APRESENTAÇÃO - Universidade Federal de Uberlândia

Transcrição

APRESENTAÇÃO - Universidade Federal de Uberlândia
APRESENTAÇÃO
Com o intuito de retomar esse espaço de divulgação da pesquisa
acadêmica e científica na área dos estudos linguísticos e literários e abrir
espaço para a divulgação da produção artística dos alunos de Graduação do
curso de Letras da Universidade Federal de Uberlândia e dos mais diversos
cursos de Letras do país, o Programa de Educação Tutorial (PET
Letras/UFU) apresenta o nono número da revista eletrônica semestral A
MARgem.
Nessa edição, após um hiato de três anos, retomamos as atividades
que foram iniciadas em 2008, com a publicação do primeiro número da
revista. Nas publicações de 2008 a 2011, a revista contou com cinco
seções: ESTUDOS, VERBARE, IMAGO, ECO e PIPAROTE. Na seção
ESTUDOS, encontravam-se as reflexões de um trabalho científico
apresentado na forma de ensaio ou artigo; a seção VERBARE trazia as
produções textuais de caráter ficcional literário (contos, crônicas, poemas
etc.); a seção IMAGO era composta pelas produções de caráter imagético
—
pinturas,
desenhos
e
fotografias
—
além
das
produções
A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
i
ficcionais/literárias que conjugam texto e imagem(s) e as de caráter
iconográfico; na seção ECO, eram disponibilizadas as produções musicais
e vídeos, animações diversas e filmes curtas-metragens; e a seção
PIPAROTE era destinada a textos de caráter crítico, reflexivo e de viés
sócio-político relacionados à contemporaneidade.
Com a reformulação da revista, permaneceram apenas as seções
ESTUDOS e VERBARE, as quais possuem maior demanda, de acordo
com levantamentos feitos pela nova equipe editorial do periódico. Nesta
edição, já trazemos a revista nesse novo formato, sendo composta por uma
seleção de publicações que aguardaram durante algum tempo até a saída
deste número.
É com imenso prazer que anunciamos o bloco ESTUDOS, o qual
será composto, nesta edição, por 7 artigos, os quais trazem as diversas
facetas da literatura e suas representações. Nesta coletânea, poderemos ver
a discussão sobre o papel da mulher numa sociedade patriarcal e as
diferenças entre sexo e gênero, como propõe o artigo “A CONDIÇÃO DA
MULHER
MEDIADA
PELA
CULTURA
NA
OBRA
A
ASA
ESQUERDA DO ANJO, DE LYA LUFT”, produzido pelo autor Cesar
Marcos Casaroto Filho. Voltando seu olhar para a poesia, Jamille Rabelo
de Freitas, em seu artigo “A PALAVRA MITIFICADA NA POESIA DE
DORA FERREIRA DA SILVA”, a autora aponta a mitologia como uma
chave para se conhecer o mundo, tendo como principal enfoque o livro
Hídrias, última obra lançada em vida pela poetisa Dora Ferreira, analisando
as influências do pensamento dito mítico, na poesia da autora. Passando da
poesia à música, trazemos também o artigo “ANÁLISE DO TERCEIRO
MOVIMENTO DA SONATINA Nº 8 DE CAMARGO GUARNIERI”, no
qual Maria Amélia Benincá de Farias, faz um levantamento das
características idiomáticas de Camargo Guarnieri, presentes no terceiro
A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
ii
movimento da Sonatina nº8, sobre o qual a autora discorre, apontando as
influências neoclassicistas e nacionalistas e também a mescla entre
elementos das músicas popular e erudita, tendo em vista a busca pelo
chamado caráter dengoso, como aponta o próprio Guarnieri em uma citação
da autora. Após passarmos pela música, poderemos ainda, passar pela
literatura brasileira de Jorge Amado, com o artigo intitulado “AS
REPRESENTAÇÕES
DO
MASCULINO
E
FEMININO
EM
GABRIELA”, no qual Luana Zaíra Bertoni convida o leitor a uma
caminhada por esta obra do autor baiano Jorge Amado, a fim de chamar a
atenção do leitor para a representação de gênero na sociedade baiana da
década de 1920, que passava por um período de transição do patriarcalismo
para o semi-patriarcalismo, apontando assim, algumas implicações dessa
mudança para o contexto urbano apresentado na obra do autor baiano.
Neste número, também contaremos o artigo “CITIZEN KANE E CLOSER
-
A
NARRAÇÃO
COMO
PROCESSO
DA
ESPECIFICIDADE
CINEMATOGRÁFICA” no qual Diogo dos Santos Souza expõe a
importância das diferentes formas de narrar para as obras cinematográficas,
no qual propõe a compreensão da narrativa cinematográfica como um
processo com múltiplas facetas, as quais se moldam de acordo as inovações
técnicas e, assim, interferindo nas formas de expressão, para isso, o autor
utilizará de teóricos que fazem uma análise minuciosa daquilo que forma
um gênero e que, muitas vezes, não são percebidos em um primeiro olhar,
como é o caso das artes como o teatro, a música e também a fotografia, os
quais constituem parte importante do que constitui a cinematografia e,
consequentemente, seus processos narrativos, os quais são o foco do artigo
em questão.
Ainda na seção ESTUDOS, contamos com o trabalho “MEMÓRIAS
DE
EMÍLIA:
UMA
ANÁLISE
SOB
A
PERSPECTIVA
A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
DA
iii
CONSTRUÇÃO LITERÁRIA INFANTO-JUVENIL”, dos autores Camilla
Cássia Silva, Carline Barbon dos Santos, Daniela Faria Grama e Deivid
Naques Dutra. O trabalho analisa a obra de Monteiro Lobato sob a
perspectiva do caráter imaginoso e do dramatismo na literatura de Sosa,
além de abordar as três forças de Barthes e a noção de Devir de Deleuze.
Após um breve resumo da obra de Monteiro Lobato, que é considerado
pioneiro na literatura infanto-juvenil brasileira como hoje conhecemos,
somos apresentados à discussão teórica seguida da análise da obra. O
caráter imaginoso está presente em toda a obra, principalmente pela
presença da Emília e Visconde. Com uma escrita mais informal,
aproximando-se do
público
alvo,
Lobato
não
somente
“expõe”
conhecimentos, mas também proporciona reflexões. Também é abordado o
caráter supostamente preconceituoso em relação a tia Nastácia.
Na sequência, ainda abordando caráter imaginoso de obras da
literatura infanto-juvenil, temos o trabalho “O CARÁTER IMAGINOSO E
O FANTÁSTICO NA OBRA ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS”. A
análise é feita com base nos pressupostos teóricos de Sosa e Todorov,
reconhecendo, assim, a importância do imaginoso e do fantástico na
formação do lúdico na obra. A obra de Lewis Carrol, publicada em 1865,
proporciona ao leitor uma viagem imaginária. O fantástico, característica
marcante, contribui, dessa forma, para a identificação do leitor, no caso a
criança, com a narrativa.
Na seção VERBARE, são apresentados seis textos. Um deles é o
poema de Glauber Rezende Jacob Willrich “PALAVRAS SÃO SÓ
PALAVRAS (EM DIA DE PREGUIÇA…)”, que expressa a melancolia e
nostalgia das fases da vida. No texto de Danielle Bertulucci Camilo,
“DUALIDADE”, temos uma prosa que mostra a progressão de
acontecimentos a uma mulher: do natural ao socialmente aceito. Na
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sequência, “DIA CRÍTICO”, de Thiago Henrique de Camargo Abrahão,
apresenta as crises internas de um escritor durante o processo de produção:
a fuga do lugar-comum e a tentativa de reencontro com si mesmo
resultando em reescritas do texto repletas de mudanças.
No texto “CADA MACACO EM SEU GALHO”, a autora Daniela
Ávila Malagoli traz uma reflexão sobre a indiferença que permeia os
relacionamentos interpessoais na atualidade. Seguindo, Carla Cristiane
Mello, em seu texto “...E ELA MORREU ENGASGADA COM UM
PEDAÇO DE CHUCHU” reflete sobre as vivências nos tempos modernos,
as incertezas e as trivialidades. Por fim, trazemos o conto de Gênesson
Johnny Lima “DISTANTE DO CORAÇÃO SELVAGEM” em que o autor
conta a história de Mafalda e de sua inesperada amizade com Claus.
A todos, uma boa leitura.
Uberlândia (MG), xx de março de 2015
Eloá Tainá C. R. Moraes
Iara Germano
Matheus Taylor
A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
v
A Palavra Mitificada na poesia de Dora Ferreira Da Silva
Jamille Rabelo de Freitas
Resumo: Desde os tempos remotos, os poetas utilizam a mitolog ia para delinear seus temas. Co mo afirma
Mircea Eliade, “Conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas.” Com u ma escrita
influenciada por elementos mít icos, a obra de Dora Ferreira da Silva tem presença assegurada no cenário
poético brasileiro. De descendência grega, a poeta, escritora e tradutora, que dedicou mais de 50 anos à
arte poética, intensifica sua relação com a temática mítica em sua última obra lançada em vida: o liv ro
Hídrias. Através da sua marcante construção simbólica e da utilização dos mitos enquanto atualizadores
das verdades presentes nos seres humanos, a poeta demonstra a sacralidade da tradição mítica, ao tempo
em que advoga a importância de se fazer u ma poesia atemporal, apreciada em qualquer época ou lugar.
Tomando como suporte bibliográfico as teorias de Mircea Eliade e Ana Maria Lisboa de Mello,
explicitaremos alguns aspectos referentes à relação entre mito e poesia na obra de Dora Ferreira da Silva.
Co m isto, buscaremos compreender a influência do pensamento mít ico na obra da poeta referida e
investigar, através do poema Narciso (II), presente na obra Hídrias, a relação entre os elementos míticos e
a condição humana, demonstrando como esse tipo de poesia pode simbolizar a vida humana em qualquer
época ou lugar.
Palavras-chave: Mito, Poesia, Imaginário, Dora Ferreira da Silva
Introdução
Dora Ferreira da Silva (1918-2006), tradutora, escritora e poeta paulista, revela
em sua obra um imaginário repleto de configurações simbólicas e envolto pelos
elementos clássicos do mundo grego: os mitos. Apresentando uma lírica mitificada, a
poeta resgata a noção de sacralidade e demonstra como a arte poética tem
consangüinidade com a mitologia.
É durante os trabalhos de tradução, especialmente na tradução do psiquiatra
suíço Carl Gustav Jung, que Dora tem seu primeiro co ntato com os conceitos
arquetípicos. Fundador da psicologia analítica, Jung elaborou a teoria do inconsciente
coletivo, onde analisou semelhanças e divergências entre as imagens e símbolos de
diversas culturas, chegando à conclusão de que havia no pensamento humano uma
espécie de arquivo, um depósito da história da humanidade; ao qual deu o nome de
arquétipos. Jung (1985, p. p. 33-34) diria:
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Dei o no me de arquétipos a esses padrões, valendo-me de uma expressão de
Santo Agostinho: Arquétipo significa u m “Typos” (impressão, marcaimpressão), um agrupamento defin ido de caracteres arcaicos, que, em forma
e significado, encerra mot ivos mitológicos, os quais surgem em forma pura
nos contos de fadas, nos mitos, nas lendas e no folclore.
Esse conceito de arquétipos, elaborado por Jung, teve influência significativa no
aprofundamento do estudo da mitologia moderna. Dotados de universalidade e
imutabilidade, eles funcionariam como a base de todos os pensamentos, sentimentos e
atitudes humanas, sendo exteriorizados e/ou expressados através dos símbolos. Em
suma, os mitos seriam as representações dos arquétipos, conforme aponta a
pesquisadora Enivalda Nunes Freitas e Souza (2009, p. 65):
O mito será u ma tradução do arquétipo, u ma imagem apta a ser resposta ou
traduzida por outra. [...] Desta forma, o ho mem de todos os tempos e espaços,
(...) e de todas as culturas, comunga das mesmas “grandes imagens”
(arquétipos), e utiliza o mito para traduzí-las, o que faz da literatura u m
discurso mítico por excelência.
Com isso, podemos dizer que o mito é um símbolo e sendo ele um símbolo, deve
ter seu sentido decifrado. Todavia, essa decodificação não se torna possível se não
houver um breve entendimento da concepção simbólica que envolve os mitos. Para
tanto, o estudo do imaginário é imprescindível, pois é através dele que alcançamos a
compreensão dos recursos imagéticos apresentados na escrita.
“Conjunto de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens,” 1 o
imaginário é pedra angular no estudo da mitologia. Composto essencialmente por
imagens mentais, ele é a representação da totalidade criativa do pensamento humano,
que se efetivaria através dos símbolos, tendo em vista sua natureza mediadora de
complementação entre a manifestação e a realização do sentido.
Esse conteúdo imagístico e simbólico habita os pensamentos compartilhados
pela humanidade – o inconsciente coletivo proposto por Jung - e é através dessas
imagens mentais que a atemporalidade se manifesta. É, também, somente através delas
que compreendemos o porquê da recorrência de alguns temas. Essa recorrência ganha
explicação através dos escritos de Ana Maria Lisboa de Mello, estudiosa do imaginário.
Segundo Mello (2002, p. 10), as imagens “traduzem as relações do homem com o plano
transcendente, os mistérios da vida e da morte, a busca de contato e o desvelamento de
verdades metafísicas que fundamentam o existir.” Assim, é através dessa expressão de
realidade simbólica que se explica a ressurgência dos mitos.
Criados pelos gregos como forma de expressão daquilo que sentiam e
vivenciavam, e, sobretudo, para explicar fenômenos e sentimentos que não
compreendiam, os mitos existem desde épocas imemoriais e são utilizados com o
propósito de compreender e explicar o mundo e o homem. Sendo vistos como uma
espécie de verdade socialmente aceita, por sua contribuição na manutenção das
instituições sociais, os mitos referiam-se a acontecimentos que precisavam ser
preservados na memória de um povo.
Através de fabulações míticas, as relações humanas vão sendo des veladas.
Assim, os elementos mitológicos se tornam fonte de significação, motivo de reiteração e
perpetuadores de padrões comportamentais, pois como já dizia Mircea Eliade, um dos
1
DURA ND, 2002, p.18
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fundadores da história moderna das religiões e grande estudioso dos mitos: “Assim
fizeram os deuses, assim fazem os homens. 2 ”
A intenção moral por trás dessas fabulações nos leva de volta ao princípio, à
origem das experiências e de todo o comportamento humano e o que nutre o
pensamento mítico é exatamente essa intencionalidade; é através dela que os padrões de
comportamento se personificam e se tornam referenciais para a nossa caminhada
existencial.
Tal como os mitos, a poesia põe em foco a condição humana; ambos são formas
representativas e metafóricas de dizer a linguagem. Co nforme diria Souza (2009, p. 65):
“Confundindo-se com o mito, uma vez que este é sua matriz, a literatura também tenta
compreender as situações embaraçosas da condição humana.”.
A presença do mito numa obra literária tem a função de revelar uma visão de
mundo e assim como os mitos, o poema é a tradução do sentimento em palavras, é a
revelação do real, e sendo a poesia uma revelação, ela brota, flui com a suspensão, com
a ruptura do tempo, promovendo um compromisso com o perene, o eterno. E aí reside a
relação entre os mitos e a poesia: a compreensão da condição humana e a perpetuação
de símbolos arquetípicos.
Essa afinidade entre mito e poesia pode ser ratificada pela poesia de Dora
Ferreira da Silva. Como a própria poeta diria: “Eu não saberia definir o mito, o seu
sentido. Toda vez que você tenta dizer o que é o mito, ou o que é a poesia, você acaba
ferindo um e outro.”3
A poeta e os mitos
Nascida em Conchas, em 1º de julho de 1918 e falecendo em São Paulo no dia 6 de
abril de 2006, Dora dedicou mais de 50 anos a arte poética. Contemplada por três vezes
pelo Prêmio Jabuti – em 1970, 1996 e 2005 – e reconhecida pela Academia Brasileira
de Letras, através da conquista do Prêmio Machado de Assis, no ano de 1999, DFS 4
assegurou sua presença no cenário poético brasileiro com suas obras marcadas pela
presença de simbologia e recursos míticos, conforme aponta Souza (2011, p. 123):
A poeta Dora Ferreira da Silva [...] encontrou nas formas simbólicas e
arquetípicas a expressão exata para transferir à poesia os estratos mais
profundos da psique humana, alçando a uma dimensão transcendente e
religiosa a vida e a morte, sensações cotidianas, pressentimentos, afetos,
mistérios, pequenas delicadezas – coisas, enfim, que resumem o encanto e o
mistério de existir. É, na maioria das vezes, aos mitos da relig iosidade pagã
que a poeta recorre para materializar esses conteúdos primordiais e vivos do
ser humano, por aquilo que o mito tem de linguagem simbólica sempre atual
e inesgotável.
Defensora de uma poesia atemporal, Dora reelabora os mitos antigos, de
2
ELIADE, 2006, p. 12
Dora Ferreira da Silva em entrevista concedida a Hermes Rodrigues Nery. Disponível em:
<http://medei.sites.uol.co m.br/penazul/geral/entrevis/dora.htm>
3
4
A fim de facilitar a leitura do artigo, desse momento em diante, todas as vezes que se fizer referência à Dora
Ferreira da Silva, seu nome será identificado pelas iniciais de seu nome, isto é, DFS.
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maneira a construir uma poesia eterna, tradutora da plenitude e perpetuadora dos
elementos míticos. O universo do mundo clássico está presente em toda a sua obra e a
sua relação com a temática mítica é tão intensa que a própria Dora, em entrevista a
Hermes Rodrigues Nery, discorre acerca da relação existente entre a sua poesia e os
mitos:
HRN - Há quem diga que o verdadeiro objeto do mito não são os deuses,
nem os ancestrais, mas um conjunto de ocorrências fabulosas co m que se
procurou dar sentido ao mundo. Qual é o sentido do mito?
DFS – Há formu lações da vida, das grandes configurações da vida que são os
mitos. A história é aparentemente u ma dessacralização do mito. O ho mem
anota o que vê, de forma criteriosa, acontecimentos, guerras, fatos
observados, tentando interpretá-los à sua maneira, cria a filosofia da história,
mas o mito... ele é mu ito mais parente da poesia, de algo que não passa pelo
crivo da consciência intelectiva, ele não é um saber codificado que nós
vamos encontrar definido na estante, ele vem do mais profundo da psique, é
uma emanação do nosso pensamento não codificado. Nós o encontramos, por
exemplo, quando dormimos e sonhamos, o artista vai buscá-lo na dimensão
do onírico motivos para a sua poesia; é como um tomar posse daquilo que foi
exteriorizado, partindo de si próprio, buscando lá dentro, nestes depósitos
secretos que temos em nosso interior...
(http://medei.sites.uol.co m.br/penazul/geral/entrevis/dora.htm)
Inspirada pela Grécia e pelo mundo helênico (sua avó materna – Marieta Locchi
- era grega e seu marido - Vicente Ferreira da Silva - filósofo), Dora escreve Hídrias,
que seria sua última obra lançada em vida e responsável pelo seu terceiro Prêmio Jabuti.
Na obra, composta por 25 poemas que louvam a beleza dos principais mitos gregos, a
poeta vai recontando os mitos e apontando como se dá a relação entre os elementos
míticos e a realidade da condição humana, demo nstrando, com isso, a atemporalidade
mitológica, símbolo da vida humana em qualquer época ou lugar.
O poema seguinte é uma mostra de como a essência do mito é revelada na
poesia de DFS. Nele, a poeta discorre acerca do mito de Narciso e da sua complexidade,
representado a singularidade da condição humana.
Folhas incandescentes fizeram da fonte
vale de fulgores. Bebia Narciso sobre a onda
quando uma face v iu de tal beleza
que a luz mais viva se tornou.
E A mo r – cujas setas jamais puderam alcançar
seu coração esquivo – nele reinou e jamais do jovem
se apartava, que a seu chamado às águas acorria.
Insidiosa veio a Morte para o levar consigo,
deixando numa flor a fo rma de Narciso.
(Narciso II, Hídrias, p.39)
Narciso e sua incompletude
O mito de Narciso trata do vazio da condição humana, da efemeridade da beleza e de sensações
que a ela se aliam: a solidão, o reflexo, o engano, a inveja e a morte; ele co loca o homem diante da
problemát ica de identificação entre o “eu” e o “outro”. Há várias versões des te mito, porém, co mo em
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todas elas a essência do mito é mantida, me deterei na versão celebrizada na obra As metamorfoses (Liv ro
III), escrita pelo poeta latino Ov ídio, considerado o mais antigo narrador do referido mito .
De acordo com Ovídio, quando Narciso nasceu, sua mãe, a ninfa Liríope, aturdida com sua
extraordinária beleza, fo i ao encontro do sapiente Tirésias para interrogá-lo acerca do destino de seu
filho. Naquela época, a beleza fora do comum em mortais era algo censurável e passível
de punição, pois essa característica só era permitida às divindades, conforme afirma
Junito Brandão (1998, p. 175):
É que também a beleza era u ma outorga do divino: constituía, portanto, uma
"démesure", a ultrapassagem do métron, ufanando-se alguém de um dom que
não lhe pertencia. Némesis, a justiça distributiva e, por isso mesmo, a
vingadora da injustiça praticada, estava sempre atenta e pronta para punir os
culpados.
A resposta de Tirésias aturdiu ainda mais a ninfa mãe. “O vidente, interrogado
se o menino veria os longos anos de madura velhice, fatídico declarou: Sim, se não se
conhecer.”5 E assim Narciso cresceu, sempre formoso. Jovem e de extrema beleza, muitas moças e
ninfas queriam o seu amor, mas o rapaz desprezava a todas, até que o seu destino se entrelaça com a
figura de Eco. Cabe aqui uma pausa para explicação da mitologia em torno de tal
divindade.
Conta a lenda que Eco era u ma linda ninfa que aco mpanhava a deusa Ártemis em suas caçadas, e
seu único defeito era falar demais. Um belo d ia, Eco encontra a deusa Juno, que desconfiada de que seu
marido, Júpiter, estivesse a se divertir co m as ninfas da floresta, estava a procurá -lo. Eco, sabendo do
perigo corrido por Júpiter, e acima de tudo, pelas ninfas, tenta distrair a deusa até que Júpiter possa se
liv rar do flagrante e as ninfas fujam. Juno, porém, percebe a manobra e condena Eco pela “traição”,
sentenciando: “ Confiscarei o uso de tua língua, essa com a qual me entretiveste, exceto
para um único propósito de que tanto gostas: o de responder. Terás ainda a última
palavra, mas não terás o poder de iniciar uma conversa.” 6
Donaldo Schuller, na obra Narciso Errante, justifica a punição de Eco. De
acordo com o autor:
Eco se põe no caminho de Juno, insegura da fidelidade do marido. Eco falava
por falar, falava para d istrair, enquanto Júpiter se desembaraçava de
presenças comprometedoras. A ninfa cult ivou fala envolvente, fala só fala,
fala de não dizer nada. Eco dessacralizou a fala, fo i esse o erro dela. Tratou
Juno como mulher ciu menta e não como deusa. Juno, ofendida, pune a
insolente. (SCHULLER, 1994, p. 39)
Ao se deparar com a beleza de Narciso, a ninfa se apaixonou por ele. Impotente para se declarar
ao seu amado, ela se põe a segui-lo, ansiando um mo mento em que pudesse revelar ao jovem mancebo
todo seu amor e ad miração.
Um belo dia, estava Narciso a caçar quando se viu perdido dos companheiros de caça. Na
tentativa de reencontrá-los, o belo jovem d iz: “Alguém está?” Eco vê, então, a oportunidade de dialogar
com o ser amado. Rap idamente, a ninfa responde: “Está”. Narciso, atônito, põe-se a procurar o dono
daquela voz. O que se passa a seguir é narrado por Ov ídio e tradu zido por Schuler (1994, p.18):
Estupefato, Narciso, percorrendo os arredores com o olhar, clama à plena
voz: Vem! E ela, a quem chama, chama.
Repõe o olhar. Co mo ninguém vem, outra vez: Por que – disse – foges?
Palavras vão e vêm.
Persiste, e, iludido pelo vulto da voz alterna:
5
6
SCHULLER, 1994, p. 16
BULFINCH, 2006, p.137
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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- Vem, encontremo-nos – diz. Nunca a nenhuma voz com gosto maior Eco
retrucou: - Encontremo-nos.
Dócil ao apelo de suas próprias palavras, egressa da selva, vinha para lançar
os braços em torno do pescoço esperado.
Ele foge, e ao fugir: Baixa os braços! Nada de amplexos!
Antes morrer – exclama - do que confiar-te meus tesouros!
Desprezada e envergonhada por ser repelida por Narciso, Eco se escondeu nos bosques com o
rosto coberto de folhagens. O amor não correspondido a foi consumindo pouco a pouco, até que, depois
de reduzida a pele e osso, ela se petrifica.
Assim como Eco, muitas jovens e ninfas se apaixo naram por Narciso, mas ele
desprezava a todas. Um dia, uma das muitas jovens desdenhadas por Narciso, cansada
de tanto desprezo, ergueu as mãos para o céu e disse: — Que Narciso ame também com
a mesma intensidade sem poder possuir a pessoa amada! Nêmesis, a divindade punidora
do crime e das más ações, escutou esse pedido e o satisfez.
Havia u ma fonte límp ida, de águas prateadas e cristalinas, de que jamais homem, animal ou
pássaro algum se tinham apro ximado. Durante u ma de suas caçadas, Narciso, cansado p elo esforço, foi
descansar por ali. Ao se inclinar para beber da água da fonte viu, de repente, sua imagem refletida na
água e encantou-se com a visão. Fascinado, apaixonou- se por si mes mo, sem saber que aquela imagem
era a sua, refletida no espelho das águas.
Nada conseguia arrancar Narciso da contemplação, nem fo me, nem sede, nem sono. Várias
vezes lançou os braços dentro da água para tentar inutilmente reter co m u m abraço aquele ser encantador.
Desesperado e quase sem forças, foram estas suas últimas palavras: — Ah!, Meu rapaz amado em
vão. Adeus!
As ninfas, juntamente com Eco, choraram tristemente pela mo rte de Narciso. Já preparavam para
o seu corpo uma pira quando notaram que desaparecera. No seu lugar, havia apenas uma flor amarela,
com pétalas brancas no centro, a qual deram o nome de narciso.
O reflexo de Narciso
Tal como as diferentes versões do mito de Narciso, o poema de DFS mantém a
tônica do mito: a paixão pelo reflexo de si mesmo. Os versos, que não obedecem a
rimas fixas, trazem uma lírica repleta de sonoridade, de maneira a demonstrar como a
poesia pode dialogar com a música e a dança. E a poeta parece mesmo dialogar com as
artes, porque apresenta seu próprio poema em estrutura dupla, em módulos, tal como se
faz com a música. É assim, repleto de mimetismo, que o poema se origina.
A descrição do sujeito, da interioridade psíquica de Narciso é o ponto de partida
do poema e o uso dos verbos no pretérito demonstra essa descrição psíquica de Narciso:
“bebia”, “viu”, “reinou”. A folhagem incandescente, a luminosidade excessiva, tudo é
índice do brilho extraordinário proveniente do reflexo de Narciso: “Folhas
incandescentes fizeram da fonte / vale de fulgores.” A pureza daquelas águas, o
bucolismo do ambiente; tudo é metaforizado na figura de Narciso, na sua pureza, na
irradiação daquela beleza vista nas águas intocáveis da fonte de Téspias.
Bebendo, ele vê sua face, e ao se ver, ele se extasia com tanta beleza. Radiante e
extasiado, toda essa luminância é intensificada; a luz, já incandesce nte, brilha ainda
mais e mais. “Bebia Narciso sobre a onda / quando uma face viu de tal beleza / que a
luz mais viva se tornou.”
