade adicional à perícia do
aviador que está prestes a concluir
um dos primeiros vôos noturnos da
aviação mundial.
A cena, brevemente descrita, refere-se ao
ano de 1928, época em que a praia do
Campeche, ao sul da ilha de Florianópolis,
esteve na rota da Compagnie Générale
Aéropostale, a empresa francesa de correio
que traçara um extenso caminho aéreo
entre a Europa e a América do Sul. A
combinação de geografia com a limitada
autonomia de voo dos aviões da década de
1920 pôs a praia catarinense no mapa da
aviação entre os dois continentes. Naquele
longínquo ano, Jean Mermoz foi o primeiro
piloto a executar um voo noturno na
América do Sul, tendo decolado do Rio de
Janeiro e pousado no Campeche.
Entretanto, foi um piloto colega seu que
frequentou Florianópolis entre 1929 e
1931, que se tornaria não apenas um
aviador reconhecido por suas habilidades
técnicas, mas um dos escritores mais
famosos da literatura mundial do século 20
– Antoine de Saint-Exupéry, autor do
clássico O Pequeno Príncipe.
A passagem de Saint-Exupéry na ilha
catarinense é desconhecida da maioria dos
turistas que anualmente frequentam as belas
praias de Florianópolis. Mesmo os que
transitam pela rua principal da praia do
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No topo:
opções próximas
são os bares da Lagoa
da Conceição. Acima: a
pequena igreja do
Campeche. À direita: as
praias no sul da ilha,
sempre livres de
aglomerações
O ilustre Zé Perri
Controlada pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que
limita a 800 pessoas o número de visitantes
que a ilha pode receber diariamente, os
desenhos traçados em rochas e pedras são
um prato cheio para antropólogos,
arqueólogos e visitantes curiosos em ir
além de uma beira de praia. O turismo
ainda é incipiente, embora diversos
monitores do Iphan recebam os visitantes e
os incentivem a percorrer trilhas de cerca
de 40 minutos para admirar os desenhos e
conhecer o singular passado pré-histórico
da ilha. Interessante é saber hoje que o
destemor manifestado por Saint-Exupéry
ao cruzar os ares em primitivas máquinas
de voar, todavia, não o ajudou a aceitar o
convite de um amigo pescador para
atravessar o pequeno trecho de mar entre a
praia e a ilha do Campeche para conhecer
as mesmas inscrições rupestres.
Histórias como essa, que relatam a
curiosa amizade entre o famoso aviador e
escritor francês com um humilde pescador
chamado Manoel Rafael Inácio, o Deca, são
contadas atualmente por seu filho Getúlio
Manoel Inácio, de 58 anos, que encontrei
junto a um rancho de pescadores na
mesma praia frequentada por seu pai e o
amigo voador. Com o intuito de preservar
a memória paterna e da própria Ilha de
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A amizade de
Saint-Exupéry
com um pescador é
uma linda e pouco
lembrada história
dessa região
Florianópolis, Getúlio lançou em 2001 o
livro bilíngue intitulado Deca e Zé Perri,
como era despretensiosamente chamado o
autor de O Pequeno Príncipe. “No início
eles se comunicavam por mímica e riam
quando não se entendiam. Sempre que
Saint-Exupéry estava no Campeche, eles
gostavam de caçar e pescar juntos. Meu pai
contava que ele escrevia o tempo todo”,
diz ele, ex-oficial da Aeronáutica e
professor de música.
Raízes preservadas
A observação atenta mostra ao viajante
que, além das praias mais preservadas, a
história de Florianópolis e os costumes dos
ilhéus, conhecidos como “manezinhos”,
são o diferencial do sul da ilha, em
contraste com o agito e a badalação em
clima internacional que caracteriza as
praias do norte, como Canasvieiras, Jurerê
e Ingleses, entre outras. Da Lagoa da
Conceição para baixo, é onde podemos
encontrar ainda hoje preservadas as
bucólicas comunidades de pescadores,
como as da praia da Armação ou de
Pântano do Sul, ou, ainda, a origem da
fundação da ilha, em 1526, pelo navegador
veneziano Sebastião Caboto. Às margens
do canal que a separa do continente, no
bairro Ribeirão da Ilha, Caboto batizou-a
de Ilha de Santa Catarina. Quase cinco
séculos depois, as ruas de pedra do
Ribeirão, com casas coloridas e bem
preservadas, ainda expressam a nítida
influência arquitetônica e cultural
Muitos
portuguesa. Essa região de
não percebem
a homenagem na Florianópolis, além de simbolizar o
início da colonização da ilha no
principal rua da
praia do
século 16, ampliada a partir de 1748
Campeche
com o desembarque dos primeiros
casais açorianos, transformou-se nos
últimos dez anos numa saborosa rota
gastronômica impulsionada pelo cultivo
de ostras.
