André Breton - WordPress.com

Transcrição

André Breton - WordPress.com
A n d ré B reton
M
a n if e s t o d o
Segundo M
S u r r e a l ism o
a n if e s t o d o
S u r r e a l ism o
P e ix e S o l ú v e l
Ca r t a
V id e n t e s
às
P o siç ã o P o l ít ic a
S u r r e a l ism o
do
(e x c e r t o s )
P ro leg ô m eno s
do
Do
T e r c e ir o M
a um
S u r r e a l ism o
S urrealism o
ou
e m suas
S e r g io P a c h á
■ M A U
D
I
T
O
R
A
Rio de Janeiro
2001
N ão
O b ra s V iv a s
T r a d u ç ã o e N otas
E
a n if e s t o
« M A N IFESTES D U SURREALISME » de A ndré BR ETO N
W orld Copyright © S.N.E. Pauvert, 1962,
©Pauvert:, départem ent de la Librairie Arthème Fayard, 2000.
C et ouvrage, publié dans le cadre du program m e d’aide à la publication,
bénéficie du soutien du M inistère français des Affaires Etrangères.
Este livro, publicado no âmbito do programa de participação à publicação,
contou com o apoio do M inistério francês das Relações Exteriores
Coleção Fontes da Modernidade
Coordenação: G uilherm e Castelo Branco
Capa
Clarice Soter e Diana Acselrad * DUOTOMDESIGN
Catalogação na fonte do D epartam ento Nacional do Livro.
B844m
Breton, André, 1896-1966. Manifestos do Surrealismo / André
Breton ; tradução: Sergio Pachá. - Rio de Janeiro: N au Editora,
2001 .
396p.; l4X 21cm . - (Fontes da M odernidade)
ISBN 85-85936-43-6 (broch.)
Tradução de: Manifestes du Surréalisme
1. Surrealismo. I. Pachá, Sergio. II. T ítulo. III. Série: (Fontes da
M odernidade)
C D D -848
NAU
E D I T O R A
Editora Trarepa Ltda
Av. Nossa Senhora de Fátima, 155
Eng° Paulo de Frontin — RJ — CEP 26650-000
Telefax: (21) 2542 4272 — email: nau@ alternex.com.br
N ão encontrando este livro na livraria pedir via fax ou email.
Esta obra foi composta peia Editora Trarepa Ltda em Agaramond e impressa
na Gráfica Vozes em setembro de 2001 em papei off set 75 g/m 2 para o
miolo e papel cartão supremo 250 g/m 2 para a capa.
índice
Prefácio à reim pressão do M a n ife s to .......................
7
M an ifesto do S u rrealism o ..........................................
13
Peixe S o lú v e l..................................................................
65
A d v ertên cia p ara a reedição do
S eg u ndo M a n if e s to ................................................. 141
S eg u n d o M an ifesto do S u rre a lis m o ....................... 147
C a rta às V id e n te s ...........................................................2 2 7
Posição Política do Surrealism o (excertos)
P refácio ........................................................................... 2 3 7
Posição política da arte de h o je .................................. 24$
Discurso no congresso dos escritores.........................275
N o tempo em que os surrealistastinham razão..........2 8 7
Situação surrealista do objeto ......................................303
P rolegôm enos a u m Terceiro M anifesto do
Surrealism o ou N ã o ................................................. 335
D o Surrealism o em suas O bras V iv a s ..................... 35 3
N o t a s .................................................................................. 365
P r e f á c io
à r e im p r e s s ã o d o
(1929)
M
a n if e s t o
Era de prever que este livro mudasse e, na medida
em que punha em jogo a existência terrestre, responsabilizando-a, embora, por tudo o que ela comporta aquém e
além dos limites que se lhe costuma atribuir, que sua sorte
dependesse intimamente de minha própria sorte, que con­
siste, por exemplo, em ter e nao ter escrito livros. Os que
se me atribuem nao parecem exercer sobre mim qualquer
influência mais decisiva que muitos outros e, provavel­
mente, deles nao tenho o entendimento perfeito que ou­
tras pessoas podem ter. A despeito de quaisquer contro­
vérsias porventura suscitadas pelo Manifesto do Surrealismo
entre 1924 e 1929, e sem discutir a validade das posições
pró e contra, não padece dúvida que, alheia a esse debate,
a aventura humana continuava a se desenrolar com um
mínimo de riscos, de quase todos os lados ao mesmo tem­
po, segundo os caprichos da imaginação, que, sozinha,
torna as coisas reais. Deixar reeditar uma obra própria,
como se fosse uma obra alheia mais ou menos lida, eqüi­
vale a “reconhecer” já nem digo um filho de feições comprovadamente amáveis e compleição robusta, mas algo que,
não importa quão denodadamente tenha existido, já não
9
pode existir. Nada posso fazer, salvo condenar-me por, em
tudo e por tudo, não ter sido profeta. Não deixa de ser
atual a famosa pergunta que, “com voz muito velha e can­
sada”, Arthur Cravan fez a André Gide: “Senhor Gide, a
quantas andamos em relação ao tempo?” E Gide, sem se
dar conta de qualquer malícia: “Quinze para as seis”. Ah,
não se pode negar que vamos mal, vamos muito mal em
relação ao tempo.
Nesta, como em outras coisas, o reconhecimento e
a negação se interpenetram. Não entendo nem por que
nem como, sobretudo como, ainda estou vivo, nem, com
dobradas razões, aquilo que vivo. Embora de um sistema
em que creio e ao qual pouco a pouco me adapto, como o
surrealismo, reste e deva a restar sempre muito em que me
absorver, ainda assim jamais poderá ele fazer de mim aquele
que eu gostaria de ser, a despeito de toda a condescendên­
cia com que me trato. Condescendência relativa, se com­
parada com a que outros tiveram para comigo (ou para
com alguém que não sou eu, não sei). Nada obstante, es­
tou vivo e descobri até que tenho apego à vida. Quanto
mais me sucedeu atinar com razões para dar cabo dela,
tanto mais me surpreendi a adm irar algum taco do
assoalho: um taco em tudo como a seda, e uma seda tão
bela como a água. E eu amava essa lúcida dor, como se o
seu drama universal tivesse, então, passado através de mim
e, de repente, eu fosse digno dele. Mas eu a amava à luz,
como direi, de coisas novas que jamais vira brilhar assim.
Foi graças a isso que eu compreendi que, apesar de tudo, a
vida era dada, que uma força independente da força de
exprimir-se e fazer-se compreender espiritualmente presi­
10
dia, no que diz respeito ao homem vivo, a reações de inte­
resse inestimável cujo segredo morrerá com ele. Tal segre­
do não me desvendou a mim mesmo e o fato de reconhecer-lhe a existência em nada dim inui minha declarada
inaptidão para a meditação religiosa. Creio apenas que
entre meu pensamento, tal como se patenteia nos textos
que se lêem sob a minha assinatura, e minha pessoa, a
quem a natureza verdadeira de meu pensamento obriga
ainda não sei bem a que, há um irrevisível m undo de fan­
tasmas, de realizações de hipóteses, de apostas perdidas e
de mentiras, que, ao cabo de uma rápida exploração, re­
solvi não corrigir, por pouco que fosse, nesta obra. Para
tanto seria necessária toda a vaidade do espírito científico,
toda a puerilidade dessa necessidade de distância de que
resultam as ásperas circunspecções da História. Uma vez
mais, fiel a minha disposição de superar qualquer obstá­
culo sentimental, não me deterei a julgar os companhei­
ros da primeira hora que se intimidaram e arrepiaram ca­
minho, não me entregarei à vã substituição de nomes que
poderia dar a este livro um ar de atualizado. Arriscandome a lembrar apenas que os mais preciosos dons do espíri­
to não resistem à perda de uma partícula de honra, mais
não farei que afirmar minha confiança inabalável no prin­
cípio de uma atividade que nunca me decepcionou, que
me parece merecer uma dedicação mais generosa, absolu­
ta e louca do que nunca, pela simples razão de que somen­
te ela é capaz de outorgar, ainda que de longe em longe, os
raios transfiguradores de uma graça que, em tudo e por
tudo, insisto em opor à graça divina.
11
M a n ife s to d o S u r r e a lis m o
(1924)
Tão forte é a crença na vida, no que a vida tem de
mais precário, vale dizer, na vida real, que, no fim de con­
tas, essa crença se perde. O homem, esse sonhador defini­
tivo, cada dia mais descontente com seu destino, passa
penosamente em revista os objetos que foi levado a utili­
zar, objetos que lhe vieram ter às mãos por obra de sua
indolência ou de seu esforço, quase sempre de seu esforço,
visto que ele consentiu em trabalhar ou, quando menos,
não lhe repugnou tentar a sorte (aquilo que ele chama de
sorte!) Seu quinhão atual é uma grande modéstia: ele sabe
que mulheres possuiu, em que aventuras ridículas se me­
teu; pouco se lhe dá de sua riqueza ou pobreza, no que a
elas diz respeito, ele é como um recém-nascido; e, pelo
que toca à aprovação de sua consciência moral, estou pron­
to a admitir que ele a dispensa sem qualquer problema. Se
alguma lucidez lhe resta, a única coisa que ele pode fazer é
voltar-se para a própria infância, que, embora trucidada
pelo zelo de seus domesticadores, nem por isso lhe parece
menos rica em sortilégios. Aí a ausência de todo rigor co­
nhecido faculta-lhe a perspectiva de várias vidas vividas
simultaneamente; ele se enraíza nessa ilusão; e não quer
15
conhecer senão a facilidade momentânea, extrema, de to­
das as coisas. Todas as manhãs as crianças partem sem
qualquer inquietação. Tudo está perto, as piores condi­
ções materiais são excelentes. Os bosques são brancos ou
negros, nunca se dormirá.
Mas a verdade é que não seria possível ir tão longe,
não se trata apenas de distância. As ameaças se acumulam,
é preciso ceder e dar de mão parte do terreno por conquis­
tar. Aquela imaginação que não reconhecia limites, agora
só se lhe permite funcionar de acordo com as leis de uma
utilidade arbitrária; e ela, incapaz de sujeitar-se por muito
tempo a esse papel subalterno, por volta dos vinte anos
prefere, em geral, abandonar o homem a seu destino opa­
co.
Ainda que mais tarde ele tente remediar esse estado
de coisas, por sentir que, pouco a pouco, vieram a faltarlhe todas as razoes de viver, uma vez que se tornou inca­
paz de estar à altura de uma situação excepcional como o
amor, magros serão os resultados desse esforço. E a causa
disto é que, já agora, ele pertence de corpo e alma a uma
imperiosa necessidade prática, que não admite ser esque­
cida. A todos os seus gestos faltará amplidão; a todas as
idéias envergadura. De quanto lhe acontece ou pode acon­
tecer ele só perceberá o que relaciona aquele acontecimento
a uma multidão de acontecimentos semelhantes, aconte­
cimentos de que ele não participou, acontecimentos ma­
logrados. Q ue digo, num destes acontecimentos mais
tranqüilizadores em suas conseqüências do que os outros
é que se baseará seu julgamento. Em hipótese alguma ele
verá nisso a própria salvação.
16
Querida imaginação, aquilo que mais amo em ti é o
fato de não perdoares.
A palavra liberdade é a única que ainda me exalta.
Considero-a apta a sustentar, indefinidamente, o velho fa­
natismo humano. Ela responde, sem dúvida alguma, a
minha única aspiração legítima. No meio de todas as des­
graças que herdamos, cumpre reconhecer que nos foi dei­
xada a maior liberdade de espírito. Cabe-nos a nós não fazer
mau uso dela. Reduzir a imaginação à condição de escra­
va, ainda quando disso dependesse o que é grosseiramen­
te cham ado de felicidade, seria atraiçoar o suprem o
imperativo de justiça que se encontra no íntimo de cada
um. Somente a imaginação é capaz de mostrar-me aquilo
que pode ser e isto só já é razão bastante para que se levante
um pouco a terrível interdição; e é também razão bastante
para que eu me abandone a ela sem medo de enganar-me
(como se fosse possível enganarmo-nos ainda mais). Em
que ponto começa ela a ser nociva e deixa de existir a se­
gurança do espírito? Para o espírito a possibilidade de er­
rar nao decorrerá, antes, da contingência do bem?
Resta a loucura, “a loucura que se trancafia”, como
já houve quem dissesse tão acertadamente. Esta ou a ou­
tra... Sabem todos, com efeito, que a única razão pela
qual os loucos estão internados é um pequeno número de
atos legalmente repreensíveis e que, na ausência de tais
atos, a liberdade deles (aquilo que se vê da liberdade deles)
não estaria ameaçada. Que eles, em maior ou menor grau,
sejam vítimas de sua imaginação, estou pronto a admitilo, no sentido em que ela os induz a não observar deter­
minadas regras cuja inobservância faz com que nossa
17
espécie se sinta ameaçada, como todos têm o desprazer de
saber. Mas a profunda indiferença que eles demonstram
em relação às críticas que lhes fazemos e até mesmo às
diversas punições que lhes são infligidas leva a crer que
eles haurem um grande conforto na própria imaginação,
que eles saboreiam o próprio delírio a ponto de suporta­
rem que ele não tenha validade para os outros. E a verda­
de é que as alucinações, as ilusões, etc., constituem uma
fonte considerável de prazer. Também a sensualidade per­
feitamente ordenada tem aí um papel a desempenhar, e
estou certo de que muitas noites me agradaria domesticar
aquela linda mão que, nas últimas páginas de A Inteligên­
c i a deTaine, se entrega a curiosas transgressões. As con­
fidências dos loucos são algo que eu passaria toda minha
vida a suscitar. Eles são criaturas de uma honestidade es­
crupulosa cuja inocência só se pode comparar à minha.
Foi preciso que Colombo embarcasse na companhia de
loucos para descobrir a América. E é de ver como essa
loucura tomou corpo e tem durado.
Não é o temor da loucura que nos obrigará a deixar
a bandeira da imaginação a meio pau.
É preciso instruir o processo da atitude realista, de­
pois do processo da atitude materialista. Esta, mais poéti­
ca, aliás, que a precedente, pressupõe no hom em um
orgulho decerto monstruoso, mas não uma nova e com­
pleta decadência. Cabe ver nela, antes de mais nada, uma
feliz reação contra certas tendências ridículas do espiritu-
18
alismo. Enfim, ela não é incompatível com certa elevação
do pensamento.
A atitude realista, pelo contrário, inspirada, de San­
to Tomás de Aquino a Anatole France, no positivismo, se
me afigura hostil a qualquer arrancada intelectual e m o­
ral. Tenho-lhe horror, pois ela é fruto da mediocridade,
do ódio e de presunção rasteira. É dela que nascem, hoje
em dia, todos esses livros ridículos que insultam a inteli­
gência. Continuamente vemo-la fortalecer-se nos jornais,
pondo a perder os esforços da ciência e da arte, ao mesmo
tempo que se empenha em adular os gostos mais reles do
público: a clareza que tende a confundir-se com a toleima, uma vida digna de cães. Com tudo isso vem a sofrer a
atividade dos melhores espíritos: a lei do menor esforço
acaba por se impor a eles, como aos demais. Uma conse­
qüência divertida desse estado de coisas na literatura, por
exemplo, é a abundância de romances. Cada qual contri­
bui com sua pequena “observação”. Sentindo a necessida­
de de uma depuração, propôs Paul Valéry, recentemente,
reunir numa antologia o maior número possível de frases
de abertura de romances, na insanidade das quais ele de­
positava grandes esperanças. Buscar-se-iam exemplos nos
autores mais famosos. Tal idéia ainda honra a Paul Valéry,
que, não faz muito tempo, falando de romances, me asse­
verava que jamais se prestaria a escrever A marquesa saiu às
cinco horas. Mas terá ele mantido sua palavra?
Se o estilo de informação pura e simples, de que a
frase mencionada oferece um exemplo, é praticamente o
único que se encontra nos romances, tal fato, queiramos
ou não, se deve a que a ambição dos autores tem pernas
19
curtas. O caráter circunstancial, inutilmente particular, de
cada uma de suas anotações dá a impressão de que eles
estão se divertindo às minhas custas. Não me dispensam
de saber as menores hesitações da personagem: será louro?
Como se chamará? Encontrá-lo-emos pela primeira vez
no verão? Perguntas a que se responde como o acaso m an­
da e de uma vez por todas. O único poder discricionário
que me resta é o de fechar o livro, coisa que nunca deixo
de fazer nas imediações da primeira página. E as descri­
ções! Nada há que se compare à insignificância delas: mais
não são que imagens de catálogo sobrepostas, e o autor,
que se sente autorizado a amontoar tantas quantas lhe der
na telha, vale-se da oportunidade para me mostrar furti­
vamente seus cartões postais e se esforça por obter minha
anuência em matéria de lugares-comuns:
O pequeno cômodo onde o rapazfoi introduzido tinha
paredes forradas de papel amarelo: havia gerânios e cortinas
de musselina nas janelas; o sol poente lançava uma luz crua
sobre as coisas... O aposento não tinha nada de especial, Os
móveis, de madeira amarela, eram todos muito velhos. Um
sofá, com um grande encosto reclinado, uma mesa oval de­
fronte do sofá, um toucador e espelho encostados ao tremô,
cadeiras ao longo das paredes, duas ou três gravuras sem valor
que representavam jovens alemãs com pássaros nas mãos —eis
a que se reduzia o mobiliário}
Que o espírito se proponha, ainda que de passagem,
ocupar-se com semelhantes assuntos é coisa que não estou
disposto a admitir. Haverá quem sustente que essa descri­
20
ção de nível escolar está situada no lugar certo e que, a
esta altura do livro, o autor tem suas razões para me can­
sar com ela. Nem por isso ele deixa de perder seu tempo,
visto que me recuso a entrar nesse aposento. A preguiça
ou o cansaço dos outros não me farão mudar de idéia.
Tenho uma noção demasiado instável da continuidade da
vida para permitir-me nivelar meus melhores momentos
com os momentos de depressão e de fraqueza. Entendo
que é melhor calar-se quem nada está sentindo. E que
fique bem claro que eu não condeno a falta de originali­
dade enquanto falta de originalidade. Digo apenas que nao
tenho por hábito alardear os momentos nulos de minha
vida, que pode ser indigno de qualquer homem cristalizar
os momentos que lhe pareçam tais. Seja-me permitido nao
tomar conhecimento dessa descrição de interior: dessa e
de muitas outras.
Mas vamos devagar, que estou entrando no domí­
nio da psicologia, assunto sobre o qual não tenho a menor
intenção de fazer chistes.
O autor define o caráter de uma personagem e, uma
vez feito isto, põe seu herói a peregrinar pelo mundo. Haja
o que houver, esse herói, cujas ações e reações estão admi­
ravelmente previstas, não deve frustrar —ainda quando
pareça fazê-lo - os cálculos de que é objeto. Os vagalhões
da vida podem dar a impressão de arrebatá-lo, de enrolálo, de fazê-lo descer, mas ele nunca vai deixar de ser um
desses seres humanos formados. Simples partida de xadrez
que me desinteressa intensamente, visto que considero o
homem, seja ele quem for, um adversário medíocre, O
que eu não consigo tolerar são essas discussões chinfrins
21
sobre tal ou qual peripécia, uma vez que não se trata, aqui,
nem de ganhar nem de perder. E se nada disso vale a pena,
se a razão objetiva presta, neste caso, um terrível desserviço
aos que a ela recorrem, não seria melhor esquecer essas
categorias? “A diversidade é tão ampla que todos os tons
de voz, todos os modos de andar, tossir, assoar-se, espir­
rar. .. ”3 Se num cacho de uvas não há duas iguais, por que
tenho eu de descrever uma uva baseando-me em outra,
em todas as outras, ou supor que ela se presta a ser comi­
da? A mania incurável que consiste em reduzir o desco­
nhecido ao conhecido, ao classificável, só serve de
entorpecer os cérebros. O desejo de analisar prevalece so­
bre os sentimentos.4 Daí resultam longas exposições cuja
força de persuasão provém apenas de sua própria estra­
nheza e que só impressionam ao leitor por recorrerem a
um vocabulário abstrato, de resto muito mal definido. Se
as idéias gerais que a filosofia se propôs debater indicas­
sem por este modo sua incursão definitiva num domínio
mais amplo, eu seria o primeiro em me alegrar. Mas isto
ainda não passou de afetação: até aqui, as tiradas espiritu­
osas e as outras maneiras de salão estão apostadas em nos
escamotear o verdadeiro pensamento, mais interessado em
se descobrir a si mesmo do que em lograr triunfos duvido­
sos. Julgo que todo ato traz em si sua justificação, quando
menos para aquele que foi capaz de cometê-lo, e que ele é
dotado de um poder irradiante que a mais pequena glosa
pode enfraquecer. Por obra dessa glosa ele deixa até, em
certo sentido, de se produzir. E nada ganha em ser assim
distinguido. Os heróis de Stendhal estão sujeitos às apre­
ciações deste autor, apreciações mais ou menos felizes que
22
nada acrescentam à glória deles. Para os descobrirmos em
sua pura verdade temos de buscá-los onde Stendhal os
perdeu.
Vivemos, ainda, sob o reinado da Lógica: este é, na­
turalmente, o ponto aonde eu queria chegar. Mas, hoje
em dia, os métodos da Lógica só servem para resolver pro­
blemas de interesse secundário. O racionalismo absoluto,
ainda em moda, não nos permite considerar senão fatos
estreitamente relacionados com a nossa experiência. Por
outro lado, os fins lógicos nos escapam. A própria experi­
ência, escusa acrescentar, passou a ter seus limites estabe­
lecidos. Ela se move para lá e para cá dentro de uma jaula,
de onde é cada vez mais difícil fazê-la sair. Também ela se
funda na utilidade imediata e é guardada pelo senso co­
mum, Socolor de civilização, a pretexto de progresso, che­
gou-se a banir do espírito tudo que, com razão ou sem ela,
pode ser tachado de superstição ou de quimera; a proscre­
ver qualquer modo de busca da verdade que não se con­
forme ao uso geral. Foi, ao que parece, por obra do maior
acaso que recentemente se expôs à luz uma parte do uni­
verso mental - de longe a mais importante, segundo en­
tendo - pela qual já afetávamos desinteresse. Cum pre
sermos gratos às descobertas de Freud. Baseada nelas deli­
neia-se, enfim, uma corrente de opinião graças à qual o
explorador humano poderá ir mais longe em suas investi­
gações, uma vez que estará autorizado a não levar em con­
ta tão-somente as realidades sumárias. É possível que a
imaginação esteja prestes a recobrar seus direitos. Se as
profundezas de nossa mente albergam estranhas forças,
23
capazes de aumentar as forças da superfície ou de lutar
vitoriosamente contra elas, é do maior interesse capturálas: capturá-las para em seguida, se for o caso, submetê-las
ao controle da razão. Os próprios analistas nisto só têm a
ganhar. Mas é preciso notar que não há nenhum meio
designado a priori para levar a cabo este empreendimen­
to; que, até segunda ordem, ele pode ser considerado tan­
to da alçada dos poetas quanto da dos homens de ciência;
e que o seu bom êxito não depende dos métodos mais ou
menos arbitrários que serão seguidos.
Foi com inteira razão que Freud fez dos sonhos ob­
jeto de seu estudo crítico. Com efeito, é inadmissível que
parte tão considerável da atividade psíquica (já que, pelo
menos do nascimento do homem até à morte, o pensa­
mento não apresenta qualquer solução de continuidade, a
somatória dos momentos em que sonhamos, do ponto de
vista temporal, ainda que não consideremos senão os so­
nhos em estado puro, que ocorrem durante o sono, não é
inferior à somatória dos momentos de realidade, ou, mais
precisamente, dos momentos de vigília) tenha, até aqui,
atraído tão pouca atenção. A extrema diferença de impor­
tância, de gravidade, que aos olhos do observador ordiná­
rio têm os acontecimentos da vigília e os do sono sempre
me encheu de espanto. É que, ao cessar de dormir, o ho­
mem é, acima de tudo, um joguete da memória, a qual,
em circunstâncias ordinárias, se compraz em retraçar-lhe
debilmente as circunstâncias do sonho, em privar este úl­
timo de quaisquer conseqüências atuais e em fazer com
24
que o único determinante parta do ponto em que ele ima­
gina tê-lo deixado algumas horas antes: esta firme espe­
rança, aquela preocupação. Ele tem a ilusão de estar dando
prosseguimento a algo que vale a pena. E assim fica o so­
nho reduzido a um parêntese, como a noite. E, do mesmo
modo que ela, em geral eles nada elucidam. Esse estranho
estado de coisas dá ensejo a algumas reflexões:
I o Dentrò dos limites em que ele atua (permita-seme dizer atuar), o sonho, ao que tudo indica, é contínuo
e aparenta ser organizado. Somente a memória se arroga o
direito de nele introduzir cortes, de não levar em conta as
transições e de nos apresentar uma série de sonhos de pre­
ferência ao sonho. Da mesma forma, não temos, em qual­
quer momento que seja, senão uma noção distinta das
realidades, cuja coordenação só pode ser efetuada com a
intervenção da vontade.5 O que importa notar é que nada
nos autoriza a pressupor uma dissipação maior dos ele­
mentos constitutivos do sonho. Lamento tratar disto usan­
do de uma fórmula que, em princípio, exclui o sonho.
Q uando teremos lógicos e filósofos dormentes? Eu gosta­
ria de dormir, para poder entregar-me aos que dormem,
do mesmo modo como me entrego aos que me lêem, com
os olhos bem abertos: para pôr cobro à prevalência, nesta
matéria, do ritmo consciente de meu pensamento. Talvez
que o meu sonho da noite passada tenha dado prossegui­
mento ao da noite anterior e continue, na próxima noite,
com um rigor meritório. E bem possível, como se costuma
dizer. E, uma vez que está longe de provado que, ao fazer
isso, a “realidade” que me ocupa subsiste no estado de so­
25
nho, que ela não soçobra no imemoriável, por que não
hei de conceder ao sonho aquilo que, por vezes, recuso à
realidade, vale dizer, esse valor de certeza em si mesma
que, num momento futuro, não estará exposta ao meu
repúdio? Por que não hei de esperar das pistas que o so­
nho me fornece mais do que espero de um grau de consci­
ência cada vez mais elevado? Porventura também o sonho
não pode ser usado na resolução das questões mais funda­
mentais da vida? São essas questões as mesmas, num e
noutro caso e, porventura, já existem no sonho? Por acaso
está o sonho menos sobrecarregado de sanções do que tudo
o mais? Estou envelhecendo; e é possível que, mais do que
esta realidade a que suponho ater-me, seja o sonho, a in­
diferença que lhe voto, que me faz envelhecer.