Narciso não se percebe naquela imagem, e embora seja filho de um deus fluvial,
ele se deixa enganar pelo reflexo das águas. Também como poderia perceber-se ali?
Narciso não conhece “o outro”. Vivendo a ermo, o mancebo se acostuma ao seu próprio
eu e se deixa estar sempre na solidão dos campos, alheio a qualquer tipo de afeto, num
ato de auto-suficiência. Talvez seja esse o motivo do seu trágico final, pois como aponta
Schuller (p. 26): “Conviver com os demais, constituir família, perpetuar a espécie
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figuram no elenco das obrigações sagradas. Vida solitária só se consente a deuses e
animais.”
Amaldiçoado de Amor, ele vai de encontro às águas, para cumprir sua moira,
para satisfazer o chamado da sua descendência. Essas águas que foram fonte de vida
para ele, e que agora serão causa de morte. E dalí não consegue se mover; não
consegue se ausentar da sua própria presença. Não consegue se afastar e, com isso,
acaba permanecendo diante da imagem que é, ao mesmo tempo, sua salvação e seu
carrasco. Narciso torna-se aí a personificação do duplo, e com a permanência em si
mesmo não se deixa desfazer da sua unidade.
O êxtase e a inércia de Narciso são tamanhos que ele se descuida, e durante o
descuido ele é acertado pelas flechas de Eros. E sente o deus do amor em toda a sua
personificação. Aquele ser apaixonante, que dantes ignorava todo e qualquer olhar
amoroso, agora sucumbe através das setas do Cupido: “E Amor – cujas setas jamais
puderam alcançar / seu coração esquivo – nele reinou”
Ao ver a si mesmo, ele se apaixona. Aquele jovem arredio, individualista, inerte
a qualquer apelo emocional, agora se mostra suscetível: “Narciso, filho de um rio,
símbolo de passagem, ficou preso no meio da corrente.” 7 Ao visualizar sua
descendência, o jovem se deixa capturar pela própria beleza. Veja:
Filho de uma d ivindade aquática abraçada por um rio, Narciso move o olhar
rumo às origens. Vê-se imerso nas águas primordiais, uterinas. Mas as mãos
estendidas não vencem o tempo que o separa da origem. [...] Narciso, escravo
do olhar, arde inteiro. [...] Narciso já não sabe se quem contemp la é ele, ou se
de contemplador foi ligado às eminências da imagem engrandecida pelo
sonho. (SCHULLER, 1994, p.p. 33-34)
Apaixonado pela própria imagem, ele fica imobilizado ali, cumprindo a sua
moira; condenado a amar um amor impossível que “jamais do jovem se apartava”. Por
amor ao seu próprio reflexo, à sua própria sombra, Narciso já não pode abandonar
aquelas águas paradas. Somente ali seu amor se satisfaz.
Vem então o desolamento de amar aquele ser que nunca toma forma, nunca se
materializa, nunca pode ser tocado; esse desolamento que traz a desilusão. E com a
desilusão vem o seu suicídio. E pensar que tamanho sofrimento é imposto a Narciso
pelo seu próprio destino. Mas o mundo das sombras espera por ele e Tânatos virá
satisfazer o luto daqueles que esperam pela condenação do belo mancebo: “Insidiosa
veio a Morte para o levar consigo”. Quem não se abre ao outro, marca um encontro
com a morte e Narciso não pode fugir do seu destino; seu próprio nome está ligado à
morte:
nárke, como fonte de narcose (sono produzido por meio de narcótico), ajuda
a compreender a relação da flor narciso com as divindades ctônias e com as
cerimônias de iniciação, sobretudo as atinentes ao culto de Deméter e
Perséfone. Narcisos plantados sobre os túmulos, o que era um hábito,
simbolizavam o sorvedouro da morte, mas de uma mo rte que era apenas um
sono. Às Erínias, consideradas como entorpecedoras dos réprobos,
ofereciam-se guirlandas de narcisos. Uma vez que o narciso floresce na
primavera, em lugares úmidos, ele se prende à simbólica das águas e do ritmo
das estações e, por conseguinte, da fecundidade, o que caracteriza sua
amb ivalência mo rte (sono) – renascimento. (BRA NDÃ O, 2005, P. 174)
7
SCHULLER, 1994, p.27.
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
7
Resta então a flor de Narciso. Essa flor que é a representação da sua
efemeridade, da beleza que se esvai com o tempo, da associação entre a morte e a vida.
Narciso permanece vivo entre e em nós, quer seja na melancolia, no sofrimento, na
beleza, na juventude e no desejo de alcançar a imagem duplicada, mas a imagem não
pode ser duplicada sem riscos. Aí está a relação desse mito com a condição humana,
pois como diria Schuller (p. 36): “Causa da morte de Narciso? Falsa concepção do belo.
Quis imóvel o que todos os dias se constrói.”
Narciso, que nasceu da água, morre agora por ela. Passa agora a procurar o ser
amado nas escuras águas do rio Estige, no reino sombrio de Hades, “deixando numa flor
a forma de Narciso”. A forma dessa flor que metaforiza o sono da morte. Uma flor que
já nasce efêmera: floresce na primavera, mas fenece após essa breve vida. Narciso
enfim encontra a morte!
CONCLUSÕES
Após esse breve estudo acerca da relação entre mitologia e poesia na obra de
Dora Ferreira da Silva, verificamos que a presença dos mitos na obra da poeta tem valor
único. Falar de Narciso é falar do homem contemporâneo, uma vez que o referido mito
serve de demonstração da superficialidade em que vive o ser humano. É isso que Dora
Ferreira da Silva vem nos mostrar através da sua poesia: de q ue modo os elementos
míticos, assim como Narciso, se relacionam com o homem e o mundo em que habita.
Dora consegue alcançar, por meio de sua poesia, a concepção de mito exposta
pelo poeta Octávio Paz (1990, p. 12): “O mito, através de suas brumas e metáforas,
introduz uma luz dentro de nós: no lugar de adormecermos com a fantasia, nos aviva,
nos revela, isto é, nos dá a consciência do destino.” Os poemas de DFS refletem acerca
do sentido da existência humana e assim a poeta consegue transpor os mitos para a vida
cotidiana, demonstrando a atemporalidade que lhes é peculiar. Essa atemporalidade
mitológica é que permite o encantamento e a perpetuação desses mitos, e é na literatura
que eles buscam amparo para alcançar sua continuidade.
Explorando os símbolos, mitos e imagens arquetípicas em sua poesia, Dora fala
do homem contemporâneo e de suas recorrentes inquietações. Com isso, sua obra se
torna um retrato da condição humana. É assim, com essa lírica imagética e simbólica,
que a poeta – mestre no manuseio de elementos clássicos – constrói uma poesia eterna,
tradutora da plenitude e perpetuadora dos elementos míticos.
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383 p.
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ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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de Dora Ferreira da Silva. Trabalho a ser publicado pelo GT da ANPOLL Teoria do
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mitos na literatura. Goiânia: Cânone Editorial / Belo Horizonte: FAPEMIG, 2011. p.p.
123-138
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
9
A condição da mulher mediada pela cultura na obra A asa esquerda do
anjo, de Lya Luft
Cesar Marcos Casaroto Filho
Resumo: Esse trabalho tem por objetivo apontar a condição da mulher dentro da cultura
patriarcal que está presente na obra A Asa Esquerda do Anjo, de Lya Luft, destacando a forma
como a protagonista Gisela enxerga o mundo desde pequena até a fase adulta, e todos os
padrões culturais que precisa seguir na condição de mulher. Aspectos relevantes que condizem
com o espaço da mulher no mundo patriarcal são destacados, fundamentado em aportes teóricos
que dizem respeito ao universo feminino, buscando hipóteses do que a obra poderia representar
em seu mundo ficcional. Partindo do pressuposto de que a cultura difere do natural e de que
gênero social é diferente de sexo, pode-se afirmar que gênero é uma forma de comportamento
estabelecido pela cultura, o que o torna não-natural. Já sexo, sendo uma função biológica, pode
ser considerado algo que não sofre interferência dos ditames da cultura. A obra aborda a forma
com que a protagonista entende o mundo, em que tenta subverter os paradigmas estabelecidos
às mulheres no contexto patriarcal, determinantemente machista.
Palavras-chave: Cultura, gênero, sociedade patriarcal, sujeito feminino.
Lya Luft, escritora gaúcha, nascida em 15 de setembro de 1938, em Santa Cruz
do Sul, é romancista, colunista, formada em pedagogia e letras anglo-germânicas, em
Porto Alegre. Por ser de descendência alemã, aborda, em sua obra, muito dessa cultura
rígida que seus antepassados trouxeram por bagagem ao imigrarem ao Brasil, abordando
o subjetivo e enfatizando a condição feminina no contexto histórico. Lya Luft aborda,
na obra A asa esquerda do anjo (1981), uma questão que, podendo ter sido
compreendida por ela mesma em sua vida, desde a infância, até a adolescência e a fase
adulta, permite o entendimento da condição da mulher dentro da sociedade.
A sociedade é minada de doutrinas resultantes de uma velha cultura há muito
definida pelas pessoas. Partindo do pressuposto de que o ser humano é civilizado, é
preciso que ele se enquadre em alguns parâmetros estabelecidos pelo grupo social.
Sabe-se que há uma diferenciação na fisionomia masculina e feminina, no entanto, até
que ponto esses aspectos biológicos interferem no modo de agir, pensar e se portar
enquanto homem e enquanto mulher? Entretanto, o poder cultural estabelecido pelos
paradigmas da sociedade patriarcal é visível na obra de Lya Luft, A asa esquerda do
anjo, em que é possível observar o quanto esses preceitos comportamentais interferem
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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na vida do sujeito feminino desde criança até a fase adulta.
Provinda de uma família tradicional patriarcal, a protagonista Gisela, ou Guisela,
em alemão, é induzida, desde os primeiros anos, a aceitar os padrões impostos a ela:
Ainda menina, mesmo sem compreender o porquê disso, é vítima daquilo que se
estabelece como uma incompreensão universal das mulheres diante das obrigações que
lhes são impostas pela cultura. Como a própria protagonista mostra: “Alguma coisa em
mim estava errada, mas eu não sabia o quê. Talvez fossem muitas coisas”. (LUFT,
1991, p. 17). Ela se mostra perdida desde o princípio, incompreendida, solta em um
abismo onde, por mais que deseje entender o que se passa a sua volta, ou as mudanças
que ocorrem com seu corpo, nunca consegue obter uma explicação clara de si mesma,
oculta por uma máscara que encarcera o corpo feminino, minado pelo peso maçante da
cultura patriarcal.
Desde a mais tenra infância, Gisela questiona os fatores que a cercam. O pai é
autoritário, e a mãe, por sua vez, não tem voz diante dos acontecimentos e das decisões
do marido. Crescendo no âmbito de uma família padrão, desde pequena, a protagonista
é obrigada a aprender piano, costume notável às meninas “bem dotadas” da época,
paradigma estabelecido às mulheres provindas de uma classe social mais elevada, muito
comum no século XIX até os primeiros anos do XX. Já no iníc io do livro, a narradorapersonagem, Gisela, observa: “Tenho sete, oito anos. Ao menos três vezes por semana
passo nesta rua para visitar minha avó e estudar piano na sua sala de música. Um ritual a
ser cumprido, como tantos numa família organizada: tudo é bem organizado na família
Wolf, ao compasso da voz seca da matriarca, minha avó”. (LUFT, 1991, p.14).
Nesse contexto, é possível compreender o tom irônico que a narradorapersonagem utiliza ao denotar a família Wolf como sendo muito organizada dentro dos
padrões que a sociedade cobra. Desde a infância, até a fase adulta, o fantasma dessa
cobrança incompreendida que sofre acompanha-a até o fim, envolvendo-a em um
sentimento de amargura, angústia e pavor. Isso é visível em um dos momentos finais da
obra, resgatando as antigas lembranças da vida da personagem: “Estou tão nervosa que
falo sozinha. Vou até meu quarto, começo a me vestir, troco de roupa duas vezes, não
sei o que usar, os dedos se atrapalham, eu errava nas escalas e Frau Wolf espancava a
minha mão”. (LUFT, 1991, p.135). A avó, Frau Wolf, comportamento de matrona,
rígido e imperialista, faz com que se abram chagas que acompanham Gisela por toda a
vida, que ora se abrem de forma dolorosa, ora sutilmente, até que a personagem se veja
efetivamente enfraquecida. A personagem Frau Wolf está fortemente presente desde o
princípio da obra até o seu final. É a imagem típica de uma mulher amarga e fechada
para novas ideias, cobrando dos familiares, em especial, das mulheres, o cumprimento
de suas tarefas de forma rigorosa.
Na realidade, as mulheres estiveram moldadas dentro da cultura patriarcal. Seus
gestos, atitudes, ou ainda no que diz respeito ao corpo e funções sexuais foi o resultado
urdido pela cultura patriarcal. Da forma como explica Showalter (1994, p. 44), “a
psique feminina pode ser estudada como o produto ou a construção de forças culturais”.
Essa afirmação contradiz o pensamento comum que levou a crer que as ações feitas
pelas mulheres eram naturais. Os grupos silenciados tanto quanto os dominantes são
condicionados por ideias moldadas pela cultura de forma inconsciente, entretanto, os
grupos dominantes são aqueles que irão controlar esse pensamento, com o intuito de
estruturar a concepção dos silenciados. Segundo Showalter (1994, p. 49), para algumas
críticas feministas, a forma de fazer a mulher se expressar é tida como “o lugar de uma
crítica, uma teoria e uma arte genuinamente centradas na mulher, [que possibilita] trazer
o peso simbólico da consciência feminina para o ser, tornar visível o invisível, fazer o
silêncio falar”.
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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A cultura tem disseminado a ideia de que a construção política e da própria
cultura foi elaborada pelo homem, assim sendo, é por ideia de ancestralidade que o
pensamento masculino se torna algo tão rígido e pouco maleável à mudança,
pensamento esse que pode ser compreendido através da ação da avó da protagonista
Gisela, Frau Wolf. Ela está tão condicionada pelos padrões de pensamento patriarcais,
acreditando incontestavelmente naquela única visão de mundo, que acaba acreditando
erroneamente na sua própria concepção, mediada
pelo pensamento machista
naturalizado. A cobrança para com a mulher dentro de casa pode ser expressa pela
repreensão que a sogra Frau Wolf remete à sua nora Marie, mãe da protagonista
[...] minha mãe não queria desapontar o marido. A sogra aparecia
frequentemente, era recebida com cerimônia e, como nas lápides do
Jazigo, não hesitava em correr o dedo em algum móvel, repreendendo
a nora, sem maldade, mas com uma frieza que me gelava o coração:
- Marie, você precisa ser mais exigente com suas empregadas! (LUFT,
1991, p.45)
Observa-se, nessa passagem do texto, um momento em que a narradora constata
a não existência da maldade na atitude de Wolf. Pode-se compreender a naturalização
do pensamento quanto ao assunto que diz respeito ao interno do lar, espaço estritamente
feminino, de responsabilidade da mulher. Como de costume, a mulher submetia-se ao
marido e, por decorrência, à família do mesmo, negando as antigas origens e aceitando
obedientemente a nova realidade.
Historicamente, nas comunidades europeias antigas, havia duas culturas
diferenciadas, uma que dizia respeito aos homens e outra às mulheres, tendo como base
a divisão econômica de trabalho entre os sexos. Cada sexo possuía seu saber tradicional
em específico, havia uma distinção para cada sentimento que tanto o homem quanto a
mulher podiam sentir, entre eles a forma de pensar sobre o amor, a vida, a morte, a
religião, entre outros. Desse ponto em diante, como explica Lemaire, (1994, p. 63)
“ambos os sexos revelavam estratégias variadas de exclusão do outro sexo de seus
universos culturais”. Já que o sexo (natural), e o gênero (cultural), muitas vezes acabam
se confundindo, Saffioti (1976, p. 76) utiliza-se das palavras de Engels, apontando que:
“A divisão do trabalho não era primitivamente senão a divisão do trabalho no ato
sexual”.
Essa divisão de espaço e ideias é bem esclarecida na parte que segue, em uma
convenção da família Wolf: “Meu pai e tio Ernst falavam sobre negócios, dirigiam as
empresas da família. [...] tia Marta não faltava, sentava-se junto de minha mãe, fazendo
tricô ou crochê, sempre pronta para ensinar uma nova receita de cozinha”. (LUFT, 1991,
p.19).
Aos homens, cabe dialogar sobre negócios, envolvendo o espaço amplo e cheio
de possibilidades que lhes é disponível, às mulheres cabe envolver-se com os assuntos
da casa, voltadas sempre para o marido e para a família, dentro do espaço limitado que
lhes é permitido.
A mãe, Marie, por sua vez, é passiva, como lhe cabe dentro do papel que efetua
em sua condição de mãe, mulher e esposa, dificilmente alterada, incrivelmente doce,
bem como a narradora coloca: “raramente a vi alterada ou zangada. Sabia manter a
serenidade mesmo diante de certas observações mordazes da sogra”. (LUFT, 1991,
p.20). É uma personagem sem voz e sem maiores cogitações, desenvolvendo o que faz
parte do que lhe é imposto, encarcerada pelas amarras da cultura e das cobranças da
sogra.
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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Foi a partir do século XIX que, no Brasil, e também na América Latina, se
iniciaram discursos que diziam respeito à definição dos contornos das nações, discursos
esses que tratavam da maternidade republicana. A figura feminina passa, então, a ser
vista como a civilizadora dos filhos da nação, pelas ideias de uma nação moderna,
educada e, por sua vez, homogênea. Da mulher, nas palavras de Santos (2010, p.42),
“espera-se o cumprimento de seu papel feminino dentro do lar”. Ainda, em relação à
sociedade vigente, Santos, utilizando-se das palavras de Comte, explica
O duplo ofício fundamental da mulher, como mãe e como esposa,
equivale, em relação à família, ao poder espiritual do Estado. Exige,
portanto, a mesma isenção da vida ativa, e uma análoga desistência de
todo comando. Essa dupla abstenção é ainda mais imprescindível à
mulher [...], a fim de conservar a preeminência afetiva onde reside seu
verdadeiro mérito [...] Toda mulher deve, pois, ser cuidadosamente
preservada do trabalho exterior, a fim de poder preencher dignamente
sua santa missão. (SANTOS, 2010, p.72).
Os escritos desses pensadores contribuíram notavelmente para que ocorresse
uma compreensão universal que submetia todas as pessoas a um pensamento, como se
fosse a única forma de aprender a vivência humana, naturalizando comportamentos.
A teoria feminista, entretanto, desconstruirá o impasse de que gênero é igual a
sexo, colocando em dúvida a formulação patriarcal cumpridora de uma ideia de
naturalização desses pensamentos errôneos, estabelecendo uma prática social que serviu
aos interesses do homem. Dessa forma, Santos (2010, p.78) explica que, “A partir dos
estudos de gênero, é possível constatar que, diversamente do sexo, equipamento
biológico inato não suficiente para elucidar o comportamento diferencial do feminino e
do masculino, gênero é um produto construído no social, assimilado, figurado,
instituído, transmitido de geração a geração”.
Uma vez instituído por meio da cultura, o gênero não pode ser considerado algo
que provém da natureza humana, mas sim, uma construção elaborada por meio da
mente das pessoas, enraizado pela cultura, estabelecido dentro das normas sociais.
Fruto de ideologias que foram trazidas de eras passadas, a modernidade veio
apresentar, entre muitos fatores, uma visão de mundo mais ampla, aumentando os
horizontes das pessoas, no entanto, ela também abrangeu consigo uma bagagem
cristalizada em relação ao sujeito feminino. Formou-se um projeto de desenvolvimento
humano que era postulado por uma ideia de consagração da mulher ao lar, confinada à
esfera privada. A realidade até então estabelecida para o sujeito feminino prosseguiu
sendo a mesma. É notável a condição imposta para a vida da mulher até a primeira
metade do século XX, dentro da obra, quando a narradora descreve a mãe: “Assumira
comportadamente a postura da nova família. Sua vida gira va em torno de meu pai e de
mim. Era natural: ensinava- me que as boas donas de casa adoçam a existência dos
homens, que trabalham o dia todo e têm grandes responsabilidades”. (LUFT, 1991,
p.47).
Dentro do padrão da educação que era dada às meninas, a narradora descreve
detalhadamente o pensamento que era tido como natural na compreensão das pessoas,
em especial das próprias mulheres que não tinham outra alternativa que permanecerem
confinadas ao lar. Quando crianças, eram educadas para serviram aos outros, em
especial, ao marido, até que tivessem a idade apropriada para contrair matrimônio. A
cultura lhes era imposta sem que houvesse contestações ou dúvidas. Já a personagem
Gisela passa a maior parte de sua vida contestando os padrões, incompreendida, muitas
vezes, por todos os que a rodeiam, é uma personagem incomum, peculiar, questionadora
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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diante da realidade que lhe é apresentada pela família.
A ideologia naturalista burguesa tem como base o determinismo biológico,
considerando o corpo como o definidor das ações, sentimentos e pensamentos da
mulher, negando, assim, o uso da razão do pensamento feminino. Descarta-se, então, a
inteligência e se valoriza o corpo, tido para agradar aos homens. Com a união de beleza
física e moral, uma mulher educada dentro dos preceitos religiosos e que sabe se portar
dentro de sua função é entendida como o “capital simbólico e social”, presentes nas
famílias patriarcais da época. Santos utiliza-se das palavras de Passos ao mostrar que “o
corpo feminino é colocado no limite entre a natureza e a cultura, ele vai sendo
interpretado ideologicamente, seguindo os interesses e o imaginário social. Dialética,
que ora exige que ele seja escondido, ora seja mostrado...” (SANTOS, 2010, p.87-88).
A mulher sempre foi tida como um objeto a ser moldado, como o sexo mais
cobrado e submisso, entregue à subalternidade maçante da cultura patriarcal.
Wollstonecraft explica que “é preciso que também a mulher encontre a sua virtude no
conhecimento. [...] é a ignorância que a torna inferior...” (WOLLSTONECRAFT apud
ALVES, 1985, p.36). Através do conhecimento e da compreensão dos fatores que a
cercam, a mulher tem condições de reivindicar seus direitos, de cogitar mudanças que
dizem respeito a sua vivência.
Por ser moldada pelos padrões estabelecidos pela sociedade patriarcal, não há
como ter certeza que haja uma identidade própria da mulher, estipulada por ela própria.
A constituição do sujeito feminino é algo histórico-cultural, compreendido pelas
pessoas como a única forma de se entender os papeis de gênero. Por essa razão separase o mundo da mulher e o do homem, e é nesse ponto que, quando é proposta uma nova
visão de mundo transformadora, com o intuito de modificar esses papeis cristalizados,
corre-se o risco de modificarem-se vários papeis sociais que deixam de ser fixos e
definidos, tornando-se indeterminados e estranhos aos olhos das pessoas. Essa transição
acarreta uma incerteza quanto à identidade das pessoas, gerando múltiplos
entendimentos de uma coisa só. A construção de um novo paradigma, quanto à
realidade dos gêneros, tem como base uma literatura feminista fundamentada na
necessidade de compreender e reconceituar a formação da subjetividade feminina,
utilizando-se de uma produção escrita dentro de um discurso, abrangendo um novo
conjunto de ideias que surgiu paralela à pós-modernidade.
É preciso rediscutir as questões que dizem respeito à formação da identidade da
mulher para que se verifique a subjetividade feminina do pensamento coletivo. Ainda,
temos de revisar os conceitos que existem do sujeito, da sua identidade e da
transformação que vem sofrendo através dos séculos. Além disso, a desconstrução do
princípio hegemônico masculino é de fundamental necessidade, pois, sem isso, não é
possível fazer uma ideia mais clara dos fatores que contribuíram para que houvesse uma
diferenciação de papeis, pensamentos e atitudes masculinos e femininos. As barreiras
que antes havia e não davam oportunidade de pensar de outra forma, acabam se abrindo,
oportunizando livre acesso a um entendimento mais abrangente da situação. A
identidade, segundo as palavras de Zinani (2006, p.51), “se estrutura através da
interação do sujeito com a sociedade”. E complementa
A recodificação do papel da mulher, a partir dos estudos de gênero,
implica a constituição da subjetividade feminina, à medida que a
modificação do padrão tradicional abala a maneira de lidar com a
economia interna e a externa, forçando a mulher a assumir o seu lugar,
tanto no espaço privado como no social, o que vai acarretar
dificuldades para mulheres e homens, já que não há mais modelos em
que se espelhar, e é necessário construir um novo paradigma.
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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(ZINANI, 2006, p.49).
O impacto que ocorreu como resultado do movimento feminista a partir da
década de 60, do século XX, envolvendo as revoltas estudantis, a contracultura, acabou
marcando a modernidade que já poderia estar mais avançada a respeito das relações de
gênero. O feminismo abriu portas para a discussão de aspectos referentes à vida social
que diziam respeito à família, à sexualidade, desconstruindo as diferenças que havia
entre o público e o privado, além de pôr em prática a discussão da formação dos sujeitos
dentro do gênero. Entretanto, essas novas perspectivas de sujeito e de gênero
ocasionaram um deslocamento do entendimento por muitos visto como a única forma
possível de enxergar, proporcionando- lhes segurança a respeito de sua identidade. Da
forma como explica Zinani (2006, p.56): “Se, no período anterior, a identidade estava
bem-estabelecida, e o sujeito ocupava efetivamente o seu lugar no tempo e no espaço,
hoje o sujeito está fragmentado, e a identidade perdeu seu caráter de singularidade para
se estruturar de formas múltiplas, de acordo com deslocamentos psíquicos e sociais”.
Se, por um lado, o masculino é visto dentro da norma como o correto, o
universal, o feminino, por sua vez, tem a imagem do desvio, o particular e, até mesmo,
o descartável. Sob o ponto de vista patriarcal, a ideia do diferente sempre foi reduzida:
devido a esse fato, a nossa cultura só pode esboçar uma ideia de homogeneidade de
cultura à custa da repressão de outras formas de pensamento. Como não havia uma
forma de tradição literária essencialmente feminina no século XIX, as mulheres
escritoras tinham como base a mulher dentro da literatura apenas como musa, objeto, o
qual não pode tomar as próprias decisões. As escritoras tiveram um trabalho árduo,
perpassado de incertezas diante de suas visões, falseadas diante da imagem que a cultura
lhes apresentava como o que devia ser seguido. Elas tiveram de transgredir os padrões
culturais, derivando, assim, o início de uma tradição feminina na cultura, cultura essa
que tende a desequilibrar o ponto de vista patriarcal estagnado.
Há uma dupla conquista resultante da literatura que é preparada por mulheres,
dentre elas a conquista da identidade feminina e também da escritura. Como explica
Schmidt (1995, p. 188): “A literatura feita por mulheres hoje, se engaja num processo
de reconstrução da categoria “mulher”, enquanto questão de sentido e lugar
potencialmente privilegiado para a reconceptualização do feminino, para a recuperação
de experiências emudecidas pela tradição cultural dominante”.
No que tange aos dogmas estipulados pela religião, a repressão sexual feminina
sempre esteve presente em nossa história, principiam, segundo os preceitos bíblicos na
hierarquia do grupo familiar, tomando o homem como supremo, e a mulher subalterna a
ele. O homem é entendido como a cabeça do casal, e ela, por sua vez, o coração do
conjunto familiar. Sendo a emoção considerada como inferior à razão, como explica
Saffioti (1976, p.94), “ao homem cabe, “naturalmente”, o governo da casa e da mulher”.
