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Cinema documentário e
espectador em cena
Documentary film and spectatorship in scene
Andréa França | [email protected]
Pesquisadora do CNPq. Professora da Graduação e do Programa de Pós-Graduação no
Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio. Autora, entre outros, de Terras e
fronteiras no cinema político contemporâneo (Faperj, 7 Letras).
Resumo
Discute-se o campo do cinema documentário naquilo que o singulariza, isto é, a partir do lugar do espectador como aquele que se define em função de sua capacidade de julgar, de se desatrelar do campo geral
da imersão para ser posto em situação. Para trabalhar essa questão, serão discutidos filmes que convidam
o espectador a julgar não só suas próprias imagens, mas as imagens cotidianas do mundo.
Palavras-Chave: Cinema documentário; Espectador; Representação.
Abstract
From the point of view of the spectator, what singularizes the documentary cinema? This essay argues that documentary’s audience defines itself in relation to its capacity to judge. Documentary movies usually demands the
public to untie themselves from the immersive condition in order to be put in situ. To address this question, we
discuss films that invite the spectator not only judge its scenes, but the daily images of the world.
Keywords: Documentary movie; Spectator; Representation.
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Andréa França. Cinema Documentário e Espectador em Cena.
Introdução
Quando atentamos para as inúmeras expressões que pretenderam dar
conta das diferentes modalidades, metodologias e procedimentos do cinema
documentário ao longo de sua história - “cinema-olho”, “cinema do vivido”,
“cinema-verdade”, “cinema-direto”, etc. -, o que se depreende é o modo como
se forjou historica e socialmente o lugar do espectador neste cinema, a forma
requerida de se colocar diante de um filme documentário, a crença progressivamente encorajada como um critério diferenciador em meio às imagens do
cinema de ficção, de animação, das imagens-espetáculo do mundo. Ao mesmo tempo, junto com o desejo da crença (na inscrição verdadeira), se forjou
também a certeza da máquina posta em jogo na operação cinematográfica,
máquina que ativaria a consciência do espectador de sua responsabilidade na
produção da mínima credibilidade que toda representação exige para funcionar. Na consolidação paulatina do campo documental, o lugar do espectador
foi engendrado em meio às exigências do conhecimento, da verdade, de modo
a pressupor uma relação de certo modo “objetiva” e preexistente entre o homem e o mundo, relação esta que convocaria do sujeito-espectador um juízo a
respeito da representação que lhe é oferecida.
É nesta tensão entre a crença e a sua dimensão reflexiva (a consciência
crítica) que teóricos, críticos e cineastas vão afirmar que o espectador que vê
um documentário não é o mesmo quando vê um filme de ficção. Trata-se de
se instalar em um outro lugar. Existem exigências, expectativas de adequação
da imagem ao mundo, da imagem ao personagem, da relação entre diretor e
personagem, isto é, um juízo a respeito do diretor e da sua obra que marcam
essa diferença radicalmente (NICHOLS, 1997). Como se o campo do documentário viesse articulado com o surgimento de um modelo específico de
comportamento diante da imagem cinematográfica, modelo este que tem uma
estrutura histórica e que se vincula a determinadas redes sociais, culturais,
estéticas e econômicas.
Neste artigo, discuto como o cinema documentário, nas suas diferentes
modalidades e procedimentos, tem demandado que o espectador se defina e
se constitua em termos de sua capacidade de julgar, ou seja, de se desatrelar
do campo geral da absorção, de modo a ser posto em situação, incluído e convocado. Se não resta dúvida que as múltiplas modalidades da prática documental têm relação estreita com a própria cultura histórica do “documento”,
dobrando-se aos hábitos culturais de seu tempo e de seu contexto, sendo cada
uma tributária de um “tempo documental” que lhe é específico, o que ainda é
sensível no campo deste cinema é que a relação entre o realizador e o mundo
representado (omitida ou não) é por natureza transformável e transformadora,
de modo que o espectador é de saída convocado a ocupar o lugar daquele que
avalia a representação que lhe é oferecida. O cinema é aqui a cena onde o poder
– de ver, saber, julgar - se expõe à crítica, à medida que se é juiz da representação que tal personagem, tal instituição, tal poder dão de si mesmos.
É com o objetivo de trabalhar essa questão – da convocação ao julgamento - que os filmes Juízo - o maior exige do menor (Maria Augusta Ramos,
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2007), Serras da desordem (Andrea Tonacci, 2006) e Jogo de Cena (Eduardo
Coutinho, 2007) serão discutidos; filmes que estabelecem e formulam, diferentemente, o problema do julgamento como assunto central, de tal forma
que somos convidados a julgar não só suas próprias imagens, mas também
as imagens cotidianas e coextensivas ao mundo. Como veremos, é ao fazer
do tema da repetição sua força e sua graça que estes filmes dão a ver, de
modo crítico, o lugar do espectador enquanto juiz, seja da representação do
mundo, seja do(s) personagem que se apresenta, seja da metodologia e dos
procedimentos adotados.
O espectador convocado
Serge Daney, ao escrever sobre o documentário Chung Kuo (1974), de
Michelangelo Antonioni sobre a China, afirma que o filme se dirige a dois
tipos de público. Para o público chinês, o cineasta italiano denigre e insulta a
imagem de seu país porque fragmenta e multiplica em demasia planos e ângulos de filmagem, porque as imagens “oficiais” estão despedaçadas, cortadas,
fragmentadas; para o público francês (Paris, anos 70), ao contrário, trata-se de
uma imagem humana, próxima e não majestosa da China, bem distante dos
cartões-postais. Vê portanto paradoxos tais como no jornal Renmin Ribao que
se lê: “Mas Antonioni mostra o povo chinês como uma multidão ignorante,
idiota, longe do mundo, com o rosto triste e ansioso, sem energia, sem higiene,
adorando beber e comer, em resumo, uma massa cansada”. E no Libération,
onde se lê, por autoria de Philippe Sollers, “um texto sobre a calma, o desprendimento, a ausência de histeria da massa chinesa” (DANEY, 2007:85).
Embora o filme dirija-se a dois públicos distintos, o que importa não
é constatar diferenças de comportamentos no espectador francês e no espectador chinês, mas explicitar um movimento comum a diferentes platéias
apesar da distância (geográfica, de formação, de renda, de valores), isto é, um
movimento de convocação ao julgamento que, se o crítico francês não chega
a colocar de modo evidente, percebe claramente ao afirmar que tratava-se de
um debate engraçado, “do aqui e do lá”; em Paris, quando estréia o filme de
Antonioni, a pergunta era: “o que esconde uma imagem? Qual é seu fora de
campo?” Questões que certamente diziam respeito ao contexto desconstrutivista do momento, década de 1970, onde a crítica do ilusionismo cumpriu
um papel fundamental de desmistificação do dogma da veracidade da imagem, de modo a marcar a descontinuidade entre o filme e o mundo.1 Já na
China, segundo Daney, a pergunta era outra: “o que revela uma imagem? O
que há no campo?” Questões que buscavam o banimento do acaso “em nome
de uma normalização da ‘boa imagem’, como uma reprise do já visto” (Idem,
p.86). Susan Sontag, num ensaio da mesma década onde analisa a recepção
negativa do filme de Antonioni na China, afirma que, para os chineses, existem modos adequados de fotografar e filmar, pois não se pode fragmentar
impunemente o espaço; trata-se de uma cultura habitada por “noções sobre
a ordem moral do espaço”, de modo que a imagem estaria vinculada aos
conceitos de continuidade, integridade, totalidade, e não aos detalhes que
aludiriam ao todo como no Ocidente (SONTAG, 1981: 162).
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O espectador estabelece então diferenças entre modos de existências que
já estariam dados de antemão, critérios preexistentes de juízo (na China, a
distância entre a imagem dada e a imagem esperada e, na França, a distância
entre “orientais” e “ocidentais”), e isso não só porque há a suposição comum
de que o papel do “objeto China” já seja previamente conhecido, mas também
porque o próprio documentário de Antonioni certamente contribui, com seus
procedimentos de linguagem, para este movimento de idéias preconcebidas.