2o Volto, uma vez mais, ao estado de vigília. Vejome obrigado a considerá-lo um fenômeno de interferên­
cia. A mente, nessas condições, não apenas revela uma
estranha tendência à desorientação (de que são indícios os
lapsos e enganos de toda sorte cujos segredos estamos co­
meçando a penetrar), mas também não parece, em seu
funcionamento normal, obedecer a algo diferente das su­
gestões que lhe vêm dessa noite profunda, cujo testemu­
nho invoco. Por mais condicionada que esteja, seu
equilíbrio é relativo. Ela mal ousa exprimir-se e, se o faz,
limita-se a constatar que esta idéia ou aquela mulher produz-lhe uma impressão. Q uanto a dizer que espécie de im­
pressão, isto já seria pedir demasiado: trata-se de uma
impressão subjetiva e nada mais. Esta idéia ou aquela
mulher perturba-a, indu-la a ser menos severa. Por um
segundo consegue isolá-la de seu dissolvente e depositá-la
26
no céu, sob a forma do belo precipitado que ela pode ser,
que ela é. Em desespero de causa, ela invoca o Acaso, essa
divindade mais obscura que as demais, ao qual atribui to­
dos os seus extravios. Quem me assegura que o ângulo
sob o qual se apresenta esta idéia que a sensibiliza, que
aquilo de que ela gosta no olhar daquela mulher não é,
exatamente, o que a vincula a seu sonho, o que a acorrenta
a dados que por culpa sua se perderam? E se tudo fosse
diferente, de que não seria ela capaz? Eu gostaria de lhe
dar a chave deste corredor.
3o O espírito do homem que sonha se satisfaz ple­
namente com o que lhe sucede. Já não se coloca a angus­
tiante questão da possibilidade. Mata, voa mais depressa,
ama tanto quanto desejares. E, se morreres, não estás cer­
to de que te hás de despertar de entre os mortos? Deixa-te
conduzir, os acontecimentos não consentem que os retar­
des. Tu não tens nome. A facilidade de tudo é inestimável.
Que razão, pergunto eu, que razão tão mais vasta que a
outra faz com que os sonhos pareçam tão naturais e faz
com que eu acolha uma quantidade de episódios cuja es­
tranheza me desconcertaria no momento mesmo.em que
escrevo estas palavras? Nada obstante, posso crer nos meus
olhos e orelhas: este belo dia raiou, aquele animal falou.
Se o despertar do homem é mais duro, se ele quebra
o encantamento demasiado rápido, tal acontece porque o
homem foi levado a fazer uma idéia insuficiente da expiação.
4o A partir do momento em que o sonho for sub­
metido a um exame metódico, em que, mediante um pro­
cesso ainda por descobrir, formos capazes de descrever o
27
sonho em sua inteireza (e isto pressupõe uma disciplina
da memória que abranja várias gerações; mas, ainda as­
sim, comecemos a registrar os fatos mais salientes), em
que sua curva se traçar com regularidade e amplidão inau­
ditas, será lícito esperar que os mistérios que não são mis­
térios cedam o passo ao grande Mistério. Eu creio que, de
futuro, será possível reduzir esses dois estados aparente­
mente tão contraditórios, que são o sonho e a realidade, a
uma espécie de realidade absoluta, de sobre-realidadef se
é lícito chamá-la assim. Foi para conquistá-la que me pus
a caminho, certo de não chegar a alcançá-la mas, ao mes­
mo tempo, dando tão pouca importância a minha morte
que não me privo de calcular antecipadamente algo do
prazer inerente à sua posse.
Conta-se que, em época não distante, o poeta SaintPol-Roux diariamente, antes de adormecer, mandava afi­
xar um aviso à porta de seu solar de Camaret: O p o e t a
ESTÁ TRABALHANDO.
Ainda haveria muito que dizer, mas eu não quis se­
não tocar de leve e de passagem num assunto que, por si
mesmo, pediria uma exposição muito mais longa e gran­
de rigor; mais tarde voltarei a ele. De momento, minha
intenção era denunciar o ódio ao maravilhoso que grassa
no espírito de certos indivíduos e o ridículo de que que­
rem cobri-lo. Digamo-lo claramente e de uma vez por to­
das: o maravilhoso é sempre belo, qualquer tipo de mara­
vilhoso é belo, somente o maravilhoso é belo.
28
No âmbito da literatura, só o maravilhoso é capaz
de fecundar as obras pertencentes a um gênero inferior,
como o romance e, de modo geral, tudo o que participa
do gênero narrativo. O Monge, de Lewis, prova-o admira­
velmente. O sopro do maravilhoso penetra-o de todo em
todo. M uito antes que o autor libere suas personagens de
quaisquer peias temporais, já se sente que elas estão pron­
tas a se comportar com uma altivez sem precedentes. Essa
paixão da eternidade que os agita incessantemente confe­
re acentos inesquecíveis ao seu e ao meu tormento. Se­
gundo entendo, este livro exalta apenas, do começo ao
fim e da maneira mais pura que se possa conceber, aquela
parte do espírito que aspira a desprender-se da terra; e
julgo que, uma vez desembaraçado de uma parte mínima
do enredo romanesco, tributário da moda de seu tempo,
converter-se-á num modelo de precisão e inocente gran­
deza.7 Parece-me que nunca se fez náda melhor e que a
personagem M atilda, em particular, é a criação mais
comovente que se possa creditar a esse tipo figurativo de
literatura. Ela não é tanto uma personagem quanto uma
tentação contínua. E, se uma personagem não é um a ten­
tação, que coisa será? Tentação extrema é o que ela é. O
ditado “A quem ousa nada é impossível” obtém, em O
Monge, demonstração cabal. Nele as aparições desempe­
nham um papel lógico, uma vez que o espírito crítico não
se apropria delas para contestá-las. Da mesma forma o
castigo de Ambrósio é tratado como algo legítimo, por­
quanto o espírito crítico finalmente o aceita como desfe­
cho natural.
29
Pode parecer arbitrário que eu proponha este mo­
delo, ao discorrer sobre o maravilhoso, de que tanto se
ocupam as literaturas nórdicas e as literaturas orientais,
para não dizer nada da literatura religiosa de todos os pa­
íses. A razão por que o faço é que a maioria dos exemplos
que essas literaturas poderiam fornecer-me estão eivados
de puerilidades, já que se destinam às crianças. Desde cedo
são estas apartadas do maravilhoso e, quando crescem, já
não retêm uma virgindade de espírito que lhes permita
sentir extremo prazer na leitura de Pele de Burro? Por mais
encantadores que sejam, o adulto julgaria rebaixar-se caso
se nutrisse de contos de fadas, e eu concedo que nem to­
dos são adequados à idade dele. A trama de inverossimilhanças tem de ser cada vez mais tênue, à medida que nos
tornamos mais velhos, e o fato é que até hoje estamos à
espera de aranhas capazes de tecê-la... Mas as faculdades
não mudam radicalmente. O medo, a atração do insólito,
os acasos, o gosto pelo luxo são recursos para os quais nunca
se apelará em vão. H á contos por escrever para os adultos,
contos ainda quase fabulosos.
O maravilhoso varia de época para época; ele parti­
cipa, misteriosamente, de uma espécie de revelação geral
de que só nos chegam pormenores: as ruínas românticas,
o manequim moderno ou qualquer outro símbolo apto a
mexer com a sensibilidade humana por algum tempo.
Nesses quadros que nos fazem sorrir pinta-se sempre, não
obstante, a irremediável inquietação humana, e esta é a
razão pela qual os tomo em consideração e os julgo inse­
paráveis de certas produções geniais que, mais do que ou­
30
tras, são por ela dolorosamente afetadas. São as forcas de
Villon, as gregas de Racine, os divãs de Baudelaire. Eles
coincidem com um eclipse do bom gosto que me sinto
talhado para suportar, já que, para mim, o bom gosto se
confunde com uma grande nódoa. No mau gosto do meu
tempo esforço-me por ir mais longe que todos os demais.
Tivesse eu vivido em 1820, a “Freira Sangrenta” seria coi­
sa minha, como meu seria o uso exagerado daquele “Dis­
simulemos” sonso e trivial de que fala o paródico Cuisin,
e meu ainda, uma e muitas vezes, o percorrer em metáfo­
ras gigantescas, como lá diz ele, todas as fases do “Disco
Prateado”. Por hoje estou pensando num castelo cuja me­
tade não está, necessariamente em ruínas; este castelo me
pertence, visualizo-o num recanto agreste, não muito lon­
ge de Paris. Suas dependências são inumeráveis e, no que
respeita ao interior, ele foi terrivelmente restaurado, de
sorte que nada ficasse a desejar em matéria de conforto.
H á carros estacionados junto à porta, escondida pela som­
bra das árvores. Alguns dos meus amigos vivem aqui em
caráter permanente: ali vai Louis Aragon, que está saindo
e mal tem tempo de saudar-vos. Philippe Soupault levan­
ta-se com as estrelas e Paul Eluard, nosso grande Eluard,
ainda não voltou. Lá estão Robert Desnos e Roger Vitrac
que tentam decifrar no parque um velho edito sobre os
duelos; Georges Auric, Jean Paulhan; Max Morise, que
rema tão bem, e Benjamin Péret, enfronhado em suas equa­
ções de pássaros; e Joseph Delteil; e Jean Carrive; e Georges
Limbour e Georges Limbour (há uma sebe inteira de
Georges Limbours); e Mareei Noll; lá estáT. Fraenkel ace­
nando-nos de seu balão cativo, e lá estão Georges Malkine,
31
A ntonin Artaud, Francis Gerard, Pierre Naville, J.-A.
Boiffard, e mais Jacques Baron e o irmão, ambos belos e
cordiais, e ainda tantos outros, além de mulheres simples­
mente deslumbrantes. Nada é bom demais para esses jo­
vens; para a riqueza seus desejos são outras tantas ordens.
Francis Picabia vem-nos visitar e, na semana passada, re­
cebemos um certo Mareei Duchamp, que ainda não co­
nhecíamos. Picasso está caçando nos arredores. O espírito
de desmoralização fixou residência no castelo e é com ele
que temos de lidar cada vez que vêm à baila as relações
com nossos semelhantes, mas as portas estão sempre aber­
tas e, se bem me explico, não começamos, aqui, por “agra­
decer’ aos outros. De resto, a soledade é vasta e não nos
encontramos toda a hora. Ao fim e ao cabo, o essencial
não consistirá em sermos senhores de nós mesmos, se­
nhores das mulheres, e também senhores do amor?
Condenar-me-ão por mentira poética: entrarão to­
dos a repetir que eu moro na Rua Fontaine e que desta
água não beberão. Ora que dúvida! Mas o castelo de que
lhes faço as honras, estarão eles tão certos de que não pas­
sa de uma imagem? E se, no fim de contas, meu palácio
realmente existisse? Meus hóspedes lá estão para prová-lo;
seus caprichos são a estrada luminosa a ele conducente.
Quando lá estamos, vivemos, realmente, de nossas fantasi­
as. E como poderia o que um de nós faz incomodar a
outro, lá, ao abrigo das perseguições sentimentais e no
ponto de encontro das oportunidades?
32
O homem propõe e dispõe. Somente dele depende
o pertencer a si próprio inteiramente, isto é, o manter em
estado anárquico o bando cada vez mais temível de seus
desejos. A poesia lho ensina. Nela se encontra a perfeita
compensação das misérias que sofremos. Ela também pode
ser uma organizadora, por pouco que, afligido por uma
decepção menos íntima, alguém se lembre de levá-la a sé­
rio. Oxalá chegue o dia em que ela decrete o fim do di­
nheiro e rompa sozinha o pão do céu na terra! Ainda haverá
assembléias nas praças públicas e movimentos nos quais
nunca esperastes participar. Adeus, escolhas absurdas, vi­
sões do abismo, rivalidades, aturadas paciências, fuga das
estações, ordem artificial das idéias, rampa do perigo, tem­
po para tudo! Basta que alguém se dê ao trabalho de pra­
ticar a poesia. Não caberá a nós, que dela já vivemos,
trabalhar por fazer prevalecer o que consideramos nosso
mais amplo informe?
Pouco importa a desproporção que porventura haja
entre esta defesa e a ilustração que se lhe seguirá. Tratavase de remontar às fontes da imaginação poética e, o que é
mais, ali permanecer. E isto é algo que não pretendo ter
feito. Quem quer que deseje estabelecer-se nessas regiões
distantes, onde tudo, a princípio, parece ir tão mal, preci­
sa assumir uma grande responsabilidade; e ainda mais se
quer levar consigo companhia. Ainda assim, nunca se pode
ter a certeza de estar realmente lá. Já que o aborrecimento
é inevitável, sempre se pode fazer alto em outro lugar. Mas
a verdade é que, hoje em dia, uma seta indica o rumo
dessas regiões e, para atingir-se o termo da jornada, mais
não é preciso que a resistência do viajor.
33
Conhece-se, com bastante segurança, o caminho a
seguir. N um estudo sobre o caso de Robert Desnos, inti­
tulado “Entrada dos Médiuns”,9 tive o cuidado de contar
como eu fora levado a “prestar atenção às frases mais ou
menos fragmentárias que, quando estamos inteiramente
sozinhos e prestes a adormecer, afloram à superfície da
mente sem que possamos determinar aquilo que as moti­
vou”. Eu acabava de tentar a aventura poética expondome ao menor número possível de riscos, ou seja, minhas
aspirações eram as mesmas de hoje, mas eu ainda acredi­
tava na lentidão da elaboração para preservar-me de con­
tatos inúteis, contatos que eu grandemente condenava.
Tratava-se de um pudor do pensamento, de que ainda
guardo vestígios. No fim da vida, provavelmente a duras
penas, chegarei a falar como toda a gente fala, a descul­
par-me por minha voz e o reduzido número de meus ges­
tos. A virtude da palavra (e, mais ainda, da escrita)
parecia-me consistir na faculdade de abreviar de maneira
surpreendente a narração (visto que havia narração) de
um pequeno número de fatos, poéticos ou não, cuja subs­
tância se identificava comigo. Eu chegara à conclusão que
Rimbaud fazia o mesmo. Era no tempo em que eu estava
compondo, com um empenho por variedade que merecia
melhor emprego, os últimos poemas de Montepio™ isto é,
em que eu conseguia tirar um partido incrível das linhas
brancas desse livro. Essas linhas eram o olho fechado a
certas operações mentais que eu julgava dever ocultar ao
leitor. Não era trapaça de minha parte, mas vontade de
chocar. Eu obtinha a ilusão de uma cumplicidade possí­
vel, que me era cada vez mais difícil dispensar. Pusera-me
34
a mimar desmedidamente as palavras pelo espaço que elas
admitiam ao seu redor, por seus inúmeros pontos de con­
tato com outras palavras que eu não pronunciava. O poe­
ma “Floresta N egra’11 deriva exatamente deste estado de
espírito. Seis meses passei a escrevê-lo e, em verdade, não
descansei um dia só que fosse, Mas isso tinha a ver com o
juízo que eu fazia, então, de mim mesmo; enfim, essas
coisas. Adoro estas confissões idiotas. Naquele tempo a
pseudopoesia cubista estava tentando implantar-se, mas
ela saíra desarmada do cérebro de Picasso e eu, de minha
parte, tinha a fama (e ainda a tenho) de mais enfadonho
que dia de chuva. Além do mais, eu começara a desconfiar
que, do ponto de vista poético, estava no caminho errado,
mas evitava comprometer-me como podia, desafiando o
lirismo por meio de definições e de receitas (os fenôme­
nos do dadaísmo estavam prestes a manifestar-se) e afe­
tando buscar na publicidade um uso para a poesia (eu
sustentava que o mundo acabaria não com um belo livro,
mas com um belo anúncio do inferno ou do céu).
Nessa mesma época, um homem pelo menos tão
enfadonho quanto eu, Pierre Reverdy, escrevia;
A imagem é uma criação pura do espírito.
Ela não pode nascer de uma comparação, mas da apro­
ximação de duas realidades mais ou menos afastadas.
Quanto mais as relações das duas realidades aproxi­
madas forem longínquas e justas, mais a imagem será forte,
mais força emotiva e realidade poética ela terá... etc.12
35
Estas palavras, embora sibilinas para os profanos,
eram poderosamente reveladoras e nelas meditei por m ui­
to tempo. Mas a imagem me escapava. A estética de
Reverdy, uma estética toda aposteriori, levava-me a tomar
os efeitos pelas causas. Foi a esta altura dos acontecimen­
tos que resolvi renunciar definitivamente ao meu ponto
de vista.
Uma noite, portanto, antes de adormecer, eu ouvi,
tão claramente articulada que era impossível mudar-lhe
uma só palavra, mas distante do som de qualquer voz,
uma frase estranha que chegava a mim sem qualquer ves­
tígio dos acontecimentos em que, de acordo com o teste­
m unho de minha consciência, eu andava envolvido, uma
frase que me pareceu insistente, uma frase - como direi? que se chocava contra a vidraça. Registrei o fato rapida­
mente e dispunha-me a pensar em outra coisa quando seu
caráter orgânico me chamou a atenção. Em verdade, era
uma frase surpreendente; infelizmente até hoje não consi­
go recordá-la, mas era qualquer coisa como “H á um ho­
mem cortado em dois pela janela”, e não pode haver dúvida
quanto a isto, uma vez que a acompanhava uma débil re­
presentação visual13 de um homem que andava mas que
fora truncado a meia altura por uma janela perpendicular
ao eixo de seu corpo. Tratava-se, sem sombra de dúvida,
do simples reerguimento no espaço de um homem debru­
çado à janela. Mas, visto que a janela havia acompanhado
o reerguimento do homem, capacitei-me de estar lidando
com uma imagem de tipo bastante raro e fui logo acome­
36
tido pela idéia de incorporá-ia aos meus materiais de cons­
trução poética. Mal lhe tinha eu dadò este crédito, ela ce­
deu o lugar a uma sucessão de frases separadas por curtas
pausas, as quais me surpreenderam quase tanto quanto
aquilo que as precedera e me causaram tamanha impres­
são de gratuidade que o domínio que eu até então exerce­
ra sobre mim mesmo pareceu-me ilusório e eu só me
dediquei a pôr termo à interminável querela dentro em
mim. 14
Como, naquela época, eu ainda andava muito inte­
ressado em Freud e familiarizado com seus métodos de
exame, que tivera oportunidade de empregar em alguns
pacientes durante a guerra, decidi obter de mim mesmo o
que se tenta obter deles, vale dizer, um monólogo enunci­
ado o mais depressa possível, sobre o qual o espírito críti­
co de quem o faz se abstém de emitir qualquer juízo, que
não se atrapalha com nenhuma inibição e corresponde,
tanto quanto possível, ao pensamento falado. Parecia-me,
e ainda me parece —o modo como me viera a frase sobre o
homem cortado é prova disso —que a velocidade do pen­
samento não é superior à da palavra e que ela não desafia
a língua, nem mesmo a pena que se move rápido.. Foi a
partir destes pressupostos que Philippe Soupault, a quem
eu pusera a par destas primeiras conclusões, e eu resolve­
mos começar a escrever com um louvável desprezo por
quaisquer resultados literários. No fim do primeiro dia
tínhamos coisa de cinqüenta páginas assim obtidas para
mutuamente nos lermos, comparando os resultados. Vis­
37
tos em conjunto, os resultados de Soupault e os meus eram
notavelmente parecidos: os mesmos defeitos de constru­
ção, falhas da mesma natureza, mas também, de parte a
parte, a ilusão de uma verve extraordinária, muita emo­
ção, um conjunto considerável de imagens de tal qualida­
de que teríamos sido incapazes de produzir uma só delas
de antemão, um gênero de pitoresco muito especial e, aqui
e acolá, alguma facécia penetrante. As únicas diferenças
entre os nossos textos pareceram-me dever-se aos respecti­
vos temperamentos de um e outro, sendo o de Soupault
menos estático que o meu e, se me é lícito criticá-lo leve­
mente, por ter ele cometido o erro de encimar certas pági­
nas com palavras à guisa de títulos, muito provavelmente
no intuito de ludibriar. Mas, por outro lado, é de justiça
reconhecer que ele sempre se opôs, com extrema energia,
à menor mudança, à menor correção de qualquer passa­
gem desta espécie que nao me parecesse particularmente
feliz. E ..nisto, sem dúvida alguma, ele estava coberto de
razão.15 Na verdade é muito difícil apreciar devidamente
os vários elementos ali presentes; pode-se até dizer que é
impossível apreciá-los à primeira leitura. A quem escreve,
esses elementos, aparentemente, são tão estranhos quanto
a qualquer outro e suscitam uma desconfiança natural.
Poeticamente falando, eles se recomendam sobretudo por
um altíssimo grau de absurdez imediata, sendo próprio
desta absurdez, quando examinada de mais perto, ceder o
passo a tudo que há de há de admissível e legítimo no
mundo: a divulgação de certo número de propriedades e
de fatos não menos objetivos, em suma, que os demais.
38
Em homenagem a Guillaume Apollinaire, que aca­
bara de morrer e que, em várias ocasiões, parecia-nos ter
obedecido a um impulso desta ordem, sem contudo sacrificar-lhe recursos literários medíocres, Soupault e eu
demos o nome de S u r r e a l i s m o ao novo modo de expres­
são pura que tínhamos à nossa disposição e que estávamos
impacientes por pôr ao alcance de nossos amigos. Creio
que já não vem ao caso, hoje em dia, voltar a discutir esta
palavra; creio também que a acepção em que a emprega­
mos prevaleceu, de m odo geral, sobre a acepção
apollinairiana. Ainda com mais razão teríamos podido
apropriar-nos da palavra S u p e r n a t u r a l i s m o , empregada
por Gérard de Nerval na dedicatória de As Filhas do Fogo.16
Com efeito, parece que Nerval possuiu em grau eminente
o espírito que reivindicamos como nosso, ao passo que
Apollinaire só possuiu a letra, ainda imperfeita, do surrea­
lismo e não foi capaz de traçar um bosquejo teórico de
seus princípios capaz de merecer nossa atenção. Eis aqui
duas frases de Nerval que, a este respeito, me parecem
muito significativas:
Vou explicar-lhe, meu caro Dumas, ofenômeno de que
você falava há pouco. Como você sabe, há certos narradores
que nada conseguem inventar sem se identificarem com as
personagens que imaginam. Você sabe com que convicção nosso
velho amigo Nodier contava como tivera a infelicidade de ser
guilhotinado na época da Revolução; e tão convincente era
ele que seus ouvintes acabavam porperguntar-sepor que meios
conseguira ter a própria cabeça recolada,
39
. . . E j á que você teve a imprudência de citar um dos
sonetos compostos nesse estado de devaneio S u p e r n a t u r a l i s t a ,
como diriam os alemães, é necessário que você os ouça a to­
dos. Eles são pouco mais obscuros que a metafísica de Hegel
ou os Memoriais de Swedenborg, eperderiam sua mágica se
explicados, caso isto fosse possível; reconheça-lhes ao menos o
mérito da expressão. ..17
Somente de muito má fé negar-se-nos-ia o direito
de usar a palavra SURREALISMO no sentido muito particu­
lar em que a entendemos, pois é sabido que, antes de nós,
esta palavra não estava em circulação. Defino-a, a seguir,
de uma vez por todas:
S u r r e a l i s m o , s.m. Automatismo psíquico em esta­
do puro mediante o qual se propõe exprimir, verbalmen­
te, por escrito ou por qualquer outro m eio , o
funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento,
suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a
qualquer preocupação estética ou moral.
Enciclopédia, Filosofia. O surrealismo baseia-se na
crença na realidade superior de certas formas de associa­
ção até aqui negligenciadas, na onipotência do sonho, no
jogo desinteressado do pensamento. Ele tende a arruinar
definitivamente todos os outros mecanismos psíquicos e a
substituí-los na resolução dos principais problemas da exis­
tência. Fizeram ato de Surrealismo A b soluto os Senho­
res Aragon, Baron, Boiffard, Breton, Carrive, Crevel,
D elteil, D esnos, Eluard, Gérard, Limbour, Malkine,
Morise» Naville, Noll, Péret, Picon, Soupault, Vitrac.
40
Até o presente estes parecem ser os únicos, e nao
poderia haver qualquer dúvida quanto a isto, nao fora o
caso fascinante de Isidore Ducasse, sobre o qüal careço de
informações. E, sem dúvida alguma, a não considerarmos
senão superficialmente os resultados por elês obtidos, nu­
merosos poetas poderiam passar por surrealistas, a come­
çar por Dante e, em seus melhores momentos, Shakespeare.
Ao longo das diversas tentativas de redução, a que me dedi­
quei, daquilo que, por abuso de confiança, costuma-se cha­
mar gênio, nada descobri que, em fim de contas, pudesse se
atribuído a algum outro processo.
As Noites de Young são surrealistas do começo ao
fim; infelizmente é um padre que fala, um mau padre,
sem dúvida, mas um padre.
Swift é surrealista na maldade.
Sade é surrealista no sadismo.
Chateaubriand é surrealista no exotismo,
C onstant é surrealista em política.
Hugo é surrealista quando não é tolo.
Desbordes-Valmore é surrealista no amor.
Bertrand é surrealista no passado.
Rabbe é surrealista na morte.
Poe é surrealista na aventura.
Baudelaire é surrealista na moral.
Rimbaud é surrealista em séu modo de vida e em outras
coisas.
Mallarmé é surrealista na confidência.
Jarry é surrealista no absinto.
Nouveau é surrealista no beijo.
41
Saint-Pol-Roux é surrealista no símbolo.
Fargue é surrealista na atmosfera.
Vaché é surrealista em mim.
Reverdy é surrealista em casa.
Saint-John Perse é surrealista à distância.
Roussel é surrealista na ánedota.
Etc.