Levando o “naturalmente” em conta, volta-se à questão do universal, o natural como
imutável, o gênero confunde-se novamente com a sexualidade, a cultura torna-se
natureza e não uma invenção do homem. Assim sendo, Saffioti (1976, p.94) especifica
que “a sujeição da mulher ao homem é, pois, princípio inatacável e de validade eterna
para a Igreja”. Sendo uma lei bíblica sacralizada, estipulada pelas ordens de Deus,
intocável e completamente suprema, não há como subverter o discurso ditado por ela, e
a essência da família é estabelecida dessa forma, assim, não podendo ser modificada,
pois haveria uma ruptura daquilo que é considerado essencial.
Na obra de Luft, a voz da mulher, dentro da família tradicional, não tem força,
bem como é denotado pela mãe da protagonista Gisela. A mulher procura sempre viver
em torno dos demais, agradando ao homem e à família, a sua vida se resume a isso,
acreditando que “essencialmente” essa é a tarefa sagrada da mãe e da esposa, levando a
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mulher a crer que é feliz. Pode-se constatar a função estabelecida para a mulher no
trecho da obra que segue: “Meu pai, solene; minha mãe, cabelo preso no alto, ansiosa
para que ele aprovasse os preparativos. Via-se que ficava encantada com seus elogios:
estava sempre querendo agradar ao marido e à nova fa mília”. (LUFT, 1991, p. 31).
A sexualidade é outro fator marcante na obra, tangendo novamente as questões
clericais. Como explica Saffioti (1976, p. 97), sabe-se que “a Igreja Católica nunca
deixou de ver a sexualidade como algo sujo e indigno, exceto qua ndo submissa à única
finalidade que ela reconhece no matrimônio: a procriação”. Até mesmo o contado das
mãos com o sexo, por muito tempo, foi mal visto e proibido pela sociedade submetida a
um poder clerical intenso. A protagonista Gisela mostra-se profundamente constrangida
e temerosa quando pensa em seu sexo, devido ao pudor que a avó Frau Wolf passa a ela
desde pequena e pelo que a sociedade lhe mostra como errado. É possível compreender
esse detalhe na passagem: “À noite, meu corpo comicha, sensações estranhas no sexo,
no ventre, estou contaminada”. (LUFT, 1991, p.60). Ela não compreende o que ocorre
com seu corpo, nunca recebe um esclarecimento coerente sobre o que significa o seu
sexo, mas recebe a imagem do feio, do ruim, do nojento. O sexo é impuro, acarretando,
assim, na personagem e dentro do universo de outras mulheres, a chamada “histeria”,
ocasionada pelo ocultamento e pela repressão. A prisão e as amarras da cultura são tão
intensas que a personagem principal chega a passar mal. Luft (1991, p. 62) descreve
esse aspecto na passagem: “Tenho dentro de mim o animal. Meu ventre incha,
convulsiona- me. O médico não encontra nada, a família já se habituou aos meus
‘acessos nervosos’”, e ainda, ao ambiente repressivo a que está submetida, “Acordo na
manhã seguinte com os maxilares tão apertados que os músculos de meu rosto ficam
doloridos o dia inteiro”. (LUFT, 1991, p. 62).
Pode-se perceber, assim, que o universo ficcional da obra em análise mostra o
comportamento e o modo de pensar impostos pela cultura patriarcal às mulheres,
subalternas ao contexto, confinadas ao lar, sem cogitarem de uma possibilidade de
mudança devido à opressão a que são submetidas. Há uma carga cultural que vem sendo
cultivada no inconsciente coletivo há milênios, difícil de romper devido à forma como
se acha intrincada em nossos comportamentos diários. As reformas ocorridas dentro da
história contribuíram significativamente para que algumas ideologias se rompessem das
amarras estabelecidas pelo poder masculino, no entanto, indiretamente, alguns padrões
antigos ainda podem ser observados dentro do lar e do mercado de trabalho em nosso
país, difundindo ainda aquela ideia errônea que confunde sexo com gênero, natural com
cultural. É necessário que haja uma conscientização coletiva que possibilite aos grupos
sociais uma abertura ampla de horizontes, podendo, enfim, compreender como a história
do masculino e do feminino foi trabalhada e estruturada há milênios até os dias atuais.
Referências Bibliográficas
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Abril Cultural: Brasiliense, 1985.
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feminina. Caxias do Sul: EDUCS, 2006.
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Análise do Terceiro Movimento da Sonatina Nº 8 de Camargo
Guarnieri
Maria Amélia Benincá de Farias
Resumo: O presente trabalho foi realizado com o apoio da Pró-Reitoria de Pesquisa – UFRGS –
Brasil. Neste texto, levantarei características do idiomático de Camargo Guarnieri presentes no
terceiro movimento da Sonatina nº 8, última obra deste gênero composta pelo compositor. Para
realizar esta análise, cinco categorias de elementos foram elencadas: forma, polifonia, processos
harmônicos, aspecto nacional e caráter expressivo. Em cada categoria, encontraram-se
características adquiridas e desenvolvidas pelo compositor no decorrer da sua vida, além de
outras presentes desde suas primeiras obras. Após a análise do terceiro movimento da Sonatina
nº 8 e reflexões acerca desta, constatou-se que esta obra traduz o idiomático de Camargo
Guarnieri, constituindo-se numa boa fonte de estudo para compreender o estilo desenvolvido
pelo compositor. A produção de Guarnieri traz características do neoclassicismo e nacionalismo
e mescla elementos da música popular e processos da música erudita. Compreender como esta
junção de universos distintos se dá no terceiro movimento da Sonatina nº 8 é crucial para o
intérprete alcançar o caráter dengoso, indicado por Guarnieri para este movimento.
Palavras Chaves: Camargo Guarnieri, análise musical.
Apresentação
Tradicionalmente, intérpretes seguem sua intuição para alicerçar suas decisões
interpretativas. Buscando fundamentos mais sólidos para construção de minha
performance, chamou-me a atenção a escassez de trabalhos na língua portuguesa sobre
as últimas sonatinas do compositor paulista M. Camargo Guarnieri (1907,Tietê – 1993,
São Paulo). Sobre a Sonata e as sonatinas, Osvaldo Lacerda (1927, São Paulo – 2011,
São Paulo) ponderou que “Sonatina” refere-se apena ao tamanho das obras, “uma vez
que a força expressiva, a originalidade e a técnica da composição das sonatinas são as
mesmas da Sonata.” (LACERDA, 1985). Guarnieri acreditava que este grupo de peças
(Sonatinas e Sonata) demonstrava sua evolução musical (VERHAALEN, 2001, p. 149).
Neste quadro, a Sonatina nº 8, composta em 1982, assume especial importância, uma
vez que é a última obra de um gênero iniciado em 1928, ano da primeira Sonatina que
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tanto encantou Mário de Andrade (VERHAALEN, 2001). A Sonatina nº 8 sintetiza 54
anos de amadurecimento e as suas características são resultado das transformações de
uma vida dedicada à música brasileira.
Após o estudo e performance da obra e do levantamento prévio do material
teórico sobre o compositor, a categorização de estudo propostas por Grossi (2004)
pareceu- me a mais adequada para a realização desta análise. Cinco categorias de
elementos recorrentes e gerais foram levadas em conta na obra do compositor: forma,
polifonia, processos harmônicos, aspecto nacional e caráter expressivo.
Análise
Composta em 1982 e dedicada para a pianista Cynthia Priolli, que também
realizou a estréia em 1983 no Anfiteatro da USP, a Sonatina nº 8 organiza-se em três
movimentos: Repinicado, Profundamente Íntimo e Dengoso. Cabe sublinhar o hábito de
Guarnieri de indicar o caráter de suas obras em português ao invés de italiano, pois esta
característica, que se faz presente desde sua 1ª Sonatina, causou grande impressão em
Mário de Andrade (VERHAALEN, 2001, p. 23).
Verhaalen (2001) ressalta como as linhas melódicas “levam a um ponto
culminante e retrocedem através de tratamento sequencial” (p. 178) e aponta para o
campo harmônico apoiado em estruturas quartais e atonais. Elejo o terceiro movimento
para uma discussão mais aprofundada.
Escrito em compasso binário (2/2) e totalizando 58 compassos 1 , o terceiro
movimento da Sonatina nº 8 estrutura-se num esquema ABA (A: c. 1-16, B: c. 17-34,
A: c. 34-50, coda: c. 51-58) no qual B representa um desenvolvimento dos materiais
expostos nas seções A. Verhaalen (2001) descreve a regularidade com que Guarnieri
usou esta estrutura musical, num processo que confere unidade e naturalidade às peças.
Este tratamento formal resulta em um número elevado de composições monotemáticas.
No terceiro movimento da Sonatina nº 8, um motivo germinal, apresentado no primeiro
compasso da obra é desenvolvido e transformado até o final da primeira exposição da
seção A, quando será transfigurado em um novo motivo que germinará a seção B
(figura 1).
Figura 1: Motivo germinal apresentado no compasso 1. * Motivo germinal
transformado no compasso 3. * Motivo germinal transfigurado em um novo
motivo na seção B, nos compassos 18 e 19.
Os processos empregados por Guarnieri demonstram a maestria e economia de
materiais. A criatividade surge das limitações auto-impostas, uma prática comum entre
1
Na partitura editada (1988), o 55º compasso apresenta quatro tempos de mínima, ao invés de dois tempos, referente
ao compasso binário, apontando para a ausência de uma barra de compasso. Assim, o 55º compasso deve ser
entendido como dois compassos (55º e 56º compasso), totalizando a obra 58 compassos.
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os compositores neoclássicos 2 no século XX. Guarnieri consegue assim, ser consistente
na sua economia de materiais, sem deixar de construir seções contrastantes (Holanda e
Gerling, 2003) 3 .
Outro elemento característico da obra de Guarnieri presente no terceiro
movimento da Sonatina nº 8 é o tratamento contrapontístico, de múltiplas vozes.
Verhaalen (2001) destaca como as linhas melódicas do movimento deslocam-se
“constantemente, brincalhonas, com seu próprio senso de direção” (p. 178), além de
ressaltar o alto nível técnico exigido para esta obra, uma vez que o pianista deve
“internalizar as figurações rítmicas e entender a complexa trama contrapontística, tão
diferente nas duas mãos” (idem). O tratamento contrapontístico diversifica-se em cada
uma das seções do movimento. Na seção que inicia e finaliza a obra, duas linhas
melódicas independentes desenham contornos distintos e igualmente atraentes.
Organizar os planos sonoros num contraponto em que duas linhas melódicas elaboradas
desenvolvem-se simultaneamente é um trabalho desafiador para o intérprete. Porém, o
pianista conta com a ajuda do compositor, pois a recapitulação idêntica permite que o
intérprete ressalte planos e contornos diferentes na repetição e promova uma apreciação
plena do contraponto. Já na seção intermed iária, ainda que a melodia seja claramente
destacada, a textura polifônica é mantida, conferindo unidade à obra (figura 2).
Figura 2: Contraponto da seção A, compassos 1-4. * Contraponto da seção B,
compassos 18-21.
Nesta obra, assim como em um grande número de obras de Guarnieri, o campo
harmônico resulta da coincidência de linhas melódicas. Ainda que para Verhaalen, a
“escrita contrapontística não insinua qualquer tonalidade definida” (2001, p. 181), a
peça transmite uma “certa sensação de tonalidade” (BENCKE, 2010, pg. 176). O campo
harmônico formado por linhas horizontais aproxima-se de sonoridades centradas em
2
Stravinsky representa outro exemplo de auto-limitação, quando descreve na sua “Poética musical em 6 lições” que
“...a música ganha força na medida que não sucumbe às tentações da variedade”, impondo a si mesmo a produção de
uma música que prime pela unidade antes da variedade. (1996, pg. 38).
3
A Fuga (terceiro movimento) da Sonatina nº 3 de Camargo Guarnieri também é uma demonstração da sua
consistente e criativa economia de materiais. O gesto que inicia o tema e abre o movimento é desenvolvido desde o
primeiro movimento da Sonatina, iniciando como elemento integrante do trabalho motívico, até tornar-se o elemento
mais marcante da coda, para, no terceiro movimento, tornar-se o gesto inicial do tema da fuga (GERLING, 2004, p.
106).
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Mib. No início da seção B, o intervalo de Réb com Mib remete ao acorde de Mib com
sétima e soa como uma sonoridade centralizadora (c. 17), assim como na coda (c. 5158), o movimento Sib – Mib soa análogo ao movimento de dominante e tônica
(BENCKE, 2010). O cromatismo, que sempre esteve presente na obra do compositor
(WOLF, p. 487), é a base da condução melódica, um fenômeno que se manifesta desde
os primeiros compassos.
Figura 3: Diversos gestos cromáticos, compassos 1-3. No pentagrama superior, um
movimento cromático partido em duas vozes: mib, mi, fá, solb nas notas agudas e
dó, dób, sib e lá nas notas graves.
O aspecto nacional do movimento, na minha escuta, se traduz na sonoridade do
chorinho, isto é, nos contornos rítmico- melódicos típicos deste gênero. Osvaldo Lacerda
corrobora esta característica: “O 3º [movimento], Dengoso, lembra novamente alguns
processos de choro” (1985). Bencke (2010) elenca outras semelhanças com este gênero,
tais como a condução dos baixos em graus conjuntos, acordes arpejados e motivos
cromáticos (p. 178). Os processos melódicos também se aproximam da descrição de
Mário de Andrade para quem a melodia da música brasileira tende a ser descendente
(1972, p. 47). Esta constância encontra-se bem enraizada no terceiro movimento da
Sonatina. Embora as linhas melódicas mantenham um movimento constante de subida e
descida, em especial na seção A, o motivo germinal consta de um salto ascendente
compensando por um movimento melódico descendente. O salto em movimento
contrário à melodia descendente ressalta ainda mais este direcionamento para os
registros médio e grave do instrumento. Ao desenvolver o motivo germinal ampliando
gradualmente o salto que precede o movimento descendente para intervalos de sétima,
Guarnieri também está em consonância com a afirmação de Mário de Andrade de que as
melodias brasileiras também são “torturadíssimas”, isto é, são afeitas de “saltos
melódicos audaciosos” (1972, p. 45) (figura 4).
Figura 4: Motivo germinal com salto de trítono (sib-fáb) no compasso 1. * Salto do
motivo germinal expandido para sétima diminuta (lá-solb) no compasso 6 e sétima
maior (solb-fá) no compasso 7.
Mantendo a consistência formal e motívica que lhe era tão cara, Guarnieri faz
das subidas e descidas tão características do chorinho a razão de ser da seção
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intermediária. A extensa linha melódica descendente percorre seu curso at ravés de
gestos menores e pontilhados de segundas melódicas descendentes. Este movimento
contínuo parece formar os degraus de uma escada (figura 5). A melodia ascende no
gesto final (c. 23).
Figura 5: Segundas descendentes (réb-dób. sib-lá, láb-sol, solb-fáb) construindo a
ampla melodia da seção B, compassos 18-21.
Uma figura sincopada assume especial importância na seção intermediária.
Aparecendo apenas nesta seção, a figura caracteriza-a e delimita-a, inicia e pontua cada
frase. A síncope é um ritmo presente na música popular brasileira e seu uso é um dos
reflexos da inclinação de Guarnieri pelos pressupostos nacionalistas. (Holanda e
Gerling, 2003, p. 531), Andrade (1972) ressalta que o uso da síncope não deve ser
exagerado pelos compositores, pois “se banalizam com facilidade pela própria
circunstância de serem características por demais” (1972, p. 38, grifado no original).
Guarnieri segue bem esta orientação ao utilizar-se da síncope de forma sucinta e
funcional (figura 6).
Figura 6: Motivo síncopado (semínima pontuada, semínima, semínima), iniciando
a seção B, compasso 17. O ponto ao lado da segunda semínima é um erro de edição,
como pode ser constado pela distribuição das colcheias.
Para construir o caráter expressivo do movimento, o timbre do piano agrega-se
aos elementos anteriormente descritos. A capacidade do compositor de improvisar com
habilidade ao piano acrescida da sua desenvoltura técnica permitiram que ele explorasse
amplamente os recursos timbrísticos do instrumento. No terceiro movimento da
Sonatina, a sonoridade mais leve da seção A é obtida através da forma orgânica com
que as linhas melódicas se direcionam para os registros médio e agudo do instrumento.
Na seção intermediária, a melodia principal, exposta no registro agudo (c. 17-25),
assume ares escuros e galanteadores ao ser ouvida num registro mais grave (c. 26-33).
No gesto final (c. 58), o compositor também realiza a manutenção do timbre para
encerrar a obra de forma enfática, quase que violenta, com uma décima e uma oitava em
fortíssimo na região mais grave do piano. Nada mais pode ser dito depois deste gesto
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final (figura7).
Figura 7: Melodia da seção B cantada e m uma região mais grave, compassos 26-27.
* Gesto final da peça (dó-mib-mib), com fortíssimo súbito na região grave do
piano, compassos 57-58.
Conclusão
A Sonatina n°8 constitui-se numa boa fonte para a compreensão do idiomático
de Camargo Guarnieri. O terceiro movimento representa as características assumidas e
desenvolvidas pelo compositor no decorrer da sua vida dedicada à música brasileira, ao
nacionalismo e ao neoclassicismo. A peça demonstra o alto grau de assimilação de
elementos da música popular e folclórica mescladas com processos estritos e formais da
música erudita. Para alcançar a expressão do caráter dengoso, cabe ao intérprete
absorver e compreender esta transposição de universos e interpretar esta obra erudita
com todo o gingado de malandro e toda a melancolia do chorinho.
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As representações do Masculino e Feminino em Gabriela
Luana Zaíra Bertoni
Resumo: O artigo tem como objetivo analisar as construções das representações dos gêneros
masculino e feminino em uma sociedade baiana na década de 1920, durante a transição de um
patriarcalismo para um semi-patriarcalismo. A pesquisa se realizou através do destaque das vozes do
narrador-autor e das personagens do texto literário usado como fonte, o romance Gabriela, Cravo e
Canela, de Jorge Amado. O romance se passa na cidade de Ilhéus no contexto da sua urbanização,
que simboliza essa transição social. Também narra através das personagens diferentes construções de
representação de homem e mulher. Lançamos um olhar de historiador sobre o discurso literário de
uma testemunha ocular da história da real Ilhéus, Jorge Amado, que se utilizou da narrativa de
Gabriela para nos denunciar os aspectos da sociedade ilheense do início do século XX. Desta maneira
podemos visualizar os comportamentos das representações de gênero sendo modificados
simultaneamente com as modificações das ideologias e dos elementos que estruturam a sociedade
desta cidade e, assim, construindo uma possibilidade histórica. O estudo é subsidiado pelos estudos
de Gilberto Freyre, em Sobrados e Mucambos, Maria Lúcia Rocha-Coutinho, em Tecendo por Trás
dos Panos, de Mary Del Priore, em História do Amor no Brasil, e de Maria Aparecida Baccega, em
Palavra e Discurso – literatura e história.
Palavras-chave: História do Brasil. Literatura. Representação. Gênero.
Introdução
A Ilhéus de Jorge Amado de 1925 vive um ano de “impetuoso progresso” graças à
riqueza do cacau, o ouro amarelo, cultivado pelos coronéis e pelos seus trabalhadores.
Cidade que sempre fora conhecida “[...] como uma terra de cabarés, de bebedura farta, da
jogatina, de mulheres-damas.” (AMADO, 1978, p. 103) e, também, famosa pelo sangue
derramado e pelos armados jagunços arrotando valentia. A Ilhéus fictícia retrata uma
sociedade patriarcal em transição para um semi- patriarcal1 mas ainda masculina. Esta cidade
fictícia é um retrato de Jorge Amado da real Ilhéus e simboliza outras tantas cidades
1 A decadência do patriarcalismo rural para o desenvolvimento do urbano marca a passagem do patriarcalismo
para o semi-patriarcalismo. (FREYRE, 1981).
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brasileiras do início do século passado. Entretanto essa cidade se modifica sua sociedade
enquanto se urbaniza e recebe influências a partir de estrangeiros, da mídia e da política
nacional.
Rocha-Coutinho afirma que “a sociedade tem idéias fixas a respeito do que é ser
homem e do que é ser mulher” (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 127). Neste romance
nitidamente podemos verificar através da voz invisível de Jorge Amado, uma denúncia das
representações de homem/mulher e suas relações de gênero a partir de sua visão testemunhal
da história da real Ilhéus. Temos aí, portanto, uma possibilidade histórica através de um
discurso literário. Homens e mulheres compõem o cenário do romance e, por meio de seus
diálogos, podemos perceber como esta sociedade entende o que é ser mulher/homem, que
comportamento se espera de cada e como eles percebem e interpretam as mudanças que o
progresso promete trazer para esta questão. Entre os estereótipos encontrados, destacados,
iniciando pelo gênero dominante, os coronéis, os comerciantes, os profissionais graduados,
alguns jovens estudantes, além dos jagunços e trabalhadores da roça. As mulheres são
caracterizadas pelas mocinhas casadoiras, mulheres casadas, “mulheres públicas”, as
solteironas2 , as amantes e as beatas. Alguns destes estereótipos vão simbolizar mais a
sociedade patriarcal enquanto outras vão simbolizar mais a sociedade semi-patriarcal.
1. O que é ser o homem e ser a mulher tradicional Ilhéus?
Inicialmente, nos tempos inóspitos da história da fictícia Ilhéus, o homem deveria
ser necessariamente um desbravador, um conquistador. Não era interessante que pensasse,
arquitetasse e engenhasse. Era necessário a estes homens construir rapidamente uma
economia e uma sociedade, enfim, uma cidade. Os coronéis, assim como os trabalhadores, os
comerciantes, jagunços e outros homens de Ilhéus deveriam cheirar a masculinidade, por
assim dizer. Demonstram-se machos frequentando bares, bancas de peixaria, o porto ou
cabarés, onde, em um momento de menos preocupação, discutem a cidade, discutem a
política, a economia, os costumes, o progresso e também a vida alheia. A política, o
comércio, a rua e as fazendas são os locais onde dominam e tomam suas atitudes. Todos
deveriam arrotar valentia, controle, brutalidade, virilidade, ter uma mulher ou mais, as quais
poderiam ser a esposa, uma amante ou uma prostituta. Tudo isso reforça a masculinidade e
amenizam as obrigações do casamento e do trabalho. Este perfil é retratado já no início do
romance com as personagens dos jagunços e coronéis, os quais satisfeitos com as suas
conquistas, não deixavam de exaltar suas características de macho, mesmo que começassem
configurar outras características de comportamento para o homem, como podemos ver nas
palavras do narrador:
No entanto ainda se misturavam em suas ruas esse impetuoso
progresso, esse futuro grandezas, com os restos dos tempos da
conquista da terra, de um próximo passado de lutas e bandidos. [...]
Passavam ainda muitos homens calçados de botas, exibindo
revólveres, estouravam ainda facilmente arruaças nas ruas de
canto, jagunços conhecidos arrotavam valentias nos botequins
baratos, de quando em vez, um assassinato era cometido em plena
rua. (AMADO, 1978, p. 21)
Os coronéis são figuras que representam o lado macho mais tradicional desta
sociedade. De acordo com Coutinho (1994) o estereótipo comum do pai de família patriarcal
brasileira, o pater familias, era um homem autoritário, “rodeado de escravas concubinas,
2 Conforme Del Priore (2006), a solteirona é a solteira que não é mais casável, ou seja, a encalhada.
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dominava tudo: a economia, a sociedade, a política, seus parentes e agregados, seus filhos e
sua esposa submissa”. As famílias de coronéis são a elite da cidade e são estruturadas pelo
homem que trazia dinheiro e de mulher para criar filhos, dos quais, os meninos são educados
para continuar com a riqueza da família e as moças para esperar noivo e aumentar o prestígio
da família, selando relações sociais. Esta estrutura familiar representa o mesmo controle e o
poder que os coronéis detinham nesta sociedade patriarcal. Algum desequilíbrio na estrutura
familiar tradicional dos coronéis poderia ser interpretado pelos moradores de Ilhéus (pelo
menos na consciência destes coronéis) como uma incompetência em administrar os assuntos
da cidade. Para que isso não aconteça, estes coronéis irão tentar sufocar e resolver estes
desequilíbrios, nem que fosse necessário utilizar a violência, como o fez o coronel Melk
Tavares que espancara a filha Malvina diante a sua a insubmissão, ou como fez o Coronel
Jesuíno Mendonça que assassinara a esposa adúltera. A respeito disso, destacamos o trecho
que o narrador descreve as características do coronel Jesuíno Mendonça após ter assassinado
a esposa:
[...] Jesuíno demonstrara ser homem de fibra, decidido,
corajoso, integro, como alias à saciedade o provara
durante a conquista da terra [...] Era homem sem medo e
obstinado. (AMADO, 1978, p. 95)
Já as esposas destes coronéis, serão o melhor exemplo de mulher desta sociedade.
Conforme Coutinho (1994), a mulher da elite patriarcal “teria se transformado em uma
criatura gorda, indolente, passiva, mantida em casa, gerando seus filhos e maltratando os
escravos”. Mas a qualquer mulher desta sociedade patriarcal lhes foi conferida a tarefa de
zelar a continuidade desta terra e desta sociedade, gerando filhos, alimentando-os e fazê-los
respeitar as ordens patriarcais. Dentro das características que mais se repetem para
caracterizar a boa mulher patriarcal é a honestidade, religiosidade e timidez. Mulher casada
“é para viver dentro de casa, cuidando dos filhos e do lar. Moça solteira é para esperar
marido, sabendo coser, tocar piano, dirigir a cozinha” (AMADO, 1978, p. 72). Mulher
casada apenas frequenta a casa e a igreja. (Aliás, igreja não é coisa de macho, só de padre e
de mulher). As meninas enquanto solteiras vão para o colégio de freiras, mas após o colégio,
quando noivas seguiriam o mesmo destino das mães. Elas, em silêncio, deveriam obedecer
aos pais e maridos, pois, conforme Mary Del Priore (2006), a perspectiva patriarcal
reproduzia nas mulheres um sentimento de dever e de disciplina com sua família e assim
como com seus sentimentos.
Entretanto, se por um lado, estas mulheres são caracterizadas no romance como
fofoqueiras e faladeiras, chantagistas, além de “cabeça fraca” e de um “objeto” a ser
dominado, por outro lado, também são vista de uma forma diferente, ou seja, não são vistas
como totalmente submissas. Algumas personagens masculinas de Gabriela acreditam
“Mulher é tentação, é o diabo, vira a cabeça da gente...” (AMADO, 1978, p. 102) e também
temem a língua das solteironas que se utilizam da fofoca como uma estratégia de controle
sobre estes homens. Além disso, estes assumem que estas mulheres que, mesmo neste
sistema patriarcal, não são tão “cabeça fraca” e lhes podem ajudar, como podemos ver neste
diálogo de um coronel dando conselhos ao estrangeiro Mundinho Falcão:
Nas roças, trabalhador casa até com toco de pau, se vestir
saia. Para ter mulher em casa, com quem deitar, também
para conversar. Mulher tem muita serventia, o senhor nem
imagina. Ajuda até na política. Dá filho pra gente, impõe
respeito. (AMADO, 1978, p. 173)
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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As mulheres mais pobres terão que auxiliar seus maridos no sustento da casa. O
narrador apresenta mulheres que trabalham nas fábricas de chocolate ou nas casas de
coronéis, como cozinheiras, costureiras ou serviços domésticos, o que aumenta os espaços
sociais que estas mulheres circulam modificando seus comportamentos. Também podemos
ver que os contatos com a fome e com a violência social também iriam modificar seus
comportamentos. O primeiro exemplo são as “mulheres públicas” e as “cabrochas” amantes
que vão se utilizar das inúmeras estratégias de persuasão para conseguir sustento através da
“sabedoria da cama” cobrando alto, pedindo jóias e anéis. O segundo exemplo é a
protagonista Gabriela, que prefere andar descalça e “deitar por deitar” não se inserindo no
sistema de comportamentos do patriarcalismo.