Proliferam no Ribeirão da Ilha
restaurantes cujo nome referem-se ao
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Acima, da
esquerda para a
direita: detalhe do marco
que reconstitui o traçado
das pistas do aeródromo; e
réplica do passaporte de
Saint-Exupéry. Abaixo:
Getúlio preserva a
memória do famoso
escritor na ilha
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Na página
ao lado: os
milhares de bilhetes
são, há mais de 30 anos,
a principal decoração do
famoso bar do Arante, no
Pântano do Sul. À
esquerda: Lagoinha do
Leste, a mais bela
praia da ilha
É preciso
dispender algum
esforço para
desfrutar as mais
lindas praias de
Florianópolis
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cobiçado molusco, tais como: Ostras e
Ostras Coisas; Ostras da Ilha; e
Ostradamus. Esse último, possivelmente o
mais fino e elegante, oferece aos seus
selecionados clientes pratos de frutos do
mar de altíssimo padrão, como o Pérola
Negra (ostra com acetato balsâmico e suco
de laranja), a Canoada (polvo defumado
com molho de ostra e amêndoas) ou a
impressionante Sinfonia dos Náufragos
(camarões absurdamente gigantes assados
na brasa). A qualidade e o sucesso do
Ostradamus, situado numa área pouco
conhecida dos visitantes que vão à capital
catarinense, é melhor compreendida a
partir do momento em que se conhece a
História do dono Jaime José de Barcelos,
44 anos, e o modo peculiar como
administra seu restaurante.
Entre uma ostra e outra, com o
acompanhamento de um bom vinho
chardonnay fabricado em São Joaquim,
escuto ele recordar o tempo em que trabalhara
numa oficina mecânica até decidir vendê-la e
mudar de vida. O novo caminho iniciou-se
com uma pequena sorveteria. No ano
seguinte, em 1997, acrescentou a venda de
cachorro-quente. Logo depois expandiu para
um humilde restaurante, cuja cozinha era a
mesma de sua casa. Com o tempo, os turistas
começaram a demandar por ostras. O
ex-mecânico então teve um estalo, interessou-
se pelo assunto e passou a estudar e pesquisar
o cultivo do molusco em outras partes do
mundo. “Botar dinheiro dentro d’água não
é fácil. Eu sabia que as coisas tinham que
acontecer com os pés no chão”, diz Jaime,
para logo em seguida explicar que foi o turista
de São Paulo que ditou o ritmo de seu negócio
após a diminuição da presença de argentinos
na ilha, resultado da crise econômica que
abalou o país vizinho em 1998.
Ecoturismo de alto nível
“Quem impôs a nossa necessidade de
investimento foi o próprio cliente, pois
quem consome ostra tem um nível mais
elevado, é mais exigente.” Desse modo,
cada lucro gerado era investido
novamente, seja na decoração, na
arquitetura, em taças de cristal ou numa
melhor carta de vinhos. Sentado numa
mesa que lhe dava ampla visão do
restaurante, com fone no ouvido e
microfone na roupa, o astuto Jaime
comunicava-se o tempo todo com seus
cozinheiros e garçons, orientando-os sobre
como atender determinados clientes de
acordo com seus gestos e exigências.
“Samuel (garçom), o senhor daquela mesa
já te olhou duas vezes, vê lá o que ele
quer”, disse, sem perder o fio da meada de
nossa conversa. “Samuel, aquele senhor
está com cara de feliz, vai lá e faz um
agrado nele.” O plano para
2010 é possuir sua própria
fazenda de ostra e propiciar
ao cliente um tour para
conhecer o cultivo antes de
saboreá-la no restaurante.