Insisto em que nem sempre eles são surrealistas, vis­
to que é possível discernir em cada um deles certo núme­
ro de idéias preconcebidas das quais - com grande
ingenuidade! - eles não abriam mão. E não abriam mão
porque não tinham ouvido a voz surrealista, aquela mesma
que continua a pregar na véspera da morte e acima das
tem pestades, porque não queriam servir apenas de
orquestradores da maravilhosa partitura. Eles eram ins­
trum entos demasiado altivos e, por esta razão, nem sem­
pre produziram um som harmonioso.18
Mas nós, que não nos entregamos a nenhum esfor­
ço de filtragem, que em nossas obras nos convertemos em
receptáculos surdos de tantos ecos, modestos aparelhos registradores que não se deixam hipnotizar pelos desenhos
que produzem, é possível que estejamos servindo a uma
causa ainda mais nobre. Devolvemos, assim, com probi­
dade o “talento” que se nos atribui. Falem, se lhes apraz,
do talento dèste espelho, desta régua de platina, desta porta,
do céu.
N ós não temos talento, perguntem a Philippe
Soupault:
“A s manufaturas anatômicas e as moradias a preços
baixos destruirão as mais altas cidades. ”
42
A Roger Vitrac:
“M al invocara eu o mármore-almirante, este girou nos
calcanhares qual cavalo que empina diante da estrela polar e
me mostrou no plano de seu bicorne uma região onde eu de­
veria passar a vida. "
A Paul Eluard:
“É bem conhecida a história que conto, célebre o poe­
ma que releio: estou apoiado a uma parede, com orelhas
verdejantes e lábios calcinados. ”
A Max Morise:
“O urso das cavernas e seu companheiro, o alcaravão,
o vol-au-vent19 e o vento, seu criado de quarto, o grão Chan­
celer com sua chancelière,20 o espantalho de pardais e o par­
dal seu compadre, o tubo de ensaio e a agulha, sua filha, o
carnívoro e o carnaval, seu irmão, o varredor e seu monóculo,
o Mississípi e seu cãozinho, o coral e sua leiteira, o Milagre e
seu bom Deus, mais não lhes resta que desaparecer da super­
fície do mar.lx
A Joseph Delteil:
“Que lástima! Eu creio na virtude dos pássaros. E bas­
ta uma pena para me matar de rir. ”
A Louis Aragon:
“Durante uma interrupção da partida, enquanto os
jogadores se reuniam em torno de uma tigela de ponche fla ­
mejante, perguntei à árvore se ela ainda tinha sua fita ver­
melha. ”
43
E a mim mesmo, que não pude impedir-me de es­
crever as linhas serpentinas, desvairantes, deste prefácio.
Pergunte a Robert Desnos, que, de todos nós, é pro­
vavelmente aquele que mais se aproximou da verdade sur­
realista, aquele que, em obras ainda inéditas22 e ao longo
das múltiplas experiências a que se entregou, justificou
plenamente a esperança que eu depositava no surrealismo
e me intima a que ainda espere muito dele. Atualmente
Desnos fala surrealista à vontade. A prodigiosa agilidade
de que dá provas ao seguir oralmente o próprio pensa­
mento nos vale um número ilimitado de discursos esplên­
didos que se perdem, uma vez que Desnos tem coisas
melhores que fazer do que fixá-los por escrito. Ele é capaz
de ler em si mesmo como num livro aberto e nada faz
para salvar as páginas que se evolam ao vento de sua vida.
5ÍC3ICJlCilCJICJlCJjC ílC JIC JlCílCJlCJiC
)|C
SEGREDOS DA ARTE MÁGICA
SURREALISTA
Composição surrealista escrita,, ou primeiro e último esboço
Instale-se confortavelmente no lugar mais favorável
à concentração de sua mente e faça com que lhe tragam
material de escrita. Ponha-se no estado mais passivo ou
receptivo possível. Abstraia de seu gênio, de seu talento, e
também do gênio e do talento dos outros. Diga a si mes­
mo que a literatura é um dos mais tristes caminhos que
levam a tudo. Escreva rápido, sem qualquer assunto pre­
concebido, rápido bastante para não reter na memória o
44
que está escrevendo e para não se reler. A primeira frase
surgirá por si mesma, a tal ponto é verdade que, a cada
segundo, ocorre uma frase estranha ao nosso pensamento
consciente, que mais não quer do que se exteriorizar. E
m uito difícil pronunciar-se sobre o caso da frase seguinte;
ao que tudo indica, ela participa, ao mesmo tempo, de
nossa atividade consciente e da outra, se admitirmos que
o fato de ter escrito a primeira implica um mínimo de
percepção. Isto, aliás, deve importar-lhe pouco: é nessas
coisas que reside a maior parte do interesse suscitado pelo
jogo surrealista. É sempre verdade que a pontuação certa­
mente se opõe à continuidade absoluta do fluxo de que
nos ocupamos, embora ela pareça tão necessária quanto a
distribuição de nós numa corda em vibração. Prossiga en­
quanto sentir vontade de fazê-lo. Confie no caráter ines­
gotável do murmúrio. Se o silêncio ameaça estabelecer-se
em virtude de um erro seu, minúsculo que seja —um erro,
por exemplo, de desatenção - interrompa, sem hesitar,
uma linha demasiado clara. Logo depois da palavra cuja
origem lhe pareça suspeita escreva uma letra qualquer, a
letra L, por exemplo, sempre a letra 4 e traga de volta o
arbitrário impondo esta letra como inicial à palavra se­
guinte.
Como nunca mais se entediar em companhia de terceiros
É muito difícil. Nunca estejais em casa para quem
quer que seja e, vez por outra, quando ninguém tiver apa­
recido sem ter sido convidado, interrompendo-vos em
plena atividade surrealista e fazendo-vos cruzar os braços,
dizei: “Não importa, sem dúvida há melhores coisas a fa­
45
zer ou não fazer. O interesse da vida não se mantém. Sim­
plicidade, o que se passa em mim ainda é bastante para
me aborrecer!”, ou qualquer outra banalidade revoltante.
Como fazer discursos
Inscrever-se como candidato, pouco antes das elei­
ções, no primeiro país que houver por bem proceder a
este tipo de consulta. Cada um de nós tem em si uma
vocação de orador: tangas coloridas e vidrilhos de pala­
vras. Por meio do surrealismo ele cairá de improviso sobre
o desespero e sua pobreza. Uma noite, num palanque, re­
talhará sozinho o céu eterno, essa Pele do Urso.23 Fará
tantas promessas que o cumprimento de uma mínima fra­
ção delas seria causa de consternação. As reivindicações de
todo um povo dará um cunho parcial e derrisório. Fará
com que os mais irredutíveis adversários comunguem num
desejo secreto, que será causa de as pátrias irem pelos ares.
E a tudo isto ele chegará simplesmente deixando-se levar
pela palavra imensa, que se derrama em compaixão e rola
em ódio. Incapaz de errar, jogará sobre o veludo de todos
os erros. Será verdadeiramente eleito e as mais doces mu­
lheres o amarão com violência.
Como escreverfabos romances
Isto vale para qualquer um: se é este o desejo mani­
festo de vosso coração, queimai algumas folhas de lourei­
ro e, sem querer alimentar esse fogo ralo, por-vos-eis a
escrever um romance. O surrealismo vo-lo permitirá; bas­
tar-vos-á pôr a agulha de “Tempo Bom” sobre “Ação”, e
pronto. Aqui estão algumas personagens que procedem
de maneiras assaz discordantes; os nomes delas, em vosso
46
manuscrito, são uma questão de maiúsculas e elas se com­
portarão em relação aos verbos ativos com o mesmo de­
sembaraço com que o pronome impessoal Use comporta
em relação a palavras como pleut, y a, fa u t, etc.24 Elas os
controlarão, por assim dizer, e quando a observação, a re­
flexão e as faculdades de generalização não servirem de
nada, estai certo de que elas farão com que lhes atribuais
mil intenções que não tivestes. Deste modo, dotadas de
um pequeno número de características físicas e morais,
essas criaturas que, na verdade, vos devem tão pouco, não
se afastarão mais de uma linha de comportamento com a
qual não tendes de ocupar-vos. Daí resultará um enredo
mais ou menos hábil na aparência, justificando ponto por
ponto aquele desfecho comovente ou tranqüilizador que
não vos importa a mínima. Vosso falso romance simulará
às mil maravilhas um romance verdadeiro; ficareis rico e
todos estarão de acordo em reconhecer que tendes “gar­
ra”, visto que é dela que pende o vosso talento.25
Não é preciso acrescentar que, lançando mão de mé­
todo semelhante e com a condição de desconhecer aquilo
de que vierdes a falar, ser-vos-á possível, também, devo-'
tar-vos com sucesso à falsa crítica literária.
-Como fazer-se perfeitamente visível a uma mulher que
passa na rua
47
Contra a morte
O surrealismo introduzir-vos-á na morte, que é uma
sociedade secreta. Ele enluvará vossa mão, ali sepultando
o M profundo com o qual começa a palavra Memória.
Não vos esqueçais de formular adequadamente vossas dis­
posições testamentárias: eu, por exemplo, peço que me
transportem ao cemitério num caminhão de mudanças. E
que os meus amigos destruam, até ao último exemplar, a
edição do Discurso sobre a Escassa Realidade,26
A linguagem foi dada ao homem para que dela use
surrealisticamente. Na medida em que lhe é indispensável
fazer-se entender, ele consegue, bem ou mal, exprimir-se
e, deste modo, assegurar a execução de algumas das fun­
ções mais grosseiras. Falar, escrever uma carta não envol­
vem, para ele, nenhuma dificuldade real, desde que, ao
fazê-lo, ele não vise a algum alvo acima da média, isto é,
desde que se limite a conversar (pelo prazer de conversar)
com alguém. Ele não está preocupado com as palavras que
lhe ocorrerão, nem com a frase que se seguirá à que está
acabando. A uma pergunta muito simples ele será capaz
de responder à queima-roupa. Se for isento de cacoetes
contraídos no comércio com outras pessoas, poderá pro­
nunciar-se espontaneamente sobre um determinado nú­
mero de assuntos; para isso não lhe é necessário “dar sete
voltas à língua” ou formular de antemão o que quer que
seja. Agora, quem o terá convencido de que esta faculda­
de de exprimir-se de improviso lhe prestará maus serviços
48
quando ele desejar estabelecer relações mais delicadas? Não
há assunto algum sobre o qual ele deva recusar-se a falar
ou escrever de improviso. O único efeito de escutar-se ou
ler-se é fazer cessar aquele socorro oculto, admirável. Não
me dou pressa em compreender-me (que importa! eu sem­
pre me compreenderei). Se esta ou aquela frase minha me
causa uma leve decepção no momento exato em que a
formulo, fio-me na frase seguinte para reparar-lhe os de­
feitos e abstenho-me de recomeçá-la ou aperfeiçoá-la. So­
mente a menor perda de ímpeto poderia ser-me fatal As
palavras, os grupos de palavras que se sucedem dão prova
da maior solidariedade entre si. Não me cabe a mim favo­
recer a uns em detrimento de outros. É a uma espécie de
compensação miraculosa que cabe intervir —e ela inter­
vém.
Não somente esta linguagem sem reservas que eu
tento tornar sempre válida, que me parece adaptar-se a
todas as circunstâncias da vida, não somente esta lingua­
gem não me priva de nenhum dos meus recursos, senao
também põe-me à disposição uma extraordinária lucidez,
e isto naquele âmbito onde eu menos esperaria sua ajuda.
Irei mesmo ao ponto de dizer que ela me instrui e, com
efeito, já me sucedeu empregar surrealisticamente pala­
vras cujo significado eu esquecera. Posteriormente vim a
verificar que as empregara estritamente de acordo com sua
definição. Isto nos levaria a crer que não “aprendemos”,
que o que sempre fazemos é “reaprender”. Foi assim que
tornei familiares certos giros de frase bem achados. E já
nem falo da consciência poética dos objetos, que só vim a
49
adquirir mediante um contato espiritual com eles, uma e
muitas vezes repetido.
É, ainda, ao diálogo que as formas da linguagem
surrealista melhor se adaptam. Ali dois pensamentos se
confrontam; enquanto um se manifesta, o outro se ocupa
dele, mas de que maneira o faz? Supor que ele o incorpora
implicaria admitir que, durante algum tempo, é-lhe intei­
ramente possível viver do outro pensamento, o que é im­
provável. E, na verdade, a atenção que ele lhe presta é toda
exterior; ele só tem tempo de aprovar ou desaprovar, ge­
ralmente de desaprovar, com toda a consideração de que o
homem é capaz. Além disso, este tipo de linguagem não
permite ir ao fundo da questão. M inha atenção, em poder
de uma solicitação que não lhe é lícito repelir, trata o pen­
samento adverso como inimigo; na conversação trivial ela
o “repreende” quase sempre pelo que diz respeito às pala­
vras e às figuras que emprega; e habilita-me a delas tirar
partido na réplica, desfigurando-as. Tanto assim é que,
em certos estados mentais patológicos, nos quais os dis­
túrbios sensoriais absorvem toda a atenção do enfermo,
este, que continua a responder às perguntas, limita-se a
apropriar-se da última palavra proferida à sua frente ou
do último membro de frase surrealista de que ele encontra
vestígio ém sua mente:
“Quantos anos você tem? —Tem.” (Ecolalia.)
“Como é o seu nome? —Quarenta casas.” (Sintoma
de Ganse, ou respostas desconexas.)
50
Não há conversação alguma em que não ocorra algo
desta desordem. O esforço para sermos sociáveis, que em
tal circunstância predomina, e o fato de já estarmos fami­
liarizados com a coisa conseguem, sozinhos, no-la dissi­
mular por algum tempo. É também a grande fraqueza do
livro o entrar constantemente em conflito com o espírito
de seus melhores leitores, vale dizer, dos mais exigentes.
No breve diálogo entre médico e alienado, que alinhavei
mais acima, é o alienado, aliás, que leva a melhor. Pois é
ele que, com suas respostas, força a atenção do médico e,
além disso, não é ele quem faz as perguntas. Isto significa
que, naquele momento, o pensamento dele é o mais for­
te? Talvez. Ele tem a liberdade de já não levar em conta
seu nome e sua idade.
O surrealismo poético, ao qual está consagrado este
estudo, empenhou-se, até aqui, em restabelecer o diálogo
em sua verdade absoluta, liberando os dois interlocutores
das normas da boa educação. Cada um deles mais não faz
que dar seguimento ao próprio solilóquio, sem dele tentar
auferir um prazer dialético particular e sem tentar imporse no que quer que seja a seu vizinho. As observações for­
muladas não têm por objetivo, como sói acontecer, o
desenvolvimento de uma tese, por mais insignificante que
seja; elas são, tanto quanto possível, desprovidas de finali­
dade. Q uanto à resposta que requerem, ela é, em princí­
pio, totalmente indiferente ao amor próprio de quem falou.
As palavras, as imagens não pretendem ser mais do que
trampolins para o espírito de quem ouve. É assim que, em
51
Os Campos Magnéticos,27a primeira obra puramente sur­
realista, devem apresentar-se as páginas reunidas sob o tí­
tulo Barreiras,28 nas quais Soupault e eu mostramos esses
interlocutores imparciais.
O surrealismo nao permite aos que a ele se consa­
gram abandoná-lo quando lhes apetece fazê-lo. Tudo leva
a crer que ele atua sobre a mente à maneira dos entorpe­
centes; como eles, cia uma dependência e pode induzir o
homem a terríveis revoltas. Será, também, um paraíso dos
mais artificiais e o prazer que dele deriva é da mesma na­
tureza que o descrito por Baudelaire ao discorrer sobre os
outros.29 Assim, a análise dos efeitos misteriosos e dos prazeres particulares que ele pode gerar - por mais de um
lado o surrealismo se apresenta como um vício novo, que
nao parece dever restringir-se a uns poucos homens; como
o haxixe, ele pode satisfazer a todos os gostos —tal análise
não pode faltar a este estudo.
I o Passa-se com as imagens surrealistas o mesmo que
com as imagens do ópio, que o homem já não evoca, mas
que “a ele se oferecem espontânea, despoticamente. Ele já
não consegue livrar-se delas; pois a vontade já não tem
força e não governa mais as faculdades.”30 Resta saber se as
imagens fòram alguma vez “evocadas”. Aos que se atêm,
como eu, à definição de Reverdy, não parece possível apro­
ximar voluntariamente aquilo que ele chama de “duas re­
alidades distantes”. Num a palavra, a aproximação ou se
faz, ou não se faz. Quanto a mim, nego categoricamente
que, em Reverdy, imagens como
52
Há no regato uma canção que flu i
ou
O dia se abriu como uma toalha branca
ou
O mundo entra num saco
apresentem o mais pequeno grau de premeditação. É fal­
so, na minha opinião, pretender que a mente ‘captou as
relações” das duas realidades confrontadas. Para começo
de conversa, nada foi por ela captado conscientemente.
Foi da aproximação, de certo modo fortuita, dos dois ter­
mos que jorrou uma luz particular, a luz da imagem, à
qual nos mostramos infinitamente sensíveis. O valor da
imagem depende da beleza da centelha obtida; ela é, por
conseguinte, função da diferença de potencial dos dois
condutores. Quando esta diferença mal existe, como na
comparação,31 a centelha não se produz. Ora, o homem
não pode, segundo entendo, efetuar a aproximação de duas
realidades tão distantes. O princípio da associação de idéias,
tal como se nos apresenta, a isto se opõe. A alternativa
seria retornarmos a uma arte elíptica, que Reverdy conde­
na tanto quanto eu. Cumpre, pois, admitir que os dois
termos da imagem não são deduzidos um do outro pela
mente tendo em vista a centelha a produzir: eles são pro­
dutos simultâneos da atividade que chamo de surrealista,
limitando-se a razão a constatar e apreciar o fenômeno
luminoso.
E, assim como o comprimento da centelha aumen­
ta quando ela se produz num ambiente de gases rarefeitos,
assim também a atmosfera surrealista criada pela escrita
mecânica, que tentei pôr ao alcance de todos, presta-se à
53
produção das mais belas imagens. Pode-se mesmo dizer
que, nessa corrida vertiginosa, as imagens aparecem como
as únicas balizas da mente. Pouco a pouco ela se convence
da realidade suprema de tais imagens. Recebendo-as, a
princípio, passivamente, logo percebe que elas lisonjeiam
a razão e alargam, outro tanto, seu conhecimento. Enfim,
ela toma conhecimento das extensões ilimitadas onde se
manifestam seus desejos, onde os prós e os contras se re­
duzem sem cessar, onde sua escuridade não a trai. Ela vai,
transportada por essas imagens que a arrebatam, que mal
lhe dão tempo de assoprar o fogo de seus dedos. É esta a
mais bela das noites, a noite dos relâmpagos: comparado
com ela, o dia é como a noite.
Os inúmeros tipos de imagens surrealistas requere­
riam uma classificação que, neste momento, nao me pro­
ponho tentar. Agrupá-las consoante suas afinidades
particulares levar-me-ia muito longe; o que eu quero to­
mar em consideração, essencialmente, são suas virtudes
comuns. Para mim, não o nego, a mais forte é a que apre­
senta o mais alto grau de arbitrariedade; a que requer mais
tempo para ser traduzida em linguagem prática, seja por
conter uma enorme dose de contradição aparente, seja por
um de seus termos estar curiosamente oculto, seja por,
tendo-se apresentado como sensacional, parecer que ter­
mina fracamente (que fecha, bruscamente, o ângulo de
seu compasso), seja por tirar de si mesma uma justificati­
va ^o???Wderrisória, seja por ser de natureza alucinatória,
seja por, muito naturalmente, conferir ao abstrato a más­
cara do concreto ou vice-versa, seja por implicar a nega­
54
ção de alguma propriedade física elementar, seja por pro­
vocar o riso. Eis aqui, nesta ordem, alguns exemplos:
O rubi do champanha. Lautréamont.
Beio como a lei da suspensão do desenvolvimento do
peito nos adultos cuja propensão ao crescimento não tem rela­
ção com a quantidade de moléculas que seu organismo assi­
mila. Lautréamont.
Uma igreja se erguia resplendente como um sino.
Philippe Soupault.
No sono de Rrose Sélavy há um anão saído de um poço
que vem de noite comer seu pão. Robert Desnos.
O orvalho com cabeça de gata ninava-se na ponte. An­
dré Breton.
Um pouco à esquerda, em meu firmamento adivinha­
do, percebo —mas, sem dúvida, é apenas um vapor de sangue
e de assassínio — o brilhante despolido das perturbações da
liberdade. Louis Aragon.
N a floresta incendiada
Os leões estavam frescos. Roger Vitrac.
A cor das meias de uma mulher não é, necessariamen­
te, à imagem de seus olhos, o que levou um filósofo, cujo nome
não vem ao caso, a dizer: “Os cefalópodes têm mais razões
para odiar o progresso que os quadrúpedes. ”Max Morise.
I o Queiramos ou não, temos aqui com que satisfa­
zer a várias exigências da mente. Todas estas imagens pa­
recem dar testemunho de que a mente está amadurecida
55
para outras coisas, além dos prazeres benignos a que, em
geral, se entrega. E este o único modo de que dispõe para
usar vantajosamente da quantidade ideal de acontecimen­
tos que carrega.32 Estas imagens dão-lhe a medida de sua
dissipação habitual e das inconveniências que ela acarreta.
Em última análise não é mau que elas a desconcertem,
pois desconcertar a mente é o mesmo que torná-la consci­
ente de seu erro. As frases que eu cito concorrem grande­
mente para isto. Mas a mente que as saboreia tira desse
fato a certeza de estar no caminho certo\ por si mesma ela
não pode tornar-se ré de cavilação; e nada tem a temer,
pois, além disso, empenha-se em abranger tudo.
2o A mente que mergulha no surrealismo revive com
exaltação a melhor parte da própria infância. É um pouco
como a certeza de alguém que se está afogando e repassa,
em menos de um minuto, todos os momentos insuperá­
veis de sua vida. Dir-me-ão que isto não é muito alentador. Mas eu não estou empenhado em alentar os que me
disserem tal coisa. Das lembranças da infância e de algu­
mas outras provém uma sensação de despertencimento e,
em seguida, de transviamento que eu considero a mais fe­
cunda possível. É a infância, provavelmente, o que mais
se aproxima da “verdadeira vida”; a infância além da qual
o homem só dispõe, afora o seu salvo-conduto, de alguns
bilhetes de entrada grátis; a infância na qual, entretanto,
tudo concorria para a posse eficaz e sem riscos de si mes­
mo. Graças ao surrealismo parece que estas oportunida­
des estão de volta. É como se ainda corrêssemos para a
nossa salvação ou perdição. Revivemos na sombra um ter­
56
ror precioso. Graças a Deus, por enquanto é apenas o Pur­
gatório, Atravessamos sobressaltados o que.òs ocuitistas
chamam de paisagens perigosas. Atraio com minha passa­
gem monstros entocaiados; ainda não estão demasiado
mal-intencionados em relação a mim, e eu, porque os temo,
não me sinto perdido. Eis “os elefantes com cabeça de
mulher e os leões voadores” que, há tempos, Soupault e
eu tanto temíamos encontrar, eis o “peixe solúvel” que
ainda me apavora um pouco. PEIXE SOLÚVEL, não serei eu
o peixe solúvel, eu nasci sob o signo de Peixes e o homem
é solúvel em seu pensamento! A flora e a fauna do surrea­
lismo são inconfessáveis.
3o Não creio no próximo estabelecimento de este­
reótipos surrealistas. Os caracteres comuns a todos os tex­
tos do gênero, entre os quais figuram os que acabo de
apontar e muitos outros que somente uma análise lógica e
uma análise gramatical rigorosas poderiam revelar-nos, não
se opõem a uma evolução da prosa surrealista com o de­
correr do tempo. Vindas depois de uma quantidade de
ensaios desta espécie que escrevi nos últimos cinco anos, a
maioria dos quais me comprazo em julgar extremamente
desordenados, as historietas que se seguem, neste volume,
disto me dão prova flagrante. Não as considero, por essa
razão, nem mais dignas nem menos indignas de represen­
tar, aos olhos do leitor, os ganhos que a contribuição sur­
realista é capaz de proporcionar à sua consciência.
Por outro lado, os meios surrealistas precisariam ser
estendidos. Tudo é válido quando se trata de obter de cer­
tas associações a subitaneidade desejável. Os papéis cola­
57
dos de Braque e de Picasso têm o mesmo valor que a in­
trodução de um lugar-comum num segmento literário
redigido no estilo mais castigado. É até lícito intitular de
POEMA o resultado da reunião mais gratuita possível (ob­
servada, caso assim o desejardes, a sintaxe) de títulos e
fragmentos de títulos recortados dos jornais:
POEM A
Uma gargalhada
De safira na ilha de Ceilão
As mais belas palhas
TÊM A TEZ ESTIOLADA
SOB OS FERROLHOS
num a fazenda isolada
WIAA VD1A
agrava-se
o agradável
58
uma estrada de carruagens
leva-o à fím b ria do d e sc o n h e cid o
o café
p u x a a b rasa p a ra a su a sa rd in h a
A A RT E SÃ D IÁ R IA D E SUA BELEZA
jyjIN H A SENHORA,
u m par
de meias de seda
nao é
Um salto no abismo
UM CERVO
0 Am or em primeiro lugar
Tudo poderia se conciliar tão bem
PARIS É UMA GRANDE ALDEIA
V ig ie
O fogo que se oculta no borralho
A ORAÇÃO
D o te m p o b o m
59
Sabei que
Os raios ultravioleta
terminaram sua tarefa
Curta e boa
0 PRIMEIRO JORNAL BRANCO
DO ACASO
Ser á o v e rm e lh o
O cantor errante
ONDE ESTARÁ?
na m em ó ria
na casa dele
NO BAILE DOS ARDENTES 33
E u faço
D a n ça n d o
0 que se fez, o que se vai fazer
60
Poder-se-iam multiplicar os exemplos. O teatro, a
filosofia, a ciência, a crítica ainda teriam muito a ganhar.
Dou-me pressa em acrescentar que as futuras técnicas sutreaiistas não me interessam.
Muito mais sérias me parecem,34 e já o dei a enten­
der vezes bastantes, as aplicações do surrealismo à ação.