Portanto, embora existam diferentes padrões específicos de homem e mulher nesta
sociedade ilheense, dos quais se espera um comportamento para cada, podemos perceber que
mesmo assim os espaços sociais tradicional da mulher e do homem são bastante distantes.
Este aspecto, segundo defende Freyre (1981), caracteriza o sistema patriarcalista. Entretanto,
sabemos que o sistema patriarcalista sobrevive em sociedades fechadas, isoladas e
estratificadas. Desta forma, com a urbanização de Ilhéus, o patriarcalismo entra em declínio,
pois se desfazem os aspectos que o mantêm. Freyre ainda ressalva que a decadência do
patriarcalismo rural para o desenvolvimento do urbano marca a passagem do patriarcalismo
para o semi-patriarcalismo, onde se diminuem as distâncias do trabalho manual e, por
conseguinte, das relações humanas e dos espaços sociais, que passam a ser muito mais
próximos.
2. A “degeneração dos costumes” e as novas mulheres e os novos homens
Não obstante, a riqueza de Ilhéus que foi cultivada por este sistema patriarcal
provoca uma grande mudança nesta cidade no nível político e social, trazendo novos valores
e ideais através dos livros, cinemas e dos estabelecimentos públicos que agora conta como
público alvo toda a família, não só os homens. Inclusive esses novos ideais também
chegaram com os filhos dos próprios coronéis patriarcais. Tudo isso passa a reformatar os
comportamentos e estereótipos padrões de homem e mulher.
Os coronéis do cacau não tinham preocupação com o estudo e erudição. Entretanto,
para o aumento de seu poder social e político, enviavam seus filhos estudar na capital
“Bahia” 3 . Estes filhos junto com outros estrangeiros atraídos pela prosperidade financeira
chegam a Ilhéus trazendo uma nova forma de ser homem. Um homem estudado, “com anel
de doutor”, que sabe literatura e poesia, ou um homem mais atlético parecendo artista de
cinema, capaz de “virar a cabeça de muita menina.”
As moças casadoiras, filhas dessa sociedade, sonham com o casamento, a única
alternativa para uma menina da sociedade patriarcal. Mas, Amado faz suas garotas sonharem
com um tipo diferente de marido que os coronéis possam ser. Desejam um homem estudado,
que more na cidade, que as leve para festas e cinemas e que lhes ame. Estas personagens
denotam um sinal de mudanças nas estruturas sociais de Ilhéus. Essas moças são as
personagens colegas de escola de Malvina, que estão a sempre seguir com olhos os rapazes
que sonham para marido. Moças que passam a namorar no portão ou no escuro dos cinemas e
lhes agradam muito os bailes dançantes das tardes. Além disso, conforme Freyre (1981), as
mulheres no espaço urbano, vão abandonando o confessionário, sua antiga válvula de escape
do sistema patriarcalista, pelos médicos e professores.
3 As personagens da trama não tratam a sua capital estadual pelo seu nome, Salvador, mas apenas por
“Bahia”.
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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Já Malvina Melk, embora moça criada na roça e filha do autoritário coronel Melk
Tavares, se destaca pela sua busca pela sua emancipação criando grandes atritos com o pai,
comprando livros proibidos que “só servem para desencaminhar” 4 , não desejando casar-se
por casamento arranjado e se “enterrar na cozinha de um fazendeiro” ou “ser criada de
nenhum doutor de Ilhéus” (AMADO, 1978, p. 214). O autor a faz de uma personagem de
espírito crítico quando relata suas reflexões:
Dera-se conta da vida das senhoras casadas, iguais à
da mãe. Sujeitas ao dono. Pior que freira. Malvina
jurara para si mesma que jamais se deixaria prender.
Conversavam no pátio do colégio, juvenis e
risonhas, filhas de pais ricos. Os irmãos na Bahia,
nos ginásios, nas Faculdades. Com direito a
mesadas, a gastar dinheiro, a tudo fazer. Elas só
tinham para si aquele breve tempo da adolescência.
As festas do Clube Progresso, os namoros sem
conseqüências, os bilhetinhos trocados, os tímidos
beijos furtados nas matinês dos cinemas, por vezes
mais fundos nos portões dos quintais. Chegava um
dia que o pai com um amigo, acabava o namoro,
começava o noivado. Se não quisesse, o pai
obrigava. Acontecia uma se casar com o namorado
quando os pais faziam gosto no rapaz. Mas em nada
mudava a situação. Marido trazido, escolhido pelo
pai, ou noivo mandado pelo destino, era igual.
Depois de casada não fazia diferença. Era o dono, a
ditar leis, a ser obedecido. Para ele os direitos, para
elas o dever, o respeito. Guardiãs da honra familiar,
do nome do marido, responsáveis pela casa, pelos
filhos. (AMADO, 1978, p. 217)
Amado também demonstra que as modificações dentro da mentalidade machista
com a desestruturação do patriarcalismo darão espaço para um alargamento social de homens
e, principalmente, mulheres. O narrador, também destaca os sentimentos que são provocados
nas mulheres por esta estrutura social que detona poder e status ao homem. Esse fator é bem
perceptível na escolha que Amado escolheu para o nome dos capítulos do romance, onde ele
traz muito do universo íntimo das mulheres que cansadas da condição de submissas passam a
desejar outra realidade para suas vidas que não fossem as regras rígidas do patriarcalismo.
Todos são dedicados a uma personagem feminina do romance e aos seus sentimentos.
Abrindo cada capítulo, há um poema que traz um pouco de suas emoções íntimas e de sua
história de vida. No primeiro capítulo de Gabriela é nomeado como o “Langor de Ofenísia” e
inicia-se com o poema “Rondó de Ofenísia”. O segundo capítulo chama-se a “Solidão de
Glória” e com o poema de “Lamento de Glória”. Já o terceiro chama-se “O segredo de
Malvina” com o poema “Cantiga para ninar Malvina” e, finalmente, o quarto capítulo “O
luar de Gabriela” com o poema “Cantar de amigo de Gabriela”.
Outro fator que realça as mudanças são as traições destas mulheres. Mesmo que
antes da urbanização de Ilhéus “já as mulheres traíam seus maridos” (AMADO, 1978, p.
102), como as próprias personagens relatam, a traição de Sinhazinha Mendonça Guedes é um
4 A leitura das moças, segundo Del Priore (2006) solteiras era algo muito controlado pelos seus pais
para evitar que estas não “comecem a ter ideias”
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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marco por que esta se deixa cair nos braços de um bacharel e é a primeira vítima a ser
julgada como inocente pelo sistema jurídico desta Ilhéus. Em suma, pode-se dizer que Jorge
Amado, escolheu este caso como um símbolo das transformações sociais de Ilhéus, já que
esta é uma discussão abre o romance e se fecha apenas no seu final marcando uma quebra de
paradigma nesta sociedade fictícia. Até então se apropriava das leis dos coronéis no tribunal,
em outras palavras, seria a primeira vez que “um coronel do cacau viu-se condenado à prisão
por haver assassinado de esposa adúltera e seu amante” (AMADO, 1978, p. 358).
Podemos ver que junto com a urbanização de Ilhéus, são implantadas novas
ideologias advindas de uma mudança exterior e são aceitas pela população de Ilhéus que já
não se identifica com os antigos padrões de comportamentos impostos pela sociedade
patriarcal. A partir disso vão se configurando novos estereótipos de homem e mulher e novas
expectativas de comportamento. Porém, dentro do discurso literário, o narrador, nos
demonstra que as mudanças intangíveis são mais lentas que as tangíveis, se provando um
processo de transformação de média a longa duração.
Modificava-se a fisionomia da cidade, abriam-se ruas,
importavam-se automóveis, construíam-se palacetes, rasgavam-se
estradas,
publicavam-se
jornais,
fundavam-se
clubes,
transformava-se Ilhéus. Mais lentamente, porém, evoluíam os
costumes, os hábitos dos homens. Assim acontece sempre, em
todas as sociedades. (AMADO, 1978, p. 10)
O que também podemos ver no trecho seguinte, que são também reflexões de
Malvina:
Mais velha que ela, mais adiantada no colégio, fizera-se Clara
íntima de Malvina. Riam as duas a cochichar no pátio. Jamais
houvera moça mais alegre, mais cheia de vida, formosura sadia,
dançarina de tangos, a sonhar aventuras. Tão ap aixonada e
romântica, tão rebelde e atirada! Casou por amor, assim pelo
menos pensava. Não era o noivo fazendeiro, de mentalidade
atrasada. Era um doutor, formado em Direito, recitava versos. E foi
tudo igual. Que acontecera com Clara, onde ela estava, ond e
escondera sua alegria, seu ímpeto, onde enterrara seus planos,
tantos projetos? Ia à Igreja, cuidava da casa, paria filhos. Nem se
pintava, o doutor não queria. Assim fora sempre, assim continuava
a ser, como se nada se transformasse, a vida não mudasse, não
crescesse a cidade. (AMADO, 1978, p. 217)
Considerações Finais
Ilhéus está vivendo um momento de muitas mudanças na sua economia, na política e
no seu ritmo de cidade interiorana, mas que está se tornando importante por causa da
exportação do cacau. A cidade dos jagunços e coronéis entra no mundo da modernidade, o
que vai mudar em muito nas relações interpessoais, inclusive relações homem e mulher,
incidindo com mais força nos jovens e nas jovens sempre prontos para os novos ares da
modernidade que se traduz no cinema, nos livros, nos estudos e aos estrangeiros à sociedade
patriarcal de Ilhéus.
Percebemos que os aspectos que Amado escolheu para ponto de partida de seu
romance são aqueles que configuram uma sociedade patriarcalista, para encerrar o romance
com os aspectos que configuram uma sociedade semi-patriarcalista. Tal fator é uma
ferramenta metalingüística que Jorge Amado se apropriou para nos dar a sua visão sobre as
transformações das representações de homem e mulher se operam na transição do
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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patriarcalismo para o semi-patriarcalismo na sociedade de Ilhéus, onde ele cresceu e
testemunhou muitos dos aspectos que ele transpôs para seu romance que ressalvamos, mais
uma vez, ser uma possibilidade histórica através de uma testemunha ocular. Vale lembrar que
o cenário propõe uma sociedade de transformações aonde as mudanças vão se operando
lentamente, e que, portanto, os padrões de comportamento e de representação do feminino e
masculino se convivem.
Analisando o corpus percebe-se que o narrador propõe um cenário mais complexo
que a simples dicotomia macho dominador e fêmea subordinada. Além disso, percebe-se que
em Gabriela os padrões específicos de relações entre homens e mulheres são recolocados as
mudanças nas estruturas da cidade de Ilhéus. Por fim, notou-se que em Gabriela há um
metadiscurso que aponta que as mudanças nos estereótipos de homem/mulher e nas relações
de poder entre os gêneros se passam por uma transformação íntima de uma sociedade e do
meio que ela habita
Finalmente, a Literatura é uma arte que coloca em pauta questões do cotidiano
humano, as ideologias, desequilíbrios, emoções de uma sociedade se adiantando ao debate
acadêmico, como fez Jorge Amado em Gabriela. O autor nos faz uma denúncia de questões
da realidade do interior baiano que no tempo da publicação do romance ainda eram
considerados tabus. Portanto podemos acreditar que a Literatura pode resgatar ou evitar
silêncios históricos. Além disso, ela nos permite visualizar melhor como os diferentes
sujeitos históricos participaram para a construção de sua história derrubando o paradigma
ainda evidente em nossa contemporaneidade, principalmente nos livros didáticos, o qual nos
conta que poucos fizeram a História.
Referências
AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela – Crônicas de uma cidade interiorana. 55 ed.. São
Paulo: Record, 1978.
BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e discurso: literatura e história. 2 ed.. São Paulo:
Ática, 2007.
CONFORTO, Marília. As relações entre literatura e História como prática pedagógica.
MÉTIS: história & cultura, p. 213-223, jan./jun. 2005.
DEL PRIORE, Mary. História do amor no Brasil. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2006;
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos:
desenvolvimento do urbano. 6.ed, 1981.
decadência do
patriarcado
rural e
ROCHA-COUTINHO, Maria Lúcia. Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas
relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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Citizen Kane e Closer: a narração como processo da especificidade
cinematográfica
Tendo como u ma das principais conquistas em sua trajetória histórica a consolidação do estatuto artístico,
o cinema, desde o início de suas primeiras produções fílmicas, constituiu-se também co mo uma narrat iva
no ofício de contar e elaborar histórias. Com base principalmente nos estudos realizados por Marcel
Martin (2005) e André Gaudreault e François Jost (2005), o presente trabalho, escrito a partir de
discussões relacionadas à História do Cinema, tem co mo objetivo central analisar a forma em que os
modos de narrar se constituem em u m procedimento específico da linguagem cinematográfica nos
seguintes filmes: Citizen Kane (1941), de Orson Welles e Closer (2005), de Mike Nichols. A perspectiva
norteadora desse estudo condiz co mpreender a narrativa cinematográfica co mo u m processo
mu ltifacetado, que trabalha com diversos meios de expressão, que, desde a origem do fazer fílmico, estão
se moldando de acordo com as inovações técnicas.
PALAVRAS-CHAVE: análise fílmica; narrativa; história do cinema.
1. INTRODUÇÃO
Segundo Barthes (1976), são inumeráveis as narrativas do mundo, numa
variedade de gêneros, em que a linguagem se articula de modo diferente através de
elementos orais e escritos e também pela imagem móvel. No cinema, essa variedade
gênero compõe o discurso fílmico, onde há uma incidência de outros discursos na
formação de seus princípios teóricos. Leva-se, então, em consideração, que a linguagem
cinematográfica constituiu suas especificidades na apropriação de elementos de artes
mais antigas, como a literatura, a pintura, a música, o teatro e, mais recentemente, a
fotografia. Na periodização histórica do fazer cinematográfico, pode-se fazer dois
recortes no decurso dos movimentos que a caracterizam: a primeira corresponderia ao
tradicionalmente chamado primeiro cinema, datado de 1894 a mais ou menos 1907,
momento a qual há um aumento na produção do gênero ficção; já a segunda diz respeito
as transformações da linguagem fílmica, que trouxe para o cinema a estrutura narrativa.
No entanto, sabemos que datas nos servem mais como um instrumento que situa o leitor
na discussão, tendo em vista que, tratando-se de cinema, há diversos pontos de vista
sobre o nascimento dessa arte, que teve múltiplas expressões, até mesmo simultâneas,
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 32
em lugares bastante diferentes no momento de sua origem. Como o foco deste trabalho
é abordar os processos narrativos em duas obras de cinema, iremos nos posicionar no
contexto da segunda fase.
Caracterizando-se como uma forma de estilo narrativo, a partir de 1907, o
cinema buscou meios de contar histórias, retratando personagens e ambientes, tendo
como referente, por exemplo, os modos de elaboração textual da literatura. Além disso,
o cinema possui seus próprios meios materiais de expressão: o desenvolvimento de
técnicas como a iluminação, a utilização da câmera, os estúdios de som, a cenografia e
os intertítulos (fragmentos de diálogos) são frutos dessa época, que, atualmente, foram
aperfeiçoadas pelo cinema contemporâneo.
Vale ainda destacar a montagem e o trabalho com a profundidade de campo,
elementos estes que estão presentes de forma extremamente rica nos filmes que serão
analisados a seguir, Citizen Kane (1941), de Orson Welles, com duração de 119
minutos, e Closer (2005), de Mike Nichols, com duração de 104 minutos. Em um
intervalo de tempo de sessenta e quatro anos, ambas as produções, a primeira norteamericana e a segunda inglesa, mantêm características semelhantes em seus métodos de
narrar.
Tanto Orson Welles (1915 – 1985) quanto Mike Nichols, diretor ainda em
atividade na produção de filmes, não só participaram do trabalho de dirigir uma equipe
técnica, conduzindo atores e acompanhando a construção da obra no set de filmagem.
Ambos os diretores atuaram também como roteiristas de algumas de seus próprios
longas- metragens, fato que reflete a versatilidade no processo de criação e realização de
seus filmes, já que eles compreendem não apenas o procedimento de se criar uma
história e escrevê- la página por página na organização do roteiro, como também de
transpô- la a um meio material físico, assumindo outro tipo de voz e corporiedade.
Indo a uma breve sinopse dos filmes analisados, Citizen Kane tem início com a
apresentação de um castelo, nomeado Xanadu, espaço criado pelo protagonista do filme.
A morte de um dos homens mais importantes da época, Charles Forster Kane, é o ponto
que gera todo o conflito da história, que é desenvolvida por depoimentos de
testemunhas que foram próximas ao magnata e, supostamente, poderiam conhecer a
palavra enigmática que ele disse antes de morrer: Rosebud. Porém, na procura do
sentido dessa palavra, a vida de Kane é mostrada sob vários pontos de vista,
apresentando diversas fases de sua vida. De um lado quase que oposto, no sentido do
conteúdo da trama, Closer, filme baseado na peça teatral de Patrick Marber, percorre o
universo de quatro estranhos que se cruzam: uma ex-stripper, um escritor de obituários,
uma fotógrafa e um dermatologista, em um ambiente londrino boêmio. Em destaque, o
telespectador tem o tratamento de temas como amor, traição, lealdade e separação.
Apesar dessas diferenças temáticas, os filmes se relacionam com o modo que trabalham
os elementos da narrativa cinematográfica, como imagem, som e cenografia.
2. A NARRATIVA CINEMATOGRÁFICA
A princípio, o cinema não era dotado de uma linguagem, sendo apenas um
registro de espetáculo. Mas, foi pela forma de veicular ideias e atribuir significado à
imagem com uma série de procedimentos expressivos que o cinema instituiu seu
próprio discurso, organizando o contar de histórias em um organismo narrativo. A
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 33
percepção visual é, de todas as formas de relação entre o homem e o mundo que o
rodeia, um dos bens mais conhecidos. Há muitas observações empíricas e experimentos
que começaram a constituir-se desde a antiguidade nessa relação do indivíduo com a
imagem (Aumont, 2002, p. 17). Porém, diferente da pintura, que em geral produz
imagens únicas, os filmes são compostos por imagens múltiplas. Sua gênese é marcada
por uma dubiedade que é desenvolvida no seu próprio fazer: é produto da atividade
mecânica de um aparelho técnico capaz de reproduzir objetivamente a realidade, no
entanto, essa realidade é mostrada no direcionamento desejado pelo realizador do filme,
ou seja, é o real mostrado e transformado pelo olhar da câmera e pelo olhar do homem.
Essa dubiedade reflete as propriedades que o cinema dispõe em transfigurar o real,
sendo um veículo, então, que não é transparente ao mundo, visto que busca reinterpretar
a existência que lhe é exterior.
Segundo Gaudreault & Jost (2005), pode-se considerar a imagem a unidade
básica da narrativa cinematográfica, sendo esta, assim, um significante prioritariamente
espacial (trata-se plano 1 e enquadramento 2 , por exemplo, como representantes da
espacialidade desse tipo de imagem), que, ao contrário dos demais veículos narrativos,
possui nas formas de abordagem do elemento visual a principal forma de apresentação
das ações da história.
Outra característica importante da imagem cinematográfica é sua localização
sempre no presente, como destaca Martin (2005, p. 29). É imprescindível ter em mente
que o objeto que está representado no écrã tem seu próprio tempo, tendo certa
autonomia com quem o vê. Partindo da realidade do espectador, a imagem chega à
percepção deste num desnível temporal quando é colocada em ações no
desenvolvimento da narrativa de maneira não linear, fato que acontece com frequência
nos filmes Citizen Kane e Closer, através da utilização de flashbacks e elispses. Dessa
forma, a apreciação do leitor depende dos métodos narrativos que os realizadores
utilizam para fornecer sentido à imagem dentro do plano do discurso fílmico.
Tratando-se de narração, a imagem não nos oferece todas as indicações para que
se possa interpretar o sentido desses acontecimentos, pois ela afirma apenas os
elementos ligados à materialidade visual do fato que apresenta, sem dar a sua completa
significação. Para isso, é preciso pensar na imagem relacionada a uma das mais
revolucionárias técnicas do processo fílmico: a montagem, processo a qual o caráter
natural dos elementos filmados é transformado na preparação técnica do filme.
Montar é ordenar de acordo com uma sequência (a) temporal, no âmbito de
contar uma história, vários planos, expondo o conteúdo dos fatos, sob o ponto de vista
dramático, expressivo e psicológico. Citizen Kane faz uso, por exemplo, de um tipo de
montagem que até o momento em que o filme foi produzido era pouco utilizada: a
montagem invertida, em que se tem a alteração da ordem cronológica a favor da busca
1
Por plano, entende-se que este é o primeiro fragmento da linguagem cinematográfica, sendo determinado pela
posição da câmera de filmar em relação ao sujeito. Apesar desse conceito estar vinculado ao que se compreende por
enquadramento, pode-se distingui-lo por se tratar de uma imagem fílmica de teor unitário, que é percebida tal qual é
projetada.
2
A noção de quadro pertencia à pintura, tendo sido prolongada pela fotografia. O enquadramento apareceu no cinema
para designar o processo pelo qual se tem uma imagem que contém um campo, em que se vê o objeto filmado em
toda sua superfície, no plano de foco da filmagem.
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 34
de uma temporalidade subjetiva, quebrando a linearidade lógica da narrativa:
Fraturando a coerência do tempo, e a ilusão de realidade, que é, de fato,
ilusão de um sentido da realidade, a montagem suspende a possibilidade de
atribuir u ma significação imed iata aos elementos representados. A
sinalização de um falante provoca, pois, a eliminação mo mentânea de
sentido, a partir daí submetido ao reconhecimento de uma articulação geral.
(ROPA RS-WUILLEUM IER, p. 33, 2002)
Para Mazzoleni (2002), Citizen Kane é um tratado que resume os pressupostos
da linguagem cinematográfica, pois ora privilegia planos-sequência realizados com
elaborados movimentos de câmera, ora destaca a fixidez da imagem na composição de
espaços múltiplos, ou então se serve de instrumentos de montagem para causar
contrações temporais.
Além disso, como destacado acima em Roppars-Wuilleumier (2002), a presença
de um falante (que no filme assume a voz fora de campo de um narrador, participando
diretamente da ação), causa uma interrupção na fluidez da compreensão da narrativa,
pois também se tem as declarações sobre Kane dos personagens- narradores. Em termos
da descontinuidade da narração, o flashback visual é um recurso eficaz, já que sintetiza
um momento da história, potencializando a expressão visual em poucas imagens.
Welles faz isso no prólogo do filme, quando apresenta ao espectador Kane pouco antes
da morte e em seguida dá saltos para a vida do personagem, enquanto Nichols trabalha
com mais frequência elipses, jogando com a velocidade do tempo narrativo. Como
característica da obra moderna, a linguagem e o ritmo da montagem podem ser
diferenciados ao buscar a fuga do ilusionismo clássico, em que os atores dialogam com
a presença da câmera, desfazendo, assim, o controle total da realidade criada pelas
imagens – cronometrada e prevista.
Na ausência de lógica (tratando-se dos dois filmes), temporal e espacial, é
necessário recorrer à ligações ou transições plásticas e psicológicas que conectem as
evoluções e mudanças do conflito. Elas podem ser ao mesmo tempo visuais e sonoras,
destinadas a construir as articulações narrativas. Na linha de realização de
procedimentos elípticos e sínteses temporais, há como principal exemplo em Citizen
Kane a cena em que ele e sua esposa Emily dialogam sobre o casamento (0:52:11).
Mudanças de vestuário e penteados de cabelo das personagens em ambientes
praticamente imutáveis e a duração cada vez mais rápida dos planos são descritos como
micro episódios que representam a degradação da relação conjugal, marcada pela
imprecisão temporal da montagem elíptica (MAZZOLENI, p. 182). A sobreposição dos
pontos de vista mantém, como já visto, uma indeterminação na narração relativa à
temporalidade da história, que não se submete a qualquer assimilação com o tempo real,
pois procede rupturas, diluições, fazendo com que o motor da narrativa seja a invenção
do próprio tempo, realizada pelo discurso fílmico. A mistura de diferentes níveis
temporais, estabelecendo uma desordem no tempo da história, ou seja, aquilo que
abarca o desenvolvimento da narrativa, do prólogo ao epílogo, fornece uma extensão do
tempo do discurso, que manipula e recombina a sucessão de eventos da história
servindo-se de vários procedimentos.
Welles utiliza elipses na tentativa de fazer com que o espectador (des) construa
a todo o momento a imagem que se tem do magnata. Como a narrativa se organiza
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 35
numa espécie de jogo de quebra-cabeça, os fatos da vida de Kane são postos lado a lado
para se traçar o perfil de sua personalidade. Com os diversos cortes presentes no filme,
o público recebe o convite atrativo de formar sua opinião paulatinamente, como se fosse
um desafio descobrir quem é realmente esse enigmático protagonista. Nisso reside um
dos principais pontos de Citizen Kane: o personagem central não é apresentado em sua
totalidade, seu eu é cortado em partes, ao ponto que é assim que a narrativa se estrutura,
de modo fragmentário. No entanto, em Closer, o tempo descontínuo mostra o quanto é
instável a relação amorosa dos casais, posto que em cada elipse o espectador tem
alguma surpresa relacionada a alguma mudança no relacionamento dos mesmos.
Em Closer, a montagem clássica é o tipo predominante. Entretanto, há
utilizações de montagem alternada, como quando, por exemplo, os personagens Anna e
Dan decidem contar para seus respectivos companheiros que estão a ter um caso
amoroso (0:46:38). Essa ação se desenvolve numa mesma cena. Por intermédio dos
diálogos iniciais, percebe-se que os personagens em questão estão a tratar do mesmo
assunto, em suas respectivas casas. É no diálogo que se encontra mais um importante
componente da linguagem cinematográfica, que, através da introdução do som no
cinema, cada vez recebe mais destaque nos filmes. Mesmo tendo o cinema como uma
arte de imagem, a palavra inserida em sua composição é um elemento que, a depender
do modo que é trabalhado, torna-se um adicionante à significação do dizer
cinematográfico.
Com o advento do som nos anos 30, época que marca o nascimento de um novo
cinema, a unidade estética do cinema ganha o componente auditivo: a voz dos
personagens (ou do narrador). Doravante, as falas em cinema adquirem um estatuto tão
sólido quanto o da imagem. Tendo em vista que nos filmes em discussão o trabalho com
os diálogos é frequente, faz-se necessário mostrar uma categorização teórica dos
mesmos. Martin (2005, p. 221) chama atenção para três tipos de diálogos, que se
encaixam na perspectivas das películas: a) diálogos teatrais, escritos para serem
encenados em palco, de frente para o público; b) diálogos literários, segundo qual
predominam a elipse e o silêncio como formas de dizer algo; c) por fim, os diálogos
realistas, revelando uma preocupação de se exprimir através de uma linguagem simples,
acessível a toda a gente. Como o roteiro de Closer é derivado de um texto teatral,
obviamente seus diálogos se encaixam nesse padrão, mas também se aproximam de
características literárias, já que os modos de narrar das peças se aproximam com os
modos de narração literária. As falas dos personagens podem seguir o estilo indireto
livre, colocando o narrador fora ou dentro da ação. Dessa maneira, os diálogos não
precisam ser fundamentais ao desenvolvimento do conflito e nem ter necessariamente
um sentido fixo. Em um dos grandes diálogos do filme, Alice fala sobre amor (1:34:48)
com uma com a crueza compatível à força da palavra que há na peça de Patrick Marber:
Onde está o amor? Eu não vejo, eu não toco, eu não sinto. Só ouço algumas palavras,
mas não posso fazer nada com suas palavras fáceis. O que você disser, é tarde demais.