Interessa que o artigo de Daney sinaliza para a não existência de um estado de
natureza no documento, na imagem cinematográfica, pois concerne sempre a
alguma coisa da ordem do já construído, embora exista uma expectativa, por
trás da noção de documento, de testemunho e veracidade – “uma concepção
judiciária do documento” (DURAND, 2007:11) - que operaria através de seu
caráter bruto, dando a ver irrefutavelmente uma certa verdade do mundo. É
esta expectativa de testemunho da imagem que Daney assinala ao perceber a
reação das diferentes platéias ao filme de Antonioni, expectativa relacionada
aos modos de subjetivação das platéias, modos que são avaliadores dos procedimentos da representação.
É claro que os cinemas modernos dos anos 60 inauguram toda uma
problematização a respeito das imagens do mundo, da possibilidade de falar
do outro, quando inventam metodologias que se baseiam numa relação de
proximidade, de captura “em direto”, questionando a posição privilegiada do
diretor como produtor exclusivo de sentido e o lugar estável do espectador
de documentário. O momento do cinema direto e da cultura da “situação”
transforma a prática do documentário numa imersão corporal no real, num
ato de observação apurada e minuciosa, ato de encontro e de transformação
em potencial. Neste sentido, o que se julga quando as interferências do acaso,
as indeterminações das ações e reações das pessoas envolvidas e o não controle
do documentarista, ao menos durante a filmagem, estão em cena? Que tipo de
juízo a respeito da autenticidade da representação é solicitado do espectador?
Em A verdade e as Formas jurídicas, Michel Foucault analisa os diferentes regimes históricos do julgamento para dizer que as práticas judiciárias,
isto é, a maneira pela qual se arbitram os danos e as responsabilidades entre os
homens são uma das formas pelas quais definem-se tipos de subjetividade, formas de saber e, como conseqüência, relações entre o homem e a verdade. Sua
idéia é indicar como, no decorrer do séc. XIX, as práticas judiciárias se tornam
um novo objeto dentro da modernização da subjetividade, em que “formas
de análise bem curiosas”, as ciências de exame, dariam origem à Sociologia,
à Psicologia, à Psicanálise, etc. Antes disso, as formas de justiça tinham uma
importância local em termo de educação, práticas pedagógicas e corretivas, de
investigação da verdade que, em última instância, não tinham por finalidade
a inclusão, o controle e a normalização.2 Ao destrinchar tais mecanismos e
procedimentos judiciários, Foucault enfatiza o caráter de artefato das formas
de poder-saber produzidas por práticas específicas, em um lugar e momento
específicos e que, embora variáveis, se encontram firmemente enraizadas nas
relações de produção e constituição de conhecimento que compõem os campos
de força nos quais a verdade se torna possível e operante.
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Não resta dúvida que o alcance de se pensar o lugar do espectador do
cinema como aquele que se constitui em termos de sua capacidade de julgar é
evidentemente outro, mas o pensamento de Foucault nos ajuda a precisar essa
questão que ocupa um lugar importante na crítica do cinema documentário,
sobretudo contemporâneo. É como se os cinemas modernos dos anos 60, ao
inaugurarem toda uma problematização a respeito das imagens do mundo e
do outro se instalassem em uma outra lógica de julgamento, lógica onde o que
se avalia parte menos de suposições a respeito do mundo do que das condições
de proximidade, negociação, tensão e mesmo conflito entre os sujeitos participantes, personagens que são reais e que quando começam a fabular - ato que
só se realiza a partir do vivido, como enfatiza Deleuze - se afirmam ainda mais
como reais e não como fictícias (1990:182).
A cena final de Crônica de um verão (1961), em que os realizadores Jean
Rouch e Edgar Morin conversam acerca do processo de feitura do filme, das
mágoas das opiniões dos personagens/espectadores sobre o documentário, é
bastante fecunda para se pensar essa questão. A preocupação com o tema da
(in)felicidade e do estilo de vida se dilui no corpo a corpo com as reações nem
sempre simpáticas dos espectadores, dando lugar a um questionamento da autenticidade da representação do outro e de si mesmo. Caminhando pelo Museu
do Homem, lugar de trabalho de Rouch, os documentaristas/personagens avaliam e contestam as impressões das personagens/espectadores diante do filme.
Esperavam um outro tipo de receptividade, uma avaliação mais amistosa, provavelmente uma empatia no que se refere aos “momentos de cinema-verdade”
construídos diante da câmera, mas isso definitivamente não aconteceu. “Ou
bem se censura nossos personagens por não serem suficientemente verdadeiros
ou bem se lhes censura por serem verdadeiros demais”, conclui Edgar Morin
de modo perspicaz na sua auto-crítica final com Rouch (NINEY, 2002:163). É
que, independente do espectador/personagem achar que o personagem encena
demais ou é muito verdadeiro, este filme convoca o espectador a habitar um
outro lugar em que ele é aquele que também sabe que as representações oscilam, são frágeis, assim como os referentes.
Diante do fato consumado, exige-se juízo
Há nos filmes Juízo – o maior exige do menor, de Maria Augusta Ramos,
Jogo de cena, de Eduardo Coutinho e Serras da Desordem, de Andrea Tonacci,
uma dimensão “reflexiva” que quer deixar claro para quem os experimenta, seja
personagem seja espectador, o seu caráter de artefato, artifício, pois faz parte
do jogo exibir as estratégias utilizadas. Assim é que os três colocam em cena e
ativam o mundo da representação, tornando sensíveis e visíveis as relações de
poder – do teatro, da justiça, do cinema – e o próprio ato de mostrar que, a
depender destes filmes, não tem nada de passivo, de inerte ou neutro.
Em Juízo, exibe-se a cena do tribunal através dos processos de menores
infratores no fórum da justiça do Rio de Janeiro; já nos créditos iniciais, somos
informados que a lei brasileira não permite fotografar ou filmar o rosto destes
menores, de modo que o filme contratou atores em substituição aos acusados
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para fazer os contra-planos das cenas. Em Serras da Desordem, exibe-se a cena
do tribunal através da reconstituição da trajetória errante de um índio de etnia guajá, chamado Carapiru, sobrevivente de um massacre de fazendeiros
que aniquilou toda sua aldeia em 1978, no estado do Maranhão; o filme faz
do corpo do indígena, vivido pelo próprio Carapiru, um “lugar de testemunho” ligado à cena do assassinato (história) e à sua representação (memória),
garantindo assim que a cena jurídica possa ser estabelecida (SELIGMANNSILVA, 2005). Em Jogo de cena, a lógica do tribunal é garantida a partir
do momento que Coutinho convida três atrizes famosas, em meio a várias
outras personagens/atrizes desconhecidas, para fazerem parte do jogo; atrizes
que precisam ser famosas o suficiente para que o espectador possa duvidar da
mise-en-scène das outras personagens, pois elas também podem ser (ou não)
atrizes; o filme então introduz a dúvida no “jurado” ao mesmo tempo que o
convoca ao julgamento.
Há uma lógica comum aos três que passa pela mise-en-scène da repetição
– como duplo ou restituição – e que destaca o fato teatral, a teatralidade dos poderes que jogam com as evidências do sensível. Quando o ator de Juízo duplica
o gesto e a fala do réu, quando o indígena sobrevivente de Serras da Desordem
repete no presente os movimentos e as ações vividos no passado, quando as
atrizes de Jogo de cena reencenam as falas, os sofrimentos e as lembranças das
personagens, o teatro se torna visível e o cinema torna ativo quem olha quem,
quem mostra o quê, o que é mostrado e o que é escondido; o cinema revela,
pela mise-en-scène da repetição, que o espetáculo do teatro, da justiça, do cinema, não diz respeito à idéia de estar olhando para imagens simplesmente, mas
sim com a construção de condições técnicas, tecnológicas, espaciais, visuais,
culturais, históricas que individuam momentaneamente os indivíduos. Como
dirá Jonathan Crary, na esteira de Foucault e Guy Debord, o espetáculo não é
um poder de ótica, mas uma arquitetura (2000:75).