Não creio, é certo, na virtude profética da palavra surrea­
lista. “Oráculo é aquilo que eu digo”:35 Sim, tanto quanto
eu quiser; mas que é o oráculo, em si mesmo?36 A piedade
dos homens não me engana. A voz surrealista que sacudia
Cumas, Dodona e Delfos é exatamente a mesma que me
dita os menos iracundos dos discursos que profiro. Meu
tempo e o dela não devem ser os mesmos, por que me
ajudaria ela a resolver o problema infantil do meu desti­
no? Infelizmente, eu finjo agir num mundo em que, para
levar-lhe em conta as sugestões, eu teria de recorrer a dois
tipos de intérpretes: uns para me traduzirem suas frases, e
outros, impossíveis de achar, para imporem aos meus se­
melhantes a minha compreensão das mesmas. Este m un­
do, em que eu suporto tudo o que suporto (não tente
descobri-lo), este mundo moderno, enfim, que diabo que­
rem que eu faça nele? Talvez a voz surrealista venha a ca­
lar-se, já não consigo contar meus desaparecimentos. Já
não darei, por pouco que isto seja, o maravilhoso descon­
to de meus anos e meus dias. Serei como Nijinski, que,
levado o ano passado aos Balés Russos, não compreendeu
a que espetáculo assistia. Quedar-me-ei sozinho, perfeita­
61
mente sozinho comigo mesmo, indiferente a todos os ba­
lés do mundo. O que fiz, o que não fiz, eu vo-lo dou.
E, desde então, tenho sentido uma vontade grande
de encarar com indulgência as fantasias científicas, tão im­
próprias, ao fim e ao cabo, quando consideradas de quais­
quer pontos de vista. Os receptores de telegrafia sem fio?
Perfeito. A sífilis? Se vos agrada. A fotografia? Nada tenho
contra ela. O cinema? Aplausos para as salas escuras. A
guerra? Nós ríamos um bocado. O telefone? Alô, quem
fala? A juventude? Encantadores cabelos brancos. Tentai
fazer com que eu diga obrigado: “Obrigado.” O brigado...
Se o vulgo tem em alta conta o que, propriamente falan­
do, são pesquisas de laboratório, isto se deve a que tais
pesquisas resultaram na invenção de uma máquina, na
descoberta de um soro, coisas que o vulgo crê interessarlhe diretamente. Ele não tem a menor dúvida de que qui­
seram m elhorar-lhe a sorte. Eu não sei, ao certo, a
porcentagem de propósitos humanitários que governam
as atividades dos homens de ciência, mas não me parece
que, por detrás de tudo isso, haja um grau considerável de
bondade. Estou-me referindo, claro está, aos verdadeiros
homens de ciência, e não aos divulgadores de toda casta
interessados em registrar patentes. Neste, como nos ou­
tros domínios, eu creio no puro regozijo surrealista do
homem que, consciente dos fracassos sucessivos de todos
os demais, não se dá por vencido, parte de onde quer e,
tomando qualquer caminho que não seja tido por razoá­
vel, chega aonde pode. Esta ou aquela imagem com que
ele julgue oportuno sinalizar sua jornada e que, porventura,
lhe valha público reconhecimento, confesso que, por si
mesma, me deixa indiferente. Tampouco me impressiona
o material com que ele precisará preocupar-se: seus tubos
de vidro ou minhas penas metálicas... Quanto a seu mé­
todo, digo que vale tanto quanto o meu. Eu vi o inventor
do reflexo plantar cutâneo em ação: manipulava seus pa­
cientes sem lhes dar trégua; o que fazia nada tinha que ver
com um exame, era óbvio que ele já não se pautava por
plano algum. Aqui e acolá formulava uma observação lon­
gínqua, sem contudo largar a agulha, e seu martelo nunca
repousava. O tratamento dos enfermos tinha-o por tarefa
fútil, que confiava a terceiros. De sua parte, ele se deixava
consumir por uma febre sagrada.
Tal como o concebo, o surrealismo declara tão cla­
ramente nosso anticonformismo absoluto que não seria pos­
sível ocorrer a alguém citá-lo, no processo contra o mundo
real, como testemunha da defesa. Pelo contrário, ele só
serviria para justificar o estado de completa distração que
almejamos alcançar neste mundo. A distração de Kant no
que respeita a mulheres, a distração de Pasteur em relação
“às uvas”, a distração de Pierre Curie, quando se tratava
de veículos, são, neste particular, profundamente sinto­
máticas. Somente de um modo muito relativo está este
m undo proporcionado ao pensamento, e os incidentes
desta espécie são apenas os episódios mais significativos
de uma guerra de independência na qual me glorio de
participar. O surrealismo é o “raio invisível” que nos per­
63
mitirá, um dia, vencer nossos adversários. “Já nao tremes,
carcaça”. Este verão as rosas são azuis; o bosque é de vidro.
Envolvida em sua verdura, a terra me impressiona tão
pouco quanto uma alma do outro mundo. Viver e deixar
de viver é que sao soluções imaginárias. A existência está
em outra parte.
64
A d v e r t ê n c ia
PARA A REEDIÇÃO DO
S e g u n d o M a n ife s to
(1946)
Persuado-meao deixar que reapareça hoje o Segundo
Manifesto do Surrealismo, de que o tempo se encarregou de
atenuar para mim seus ângulos polêmicos. Espero que ele te­
nha por si mesmo corrigido, ainda que até certo ponto às
minhas custas, osjulgamentos demasiado apressados que emiti}
por vezes, sobre diversos comportamentos individuais tais como
os via esboçarem-se então. Este aspecto do texto, aliás, só se
justifica diante daqueles que se derem ao trabalho de situar o
Segundo Manifesto no clima intelectual do ano em que ele
veio à luz. Foi precisamente por volta de 1930 que os espíri­
tos perspicazes advertiram no retorno próximo e inelutável
da catástrofe mundial À difusa desorientação daí resultante
não negarei que se sobrepunha., no meu caso, uma ansiedade
adicional: como fazer escapar da correnteza cada vez mais
imperiosa o esquife que alguns de nós havíamos construído
com próprias mãos para arrostar aquela mesma correnteza?
Em minha maneira de ver, as páginas que se seguem contêm
lamentáveis vestígios de nervosismo. Nelas se encontram recriminações de importância desigual: é claro que certas de­
fecções foram duramente ressentidas e, de saída e sem mais, a
143
atitude — de importância inteiramente secundária — to­
mada a respeito de Rimbaud e Baudelaire levará a pensar
que os mais maltratados poderiam ser aqueles nos quais se
depositou a maior fé inicial, dos quais se esperara mais. Vis­
tas as coisas a certa distância, aliás, a maiorparte deles veio a
compreendê-lo tão bem quanto eu, de sorte que algumas
reaproximaçõespuderam ocorrer entre nós, ao mesmo tempo
que certos acordos que se revelavam mais duradouros vieram,
por sua vez, a ser denunciados. Uma associação humana da
ordem da que permitiu ao surrealismo edificar-se — tão
ambiciosa e apaixonada como nenhuma outra, desde os tem­
pos do saint-simonismo — não deixa de obedecer a certas leis
de flutuação a respeito das quais ê certamente demasiado
humano, para alguém que está de dentro, não saber que
partido tomar. Os acontecimentos recentes, que vieram a en­
contrar lado a lado todos aqueles de que trata o Segundo
Manifesto, demonstram que sua formação comum fo i sadia
e estabelecem limites razoáveis para seus desentendimentos.
N a medida em que alguns deles vieram a ser vitimas desses
acontecimentos ou, falando de modo mais genérico, golpea­
dos pela vida — estou pensando em Desnos e A rtaud — ,
apresso-me em dizer que as sem-razões que me sucedeu impu­
tar-lhe desaparecem por si mesmas, da mesma maneira que,
no que diz respeito a Politzer, cuja atividade se definiu, cons­
tantemente, fora do surrealismo e que, por isso mesmo, não
tinha de dar nenhuma satisfação dessa atividade ao surrea­
lismo, não sinto qualquer constrangimento em declarar que
me enganei inteiramente a respeito de seu caráter.
144
Aquilo que, a uma distância de quinze anos, acusa o
aspecto falível de algumas das minhas opiniões emitidas con­
tra uns e outros, nao me deixa menos livre para elevar-me
contra a afirmação recentemente feita] de que, no interior do
surrealismo, as “divergênciaspolíticas”teriam sido totalmen­
te determinadas por "questões pessoaisAs questões pessoais
só foram por nós agitadas a poste rio ri e só foram levadas ao
conhecimento público nos casos em que os princípios funda­
mentais sobre os quais fora estabelecido o nosso acordo podi­
am considerar-se violados de modoflagrante e digno de registro
na história de nosso movimento. Tratava-se, e ainda se trata,
da manutenção de uma plataforma suficientemente móvel
para enfrentar os aspectos mutáveis do problema da vida e,
uo mesmo tempo, bastante estável para demonstrar a naoruptura de certo número de compromissos mútuos — e p ú ­
blicos — assumidos na época de nossajuventude. Ospanfletos
que os surrealistas, como se disse então, “
f ulm inaram ” uns
contra os outros em numerosas ocasiões demonstram, antes de
mais nada, a impossibilidade em que se viram de situar o
debate em termos menos elevados. Se a veemência da expres­
são parece neles, por vezes, desproporcionada ao desvio, ao
erro ou à “
f alha” que eles visam a profligar, eu creio que,
além do jogo de certa ambivalência de sentimentos, a que já
aludi, cabe incriminar o mal-estar geral daquele tempo e tam­
bém a influência formal de boa parte da literatura revoluci­
onária na qual a expressão de idéias de grande generalidade e
rigor tolera, a seu lado, uma abundância de chistes agressi­
vos, de alcance medíocre, endereçados a tais ou quais dos con­
temporâneos}
145
S e g u n d o M a n ife s to
d o S u r r e a lis m o
(1930)
ANAIS MÉDICO-PSICOLÓGICOS
R E V IST A
DA
ALIENAÇÃO MENTAL
E DA
M ED ICINA LEG A L DOS A LIEN A D O S3
Crônica
LEGÍTIMA DEFESA
No último número dos Anais Médico-Psicológicos o Doutor
A. Rodiet, em interessante matéria, falova dos riscos profissio­
nais do médico de estabelecimentos psiquiátricos. Citava aten­
tados recentes, de que foram vítimas vários de nossos confrades
e buscava meios de nos proteger eficazmente do perigo que
representa o contato do psiquiatra com o alienado e sua famí­
lia.
Mas o alienado e sua família constituem um perigo que eu
classificaria como "endógeno": ele está associado a nossa
missão e é dela um corolário obrigatório. Aceitamo-lo, sim­
plesmente. Mas o mesmo não sucede com um perigo que, des­
ta vez, chamarei de "exógeno" e que merece muito particular­
mente a nossa atenção. Tudo indica que ele deveria motivar
reações mais visíveis de nossa parte.
Eis aqui um exemplo particularmente significativo: um de
nossos doentes, maníaco reivindicador, vítima de delírio
persecutórío e singularmente perigoso, propunha-me, com uma
branda ironia, a leitura de um livro que tinha livre curso entre
148
outros alienados. Este livro, recentemente publicado pelas edi­
ções da Nouvelle Revue Française recomendava-se por sua
procedência e pela apresentação correta e inofensiva. Era
Nadja, de André Breton. O surrealismo nele florescia com sua
voluntária incoerência, seus capítulos habilmente descosidos,
toda essa arte delicada de fazer troça do leitor. No meio de
desenhos estranhamente simbólicos, encontrava-se a fotogra­
fia do Professor Claude. Na verdade, um capítulo inteiro foranos especialmente consagrado. Nele os pobres psiquiatras eram
copiosamente injuriados e uma passagem (assinalada com um
risco de lápis azul pelo doente que tão amavelmente nos ofe­
recera o livro} atraiu mais particularmente a nossa atenção,
por conter estas frases: "Sei que, se eu fosse louco e internado
há poucos dias, aproveitar-me-ia de uma remissão de meu
delírio para assassinar friamente um dos que me caíssem nas
mãos, de preferência o médico. Disso, pelo menos, me adviria
a vantagem de ser alojado, como os agitados, num comparti­
mento individual. Pode ser que, pelo menos, me deixassem em
paz."
Não se pode encontrar excitação homicida mais bem ca­
racterizada. Ela não provocará mais que a soberba do nosso
desdém ou, talvez, tocará de leve, apenas, nossa indiferença
descuidosa.
Recorrer, em tais casos, às autoridades superiores parecernos-ia dar provas de uma turbulência tão deslocada que não
ousaríamos sequer pensar em semelhante coisa. E, no entanto,
fatos dessa espécie multiplicam-se em nossos dias.
Julgo que nosso torpor é em grande parte culpávei Nosso
silêncio pode suscitar dúvidas quanto à nossa boa fé e encora­
ja todas as audácias.
Por que nossas sociedades e nossa associação profissional
não haveriam de reagir a incidentes semelhantes, quer se trate
de um fato coletivo, quer de um fato individual? Por que não
fazer chegar uma expressão de protesto ao editor de uma obra
149
como Nadja e não abrir um processo contra um autor que
ultrapassou em relação a nós todos os limites do decoro?
Creio que haveria interesse (e este seria nosso único rm\o
de defesa) em considerar; no âmbito de nossa associação pro­
fissional, por exemplo, a constituição de uma comissão especi­
almente encarregada destas questões.
O Doutor Rodiet fechou sua matéria com a seguinte conclu­
são: "O médico de estabelecimentos psiquiátricos pode reivin­
dicar, com toda justiça, o direito de ser protegido sem restrições
pela sociedade que ele próprio defende..."
Mas essa sociedade às vezes parece esquecer a reciproci­
dade de seus deveres. Cabe a nós recordar-lhos.
Paul Abély.
S OCI EDADE MÉ D I C O - P S I CO L Ó G I C A
Sessão de 28 de outubro de 1929
Tendo o Sr. Abély feito uma comunicação sobre as tendên­
cias dos autores que se intitulam surrealistas e sobre os ata­
ques por eles dirigidos contra os médicos alienistas/ daí se
ensejou a seguinte discussão:
DISCUSSÃO
Dr. DE CLÊRAMBAULT: Peço ao Professor Janet que expo­
nha a relação que ele estabelece entre o estado mental dos
sujeitos e os caracteres da produção deles.
PROF. JANET: O manifesto dos surrealistas contém uma in­
trodução filosófica interessante. Os surrealistas sustentam que
a realidade ê feia por definição; a beleza só existe naquilo
que não é o mundo real. Foi o homem que introduziu a beleza
150
no mundo. Para produzir o belo é preciso que alguém se afas­
te o mais possível da realidade.
As obras dos surrealistas são, sobretudo, confissões de in­
divíduos obsessivos e de cépticos.
Dr. DE CLERAMBAULT: Os or/istas excessivistas que lançam
modas impertinentes, recorrendo às vezes a manifestos que
condenam todas as tradições, me parecem, do ponto de vista
técnico, independentemente dos nomes que eles tenham dado
a si mesmos (e também da arte e da época considerada), ap­
tos a serem qualificados como "procedimentistas".4 Consiste o
procedimentismo em dispensar o trabalho do pensamento e,
particularmente, da observação, confiando a um determinado
processo ou fórmula a produção de um efeito que seja único,
esquemático e convencional: daí resulta uma produção rápi­
da, com as aparências de um estilo, e evitam-se as críticas que
seriam facilitadas por quaisquer semelhanças com a vida. Esta
degradação do trabalho é fácil de perceber no âmbito das
artes plásticas; mas também no domínio verbal ela pode ser
demonstrada facilmente.
O gênero de preguiça orgulhosa que gera ou favorece o
procedimentismo não é exclusivo de nosso tempo. Os conceptistas, gongoristas e eufuístas do século XVI e os preciosos do
século XVII foram todos procedimentistas. Vadius e Trissotín5
eram procedimentistas, só que procedimentistas muito mais
moderados e trabalhadores que os de nossos dias, talvez por
escreverem para um público mais seleto e erudito.
No domínio das artes plásticas, o ímpeto do procedimentismo parece datar somente do século passado .
Prof. JANET; Em apoio da opinião do Sr.fsic] De Clarambault, gostaria de recordar certos processos empregados pe­
los surrealistas. Eles tiram de um chapéu, por exemplo, cinco
palavràs ao acaso e fazem séries de associações com essas
palavras. Na Introdução ao Surrealismo6 lê-se uma história
inteira construída com estas duas palavras: peru e cartola.
151
Sr. [sic] DE CLARAMBAULT: Em certo ponto da exposição
que fez, o Sr. Abély vos pôs a par de uma campanha de difa­
mação. Este ponto merece ser comentado.
A difamação é parte essencial dos riscos profissionais do
aiienista; ela nos ataca, quando se oferece a ocasião, em vir­
tude de nossas funções administrativas ou de nosso mandato
de peritos: justo seria que a autoridade que nos credencia tam­
bém nos protegesse.
Contra todos os riscos profissionais, de qualquer natureza
que sejam, seria necessário que o técnico gozasse da garantia
de disposições precisas que lhe assegurassem socorros imedi­
atos e permanentes. Estes riscos não são apenas de ordem
material, mas também de ordem moral. A proteção contra tais
riscos compreenderia socorros, subsídios, apoio jurídico e ju­
dicial, indenizações, pensão, enfim, por vezes permanente e
total. Na fase de urgência, as despesas de assistência podem
ser cobertas por uma Caixa de Seguros Mútuos; mas, em últi­
mo caso, elas devem recair sobre a própria autoridade a cujo
serviço estava a vítima dos danos.
A sessão foi suspensa às 18 horas.
Um dos secretários, Guiraud.
152
Apesar dos esforços particulares de cada um daque­
les que se declararam ou declaram adeptos do surrealis­
mo, as pessoas acabarão por concordar em que este
movimento pretendeu, sobretudo, provocar, do ponto de
vista intelectual e moral, uma crise de consciência da m o­
dalidade mais geral e mais grave e somente a obtenção ou
nao-obtenção deste resultado pode servir de critério para
•determinar seu sucesso ou seu fracasso histórico.
Do ponto de vista intelectual, tratava-se, e ainda se
trata, de pôr à prova, por todos os meios possíveis, e fazer
reconhecer a todo preço o caráter artificial das velhas anti­
nomias hipocritamente destinadas a prevenir qualquer
agitação insólita por parte do homem, ainda que esta ape­
nas lhe desse uma idéia indigente de seus meios, desafian­
do-o a escapar numa medida válida à coerção universal. O
espantalho da morte, os cafés-cantantes da outra vida, o
naufrágio da mais bela razão no sono, a esmagadora corti­
na do futuro, as torres de Babel, os espelhos de inconsis­
tência, o intransponível muro de prata salpicado de m io­
los,7 todas essas imagens talvez demasiado impressionantes
da catástrofe humana talvez não passem de imagens .Tudo
153
leva a crer que existe um certo ponto do espírito de onde
a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futu­
ro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo
deixam de ser percebidos como coisas contraditórias. Ora,
seria falso atribuir à atividade surrealista qualquer motiva­
ção que não fosse a esperança de determinar esse ponto.
Isto demonstra quão absurdo seria atribuir-lhe um senti­
do unicamente destrutivo ou construtivo: o ponto de que
se trata é, a fortiori, aquele em que a construção e a des­
truição perdem o poder de serem brandidas uma contra a
outra. Está claro, também, que o surrealismo não está in­
teressado em atribuir grande importância ao que se pro­
duz a seu lado sob o pretexto de arte e mesmo de antiarte,
de filosofia ou antifilosofia, numa palavra, de tudo que
não tenha por finalidade a aniquilação do ser num dia­
mante interior e cego, que não seja mais alma do gelo que
alma do fogo. Que poderiam esperar da experiência surre­
alista os que de algum modo se preocupam com o lugar
que ocuparão no mundo? Neste lugar mental a partir do
qual um homem já não pode empreender senão para si
mesmo uma perigosa mas, em nossa opinião, suprema
exploração, não seria o caso, tampouco, de atribuir qual­
quer importância aos passos dos que chegam ou aos pas­
sos dos que saem, uma vez que esses passos são dados numa
região onde^ por definição, o surrealismo não tem ouvi­
dos. Não se queria que ele ficasse à mercê do hum or des­
tes ou daqueles; se ele declara poder, valendo-se de seus
próprios métodos, arrancar o pensamento a uma servidão
cada vez mais dura, repô-lo no caminho da compreensão
154
total, restituir-lhe a pureza original, isto será razão bastan­
te para que o julguem com base no que ele fez e no que
lhe resta fazer para cumprir sua promessa.
Mas antes de proceder à verificação destas contas, é
importante saber exatamente a que tipo de virtudes mo­
rais o surrealismo apela, visto que, ao fim e ao cabo, ele
deita raízes na vida, e, certamente que não por acaso, na
vida deste tempo, a partir do momento que recarrego esta
vida com anedotas como o céu, o ruído de um relógio, o
frio, um mal-estar, enfim, desde que recomeço a falar de­
las de maneira ordinária. Pensar nestas coisas, agarrar-se a
um degrau qualquer dessa escada de mão degradada é algo
de que ninguém está livre, a menos que tenha ultrapassa­
do o último grau do ascetismo. Na verdade, é do fervilhar
nauseante dessas representações destituídas de sentido que
nasce e se mantém o desejo de não levar em conta a insu­
ficiente, a absurda distinção entre belo e feio, verdadeiro e
falso, bem e mal. E, como o vôo mais ou menos seguro do
espírito na direção de um mundo finalmente habitável
depende do grau da resistência oposta a esta idéia de escol, não é difícil de compreender que o surrealismo não
tenha hesitado em adotar o dogma da revolta absoluta, da
insubmissão total, da sabotagem consoante as regras, e que
ele não espere nada de coisa alguma que não seja a violên­
cia. O ato surrealista mais simples consiste em sair à rua
empunhando revólveres e atirar a esmo, tanto quanto for
possível, contra a multidão. Quem jamais teve ganas de
155
assim liquidar com o sistemazinho de aviltam ento e
cretinizaçao em vigor tem um lugar marcado no meio dessa
multidão, com o ventre à altura de um cano de revólver.8
A legitimação de tal ato não é, no meu entender, de forma
alguma incompatível com a crença nesse clarão que o sur­
realismo tenta descobrir no fundo de nós. Eu quis apenas
reintroduzir aqui o desespero humano, aquém do qual
nada poderia justificar esta crença. É impossível darmos o
nosso assentimento a uma sem que também o demos ao
outro. Quem quer que fingisse adotar esta crença sem ver­
dadeiramente comungar neste desespero não tardaria em
fazer figura de inimigo aos olhos dos que sabem. Esta dis­
posição do espírito que chamamos de surrealista e que pode
ser vista assim ocupada dela mesma, parece cada vez me­
nos necessário buscar-lhe os antecedentes e, pelo que me
diz respeito, não me oponho a que os cronistas, judiciári­
os ou não, a tenham por especificamente moderna. Te­
nho mais confiança neste m om ento, atual, de meu
pensamento do que em tudo que tentarão fazer significar
uma obra acabada, uma vida humana chegada a seu termo. Definitivamente, nada é mais estéril que essa perpétua interrogação dos mortos: converteu-se Rimbaud em
seu leito de morte, podem-se encontrar no testamento de
Lênin os elementos de uma condenação da atual política
da IIIa Internacional, porventura uma desgraça física in­
suportável e inteiramente pessoal teria sido a grande mola
do pessimismo de Alphonse Rabbe, professou Sade, em
plena Convenção, convicções contra-revolucionárias? Basta
formularem-se estas perguntas para que se perceba a fragi­
156
lidade do testemunho daqueles que já não vivem. Dema­
siados patifes estão interessados no sucesso deste esbulho
espiritual para que eu os siga neste terreno. Em matéria de
revolta, nenhum de nós deve ter necessidade de antepas­
sados. Faço questão de deixar claro que, no meu entender,
é mister desconfiarmos do culto dos homens, por muito
grandes que eles pareçam ser. Excetuado tão-somente
Lautréamont, não conheço nenhum que não tenha deixa­
do algum vestígio equívoco da própria passagem. É ocio­
so continuar a discutir sobre Rim baud: Rim baud, se
enganou, Rimbaud quis enganar-nos. Em nosso enten­
der, ele é culpado de ter permitido, de não ter tornado
inteiramente impossíveis certas interpretações que deson­
ram seu pensamento, do gênero da de Claudel. Tanto pior,
também, para Baudelaire (“Ó Satã.. .”)9 e esta “regra eter­
na” de sua vida: “dirigir todas as manhãs minha oração a
Deus, reservatório de toda força e toda justiça, a meu pai, a
Mariette e a Poe, como intercessores”.10 Sim, eu sei que
todos temos o direito de nos contradizermos, mas ainda
assim... A Deus, a Poe? A Poe que, nas revistas consagra­
das à polícia é apontado hoje em dia, com inteira justiça,
como mestre dos policiais científicos (de Sherlock Holmes,
com efeito, a Paul Valéry...) Não é uma vergonha apre­
sentar sob um aspecto intelectualmente sedutor um tipo
de policial, em tudo e por tudo um policial, ou o fato de
dotar o m undo de um método policial? Cuspamos, de pas­
sagem, ém Edgar Poe.11 Se, pelo surrealismo, rejeitamos
sem hesitar a idéia de que são possíveis apenas as coisas
qúe “existem” e se, de nossa parte, declaramos que por um
157
caminho que “existe”, o qual podemos mostrar e ajudar a
seguir, chega-se àquilo que supostamente “não existia”; se
não temos palavras bastantes para profligar a baixeza do
pensamento ocidental; se nao tememos insurgir-nos con­
tra a lógica; se não juramos que um ato por nós executado
em sonhos tem menos sentido que um ato executado em
estado de vigília; se nem sequer estamos certos de que um
dia não se dará cabo do tempo, velha força sinistra, trem a
descarrilhar perpetuam ente, louca pulsação, m ontão
inextricável de animais moribundos e já mortos: como lá
podem querer que nós manifestemos qualquer espécie de
carinho ou, quando menos, de tolerância, em relação a
algum aparelho de conservação social, seja ele qual for?