Em Welles, diálogos com caráter realistas são predominantes, apesar de que o
filme se inicia com uma conversa que não consegue ser ao menos realizada, de teor
lacunar, quando Kane está prestes a morrer e deixa a palavra Rosebud em suspensão
para a enfermeira que entra no quarto. Portanto, vê-se que, ambos os filmes não
trabalham com um único método de narrar a história, posto que mesclam os elementos
da linguagem cinematográfica na constituição do enredo narrativo. Além disso, não se
deve esquecer que Citizen Kane fora lançado comercialmente num período que o
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 36
cinema sonoro estava no auge de sua afirmação dentro da indústria:
Uma vez que os determinis mos técnicos estavam praticamente eliminados é
portanto necessário procurar noutro campo os sinais e princípios da evolução
da linguagem cinematográfica [...]. Em 1939 o cinema sonoro tinha chegado
àquilo que os geógrafos chamam o perfil do equilíbrio de um rio. Quer dizer,
a curva matemática ideal, resultado de suficiente erosão. Alcançado seu perfil
de equilíbrio, o rio corre sem esforço da nascente e deixa de cavar seu leito.
(BAZIN, 1992, p. 20)
Dito isso, pode-se reconhecer em Citizen Kane a atribuição de grande
importância ao som, posto que em grande parte da narrativa são apresentados ao
espectador monólogos de Charles, que descrevem através da voz pensamentos e
emoções do personagem. Assim, num filme em que as vozes valem tanto quanto as
imagens, tem-se diálogos em que todos os personagens falam ao mesmo tempo como
instrumentos musicais de uma orquestra. Na cena que culmina no encontro de Charles
com sua amante e esposa (1:05:19), há um procedimento antitradicional que eleva a
utilização da voz no cinema: as frases inacabadas. No contexto da ação dramática, tal
recurso serve como instrumento para explicar que a ausência do som, numa era em que
este já está consolidado na indústria fílmica, também pode representar o não dito, assim
como anteriormente, quando a narrativa de cinema era desprovida de áudio.
É na organização dos componentes citados que a linguagem cinematográfica se
constitui, não apenas pelo conteúdo plástico da imagem como também pelos recursos de
montagem. Para a teoria da narrativa, de acordo com Culler (1995), é preciso
compreender a distinção entre enredo e apresentação da história. O leitor – no nosso
caso, o leitor espectador – identifica o que está sendo contado, de início, através da
história e, posteriormente, pela forma específica que ela se apresenta. Citizen Kane
estrutura o enredo em uma atmosfera misteriosa, utilizando elipses e flashbacks para
fragmentar a sequência de acontecimentos das narrativas. O mesmo recurso é presente
em Closer, mas, com outra finalidade: afirmar os vários rumos das vidas dos
personagens e suas indecisões para tomar importantes escolhas em seus relacionamentos
amorosos. Visto isso, é possível dizer que essas diferentes formas de tratar o enredo se
constituem em variáveis que concebem a narrativa, que pode se dirigir em alguns
momentos ao trabalho com a imagem ou então a velocidade temporal do filme.
3. AS FORMAS DE NARRAR EM CITIZEN KANE (1941) E EM
CLOSER (2005)
Há um aspecto em comum entre Orson Welles e Mike Nichols que se deve
destacar, levando em consideração a forma semelhante de relacionar a linguagem
fílmica com outros campos. A aproximação que Closer realiza entre o discurso fílmico e
o teatro não é uma novidade de seu diretor, pois este adaptou a peça Quem tem medo de
Virginia Woolf?, do dramaturgo norte-americano Edward Albee, para o écrã em 1966.
A habilidade de unir a forma de narrar de dois campos diferentes faz parte da história de
Nichols, assim como é para Welles, mas em outro sentido: o de transpor referências do
dizer literário para seus filmes. Em Kane, os enunciados que são encaixados na voz de
um narrador principal se posicionam fora do eixo das ações da narrativa. Esse processo
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 37
é oriundo da importação de características do texto literário, pois no cinema, esse tipo
de narração não era tão usual. Posteriormente, Welles realiza Soberba, a partir do
romance The Magnificent Ambersons, de Booth Tarkington, numa grande intimidade
com o livro. Para além daquilo que aproxima esses dois realizadores, há algumas
técnicas distintas de filmagem do início dos filmes que precisam ser comentadas.
O prólogo de Citizen Kane utiliza o travelling, movimento de câmera que, nesse
caso, descreve o ambiente com precisão ao efetuar uma atividade subida de olhar,
deslizando pela cerca do Xanadu, primeiro passando por uma rede e posteriormente a
uma grade, apresentando-nos o lugar. O uso desse recurso aproxima o olhar da câmera
em função do ambiente, como se fosse um olhar investigativo. É no Império de Kane
que ocorre o acontecimento que culminará no conflito de toda a narrativa: sua morte.
Ao ultrapassar os limites externos da propriedade do castelo, em um movimento fluido
de câmera, entra-se no interior do castelo, propriamente na ficção cinematográfica.
Então, pode-se notar, a partir disso, a preferência de Orson Welles em primeiro
contextualizar o ambiente da intriga para assim, começar a desenvolvê-la, lembrando
que esse castelo é o local em que se revela no epílogo o enigma Rosebud, fato que torna
ainda mais importante seu destaque.
A complexidade de Kane é algo que o coloca em destaque durante o decorrer da
narrativa, fato que se observa com clareza na utilização da luz cinematográfica como
procedimento que demonstra o interior de sua personalidade. A iluminação de contraste
cria uma dialética entre o personagem e o espaço, trazendo ao espectador zonas
sombrias de Kane. A luz, nesse caso, tende a ser mais dramática e concentrada, com
pontos escuros e sombras bem definidas. Esse tipo de luminosidade tem como
influência direta o movimento expressionista de vanguarda alemã, cujos pontos de luz
se direcionaram para locais específicos do ambiente. Dessa forma, identifica-se um
correlato objetivo (termo cunhado pela corrente dos estudos formalistas) entre a
psicologia do personagem e o clima do ambiente, representados pelo uso da luz em
situações emocionais. Os demais personagens assumem um papel de introdutores dos
episódios, nas quais suas opiniões permanecem em função de acrescentar aspectos
construtivos para a figura do protagonista.
Numa perspectiva distinta, Closer se inicia em slow motion (câmera lenta),
efeito especial de câmera em que a ação é vista numa duração mais prolongada, com
enquadramento da figura inteira dos personagens Alyce e Dan. Como ambos ainda não
se conhecem, o emprego da câmera lenta enfatiza uma certa tensão no momento em que
os personagens caminham pelo centro de Londres, trocando intensos olhares. Além
disso, há o acompanhamento musical da canção The Blower's Daghter, de Damien Rice,
onde a letra intensifica a atração dos personagens: “I can't take my eyes off you”.
Mesmo iniciando de formas diferentes, a narração dos filmes se assemelha no
que abrange a preferência de ofertar, de imediato, significado à imagem através dos
movimentos de câmera. Citizen Kane mostra cautelosamente a frase da placa que
devemos prestar mais atenção: “No trepassing”. Tal proibição exibida em lentidão
reforça o caráter de que o espectador está prestes a entrar em um universo repleto de
nuances. Já em Closer, a câmera lenta indica o quanto os personagens estão envolvidos
na troca de olhares, pois faz com que essa ação seja retardada na duração do tempo,
dando oportunidade do receptor visualizar com mais clareza e compreender através
desse processo que Alice e Dan estão começando um jogo de sedução.
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 38
Discutindo ainda desses processos de tratamento da imagem cinematográfica, o
realizador de Citizen Kane possui um importante contributo na história do cinema
relacionado a esse assunto: uma nova abordagem da nitidez do enquadramento,
nomeada como profundidade de campo. Mazzoleni (2002, p.42) diz que foi o uso de
uma objectiva focal curta, dotada de uma elevada luminosidade, acompanhado do
emprego de lâmpadas potentes, que tornou esse instrumento o código de expressão
máxima de Welles. Para exemplificar, faremos alusão à cena em que Charles quando
criança é levado de sua casa (0:19:32). Há, então, a simultaneidade das ações, quando
seus pais assinam um documento em primeiro plano, ao fundo, é possível ver a criança
brincar na neve. Segundo Martin (2005, p. 210), esse tipo de utilização ampla do
enquadramento permite uma realização sintética das ações, sem precisar deslocá- las ou
mudá-las de plano. Evidencia-se esse processo em Closer, na exposição fotográfica The
Strangers, de Anna, no plano em que ela conversa com Dan, paralelamente a conversa
de Alice e Larry, que ocorre no fundo. Nesse momento, tal recurso demonstra a tensão
dramática que há entre os personagens, tendo em vista que Alyce e Larry sabem que
Dan e Anna já se envolveram emocionalmente. Há outra técnica, mas nesse caso ligada
ao procedimento de montagem, que é utilizada na cena citada e que consolida a
continuidade narrativa da história: o raccord, onde se liga as imagens do primeiro plano
às imagens do segundo plano num molde de dissolução, em que um plano se transforma
em outro, ao promover um esclarecimento branco gradual da tela.
Ainda no sistema formal de Closer, convém destacar a constante utilização da
profundidade de campo, onde os atores tiveram uma disposição de espaço físico ampla,
permitindo- lhes adaptar o padrão do meio cinematográfico ao estilo de representações
teatrais. Tal recurso atribui mais valor à imagem cinematográfica à medida que se
prioriza inicialmente observar o registro da imagem dentro do acontecimento. Para
exemplificar, tem-se a cena que Alice leva Dan até seu local de trabalho (0:09:28). Os
personagens são enquadrados em sua totalidade na profundidade de campo,
acompanhados pela música Cold Water, de Damien Rice, numa bela sincronia entre o
som e a atmosfera triste do filme. No entanto, a perspectiva do olhar da câmera em
Closer segue o modelo do ponto de vista formal do teatro. A presença da frontalidade
dos atores alude a esse efeito dos atos teatrais, que nas cenas dos filmes permite
visualizar amplamente o perfil dos atores, em que os personagens são apresentados
várias vezes de lado. É bom lembrar que a tela fornece apenas uma parte da realidade,
logo, quando um personagem sai do eixo de observação do espectador, continua a
existir em algum lugar do ambiente, já que não há bastidores na tela. Vale destacar
ainda que o filme trabalha com a técnica de continuidade visual na direção dos olhares,
pois narrativa é composta por longos diálogos, sendo necessário que se garanta uma
simetria perfeita na correspondência dos olhares. Na cena em que Dan diz para Alice
que está a ter com Anna (0:46:49), ela sai do enquadramento, passando para outro
campo de visão sem deixar de acentuar, por intermédio do olhar, o efeito dramático da
ação. Assim, os personagens na narrativa são construídos por olhares, além de forte
domínio do uso da palavra, em consonância com técnicas de cinema que reforçam o teor
de suas respectivas personalidades.
Num outro patamar, o olhar da câmera em Welles firmou outra palavra teórica
que se consolidou no vocabulário crítico das teorias do cinema: o plano-sequência. Este
termo refere-se a um plano bastante longo, que apresenta uma sequências de fatos, sem
fragmentá- los, unindo-os sucessivamente na montagem. Em Citizen Kane, o patrimônio
de Charles Forster é mostrado numa deterioração progressiva, sepa rada por grandes
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elipses temporais que cortam a continuidade cronológica da história. Da mesma
maneira, Mike Nichols utiliza o plano sequência em seu filme quando introduz um
intervalo temporal do momento em que Alice e Dan terminam sua primeira conversa
(0:02: 37), passando para a cena seguinte, em que ele está num estúdio fotográfico,
esperando-a, e o relacionamento dos dois já tem se iniciado. As situações citadas, apesar
de conterem espaços em branco de um momento para outro, estão em um processo
narrativo cinematográfico que se vale em concatenar os acontecimentos, independente
de eles estarem próximos temporalmente, quebrando novamente ideia ilusória de que o
cinema é uma arte imitativa do real.
Das inúmeras tipologias de narração para se contar uma história, Welles
escolheu dois métodos para nos mostrar os episódios da vida Kane: a voice-over, no
formato de um narrador extra- diegético, que não é uma personagem na trama, e por
meio dos personagens que relatam fatos da vida do protagonista, como sua e x-esposa e
seus amigos. A voz do narrador não se posiciona em sentido restritamente
intervencionista da imagem que é formada por Kane, ficando a cargo dos personagens
narradores pontuarem de forma direta a opinião que tinham sobre ele. Na narrativa de
Nichols, considera-se nessa função de narrador um observador invisível, que está
traduzido na própria câmera, identificando-se como tal. Logo na primeira cena, o
movimento da câmera alterna entre Alice e Dan, quando estes andam pelo centro de
Londres, introduzindo lentamente o início da história dos dois. Há também o momento
que Anna e Larry se conhecem no Aquário e saem para caminhar (0:32:43), sendo
enquadrados em medium long shot (campo longo médio), em que o ambiente - numa
medição geométrica - é dominante em comparação a figura humana. A melancolia da
paisagem de Londres que é retratada, um azul que tende para um ambiente chuvoso, de
intranquilidade, pode ser interpretada como uma forma de exteriorizar, através do foco
da câmera, o estado instável de espírito da fotógrafa.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do que foi discutido, percebe-se com Citizen Kane que a contribuição da
vanguarda norte-americana moderna deixou um legado ao cinema contemporâneo não
somente nas inovações técnicas, como também na noção do termo narrativa na
linguagem cinematográfica. Isso nos leva a concluir que, até pelo fato do cinema ser
uma arte jovem, os movimentos no curso de sua história relacionam estilos entre si.
Para Bazin (1992), Orson Welles marca um novo estágio no cinema, rompendo com
algemas que se configuraram como uma aparência oficial. Nele se data a utilização de
uma montagem acelerada, que brinca com o espaço e o tempo, num ritmo que se
configurou uma técnica.
Conforme Metz aponta (apud BAZIN, 2008, p. 140), é mais apropriado discutir
graus de especificidade da linguagem cinematográfica do que um objeto específico em
si. A distinção entre os códigos especificamente cinematográficos e nãocinematográficos é, evidentemente, em diversos aspectos, tênue e instável. Isso se dá,
pois, devido ao fato de o discurso fílmico beber na fonte de outros campos. A narrativa,
por exemplo, faz parte da vida literária, teatral etc. Vê- la como um procedimento
específico do cinema é compreender como a narração incorpora os componentes
audiovisuais para construir sua própria linguagem. Na etapa da história do cinema que
esse estudo se inseriu, observamos que a narrativa fílmica tem como meio um
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 40
“pluricódigo”, que combina códigos partilhados por outras linguagens.
Sendo assim, os métodos de narrar no cinema se atualizam, tanto é que em Mike
Nichols, podem-se observar várias referências e uso de técnicas advindas desse
momento da história do cinema, que considera a narração como um processo que
contribui decisivamente para a definição da especificidade cinematográfica. O diálogo
referente às películas Closer e Citizen Kane está além das semelhanças entre os modos
de narrar: esse elo apresenta a capacidade que a linguagem fílmica possui e m se
ressignificar, isto é, colocar o que um dia foi considerado como revolucionário e antitradicional em parâmetros que buscam a inovação através de novas leituras da tradição.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Editora Papirus, 2001.
BARTHES, Roland. Introdução à Analise Estrutural da Narrativa. In: Análise Estrutural da
Narrativa. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1978.
BAZIN, André. A evolução da linguagem cinematográfica. In: O que é cinema. Livros
Horizonte: 1992.
CANDIDO, Antonio. A personagem cinematográfica. In: A personagem de ficção. São Paulo:
Editora Perspectiva, 2007.
CIDADÃO, Kane. Produção de Orson Welles. Distribuidora RKO, Radio Pictures.(119 min)
Preto e Branco. Legendado. Port.
CLOSER. Produção Mike Nichols, John Calley e Carey Brokaw. Distribuidora Columbia
Pictures. (104 min). Colorido. Legendado. Port.
CULLER, Jonathan. Narrativa. In: Teoria Literária. Rio de Janeiro: Beca, 1995.
GAUDREAUT, André & JOST, François. A narrativa cinematográfica. Brasília: Editora
UNB, 2005.
MASCARELLO, História do cinema mundial. São Paulo: Editora Papirus, 2006.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Lisboa: Editora Dinalivro, 2005.
MAZZONELI, Arcangelo. O abc da linguagem cinematográfica. Portugal: Edição Cine Clube
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 41
de Avanca, 2002.
ROPARS-WUILLEUMIER, Marie Claire. Narração e significação: um exemplo
fílmico/Citizen Kane de Orsom Welles. In: Análise semiológica do texto fílmico. Portugal:
Editora Estampe, 1979.
STAM, Robert. A especificidade cinematográfica revisitada. In: Introdução à teoria do
cinema. São Paulo: Papirus, 2006.
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 42
Memórias de Emília: uma análise sob a perspectiva da construção
literária Infanto-Juvenil
Camilla Cássia Silva
Carline Barbon dos Santos
Daniela Faria Grama
Deivid Naques Dutra
Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar os aspectos essenciais para a construção da
Literatura Infanto-juvenil e, consequentemente, para Memórias da Emilia (1970) de Monteiro
Lobato. Para tanto, tomaremos como embasamento teórico as perspectivas do estudioso
Jesualdo Sosa, que menciona a questão do caráter imaginoso e do dramatismo na literatura.
Além disso, utilizaremos o conceito de Literatura e suas “três forças” (Mathesis, Mimesis e
Semiosis) definidas pelo filósofo Roland Barthes e, ainda, a noção de Devir explanada pelo
intelectual Gilles Deleuze. Dessa forma, podemos dizer que, em um primeiro momento, este
trabalho será composto de um resumo de Memórias da Emilia. Logo em seguida, abordaremos
os aspectos teóricos aqui citados sob a perspectiva de seus respectivos autores. E, por fim,
faremos uma breve e simples análise que visa relacionar a importância desses elementos
teóricos para a composição da narrativa em questão e, assim, para a constituição de obras
direcionadas para o público Infanto-juvenil.
Palavras-chave: Literatura Infanto-juvenil. Memórias da Emília. Dramatismo. Caráter
Imaginoso.
Abstract: The goal of this paper is to analyze the main aspects of the Children’s Literature
construction in general and in “Memórias de Emília” (1970) by Monteiro Lobato. To do so, we
will follow the steps of Jesualdo Sosa and his theoretical perspectives about the imaginative
aspects and the literature dramatism. In addition, we will use the literature concept of the “three
forces” (Methesis, Mimesis and Semiosis) according to Roland Barthes and yet the notion of
Becoming explained by the thinker Gilles Deleuze. So, at first, this paper will present a
“Memórias de Emília” summary and secondly, the theoretical aspects under the prism of the
respective thinkers, here mentioned, will be discussed. Finally a brief and simple analysis is
done due to relate the importance of those elements to the body of the presented narrative, thus
to the construction of that kind of literature, dedicated to children and adolescents.
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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Keywords: Children’s literature. Emília’s memory. Dramatism. Imaginative aspects.
Introdução
A Literatura infanto-juvenil brasileira nasce com influências da literatura
europeia, especialmente a portuguesa, interligando-se ao discurso didático, de forma
que suas histórias eram voltadas apenas para “educar” crianças e jovens, sendo
consideradas “leituras escolares”, ou seja, de caráter purame nte pedagógico.
Após esse período inicial, o gênero no Brasil tomou uma nova dimensão,
assumindo, assim, o discurso estético, do qual a linguagem passou a ser conotativa e os
saberes passaram a ser explorados, de forma a oferecer ao leitor (no caso as crianças
e/ou adolescentes) a possibilidade de buscar novos conhecimentos e, consequentemente,
a desenvoltura de um olhar crítico e artístico.
Essa “transformação” só foi possível com a inserção de Monteiro Lobato em
nosso circuito literário infantil, fato este que garantiu ao autor pioneirismo no estilo. Por
esse motivo e sua dada importância, no presente trabalho pretendemos analisar a obra
Memórias de Emilia (1970) segundo os aspectos: caráter imaginoso e o Dramatismo –
Jesualdo Sosa; o conceito de Literatura e suas “três forças” (Mathesis, Mimesis e
Semiosis) − Roland Barthes e a noção de Devir − Gilles Deleuze. Portanto, com esta
análise demonstraremos como e de que forma os saberes, as representações, o lúdico, as
percepções e a função formadora surgem e funcionam na obra.
Um Resumo De Memórias De Emília
A história inicia-se com uma conversa entre Emília e Dona Benta sobre o que
são memórias. Nesse diálogo, Emília diz que é no ato de escrever memórias que as
pessoas mais mentem, porém, na opinião dela essas mentiras devem ser bem contadas a
ponto de convencer o leitor de que tudo é verdade, para que assim ele possa acreditar
que o escritor não teve uma vida comum como a dele. Dona Benta acha graça em
perceber como Emília expõe suas ideias de maneira tão filosófica. Então, Emília decide
começar a escrever as suas próprias memórias. Para isso, ela conta com a ajuda do
Visconde de Sabugosa, este torna-se o seu “secretário”, escrevendo tudo o que ela dita.
O título de sua “obra” chama-se “Memórias de Marquesa de Rabicó”. No
primeiro capítulo, Emília, com certa dificuldade para começar, pede ao Visconde para
colocar seis pontos de interrogação. Sabugosa, contrariado com esse início, diz a Emília
para ela ficar sozinha até que então saiba o que deve ser escrito. Ela diz a ele que não
sabe como começar e pede a sua opinião. Ele sugere que as Memórias comecem
apresentando dados biográficos, como a maioria dos autores faz, apresentando o ano em
que nasceu, o local, etc. Emília gosta da ideia e, dessa forma, ela começa dizendo que
nasceu de uma saia velha da Tia Anastácia, que nasceu vazia e só depois a encheram de
pétalas de macela. Emília conta alguns detalhes sobre como ela foi feita e de como
aprendeu a falar. Depois disso, conversando com Visconde, ela diz que as suas
Memórias devem começar com a sua própria filosofia de vida, explicando para
Sabugosa que, na verdade, a vida era como um “pisca-pisca”.
De repente, Quindim atrapalha Emília e Visconde chamando-a para conversar.
Emília vai, e diz para Visconde escrever como se ela estivesse ditando. Ele então decide
escrever sobre a estória do Anjinho de asa quebrada, este refere-se a um anjo que Emília
caçou numa viagem à Via Láctea, realizada com Narizinho, Pedrinho e o próprio
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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Visconde, inclusive, essa estória é contada em “Viagem ao Céu”. Ao descrever a
história, Sabugosa nos conta como Emília tentava ensinar as coisas da vida e a
linguagem da Terra ao anjinho, agindo como uma verdadeira professora. O anjo era
chamado de “Flor das alturas” e a sua presença no sítio tornou-se notícia no mundo
inteiro, atraindo a atenção de várias crianças. A novidade foi tão intensa que o sítio
acabou sendo visitado pelas crianças da Inglaterra, elas fizeram uma longa viagem a
navio, acompanhadas pelo Almirante Brown, para encontrare m com “Flor das alturas”.
Assim que os britânicos chegaram ao seu destino, Narizinho, Emília e Pedrinho ficaram
receosos ao verem aquela quantidade de crianças no sítio apenas para conhecer o
anjinho. Então, com medo de que ele pudesse ser levado por elas, rapidamente vestiram
o Visconde de anjo, a fim de enganarem as crianças e esconderam Flor das alturas numa
figueira oca. Mas a farsa logo foi descoberta e eles tiveram que apresentar o verdadeiro
anjo.
Todos ficaram encantados ao conhecerem anjinho, o sítio e todos os seus
habitantes, inclusive o senhor Brown. Para dar conta de alimentar todas as crianças, que
ficaram três dias na morada de Dona Benta, o Almirante levou alguns marinheiros
responsáveis por trazer toda a alimentação necessária. Mas dentre estes, Pedrinho e
Peter Pan (uma das crianças inglesas) perceberam a presença do Capitão Gancho que,
com certeza, estava com a intenção de levar o anjo dali. Antes que pudessem fazer algo,
avistaram Popeye que tratou logo de eliminar o Capitão, uma vez que ambos tinham o
mesmo interesse. Agora restava aos meninos derrotar Popeye para que assim o anjo
permanecesse no sítio.
A essa altura todos estavam preocupados, sem saberem qual solução seria a
melhor. Mas a esperta Emília teve a ideia de trocar a lata de espinafre do Popeye por
uma lata com couve moída, pois assim ele não teria forças para lutar, sendo facilmente
derrotado. O plano deu certo. E quando Visconde estava nesse ponto das “Memórias”,
Emília entra e pergunta a ele como está indo o “serviço”. Ele lê toda a estória do anjinho
que escreve e ela a aprova. Porém, Sabugosa e Emília discutem, pois ele não gosta da
ideia de escrever memórias que não sejam suas. Emília não demonstra preocupação e
diz que se ele não quiser continuar escrevendo, ela mandará Quindim continuar. Assim,
Visconde se vê convencido de que é melhor continuar escrevendo. Então ele prossegue
contando como foi a fuga do anjo. Este já não tinha mais sossego com a presença de
todas aquelas crianças ao seu redor, quando decidiu despedir-se de Pedrinho, Narizinho
e Emília, de modo que eles não percebessem o que ele ia fazer. Entretanto, Emília
desconfiou, mas não a tempo, pois o anjo voou para o céu.
Depois de Visconde contar como Emília ficou brava com a Tia Nastácia,
porque esta não quis cortar as asas do anjo para que assim ele não voasse, e depois de
finalizar a estória com a despedida dos Ingleses do sítio, Quindim e Emília perguntam
ao Visconde se ele já terminou as “Memórias”. Ele responde que terminou a estória do
anjinho e, então, Emília pede que ele escreva também sobre “o caso do Peninha”, em
que Rabicó é solicitado por Pedrinho para entregar um bilhete a Peter Pan, perguntando
se ele era ou não o Peninha, mas o que acontece é que Rabicó come o bilhete.
Após detalhar sobre o que deve ser escrito a respeito do caso de Peninha,
Emília diz que Visconde pode continuar escrevendo e que ele deve prosseguir, depois
desta, com uma estória sobre Quindim. Sabugosa estava cansado das ordens de Emília e
começou a escrever sobre a sua personalidade, ressaltando os seus “defeitos”. Ela
descobre, mas até gosta do que ele escreveu sobre ela. Ao conversarem, Emília lembrase do anjinho e começa a se imaginar com ele em Hollywood, no cinema. Nesse
momento, ela dispensa Visconde e continua ela mesma as suas “Memórias”, contando
como seria se Nastácia tivesse cortado a ponta da asa de “Flor das alturas”.
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Emília prossegue dizendo que foi para Hollywood com todos os britânicos que
estavam no sítio, incluindo Alice que também tinha ido conhecer o anjinho. Nesta
viagem, ela vai ao encontro de Shirley Temple, juntamente com Visconde e o anjinho, a
fim de conseguirem meios de se tornarem “estrelas”. Shirley os recebe bem em sua
própria casa. Nela, Shirley, Visconde, Emília e o anjinho, começam a encenar a história
de Dom Quixote de la Mancha, quando a mãe de Shirley chega e presencia toda a
situação sem entender nada. Como parte da encenação, eles saem da casa de Shirley em
busca da aldeia da Mancha. Neste momento, Emília é interrompida por Dona Benta que
pergunta o que ela está fazendo tão quieta em seu quarto. Logo depois, Pedrinho e
Narizinho também a interrompem e, sabendo o que ela estava fazendo, também acabam
adotando a ideia de produzir “memórias”. Emília sentindo-se cansada de tanto escrever,
chama novamente Visconde para continuar as suas “Memórias”. Mais tarde, ela retorna
para escrever sobre o que ela pensa das pessoas que vivem com ela no sítio de Dona
Benta e sobre as suas opiniões filosóficas a respeito do mundo e sobre o seu próprio
coração. Assim ela termina o seu primeiro volume de “Memórias”, despedindo-se de
seu público e ressaltando que: “se gostaram, muito bem, se não gostaram, pílulas!