Para mostrar portanto o que faz funcionar os sistemas de representação e
fazer a “leitura” dos mesmos, esses filmes criam procedimentos que implicam
não só em explorar a idéia da repetição, da duplicação, mas em instalar o espectador em um lugar que procede por avaliação, classificação e reparação. O
espectador faz o movimento de avaliar a boa ou má representação dos sujeitos
envolvidos, de querer classificar quem é “o ator”, “o personagem”, “o réu”, o que
é “passado” ou o que é “presente”, de punir a dimensão terrorífica do passado,
presente no conflito e nas tentativas de compromisso entre a memória do mal e
a purificação/perdão, entre a cena do crime e o castigo. É através do depoimento dos menores infratores (Juízo), da restituição de um possível para um real
que se repete (Serras da Desordem) e da confissão dos segredos e da intimidade
(Jogo de cena) que o espectador destes filmes é convidado a ser juiz da representação que tal personagem, tal instituição, tal poder dão de si mesmos.
Mas não se trata definitivamente da mesma lógica de julgamento e tampouco da mesma lógica da repetição. No documentário de Maria Augusta
Ramos, há um processo de generalização da figura do réu, uma preocupação
maior com as “circunstâncias” sociais e econômicas que teriam levado o menor
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a cometer tal delito do que com a necessidade de singularizar e individuar o
criminoso. Assim como em Justiça, seu filme anterior também realizado nos
fóruns de justiça da cidade do Rio de Janeiro, Juízo – o maior exige do menor
investe em procedimentos (técnicos, estéticos) que possam fornecer ao público
um ponto de vista, consensual, para uma realidade orgânica e cruel. É que o
espectador em Juízo deve estar apto a decodificar o social de acordo com o
empirismo da observação, nos moldes das “estéticas do realismo”, no qual a
narrativa ou a imagem nos diz “que ela traduz a equiparação entre a representação do mundo e a realidade social” (JAGUARIBE, 2007). Trata-se portanto
de operar com um mecanismo realista onde importa menos a singularidade
do réu e mais as circunstâncias, menos o acontecimento e mais o fato. Juízo
se aproxima bastante da produção audiovisual cotidiana, que nos dá sempre o
fato consumado e acabado, aquilo que foi, o fato diante do qual somos impotentes nos restando apenas a indiferença, o voyeurismo ou a indignação.
A idéia de trabalhar com atores que poderiam ser réus - Maria Ramos
opta por atores de comunidades carentes para fazer apenas os contra-planos,
rostos anônimos em situação econômica, social e de filmagem bastante próxima àquela dos réus – cria uma fronteira ambígua e instigante entre ator
e personagem, entre o ator e o réu. Os atores Alessandro Jardim, Daniele
Almeida, Guilherme de Carvalho, entre outros, precisam repetir de modo
exatamente igual os gestos, os movimentos e as falas dos verdadeiros réus,
não cabendo inovação ou casualidade. Menos atores do que espelhos dos
personagens, eles encarnam pela repetição a precariedade de tudo (da linguagem, da justiça, do corpo do réu) no Brasil, pois se encontram duplamente
subjugados pelas instituições da justiça e do cinema. A repetição aqui é o
retorno do idêntico como garantia da verdade.
Se a engrenagem da justiça enquanto instituição é produzir uma espécie
de continuidade entre o tempo histórico - a cena do crime - e a narrativa judiciária - a cena do tribunal – nos lembra Christian Delage que se cria “uma
contemporaneidade duplamente defasada em relação aos fatos julgados” quando a cena do tribunal é filmada: uma defasagem em relação aos processos, que
se dão na distância do tempo já passado, e em relação à presença da televisão
ou do cinema cujas narrativas devolvem ao presente aquilo que foi (2006:10).
De fato, o filme de Maria Ramos também produz essa continuidade entre
a cena do crime e a cena do tribunal ao reiterar a “identidade” do réu como
conceito genérico e permanecer longe do crime como singularidade. Assim é
que poderíamos ler nas imagens e nos diálogos de Juízo algo como: “vejam as
circunstâncias que levam os menores ao banco dos réus, a infância difícil, a
ausência da figura paterna”, etc.
Diante da inusitada dimensão lúdica das imagens de arquivo
No documentário de Andrea Tonacci, Serras da Desordem, podemos ler
aquilo que já foi denominado por Marcel Mauss, Giorgio Agamben e outros,
ambigüidade do sacro. Ao mostrar e reencenar a tragédia do indígena, Tonacci
cria um rito de reintegração daquele que estava proscrito, o homo sacer, o índio
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de etnia guajá Carapiru, que passa pela catarse de seu ser biologicamente poluído.3 Nesse ritual “de civilização” pelo qual passa o indígena pela segunda
vez – o reencontro com a família de camponeses que o acolhe, com a vizinhança local, com o indigenista Sidney Possuelo e esposa -, a ambigüidade
e o mal-estar são reinstaurados e reafirmados. Todos o tratam como um ser
ingênuo, infantil, uma criança. E o indígena reencena para câmera seu ser
banido (sacer), um corpo fora-da-lei dos homens, que precisa refazer sua dura e
longa errância fugindo da catástrofe que é a imagem de sua aldeia incendiada.
Durante dez anos, ele vagueia solitário pelo interior do Brasil, mas essa viagem
não o qualifica para uma reintegração social, política, para a superação de seu
banimento. Como dirá Agamben, “a novidade da biopolítica moderna é a de
que, a rigor, o dado biológico passou a ser, como tal, imediatamente político,
e vice-versa.” Ter nascido “índio” portanto é o que torna a vida de Carapiru
passível de ser descartada, matável.
Ao reencenar situações, reconstituir encontros, teatralizar no corpo
do próprio indígena um corpo sem fala, opaco, impenetrável, Tonacci faz
de Carapiru lugar de testemunho, daquele que escreve a história e que ao
mesmo tempo que a escreve, a destrói e a recria, dando início a um processo
potencialmente sem fim de escritura e disseminação, se consideramos que
o testemunho está ligado à cena do assassinato e à sua representação. Em
Serras da Desordem, o indígena dá testemunho (com o corpo) e é testemunha
daquilo que viu, ele é aquele que sabe por ter visto e vivido algo terrível, um
sobrevivente. Mas o que se julga em Serras da Desordem? É o passado na
sua espectralidade terrorífica, a história, o massacre da aldeia enquanto fato
consumado? É a dimensão do presente, da memória, do acontecimento enquanto possibilidade sempre presente (sim, tudo é possível, mesmo o horror,
nos ensinou Hanna Arendt)? É o próprio cinema quando reencena a memória histórica com o intuito de oferecer a ilusão do “passado perfeito” ou, ao
contrário, quando põe a história em cena, fabrica novos circuitos de sentido,
de modo a tornar a história diferentemente visível? O que se julga aqui? É o
cinema na sua relação com o arquivo, o documento, a história?
Em um certo momento de Serras da Desordem, há uma longa seqüência
de imagens de arquivo que reproduzem uma espécie de “narrativa clichê” da
história do Brasil. Vemos a construção da transamazônica, o desmatamento
na região, militares em Brasília durante o governo militar, o carnaval, trabalhadores em Serra Pelada, a Copa do Mundo, manifestações políticas, como
se Tonacci pretendesse fazer uma espécie de montagem paralela entre o tempo
em que o índio ficou errando solitário pelo país e os vários acontecimentos
públicos e políticos que se passaram sem que Carapiru provavelmente tomasse
conhecimento. Estas imagens são extraídas de documentários os mais diversos
como Jango, de Silvio Tendler, Linha de montagem, de Renato Tapajós, Fé, de
Ricardo Dias, Jornal do Sertão, de Geraldo Sarno, entre outros.
É, porém, no interior desta sequência, feita de episódios de reconhecimento geral, que brota uma outra série discursiva, um outro movimento, onde o filme instila a desconfiança no que até então se apresentava como uma narrativa
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possível - ainda que estereotipada, caótica e caricata - da nação brasileira. Este
movimento – de solapar a crença do espectador - é iniciado com a inserção de
um trecho de Iracema: uma transa amazônica (1974, Jorge Bodanzky e Orlando
Senna), onde o personagem Tião Brasil Grande, vivido pelo ator Paulo César
Pereio, está com a índia Iracema, personagem vivida por Edna de Cássia, uma
indígena encontrada pela equipe do filme durante as pesquisas para o filme. As
imagens do ator confundem e lançam a dúvida no que até então parecia uma
narrativa da ordem da verdade, do reconhecimento de todos. Ver Pereio com a
índia desmonta as imagens e os sons precedentes, como se Serras da Desordem
quisesse advertir o espectador das armadilhas que constituem o próprio campo
do cinema documentário, da montagem enquanto metodologia de trabalho,
da ficcionalização das imagens cotidianas do mundo.