Isto seria, de nossa parte, o único delírio verdadeiramente
inaceitável. Está tudo por fazer e todos os meios devem
servir para arruinar as idéias de fam ília, de pátria, de reli­
gião. Não basta que a posição surrealista a este respeito
seja bem conhecida, é necessário que se saiba, também,
que ela não comporta quaisquer compromissos. Aqueles
que se esforçam por mantê-la persistem em proclamar esta
negação, a não ligar a mínima a qualquer outro critério de
valor. Eles estão decididos a desfrutar plenamente da cons­
ternação tão bem encenada com que o publico burguês,
sempre ignobilmente disposto a perdoar-lhes alguns erros
“da juventude”, acolhe a necessidade, que jamais os aban­
dona, de chacotear como selvagens diante da bandeira fran­
cesa, de vomitar de nojo na cara de cada padre e de assestar
sobre a corja dos “deveres fundamentais” a arma de longo
alcance do cinismo sexual. Nós combatemos, sob todas as
158
formas, a indiferença poética, a distração artística, a pes­
quisa erudita, a especulação pura, e não queremos ter nada
em comum nem com os pequenos nem com os grandes
economizadores do espírito. Todas as deserções, todas as
abdicações, todas as traições possíveis não nos impedirão
de liquidar com essas nonadas. Muito de notar, aliás, é o
fato de que, entregues a si próprias e a mais ninguém, as
pessoas que nos puseram um dia na necessidade de
dispensá-las logo perderam pé, logo precisaram recorrer
aos expedientes mais miseráveis para novamente angariar
o favor dos defensores da ordem, todos eles grandes parti­
dários do nivelamento por cima. Isto se dá porque a fide­
lidade não desmentida aos compromissos do surrealismo
pressupõe um desinteresse, um desprezo do perigo, uma
recusa de compromissos, tudo coisas de que, a longo pra­
zo, muito poucos se revelam capazes. Ainda que não res­
tasse nenhum daqueles que, antes de todos mais, mediram
suas possibilidades de significação e sua fome de verdade
tomando-o por bitola, o surrealismo haveria de viver. Seja
como for, é tarde demais para que a semente dele não ger­
mine ao infinito no campo humano, juntam ente com o
medo e o mato, que deverão prevalecer sobre tudo o mais.
Aliás, foi esta a razao por que eu prometera a mim mes­
mo, como comprova o prefácio à reedição do Manifesto
do Surrealismo (1929), abandonar silenciosamente à sua
triste sorte certo número de indivíduos que me pareciam
já ter reconhecido suficientemente seus próprios méritos:
tal era o caso dos senhores Artaud, Carrive, Delteil, Gérard,
Limbour, Masson, Soupault e Vitrac, nomeados no M a­
159
nifesto (1924) e mais alguns, a partir de então. Tendo o
primeiro desses senhores cometido a imprudência de queixar-se, parece-me bem reconsiderar minhas intenções nesta
matéria:
“H á ” escreve o sr. Artaud a O Intransigente,12 em
10 de setembro de 1929, “há na resenha crítica do Manifes­
to do Surrealismo publicada no Intran de 2 4 de agosto p.p.,
uma frase que reaviva demasiadas coisas: ‘O sr. Breton não
julgou que devesse introduzir correções nesta segunda edição
de seu livro — sobretudo de nomes — > e isto honra-o muito;
mas as retificações fazem-se por si mesmas. *O fato de o sr.
Breton invocar a honra para passar julgamento sobre certas
pessoas a que se aplicam as retificações acima mencionadas
tem a ver com uma moral sectária que até aqui só infectara
uma minoria de homens de letras. Mas épreciso deixar estes
jogos internos de panelinhas exclusivamente aos surrealistas.
Além do mais>quem quer que se tenha acumpliciado com o
caso do “Sonho”, há um ano, não tem o direito de virfalar de
honra. ”
Não tenho a mínima intenção de debater com o
signatário desta carta o sentido muito preciso que dou à
palavra honra. Que um ator, visando ao lucro e à gloríola,
se dedique a encenar luxuosamente uma peça do nebulo­
so Strindberg, peça à qual ele próprio não atribui a menor
importância, eu não veria nisso nenhum inconveniente
particular, caso esse ator não se tivesse, vez por outra, apre­
sentado como um homem capaz de pensar, de indignarse, de agir com bravura, se não fosse o mesmo que em
páginas de A Revolução Surrealista13 ardia no desejo, se­
160
gundo dizia, de tudo incendiar e pretendia depositar sua
esperança tão-somente “nesse grito do espírito que se vol­
ta sobre si mesmo bem decidido a triturar desesperada­
mente suas travas”. Lamentavelmente, para ele isso não
passava de um “papel” como outro qualquer; ele “m onta­
va” O Sonho, de Strindberg, por ter ouvido dizer que a
embaixada da Suécia pagaria (o sr. Artaud sabe que estou
em condições de prová-lo), e não lhe escapava o fato de
que isto condenava o valor moral de seu empreendimento:
mas, e daí? Pois bem: é o sr. Artaud, a quem sempre volta­
rei a ver ladeado por dois policiais, à porta do Teatro Alfred
Jarry, e lançando outros vinte contra os únicos amigos que,
um dia antes, ele declarava ter, não sem haver previamen­
te negociado no comissariado de polícia a detenção dos
mesmos, naturalmente é o sr. Artaud quem me julga sem
credenciais para falar de honra.
Aragon e eu pudemos verificar, pelo modo como
foi recebida nossa colaboração crítica no número especial
de Variedades,14 “O Surrealismo em 1929”, que o pouco
constrangimento que sentimos ao apreciar, no dia a dia, o
grau de qualificação moral das pessoas, que a facilidade
com que o surrealismo se orgulha de despedir cordialmente
este ou aquele indivíduo, ao primeiro sinal de transigên­
cia, é, menos do que nunca, do agrado de certos patifes da
imprensa, para os quais a dignidade humana é, quando
muito, matéria de zombarias. Pode-se lá imaginar que ve­
nha alguém com tantas exigências no domínio até aqui
menos vigiado, excetuados uns tantos românticos que se
suicidaram ou não?! Por que continuaríamos a bancar os
161
enojados? Um policial,.uns tantos pândegos, dois ou crês,
jornalistas de aluguer, vários desequilibrados, um débil
mental, aos quais, ninguém objetaria a que viessem jun­
tar-se uns poucos seres sensatos, duros e probos que seri­
am qualificados de energúmenos: não será isto bastante
para constituir uma equipe divertida, inofensiva, feita to­
talmente à imagem da vida, uma equipe de homens pagos
por peças, remunerados por pontos?
MERDA.
A confiança do surrealismo não pode ser bem ou
mal depositada, pela simples razão que ela não é deposita­
da em parte alguma. Nem no mundo sensível, nem sensi­
velm ente fora deste m undo, nem na perenidade das
associações mentais que com uma exigência natural ou
um capricho superior tornam a nossa existência digna de
apreço, nem no interesse que pode ter o “espírito” em
poupar nossa clientela de passagem. Nem, muito menos,
escusa acrescentar, nos recursos mudáveis daqueles que, a
princípio, dele se fiaram. Não será um homem cuja revol­
ta se canalize e se esgote quem impedirá esta revolta de
atroar, não serão tantos homens quantos lá quiserem — e
a história mal se faz com a ascensão deles de joelhos —
que poderão fazer com que esta revolta não subjugue, nos
grandes momentos obscuros, a fera sempre renascente do
“é melhor”. Ainda há, neste momento, espalhados pelo
mundo, nas escolas secundárias, até mesmo nas oficinas,15
na rua, nos seminários e nos quartéis, indivíduos jovens e
puros, que rejeitam o rotineiramente aceito. É somente a
162
eles que me dirijo, é somente para eles que tento ilibar o
surrealismo da acusação de, ao fim e ao cabo, não ser mais
que um passatempo intelectual como outro qualquer. Que
eles busquem, sem qualquer opinião preconcebida, des­
cobrir aquilo que foi nosso desejo realizar, que eles nos
ajudem e, se necessário, que eles tomem, um por um,
nossos lugares. É quase inútil que nos defendamos da acu­
sação de alguma vez termos desejado constituir um círcu­
lo fechado: só ganham com propagar este rumor aqueles
cuja curta associação a nós foi denunciada por nós como
vício redibitório. E o sr. Artaud, como já o vimos, e tam ­
bém tal como poderia ter sido visto, ao ser esbofeteado
por Pierre Unik num corredor de hotel e, ato contínuo,
pedir socorro a sua mãe\ É o sr. Carrive, incapaz de enca­
rar o problema político ou sexual, a não ser do ponto de
vista do terrorismo gascão, pobre apologista, no fim das
contas do Garine do sr. Malraux,16 E o sr. Delteil, ver sua
ignóbil matéria sobre o amor no número 2 de A Revolução
S u r r e a lis ta (direção de Naville), e, a partir de sua exclu­
são do surrealismo, “Les Poilus”, “Jeanne d’Arc”: é ocioso
insistir. É o sr. Gérard, único em seu gênero, verdadeira­
mente expulso por estupidez congênita: uma evolução
diferente da anterior; desempenha agora funções modes­
tas em A Luta de Classes18 e A Verdade, 19 nada de grave. É
o sr. Limbour, que, praticamente, desapareceu também:
cepticismo, coquetismo literário, no pior sentido da pala­
vra. É o sr. Masson, cujas convicções surrealistas, embora
m uito apregoadas, não resistiram à leitura de um livro in­
titulado O Surrealismo e a Pintura,20 cujo autor, pouco
163
ligando, aliás, para essas hierarquias, não julgara dever ou
poder dar a ele a primazia sobre Picasso, a quem o sr.
Masson considera um crápula, e sobre Max Ernst, a quem
acusa tão-somente de pintar menos bem do que ele pró­
prio: é uma explicação que me deu pessoalmente. É o sr.
Soupault, e, com ele, a infâmia total — não falemos se­
quer das coisas que ele assina, falemos das que não assina,
dos pequenos rumores deste gênero que ele, ao mesmo
tempo que o nega, com sua agitação de rato que. faz a
volta completa do ratódromo, “passa” aos jornais especi­
alizados em chantagear, como o A Escuta.:21 O sr. André
Breton, chefe do grupo surrealista, desapareceu do reduto do
bando>na Rua Jacques-Callot, (trata-se da antiga Galeria
Surrealista). Informa-nos um amigo surrealista que com ele
desapareceram alguns dos livros de contabilidade da estranha
sociedade do Bairro Latino votada à supressão de tudo. Ou­
vimos dizer, entretanto, que o exílio do sr. Breton tem sido
minorado pela deliciosa companhia de uma loura surrealista.
René Crevel e Tristan Tzara também sabem quem é o res­
ponsável por certas revelações espantosas sobre a vida de­
les e outras tantas imputações caluniosas. Quanto a mim,
confesso que aufiro algum prazer do fato de que o sr. Artaud
tente, tão gratuitamente, fazer-me passar por desonesto e
também de que o sr. Soupault tenha a audácia de pintarme como ladrão. É, enfim, o sr. Vitrac, verdadeiro esfregão
das idéias — abandonemos a “poesia pura” a ele e àquela
outra barata, o Abade Bremond — , pobre diabo cuja in­
genuidade a toda prova levou-o ao ponto de confessar que
seu ideai, como homem de teatro, ideal este que é, natu­
164
ralmente, compartilhado pelo sr. Artaud, era organizar es­
petáculos que pudessem rivalizar em beleza com as prisões
em massa realizadas pela polícia (declaração do Teatro
Alfred Jarry, publicada na Nova Revista Francesa21). Tudo
muito divertido, como se vê. Outros, vários outros, aliás,
que não mereceram figurar nesta enumeração, seja por­
que sua atividade pública é por demais desimportante, seja
porque suas velhacarias foram praticadas num âmbito
menos gerai, seja, ainda, porque tentaram escapar por meio
do humorismo, encarregaram-se de provar-nos que mui­
to poucos homens, entre os que se apresentam, acham-se
à altura dos propósitos do surrealismo, e também de con­
vencer-nos de que tudo aquilo que, ao primeiro sinal de
fraqueza, os julga e precipita, irremediavelmente, em sua
perdição, milita de todo em todo a favor destes propósi­
tos, ainda que os que permanecem sejam menos numero­
sos que os que se despenham.
Que eu continuasse a abster-me de fazer este co­
mentário seria pedir demais. Na medida dos meios de que
disponho, não me creio autorizado a deixar que poltrões e
simuladores, arrivistas, testemunhas falsas e informantes
da polícia andem por aí impunemente. O tempo perdido
à espera de poder confundi-los ainda pode ser recupera­
do; mas não pode ser recuperado a não ser que se vá con­
tra eles. Penso que esta discriminação muito precisa é a
única perfeitamente digna da meta que buscamos, que
haveria certa cegueira mística em subestimar o poder dis­
solvente da permanência desses traidores entre nós, assim
como haveria a mais lamentável ilusão de caráter positi­
165
vista em supor que esses traidores, ainda pouco mais do
que aprendizes, podem permanecer insensíveis a semelhan­
te sanção.23
E que o diabo guarde, uma vez mais, a idéia surrea­
lista assim como qualquer outra idéia que vise a assumir
forma concreta, a submeter tudo quanto se possa imagi­
nar de melhor na ordem dos fatos, da mesma maneira que
a idéia de amor visa a criar um ser, que a idéia de Revolu­
ção visa a fazer chegar o dia dessa Revolução, sem o que
tais idéias deixariam de ter qualquer sentido — lembremonos de que a idéia surrealista visa, simplesmente, à recu­
peração totaí de nossa força psíquica por um meio que
mais não é do que a descida vertiginosa ao interior de nós
mesmos, a iluminação sistemática dos lugares ocultos e o
obscurecimento progressivo dos outros lugares, o passeio
perpétuo em plena zona proibida; lembremo-nos ainda
de que sua atividade não corre qualquer sério risco de ces­
sar enquanto o homem for capaz de distinguir um animal
de uma chama ou de uma pedra — , que o diabo guarde a
idéia surrealista, dizia eu, de entrar a progredir sem con­
tratempos. E absolutamente necessário que ajamos como
se de fato estivéssemos “no m undo”, antes que ousemos
formular algumas reservas. Por conseguinte, a despeito dos
que se desesperam por ver-nos abandonar freqüentemen­
te as alturas onde nos confinaram, dedicar-me-ei a falar
aqui da atitude política, “artística”, polêmica, que pode
ser adotada por nós no fim de 1929, e mostrar, fora dela,
exatamente o que a ela opõem certos comportamentos
166
individuais escolhidos entre os mais típicos e particulares
de hoje em dia.^
Não sei se cabe responder aqui às objeçoes pueris
dos que, avaliando as conquistas possíveis do surrealismo
no domínio poético, por onde ele começou, preocupamse por vê-lo tomar partido na questão social e pretendem
que com isso sairá perdendo em toda a linha. Trata-se,
incontestavelmente, de preguiça da parte deles ou da ex­
pressão indireta de seu desejo de diminuir-nos. N a esfera
da moralidade, disse Hegel de uma vez por todas, segundo
pensamos, na esfera da moralidade, enquanto distinta da
esfera socialnão se tem mais que uma convicção formal, e se
mencionamos a verdadeira convicção, fazemo-lo para mos­
trar em que se distingue e para evitar a confusão na qual
alguém poderia incidir caso considerasse a convicção tal como
se apresenta aqui, vale dizer, a convicção formal, como se ela
fosse a convicção verdadeira, ao passo que esta não seproduz,
em primeiro lugar, senão na vida social. (Filosofia do Direi­
to). Já não é necessário fazer a crítica da suficiência desta
convicção formal: o querer que, a todo transe, nos limite­
mos a ela não honra nem a inteligência nem a boa fé de
nossos contemporâneos. Não há sistema ideológico que,
sem arruinar-se de pronto, possa, a partir de Hegel, deixar
de preencher o vazio que deixaria no próprio pensamento
o princípio de uma vontade que não agisse senão por con­
ta própria e inteiramente inclinada a refletir-se sobre si
mesma. Quando eu tiver lembrado que a lealdade, no sen­
tido hegeliano da palavra, não pode ser senão função da
penetrabilidade da vida subjetiva pela vida “substancial5’ e
167
que, sejam quais forem suas divergências em outras maté­
rias, esta idéia não foi objeto de impugnação fundamental
por parte de espíritos tão diversos quanto Feuerbach, que
acaba por negar a consciência enquanto faculdade parti­
cular; quanto Marx, inteiramente possuído da necessida­
de de modificar de alto a baixo as condições exteriores da
vida social; quanto Hartmann, que faz derivar de uma
teoria do inconsciente de base ultrapessimista uma nova e
otim ista afirmação de nossa vontade de viver; quanto
Freud, insistindo cada vez mais na autoridade própria do
superego, penso que ninguém se surpreenderá em ver o
surrealismo dedicar-se, de passagem, a algo diverso da re­
solução de um problema psicológico, por mais interessan­
te que este seja. É em nome do premente reconhecimento
desta necessidade que eu julgo não podermos evitar a co­
locação apaixonada da questão do regime social sob o qual
vivemos, vale dizer, da aceitação, ou não, deste regime. E
é também em nome desse reconhecimento que é mais do
que tolerável que, de passagem, eu incrimine os trânsfugas do surrealismo, para os quais o que aqui sustento é
demasiado difícil ou demasiado alto. Façam o que fize­
rem, saúdem com os brados de falsa alegria que bem en­
tenderem a própria retirada, prognostiquem -nos a
decepção grosseira que lhes aprouver — e, com eles os
que dizem que todos os regimes se eqüivalem, porque, no
final, o homem sempre acabará por ser vencido — , não
farão com que eu me esqueça de que não caberá a eles,
mas a mim, desfrutar essa “ironia” suprema que se aplica a
tudo, inclusive aos regimes, e que lhes será negada por estar
168
além mas supor, previamente, todo o ato voluntário que
consiste em descrever o ciclo da hipocrisia, doprobabilismo,
da vontade que quer o bem e da convicção (Hegel: Fenomenologia do Espírito).
O surrealismo, visto que, muito especificamente, faz
parte de seu programa proceder à crítica das noções de
realidade e de irrealidade, de razão e desrazão, de reflexão
e de impulso, de saber e de ignorância “invencível”, de
utilidade e de inutilidade, etc., tem, analogamente ao
materialismo histórico, ao menos esta tendência a partir
do “aborto colossal” do sistema hegeliano, Parece-me im­
possível estipular limites, como os do quadro econômico,
por exemplo, para o exercício de um pensamento definiti­
vamente maleabilizado pela negação e pela negação da
negação. Como admitir que o método dialético só possa
aplicar-se validamente à solução de problemas sociais? A
ambição maior do surrealismo é fornecer-lhe possibilida­
des de aplicação de modo algum concorrentes no domí­
nio consciente mais imediato. Em que pese a certos
revolucionários de espírito acanhado, não compreendo por
que nos absteríamos de colocar, desde que os abordásse­
mos do mesmo ponto de vista a partir do qual eles — e
também nós — o fazem, que é o da Revolução, os proble­
mas do amor, do sonho, da loucura, da arte e da religião.24
Ora, nao me temo de dizer que, antes do surrealismo, nada
sistemático fora feito nessa direção e que, no ponto em
que cíencontramos, também para nós o método dialético,
sob sua forma begeliana, era inaplicável. Também para nós
o que estava em jogo era a necessidade de liquidar com o
169
idealismo propriamente dito, e somente a criação da pala­
vra “surrealismo” nos serviria de garantia quanto a isso; e,
para retomar o exemplo de Engels, estava em jogo, igual­
mente, a necessidade de não nos atermos ao desenvolvi­
mento infantil: “A rosa é uma rosa. A rosa não é uma rosa.
E, no entanto, a rosa é uma rosa”, mas (permita-se-me
este parêntese) de introduzirmos “a rosa” num movimen­
to proveitoso de contradições menos anódinas, no qual
ela fosse, sucessivamente, a que vem do jardim, a que ocu­
pa num sonho uma posição singular, a que não pode ser
destacada de um “ramalhete óptico”, a que pode adquirir
propriedades inteiramente novas ao passar pela escrita
automática, a que já não retém de rosa senão aquilo que o
pintor quis que ela retivesse num quadro surrealista, a que,
enfim, diversa totalmente de si mesma, retorna ao jardim
de onde saiu. Vai uma grande distância disto a qualquer
modo de ver idealista, e nem sequer nos daríamos ao tra­
balho de defender-nos se pudéssemos deixar de ser alvo
dos ataques do materialismo primário, ataques estes que
provêm, ao mesmo tempo, daqueles que, em virtude de
seu baixo conservadorismo, não têm desejo algum de elu­
cidar as relações do pensamento com a matéria, e daque­
les'que, por obra de um sectarismo revolucionário mal
compreendido, confundem, sem levar em conta o que se
lhes pede, este materialismo com o que Engels dele distin­
gue essencialmente, definindo-o como uma intuição do
mundo chamada a pôr-se à prova e a realizar-se: Ao longo
do desenvolvimento da filosofia o idealismo tornou-se insus­
tentável e fo i negado pelo materialismo moderno. Este últi­
170
mo, que é a negação da negação, não é a simples restauração
do antigo materialismo: aos duráveisfundamentos deste acres­
centa todo opensamento da filosofia e das ciências da nature­
za, ao longo de uma evolução de dois m il anos, e o produto
mesmo dessa longa história. Queremos também situar-nos
num ponto de partida tal que, para nós, a filosofia esteja
ultrapassada. É o destino, creio eu, de todos aqueles para
os quais a realidade não tem apenas uma importância teó­
rica, mas se constitui em questão de vida ou de morte
para quantos a ela apaixonadamente fazem apelo, como
quis Feuerbach: o nosso25 é aderir, totalmente e sem reser­
vas, como o fazemos, ao princípio do materialismo histó­
rico; o dele26 é lançar à cara do embasbacado m undo
intelectual a idéia de que “o homem é aquilo que ele come”
e que uma revolução futura teria maiores probabilidades
de sucesso se o povo se alimentasse melhor: no caso, se
comesse ervilhas ao invés de batatas.27
Nossa adesão ao princípio do materialismo históri­
co... não há meio de jogar com estas palavras. Caso isto
só dependa de nós — quero dizer, desde que o comunis­
mo não nos trate como a bichos estranhos destinados a
desempenhar em suas fileiras o papel de papalvos desafia­
dores — , mostrar-nos-emos capazes, do ponto de vista
revolucionário, de cumprir com todas as nossas obriga­
ções. Infelizmente, este é um compromisso que só inte­
ressa a nós: quanto mim, não consegui, há dois anos, cruzar
livre e anonimamente a soleira daquela casa do Partido
francês, onde tantos indivíduos pouco recomendáveis,
171
policiais e outros, têm permissão para se divertir à grande.
N o decorrer de três interrogatórios que se estenderam por
muitas horas, tive de defender o surrealismo da acusação
pueril de ser, essencialmente, um movimento político de
orientação anticomunista e contra-revolucionária. Exame
aprofundado de minhas idéias, escusa dizer, era coisa que
eu não podia esperar daqueles que me julgavam. “Se sois
marxista”, vociferava nessa época Michel Marty, dirigindo-se a um de nós, “não precisais ser surrealista.” Surrea­
listas, fique bem claro, não fôramos nós que nos havíamos
prevalecido de ser, naquela circunstância: tal classificação
nos havia precedido, a despeito de nós mesmos, da mes­
ma maneira como a de “relativistas” poderia ter sido apli­
cada aos einsteinianos, a de psicanalistas aos freudianos.
Como não nos preocuparmos terrivelmente com tama­
nho rebaixamento do nível ideológico de um partido que,
não faz muito tempo, saíra tão brilhantemente armado de
duas das melhores cabeças do século XIX?! Os fatos são
demasiado conhecidos, e o pouco que, a este respeito, posso
retirar de minha experiência pessoal condiz de todo em
todo com o resto. Pediam-me que fizesse na célula “do
gás” um relatório sobre a situação italiana, especificando
que eu não deveria apoiar-me senão em fatos estatísticos
(produção de aço, etc.) e, sobretudo, nada de ideologia. Foime impossível fazê-lo.
Aceito, contudo, que, em conseqüência de um en­
gano, nada mais, me tenham tido, no partido comunista,
por um dos intelectuais mais indesejáveis. M inha simpa­
172
tia, aliás, está demasiadamente consagrada à massa dos que
farão a Revolução social para poder ressentir-se dos efei­
tos passageiros desta desventura. O que eu não aceito é
que, em virtude de possibilidades particulares de movi­
mento, certos intelectuais que eu conheço cujos móveis
morais estão sujeitos a caução, depois de tentarem sem
êxito, a poesia ou a filosofia, tenham aderido subitamen­
te, à agitação revolucionária, graças à confusão ali reinan­
te consigam iludir em maior ou menor grau e, para maior
comodidade, se dêem grande pressa em renegar estrepitosamente aquilo que, como o surrealismo, lhes deu a pen­
sar as coisas mais claras que eles pensam, mas, ao mesmo
tempo, forçava-os a prestar contas da própria posição e a
justificá-la humanamente. O espírito não é uma ventoinha, ou, pelo menos, não é apenas uma ventoinha. Não
basta alguém achar, de repente, que tem a obrigação de
devotar-se a uma determinada atividade; e a coisa não tem
valor algum se, por isso mesmo, alguém não pode mostrar
objetivamente de que modo chegou àquela conclusão e
em que ponto exato era mister que estivesse para chegar a
ela. E não me venham com essas conversões revolucioná­
rias do tipo religioso, que alguns se limitam a nos partici­
par, acrescentando que se folgam de nada terem a dizer a
respeito delas. Nesse plano não deveria ocorrer qualquer
ruptura ou solução de continuidade no pensamento. Caso
contrário, seria preciso recorrer aos velhos subterfúgios da
graça. ; . Estou pilheriando. Mas é óbvio que desconfio em
sumo grau. Vamos dizer que eu conheço um homem: ou
seja, sou capaz de afigurar-me de onde ele vem e conjetu-
173
rar, até certo ponto, para onde vai; e, de repente, querem
fazer-me crer que o meu sistema de referências era falso e
que esse homem chegou a uma destinação que nao era a
sua?! A ser assim, esse homem, a quem não teríamos co­
nhecido senão no amável estado de crisálida, precisaria
abandonar o casulo de suas idéias a fim de voar com as
próprias asas? Novamente, não acredito uma palavra de
tudo isso. Julgo que teria sido absolutamente necessário,
não somente por razões de ordem prática, senão também
morais, que cada um dos que assim se desligaram do sur­
realismo viesse a questionar-lhe a ideologia e nos desse a
conhecer, de seu próprio ponto de vista, suas partes mais
condenáveis. Ora, nada disso jamais aconteceu. A verda­
de é que essas bruscas mudanças de atitude parecem ter
sido quase sempre determinadas por sentimentos medío­
cres, e eu penso que é preciso buscar-lhes uma explicação,
assim como para a mobilidade da maior parte dos ho­
mens, antes numa perda progressiva da consciência do que
na explosão de uma razão subitânea, tão diferente da an­
terior quanto a fé do ceticismo. Com grande satisfação
daqueles a quem repele o controle das idéias, tal como se
exerce no surrealismo, esse controle não pode ter lugar
nos meios políticos, sendo-lhes, pois, permitido dar largas
à própria ambição, a essa ambição que preexistia — e é
isto que é grave — à descoberta de sua pretendida voca­
ção revolucionária. É preciso vê-los pregar com grande
autoridade aos velhos militantes; é preciso vê-los saltar por
sobre os vários estágios do pensamento crítico, cuja seve­
ridade, aqui, é maior do que em qualquer outra parte, em
174
menos tempo do que precisariam para queimar a própria
pena:28 é preciso vê-los, um tomando por testemunha a
um pequeno busto de Lênin de três francos e noventa e
cinco centavos; outro dando palmadinhas na barriga de
Trotski. O que eu tampouco aceito é que pessoas com
quem .estivemos em contato e das quais, por tê-lo experi­
mentado na própria carne, vimos denunciando há três
anos, em todas as ocasiões possíveis, a má fé, o arrivismo e
os fins contra-revolucionários, os Morhange, os Politzer e
os Lefèvre, encontrem meio de captar a confiança dos di­
rigentes dq'partido comunista a ponto de poderem publi­
car, dom a aparência, ao^ menos, de apíovação deles, dois
números 'de uma Revista de Psicologia Concreta29 e sete
números da Revista Marxista?Qfeito o que, eles próprios
se encarregam de nos edificar definitivamente com o es­
petáculo de sua baixeza e, para tanto, o segundo, ao cabo
de um ano de “trabalho” em comum e de cumplicidade,
decide-se (uma vez que se fala em suprimir a psicologia
concreta, que não “vende” bem) a denunciar ao Partido o
primeiro, culpado de dissipar, num único dia, em M onte
Cario, a quantia de duzentos mil francos que lhe fora con­
fiada para ser usada em propaganda revolucionária; e este,
furioso‘tão-somente com esta última iniciativa, procurame bruscamente pára dar curso a sua indignação, «mbora
reconhecendo, sem qualquer dificuldade, a exatidão da
denúncia. Hoje em dia, por conseguinte, com a ajuda do
Sr. Rappoport, é permitido abusar do nome de Marx em
França sem que ninguém veja nisto mal algum. Em seme-
175
íhantes condições, peço que me digam a quantas anda a
moralidade revolucionária.