Tenho dito”.
Discussão Teórica
Para refletirmos sobre a importância que Memórias de Emília, do autor
Monteiro Lobato, tem na Literatura Infanto-juvenil brasileira e mundial, é necessário
que abordemos em nossa pesquisa teorias que são basilares para a formação de um leitor
crítico, isto é, teorias que são essenciais para que possamos compreender as
características que norteiam e que despertam a atenção das crianças e jovens para o
universo literário.
Antes de abordarmos essas características da Literatura Infanto-juvenil, é
indispensável compreendermos o conceito de Literatura e suas três “forças” que foram
demonstradas pelo filósofo francês Roland Barthes. Para ele, a língua é um tipo de
poder imposto que possui uma legislação e que aliena os homens, porém há uma forma
de “impedir” este poder imposto, quando “trapaceia-se” com a língua, “esquivando-se”
dela, de maneira a possibilitar um “jogo de palavras” que caracteriza a Literatura em si:
Entendo por literatura não um corpo ou uma sequência de obras, nem
mesmo um setor de comércio ou de ensino, mas o grafo complexo das
pegadas de uma prática de escrever. [...]a literatura não diz que sabe
alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor: que ela sabe
algo das coisas - que sabe muito sobre os homens. (BARTHES, 1989,
p. 16-19)
Diante disso, o filósofo estabelece três conceitos, retirados do grego: Mathesis,
Mimesis e Semiosis, os quais ele denomina como “as forças da literatura”. O primeiro
conceito refere-se à força responsável pelos saberes (Mathesis), pois todas as ciências
estão presentes no mundo literário, isto é, a literatura “é a realidade e o próprio fulgor
do real. Entretanto, e nisso verdadeiramente enciclopédica, a literatura faz girar os
saberes, não fixa, não fetichiza, nenhum deles”. (BARTHES, 1989, p. 18). A segunda
força, por sua vez, é a da representação (Mimesis), que é um modo que os homens têm
de demonstrar o real ou até de reinventá- lo. A terceira e última força é a dos signos
(Semiosis), esta se fundamenta na ideia de “jogar como os signos em vez de destruí- los,
em colocá- los numa maquinaria de linguagem cujos breques e travas de segurança
arrebentaram, em suma, em instituir no próprio seio da linguagem servil uma verdadeira
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heteronímia das coisas. (BARTHES, 1989, p. 28-29).
Podemos dizer, a partir dos estudos de Roland Barthes, que a Literatura ou o
texto literário precisa fundamentalmente possuir em seu interior essas três forças:
Mathesis, Mimesis e Semiosis, para que assim a linguagem se torne carregada de poesia,
sugestões, lacunas, metáforas, heteronímias e polissemias.
Outro filósofo fundamental para a Literatura é Gilles Deleuze, usaremos como
base teórica o texto intitulado “A literatura e a vida” (2002), em que temos a noção do
“devir” ou da “obra inacabada”. O devir, para o autor, está relacionado com a percepção
da literatura de um jeito renovador, porque ela está sempre se modificando pelos olhares
dos leitores, isto é, pelas várias leituras feitas por diferentes leitores de diversas épocas e
culturas, sendo este o motivo para considerarmos obra como “inacabada”. De acordo
com Deleuze, a escrita, por exemplo, é um caso de devir, algo que está sempre se
fazendo, isto é, a escrita torna-se incessante “sempre em via de fazer-se, e que extravasa
qualquer matéria vivível ou vivida.” (DELEUZE, 1997, p. 11). O escritor, nesse âmbito,
seria aquele comparado a um médico que cura através da literatura o seu mundo e o de
seus leitores, além de ser aquele que atravessa várias “matérias” para criar vários
universos polissêmicos.
A partir de Barthes e Deleuze, nós podemos compreender e refletir melhor
sobre a importância que a literatura tem para a formação do homem como um ser crítico
e pensante em sua sociedade. Nesse sentido, é preciso pensar que é essencial formar
leitores desde a infância, para que estes possam aos poucos se construir no mundo em
que vivem. Dessa forma, lembremos, nesse momento, de uma das três funções da
literatura apontada por Antonio Candido em A literatura e a formação do homem
(2002), que serve para ilustramos a nossa afirmativa:
A função formadora − A literatura pode formar; mas não segundo a
pedagogia oficial. [...] Longe de ser um apêndice da instrução moral e
cívica, [...] ela age com o impacto indiscriminado da própria vida e
educa como ela. [...] Dado que a literatura ensina na medida em que
atua com toda a sua gama, é artificial querer que ela funcione como os
manuais de virtude e boa conduta. E a sociedade não pode senão
escolher o que em cada momento lhe parece adaptado aos seus fins,
pois mesmo as obras consideradas indispensáveis para a formação do
moço trazem frequentemente aquilo que as convenções desejariam
banir. [...]. É um dos meios por que o jovem entra em contato com
realidades que se tenciona escamotear-lhe. (CANDIDO, 2002, p.83)
Por meio do trecho acima, percebemos o poder que a literatura tem de atuar na
formação do indivíduo, principalmente em relação à criança e ao jovem, pois estes
podem, através da arte literária, construir os seus valores de forma ampla e sem
“moldes” que reflitam os interesses da pedagogia tradicional. Ainda nas palavras de
Candido, a literatura não corrompe nem ed ifica, mas humaniza em sentido profundo
porque faz viver. (CANDIDO, 2002, p.85)
Após as discussões abordadas até agora, podemos complementar especificando
melhor algumas características da Literatura Infanto-juvenil. Nessa perspectiva, a
primeira teoria que buscamos foi a do autor Jesualdo Sosa, em seu livro A literatura
Infantil (1978). Ele aponta três aspectos que são inerentes à chamada Literatura InfantoJuvenil. O primeiro elemento apontado por pelo autor é o caráter imaginoso:
O caráter imaginoso que possuam, em maior ou menor grau, traduzido
em mitos, ou aparições da Antiguidade, ou nos monstros, ou realidade
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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dos tempos modernos; exposto numa forma expressiva qualquer:
lenda, conto, fábula, quadrinhos, etc.; descrito com beleza poética; ou
em forma mais ou menos realista e livre de toda lisonja idiomática;
dito em largas tiradas subjetivas, ou em poucas e simples expressões
que completam sua expressividade com desenhos ou ilustrações que
mais sugerem do que dizem. Essa qualidade imaginosa é que afirmará,
em primeira instância, o máximo de interesse da expressão para a
criança. Vida mais imaginativa do que real - que caracteriza todas as
etapas iniciais da criança, seu tempo de invenção para suprir o que
ignora em relação com a distância que vai do raciocínio à
comprovação experimental, é tão fundamental como o movimento
interior de suas relações cognoscitivas. (SOSA, 1978, p. 37)
Conforme mencionado pelo autor no trecho acima, podemos observar que a
infância é uma fase de desenvolvimento mental, ou seja, uma criança não consegue
processar um grande número de novas imagens, sendo necessário que ela crie, em sua
imaginação, um mundo só para si, dando um sentido próprio a ele.
O segundo aspecto apontado pelo teórico é o dramatismo:
O dramatismo é, assim, o segundo traço essencial dessa literatura
infantil, dramatismo que reflete, ou procura refletir, o da criança,
dramatismo quase sempre ideal e absurdo, por vezes realista e
despojado, mas sempre importante para centralizar toda a atenção da
criança e forçar uma globalização de todas as suas imagens interiores.
Isso ocorre a partir de sua esperança de, nesse drama vivido por seus
sentidos, poderem repetir-se os movimentos interiores que passam a
ser, então, o seu drama. [...] o drama é importante para a criança como
tradução de seus movimentos interiores e quanto o pequeno leitor,
nele, se sente viver. Invenção e drama são, pois, os dois pilares
essenciais de toda literatura que serve aos interesses da criança, não
importa a idade. (SOSA,1978, p.38-39)
Para finalizar, dentre os aspectos apontados, o autor também menciona as
técnicas de desenvolvimento da linguagem, que, de forma geral, implica os cuidados
com a linguagem polissêmica e poética no texto verbal e que pode abarcar também o
texto visual:
Na técnica, nos é dado admirar o modo como o autor desenvolve o
entrecho dos acontecimentos ante a avidez do leitor [...] Na técnica,
apreciamos a sobriedade como que o autor distribui os pormenores
imprescindíveis, reais ou ilusórios, mas que não deixam dúvidas, nem
criam confusões no toca ao desenvolvimento do assunto; a maneira
pela qual vão preanunciando as cenas subsequentes; a intervenção e as
características da personagem; as descrições, apenas esboçadas ou, o
contrário, muito detalhadas, de cenas nas quais intervêm as
personagens a e ganha corpo ao fato.[...] a linguagem utilizada, de
importância vital para a degustação da obra e que resume, de certo
modo, a habilidade do criador.[...] quanto mais simples e bela a
entonação da linguagem, mais a criança apreciará a leitura, para a qual
se sentirá atraída.(SOSA,1978, p. 39).
Uma Viagem Fantástica Ao Sítio De Dona Benta: Analisando Memórias Da Emília
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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Ao analisarmos o livro Memórias de Emília de Monteiro Lobato, notamos que
a história possui um caráter imaginoso marcado a todo o momento desde os
personagens fantásticos − como Emília, uma boneca de pano que começa a falar devido
à ingestão de uma “pílula da fala”− ou Visconde de Sabugosa − um boneco de sabugo
que também possui o dom da fala e, além disso, é um personagem dotado de uma
instrução intelectual científica única. A história tem como tema as memórias da
personagem Emília que, na realidade, podem ser tomadas como memórias da
personagem Visconde de Sabugosa, visto que é ele que escreve as “Memórias da
Marquesa de Rabicó” na maior parte do tempo. Inclusive, Visconde, em determinado
momento, até chega a questionar sobre isso, dizendo que as memórias são dele. Como
resposta, Emília faz uma reflexão que nos permite indicar o primeiro conceito que
trabalharemos neste trabalho em relação à obra: a Mathesis. Esta faz parte de um dos
três elementos da Literatura propostos por Roland Barthes e refere-se, especificamente,
ao “girar de saberes” dentro de uma história não os fixando:
− Sabe escrever memórias Emília? – repetiu o Visconde,
irônicamente. − Então isso de escrever memórias com a mão e a
cabeça dos outros é saber escrever memórias?
− Perfeitamente Visconde! Isso é que é o importante. Fazer coisas
com a mão dos outros, ganhar dinheiro com o trabalho dos outros,
pegar nome e fama com a cabeça dos outros: isso é que é saber fazer
as coisas. Ganhar dinheiro com o trabalho da gente, ganhar nome e
fama com a cabeça da gente, é não saber fazer as coisas. Olhe
visconde, eu estou no mundo dos homens há pouco tempo, mas já
aprendi a viver... (LOBATO, 1970, p. 123)
No trecho acima, percebemos que Emília faz uma sucinta e objetiva reflexão
sobre a estrutura do capitalismo, citando a sua característica fundamental, ou seja, a
exploração do homem pelo homem, quando este sujeito torna-se “mercadoria”,
vendendo a sua força de trabalho, de forma que o poder econômico está limitado a uma
pequena parcela da população, ou seja, a que detém os meios de produção. Como
podemos perceber “o girar de saberes” surge de forma implícita, à medida que a obra
não possui uma intenção pedagógica evidente, a fim de, exclusivamente, “ensinar ou
transmitir” ao leitor conhecimentos sociológicos e econômicos de um mundo capitalista.
Em continuidade aos conceitos da Literatura propostos por Barthes, trataremos
da Mimeses − força da representação. Podemos exemplificá-la ao mencionarmos um
trecho em que, ao contar a estória do anjinho, Visconde nos revela as brincadeiras de
Emília com o poder “simbólico das palavras” quando ela tenta ensinar ao anjinho sobre
as coisas da terra, especialmente no que diz respeito à linguagem humana:
− Árvore, sabe o que é?”– perguntava ela.
E como o anjinho arregalasse os olhos azuis esperando a explicação,
Emília vinha logo com uma das suas.
− Árvore – dizia – é uma pessoa que não fala; que vive sempre de pé
no mesmo ponto; que em vez de braços tem galhos; que, em vez de
unhas, tem fôlhas... (LOBATO, 1970, p. 92)
Nesse trecho notamos a presença do conceito literário Mímeses, que se realiza
justamente porque Emilia reinventa o mundo à medida que o apresenta ao anjinho, mas
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sem deixar de lado suas próprias concepções, uma vez que para ela uma árvore é como
uma pessoa “parada”. Logo em seguida, Emília continua a sua conversa tentando
ensinar ao anjinho sobre a linguagem:
− Para atrapalhar a gente. Eu penso que todas as calamidades do
mundo vêm da língua. Se os homens não falassem, tudo correria
muito bem, como entre os animais que não falam. As formigas e as
abelhas, por exemplo. Êsses bichinhos vivem na maior ordem
possível, com suas comidinhas a hora e a tempo e que comidas! O mel
é uma perfeição que você nem sonha! Exatinho da côr de seus
cabelos, mas sem cachos; em vez de cachos tem favos. E qual o
segrêdo da felicidade dêsses animaizinhos? Um só: não falam. No dia
em que derem de falar, adeus ordem, adeus paz, adeus mel! A língua é
a desgraça dos homens na terra.
−Se é assim, por que êles não cortam a língua?
Emília ria-se, ria-se.
− Cortar a língua? Essa palavra língua quer dizer duas coisas: um
órgão da bôca, onde está localizado o paladar e também a fala dos
homens... (LOBATO, 1970, p. 93.)
Podemos dizer que é a partir do contexto acima, que percebemos um jogo de
palavras que nos possibilita explanar sobre o terceiro conceito da Literatura: a Semiosis
− “força dos signos”. Emília ensina ao anjinho sobre as peculiaridades da língua, de
modo a brincar com o valor semântico que cada palavra pode possuir, dependendo do
contexto em que está inserida:
− Desafôro é fazer certos elogios a uma pessoa. Vou dar um exemplo.
Temos por aqui um animal chamado cachorro ou cão, bicho de muito
bons sentimentos, o mais amigo do homem. É tão dedicado e
amoroso, que o consideram o símbolo da fidelidade. É o cão que
guarda os quintais contra os homens ladrões. É o cão que puxa os
trenós nas regões só de gêlo. É no cão que o homem faz experiências
de laboratório. O cão é um colosso. Pois bem. Quando um homem
comparar outro homem ao cão, dizendo “Tu és um cão”, o outro puxa
a faca. Desafôro é isso... (LOBATO, 1970, p. 95)
Assim, consideramos que a obra apresenta os três elementos literários
propostos por Barthes. Situando-os de forma implícita, Lobato não deixa que o
conhecimento tenha apenas uma função utilitária, pelo contrário, a sua proposta é de
uma literatura que sugere e que proporciona reflexões e que, principalmente, joga com
os sentidos das palavras.
Ainda na perspectiva de analisar a linguagem da obra, é interessante notarmos
que o autor escreve algumas palavras utilizando a linguagem oral, como em: “muída” e
“dum” contextualizadas no trecho abaixo. Dessa forma, acreditamos que esse fator tem
o objetivo de aproximar a obra do universo infantil / juvenil, que, inclusive, é o
responsável por constantes mudanças na língua portuguesa. Nesse sentido, o autor
trabalha a fim de não reprimir as crianças que estão no processo de aprendizagem e
aquisição da modalidade escrita da língua.
− Pronto! – gritou ela, ao chegar. – Aqui têm vocês a lata de espinafre
do Popeye. Troquei-a por uma igual de couve muída. Quem vai agora
engolir o espinafre maravilhoso não é ele – são vocês. Popeye só
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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engolirá couve moída, e com aquela couve no papo ficará bambo
como geléia. Que horas são? Vejam se os dez minutos já se paasaram.
(LOBATO, 1970, p. 119.)
−Não posso falar nessa negra beiçuda sem que o sangue não me venha
à cabeça, Visconde! Perdemos Florzinha das Alturas só por causa dum
tal sacrilégio que a burrona inventou! Impossível conformar-me com a
perda do meu anjinho... (LOBATO, 1970, p. 129.)
Outro fator que ressaltaremos neste trabalho, e que retoma o caráter imaginoso
presente na obra, é a existência de passagens nas quais alguns personagens hesitam
diante dos acontecimentos que ocorrem no sítio de Dona Benta, mas que acabam os
aceitando. Um exemplo disso é quando o Almirante encontra com o burro falante:
O Almirante não conseguia voltar-se do assombro.
− Mas... mas, Dona Benta, a senhora já refletiu que isto é um
fenômeno que contradiz tudo quanto a ciência estabeleceu a respeito
da fala e da inteligência dos animais?
− Refleti, sim. Eu sei o que tenho em casa, Senhor Almirante.
(LOBATO, 1970, p. 110.)
Além disso, o fato de Lobato colocar em Memorias de Emília personagens
excêntricos advindos de outras histórias fantásticas, tais como: Peter Pan e Capitão
Gancho da peça teatral Peter e Wendy de James Berrie, o marinheiro Popeye oriundo
dos quadrinhos de Elzie Segar, e a Alice da obra Alice no País das Maravilhas de Lewis
Carrol, reforça ainda mais o caráter imaginoso da história:
− Esta aqui, tia Nastácia, é a famosa Alice do País das Maravilhas e
também do País do Espelho, lembra-se?
-Muito boas tardes, Senhora Nastácia! Murmurou Alice,
cumprimentando com a cabeça.
− Ué! – exclamou a preta. – A inglêsinha então fala nossa língua?−
Alice já foi traduzida em português – explicou Emília. E voltando-se
para a menina: − Gosta de bolinhos? (LOBATO, 1970, p. 119.)
Partindo para uma perspectiva temporal da Literatura, é importante
abordarmos, de maneira simples, sobre a noção de Devir proposta por Deleuze e sobre o
conceito de “obra aberta” proposta por Humberto Eco. Essas noções podem ser
analisadas por meio de passagens da história em que a Tia Nastácia é mencionada como
negra:
−O senhor me traiu. Escreveu aqui uma porção de coisas perversas e
desagradáveis, com o fim de me desmoralizar perante o público. Mas,
pensando bem, vejo que eu sou assim mesmo. Está certo. Leu mais
uma vez o capítulo. − É isso mesmo. Sou tudo isso e ainda mais
alguma coisa. Pode ficar como está. Cada um de nós dois, Visconde, é
como tia Nastácia nos fêz. Se somos assim ou assados, a culpa não é
nossa – é da negra beiçuda. (LOBATO, 1970, p. 129.)
A forma como Emília se refere à tia Nastácia pode causar certo estranhamento,
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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gerando interpretações que refletem o tom preconceituoso da obra. Porém, é justamente
nesse momento que devemos nos lembrar de que a obra retrata um determinado
contexto histórico e cultural brasileiro. Se pensarmos que ela realmente possui um
cunho preconceituoso estaremos realizando uma leitura diacrônica, isto é, estaremos
olhando-a de modo a sobrepor a visão do século XXI em relação à visão de um século
anterior.
Por outro lado, em outras situações podemos entender que a maneira como tia
Nastácia reage, “suspirando” e cedendo às vontades da boneca, parece muito mais uma
reação maternal do que uma relação de submissão. Afinal Emília irritava a todos sem
distinção, fazendo com que todos a obedecessem para não precisarem ouvi- la
argumentar em sua defesa:
Emília foi à cozinha pedir a tia Nastácia que pusesse uma porção de
fôlhas de couve no pilão e amassasse tudo muito bem, fazendo uma
pasta. Nastácia perguntou para quê. -“Não é da sua conta – repondeu a
diabinha”
Tia Nastácia também suspirou. Mas fêz a pasta de couve pedida, com
a qual a boneca encheu uma latinha. Embrulhou-a num jornal e, muito
segura de si, foi ter com Popeye. (LOBATO, 1970, p. 116.)
Dessa forma, consideramos que ambas as leituras, isto é, de que existe uma
relação preconceituosa ou não, são possíveis, pois trata-se de uma “obra aberta” que não
delimita de forma alguma o pensamento do leitor, apenas sugere situações.
Para finalizar, não podemos deixar de comentar sobre o dramatismo existente
em Memórias de Emília. Este é construído por meio das palavras do narrador, que em
breves intervenções torna a obra eloquente, mas sem retirar os personagens de suas
respectivas funções, não os questionando, de forma que solidifique as suas ações,
escolhas e pensamentos:
Mas para subir à figueira era preciso empregar a astúcia e Emília
empregou a astúcia. Foi conversar com Popeye.
−“Senhor Popeye – disse ela com o arzinho de santa que sabia fazer
nas ocasiões graves – sabe que esta figueira dá uns figuinhos muito
gostosos? Os Sanhaços e morcegos regalam-se... (LOBATO, 1970, p.
118.)
O dramatismo também pode ser observado explicitamente na luta de Peter Pan
e Capitão Gancho, quando esta cena é narrada de forma rápida, porém dinâmica, pelo
fato de haver o uso recorrente de metáforas:
Ah! Que tourada bonita! Os dois meninos espinafrados caíram de
murros em cima do marinheiro encouvado, como cães famintos que se
lançam ao mesmo osso. Foi murro de tôdas as bandas, de todo jeito e
de todos os calibres. Popeye virou peteca. Um sôco de Pedrinho o
jogava sôbre Peter Pan. Vinha o sôco de Peter Pan que o arremessava
sôbre Pedrinho. E naquele vaivém ficou Popeye por dois minutos,
enquanto a criançada gritava:
− “Outro! outro! Um murro nos queixos agora!...” (LOBATO, 1970,
p. 92-93).
De modo geral, podemos dizer que a obra de Lobato é um romance polifônico,
pois todas os personagens têm o mesmo valor de argumentação, não há um ponto de
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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vista que se sobrepõe sobre o outro, nem o da sábia dona Benta tem maior importância
do que o da levada Emília ou a do narrador. Todos interagem no desenvolvimento da
obra, que apresenta uma linguagem simples, porém não facilitadora, e um vocabulário
compreensível para crianças ou adultos de qualquer faixa etária. Dessa forma, a partir
dos elementos analisados, consideramos que a obra Memórias de Emília possui todas as
características fundamentais que perpassam a literatura e o seu “papel” de desenvolver
cidadãos reflexivos e críticos. É uma história que exprime o autor em seu auge, e o
tempo para ela serve como meio de propagação de sua imortalidade nos livros de
bibliotecas do mundo todo que esperam ser abertos e continuarão a esperar eternamente
enquanto o homem privilegiar o gênio da criatividade e a razão.
Considerações Finais
Acreditamos que, diante dos aspectos analisados, referentes à Literatura
infanto-juvenil, Memórias de Emília é uma obra que abarca, de modo poético e
eficiente, o caráter imaginoso e o dramatismo mencionados por Jesualdo, as três forças
da Literatura (Mathesis, Mimesis e Semiosis) propostas por Roland Barthes e a noção de
Devir de Gilles Deleuze, caracterizando-se, fundamentalmente, como uma obra que
privilegia o discurso estético, que prima pelo uso de uma linguagem polissêmica, lúdica
e conotativa, fazendo com que os “saberes” sejam reconhecidos de modo indireto e
implícito.
Dessa forma, podemos dizer que a análise realizada neste trabalho foi de
extrema importância à medida que pudemos compreender e observar os aspectos
essenciais que constroem a Literatura Infanto-juvenil e que, inclusive, torna meritório o
prestígio em relação ao autor Monteiro Lobato, percebendo que Memórias de Emília é
apenas uma das obras que refletem o seu estilo autêntico e artístico de escrever, que
agrada e atrai pessoas de diversas faixas etárias, principalmente, crianças e jovens.
Referências
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1989. p. 7-29.
CANDIDO, Antônio. Textos de intervenção. São Paulo: Duas cidades, 2002. p.83-85.
DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. Crítica e clínica. Tradução de Peter PálPelbert.
São Paulo: Ed. 34, 1997. p. 11-16.
ECO, Humberto. Bosques Possíveis. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad.
HildegardFist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 81-102.
LOBATO, Monteiro. Caçadas de Pedrinho; O saci; Memórias da Emília. São Paulo:
Brasiliense, 1970.
SOSA, Jesualdo. A literatura infantil. São Paulo: Cultrix, 1978. p. 34-40.
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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O caráter imaginoso e o fantástico na obra Alice no país das
Maravilhas
Camilla Cássia Silva
Carline Barbon dos Santos
Daniela Faria Grama
Resumo: Este trabalho tem co mo objetivo abordar alguns aspectos essenciais para a construção da
Literatura In fantil e, consequentemente, para a obra Alice no país das Maravilhas, do autor Lewis Carroll.
Para isso, tomaremos como embasamento teórico as perspectivas dos estudiosos Jesualdo Sosa e Tzvetan
Todorov, que mencionam, respectivamente, a questão do “caráter imaginoso” e do “Fantástico” presentes
no universo literário. Dessa forma, podemos dizer que, inicialmente, o trabalho co mpõe -se de um breve
resumo refe rente à narrativa Alice no país das Maravilhas. Logo após, são exp licitadas as teorias dos
autores citados acima, uma vez que elas nos auxiliarão a realizar, por último, u ma breve e simples análise
que visa relacionar os aspectos teóricos do “imaginoso” e do “Fantástico” na obra de Lewis Carro ll em
questão. O intuito final do trabalho é o de reconhecermos a importância desses elementos para a formação
do caráter lúdico e fantasioso que compõem a obra, que está popularmente direcionada para o público
infanto-juvenil.
Palavras-chave: Literatura Infanto-juvenil. Alice no país das maravilhas. Fantástico. Caráter Imag inoso.
Abstract: The main objective of this paper is to analyze the essential aspects to the Children’s Literature
construction and also to the Lewis Carroll’s Alice in Wonderland. To do that, we will use the prisms of
the thinkers Jesualdo Sosa and Tzveton Todov, that mention the question about the “imag inative aspects”
and the “Fantastic” presented in the literature universe. Due to that, we can initially say that this paper is
compound of a brief summary of A lice in Woderland’s narrative. Following to the summary there’s the
said thinkers theories exp lanations, once they will help doing a short and simp le analyses that aims to
relate the theoretical aspects of the “imag inary” and the “Fantastic” on Lewis Carroll’s work. The final
objective of this paper is to make the importance of those elements recognizable to the creation of the
ludic and fantasy aspects that are presented on the work, and that it is directed to the children.
Keywords: Ch ildren’s literature. Alice in wonderland. Fantastic. Imag inative aspects.
Introdução
A literatura infanto-juvenil como gênero é a possibilidade de formar leitores.
Com suas histórias fantásticas e mundos diferentes, ela torna-se atrativa às pessoas que
iniciam o processo de leitura, entretanto, a diferenciação entre Literatura e Literatura
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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infanto-juvenil é problemática, visto que as experiências de cada leitor são diferentes e
ao dividi- los em faixas etárias não são consideradas essas individualidades. Dessa
forma, o presente trabalho analisa a obra literária Alice no País das Maravilhas de
Lewis Carroll, publicada em 1865, com base nas teorias de Tzvetan Todorov sobre a
literatura fantástica e de Jesualdo Sosa sobre a literatura infantil para abordar o caráter
imaginoso na história de Carroll.
Com este trabalho, pretendemos analisar o caráter imaginoso na obra de Lewis
Carroll, desde o “acesso” de Alice ao país das maravilhas, o seu deslumbramento e as
suas hesitações durante a história. Além disso, podemos dizer que esta análise busca
preservar o lúdico e a fantasia, abordando, assim, o texto enquanto um convite para a
viagem ao mundo imaginário que a “ludicidade” proporciona aos leitores, afinal, a
literatura tem o objetivo de fazer com que estes realizem esta viagem imaginária.