Da representação documental que mistura imagens de poder, sobre o
poder, passamos para uma representação mais mágica, projetiva, ficcional,
onde a surpresa e a dúvida propõem uma outra experiência estética; de um
discurso genérico da nação, cuja carga simbólica impregna a história do país e
impõe uma concepção de identidade (o carnaval, o futebol, o governo militar),
nos deparamos com uma imagem de outra natureza, uma imagem que tira o
arquivo do uso petrificado e museificado para dar a ele um novo uso. Como
se, com esta inserção, o filme reencontrasse um “uso profanador” da imagem
documental no sentido de reintroduzir uma dimensão lúdica na relação com o
arquivo e o documento (AGAMBEN, 2007).
Ao inserir as imagens do ator - reconhecido historicamente por interpretar no cinema brasileiro personagens cujos traços agregam a irreverência, o
deboche, a ironia - somos convidados a interagir de uma outra maneira com a
figura do testemunho, aceitando também sua dimensão paradoxal que agrega
as evidências de que algo é verdade ao mesmo tempo que é da ordem do inacabamento, da criação, da exemplaridade possível e impossível. A mise-en-scène
do corpo indígena, exigida por Tonacci, parece cumprir um papel de justiça
histórica e de documento para a história.
Há ainda o problema da repetição que trabalha a imagem não para indicar o retorno do idêntico, como em Juízo, mas de uma repetição que restitui a
possibilidade justamente daquilo que foi, que o torna de novo possível. Dado
que a memória subjetiva, histórica, coletiva, não pode devolver-nos o passado
tal qual foi (ainda bem, pois seria o inferno), a memória restitui ao passado a sua
possibilidade que, no filme, se dá pelo ritual “de civilização” pelo qual passa o
indígena pela segunda vez no contato com o homem branco. Compreendemos
então que sim, tudo é possível, mesmo o horror (a infantilização do indígena)
que Tonacci nos faz ver.
Diante do jogo de cena cotidiano do corpo social
Em Jogo de cena, Coutinho constrói uma cena em que o teatro e o tribunal possam funcionar como duplos um do outro, duplos que exibem de modo
surpreendente o mundo das relações intersubjetivas, feito de negociação, imaginação, habilidades narrativas, autoconstrução de si. Jogo de cena monta um
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tribunal do teatro/cinema onde ator e personagem funcionam como espelhos
um do outro, reflexos que não só chacoalham e põem em xeque as evidências
do sensível como mostram “que toda mise-en-scène é um fato social, talvez o
fato social principal”, como sublinha Jean-Louis Comolli (FRANÇA, 2008).
Ao longo do filme, vemos personagens que poderiam ser atores e atores que
representam personagens. As três atrizes famosas – Andréa Beltrão, Marília
Pêra, Fernanda Torres - estão ali justamente para que o público possa avaliar e duvidar dos outros personagens. Seriam atrizes também? Teriam elas
vivido mesmo aqueles acontecimentos que narram? Porque se não podemos
saber se aquela personagem viveu mesmo aquele acontecimento, não podemos condenar, classificar moralmente, punir, julgar. Diferente de Juízo e de
Serras da Desordem, no filme de Coutinho a continuidade entre a cena do
crime e a cena da representação é rompida, colocando em xeque a identidade
do réu e tornando o espectador incapaz de julgar, embora seja convocado
permanentemente a fazê-lo.
Se a produção televisiva e audiovisual nas suas formas dominantes instalam o espectador em um lugar que procede dentro da lógica do controle,
da condenação e do hiper-voyeurismo diante das imagens do mundo e na
relação com o outro, Jogo de cena desmonta radicalmente esta normatização
ao mesmo tempo que opera a partir de um mecanismo comum ao espetáculo
na sua cotidianeidade: a exibição do corpo social como uma espécie de arena
onde o que está em jogo, o que se disputa, é a mise-en-scène mais convincente,
a confissão mais surpreendente, a autenticidade, a capacidade de produzir
empatia, afeto, cumplicidade.
Diferente de Juízo, o que se vê em Jogo de cena é que a repetição de uma
história, de um gesto, de uma dor, isto é, a busca pela literalidade da imagem
(“mas não era pra repetir o que ela disse?”, pergunta Fernanda Torres) não é
garantia da verdade e tampouco do retorno daquilo que foi, como em Serras
da Desordem. A literalidade das coisas, dos gestos, das falas, nos filmes de
Eduardo Coutinho, indica a recusa das sobre-significações e dos simbolismos,
uma recusa que se mostra sobretudo no minimalismo de sua proposta estética
e de sua economia narrativa (Lins, 2004). Em Jogo de cena, mais radicalmente
ao meu ver do que em seus outros filmes, esta dramaturgia do literal, a busca
por uma arte mínima, coloca o espectador numa relação de intensa teatralidade com a imagem, onde o palco, signo da arquitetura teatral por excelência,
a presença do ator, expressa pela presença das famosas atrizes, e o enquadramento frontal, escolhido deliberadamente para indicar um espaço centrípeto
no qual o ator e sua habilidade para “acender em cada espectador uma chama
cúmplice” são o que importa (BAZIN, 1991:148), todos os três estão ali para
produzir no espectador do filme a consciência aguda de sua própria presença e
da representação enquanto fato social e político.
Ao analisar a receptividade do documentário de Antonioni na China e
na França, o crítico Serge Daney alcança uma das questões cruciais da imagem
documental ao afirmar que um filme não está inteiramente determinado pela
causa que serve. “A imagem resiste. O mínimo de real que ela abriga não se
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Andréa França. Cinema Documentário e Espectador em Cena.
deixa reduzir assim. Há sempre um resto” (2007:85). Como se o próprio campo cinematográfico do documento fosse um terreno de conflitos e de agendas
onde se defrontam diferentes hipóteses sobre o mundo e diferentes modalidades de experiência. É que a concepção judiciária do documento não impede a
existência de uma prática múltipla do “documentário”, entre registro realista,
reencenação, capacidade testemunhal, montagem como método de desconstrução, decomposição e remontagem das imagens para expor o que se quer
examinar ou, ainda, demonstração sociológica.
Estes filmes, ao colocarem em cena e ativar o mundo da representação,
não só tornam visíveis as relações de poder/saber que envolvem o ato de mostrar/filmar, como também devolvem à condição do espectador das imagens
cotidianas um outro lugar, mais interrogante e menos ludibriado pela ilusão de
ocupar o lugar daquele que sabe, classifica, julga e decide. Menos predisposto
a se instalar no puro voyeurismo ou na completa indiferença, tão comum no
sensacionalismo das notícias, no sentimentalismo das telenovelas, na espetacularização dos programas de variedades televisivos, o espectador nestes filmes se
vê capturado por outras demandas que implicam ambigüidades, contradições,
repetições e afetos paradoxais.
Notas
Como revelam sobretudo os artigos de Jean-Luis Baudry, “Le Dispositif ” e “Efeitos
ideológicos produzidos pelo aparelho de base”, mas também o livro “Le significant
imaginaire”, de Christian Metz, entre outros.
1
2
Engrenagens modernas de poder que o autor chama de “rede de seqüestro”, p. 93.
Resumindo a complexa tese de Giorgio Agamben, o homo sacer ou homem sagrado
seria aquele que, tendo cometido um crime hediondo [no nosso caso, ter nascido
índio], não pode ser sacrificado segundo os ritos da punição e, no caso de ser morto,
o seu executante não será punido. O homo sacer é, portanto, este ser paradoxal
que cometeu um crime além de qualquer punição, indesejado pelos deuses e pelos
homens, fora da jurisdição de ambos, insacrificável, mas que se tornou, por assim
dizer, “matável”. Ver Homo Sacer.
3
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Andréa França. Cinema Documentário e Espectador em Cena.