Pode-se facilmente imaginar que a facilidade com
que estes senhores tão cabalmente iludiram, ontem, aos
que os acolheram no partido comunista, e iludirão, ama­
nhã, aos que fizerem o mesmo nas fileiras da oposição ao
mesmo partido, tenha sido e ainda seja tentadora para
certos intelectuais pouco escrupulosos, recebidos igualmente
no surrealismo, que, ao diante, nunca teve mais declarados
adversários.31 Uns, à maneira do sr. Baron, autor de poe­
mas mui habilmente decalcados em Apollinaire, mas tam ­
bém um irresponsável amigo do prazer e, na ausência
absoluta de idéias gerais, modesto pôr de sol sobre um
charco na floresta imensa do surrealismo, trazem ao m un­
do “revolucionário” o tributo de uma exaltação de colegi­
al, de uma ignorância “crassa”, adornadas com visões de
Catorze de Julho.32 (Em estilo impagável, comunicou-me
o sr. Baron, há alguns meses, sua conversão ao leninismo
integral. Sua carta, na qual as proposições mais estapafúr­
dias rivalizam com pavorosos lugares-comuns tomados de
empréstimo ao linguajar de A Humanidade33 e com comovedores protestos de amizade, encontra-se à disposição
dos interessados. Dela não voltarei a falar, salvo se por ele
forçado a fazê-lo.) Os outros, à maneira do sr. Naville,
que esperaremos pacientemente seja devorado por sua
implacável sede de notoriedade — num lapso de tempo
insignificante foi ele diretor de O Ovo Duro,ÒA diretor de
A Revolução Surrealista,35 primeiro em comando em O
Estudante de Vanguarda.,36 diretor de Claridade,37 de A Luta
176
de Classes?* por pouco não foi diretor do Camarada39 e
agora desempenha um papel de primeira plana em A Ver­
dade40 — os outros se censurariam por dever a qualquer
causa algo mais que uma pequena saudação feita com ares
protetores, como a dirigida aos desfavorecidos pelas se­
nhoras das obras de caridade que, logo a seguir, lhes di­
zem brevemente o que devem fazer. Só de ver passar o sr.
Naville, o partido comunista francês, o partido russo, a
maioria dos opositores marxistas de todos os países, entre
os quais, em primeiro lugar, se encontram homens como
Boris Souvarine e Mareei Fourrier, para com os quais ele
poderia ter uma dívida, o surrealismo e eu mesmo, todos
fazemos figura de indigentes. O sr. Baron que escreveu A
Andadura PoéticaAl está para essa andadura como o sr.
Neville para a andadura revolucionária. Um estágio de três
meses no partido comunista, pensou o sr. Naville, é mais
que suficiente, visto que, para mim, o interesse consiste
em alardear o fato de dele ter-me desligado. O sr. Naville,
ou, quando menos, o pai do sr. Naville, é muito rico. (Para
os meus leitores que não se desagradam de detalhes pito­
rescos, acrescentarei que o escritório da direção de A Luta
de Classes está situado à Rua de Grenelle, 15, numa pro­
priedade da família do sr. Naville, que vem a ser o antigo
palácio dos duques de La Rochefoucauld.) Estas conside­
rações me parecem menos indiferentes do que nunca.
Noto, com efeito, que, no momento em que ele se dispu­
nha a fundar a Revista Marxista, o sr. Morhange recebeu
em comandita cinco milhões de francos do sr. Friedmann,
a fim de financiá-la. Apesar de, pouco tempo depois, seus
177
infortúnios na roleta terem-no obrigado a repor a maior
parte desta quantia, não deixa de ser verdade que foi gra­
ças a esta exorbitante ajuda financeira que ele conseguiu
usurpar a posição que se sabe e fazer-se perdoar por sua
notória incompetência. Foi também por adquirir um de­
terminado número de ações de fundador da empresa “As
Revistas”,42 responsável pela Revista Marxista, que o sr.
Baron, que acabava de entrar na posse de uma herança,
pôde crer que mais vastos horizontes se abriam à sua fren­
te. Ora bem: quando, há alguns meses, o sr. Naville nos
comunicou sua intenção de dar à estampa O Camarada,
um jornal que, segundo ele, viria atender à necessidade de
revigorar a crítica de oposição marxistâ, mas que, na reali­
dade, deveria sobretudo permitir-lhe, segundo o seu cos­
tume, desligar-se em silêncio do perspicacíssimo Fourrier,
senti-me curioso de saber dele próprio quem estaria ar­
cando com as despesas da nova publicação, uma publica­
ção, conforme já disse, da qual ele deveria ser diretor, o
único diretor, escusa acrescentar. Seriam esses misteriosos
“amigos” com os quais se entabulam longas e divertidíssi­
mas conversas na última página de cada jornal e a quem se
pretende interessar tão vivamente no preço do papei? Não.
Eram pura e simplesmente o sr.'Piérre Naville e seu ir­
mão, que haviam entrado com a-quantia de quinze mil
francos, num total de vinte mil. O resto era fornecido-pelos
assim chamados “cumpinchas” de Souvarine, dos quais o
sr. Naville teve de confessar que nem sequer sabia os no­
mes. Como se vê, para que alguém faça predominar seu
ponto de vista nos meios que, neste particular, deveriam
178
ser os mais rigorosos, não importa tanto que esse ponto
de vista seja, de si mesmo, apto a impor-se, senão que esse
alguém seja filho de banqueiro. O sr. Naville, que, tendo
em vista o resultado clássico, pratica com arte o método
de divisão das pessoas, não hesitará em recorrer a qual­
quer meio, claro está, para conseguir governar a opinião
revolucionária. Mas, como nessa mesma floresta alegóri­
ca, onde, não faz muito tempo, eu via o sr. Baron exibir as
graças de um girino, já tem havido alguns dias nefastos
para essa jibóia de má catadura, em muito boa hora não se
diz que domadores da estatura de um Trotski ou até mes­
mo de Souvarine não acabarão por levar a melhor sobre o
eminente réptil. De momento sabemos apenas que ele está
voltando de Constantinopla em companhia da avezinha
chamada Francis Gérard. As viagens, que formam a ju­
ventude, não deformam a bolsa do pai do sr. Naville. Im ­
porta muito, também, ir indispor Leão Trotski contra seus
únicos amigos. E agora uma última pergunta, totalmente
platônica, que faço ao sr. Naville: QU EM sustenta A Ver­
dadey órgão da oposição comunista no qual vosso nome
engorda a cada semana e já se exibe ostentosamente na
primeira págína? Obrigado.
Julguei oportuno alargar-me nestes assuntos, antes
de mais nada para deixar claro que, contrariamente ao que
desejariam fazer crer, todos os nossos antigos colaborado­
res que-hoje se dizem totalmente recobrados do surrealis­
mo, foram, sem exceção, por nós excluídos: e, dito isto,
não pareceu ocioso que se soubesse por que tipo de ra­
179
1
zões. Fi-lo, em segundo lugar, para mostrar que, se o sur­
realismo se considera indissoluvelmente ligado, em con­
seqüência das afinidades que já assinalei, à marcha do
pensamento marxista e unicamente a essa marcha, ele se
abstém, e certamente se absterá por muito tempo ainda,
de tomar partido entre as duas correntes muito gerais que
opõem, neste momento, homens que, pelo fato de não
compartilharem a mesma concepção tática, nem por isso,
em suas diferentes posições, se revelaram menos franca­
mente revolucionários. Não será no momento em que
Trotski, em carta datada de 25 de setembro de 1929, ad­
mite que, na Internacional, épatente ofato de que a direção
oficial se deslocou para a esquerda, e, praticamente, apóia
com toda sua autoridade o pedido de reintegração de
Racovsky, de Cassior e de Okoudjava, susceptível de acar­
retar a sua própria, que nos tornaremos mais irredutíveis
do que ele mesmo. Não será no momento em que a mera
consideração do mais penosos dos conflitos faz com que
tais homens, abstração feita, ao menos publicamente, de
suas mais categóricas reservas, dêem um novo passo no
sentido da união, que nós iremos, ainda que de muito
longe, tentar envenenar a chaga emocional da repressão,
como o fazem os senhores PanaTt Istrati è Naville, que o
felicita, ao mesmo tempo que lhe puxa a orelha branda­
mente: Istrati, seria melhor se não tivessespublicado um frag­
mento de teu livro num órgão como a Nova Revista
Francesa,43 etc. Nossa intervenção, em semelhante assun­
to, não tende senão a pôr os espíritos sérios em guarda
contra um pequeno número de indivíduos que, por expe­
180
riência própria, sabemos serem parvos, miscificadores ou
intrigantes, e, em qualquer das hipóteses, seres revolucionariamente mal-intencionados. E isto é, praticamente,
tudo o que nesse particular nos é dado fazer. Somos os
primeiros em lamentar que seja tão pouco.
Para que tais desvios, tais reviravoltas, tais abusos
de confiança de toda espécie sejam possíveis no próprio
terreno em que acabo de situar-me, é necessário, com toda
a certeza, que tudo se converta em zombaria e que mal
haja qualquer possibilidade de contar com a atividade de­
sinteressada de mais que uns poucos homens de cada vez.
Se a própria empreitada revolucionária, com todos os ri­
gores que sua execução pressupõe, não está aparelhada para
separar, de imediato, os maus dos bons e os falsos dos
sinceros; se, para seu maior dano, ela é forçada a aguardar
que uma série de acontecimentos externos se encarregue
de desmascarar a uns e a adornar o semblante nu de ou­
tros com um reflexo de imortalidade; como quererá al­
guém que as coisas não sejam ainda mais precárias quan­
do não se trata, já, daquela empreitada propriamente dita,
mas de uma empreitada, como no caso do surrealismo,
que nem sequer se confunde com aquela? É normal que o
surrealismo se manifeste no meio e, talvez, pagando o pre­
ço de uma sucessão ininterrupta de fraquezas, de ziguezagues e de defecções que exigem, a cada instante, sejam
novamente ponderados seus dados originais, ou seja, que
181
se evoque o princípio inicial de sua atividade unido à in­
terrogação do amanhã aleatório que faz com que os cora­
ções se prendam e se desprendam uns dos outros. Nem
tudo já foi tentado, é preciso que se diga, para levar a bom
termo este empreendimento: quando mais não fosse, ape­
nas no tirar partido, em toda a linha, dos meios definidos
como nossos e no pôr à prova em profundidade os modos
de investigação preconizados na origem do movimento
de que nos ocupamos. O problema da ação social não é
(faço questão de voltar a este ponto e de nele insistir) se­
não uma das formas de um problema mais geral, que o
surrealismo tomou a si suscitar e que vem a ser o problema
da expressão humana em todas as suas formas. Quem diz
expressão diz linguagem, para começar. Ninguém haverá,
pois, de se admirar com ver o surrealismo situar-se, antes
de tudo, quase unicamente no plano da linguagem; nem
tampouco, de que na volta de qualquer incursão, a ele
retorne como que pelo prazer de ali sentir-se em terra con­
quistada. Já nada pode impedir, com efeito, que em gran­
de parte esta seja terra conquistada. As hordas de palavras
literalmente desencadeadas para as quais dadá e o surrea­
lismo fizeram questão de abrir as portas, por mais que nos
desagradem, não são das que se retiram a troco de nada.
Pouco a pouco elas penetrarão nas cidadezinhas idiotas da
literatura qué ainda se ensina e, misturando, sem dificul­
dade, os altos e baixos distritos, calmamente procederão a
uma bela derrocada de torrinhas. A pretexto de que, por
obra nossa, é somente a poesia que, nos dias que correm,
1se acha seriamente abalada, a população não se preocupa
182
demasiado e vai construindo, aqui e acolá, barreiras sem
importância. As pessoas pretendem não perceber que o
mecanismo lógico da frase, por si mesmo, mostra-se cada
vez mais incapaz de provocar no homem o abalo emocio­
nal que dá, realmente, algum valor a sua vida. Em com­
pensação, os produtos desta atividade espontânea ou mais
espontânea, direta ou mais direta, como aqueles que, cada
vez mais numerosos, lhe oferece o surrealismo, em forma
de livros, de quadros e de filmes, e que ele começou a
contemplar com estupor, atualmente ele se rodeia deles e,
mais ou menos timidamente, delega-lhes o cuidado de
révolucionar seu modo de sentir. Eu sei: este homem -aindà não é todo o homem, e é preciso dar-lhe “tempo” para
"que se torne tal. Mas vede de que admirável e perversa
infiltração já se mostrou capaz um pequeno número de
obras inteiramente modernas, das quais o mínimo que se
pode dizer é que nelas reina uma atmosfera particular­
mente insalubre: Baudelaire, Rimbaud (apesar das reser­
vas que lhe fiz), Huysmans, Lautréamont, para restringirme à poesia. Desta insalubridade não temamos fazer norma
que nos governe. Que de futuro não se possa dizer que
não fizemos tudo quanto pudemos para aniquilar a estú­
pida ilusão de felicidade e concórdia, qíie o século XIX
terá a glória de haver denunciado. Sem dúvida, não deixar
mos de amar fanaticamente esses raios de sol cheios de
miasmas. Mas, no momento em que os poderes constitu­
ídos em França grotescamente se preparam para celebrar
com festas o centenário do romantismo, nós, pelo que
nos respeita, dizemos que esse romantismo, do qual esta­
183
mos prontos a passar, hoje em dia, por cauda, desde que
cauda em alto grau preênsil, por sua própria essência, em
1930, reside inteiramente na negação desses poderes e
dessas festas; que, para ele, cem anos de existência eqüiva­
lem à juventude; que a sua chamada época heróica já não
pode ser honestamente considerada mais que o vagido de
um ser que mal começou, por nosso intermédio, a dar a
conhecer seu desejo; e que, a admitirmos que tudo o que
antes dele foi pensado — “classicamente” — era o bem,
quer, sem sombra de dúvida, todo o mal.
Qualquer que tenha sido a evolução do surrealismo
no domínio político, por mais premente que dali nos te­
nha vindo a ordem de nao contar, para a libertação do
homem, primeira condição do espírito, senão com a Revo­
lução proletária, posso afirmar que nao descobrimos qual­
quer razão válida para reconsiderar os meios de expressão
que nos são próprios e cuja utilidade pudemos comprovar
na prática. Condene quem quiser determinada imagem
especificamente surrealista que eu, sem refletir, tenha em­
pregado num prefácio. “Esta família é uma ninhada de
cães” (Rimbaud). Quando, ao citar fora de contexto um
dito como este, alguém provocar uma boa dose de chaco­
ta, mais não terá conseguido do que reunir um bando de
ignorantes. Não logrará acreditar, às custas dos nossos,
procedimentos neonaturalistas, vale dizer, descartar como
coisa de pouca importância tudo o que, a partir do natu­
ralismo, veio a constituir as mais importantes conquistas
' do espírito. Lembro aqui a resposta que dei, em setembro
184
de 1928, a duas perguntas que me haviam sido feitas: I a
Credes que a produção artística e literária seja um fenômeno
puramente individual? Não pensais que ela possa ou deva
refletir as grandes correntes que determinam a evolução eco­
nômica e social da humanidade? 2a Credes na existência de
uma literatura e uma arte que exprimem as aspirações da
classe operária? Quais são, em vossa opinião, seus maiores
representantes?
1.
Sem dúvida alguma, passa-se com a produção
artística e literária o mesmo que com todo o fenômeno
intelectual, no sentido em que não cabe, a este respeito,
colocar outro problema que não seja o da soberania do
pensamento. O que significa que é impossível responder a
vossa primeira pergunta com uma afirmação ou uma ne­
gação e que a única atitude filosófica a ser observada num
caso desses consiste em valorizar “a contradição (que exis­
te) entre o caráter do pensamento humano, que represen­
tamos como absoluto, e a realidade desse pensamento
num a multidão de seres humanos individuais cujo pensa­
mento é limitado: é esta uma contradição que só pode ser
resolvida no progresso infinito, na série ao menos pratica­
mente infinita das sucessivas gerações humanas. Neste sen­
tido o pensamento humano possui a soberania e, ao mesmo
tempo, não a possui; sua capacidade cognitiva é tão ilimi­
tada quanto limitada. Soberana e ilimitada por sua natu­
reza, sua vocação, em potência, e quanto a seu objetivo
final ríà história; mas sem soberania e limitada em cada
uma de suas realizações e em qualquer de seus estados.”
(Engels: A Moral e o Direito. Verdades Eternas.) Este pen-
185
sarnento, no domínio em que me pedis que considere uma
determinada expressão sua, não pode senão oscilar entre-a
consciência dê sua perfeita autonomia e a de sua. estreita
dependência. Em nosso tempo, a produção artística e lite­
rária me parece inteiramente sacrificada à necessidade que
este drama tem de chegar ao desenlace, ao cabo de um
século de filosofia e poesia verdadeiramente dilacerantes
(Hegel, Feuerbach, Marx, Lautréamont, Rimbaud, Jarry,
Freud, Chaplin, Trotski). Nessas condições, dizer que tal
produção pode ou deve refletir as grandes correntes que
determinam a evolução econômica e social da humanida­
de seria emitir um julgamento bastante vulgar, que impli­
caria o reconhecim ento puram ente circunstancial do
pensamento e não daria maior importância a sua natureza
fundamental: a um tempo incondicionada e condiciona­
da, utópica e realista, achando seu fim em si mesma e não
aspirando senão a servir, etc.
2.
Não creio na possibilidade de atualmente existir
uma literatura ou uma arte que exprima as aspirações da
classe operária. A razão por que me recuso a crer nela é o
fato de que, em período pré-revolucionário, o escritor ou
o artista, de formação necessariamente burguesa, é, por
definição, incapaz de exprimi-las. Não nego que ele possa
fazer idéia delas e que, em condições morais de todo em
todo excepcionais, seja capaz de compreender a relativi­
dade de todas as causas em função da causa proletária.
Julgo que, para ele, isto é uma questão de sensibilidade e
honestidade. Mas nem por isso ele escapará à dúvida dig­
na de nota, inerente a seus próprios meios de expressão,
186
que o força a considerar, em si mesmo e somente para si,
sob um ângulo muito especial, a obra que ele se propôs
realizar. Para que esta obra seja possível, cumpre situá-la
em relação a certas obras já existentes; e, por sua vez, ela
deve abrir novos caminhos. Guardadas as proporções, se­
ria tão inútil erguer-se alguém contra a afirmação de um
determinismo poético, cujas leis não são impromulgáveis,
quanto contra a do materialismo dialético. De minha parte,
continuo convencido de que as duas ordens de evolução
são rigorosamente semelhantes e que, além do mais, elas
têm em comum ofato de que não perdoam. Assim como as
previsões de Marx, no que diz respeito a quase todos os
acontecimentos exteriores ocorridos entre sua morte e os
dias de hoje, mostraram-se corretas, não vejo nada que
pudesse infirmar uma única palavra de Lautréamont, a
respeito de acontecimentos que só interessam ao espírito.
Em compensação, tão falso quanto qualquer tentativa de
explicação social, excetuada a de Marx, é, para mim, qual­
quer ensaio de defesa e ilustração de uma literatura e uma
arte ditas “proletárias”, numa época em que ninguém pode
invocar a cultura proletária, pela simples razão de que esta
cultura ainda não existe nem mesmo em regime proletá­
rio. “As vagas teorias sobre a cultura proletária, concebi­
das por analogia e por antítese à cultura burguesa, resul­
tam de comparações entre o proletariado e a burguesia às
quais o espírito crítico é inteiramente estranho... É certo
que chegará um momento, no desenvolvimento da socie­
dade nova, em que a economia, a cultura, a arte terão a
mais ampla liberdade de movimento — de progresso. Mas,
187
a este respeito, não podemos senão entregar-nos a conjec­
turas fantasistas. Numa sociedade que se tiver desembara­
çado da pesada preocupação com o pão cotidiano, em que
as lavanderias comunitárias lavarem bem a boa roupa bran­
ca de toda a gente, em que as crianças — todas as crianças
— bem alimentadas, alegres e saudáveis, absorverem os
rudimentos das ciências e das artes como o ar e a luz do
sol, em que já não houver “bocas inúteis” e o egoísmo
hum ano libertado — formidável poder — não tender se­
não ao conhecimento, à transformação e à melhoria do
universo, nesta sociedade o dinamismo da cultura não será
comparável a nada conhecido no passado. Mas lá não che­
garemos antes de uma longa e penosa transição que ainda
está quase inteira à nossa frente.” (Trotski, “Revolução e
Cultura”, Claridade,A4 Io de novembro de 1923.) Estas
admiráveis palavras parecem-me refutar, de uma vez por
todas, a pretensão de certos mistificadores e outros tantos
espertalhões que, hoje em dia, sob a ditadura de Poincaré,
se apresentam em França como escritores e artistas prole­
tários, a pretexto de que tudo, nas obras que produzem, é
apenas fealdade e miséria; daqueles que nada concebem
além da reportagem sórdida, do monumento fúnebre e
do bosquejo de estabelecimentos penais; que mais não
sabem do que agitar-nos diante dos olhos o espectro de
Zola, do Zolà que eles revolvem sem que consigam sub­
trair-lhe o que quer que seja e que, abusando sem escrú­
pulos de quanto vive, sofre, murmura e espera, opõem-se
a qualquer pesquisa séria, esforçam-se por impossibilitar
qualquer descoberta, e, socolor de darem o que sabem ser
188
impossível de receber — o entendimento imediato e ge­
neralizado daquilo que se cria — são, ao mesmo tempo,
os piores contemptores do espírito e os mais certos dos
contra-revolucionários.
É lamentável, começava eu a dizer acima, que esfor­
ços mais sistemáticos e mais constantes, tais como nunca
deixou de exigir o surrealismo, não tenham sido feitos no
que se relaciona com a escrita automática, por exemplo, e
as narrativas de sonhos. Apesar da nossa insistência em
introduzir textos desta natureza nas publicações surrealis­
tas e do lugar de destaque que eles ocupam em certas obras,
cumpre admitir que o interesse que apresentam mal se
sustém, por vezes, ou que se assemelham, um pouco de­
masiado, talvez, a “trechos de bravura”.45 O aparecimento
de algum clichê indiscutível na trama desses textos é tam­
bém de todo ponto prejudicial à espécie de conversão que
com eles desejávamos operar. Culpa é da enorme negli­
gência da maioria de seus autores, que, de modo geral, se
contentaram com deixar correr a pena sobre o papel sem
minimamente observarem o que então se passava neles —
muito embora esse desdobramento seja mais fácil de apre­
ender e mais interessante de considerar do que o da escrita
refletida — , ou com reunir, de modo mais ou menos arbi­
trário, elementos oníricos destinados antes a brilhar pelo
pitoresco do que a permitir a compreensão útil de suas
funções. Tal confusão, escusa dizer, priva-nos naturalmente
de qualquer benefício que poderíamos tirar de atividades
desse tipo. Com efeito, o grande valor que elas têm para o
189
surrealismo prende-se ao fato de serem capazes de pôr-nos
ao alcance extensões
particulares: aquelas, precisa­
mente, em que a faculdade lógica, até aqui exercida, em
tudo e por tudo, 110 âmbito do consciente, não se exerce.
Que digo?! Não somente estas extensões lógicas permane­
cem inexploradas, mas nós também permanecemos tão
pouco informados como sempre sobre a origem dessa voz
que cada um de nós está apto a ouvir, desde que o queira,
e que nos fala do modo mais singular a respeito de coisas
diferentes das que cremos pensar, que às vezes assume um
tom grave quando sentimos o ânimo mais leve do que
nunca, ou nos conta frivolidades nos tempos de infortú­
nio. Por outro lado, ela não obedece a uma simples neces­
sidade de contradição... Quando estou sentado diante de
minha mesa ela me fala de um homem que sai de um
vaiado, sem dizer-me, naturalmente, quem seja ele; insis­
to, e ela mo representa com grande precisão: não, não o
conheço de modo algum. E no curto espaço de tempo em
que registro este fato já o perdi de vista para sempre. Eu
ouço, estou longe do “Segundo Manifesto do Surrealis­
mo”... Não é preciso multiplicar os exemplos: é ela que
fala assim... Porque os exemplos bebem... Perdão, eu tam­
bém não compreendo. O importante seria saber até que
ponto esta voz tem autoridade para me repreender, por
exemplo: nãò é preciso multiplicar os exemplos (e sabe-se,
desde que apareceram Os Cantos de Maldoror,46 quão pe­
netrantes podem ser suas intervenções críticas). Quando
ela me responde que os exemplos bebem (?), quer isto di­
zer que a faculdade que dela se serve está-se esquivando?