O restaurante de Jaime fica
na rua principal do Ribeirão da
Ilha, e diante de sua fachada passam
os poucos turistas que se motivam a
percorrer uma das mais interessantes
trilhas de Florianópolis, que principia já
no bairro de Caieira da Barra do Sul e
termina na bela e distante praia de
Naufragados, a última ao sul da ilha.
Aqueles que, como eu, não possuem um
elogiável preparo físico, precisarão de
pouco mais de uma hora para vencer seus
parcos 3 quilômetros de um considerável
aclive seguido de um respeitável declive.
Esbaforido, caminho os últimos metros da
trilha parecendo algum marujo que após
muito nadar anseia piedosamente pôr os pés
em terra firme. Somente cerca de 15 famílias
moram em Naufragados, uma praia de águas
plácidas e areia branca, cuja tranquilidade é
a principal recompensa de quem se habilita
a visitá-la. Aos que preferem menos esforço,
há a alternativa de desembarcar via mar,
num passeio de barco de pouco mais de dez
minutos – opção que, sensatamente, escolhi
para o caminho de volta. O pescador
Amâncio Varreira, que coordena o serviço,
conta que a maioria dos turistas que
escolhem passar o dia na praia são
canadenses e europeus, principalmente os
franceses, demanda que o faz planejar
aprender a língua de Zé Perri em 2010.
Não muito longe de Naufragados, os
pescadores da comunidade do Pântano do
Sul igualmente louvam a chegada dos
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Aventura e alta
gastronomia
aguardam os
viajantes que
procuram o
extremo sul da ilha
meses de verão. Prejudicados pela época
ruim para a pescaria, o sustento da família
nesse período é garantido graças aos
intrépidos visitantes que buscam conhecer
a praia mais bela de Florianópolis: a
Lagoinha do Leste, um dos últimos redutos
de Mata Atlântica da ilha, alçada a parque
municipal desde 1992. Com pouco mais de
1 quilometro de extensão, areia fofa e um
mar que oscila muito, ora agradando
banhistas e ora fazendo a alegria dos
surfistas, a praia é de longe a mais virgem
da ilha. Para conhecê-la, não há muitas
opções: ou sobe-se num barco, ou é preciso
ter bom fôlego e encarar morro acima a
trilha que parte do Pântano do Sul,
totalizando o trajeto em torno de uma hora
e meia de uma forte pernada.
Asas à imaginação
“No verão não tem pescaria e o turismo
safa a gente”, diz o pescador José
Gonçalves, conhecido entre os amigos
como o Zeca Piranha, precursor do
transporte de barco de turistas do Pântano
até Lagoinha, numa viagem de
aproximadamente 25 minutos. Satisfeito
com o trabalho que há dez anos é crucial
para ele e outras 15 famílias de pescadores,
Zeca e seu colega Gilson Nunes só
lamentam que o período de proveito seja
tão curto, já que nos outros meses do ano a
escassez de visitantes e as difíceis
condições do mar inviabilizam o serviço.
Após passar a manhã na praia, deixo
Lagoinha do Leste e regresso de barco para
o Pântano do Sul. O silêncio na
embarcação só não é completo devido ao
barulho contínuo do motor. Em seu ponto
mais alto do dia, o sol é abrasador e os
poucos passageiros a bordo observam as
escarpas da costa, que exibem a mata
virgem e algumas apertadas fendas que
se abrem abruptamente no mar. Observo
com afinco a leveza do voo dos atobás que
plainam em círculos a poucos metros do
barco. Os pássaros espreitam a superfície
do mar até que, num gesto brusco,
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Na página
ao lado: o
ex-mecânico Jaime
comanda o fino
Ostradamus. À esquerda:
a trilha rumo à praia de
Naufragados. À direita, no
topo: detalhe do antigo
bairro de Ribeirão
da Ilha
recolhem as asas e mergulham velozmente
n’água à procura de algum peixe
desprevenido.
Enquanto admiro o perfeito movimento
aerodinâmico das aves, lembro-me dos
primitivos aviões do início do século
passado que impulsionaram o desenfreado
sonho de voar do ser humano. Penso em
Saint-Exupéry e no seu eterno pequeno
príncipe a viajar pelos céus e visitar outros
planetas e culturas. Semelhante à vida do
ilustre personagem, o sul de Florianópolis
permanece um vertiginoso devaneio à
espera de quem queira vivenciá-lo. LP
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