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A 'mise-en-scène' do documentário
Fernão Pessoa Ramos
Fernão Pessoa Ramos é professor titular do
Departamento de Cinema da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). É autor de Mas afinal... o que é mesmo documentário? (SP, Ed.
Senac, 2008) e Cinema Marginal (1968/1974): a representação em seu limite
(SP, Brasiliense, 1987). Organizou História do Cinema Brasileiro (SP, Art
Editora. 1987) e Teoria Contemporânea do Cinema vols I e II (SP, Ed. Senac,
2004).
O conceito de encenação possui ampla bibliografia no cinema de ficção, mas nunca
foi tratado como central para a teoria do documentário. De origem francesa, aparece principalmente
nos escritos sobre cinema a partir dos anos 50, sob a denominação de mise-en-scéne. A geração da
nouvelle vague, antes de ascender à direção, ainda no exercício da crítica, encontrou na encenação
um conceito bastante útil para construir o novo panteão autoral no cinema. As definições do que é
mise-en-scène variaram na história. Recentemente, dois livros sobre o tema foram escritos, por
figuras centrais do pensamento em cinema: Jacques Aumont (Aumont, 2006) e David Bordwell
(Bordwell, 2008). Encontramos em Aumont um amplo retrospecto da evolução do conceito na
história do cinema, recuperando o pensamento francofônico sobre o assunto. Bordwell segue trilha
1
própria, aberta dentro de campo teórico da análise cognitiva, mas privilegia formulações que
estabelecem uma interlocução ativa com a bibliografia francesa. Algumas definições confluentes do
conceito nos dois autores chegam a surpreender. O conceito de 'mise-en-scène' deve muito ao olhar
para o filme do crítico André Bazin. Desemboca em seu sentido contemporâneo através da geração
dos 'jovens turcos' hitchcocko-hawksiens e dos cinéfilos chamados MacMahoniens. São eles que
abrem os olhos dos espectadores iniciados, dos cinéfilos leitores das revistas, para uma visão
estilística do cinema que vai além da elegia do 'cinema puro' das vanguardas dos anos 1920, ou da
valoração dos procedimentos construtivistas na montagem soviética. Dialogando de modo próximo
com a visão baziniana da "evolução" da linguagem cinematográfica, os 'jovens turcos' e os
MacMahoniens dão um passo além, rompendo a dimensão autoral para novos horizontes. Neles
teremos, como fundamento composicional, procedimentos de estilo que estão dentro do campo da
mise-en-scène. O que, então, compõe coração da estilística cinematográfica que, nos anos 1950,
sustentando um novo panteão autoral, consegue deixar para trás Serguei Eisenstein, Charles
Chaplin, David Griffith? A noção de mise-en-scène pode ser entendida de modo amplo, mas um
ponto deve ser realçado: os procedimentos de montagem, que definiam a essência da nova arte,
agora, encontram-se deslocados. Na mise-en-scène a constituição cênica da imagem tem destaque
num contexto próximo da cena teatral. Mas trata-se de cinema e é na distância para a cena teatral
que a nova estilística, ou o novo olhar para ela, se constitui. Afinal o cinema, além de encenar, narra.
O que está em jogo ao definirmos a especificidade cinematográfica a partir de sua
cena? O que vem a ser a cena cinematográfica? André Bazin, em ensaio extenso intitulado Cinema
e Teatro presente no livro O Cinema - Ensaios (Bazin, 1991), trabalha de modo instigante a
proximidade com a cena teatral, desenvolvendo uma complexa análise para determinar a dimensão
cinematográfica do espaço que se descola da cena do teatro. A idéia central é defender a concepção
de um cinema impuro. A encenação cinematográfica, conforme pensada pela fortuna crítica dos
anos 1950, envolve principalmente a matéria física que compõe a imagem/som no espaço, conforme
fundada pela presença fundadora da câmera e seu sujeito, no que será a forma da imagem advinda
da tomada. A cena fílmica define como cinematográfica a ação que nela transcorre (sua encenação),
ao dar densidade à dimensão física da cena: o cenário em estúdio; o cenário em locação; as vestes
que envolvem os corpos que agem (figurinos); a luz que os cobre, colore ou define (fotografia); os
movimentos de câmera que interagem com os movimentos dos corpos na tomada; as angulações,
escalas de plano, através das quais formas e corpos são compostos; entradas e saídas do campo da
2
imagem; a articulação da tomada em plano a plano; a incorporação da personalidade ficcional pelo
corpo do sujeito que age no espaço da tomada (a interpretação de atores).
No coração da encenação cinematográfica está a noção de ação de um corpo, e o que
acompanha e permite o desdobrar deste corpo em cena: o seu movimento e a sua expressão. A cena
fílmica serve assim para a ação e se diferencia da cena teatral (embora possa, de modo instigante,
aproximar-se) sendo ação cinematográfica. A ação na forma da imagem-câmera é trabalhada dentro
do quadro, que é composto e determinado pelo molde da máquina que chamamos câmera. Se o
primeiro elemento que chama a atenção deste 'molde' é a forma perspectiva, o que lhe dá absoluta
singularidade no universo das imagens é a 'tomada'. A encenação cinematográfica é inteiramente
determinada pela dimensão da tomada da imagem, em sua forma singular de lançar-se à
circunstância do transcorrer, para a fruição do espectador.
Ao afirmarmos que a cena fílmica é composta primordialmente pela ação, sendo
representada através dos parâmetros formais da fôrma da imagem-câmera (pensada como situação
de tomada), abordamos a noção de mise-en-scéne em seu veio mais profícuo. No que a imagem,
pelo fato de ser mediada pela câmera, transfigura a ação que transcorre na cena? Responder significa
achar a camada do estilo cinematográfico propriamente, trazendo elementos essenciais que definem
em seu núcleo a encenação do cinema. A começar pela dimensão particular do espaço agora
constelado, interagindo, de dentro para fora-de-campo e de fora-de-campo para dentro de cena. A
cena cinematográfica pode ser explorada como campo em continuidade com o espaço fora-decampo por onde a ação também circula. Este elemento abre-se para a montagem, por exemplo, nos
efeitos de raccord de movimento. A fôrma da câmera funda o espaço-fora-de-campo e articula por aí
a dimensão plano-a-plano da narrativa fílmica, através do olhar ou do movimento para fora. Além
disso, com a perspectiva acentuada de sua forma característica, a imagem-câmera compõe também a
profundidade de campo na cena. Os volumes da cena cinematográfica são realçados pela ação,
composta em sua entrada e saída de campo, permitindo a constituição da profundidade de campo em
camadas. Resumindo, podemos afirmar que, para a nova crítica que emerge no pós-guerra e nos
anos 1950, a mise-en-scène se constitui essencialmente através da ação e dos procedimentos
estilísticos que são inaugurados para realçá-la, tanto em termos plásticos (cenografia, fotografia,
figurino, movimentação de câmera), quanto em termos da ação propriamente (a "encenação" do ator
na cena, a interpretação), constituindo-se a partir da fôrma estilística da imagem-câmera, de modo
mais profícuo no plano-sequência e na profundidade de campo. A valorização de autores/diretores
3
como Alfred Hitchcock, Mizoguchi, Jean Renoir, Carl Dreyer, ou, no caso dos MacMahoniens,
Joseph Losey e Otto Preminger, segue os novos padrões estéticos construídos através da noção de
mise-en-scène. Um novo padrão de olhar é inaugurado, dando base à valorização de uma nova arte
que se abre em definitivo para a tecnologia do som, deixando o cinema mudo para trás.