190
E, a ser assim, por quê? Estava ela para explicar-se no ins­
tante mesmo em. que me dei pressa em surpreendê-la sem
que dela lograsse assenhorear-me? Um problema desses
não interessa apenas ao surrealismo- Ao exprimir-se, ho­
mem algum faz mais do que aceitar uma possibilidade de
conciliação muito obscura daquilo que ele sabia que tinha
para dizer com aquilo que, sobre o mesmo assunto, ele
não sabia que tinha para dizer e que, não obstante, ele
disse. O mais rigoroso pensamento não pode prescindir
deste adjutório, conquanto indesejável do ponto de vista
do rigor. Ocorre, de fato, um torpedeamento da idéia no
interior da frase que a enuncia, até mesmo quando essa
frase está isenta de quaisquer encantadoras liberdades to­
madas com seu sentido. O dadaísmo quis, acima de tudo,
chamar a atenção para esse torpedeamento. Q uanto ao
surrealismo, sabe-se que, mediante o recurso ao automatismo, ele se empenhou em livrar de tal torpedeamento
um navio qualquer: algo como um navio-fantasma (esta
imagem, da qual quiseram servir-se contra mim, pareceme boa, por mais gasta que esteja, e por isso a retomo
aqui).
Cabe-nos, pois, dizia eu, tentar perceber com clare­
za cada vez maior o que se trama, sem que o homem o
saiba, nas profundezas de sua mente, ainda quando ele
começasse por nos incriminar de seu próprio turbilhão.
Bem longe estamos, em tudo isto, de querer reduzir a par­
te do discernível, e nada poderia ser menos recomendável
do que encaminhar-nos ao estudo científico dos comple­
xos. É certo que o surrealismo, que vimos adotar social­
191
mente, de caso pensado, a fórmula marxista, não preten­
de dar como algo de somenos valia a crítica freudiana das
idéias: muito pelo contrário, considera tal crítica a pri­
meira em importância e a única assentada em bases fir­
mes. Se lhe é impossível assistir indiferente ao debate que,
diante de seus olhos, opõe uns aos outros os representan­
tes autorizados das diversas tendências psicanalíticas —
do mesmo modo que é levado, dia a dia, a considerar apai­
xonadamente a luta que se trava na mais alta instância da
Internacional — , não lhe cabe intervir numa controvérsia
que, segundo lhe parece, por muito tempo ainda só pros­
seguirá de maneira útil se permanecer circunscrita ao âm­
bito dos que praticam a psicanálise. Tal não é o domínio
onde pretenda pôr em relevo o resultado de suas experiên­
cias pessoais. Mas, como àqueles a quem congrega lhes é
dado, por sua própria natureza, considerar muito especi­
almente o conceito freudiano sob cujo efeito recai a maior
parte de sua agitação enquanto homens — a preocupação
com criar e destruir artisticamente (refiro-me à definição
do fenômeno de “sublimação”),47 — o surrealismo pede a
estes, essencialmente, que tragam ao desempenho de sua
missão uma consciência nova, de tal sorte que possam su­
plementar, mediante uma auto-observação que, no caso
deles, tem valor excepcional, tudo aquilo que deixa a de­
sejar a penetração dos estados de alma ditos “artísticos”
por homens que não são artistas mas, quase sempre, mé­
dicos. Por outro lado ele exige que, tomando caminho
oposto ao que até aqui os vimos seguir, aqueles que possu­
am, no sentido freudiano, a “preciosa faculdade” de que
192
ora falamos se dediquem a estudar a esta luz o mecanismo
entre todos complexo da inspiração e, a partir do momen­
to em que esta deixa de ser considerada coisa sagrada, sem
embargo da confiança que depositam em sua extraordiná­
ria virtude, só pensem em fazer com que caiam seus últi­
mos vínculos e até mesmo — coisa que jamais alguém
ousara imaginar — em submetê-la. A propósito disto, é
ocioso enredarmo-nos em sutilezas: todos sabem suficien­
temente o que se entende por inspiração. Não há como
equivocar-se: foi ela que veio em socorro das supremas
necessidades de expressão em todos os tempos e lugares.
Diz-se, de ordinário, que ela está ou não zská presente\ e, se
ela não está presente, nada do que sugerem, comparados a
ela, a habilidade humana, que obliteram o interesse e a
inteligência discursiva, e o talento que se adquire pelo tra­
balho, nada disso pode remediar-lhe a ausência.48 Reconhecemo-Ia sem dificuldade por essa tomada de posse total
do nosso espírito que, de longe em longe, impede que,
para cada problema colocado, estejamos à mercê de uma
solução racional de preferência a outra solução racional;
por essa espécie de curto-circuito que ela provoca entre
uma idéia dada e a manifestação que lhe corresponde (es­
crita, por exemplo). Assim como no mundo físico, o curto-circuito ocorre quando os dois “pólos” da máquina são
reunidos por um condutor de resistência nula ou demasi­
ado fraca. Na poesia, na pintura, o surrealismo fez o im­
possível para multiplicar esses curtos-circuitos. Para ele
nada será jamais tão importante quanto reproduzir artifi­
cialmente o momento ideal em que o homem, tomado de
193
uma emoção particular, é repentinamente possuído por
algo “mais forte do que ele” que o arremessa, contra a pró­
pria vontade, na imortalidade. Estivesse ele lúcido e des­
perto, sairia aterrorizado daquele lance crítico. O mais
importante é que ele não tenha a liberdade de fazê-lo, que
continue a falar enquanto dura esse misterioso repicar de
sinos: pois é exatamente no deixar de pertencer-se que ele
passa a pertencer-nos. Esses produtos da atividade psíqui­
ca, tão distantes quanto possível da vontade de significar,
tão desembaraçados quanto possível das idéias de respon­
sabilidade sempre prontas para agir como freios, tão inde­
pendentes quanto possível de tudo o que não é a vida
passiva da inteligência, esses produtos que são a escrita au­
tomática e as narrativas de sonhos,49 apresentam ao mes­
mo tempo a vantagem de serem os únicos a fornecer
elementos de apreciação de grande estilo a uma crítica que,
no domínio artístico, se mostra estranhamente desampa­
rada; de permitirem uma reclassificação geral dos valores
líricos; e de proporem uma chave que, capaz de abrir ili­
mitadamente essa caixa de muitos fundos que é o homem,
o dissuade de dar meia-volta, por razões de simples autopreservação, ao chocar-se na sombra com as portas apa­
rentemente fechadas do “além”, da realidade, da razão, do
gênio e do amor. Chegará o dia em que as pessoas não se
permitirão tratar com insolência, como até aqui se tem
feito, estas provas palpáveis de uma existência diferente
da que julgamos levar. E hão de espantar-se, então, de
que, tendo chegado tão perto da verdade, como chega­
mos, tenhamos tido o cuidado de coletivamente adotar
194
um álibi literário ou de outra natureza, ao invés de nos
lançarmos à água sem saber nadar, ou de entrarmos no
fogo sem crer na fênix, a fim de atingirmos esta verdade.
A culpa, repito, não nos pode ser atribuída indiscri­
minadamente. Ao tratar da falta de rigor e de pureza em
que, até certo ponto, soçobraram estes esforços elementa­
res, espero verdadeiramente mostrar o que está contami­
nado, no momento atual, naquilo que passa, em já dema­
siadas obras, por expressão genuína do surrealismo. Nego,
em grande parte, a adequação daquela expressão e desta
idéia. A inocência e à cólera de alguns homens ainda por
vir é que caberá resgatar aquilo que não puder deixar de
ainda estar vivo no surrealismo, e restituí-lo, às custas de
uma vasta depuração, a seus fins autênticos. Até lá bastarnos-á, a meus amigos e a mim, reerguer com um em pur­
rão dos ombros a silhueta inutilmente sobrecarregada de
flores, mas sempre imperiosa. A débil medida em que,
desde agora, o surrealismo nos escapa não é bastante para
fazer-nos temer que ele venha a servir a outros contra nós.
É sem dúvida lamentável que Vigny tenha sido um indi­
víduo tão pretensioso e obtuso, que Gautier tenha sofrido
de diminuição das faculdades na velhice, mas não é la­
m entável para o romantismo. C o n trista pensar que
Mallarmé tenha sido um rematado pequeno burguês ou
que tenha havido quem acreditasse no valor de Moréas,
mas, se o simbolismo fosse uma coisa, ninguém se entris­
teceria pelo simbolismo, etc. Do mesmo modo, não creio
que haja grave inconveniência para o surrealismo em re-
195
gisrrar a perda de tal ou qual individualidade, ainda que
brilhante, sobretudo nos casos em que ela (que, por isso
mesmo, já não é inteiriça) indica por todo seu comporta­
mento que deseja retornar à norma. Assim é que, depois
de lhe dar um tempo inacreditável para se recuperar da­
quilo que esperávamos fosse apenas um abuso passageiro
de suas faculdades críticas, vemo-nos na obrigação de dar
a entender a Desnos que, dele já não esperando o que
quer que seja, mais não podemos fazer que liberá-lo de
quaisquer compromissos por ele assumidos para conosco.
Não há dúvida de que cumpro este dever com certa triste­
za. Ao contrário de nossos primeiros companheiros de
caminhada que jamais nos esforçamos por reter, Desnos
desempenhou um papel necessário e inesquecível no sur­
realismo e este momento seria pessimamente escolhido
para negá-lo. (Mas Chirico também, não é verdade, e, no
e n tan to ...) Livros como Luto por Luto, A Liberdade ou o
Amor, Esta Frase, "Vejo-me ” São as Botas de Sete Léguas?0 e
tudo aquilo que a lenda, menos bela que a realidade, con­
cederá a Desnos em prêmio de uma atividade despendida
não apenas em escrever livros por muito tempo militarão
a favor do que ele, atualmente, se dedica a combater. Bas­
ta saber que tudo isto se passava há quatro ou cinco anos.
Desde então, Desnos, grandemente desservido neste do­
mínio pelos poderes que durante algum tempo o haviam
sublevado e que ele ainda parece ignorar que eram pode­
res das trevas, decidiu, infelizmente, agir no plano real, no
qual ele não era senão um homem mais pobre e mais só
que outro qualquer, como são aqueles que viram, isto é,
196
que viram as coisas que os outros se temem de ver e que
estão condenados a viver não tanto aquilo que é, quanto o
que “foi” e o que “será”. “Por falta de cultura filosófica”,
como ele, ironicamente, declara hoje em dia, não; mas,
talvez por falta de espíritofilosófico, e também, a seguir, por
não saber preferir sua personagem interior a esta ou àque­
la personagem exterior da história — mas, ainda assim,
que idéia infantil querer ser Hugo ou Robespierre! Todos
os que o conhecem sabem que foi isto que impediu Desnos
de ser Desnos — ele supôs que poderia entrègar-se im pu­
nemente a uma das atividades mais perigosas que há, a
atividade jornalística, e, por causa dela, deixar de respon­
der, pelo que lhe dizia respeito, a um pequeno número de
intimações brutais com as quais o surrealismo se viu con­
fro n tad o ao longo de seu cam inho: m arxism o ou
antimarxismo, por exemplo. Agora que esse método indi­
vidualista mostrou o que vale, que essa atividade de Desnos
devorou a outra por completo, é-nos dolorosamente im­
possível deixar de declarar nossas conclusões a respeito
disto. O que tenho a dizer é que, uma vez que essa ativida­
de ultrapassa, nos tempos que correm, os quadros em que
já nao era muito tolerável que ela se exercesse (Paris-Soir,
leSoir, leMerle), cabe denunciá-la, em primeiro lugar, como
semeadora de confusão. O artigo intitulado “Os Merce­
nários da Opinião” e atirado, como se fora o dom de um
potentado que chega ao poder, à insigne lata de lixo que é
a revista Bifur; é bastante eloqüente por si mesmo: nele
Desnos pronuncia a própria condenação, e em que estilo!
“São múltiplos os costumes do redator. Em geral, ele é um
197
empregado relativamente pontual, passavelmente preguiço­
so \ etc., etc. Encontram-se ali homenagens ao sr. Merle, a
Clémenceau, e esta confissão ainda mais aflitiva do que o
resto: “o jornal é um ogro que mata aqueles que o fazem
viver”.
Depois disto, quem se admirará de ler, num jornal
qualquer, este estúpido suelto: “Robert Desnos, poeta surre­
alista a quem o sr. M an Ray encomendou o roteiro de seu
film e Estrela do Mar,51 fe z comigo, ano passado, uma via­
gem a Cuba. E sabeis o que ele, Robert Desnos, me recitava
sob as estrelas tropicais? Alexandrinos, a-le-xan-dri-nos. E
(mas, por favor, não o repitais por aí, que isso deitaria a
perder a reputação desse poeta encantador), quando esses
alexandrinos não eram de Jean Racine, eram dele mesmoP
N a verdade eu penso que esses alexandrinos se empare­
lham com a prosa aparecida em Bifur. Esta facécia, que
acabou por nem sequer ser duvidosa, começou no dia em
que Desnos, rivalizando neste pasticho com o sr. Ernest
Raynaud, sentiu-se autorizado a forjar de cabo a rabo um
poema de Rimbaud que nos faltava: “Os Veladores, de
A rthur Rimbaud”, abrindo A Liberdade ou o Amor. Não
creio que, assim como os do mesmo gênero que se lhe
seguiram, ele acrescente algo à glória de Desnos. Cumpre
não somente conceder aos especialistas que esses versos
são maus (falsos, farfalhentos e ocos), mas também decla­
rar que, do ponto de vista surrealista, eles atestam uma
ambição ridícula e uma incompreensão imperdoável dos
objetivos da poesia de nosso tempo.
198
Esta incompreensão, por parte de Desnos e de al­
guns outros, aliás, está tomando uma feição tão ativa que
me sinto dispensado de estender-me longamente a respei­
to dela. A guisa de prova decisiva, deter-me-ei apenas na
idéia inqualificável, que lhes ocorreu, de dar a uma boate
de Montparnasse, teatro habitual de suas lamentáveis pro­
ezas noturnas, o único nome lançado através dos séculos
que veio a constituir um puro desafio a tudo quanto há de
estúpido, de baixo e de nojento neste mundo: Maldoror.
“Parece que as coisas não vao lá muito bem entre os
surrealistas. Consta que os senhores Breton e Aragon tor­
naram-se insuportáveis, assumindo ares de alto comando.
Disseram-me até que alguém juraria tratar-se de dois sargentos-ajudantes reengajados. Sabe como são essas coisas.
Há quem não goste da idéia. Resumindo, parece que al­
gumas pessoas concordaram em batizar de Maldoror um
novo cabaret-dancing de Montparnasse. Eles dizem que
Maldoror, para um surrealista, é o mesmo que Jesus Cristo
para um cristão, e que ver semelhante nome num a tabule­
ta vai certamente escandalizar esses dois cavalheiros, Breton
e Aragon.” (Candide, 9 de janeiro de 1930). O autor das
linhas precedentes, que esteve no local em questão, co­
munica-nos, sem qualquer malícia e no estilo displicente
que quadra bem a suas observações: “.. .Naquele momen­
to chegou um surrealista, o que fez dele um freqüentador
a mais. E que freqüentador! O sr. Robert Desnos. Causou
grande desapontamento o fato de ele pedir somente um
suco de limão. Diante do pasmo geral, ele explicou com
199
uma voz pastosa: ‘É a única coisa que consigo tomar. Es­
tou bêbado há dois dias!’”
Q ue lástima!
Ser-me-ia, naturalmente, demasiado fácil aprovei­
tar-me da circunstância de que, hoje em dia, ninguém crê
que me pode atacar sem, ao mesmo tempo, “atacar” Lautréamont, vale dizer, o inatacável.
Desnos e seus amigos permitirão que, com toda a
serenidade, eu reproduza aqui as frases essenciais de mi­
nha resposta a um questionário já antigo do Disco Verde?2
frases em que nada tenho a mudar e que eles não poderão
negar terem aprovado cabalmente naquela ocasião:
“Por mais que tenteis, sao muito poucos os que hoje
em dia se guiam por esse clarão inesquecível, uma vez fe­
chados Maldoror e as Poesias, esse clarão que não seria ne­
cessário ter sido conhecido para que ele ousasse verdadei­
ramente produzir-se e ser. A opinião dos outros pouco
importa. Lautréamont, um homem, um poeta, até mes­
mo um profeta? Tende paciência! A suposta necessidade
literária que invocais não conseguirá desviar o Espírito
dessa intimação, a mais dramática que jamais existiu, nem
do que permanece e para sempre permanecerá como a
negação de toda sociabilidade, de toda coerção humana,
fazer um valor de troca precioso e um elemento de pro­
gresso qualquer. Em vão se esforçam a literatura e a filoso­
fia contemporâneas para não levarem em conta uma reve­
lação que as condena. As conseqüências disto é o mundo
inteiro que as sofrerá sem o saber, e não é por outra razão
que os mais clarividentes e os mais puros dentre nós não
200
se podem furtar à necessidade de morrer na liça. A liber­
dade, cavalheiro...”
Em negação tão grosseira quanto a associação da
palavra Maldoror à existência de um bar imundo, há m o­
tivos suficientes para que, doravante, eu me coíba de for­
mular o menor julgamento sobre o que quer que Desnos
escreva. Limitemo-nos, poeticamente, a essa orgia de qua­
dras.53 É a isso que leva o uso imoderado do dom verbal,
quando ele se destina a mascarar uma ausência radical de
pensamento e a renovar a tradição imbecil do poeta “nas
nuvens”: na hora mesma em que se rompeu com essa tra­
dição, e se rompeu bem, a despeito do que possam pensar
certos versejadores retardatários; em que ela cedeu aos es­
forços conjugados desses homens a quem damos a prima­
zia porque eles realmente quiseram dizer algo — Borel, o
Nerval de Aurélia, Baudelaire, Lautréamont, o Rimbaud
de 1874-1875, o Huysmans da primeira fase, o Apollinaire
dos “poemas-conversas” e das “ Quelconqueries”?Aé peno­
so que um dos que supúnhamos ser um dos nossos se de­
dique a dar-nos, exteriormente, o golpe do “Barco ébrio”,55
ou a readormecer-nos ao som das “Estâncias”.56 Verdade
é que a questão poética, nestes últimos anos, deixou de
colocar-se no ângulo estritamente formal e, certamente,
interessa-nos mais julgar do valor subversivo de uma obra
como a de Aragon, de Crevel, de Éluard, de Péret, tendo
em vista a luz que lhe é própria e aquilo que, a essa luz, o
impossível confere ao possível, o permitido rouba ao proi­
bido, do que saber por que este ou aquele escritor julga
melhor, aqui ou acolá, começar uma nova linha.57 Razão
201
a menos para que insistam em falar-nos da cesura: por
que nao poderia haver, também entre nós, partidários de
uma técnica particular do “verso livre” e nao se desenter­
raria o cadáver de Robert de Souza? A Desnos lhe apetece
rir; quanto a nós, não estamos prontos para tranqüilizar o
m undo tão facilmente,
Cada dia nos traz, na ordem da confiança e da espe­
rança que, com raras exceções, depositamos com excessiva
generosidade nas pessoas, uma nova decepção que é preci­
so ter a coragem de confessar, quando por mais não seja,
por medida de higiene mental, a fim de consigná-la na
coluna do saldo horrivelmente devedor da vida. Direito
não tinha Duchamp de abandonar a partida que ele joga­
va, nas imediações da guerra, por uma interminável parti­
da de xadrez, que dá, talvez, uma idéia curiosa de uma
inteligência a que repugna servir*, mas que também — sem­
pre esse execrável Harrar — parece pesadamente afligida
pelo cepticismo, na medida em que ela se recusa a dizer
por quê. Ainda menos convém tolerarmos ao sr. RibemontDessaignes que dê por seqüência de O Imperador da Chi­
na58 uma série de odiosos romancezinhos policiais, mes­
mo assinados Dessaignes, nas mais baixas folhas cinema­
tográficas. Inquieto-me, enfim, com pensar que Picabia
poderia estar prestes a renunciar a uma atitude de provo­
cação e de raiva quase puras, que às vezes nós mesmos
achávamos difícil conciliar com a nossa, mas que, ao me­
nos em poesia e pintura sempre nos pareceu defender-se
admiravelmente: ‘‘Aplicar-se a seu trabalho, a ele trazer a
202
técnica sublime, aristocrática, que jamais impediu a inspira­
ção poética e que, sozinha, permite a uma obra atravessar os
séculos e permanecer jovem ... É preciso prestar atenção... é
preciso que, entre os “conscienciosos” nos mantenhamos pró­
ximos uns dos outros e não tentemos pregar partidas desleais
aos companheiros. .. Épreciso favorecer o desabrochar do ide­
a r, etc. Ainda que movido por sentir pena de Bifur; onde
estas linhas apareceram, será o Picabia que conhecemos
quem fala assim?
Dito isto, sentimos, em contraste, o desejo de fazer
a um homem de quem estivemos separados durante lon­
gos anos a justiça de reconhecer que a expressão de seu
pensamento continua a interessar-nos; que, a julgar pelo
que podemos ainda ler dele, suas preocupações nao se tor­
naram estranhas a nós; e que, nessas condições, cabe tal­
vez pensar que nosso desentendim ento com ele não
assentava em nada tão grave quanto criamos. É certamen­
te possível que Tzara que, no começo de 1922, época da
liquidação de “Dadá” enquanto movimento, já nao estava
de acordo conosco sobre os meios de levar por diante a
atividade comum, tenha sido vítima de prevenções exces­
sivas que, por essa razão, tínhamos contra ele — ele tam­
bém as tinha em excesso contra nós — e que, por ocasião
da demasiadamente famosa representação do Coração com
B a r b a i para que a nossa ruptura tenha tomado a feição
que se sabe tenha bastado um gesto desastrado de sua par­
te, sobre cuja significação ele declara — vim a sabê-lo há
pouco — que nós nos enganamos. (É preciso reconhecer
203
que a maior confusão foi sempre o objetivo principal dos
espetáculos “D a d a ’, que no espírito dos organizadores o
mais importante de tudo era, entre a cena e a sala, levar ao
ápice o mal-entendido. Ora bem, naquela noite nem to­
dos nos encontrávamos do mesmo lado.) Q uanto a mim,
aceito essa versão de muito bom grado e, desde já, não
vejo qualquer outra razão que impeça de insistir, junto a
quantos deles participaram, para que tais incidentes cai­
am no esquecimento. Desde o tempo em que eles ocorre­
ram a atitude intelectual de Tzara não deixou de ser
inequívoca; e julgo que seria dar provas de estreiteza de
espírito não lho reconhecer publicamente. Pelo que nos
diz respeito, meus amigos e eu gostaríamos de mostrar,
através desta reaproximação, que o que em todas as cir­
cunstâncias norteia nosso comportamento não é, de modo
algum, o desejo sectário de fazer prevalecer, a todo transe,
um ponto de vista que nem sequer pediríamos que Tzara
partilhasse conosco integralmente, mas, isto sim, a preo­
cupação de reconhecer o valor— aquilo que entendemos
por valor — onde quer que se encontre. Nós cremos na
eficácia da poesia de Tzara, e isto eqüivale a dizer que, fora
do surrealismo, consideramo-la a única verdadeiramente
situada. Q uando falo de sua eficácia quero dizer que ela é
operante no mais vasto dos âmbitos e que, hoje em dia,
ela representa uma passada no sentido da libertação hu­
mana. Q uando eu digo que ela é situada, compreenderse-á que a oponho a quantas poderiam ser tanto de ontem
como de anteontem; na primeira linha das coisas que
Lautréamont não tornou completamente impossíveis en­
204
contra-se a poesia de Tzara. Tendo De Nossos Pássaros60
acabado de aparecer, nao é, muito afortunadamente, o si­
lêncio da imprensa que tão cedo porá cobro a seus malfei­
tos.
Sem ter, portanto, necessidade de pedir a Tzara que
recupere o controle de sua situação, gostaríamos simples­
mente de exortá-lo a tornar suas atividades mais visíveis
do que têm sido nestes últimos anos. Sabendo que ele pró­
prio deseja, como no passado, unir seus esforços aos nos­
sos, recordemos-lhe que, em suas mesmas palavras, ele
escrevia “para ir em busca de homens e nada m ais\ Neste
ponto, como ele há de lembrar-se, éramos iguais. Não
permitamos, pois, que venham a crer que assim nos en­
contramos para, em seguida, nos perdermos.
Busco alguém, à minha volta, com quem trocar ain­
da, se possível, um gesto de entendimento, mas em vão:
não há ninguém. Caberá talvez, se tanto, fazer ver a Daumal, que dá início, em O Tarôfxa uma interessante inves­
tigação sobre o Diabo, que nada nos impediria de aprovar
grande parte das declarações que ele assina sozinho ou com
Lecomte, não fosse a impressão passavelmente desastrosa
de sua fraqueza em dada circunstância?62 Por outro lado,
é lamentável que Daumal tenha evitado, até aqui, precisar
sua posição pessoal e, pela parte de responsabilidade que
lhe toca, a posição de Le GrandJeu a respeito do surrealis­
mo. É difícil de compreender que aquilo que, subitamen­
te, granjeia a Rimbaud um excesso de honras nao granjeie
a Lautréamont a deificação pura e simples. “A incessante
205
contemplação de uma Evidência negra, goela absoluta ’, es­
tamos todos de acordo, é a coisa a que nos vemos conde­
nados. A favor de que objetivos mesquinhos, já agora, se
há de opor um grupo ao outro grupo? Por que, a não ser
por tentar em vão se distinguir, fazer como se jamais tives­
se sido proferido o nome de Lautréamont? aMas os gran­
des anti-sóis negros, poços de verdade na trama essencial, no
véu gris do céu curvo, vão e vem e aspiram um ao outro, e os
homens os chamam Ausências.” (Daumal: “Fogos à vonta­
de”,63 Le GrandJeu> primavera de 1929.) Aquele que as­
sim fala, tendo a coragem de dizer que já não se possui,
não tem razão alguma, como não poderá deixar de em
breve perceber, para preferir-se apartado de nós.