Um Resumo de Alice no país das Maravilhas
A história é iniciada quando Alice se vê cansada de estar sentada ao lado da
irmã sem fazer nada muito interessante. Observou o livro que estava lendo e percebeu
que este não possuía figuras, apenas diálogos. Então ela se perguntou de que servia um
livro sem gravuras.
Em seguida Alice vê um coelho branco correndo e decide segui- lo, assim ela
cai “na toca” do coelho, que seria como um buraco, este assemelha-se a um poço e ao
longo de sua queda a menina vê diversos objetos nas paredes (guarda- louças, estantes de
livros, figuras penduradas).
Quando chega em terra firme, Alice entra num dos diversos corredores por
onde o coelho branco ainda poderia ser visto, mas ao virar uma “esquina” o perdeu de
vista. De repente ela se vê em um salão rodeado de portas, depois pega uma chave, que
estava em cima de uma mesa, e decide abrir uma porta minúscula. Através desta ela
observa um jardim. Alice decide ir até lá, mas percebe que ela é muito grande para
passar pela porta.
Após isto, ela vê uma garrafa, nesta está escrito “BEBA-ME”, depois de
certificar-se do conteúdo do recipiente resolveu prová- lo, tão logo a menina se viu
encolhendo e, posteriormente a isso, diminuiu quase que completamente. Depois de
tanto chorar viu uma caixinha com um bolo dentro, neste estava escrito: “COMA-ME”
e após comer um pedaço ela começou a aumentar de tamanho, até bater a cabeça no
teto. Com isso, Alice continuou a chorar, de forma que suas lágrimas formaram um
lago. Em seguida, ela voltou a diminuir repentinamente e pensou em ir até ao jardim,
porém caiu no lago formado por suas próprias lágrimas; à medida que nadava encontrou
alguns animais e, depois de uma conversa na qual ofendera a maioria dos ali presentes,
foi deixada sozinha.
Alice avista o coelho novamente, este começa a confundi- la com sua criada e
ordena que ela vá até a sua casa para pegar alguns itens. Chegando lá a menina bebe
outro líquido e assim começa a crescer novamente, de forma que não podia passar pela
porta. Depois de discutir com o coelho, Alice nota que algumas pedrinhas ao seu redor
transformam-se em bolo e decide comê- las, com isso ela diminui e foge para a floresta.
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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Lá Alice encontra uma lagarta, esta lhe dá um cogumelo, do qual dependendo
do lado que é comido pode fazer crescer ou reduzir de tamanho. Posteriormente, Alice
volta às suas proporções normais e adentra a floresta, com isso avista uma casa pequena,
que seria a casa da Duquesa; para entrar nela encolhe novamente de tamanho. Chegando
lá a dona da casa discute com a cozinheira enquanto segura um bebê, de repente este se
transforma num leitão e foge.
De volta à floresta, a menina encontra o gato de Cheshire, este havia aparecido
na casa da Duquesa, porém apenas estava quieto e sorridente durante sua estada lá. Os
dois iniciam uma conversa e o gato a ensina um caminho ao longo da floresta, porém a
adverte que lá só havia loucos. Ao caminhar ela encontra a casa da Lebre, neste local
estão a dona da casa, o Chapeleiro Maluco e o Rato do Campo. Uma vez o tempo parara
de funcionar para o Chapeleiro e, por isso, são sempre 6 horas da tarde, ou seja, a hora
do chá.
Depois de algumas discussões Alice sai da casa da Lebre e encontra uma
árvore com uma porta; quando ela espia através desta, revê o mesmo corredor do início
de sua aventura, ao percorrê- lo ela se depara com jardim da Rainha de Copas. Em
seguida, encontra alguns jardineiros− com os corpos em forma de cartas de baralho−,
estes por sua vez, estavam pintando as rosas com tinta vermelha. Com isso, Alice os
pergunta por que estavam pintando as rosas desta cor, eles dizem que plantaram rosas
brancas ao invés de vermelhas e com isso tinham medo de a Rainha descobrir e mandar
decapitá- los.
De repente a Rainha aparece e manda cortar a cabeça dos jardineiros e Alice os
ajuda a se esconderem. Posteriormente a Rainha convida a menina a jogar croquê,
estranhamente, este é jogado com animais vivos, o que dificultava mais ainda o jogo. A
partida é interrompida pelo fato de o Rei não ter simpatizado com o gato de Cheshire,
este apareceu repentinamente, como de costume.
Após uma série de acontecimentos estranhos, como um encontro com o Grifo e
a Tartaruga Falsa, Alice é levada para um julgamento, no q ual um dos empregados da
Rainha – o Valete de Copas− era acusado de roubo. As provas contra ele não eram
muito convincentes, este fato deixa a menina horrorizada com os procedimentos
estranhos que ocorrem no Tribunal. Posteriormente, Alice volta a crescer e logo é
chamada para testemunhar; neste momento seu tamanho é gigantesco e a menina
recusa-se a aceitar tudo que acontece ali e as acusações dadas pelo Rei e pela Rainha de
Copas. De súbito, algumas cartas começam a atacá- la. Assim, Alice acorda e vê que os
fatos ocorridos não passaram de um sonho.
Discussão Teórica
Ao falarmos sobre a obra Aventuras de Alice no país das maravilhas, do autor
Lewis Carroll, torna-se essencial, antes de tudo, abordar neste trabalho um breve
respaldo teórico a respeito de algumas características importantes que compõem e
revelam a Literatura Infantil ou Juvenil. Apesar de sabermos que essa classificação −
Literatura Infantil − não atende sempre e restritamente ao interesse de um público
jovem, existem alguns aspectos que são fundamentais, contribuindo para que a leitura
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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desperte a atenção, o gosto e o prazer na criança. De acordo com o autor Jesualdo Sosa,
em seu livro A literatura Infantil (1978), existe uma base de sustentação da Literatura
infanto-juvenil formada por três fatores. Dentre estes, o autor menciona o dramatismo,
que procura refletir e traduzir o drama e os sentimentos interiores da criança; a técnica
do desenvolvimento da linguagem, que, de forma geral, implica os cuidados com a
linguagem polissêmica e poética tanto no texto verbal quanto no texto visual e, por
último, o caráter imaginoso que, por sinal, é o que mais nos interessa neste momento:
O caráter imaginoso que possuam, em maior ou menor grau, traduzido
em mitos, ou aparições da Antiguidade, ou nos monstros, ou realidade
dos tempos modernos; exposto numa forma expressiva qualquer:
lenda, conto, fábula, quadrinhos, etc.; descrito com beleza poética; ou
em forma mais ou menos realista e livre de toda lisonja idiomática;
dito em largas tiradas subjetivas, ou em poucas e simples expressões
que completam sua expressividade com desenhos ou ilustrações que
mais sugerem do que dizem. Essa qualidade imaginosa é que afirmará,
em primeira instância, o máximo de interesse da expressão para a
criança. Vida mais imaginativa do que real - que caracteriza todas as
etapas iniciais da criança, seu tempo de invenção para suprir o que
ignora em relação com a distância que vai do raciocínio à
comprovação experimental, é tão fundamental como o movimento
interior de suas relações cognoscitivas. (SOSA, 1978, p. 37)
Conforme o autor menciona, biologicamente a infância é uma etapa
caracterizada pela “ignorância do princípio de identidade”, ou seja, a criança está num
processo de organização mental, em que ela não consegue introduzir constantemente
novas imagens, sendo necessário ela criar, a partir de sua imaginação, o seu próprio
“mundo”. Neste, “as coisas são o que parecem e não tem fim, os seres mudam de estado
sem que se possa captar coisa alguma, sem que nada pareça estável, imóvel, neste
mundo irreal feito de luz e de sombra”. (SOSA, 1978, p.44).
Entendendo-se que o caráter imaginoso, um dos alicerces da Literatura Infantil
e, portanto, fortemente explícito na obra de Lewis Carroll, pressupõe “vida mais
imaginativa do que real”, fica evidente que numa obra infantil é primordial figurar-se o
insólito, isto é, o incomum, a fantasia, o fantástico, o choque entre o real e o ficcional.
Assim, associado ao caráter imaginoso, nos cabe aludir ao conceito de fantástico,
pertencente não só à Literatura infantil, introduzido por Tzvetan Todorov: “O fantástico
é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um
acontecimento aparentemente sobrenatural. O conceito de fantástico se define, pois com
relação aos de real e de imaginário: e estes últimos merecem mais do que uma simples
menção.” (TODOROV, 1975, p. 31).
De acordo com Todorov, o fantástico é justamente o acontecimento de um fato
estranho, que faz o leitor ou mesmo os personagens do enredo sentirem certa hesitação,
que é marcada pelo insólito, tendo como principal aspecto a imaginação inserida dentro
de um espaço interior. O autor ainda complementa a definição de fantástico,
mencionando que este exige três condições:
Primeiro, é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo
das personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre
uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos
acontecimentos evocados. A seguir, esta hesitação pode ser
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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igualmente experimentada por uma personagem; desta forma o papel
do leitor é, por assim dizer, confiado a uma personagem e ao mesmo
tempo a hesitação encontra-se representada, torna-se um dos temas da
obra; no caso de uma leitura ingênua, o leitor real se identifica com a
personagem. Enfim, é importante que o leitor adote uma certa atitude
para com o texto: ele recusará tanto a interpretação alegórica quanto a
interpretação “poética”. Estas três exigências não têm valor igual. A
primeira e a terceira constituem verdadeiramente o gênero; a segunda
pode não ser satisfeita. (TODOROV, 1975, p. 38-39)
Aventurando-se num mundo fantástico - uma análise de Alice no país das
Mavavilhas
Partindo para a análise do livro Aventuras de Alice no país das maravilhas,
podemos dizer que pelo próprio título da obra, esta já dá indícios de possuir um caráter
insólito e imaginoso acentuadamente marcado. Apesar de não termos a intenção de
classificar a narrativa em uma tipologia específica referente ao fantástico, conforme
Todorov apresenta em seu livro Introdução à literatura fantástica, é importante
percebemos como o conceito de Fantástico introduzido por este autor, e o caráter
imaginoso, citado por Jesualdo, se entrelaçam na obra, despertando o interesse da
criança, justamente porque esta se identifica e vive num mundo de imaginação criado
por ela mesma. Dessa forma, observamos, através de alguns trechos, como esses
aspectos ficam evidentes na obra. Logo no primeiro capítulo, a personagem Alice avista
um coelho, porém não era um animal qualquer: “mas quando viu o Coelho tirar um
relógio do bolso do colete e tirar as horas, e depois sair em desparada, Alice se levantou
num pulo, porque constatou subitamente que nunca tinha visto antes um coelho com
bolso de colete, nem com relógio para tirar de lá.” (CARROLL, 2009, p. 13-14)
Em seguida, ela cai dentro da toca desse coelho, que, na realidade, parecia um
poço: “depois olhou para as paredes do poço, e reparou que estavam forradas de guardalouças e estantes de livros; aqui e ali, viu mapas e figuras penduradas em pregos.
(CARROLL, 2009, p. 14). Além disso, outra situação constante na história e que indica
fortemente o uso do imaginoso é o fato da personagem aumentar e diminuir de tamanho
toda vez que come ou bebe algo: “Sei que alguma coisa interessante sempre acontece,
pensou, cada vez que como ou tomo qualquer coisa; então vou só ver o que é que esta
garrafa faz. Espero que me faça crescer de novo, porque estou realmente cansada de ser
esta coisinha tão pequenininha.” (CARROLL, 2009, p.45)
Outro trecho interessante, que podemos usar como exemplo, é quando Alice
chega à casa da Lebre de Março, após o encontro com o gato sorridente – Cheshire:
“Não tinha ido muito longe quando avistou a casa da Lebre de Março: pensou que a
casa era aquela porque as chaminés tinham forma de orelhas e o telhado era de pelo.”
(CARROLL, 2009, p.79).
Podemos dizer que a obra em si é baseada nas fantasias da protagonista, de
maneira que, até mesmo dentro do “país das maravilhas”, ela usa de sua imaginação ao
pensar como a sua gata Dinah lhe daria ordens: “E começou a imaginar que tipo de
coisa iria acontecer: ‘Senhorita Alice! Venha imediatamente e apronte-se para a sua
caminhada!’ ‘Estou indo num segundo ama! Mas tenho de ficar tomando conta para o
camundongo não sair.’” (CARROLL, 2009. p.44).
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Outro aspecto presente em Aventuras de Alice no país das maravilhas, e que o
autor Jesualdo também menciona ao caracterizar a Literatura Infantil, é o fato de as
coisas mudarem de estado sem que nada pareça estável. Notamos isso na passagem do
capítulo três “Uma corrida em comitê e uma história comprida” para o capítulo quatro
“Bill paga o pato”, pois a personagem principal sai do contexto em que conversava com
o papagaio para encontrar repentinamente com o coelho. Além disso, o trecho abaixo,
em que de repente um bebê torna-se um porco, deixa explícito esse fator, sendo o
mundo da personagem revestido de contradições:
O bebê grunhiu de novo, e Alice, muito inquieta, examinou seu rosto
para ver o que havia de errado com ele. […] Alice não gostou da
aparência da criatura. […] “Se você virar um porco, meu querido, não
vou mais querer saber de você.[...] Desta vez não havia engano
possível: era mais nem menos que um porco, e lhe pareceu que seria
totalmente absurdo continuar carregando-o. (CARROLL, 2009. p.7475).
Assim, percebe-se que a narrativa não possui um tempo cronológico, pois no
livro não há indícios de que e a história se passe de dia ou de noite. O tempo
cronológico não é colocado como um elemento fundamental, ficando tão “ausente” ou
marginalizado que até os personagens, como o Chapeleiro Maluco, preferem não contar
as horas, mas apenas o dia dos meses. Na realidade, na ficção, o tempo não é o mesmo
do “mundo real” e ele ainda é tratado de modo personificado: “Se você conhecesse o
Tempo tão bem quanto eu, falaria dele com mais respeito. […] Atrevo- me a dizer que
você nunca chegou a falar com o tempo! […] Ele não suporta apanhar. Mas, se você e
ele vivessem em boa paz, ele faria praticamente tudo que você quisesse com o relógio.”
(CARROLL, 2009. p. 84-85).
Aludindo-se à questão do fantástico, sabemos que este resulta da hesitação do
ser que experimenta a sensação de viver num mundo composto de fantasia. Dessa
forma, entendemos que o leitor, isto é, a criança, por geralmente identificar-se com a
protagonista – Alice –, hesita da mesma forma que a personagem da narrativa: “Cada
vez mais estranhíssimo!” exclamou Alice (a surpresa fora tanta que por um instante
realmente esqueceu como se fala direito)”. (CARROLL, 2009. p.23).“ Vai ser uma
coisa esquisita, lá isso vai! Mas está tudo esquisito hoje.” (CARROLL, 2009. p.28).
“Será que adiantaria alguma coisa, agora falar com este camundongo? É tudo tão
estranho aqui embaixo que é bem capaz dele saber falar, de qualquer modo, não custa
tentar”. (CARROLL, 2009. p. 29). “Alice não ficou muito surpresa com isso, tão
acostumada estava ficando a ver coisas esquisitas acontecerem.” (CARROLL, 2009, p.
78). “Bem! Já vi muitas vezes um gato sem sorriso, mas um sorriso sem gato! É a coisa
mais curiosa que já vi na minha vida.” (CARROLL, 2009. p.79). “Isto é muito curioso!
Mas hoje tudo é curioso.” (CARROLL, 2009, p. 91).
Porém, vale ressaltar que, apesar de Alice hesitar, ela aceita os eventos
extraordinários que a cercam nesse novo mundo, o que implica que a criança não terá
nenhuma dificuldade para entrar num “acordo ficcional” (ECO, 1994, p. 81) ao ler a
obra.
Para finalizar, não poderíamos deixar de mencionar o aspecto onírico presente
no livro, que serve como explicação natural para todas as aventuras vivenciadas por
Alice. O fato de esta ter despertado de um sonho, no final da história, pode nos
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esclarecer o porquê de os acontecimentos se darem de forma instável e, muitas vezes,
contraditória, uma vez que, os sonhos em si não estabelecem necessariamente uma
conexão, um sentido ou linearidade. Segue abaixo os trechos que revelam o caráter
onírico:
Ai, ai! Como tudo está esquisito hoje! E ontem as coisas aconteciam
exatamente como de costume. Será que fui trocada durante a noite?
Deixe-me pensar: eu era a mesma quando me levantei esta manhã?
Tenho uma ligeira lembrança de que me senti um bocadinho diferente.
(CARROLL, 2009, p. 25).
Acorde, Alice querida! disse sua irmã. Mas que sono comprido você
dormiu! Ah, tive um sonho tão curioso! disse Alice, e contou à irmã,
tanto quanto podia se lembrar delas, todas aquelas estranhas aventuras
que tivera e que você acabou de ler. (CARROLL, 2009, p.146).
Diante dos aspectos analisados, podemos considerar que Aventuras de Alice no
país das maravilhas possui o caráter imaginoso como fator primordial, à medida que
este contribui para a hesitação construindo um mundo fantástico. É o elemento
imaginoso que possibilita à personagem e ao leitor escaparem do “mundo real”, fazendo
com que ambos embarquem no “país das maravilhas”.
Considerações Finais
De acordo com os embasamentos teóricos de Jesualdo Sosa (1978) e Tzvetan
Todorov (1939), podemos afirmar que Aventuras de Alice no país das maravilhas nos
chama atenção pelo aspecto imaginoso predominante, pelo fato de este abarcar meios e
personagens − incluindo animais, plantas − de modo a retirá- los do senso comum.
Assim, os eventos ocorridos ao longo da narrativa, colocados de forma não-linear e
“confusa”, pelo fato de tratar-se supostamente de um sonho – como dito anteriormente
−, provocam tanto no leitor quanto na personagem a hesitação.
Desta maneira, o caráter imaginoso faz com que a criança, ou quem lê a obra,
aceite aquele mundo – o de Alice – e seus dramas como seu, de forma a identificar-se
com a personagem (seu modo de pensar, suas confusões) e, prontamente, é inserido em
toda a fantasia de Alice.
Referências
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no país das maravilhas & Através do espelho e
o que encontrou por lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. 317 p.
ECO, Humberto. Bosques Possíveis. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução de
Hildegard Fist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 81-102.
SOSA, Jesualdo. A literatura infantil. São Paulo: Cultrix, 1978, p. 34-40.
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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TZVETAN, Todorov. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Editora Perspectiva
S.A, 1975, p. 29-46.
ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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Palavras são só palavras (em dia de preguiça...)
Glauber Rezende Jacob Willrich
A atividade externa, o prestigio publico
A velhice depois, a morte, a doença, o declínio.
Um repouso sobre a notícia biográfica
Estava fechado o livro da vida
Que seria herdeiro de todos os seus afetos
Sem nenhuma pagina de sangue ou de dor.
Dói a ilusão que corrobora a alma
Encontrado naquele fetiche de saborear
Da soberba redonda estava
O que a vida nunca deixa escapar
Doía quando ele olhava pra ele
E ele não dizia nada
Mas dele estava presente, conquanto jogando
Estava ao seu mar...
Palavras subterfugias, fugitivas da imaginação
Ignonímia da ignorância,
Filosofando na ilusão que é só desilusão
Sombras desiguais manifestam o delírio
De que um dia tudo seria perfeito
Na face da terra pingente desfeito
E o café na mesa que nunca mais vai voltar
Entrava e saia num bailado desencanto,
Deixava as ruínas de um astuto soprano
VERBARE | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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Pois que ouvia nele as profundezas humanas
Naquele dia nunca mais seria pecar
Fariam a revolução
Preguiça e descontração
Estudo sobre maquinação
E a noite promete uma desilusão
Mestre sala a bandeira
Que das forças não rodeia
Às margens de quem fabrica
Longe de que um dia já pode estar
Que pode pois acontecer?
Se ele não pode desfazer?
Porque palavras...
São só palavras!
VERBARE | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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Dualidade
Danielle Bertulucci Camilo
Deitada estava a mulher debaixo de uma suntuosa árvore carregada de
pêssegos Na sombra, escondia-se dos olhares externos que conspiravam contra sua
nudez impecável. Assim sentia-se confortável em estar da mesma forma como veio
ao mundo cruel que a acolhera, certa vez. Mas as maldades e os olhares perturbados
destruíam o ambiente que a mulher construiu sob a sua árvore. Segundos depois da
queda de um pêssego sobre sua cabeça, ela percebeu em qual mundo vivia e então
se vestiu de mulher e saiu andando pela realidade para sentir como era usar
disfarces.
VERBARE | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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...E ela morreu engasgada com um pedaço de chuchu
Carla Cristiane Mello
Não que isso fosse algo importante, nem que fosse virar notícia de jornal,
afinal de contas esses não se preocupam com mortes banais de pessoas banais que
acontecem cotidianamente. A menos que houvesse um caminhão de sangue por detrás
da história, aí o sensacionalismo ia correr solto, como dizem.
Ela era uma moça que se olhava no espelho e encontrava no fundo dos olhos
uma beleza esquecida pelo endurecimento das lutas diárias, quase imperceptível para a
carranca que tomara forma nos últimos anos de sua breve vida. Não gostava de chuchu,
nem de todas as piadinhas que envolviam metáforas de chuchu, como “você é meu
chuchuzinho”; “very nice pra chuchu”; “essa ali dá mais que chuchu na cerca”. Porra! pensava ela - pra quê fazer tanta inferência com uma coisa que não se sabe ao certo se é
verdura, fruto ou legume e, ainda por cima, não tem gosto algum?
Mas deixando a história do chuchu de lado, voltemos à nossa moça
desconhecida, que lia diariamente os jornais e cada vez mais se decepcionava com seus
semelhantes. A política, por exemplo, em seu país era uma vergonha: cada mês caía um
ministro do governo dito de “esquerda”, detido nas intermináveis CPI´s, que aliás
viraram moda no país do carnaval. E por falar em carnaval, samba e futebol, a próxima
copa do mundo ia ser ali, no Brasil! Ela, que era fanática por futebol, ficara abismada ao
saber que haviam decretado que as prestações de contas das obras destinadas à copa não
precisavam passar pelo crivo da análise do povo. Palhaçada, era o nome desse samba de
criolo doido tocado em cítara, dizia ela, parafraseando uma professora sua de
morfologia!
Coitadinha da nossa moça desconhecida; parece que ela era uma sonhadora!
Mas obviamente ninguém nunca saberá, pois o que descrevo aqui é apenas para dar
memória à sua morte banal num dia qualquer das vidas de quem continua vivo. Acredito
que ninguém irá se lembrar dela daqui a um ano, já que as coisas são assim mesmo, não
é? Nascemos, vivemos, morremos e caímos no esquecimento mórbido dos séculos
empoeirados de nossa existência fútil, mas isso faz parte do show, que ainda bem que
não é meu, esse aqui.
Mas o mundo não fora sempre assim tão cruel, pensava ela, ainda existiam
pessoas capazes de amar, embora essa palavra tenha se tornado apenas um conceito
VERBARE | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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vazio moldado pela linguagem – que também é vazia e dizem que é o princípio de tudo;
vai ver é mesmo: o princípio do vazio! Ela andava cansada dessa linguagem: linguagem
virtual, linguagem de sinais corpóreos intraduzíveis, linguagem oral, que menos
comunicavam do que iludiam. A linguagem soberba que registra aqui sua tragicômica
morte! Talvez essa moça estivesse amando e, por isso mesmo, seu amor jamais seria
sabido, pois que morreu engasgada, alienada, afogada com um pedaço de chuchu.
Embora tenha ouvido falar que ela não acreditava que pudesse sentir algo tão
profundo, como o amor, haja vista que, na atualidade as profundezas se dão apenas no
fundo dos poços, dos cofres públicos ou dos copos de álcool, líquido sagrado a diluir as
dores dos frágeis seres humanos, tão perdidos em suas rotinas para ganhar o pão de cada
dia, tão iludidos com um futuro melhor. Mas o futuro nunca chegaria, ele viria no
máximo encaixotado em forma de alguma nova tecnologia – que serviria de parâmetro
para nos mostrar que estávamos ultrapassados, pois se você tem um MP3, o outro ali já
tem um Iphad ou Iphone; sei lá como se chamam essas coisas. É! Realmente o tempo
passa rápido demais nessa sociedade fast food, co mo uma vez ela ouviu alguém dizer e
até achou graça, porque nação fast food só serve pra se foder ou te foder, como ela
concluiu.
Foi num dia após as cinzas do vulcão do Chile terem chegado à ilha; um dia
nublado em que ela amanhecera de bom humor, por incrível que pareça! Estava
empolgada porque pensava que talvez as coisas estariam se ajeitando – ela era
sonhadora, como eu disse. Ela andava cansada da vida, mas procurava não desanimar,
mesmo conversando com seus colegas e percebendo neles a mesma impressão de
deslize para o abismo. Só que neste dia, pensara ela, tinha algo de especial: nada do que
planejara funcionou, mas chegou a hora do almoço e ela poderia matar o que estava lhe
matando, como sempre dizia quando estava morrendo de fome. O sol teimava em não
aparecer, bem como o sorriso doce pelo qual ela andava suspirando; e ainda havia
esquecido o guarda-chuva, mas não faz mal, pensou – agora tem água lá em casa pra
tomar banho!
Como eu ia dizendo, o almoço era o momento mais esperado por ela, já que
não costumava tomar café pela manhã e era quase uma da tarde. Chegou ao restaurante
com seu amigo, sorridente e sensual, que adorava observar os transeuntes do sexo
masculino que percorriam o local. Como é suave desfalecer ao lado de uma boa
companhia, não?! Isso poderia romantizar esse momento épico na vida de qualquer um,
já que de épica a morte só tem a fama.
No momento em que estava se servindo, ela falou que estava feliz porque até
que enfim tinha batata cozida para comer, uma de suas comidas favoritas, de qualquer
jeito, mesmo que fosse do tipo tua batata tá assando, como ela iria descobrir daqui a
pouco. Encheu o prato com aquela batata e começaram a comer, falando da vida e morte
severina de seus mundos-bolhas, falando da incapacidade que as pessoas tinham em
olhar para o lado e começar uma amizade - fruto de um início de primavera que sempre
renderia gargalhadas infinitas para fazê- la feliz num momento de desespero; em como
as pessoas não conseguiam mais se olhar nos olhos e tudo ficava perfeito na vitrine
virtual: era chegada a época de todos saírem do armário e criarem seus próprios mundos
via internet; enfim, conversavam sobre conversas banais que podem ser filosóficoordinárias num dia nublado e com cinzas espalhadas pelo chão.
Comeu bastante até descobrir que aquilo não era batata, mas sim chuchu, pois
havia se empolgado com a conversa fiada da vida safada. Ficou tão nervosa quando
descobriu o engano que começou a se engasgar, se afogar e terminou seu dia assim, para
sempre repetindo pra si: Não é batata, não é batata! É um pedaço de chuchu na minha
vida, porra! Assim morreu nossa moça desconhecida num dia trivial dos idos de 2011,
VERBARE | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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quando a fumaça do vulcão chileno alcançou a ilha da desilusão. Mas essa não será mais
uma notícia de jornal!
VERBARE | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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Distante do coração selvagem
Gênesson Johnny Lima Santos
Seu crânio, exaurido de carregar as madeixas, repousava sobre o banco. Na
verdade, sobre as mãos que se faziam travesseiro... Ela pensava, refletia, filosofava. Não
era nada disso, ela dormia. O que não impedia que ela estivesse em sua perfeita
austeridade, como sempre foi, penetrada em si, conectada ao self. A luz do sol insistia
em cerrar suas pupilas. Sentia-se quase Buda... Tamanha era a concentração.