Ao centrarmos a noção de mise-en-scène nos parâmetros imagéticos/sonoros
delimitados pela fôrma da máquina câmera (falamos em uma cena-câmera), não abordamos a carne
viva, o corpo em vida, que encarna necessariamente a ação cênica, constituindo o coração da
encenação cinematográfica. Mencionamos os elementos de estilo que emolduram a ação: a
fotografia, o figurino, o cenário estúdio, a locação, o enquadramento, a movimentação da câmera, a
profundidade do campo cênico, o fora-de-campo-cênico. Mas podemos ir além nesta linha,
buscando elaborar o sujeito em vida, o corpo, que sustenta a ação na tomada. A ação deste corpo,
juntamente com a expressão do afeto na face, pelo olhar, compõem, em sua conformação câmera, o
núcleo dos procedimentos que caracterizam a encenação fílmica. Bate aí o coração da cena
cinematográfica. A ênfase no que significa um corpo na tomada, constitui o umbigo da
especificidade da encenação documentária. É através das especificidades do movimento e da
expressão do corpo em cena que recortaremos o conceito de mise-en-scéne para articulá-lo com o
campo do cinema documentário. É na ação do corpo em cena, na ação do corpo-sujeito na tomada
(para e pela câmera, lançando-se, enquanto imagem, ao espectador e sendo por ele determinado),
que iremos atingir o coração da mise-en-scéne para fazê-lo bater dentro da estilística documentária.
Estamos nos referindo ao modo que o corpo do ator, ou da pessoa/personagem (no
caso do documentário), encarna a ação e ocupa o espaço enquanto medium (na forma da intriga
ficcional ou do argumento documentário). A figuração em imagem do corpo na ação fílmica
constitui, portanto, em seu âmago, a noção de mise-en-scène. O estilo é esse movimento no qual
corpo encarna ação. Na 'encarnação' está também a dimensão da presença do sujeito que sustenta a
câmera (o sujeito da câmera) no mundo, geralmente fora da tomada. O corpo que encena, encena
para um sujeito que chamarei de 'sujeito-da-câmera'. Trata-se também de um corpo no mundo mas
que sustenta a encenação para si, transfigurado que é pela máquina-câmera que incorpora. Ao ser
levado pela trama, ou pelo argumento, através dos procedimentos de estilo mencionados, o corpo
adquire espessura, defini-se corpo fílmico. Adquire personalidade, vira personagem, mas sempre 'a
partir de', e interagindo com aquele outro corpo que é o sujeito-da-câmera. É neste intervalo, nesta
interação, que define-se o campo da atuação cênica: um corpo âncora fundando a tomada
4
transfigurado pela máquina-câmera ('dirigindo' a cena, se formos nomear sua ação); e outro corpo
pleno de personalidade, carregado de personalidade até as orelhas movendo-se e expressando-se
para outrem (lançando-se pelo espectador para o sujeito-da-câmera).
O corpo do ator, mesmo se personagem esvaziado no cinema moderno, carrega
camada significativa de densidade psíquica. Corpo pleno de personalidade, o personagem move-se,
age, atravessa, a cena fílmica. É para ele, corpo do ator, que diretores constituem sua obra pessoal,
dando formas (e bolas) à dimensão autoral através da qual são reconhecidos. Este outro corpo que
sustenta a câmera e está atrás dela, o sujeito-da-câmera, irá comutar criativamente sua expressão
com a expressão do corpo que encena à sua frente encarnando uma personalidade. Personalidade
que não é a sua, nem a dele: é um personagem. A esta comutação chamamos direção de atores.
Compõe um dos principais elementos da encenação cinematográfica. Na encenação documentária o
movimento de 'direção' dá-se em outra sintonia, envolvendo diferentes formas de encenação no
documentário clássico e no documentário moderno.
O olhar do corpo (seu olho, propriamente), marca na estilística cinematográfica uma
forma expressiva recorrente. Como nomear o corpo que olha e mostra afetos ao encarnar o
personagem, como nomear o corpo que cria movimento, encarnando um movimento que não é o
seu, mas dele, personalidade do personagem? Ao pensarmos a mise-en-scène como forma
cinematográfica do movimento de corpos em cena, devemos estabelecer a distinção entre o ser que
sustenta o personagem da trama e o ser que está no mundo, propondo-se intencionalmente a esta
operação (ou seja: sustentar outrem, através da expressão de outrem, em seu ser atual). Como
expressar a 'encarnação' do personagem no cinema documentário? No caso da ficção, temos um
termo bem preciso para descrever essa operação: trata-se do trabalho daquele que chamamos ator,
ao qual damos o nome de interpretação. O corpo dotado de personalidade, composto em
personagem, não é um corpo qualquer, é o corpo do ator; e o trabalho de interpretação, ao
incorporar o personagem como outrem no mesmo, constitui seu ser atual, em cena, na tomada. O
corpo do ator abre-se como outrem (eu personagem) e não mais como mesmo (eu pessoa), para o
sujeito que, atrás da câmera, sustenta a composição da cena. Lança-se, e existe pelo espectador, já na
tomada, através desta cisão. Afeto e movimento marcam a expressão do ator, trabalhada pela miseen-scène. A expressão, através da face e dos membros, é uma camada que se deposita sobre o corpo,
quando este torna-se cinematográfico. O corpo do cinema, se podemos generalizar, distingue-se do
corpo da dança, da vídeo-dança ou das variações do movimento que encontramos em propostas
5
plásticas de vídeo-arte. O corpo que o cinema encena tem sempre muita personalidade, necessita, em
seu movimento, de beber personalidade para adquirir densidade. É um corpo tragado pelo olho e
pelo olhar, pois é nele que vemos a personalidade da pessoa. A imagem do olhar é a imagem
cinematográfica por excelência. Corpo de personagem, inserido em trama, expresso através de
procedimentos de estilo e formas narrativas que a história cristalizou.
Há um corpo que deve ser realçado nesta equação e que foge da composição linear da
cena: o corpo fora da cena que denominamos sujeito-da-câmera. Seu papel na narrativa
documentária adquire uma dimensão diferenciada. Corpo que sustenta a câmera, o sujeito-da-câmera
interage de modo bastante particular com os outros corpos em cena e com o espaço fora-de-campo.
No caso do cinema documentário, é na comutação corpo-sujeito-da-câmera/corpo-do-mundo, que
iremos localizar o nó ético que implica a definição de um estilo (Ramos, Fernão P., 2008: 33-39).
Na forma chamada 'direta', situamos o recuo deste sujeito na tomada; na forma mais interativa,
localizamos sua ação ao tencionar o mundo; e, na forma mais expositiva, surge construindo-se
previamente pelo argumento. É no embate entre sujeito-da-câmera e mundo, dentro da situação que
denominamos tomada (ou seja, na presença da câmera), que iremos localizar as dimensões do que
chamamos 'encenação'.
ENCENAÇÃO E DOCUMENTÁRIO
Para pensarmos a cena documentária deveremos ampliar semanticamente a noção de
cena, para fazê-la caber em estruturas que nem sempre foram caracterizadas como próximas do
conceito de mise-en-scène. A cena composta por cenário, figurinos e estúdio compõe uma parcela
considerável da tradição documentária, mas não está localizada, por assim dizer, no centro de sua
estilística, como ocorre no cinema de ficção. Devemos reconhecer que a exuberância estilística da
mise-en-scène no cinema de ficção, constitui-se de modo distinto no campo documentário. Ao
pensarmos a encenação documentária em seu núcleo criativo nos deparamos com a movimentação
do corpo na cena, devedor da natureza da imagem mediada pela câmera, naquilo que definimos
como tomada. A encenação documentária traz, portanto, em seu centro a noção de tomada.
Entendemos por tomada a circunstância da presença da câmera, e do sujeito que a
sustenta (o sujeito-da-câmera), no mundo e na vida. Presença no transcorrer do presente, no qual,
através da câmera e do gravador de som em funcionamento, a imagem/som é conformada sendo
6
lançada para (e pela) fruição do espectador. Se a dimensão da tomada existe, tanto no cinema de
ficção como na tradição documentária, é nesta última que determina de modo mais marcante a
dimensão estilística. Colocaremos, portanto, a dimensão da tomada como essencial para pensarmos
a encenação documentária. A própria noção de encenação tem sua determinação na forma-câmera e
na dimensão da tomada. É a partir da janela que a tomada abre, no modo de lançar-se da
circunstância presente para o espectador, que podemos pensar a especificidade da encenação
documentária. A encenação documentária tem, portanto, em seu centro irradiador a presença do
sujeito-da-câmera agindo na tomada.