Alquimia do verbo: estas palavras que se vão repe­
tindo um pouco ao acaso, hoje em dia têm de ser entendi­
das ao pé da letra. Se o capítulo de Uma Estação no InfernoGA por elas designado não lhes justifica, talvez, toda a
ambição, nem por isso é menos verdade que ele pode ser
considerado o mais autêntico ponto de partida da difícil
atividade que, hoje em dia, somente o surrealismo leva
adiante. Poderíamos ser tachados de infantilismo literário
se pretendêssemos não dever tanto a esse ilustre texto.
Porventura o admirável século XIV é menos grande no
que respeita à esperança humana (e, bem entendido, ao
desespero), porque um homem de gênio como Flamel65
recebeu de um poder misterioso o manuscrito, que já exis­
tia, do livro de Abraão Judeu, ou porque os segredos de
Hermes não haviam sido inteiramente perdidos? Ando
206
longe de o crer, e julgo que as pesquisas de Flamel, com
tudo o que apresentam, aparentemente, de concreto bom
êxito, nada perdem por terem sido assim ajudadas e ante­
cipadas. Tudo se passa da mesma maneira em nosso tem­
po, como se, por meios sobrenaturais, a certos homens
tivesse sido dada a posse de uma compilação de textos
singular, devida à colaboração de Rimbaud, de Lautréam ont e mais alguns, e que uma voz lhes tivesse dito, como
o anjo a Flamel: “Olhai bem este livro, não compreendereis
nada do que ele contém, mas nele vereis um dia o que
ninguém será capaz de ver.66 Já não depende deles o se­
rem arrebatados por essa contemplação. Chamo a atenção
para o fato de que os esforços dos surrealistas apresentam
uma notável analogia, quanco ao fim a alcançar, com as
pesquisas alquímicas: a pedra filosofal nada mais é que
aquilo que deveria permitir à imaginação humana tomar
de todas as coisas uma vingança fulgurante, e eis-nos de
novo, depois de séculos de domesticação do espírito e louca
resignação, tentando novamente libertar essa imaginação
pelo “longo, imenso, racional desregramento de todos os sentidos ’67e o que se segue. Talvez não façamos mais que ador­
nar modestamente as paredes de nossos aposentos com
figuras que, à primeira vista, nos parecem belas, ainda nisto imitando a Flamel antes de encontrar seu primeiro agente, sua “matéria”, seu “forno”. Assim é que ele gostava de
mostrar “um Rei com um grande cutelo, que fazia com que
os soldados matassem., em sua presença., uma grande multi­
dão de criancinhas, cujas mães choravam aos pês dos impie­
dosos gendarmes, sendo o sangue destas criancinhas recolhido
207
depois por outros soldados e posto numa grande vasilha, a
que vinham banhar-se o Sol e a Lua do cêu \ e bem perto
dali havia “ um moço com asas nos calcanhares e um caduceu
na mão, com o qual batia numa celada que lhe cobria a
cabeça. Na direção dele vinha correndo e voando com asas
abertas um grande velho, o qual trazia um relógio preso a
c a b e ç a Nao se poderia dizer que este é o quadro surrealista
por excelência? E quem sabe se3mais adiante, graças a uma
evidência nova, ou nao, não nos encontraremos confron­
tados com a necessidade de nos servirmos de objetos in­
teiramente novos ou considerados abolidos para sempre?
Não creio que se recomece, necessariamente, a engolir
corações de toupeiras ou a escutar como as batidas do pró­
prio coração o ruído da água a ferver numa caldeira. O u,
por outra, eu nada sei, aguardo. Sei apenas que o homem
não está prestes a ver-se livre de seus sofrimentos e o que
eu realmente saúdo é a volta daquele furor68 do qual Agripa>69 com razão ou sem ela, distinguia quatro espécies. No
âmbito do surrealismo é unicamente com este furor que
lidamos. E fique bem claro que não se trata apenas de um
simples reagrupamento das palavras ou de uma redistribuição caprichosa das imagens visuais, mas da recriação
de um estado que já não tenha nada que invejar à aliena­
ção mental: os autores modernos que eu cito explicaramse suficientemente a este respeito. Que Rimbaud tenha
havido por bem desculpar-se daquilo que chama de seus
“sofismas” é problema dele; que a coisa, em palavras suas,
tenha passado não tem o menor interesse para nós. Nisso
i mais não vemos que uma pequena pusilanimidade que
208
em nada predetermina o destino que certas idéias podem
ter. “ Hoje sei saudar a beleza'\ Rimbaud é imperdoável por
ter-nos querido fazer crer numa segunda fuga sua, no
momento mesmo em que retornava à prisão. — “Alqui­
mia do verbo”: pode-se também lamentar que a palavra
“verbo” seja tomada, aqui, numa acepção um pouco res­
tritiva e Rimbaud parece reconhecer, aliás, que a “velharia
poética” ocupa demasiado lugar nessa alquimia. O verbo
é mais do que isso e, para os cabalistas, por exemplo, não
é nada menos que o modelo a partir do qual foi criada a
imagem da alma humana; sabe-se que o guindaram a pri­
meiro exemplar da causa das causas; por essa razão está ele
presente tanto no que tememos quanto no que escreve­
mos e no que amamos.
Digo que o surrealismo ainda se encontra no perío­
do dos preparativos e apresso-me em acrescentar que tal­
vez este período dure tanto quanto eu (quanto eu na
modestíssima medida em que ainda não me encontro pre­
parado para admitir que um certo Paul Lucas tenha reen­
contrado Flamel em Bursa, no começo do século XVII,
que o mesmo Flamel, acompanhado da mulher e de um
filho tenha sido visto na Ópera, em 1761, e que ele tenha
aparecido brevemente em Paris, no mês de maio de 1819,
(época na qual, segundo se conta, ele alugou uma loja em
Paris, na Rua de Cléry, 22). O fato é que, para falarmos
grosseiramente, esses preparativos são de ordem “artísti­
ca”. Prevejo, contudo, que eles terão fim e que, então, as
idéias perturbadoras que o surrealismo acolhe aparecerão
209
por entre o ruído de um vasto dilaceramento e circularão
à larga. Deve-se esperar tudo da orientação moderna de
certas vontades futuras: ao se afirmarem depois das nos­
sas, elas se mostrarão mais implacáveis do que as nossas.
Como quer que seja, dar-nos-emos por satisfeitos de ter­
mos contribuído para estabelecer a inanidade escandalosa
daquilo que, ao chegarmos, ainda se pensava e de haver­
mos sustentado — quando mais não fosse, apenas susten­
tado — ser necessário que o pensamento sucumbisse enfim
sob o pensável.
Pode-se perguntar a quem, exatamente, desejava
Rimbaud desencorajar, quando ameaçou com estupor e
loucura os que se dispusessem a seguir estas pegadas. Lautréam ont começa por prevenir o leitor de que “a não ser
que ele se disponha a lê-lo com uma lógica rigorosa e uma
tensão anímica quando menos igual à sua desconfiança, as
emanações mortais deste livro — Os Cantos de Maldoror
— penetrar-lhe-ão a alma, como a água penetra o açúcar\
mas tem o cuidado de acrescentar que “somente alguns sa­
borearão estefruto amargo sem p e r ig o Esta questão da mal­
dição, que até o presente praticamente só deu ensejo a
comentários irônicos ou irrefletidos, é, mais do que nun­
ca, atual. O surrealismo só tem a perder se quiser afastar
de si tal maldição. Cabe restaurar e manter aqui o “Maranatha” dos alquimistas, colocado no limiar da obra para
deter os profanos. Direi mesmo que é isto o que julgo ser
mais urgente fazer compreender a alguns de nossos ami­
gos, que me parecem mais preocupados, por exemplo, com
a venda de seus quadros e com a aplicação do dinheiro
210
dela resultante. “Eu gostaria muito”, escrevia Nougé re­
centemente, “que aqueles dentre nós cujo nome está come­
çando a aparecer obscurecessem-noEmbora sem saber ao
certo a quem ele tinha em mente, julgo não ser demasiado
pedir a uns e outros que parem de exibir-se complacentemente e de apresentar-se em espetáculos de feira. Acima
de tudo há de evitar-se a aprovação do público. Se é a
confusão que se deseja evitar cumpre impedir a todo o
custo que o público entre. Digo mais: é preciso mantê-lo
exasperado à porta, mediante um sistema de desafios e
provocações.
Eu
PEÇO A OCULTAÇÃO PROFUNDA, VERDADEIRA, DO
SURREALISMO.70
Proclamo, nesta matéria, o direito à severidade ab­
soluta. Nada de concessões às pessoas, nenhuma indul­
gência. A terrível alternativa de pegar ou largar.
Abaixo os que estariam prontos a distribuir entre os
pássaros o pão maldito.
“ Todo homem que, desejoso de atingir o fim supremo
da alma, parte para solicitar O rá c u lo s lê-se no Terceiro
Livro da Magia, “deve, para lá chegar, desprender inteira­
mente seu espírito das coisas vulgares, purificá-lo de toda do­
ença, fraqueza do espírito, malícia ou semelhantes defeitos, e
de toda. condição contrária à razão que a segue assim como a
ferrugem segue oferro'; e o Quarto Livro declara enérgica e
precisamente que a revelação esperada exige ainda que a
211
pessoa esteja “num lugar puro e claro, com as paredes todas
cobertas de tapeçarias brancas\ e que ela não afronte nem
os maus Espíritos nem os bons, a não ser na medida da
“dignificação” a que chegou. Ele insiste no fato de que o
livro dos maus Espíritos é feito “de um papel muito puro
que jamais serviu a qualquer outro uso’ e que é comumente
chamado de pergaminho virgem.
Não há qualquer exemplo de que os magos tenham
feito pouco do estado de limpeza resplendente de suas
vestes e de sua alma, e eu não compreenderia que, espe­
rando o que esperamos de certas práticas de alquimia
mental, aceitássemos mostrar-nos, neste particular, me­
nos exigentes do que eles. Eis aí, no entanto, o que mais
asperamente nos reprovam e que o sr. Georges Bataille,
atualmente empenhado, na revista Documentos,71 numa
agradável campanha contra o que ele chama de “a sede
sórdida de todas as integridades”, parece menos do que
todos disposto a perdoar-nos. O sr. Bataille me interessa
unicamente na medida em que ele se gaba de opor à dura
disciplina do espírito a que verdadeiramente desejamos
tudo submeter — e nós não vemos inconveniente em que
a Hegel se atribua a maior responsabilidade por este fato
— uma disciplina que nem sequer chega a parecer mais
frouxa, visto que ela tende a ser a do não-espírito (e é lá,
por sinal, que Hegel o aguarda).72 O sr. Bataille faz profis­
são de não querer considerar senão o que de mais vil, de
mais desalentador e corrompido há neste mundo, e con­
vida o homem, a fim de que este evite tornar-se útil ao que
quer que haja de determinado, “a correr absurdamente com
212
ele — com a vista subitamente turva e marejada de lágrimas
inconfessáveis — na direção de algumas provincianas casas
mal-assombradas, mais desagradáveis do que moscas, mais
depravadas, mais rançosas que salões de cabeleireirosSe me
sucede referir tais observações, isto se deve a que elas nao
me parecem empenhar somente o sr. Bataille, senão tam­
bém aqueles antigos surrealistas que quiseram ter plena
liberdade de ação a fim de se comprometerem aqui e aco­
lá. Pode ser que o sr Bataille tenha a capacidade de agrupálos; e que ele o consiga, será, segundo entendo, um fato
interessante. Tomando a partida pela corrida que, como
acabamos de ver, o sr. Bataille está organizando, já lá se
vêem os senhores Desnos, Leiris, Limbour, Masson e
Vitrac; é inexplicável que o sr. Ribemont-Dessaignes, por
exemplo, ainda lá não esteja. Digo que é extremamente
significativo ver reunirem-se de novo todos aqueles que
uma tara qualquer afastou de uma primeira atividade de­
finida, porque é muito provável que eles mais não tenham
que seus descontentamentos para pôr em comum. Divir­
to-me, por outro lado, ao pensar que não é possível a al­
guém sair do surrealismo sem dar de caras com o sr. Bataille,
tanto é verdade que o horror ao rigor só consegue tradu­
zir-se num a nova submissão ao rigor.
Com o sr. Bataille, fato por demais conhecido, as­
sistimos a uma volta agressiva do antigo materialismo
antidialético, que tenta, desta vez, abrir caminho gratui­
tamente através de Freud, “Materialismo diz ele, “inter­
pretação direta excludente de todo idealismo, dosfenômenos
brutos, materialismo que, a fim de não ser encarado como
213
um idealismo decrépito, deverá basear-se de imediato nos fe ­
nômenos econômicos esociais." Como nao se especifica aqui
o “materialismo histórico” (e, de resto, como seria possí­
vel fazê-lo?), vemo-nos obrigados a declarar que, do pon­
to de vista filosófico da expressão, ele é vago e, do ponto
de vista poético da novidade, é nulo.
O que é menos vago é o valor que o sr. Bataille pre­
tende conferir a um pequeno número de idéias particula­
res que ele tem e que, dado o caráter delas, será preciso
determinar se são do âmbito da medicina ou do exorcis­
mo, visto que, pelo que respeita h aparição da mosca no
nariz do orador, (Georges Bataille: “Figura Humana” [“Fi­
gure Humaine”], Documentos [Documents] n°4), argumen­
to supremo contra o eu, conhecemos todos a antífona
pascaliana e imbecil; há muito tempo que Lautréamont a
refutou: “O espírito do maior grande homem (sublinhemos
três vezes: maior grande homem) não ê tão dependente que
esteja sujeito a serperturbado pelo menor ruído da Algazarra
que se fa z ao seu redor. Não é necessário o silêncio de um
canhão para impedir-lhe ospensamentos. Não êpreciso o ruído
de um cata-vento, de uma roldana. A mosca não raciocina
bem neste momento. Um homem zumbe em suas orelhas.” O
homem que pensa pode deter-se no nariz de uma mosca,
da mesma forma que no alto de uma montanha. A única
razão por que estamos a tratar de moscas tão longamente
é o fato de o sr. Bataille amar as moscas. Nós não: nós
amamos a mitra dos antigos evocadores, a mitra de linho
puro a cuja parte anterior estava presa uma lâmina de ouro
e na qual as moscas não pousavam, porque haviam sido
214
feitas abluções que as afastassem. A infelicidade do sr. Ba­
taille é que ele raciocina como alguém que tem “uma mosca
no nariz”, o que o aproxima mais dos mortos que dos
vivos; mas ele raciocina. Valendo-se do pequeno mecanis­
mo que, nele, ainda não está inteiramente desarranjado,
esforça-se por compartilhar suas obsessões: e é até mesmo
por isso que, diga o que disser, não pode pretender oporse a todo e qualquer sistema como um grosseirão. O caso
do sr. Bataille tem este aspecto paradoxal e, para ele, cons­
trangedor: a partir do momento em que ele se esforça por
comunicá-la, sua fobia da “idéia” toma, necessariamente,
uma feição ideológica. Um estado de déficit consciente
em forma generalizadora, como diriam os médicos. Aqui
temos, com efeito, alguém que postula o princípio de que
o “horror não implica nenhuma complacência patológica e
desempenha apenas o papel do estrume no crescimento vege­
tal, um estrume de odor asfixiante, sem dúvida, mas salubre
à planta”. Esta idéia, sob uma aparência infinitamente
banal, é, por si mesma, desonesta ou patológica (seria pre­
ciso provar que Lúlio, e Berkeley, e Hegel, e Rabbe, e Baudelaire, e Rimbaud, e Marx, e Lênin viveram conspicuamente como porcos). Cabe notar que o sr. Bataille abusa
dos adjetivos de modo delirante: conspurcado, senil,
râncido, sórdido, licencioso, decrépito; e que essas pala­
vras, longe de servirem para denegrir uma situação insu­
portável, são as de que usa para exprimir o mais lírico dos
deleites. Tendo a “vassoura inominável” de que fala Jarry
caído no seu prato, o sr. Bataille declara-se encantado.73
Ele, que durante as horas do dia, passa seus dedos pruden-
215
tes de bibliotecário sobre velhos e, por vezes, encantado­
res manuscritos (sabe-se que ele exerce esta profissão na
Biblioteca Nacional), repasta-se de noite nas imundícias
de que, à sua própria imagem, gostaria de vê-los carrega­
dos: sirva de exemplo o Apocalipse de Saint-Sever, ao qual
ele consagrou um artigo no n° 2 de Documentos,74 artigo
este que é o protótipo perfeito do falso testemunho.
Examinai, por exemplo, a prancha do “Dilúvio” e dizeime se, objetivamente, “um sentimento jovial e inesperado
aparece com a cabra que figura na parte inferior da página e
com o corvo cujo bico está mergulhado na vianda (aqui o sr.
Bataille se exalta) de uma cabeça hum ana\ Atribuir apa­
rência humana a elementos arquiteturais, como ele faz ao
longo deste estudo e em outros lugares, é também, e nada
mais, um sintoma clássico de psicastenia. Na verdade o sr.
Bataille está somente muito cansado e, ao render-se à cons­
tatação, para ele espantosa, de que “ o interior de uma rosa
não corresponde de modo algum a sua beleza exterior; arran­
cadas as pétalas da corola} resta apenas um tufo de aspecto
sórdido”, tudo o que ele consegue é fazer-me sorrir à lem­
brança de um conto de Alphonse Aliais, no qual um sul­
tão esgotou tao completamente todos modos de distração
que seu grão-vizir, desesperado por vê-lo imerso em tédio,
não descobre nada melhor do que trazer-lhe uma jovem
belíssima, coberta de véus, que se poe a dançar somente
para ele. Ela é tao bela que o sultão ordena que, cada vez
que ela pare, façam cair um de seus véus. Nem bem aca­
bou ela de ser totalmente despida e o sultão ainda acena,
preguiçosamente, para que a desnudem: ao que, rapida­
216
mente, a esfoJam viva. Nem por isso é menos verdade que
a rosa, depois de privada de suas pétalas, continua a ser a
rosa, e, demais a mais, na história precedente a dançarina
continua a dançar.
E se depois disto me contestarem com “o gesto per­
turbador do Marquês de Sade trancafiado com os loucos, que
mandou que lhe trouxessem as mais belas rosas a fim de
desfolhá-las sobre o excremento líquido no interior de uma
latrind\ responderei que, para que este ato de protesto
perdesse seu extraordinário alcance bastaria que ele fosse
perpetrado, nao por um homem que passou vinte e sete
anos preso por suas idéias, mas por um refestelado funcio­
nário de biblioteca. Tudo leva a crer, com efeito, que Sade,
cujo desejo de alforria moral e social, ao contrário do de­
sejo do sr. Bataille, está acima de qualquer discussão, a
fim de obrigar o espírito humano a sacudir seus grilhões,
quis somente com aquilo atacar o ídolo poético, a “virtu­
de” de convenção que, bem ou mal, faz de uma flor, na
medida mesma em que todos podem oferecê-la, o brilhante
veículo dos sentimentos mais nobres e também dos mais
baixos. Convém, de resto, deixar em suspenso a aprecia­
ção de semelhante gesto que, ainda quando não seja pura­
m ente lendário, em nada poderia infirm ar a perfeita
integridade do pensamento e da vida de Sade e a necessi­
dade heróica que ele teve de criar uma ordem de coisas
que não dependesse, por assim dizer, de tudo o que ocor­
rera antes dele.
217
O surrealismo está menos disposto do que nunca a
abrir mão desta integridade, a contentar-se com o que uns
e outros, entre duas pequenas traições que eles julgam
autorizadas pelo obscuro, odioso pretexto de que é preci­
so viver bem, lhe abandonam. Nada temos a fazer com
essa esmola de “talentos”. O que nós pedimos, assim o
cremos, é de tal natureza que requer um consentimento
ou uma recusa total, não se contenta com palavras ou re­
cusas veleidosas. Queremos, ou não, arriscar tudo pelo
único prazer de perceber ao longe, no fundo mesmo do
cadinho em que propomos lançar nossas pobres comodi­
dades, o que nos resta de boa reputação e nossas dúvidas,
de cambulhada com a bonita vidraria “sensível”, a idéia
radical de impotência e a tolice de nossos supostos deveres, a luz que cessará de ser bruxuleantel
Dizemos que a operação surrealista só poderá ser
levada a bom termo se ela se efetuar em condições de
assepsia moral das quais ainda há muito poucos homens
que querem ouvir falar. Em falta delas, no entanto, será
impossível deter esse câncer do espírito que consiste em
pensar demasiado dolorosamente que certas coisas “são”,
ao passo que outras, que poderiam tão bem ser, “não são”.
Nós afirmamos que elas devem confundir-se, ou inter­
ceptar-se singularmente, no limite. Trata-se, não de per­
manecer alguém onde está, mas de tender necessária e
desesperadamente a esse limite.
O homem, que erroneamente se intimida com cer­
tos reveses históricos monstruosos, tem ainda a liberdade
de crerem sua liberdade. Ele é senhor de si mesmo, a des­
218
peito das velhas nuvens que passam e do embate suas for­
ças cegas. Não terá ele o senso da curta beleza oculta e da
acessível e longa beleza ocultável? A chave do amor, que o
poeta dizia ter achado,75 busque-a, também ele, com afin­
co: ele a tem. Somente dele depende o elevar-se acima do
sentimento passageiro de viver perigosamente e de mor­
rer. Que ele use, desprezando todas as proibições, da arma
perigosa da idéia contra a bestialidade de todos os seres e
de todas as coisas, e que um dia, vencido — mas vencido
apenas se o mundo for mundo — ele acolha a descarga de
seus tristes fuzis como uma salva.
219
A ntes, D
e p o is
Preocupadocomam
oral, istoé, comosentidodavida,
enãocomaobservânciadasleishum
anas, A
ndréBreton,
porseuam
ordavidaexataedaaventura, novam
entecon­
fereàpalavra“religião”osentidoquelheépróprio.
RO
BERTD
ESN
O
S.
Intenções [Intentions]
Caroam
igo, m
inhaadm
iraçãoporvósnãodependeda
perpétuaexaltaçãodevossas“virtudes”evossoserros.
G
EO
RG
ESRIBEM
O
N
T-D
ESSA
IG
N
ES
Variedades [Variétés]
M
eucaroBreton, podeserquenuncam
aiseuvoltepara
aFrança. Insultei, estanoite, tudooquesepodeinsultar.
Estoum
orto. Osanguecorre-m
epelosolhos, asnarinasea
boca. N
ãom
eabandoneis. D
efendei-m
e.
G
EO
RG
ESLIM
BO
U
R
21 dejulhode1924.
ChegoParisO
brigado.
LIM
BO
U
R
23dejulhode1924.
.. .Sei exatam
enteoquetedevoesei tam
bémquesaoas
poucasnoçõesquem
eensinastedurantenossasconversas
quem
eperm
itiramchegaraestasconstatações. N
ossosca­
m
inhossãobemparalelos. G
ostariaquecressessinceram
ente
queaam
izadequetedevotonãoéum
aquestãodesorriso.
JA
CQ
U
ESBA
RO
N
.
1929
Encontro-m
eentreosam
igosdeA
ndréBretonemfun­
çãodaconfiançaquelhem
ereço. M
asistonãoéum
acon­
fiança. N
inguématem
. Éum
agraça. Euvo-ladesejo. Éa
graçaqueeuvosdesejo.
RO
G
ERVITRA
C.
0 Jornal do Povo [Le Jounal du Peuple]
222
Eaúltim
avaidadedestefantasm
aseráfedereternam
ente
entreos fedores doparaísoprom
etido àpróxim
aecerta
conversãodofaisão76Breton.
ROBERT DESNOS
Um Cadáver [Un Cadavre], 1930.
Osegundom
anifestodosurrealism
onãoéum
arevela­
çãom
aséumêxito.
N
aosefaznadam
elhor nogênerohipócrita, falsoir­
m
ão, lisonjeiro, sacristão, num
apalavra, enfim
:m
eganhae
GEORGES RIBEMONT-DESSAIGNES
Um Cadáver.
Terei grandeprazeremver-tesangrarpelonariz.
GEORGES LIMBOUR.
D
ezem
brode1929.
EraoíntegroBreton, ointransigenterevolucionário, o
severom
oralista.
Poisé, umhom
emdetruz!
Estetadegalinheiro, esteanim
al desanguefriojam
ais
contribuiuparaoque quer que fossesenãocomam
ais
negraconfusão.
JACQUES BARON
Um Cadáver.
Q
uantoasuas idéias, naocreioqueninguémalgum
a
vezastenhalevadoasério, anãosercertoscríticoscom
pla­
centes^aquemelebajulava, certoscolegiaisavelhentadose
certasm
ulheresemviadeparirm
onstros.
ROGER VITRAC.
Um Cadáver
223
Decididos a usar, senão mesmo a abusar, em toda e
qualquer circunstância, da autoridade que confere a prática
consciente e sistemática da expressão escrita ou de outra natu­
reza, solidários em todos os pontos com André Breton e resol­
vidos a pôr em prática as conclusões que se impõem a quem lê
o SEG U N D O M ANIFESTO D O SURREALISMO, os
abaixo-assinados, que não nutrem quaisquer ilusões sobre o
alcance das revistas 'artísticas literárias” decidiram colabo­
rar numa publicação periódica que, sob o título
O SURREALISMO
A SERVIÇO DA REVOLUÇÃO
não somente lhes permitirá responder imediatamente à ca­
nalha que têm por profissão pensar, mas também preparará o
desvio definitivo das forças intelectuais hoje vivas em benefi­
cio da fatalidade revolucionária.
M
AXIM
EALEXAN
DRE,
ARAGON
,
JOEBOUSQUET,
LU
ISBUftUEL,
REN
ÉCH
A
R,
REN
ÉCREVEL,
SA
LVA
D
O
RD
A
LI,
PA
U
LELUARD,
M
AXERNST,
M
ARCELFOURRIER,
CAM
ILLEGOEM
AN
S,
PA
U
LN
OUGÉ,
BEN
JAM
INPÉRET,
224
FRANCIS PONGE,
MARCO RISTITCH,
GEORGES SADOUL,
YVES TANGUY,
ANDRÉ THIRION,
TRISTAN TZARA,
ALBERT VALENTIN.
1930
225

Documentos relacionados

MANIFESTO DO SURREALISMO (André Breton - 1924)

MANIFESTO DO SURREALISMO (André Breton - 1924) O processo da atitude realista deve ser instruído, após o processo da atitude materialista. Esta, aliás, mais poética que a precedente, implica da parte do homem um orgulho sem dúvida monstruoso, m...

Leia mais