Foi então que ecoou um barulho característico: o esvoaçar de columbídeos! De
repente as orbitas se abriram como que após um breve piscar. Eram claras e o contorno
escuro do lápis, carvoeiro, por sinal, acentuava- lhe ainda mais na cor da íris. Bastante
pretos também estavam os cílios, de tal modo que pareciam gritar. Aliás, a maquiagem
lhe pesava um pouco, nada modesta, porém explícita na sua goticidade, que lhe dava um
ar de pessoa estranha, mas satisfeita com sua palidez.
― Meu Deus! O que eu farei de minha vida agora? — Pensou à voz sussurra.
Mafalda realmente tinha motivos de sobra para se preocupar. Havia saído de casa
aproximadamente há catorze dias, depois de uma discussão com sua mãe. Coisas de
adolescente, acreditava a genitora, de rebelde sem causa, como seus ídolos da tevê.
Naquele momento, sentiu como se sua alma regressasse novamente ao corpo.
Arranhou- lhe dois débeis sustos: primeiro porque a praça ainda estava vazia e, segundo,
porque não recordava os minutos nem as horas anteriores, os passos, o processo até
permanecer ali. Fazia aproximadamente duas semanas, por bem dizer, que o fenômeno
dessa forma ocorria: repentinamente e por alguns instantes faltava- lhe a memória e
desta removia-se toda e qualquer lembrança de um ensejo anterior, de um episódio
pretérito, das últimas 24 horas decorridas.
Não sei se a medicina atribui algum nome a isso ou se Freud explica. O fato é
que aquilo lhe dava a sensação do despertar de um profundo sono, verdadeiramente
profundo, era como se, ao abrir os olhos, e de fato os descerrava, uma força ignota lhe
trazia à realidade violentamente. E foi assim na gangorra do parque obsoleto e no palco
de um teatro vazio, sob a claridade dúbia, em que, sentada na ponta do então tablado,
meneava os pés sem saber o porquê e tampouco pretend ia conhecer as causas. Achava
tudo aquilo estranho, mas suportável, bastante excêntrico, diferente como ela, como seu
VERBARE | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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id, algo que se podia desdenhar.
— Preciso ir ao encontro! — Desde que saiu de casa, agora dava para falar
sozinha. Minto, ela não “conversava consigo mesma”. Isso é coisa de gente louca! O
que fazia ela era apenas refletir em voz alta, algo mais cerca e adequado aos padrões da
normalidade.
De alguma forma o tempo e o sol, cujos raios ainda atravessavam a cidade
preguiçosamente, lhe avisaram do horário, do encontro. A praça era florida, mesclada de
cores como o arco- íris. Era linda, apesar do cinza arquitetônico que a circundava.
Agarrou o livro- xodó que estava debruçado ao banco. Aquele alfarrábio era o
único bem que agora possuía, a única coisa que lhe restou de casa, fora as roupas do
corpo. Ela fez dele um companheiro, um amigo nas horas vagas, a pelúcia no momento
do sono, por isso não desgrudava dele um instante sequer...
Então, Mafalda fitou uma belíssima rosa e a obteve do jardim alheio. Achou de
presenteá- la a alguém por tudo que lhe havia feito naqueles últimos dias. E Caminhou...
Olhou para trás: nenhum indício de uma manhã extraordinária. Caminhava... Sentiu o
perfume da flor: aroma agradável. Caminhava... Sorriso frouxo: ela sorriu timidamente.
Caminhava... Girou nos calcanhares: prosseguiram os passos como se tivessem vida
própria. Caminhava com o livro numa mão e com a flor noutra.
— Espero que ele goste de rosas amarelas. — Nem precisa dizer que o
monólogo era constante.
A jovem quis atravessar o asfalto. Elevou-se à calçada. Sinal vermelho! O
trânsito parou. Ela estava perto de chegar, próximo era o destino. No semáforo, o fulgor
verdejante permitiu- lhe dar partida. Agora, totalmente recuperada do efeito
sonambúlico, observava a rua, os pontos de referência, visto que o caminho ainda não
era tão familiar assim, precisava se acostumar com aquela paisagem, afinal já fazia duas
semanas.
Há duas semanas a humanidade resolveu ignorá- la, filosofou com ar de
exagero, desdobrando o aspecto barroco que lhe acometia, resultado da obra que
devorava. Na escola, subia e descia as escadas e ninguém lhe dava a mínima.
— O meu jeito esquisito afastou as pessoas. — Assim cogitou.
Na sala de aula a mesma coisa: entre as carteiras vazias, na qual ela estava
parecia abandonada. Entre as estantes da biblioteca, a sensação era pior, viam e iam e
nem sequer lhe pediam licença. Mafalda era apenas uma garota tácita, centrada em si
mesma, não falava com ninguém, ignorava a todos, a tal ponto que muitos acreditaram
numa suposta mudez. Não suportou que com ela fizessem o mesmo. Seu mundo
particular rompeu em silêncio, mas aquilo ardia, parecia corroer nas camadas venosas,
dilacerava a cútis.
Assim, em meio aos transtornos, conheceu Claus, seu novo amigo, o mesmo a
quem Mafalda pretende entregar a rosa. Todas as manhãs, naquele mesmo horário, ia ao
seu encontro. Ela sabia que com ele podia contar, mesmo que não soubesse muito a seu
respeito, mesmo sentindo uma atmosfera misteriosa a sua volta. Mas com ele poderia
contar e isso era o que lhe importava naqueles momentos. Ele compreendia sua natureza
e ela sentia-se à vontade para conversar um pouco, contar anedotas, falar mal de
alguém, descarregar os problemas, admirar a arte, caetanear quando “desse na talha”...
Conheceu Claus exatamente duas semanas atrás, num lugar nada convencional,
porém tranquilo, onde podiam extravasar os ânimos sem incomodar ninguém... Naquele
dia havia também despertado, conforme as outras vezes, do tal “sono profundo”. Foi o
mesmo fenômeno, o mesmo efeito, não sabia como e por que estava ali, compreendeu
apenas que descansava à sombra de uma árvore e com um livro preso à mão. O vento
soprou no semblante. Ao suspirar denunciou uma esplêndida sensação. Um arrepio de
VERBARE | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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estar vívida, de sinto logo existo.
O arbusto ficava afastado dos demais, o espaço parecia um campo cujas
gramíneas reluziam de tão viçosas e ao seu redor havia pedras cravadas no solo.
Entretanto, eram demasiadamente planas para ordinárias rochas, assemelhavam-se a
azulejos fixados no chão. Além do mais nelas havia algo de grafia... Não demorou
muito para que nossa personagem aterrissasse em sentido e percebesse que estava diante
de verdadeiras lápides e de saudosos epitáfios. Era um cemitério, refinado no mais
tenebroso e pacato dos jazigos, na mais perfumada das guirlandas, no mais frígido dos
defuntos. Um jardim, não o do Éden, mas bem que poderia ser se não fosse a
localização terrena.
Naquele ensejo, sem que ela percebesse, Claus surgiu. Mafalda lia Gregório.
Sentiu nas pernas uma bengalada. O tocar lhe aborreceu e não se conteve:
— Olha para aonde anda!
— Desculpe-me. Não foi por querer. — A voz dele era doce e cautelosa.
A leitura ficou para depois. Ela olhou bem para seu rosto e concluiu que a
agressão foi ingênua. Pífio apoquentar! O rapaz era cego, olhava para o vácuo
fixamente, quase não descruzava as pálpebras e o que mais lhe acentuava era a brancura
dos olhos.
— Desculpe-me pela arrogância. Não podia imaginar que você fosse...
— Deixa para lá. — Perdoou o moço.
Por um curto momento, ouviu-se apenas o barulho do ambiente, se é que ouvia
alguma coisa naquele lugar. O ragzzo com os pulmões cheios de brisa buscou conversa:
— Posso sentar um pouco?
— Claro.
O Cego sentou, não mediu esforços. Então ela presumiu que ele deveria
conhecer bem o recanto como a palma da sua mão. Era notável em suas feições a
tranquilidade que aquele cemitério trazia para seu ego.
— É a primeira vez que você vem aqui? — Perguntou Mafalda.
— Todos os dias. Esse é meu lugar preferido. — A resposta a satisfez.
Exatamente como ela havia pensado. — Chamo- me Claus e você?
— Mafalda. É assim que me chamam.
— Você está triste, não é? Posso notar pelo tom de sua voz. Por que não me
conta o que sucedeu? Quem sabe eu posso ajudar.
Como um cego poderia ajudar alguém? Assim questionou no mais íntimo de
seu inconsciente. Mas logo percebeu que estava diante de uma grande oportunidade, que
não poderia deixar passar. Quem, além de seu pai, procurou saber como estava? Quem
além dele demonstrou se importar com seus feitos e impressões? Era a primeira vez que
alguém enxergava sua psique, sem nenhum pré-diagnóstico, sem nenhuma armadura.
A conversa então se estendeu: falaram de tudo um pouco, riram, Mafalda
declamou alguns versos de Gregório, quis apresentá- lo ao Barroco, discutiram,
inclusive, a filosofia de Platão e seu mundo das ideias. A amizade cresceu, apesar do
curto espaço de tempo. Um dia apenas, o suficiente para estarem juntos nos próximos.
Claus vinha de longe, não soube ou não quis lhe dar boas explicações. O
importante era que os dois nunca faltavam aos encontros, desde então. Cumpriam o
combinado:
— Nesse mesmo lugar, nesse mesmo horário.
Esperavam ansiosos por aquele momento do dia. Ela sempre chegava primeiro,
ele aparecia depois, sempre num momento distraído de nossa personagem. Parecia
surgir como espectro. Ela realmente chegou a crer que Claus não era desse mundo. Era
angelical demais para um ser humano. Mas a incógnita era um pequeno detalhe
VERBARE | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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comparado ao bem que lhe fazia. E por mais verdadeiro que fosse ta l conjuntura, não
causava medo algum, ao contrário, eram sempre alegres suas visitas.
Da cor da neve eram as roupas que ele vestia, trajava sempre branco, como se
fizesse campanha pela paz universal. Desde o segundo encontro, Claus lhe trazia uma
rosa também alvacenta, dizia que eram as flores os verdadeiros presentes, além de ser
um gesto garboso. Agora, a caminho do campo-santo, era a vez dela de retribuir os
votos sinceros de amizade, ainda que a flor fosse amarela e procedesse de um furto, o
que deixava o ato ainda mais cândido na sua real intenção.
Porém, os passos foram interrompidos. Por ela passou uma menina abordo de
uma graciosa bicicleta e de repente Mafalda parou no meio- fio da calçada. Um fato tão
simples dilatou seus sentidos. Foi como se ela tivesse caído em si. O efeito foi o mesmo,
esquizofrênico como os outros, contudo mais forte, doloroso e injusto, porque ela estava
sóbria e feliz. Na verdade, o que a deixou atônita não foi a simples ação de uma menina
passear sobre duas rodas, todavia o que estava por suceder.
Um carro percorria célere sob o asfalto, a menina desejou atravessar. Mas não
daria tempo. Não daria tempo e isso estava evidente! Por um infeliz relapso de
desequilíbrio, depois de um relance de distração... Foi tudo tão rápido e a imagem do
veículo tentando parar após um freio abrupto escandalizou treze dos seus neurônios, de
modo que em nada conseguiu pensar, agir naquele momento seria algo impossível, por
dentro tudo se liquidificou: o estômago, o cérebro, os nervos.
Um verdadeiro choque! Naquele instante faltaram- lhe as energias vitais e da
canhota despencou Gregório, bem como dos destros dedos desprendeu-se o vegetal, que
regressou ao solo da mesma forma em que dele havia sido arrancado: sorrateiramente.
Mafalda passou a entender tudo naquele momento, a mesma experiência, o fato
semelhante, não apenas se “viu” na pele daquela garotinha como sentiu intensamente
sua angustia.
Recordou do episódio tal como ele sobreveio: as reminiscências passeavam
vagarosas em sua mente. E como numa projeção cinematográfica, fitou a comida posta
na mesa, ou melhor, mãe e filha estavam à mesa, só faltava a esta pôr na boca a
refeição, sagrada, na opinião daquela. Um motivo banal, porém bastante em si mesmo
para suscitar uma divergência. Ficou por conta da mãe a introdução, aliás, dizia
Mafalda, urbi et orbi e sem o menor receio, que brigar fazia parte de sua composição
biológica, estava no seu DNA e que, graças a Deus, dela não herdou o maldito gene.
— Não vai comer, filha?
— Já disse que não. — Agiu com rispidez.
— Mas você tem que se alimentar. Está pálida...
— Já disse que não quero!
— Não precisa ficar nervosa. — A mãe continuava serena. — Logo você vai se
acostumar. Você vai se acostumar.
— Eu nunca vou me acostumar, mãe! Por sua culpa ele foi embora!
— As coisas já não davam mais certo, Mafalda. É melhor assim, cada um no
seu lugar. Já não suportava mais as brigas, os abusos, o desrespeito. — O tom mudou
um pouco no discurso da mãe, mas nada estéril.
Nossa personagem levantou-se afoita. Cravou fortemente a faca na madeira. A
cadeira caiu. O barulho assustou a mulher:
— Por sua culpa minha vida virou um inferno! Por sua culpa meu pai me
abandonou!
— Por minha culpa?! — A mulher não se conteve e berrou com a mesma
intensidade, ela sabia que do jeito como a filha se portava seria difícil manter o tom
pacificador. — Se a sua vida é um inferno, a culpa é sua! Você não tem amigos! Você
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não gosta de ninguém! Ninguém gosta de Você!
Aquelas palavras vieram como uma pancada iracunda, cheia de ódio, de rancor,
plena no mais depreciativo dos sentimentos. O pior erro de sua mãe foi ter lhe dito tudo
aquilo que ela jamais gostaria de ouvir, que ela fingia suportar. Pensou gritar, prolongar
a discussão. Mas para quê? Para estimular as rugas que ainda haverão de ser? Não.
Melhor não. Assim preferiu:
— Se meu pai ainda estivesse aqui eu estaria mais feliz. E ele saberia me
tranquilizar. Você não entende, não é? Nunca vai entender.
Mafalda simplesmente deu as costas e saiu, mas antes recolheu seu livro de
cabeceira. Ganhou a rua montada numa bicicleta. Sair por aí sobre duas rodas, depois de
uma discussão enfadonha e inútil, nunca foi tão ameno. Não pensava em outra coisa
senão no que lhe dissera a mãe, há pouco, e no que proferiu também. Seu pior vício era
posar do tipo non, je ne regrette de rien, de aparentar pertencer à casta, quando mal
sabia ela que impossível era se crer Piaf, por um segundo que fosse, por um traço
qualquer.
VOCÊ NÃO TEM AMIGOS! Você não gosta de ninguém! Ninguém gosta de
Você!... Ninguém gosta de você! A CULPA É SUA! Você não tem amigos! A culpa é
sua! VOCÊ NÃO GOSTA DE NINGUÉM!... Aquelas frase vinham e iam, vinham e iam,
remexiam na cabeça, ficavam cada vez mais fortes, as palavras cresciam e diminuíam,
diminuíam e cresciam... Você não tem amigos! Você não gosta de ninguém! NINGUÉM
GOSTA DE VOCÊ!... Ninguém gosta de você! A CULPA É SUA! Você não tem amigos!
A culpa é sua! VOCÊ NÃO GOSTA DE NINGUÉM!... Um grande nó se formou em seu
cérebro, um congestionamento de emoções lhe tomou conta.
Foi demais para ela. Manter o equilíbrio, naquela ocasião, com os pés sobre o
asfalto, não era apenas necessário, era uma questão de honra. E o que lhe aconteceu a
posteriori não convém relatar, pois presumi o bom leitor.
E naquela manhã, Claus a esperava já fazia um bom tempo. Ainda tinha
esperança que Malfada chegasse. Talvez o trânsito esteja lento ou... Por mais que ele
não quisesse era inevitável não cogitar coisas sem préstimos, como uma enfermidade,
um acidente, algo dessa natureza.
O silêncio dominava novamente a paisagem. Tudo parecia mórbido, outra vez.
Era como se o lugar tivesse resgatado sua verdadeira essência, como se tivesse
recuperado a soturnidade clandestina.
Um choro, que vinha de alguns metros dali, ganhou notoriedade e rompeu o
momento. O cego resolveu segui- lo. Acompanhou os acordes melancólicos, tocando
sutilmente o solo, com todo o cuidado do mundo para não tropeçar num epitáfio
qualquer. Soluços femininos...
Adivinhou nosso amigo. A lástima era realmente de uma mulher debruçada
sobre uma das lápides, agarrada a um porta-retratos, supostamente com a imagem do
ente querido. A presença do cego a fez engolir o pranto. Ela fitou- lhe na face, mas não
proferiu uma só palavra, ainda soluçava, apenas baixou a cabeça e elevou o objeto à
altura do peito. Um amplexo. Um amplexo de saudade infausta. Isso! Foi exatamente
isso que ela demonstrou.
— Por que chora? — Perguntou- lhe o estranho homem de branco.
Lentamente a senhora ergueu o semblante e disse com a voz ainda trêmula:
— Perdi minha filha há duas semanas. Sinto saudades dela... Custa- me crer
nessa ausência, em sua perda. Acho que nunca irei me acostumar.
O cego ajoelhou.
— A senhora deveria amar muito sua filha. — Opinou Claus.
— Muito. Mas não tive tempo de dizer isso a ela.
VERBARE | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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— É uma pena. Mas não se preocupe, porque no fundo, no fundo, os filhos
sabem que as mães os amam. E na vida as coisas são assim, nada dura para sempre.
— Você veio visitar alguém? Algum ente querido?
— Já estou de partida.
O cego tranquilizou a mulher. Ele realmente sab ia tranquilizar alguém. Não
tardou muito para que ela o visse desaparecer a passos lentos, a sumir na vastidão do
cemitério. Passados alguns minutos, Claus já não era o mesmo. Era um ponto branco
alhures, confundido na evaporação que embaçava a vista. Algo que se perdia na
vigorosa relva, por entre as sépias lajes tumulares, distante dali.
A mulher se recompôs. A casa iria regressar: precisava dar continuidade aos
afazeres domésticos, embora tudo lhe servisse apenas, nos últimos dias e nos próximos
também. Não podia abandonar a louça suja na pia da cozinha, nem a roupa úmida a
espera de um varal. Então, ela se refez e sobre a lápide deixou o objeto. Na fotografia o
rosto era de Mafalda, com ar de menina aprazível e sorridente, apesar do coração
selvagem.
VERBARE | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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dia crítico
Thiago Henrique de Camargo Abrahão
era uma vez uma voz muda, vazao de silencio, versao de sigilo, que
encontrara, certa vez, uma voz igual mas diferente. pelo encontro, a mudanca. e
viveram, como vivem as vozes que se encontram, nas falas e feicoes que se permitem
perceber. um dia (que azar!), acordaram com nos na garganta. passado o susto inicial,
entrelacaram seus ruidos e, pouco a pouco, livraram-se dos nos, menos de um, vital
para seus eus. depois do espanto, do pranto, o encanto, e viveram felizes para sempre.
merda, nao! (bate na mesa, com o punho esquerdo fechado, o escritor.) nao! ate
quando terei que reescrever todos os lugares-comuns ate conseguir, coagido, escrever
algo original? crise, por que me quer? identidade, por que me foge? literatura, por que
me faz refem? (solta a caneta, fecha os olhos e se debruca sobre o papel.) por que,
sorrateira e cinica, proporciona diariamente a ilusao de que todos os dias tenho algo
interessante a dizer? se sob o te(x)to esta a real morada, ha muito que me tenho sob
escombros, pois cresci a ponto de nao ter mais a esperanca de produzir grandes estorias;
no a mais das vezes, apenas pretendo fugir de grandes tedios. (pena em punho,
recomeca:)
era uma vez atroz uma foz no mundo, razao de intento, vazao de naufragio,
que parara, certa vez, sua voz letal e indiferente. pelo subito, a tardanca: e cessara,
como morrem os deltas que desaguam nos mares sem razoes que admitem o ondular.
uma gota (que pesar!), transbordara em no ligeiro. vertido o trago orig inal, entornou
suas brumas e, paulatinamente, alcou-se as margens, vento em popa, fatal a mare.
depois do assombro, do aguar, pelo tanto muitos nao viveram felizes para sempre.
novamente: merda! o que, afinal, procuro? por que deveria eu suportar meu
proprio libelo? e, sobretudo, por que ainda escrevo? pela necessidade de me
reencontrar? para evitar a loucura completa? pela necessidade de me sentir menos
estupido — ou, porventura, mais do que sou —? pelo desejo de deixar um sinal ao
mundo? nao, nada disso, provavel e que escrevo porque nunca soube contar historias
interessantes a mesa do jantar. eis que me tenho, rocha a rolar contra sisifo que
considera sua ventura. questoes sao varias: poderia o escritor suportar mais do que
VERBARE | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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liter)atura, poderia nao se implodir ao vagar no vacuo do cosmos de gutenberg? tantas
preocupacoes, tao poucos preocupados... e como nao me preocupar se e este o objetivo
de meus dias, iniciados pelo esgar de um bocejo brandindo a lamina da autoafirmacao
que plateias vaiariam, coautor o contrassenso extraoficial, sem autoanalise, no frequente
sequestro ultrassecreto de nossas ideias? — ah! nossas ideias, estas nao mais sao
acentuadas como antes...
era uma voz uma vez rouca, tensao de misterio, missao de perigo, que perdera,
incerta voz, sua feicao igual mas diferente. pelo desencontro, a mesmice. e com esta
viveu, como vivem as vezes que se aturam, nas valas comuns e acoes que se percebem
permitir-se. um dia (enfim!), adormeceram sem mais esperanca. transposto o tedio
universal, tramaram seus desejos e, paulatinamente, acordaram caladas. pasmado o
depois, o canto, um rugido. e, sem outra opcao, viveram felizes para sempre.
pela terceira vez: merda! talvez o problema seja a des-ins-piracao. mas o que
fazer? leitores ha muitos, quando muitos sao tres, e hei de fazer- lhes as honras. eles,
porem, se de fato gostassem do autor que leem com um entusiasmo proximo da idolatria
pueril, nao deveriam lamentar quando seu idolo por algum motivo deixa de escrever;
deveriam, ao contrario, festejar, afinal saberiam que ele tambem tem uma vida a viver.
ingenuo que nao sou, fato e que a literatura, por ora, nao me faz melhor, ainda mais
quando me encontro em meio a banalidade ofensiva que existe entre as duas capas de
grande parte dos grossos livros das bibliotecas universais, best(a)-sellers inuteis, livros
risiveis de autoajuda — sim, algumas drogas sao legalizadas —; e grave a conjuntura,
mas talvez seja eu o alucinado: pobre paranoico que sou, passam-se os tempos, caem os
acentos, mas a mim, que sou nos, a medicacao continua a ser acentuada.
era uma vez uma ideia louca, torpe embaraco, razao inimiga, que pensara eu,
decerto, ser ela a ilusao mais coerente. tive-a num encontro, tarde a noite. e com ela
existo, como existem os casais que se apegam, no aconchego do sob-os-lencois. um dia
(ai de mim!), acordamos sem confianca, pois disposto o assedio total, tomamos nas
maos os ensejos e, repentinamente, resistimos vexados. deposto o po sob o tapete, novo
amor. e, como diriam, “viveram felizes para sempre”.
nao, nao vou me aborrecer mais um minuto. melhor pensar que o problema seja
ter deixado de lado os ideais peripateticos mantendo-me estatico sobre a cadeira. ora,
impossivel esquecer que, se ja o era antes, agora e categorico: hemorroida e acento,
assento e hemorroida nao mais combinam. Mas, se estiver certo que a arte e o
atrevimento da atitude, so me resta d(o)urar a tradicao e, aqui sentado, consentir,
escrever, consumar a heresia de um romance, este filho bastardo da epopeia, tingindo-o
com as cores da lingua portuguesa, este maldito latim vulgar — pois nao e segredo que
neste mundo apenas dois profissionais se importam com a lingua: os literatos e as
prostitutas.
era uma vez e viveram felizes para sempre.
e basta.
VERBARE | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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Cada macaco no seu galho
Daniela Ávila Malagoli
Quando me foi dada a tarefa de escrever uma crônica, de imediato pensei: Vou
sair, vou ao shopping me distrair, isso me parece muito complicado. Bom, e foi durante
esse passeio ao centro do consumismo, promotor de uns instantes de felicidade
incomuns, que eu observei, de maneira inédita, algo digno de ser aqui relatado.
Quando você vai a algum lugar onde há mesas e cadeiras, já reparou como as
pessoas se localizam espacialmente? Pois, passe a olhar ao seu redor! Arranje um
tempo! Se achar conveniente encontrar esse tempo, por sinal pequeníssimo (se é que ele
existe) na caixa dos seus afazeres intermináveis, para refletir sobre o que lhe pergunto,
você verá que as pessoas evitam sentar ao seu lado. O que quero dizer a você é que
constatei algo que eu mesma me vejo fazendo desde que me entendo por ser humano.
Em geral, há sempre um espaço entre as pessoas, uma ou mais mesas. Só quando não há
mais opções, aí sentamos (temos que fazer isso, na verdade) ao lado de alguém. Creio
que você não achou isso um absurdo... Nem eu.
Quando cheguei à praça de alimentação, pedi um Burger King, sem dúvida a
melhor opção para me abster, por alguns momentos, da tacocracia que me acompanha
todos os dias. Meu acompanhante e eu procuramos, sem sequer nos comunicarmos
verbalmente, uma mesa isolada, sem quase ninguém por perto. Acomodamo- nos de
forma que não houvesse ninguém ao nosso lado. Aí sim. Durante os meus minutos de
extrema alegria, saboreando o BK, olhei ao meu redor e comecei a reparar os meus
semelhantes. Inúmeras pessoas se cruzando, com o olhar fixo, mas nelas mesmas. Um
senhor de barba grande e espumada sentado em um canto, sozinho, tomando uma
cerveja; em outro canto um casal e seus três filhinhos inquietos fazendo um super
lanche. Mais à frente, um grupo de amigos jogando conversa fora. E por aí vai... Cada
um vivendo o seu momento, das mais variadas maneiras. Mas uma observação: todos no
seu canto; cada macaco no seu galho. E aí, eu me perguntei: Por que tanto medo, tanto
repúdio?
VERBARE | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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As pessoas se evitam. Existe, entre nós, um receio mútuo e recíproco que
permeia as relações sociais, se é que isso pode ser chamado de relação. Enquanto eu
pensava sobre tal situação, que por acaso causou- me uma indignação profunda, meu
acompanhante diz em tom brando: “Vamos, já vai encher bastante aqui”. Levantei
daquela praça recheada de grupos fechados e cantos peculiares e fui para casa. Minha
casa é em um condomínio fechado. Fechado não só para a rua, mas para os meus
vizinhos... Com alguns eu troco mínimas palavras. Aquele “bom dia” amarelo dentro do
elevador, conhece? Ou então um “Parece que vai chover, não acha?” para não falar que
não disse nada. Outros eu nem cheguei a conhecer. E no momento, sinto muito, mas não
tenho tal interesse. Não porque eu não goste deles... Isso nem é possível, se é que me
entende.
Tempos modernos, novas tecnologias, pessoas mais afastadas... É, os tempos
mudaram e muito. E os ditados populares também. De “um por todos e todos por um”
para “cada um por si e Deus por todos”. Isso nos parece muito familiar... Não acha? E
sabe qual é o maior desejo da maioria de nós? Ir, nas nossas férias, para uma ilha
paradisíaca, isolada, longe de tudo e de todos. Que maravilha! Enfim, só. De aldeia
global, não temos nada. Gostamos mesmo é de ficar nas nossas cadeiras. Multidões de
solitários... É um paradoxo que ainda não consegui compreender.Eu complementaria um
trecho de Mário Sergio Cortella, que diz que é preciso mais espanto diante das
tecnologias e inovações que aparecem diante de nós. Eu diria que é necessário menos
espanto entre as pessoas.
VERBARE | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015
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