O documentário é a forma narrativa privilegiada da tomada, no presente. É na forma
de uma presença que a tomada cinematográfica consegue fincar seu gancho no transcorrer e abri-lo
como uma lata, constituindo, na dilatação da abertura, o corte narrativo 1. Junto da abertura caminha
a estilística da encenação documentária, em seus diferentes tipos históricos. Quando a encenação na
tomada é explorada estilisticamente em sua radical indeterminação (ligando-se umbilicalmente ao
transcorrer presente em sua tensão de futuro ambíguo/indeterminado), a chamaremos de encenação
direta, ou encena-ação/afecção. Quando for refratária a indeterminação do tempo presente na
tomada, quando trabalhar com a encenação em estúdios, decupada em planos prévios por roteiro
(por exemplo), a chamaremos de encenação-construída. Os dois tipos de mise-en-scène
documentária, a 1)encenação-direta e a 2)encenação-construída, constituem as formas privilegiadas
da estilística narrativa documentária. Conforme o sujeito da câmera relaciona-se com o que lhe é
exterior - o mundo na tomada - constela-se, em linhas gerais, um tipo narrativo documentário.
Podemos localizá-lo, sem muito esforço, dentro da tradição documentária, conforme analisada nos
livros de história do cinema em seu desenvolvimento nos séculos XX e XXI, a partir da tradição
inglesa e dos filmes de Robert Flaherty. No chamado documentário 'clássico' anterior aos anos 60 e
no documentário contemporâneo, exibido em redes de televisão a cabo, por exemplo, predomina a
forma de encenação construída, dentro da narrativa clássica do documentário. No documentário
chamado de direto, ou verdade, em sua vertente moderna, temos a predominância da encenação
direta, aberta à indeterminação do transcorrer em interação com a qual constrói seu estilo. Cabe
agora detalharmos como estas duas formas de encenação na tomada interagem entre si e sobredeterminam a estilística cinematográfica documentária. Em outras palavras, podemos falar de uma
mise-en-scène documentária, colocando em seu centro a relação entre sujeito-da-câmera e mundo na
circunstância da tomada.
7
Ao centrarmos na dimensão da tomada a encenação documentária, estamos
desvinculando o conceito de encenação de sua carga semântica tradicional. Não se trata de querer
deconstruir a intensidade da tomada dizendo que é "encenada". As diferentes formas de presença na
tomada podem ser determinadas dentro do conceito de encenação, definindo-se documentário a
partir de recorte teórico presente na teoria do cinema com viés fenomenológico. A encenação
documentária, em sua tendência moderna que emerge nos anos 60, encobre um tipo de agir que é na
tomada, em forma similar a que nós somos no mundo. Mas nós não encenamos no mundo, em nosso
cotidiano, como um ator encena no palco de um teatro. Nós somos no mundo, segundo a
circunstância, em adequação ao que consideramos a essência da personalidade de nosso ser. Isto
seria também encenação? Se enceno o professor quando dou aula, se enceno o pai quando estou
com meu filho, se enceno o chefe quando distribuo tarefas, o conceito de encenação amplia seu
horizonte e confunde-se com estar no mundo. A questão que se coloca é: se todos encenam o tempo
todo, por que, naturalmente, também nós não encenaremos para a câmera? Este é o ponto com o
qual se depara o documentário com estilo direto/verdade, caracterizado como moderno, trazendo o
tipo de encenação que chamei de direta. O tipo de ação que se desenrola livre no transcorrer
indeterminado da tomada, face à câmera, é próprio ao estilo direto e pode ser decomposta em
encena-ação e encena-afecção. A encena-ação é uma encenação que não se constrói, em diferença
com a interpretação do ator. A encena-ação é a ação, é a intervenção que transcorre no mundo, no
coração da presença do sujeito na tomada, interagindo com o sujeito da câmera (e com o mundo)
como se interage com outrem. A encena-afecção é menos ação e mais afeto. É o sujeito no mundo
exprimindo afeto, se assim podemos nos exprimir. É a expressão marcada da personalidade no
corpo, principalmente nos traços da face e no olhar.
O corpo presente na tomada pode ou não encenar (no sentido da atuação cênica de um
ator, ou mesmo uma pessoa, incorporando uma personalidade/personagem na sua expressão), mas
não é este o aspecto que queremos delimitar ao mencionarmos uma mise-en-scène documentária. A
encenação documentária mostra um corpo na tomada, asserindo sobre si, sobre o mundo, ou
simplesmente vivendo, mas sempre sustentado por uma demanda de ação sobre este mundo
(educativa, em recuo, reflexiva, interventiva, modesta), trazendo em sua forma de ser na tomada
uma série de elementos estilísticos que o definem enquanto mise-en-scène. A mise-en-scène
documentária herda da mise-en-scène cinematográfica ficcional a tomada como espaço da cena, mas
constitui-se em estilo "ralo", se assim podemos chamar uma estilística diferenciada bastante
8
complexa. A articulação narrativa documentária centra-se na cena voltada para a presença de corpo
com voz que assere sobre o mundo.
A ENCENAÇÃO CONSTRUÍDA
A encenação construída está no coração da composição estética do documentário,
trazendo consigo a definição de objetivos e métodos que percorrem a primeira metade de século, até
os anos 1950. A encenação construída, em sua forma narrativa documentária, tem seu apogeu, e seu
principal núcleo teórico na escola inglesa documentarista, em geral sintetizada na figura de John
Grierson, seguido de perto por Paul Rotha. Tanto Grierson quanto Rotha escrevem extensamente
sobre a práxis documentária fixando formas e justificativas para sua intervenção no mundo. Fixam
uma ética documentária que irá orientar os objetivos de sua constituição narrativo-estilística e
também sua razão-de-ser. Quando falamos em sua razão-de-ser, dentro da forma de produção
financiada pelo Estado, estamos nos referindo às justificativas para emprego de dinheiro público em
cinema. Este é um tema recorrente nos escritos dos documentaristas ingleses. A encenação
construída define um tipo de documentário que alguns autores têm dificuldade em aceitar como tal2.
A presença da voz over é um elemento estrutural da encenação construída no
documentário, mas não ocupa por inteiro o modo clássico no documentário contemporâneo. A
presença do modo clássico no cinema contemporâneo possui transformações estilísticas
consideráveis, onde incluímos o uso de imagens de arquivo. As asserções não são feitas
exclusivamente através de voz over mas também através de entrevistas e depoimentos. A
encenação-construída do documentário clássico constitui a ação através de procedimentos que
alguns críticos excluem da tradição narrativa documentária. A construção do espaço envolve
utilização de cenários e estúdios construídos especialmente para o filme documentário. No modo
clássico, a ação não é representada por atores profissionais, mas pode ser encenada por amadores ou
pessoas que vivem no mundo a realidade descrita. É a partir de sua vida, a encenando, que
interpretam ou encarnam personalidades. O tipo ideal deste procedimento é a encenação das
personagens da família nuclear em O Homem de Aran (1934) . A fotografia no modo clássico pode
ser bastante sofisticada (vide documentarismo inglês) e sendo preparada com grande antecedência e
previsibilidade. Sobre-determina a marcação da cena e a movimentação dos corpos no espaço. A
tomada é planejada previamente através de roteiros, detalhando a decomposição plano a plano. A
9
decupagem das tomadas é submetida e determinada pela futura edição. Alberto Cavalcanti, em seu
manual de documentário, Filme e Realidade (Cavalcanti, 1957) dizia ser imprescindível para um
bom documentário não deixar nada ao acaso. Detalha no livro os procedimentos necessários para
este planejamento, centrais para a formação técnica do documentarista. A encenação-construída do
documentário costuma trabalhar a tomada através de preparação prévia e sistemática da cena,
envolvendo falas (a voz do documentário), movimentação dos corpos e da câmera, fotografia,
cenografia, roteiro, decupagem.
O grau da preparação prévia varia para cada filme e para cada época, mas o
importante é frisar que, na encenação-construída, a abertura da tomada para a indeterminação é
estreita. A encenação clássica não conhece a ambigüidade do transcorrer no plano, a indeterminação
como procedimento na composição do estilo. A intensidade da imagem que a indeterminação pode
produzir na tomada é explorada de modo esporádico (ver o caso emblemático de Nanook, o
esquimó/1922 ; O Homem de Aran/1934, ou Louisiana Story/1948 na obra de Robert Flaherty), não
se constituindo em pólo de composição imagética. A encenação construída, em seu primeiro
momento nos anos 1930, é voltada para enfatizar o estatuto artístico do documentário. Se o cinema
de ficção, nesta época, luta explicitamente para conseguir lugar no panteão das artes, em sua recémaberta sétima vaga, o documentário espera usufruir deste espaço para reivindicar lugar de
companheiro legítimo. Daí a preocupação de Grierson e seus colegas com a participação de artistas
reconhecidos, como Benjamin Britten, W. H. Auden, Alberto Cavalcanti, trabalhando na
composição da música, dos ruídos, da luz, da voz over poética, etc. Participação que tem como
objetivo conseguir para o formato documentário o novo status artístico que o cinema, no auge da
arte muda, acabava de conquistar, com o construtivismo de Eisenstein, o expressionismo, Charles
Chaplin, Friedrich W. Murnau, David W. Griffith, etc. Arte mais Catequese (formação cívica)
compõem o núcleo do que estou definindo por documentário clássico, dentro do qual a encenação
construída determina a forma de composição.
O estilo clássico e a cena construída estão presentes também na contemporaneidade.
Dentro da mídia televisiva, há diversos canais especializados na divulgação de documentários
(History Channel, Discovery, Animal Planet, BBC, GNT) nos quais a cena é articulada nos moldes
da encenação construída, fundada por John Grierson e Robert Flaherty nos anos 1930. Nos
documentários veiculados em canais como History Channel, a cena construída do documentário
ocupa a programação durante horas a fio. Em sua singularidade ao classicismo dos anos 30 do
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século XX, o modo clássico contemporâneo apresenta uma proliferação mais heterogênea de vozes,
abandonando a exclusividade do formato voz over. A presença de entrevistas e depoimentos de
"especialistas" é recorrente, assim como o recurso a material de arquivo. Amplas cenas históricas,
ou naturais (Discovery, Animal Planet, BBC), são recompostas, usando-se recursos, às vezes pouco
sofisticados, para construir cenas documentárias em série. Roma antiga, Idade Média, vida e morte
no Império Persa, os chineses de dinastias ancestrais, Cleópatra, pré-história, são temas recorrentes
na reconstituição, seja através de cenários, seja através de animação. A própria animação, usada de
modo largo pela tradição documentária (recentemente com Valsa com Bashir/2008; Ryan/2005;
Walking with Dinousaurs/1999, por exemplo) é um modo de encenação construída, de cena
planejada em avanço, decupada narrativamente para abrigar a enunciação de asserções. Em seu
formato dominante - seja na produção mais massificada do cabo, seja na produção com viés autoral a cena construída do documentário predomina hoje. Em alguns casos a presença recorrente de vozes,
que se articulam na indeterminação do transcorrer (a entrevista, o depoimento), tenciona a mise-enscène planejada/construída. Se o tom dominante no documentário contemporâneo possui viés
clássico, podemos localizar uma série de obras relacionadas com a encenação inaugurada pelo
Cinema Direto nos anos 60 que iremos chamar de encena-ação-afecção.
A ENCENAÇÃO DIRETA OU A 'ENCENA-AÇÃO/AFECÇÃO'
A encenação documentária sofrerá uma mudança radical no final dos anos 50 do
século XX, a partir de transformações tecnológicas (em particular, com a introdução do gravador
magnético de som direto sincronizado e a câmera portátil 16mm), ocorridas dentro do novo contexto
ideológico da contracultura. O viés educativo do documentário clássico griersoniano fica deslocado
e passa a ser conhecido como "cinéma de papa et maman" (como a ele se referem os jovens
francofônicos do Office Nationale du Film). A voz over é negada enquanto procedimento estético e
acusada de autoritária, entre outros adjetivos. "Don't ask, don't tell, don't repeat", ensinava Richard
Leacock ao se referir às técnicas do novo documentário direto. A câmera deve mover-se e, em um
primeiro momento, é pensada para compor a cena a partir de um "coeficiente mínimo de
intervenção". A estética "mosca-na-parede" faz muito sucesso e é sustentada como base ideológica
de um novo documentário que não quer mais educar ou prestar serviço. O 'coeficiente mínimo de
intervenção' decreta que o mundo dever ser isolado em paralelepípedo. O quadro ideológico do pós-
11
guerra, com André Bazin e a ética de seu realismo no horizonte, predomina no primeiro cinema
direto.A tomada e sua cena devem ter sua integridade respeitada, o que significa que devem ser
valorizadas em sua indeterminação. Procedimentos de estilo são pensados para se adequarem ao
transcorrer do mundo na tomada preservando sua ambiguidade, para tornar viável o exercício de
liberdade do espectador.
A cena do que estou chamando de documentário moderno será composta pela
encena-ação (pois aqui a encenação é apenas uma ação, uma atitude) ou a encena-afecção (pois
expressão de afeto, principalmente através dos traços da face e do olho). Na encena-ação/afecção a
cena documentária é composta, na tomada, canalizando a ação, ou o afeto, do corpo, em seu modo
de viver, transcorrendo no presente. Dois modos de encenação se delineiam no documentário
moderno. O dominante se constitui com o sujeito da câmera em ação, interativa ou em recuo,
conformando o mundo pelo movimento dos corpos no espaço. Este é o modo da ação. O segundo
modo é o afetivo, com o corpo em comutação com o sujeito da câmera expressando o afeto até o
limite do exibicionismo ou da obscenidade (no sentido que Serge Daney dá ao termo), através da
expressão. Uma pessoa sentada em frente da câmera (ver filmes recentes de Coutinho, por exemplo)
não age propriamente ao encenar sua personalidade para câmera. Expressa seu afeto pelo rosto, pela
entonação da fala. Este é o leque por onde a encenação da afeição se constitui. É o campo
propriamente da encenação-afecção. É campo dos "afetados": aqueles que exteriorizam o embate
cineasta-sujeito-da-câmera e mundo-pessoa, através da marcação da personalidade na forma da
exibição, ou do exibicionismo. A encena-ação-afecção é um conceito que mistura ação e afecção,
referindo-se a formas de presença do corpo em um tipo de tomada, marcada pela exploração
(estilística) da indeterminação do presente, na situação de tomada. Mais do que explorar a suspensão
da conclusão da ação, constela progressivamente uma personalidade que é figurada pela câmera. A
intensidade que emerge da tomada tem ligação com este constelar, improvisando um tipo na franja
do presente.
A encena-afecção e a encena-ação compõem, portanto, duas formas básicas do que
definimos como encenação direta presente no documentário moderno, mas ausentes, nesta maneira,
no documentário clássico. Distinguem-se assim da encenação-construída que fundamenta a tradição
documentária em outro eixo narrativo. Os dois tipos de encenação do documentário moderno
compõem-se através do corpo presente na tomada, em sua manifestação para e pelo espectador (que
olha pela a transparência da imagem-câmera e vê a tomada). Enquanto tipos, a encena-ação e a
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encena-afecção podem existir em sua pureza estrutural, mas geralmente surgem em formas
compósitas, dominadas por demandas autorais ou fatores históricos. Em seu tipo histórico, a
encena-ação surge no final dos anos 1950 com o aparecimento do documentário estilo direto, no
momento em que a modernidade se constela na tradição documentária. Modernidade que se
constitui no documentário por lidar e refletir uma tradição anterior, que chamamos de clássica,
fechada em si mesma, à qual a modernidade se contrapõe. Moderna, também, pois inaugura a
dimensão reflexiva, enquanto negação de uma tradição narrativa anterior. Corresponde a um
momento histórico no qual é proposto (e realizado), coletivamente, um novo documentário. A crítica
ao filme clássico, de corte griersoniano, funda uma nova cena na narrativa documentária a qual me
refiro como encenação direta, ou encena-ação/afecção. O prefixo 'ação/afecção' vem, no conceito,
afastado do conjunto 'encenação' por se tratar de ação ou afeto que, em princípio, não é encenada. É
na defesa da não encenação que podemos dizer que a cena é, literalmente, ence-nada e é neste viés
que o documentário moderno funda sua crítica ao modo clássico. Por não encenação entenda-se a
encenação presente na 'estética da mosca-na-parede', conjunto de procedimentos centrados no recuo
do sujeito que sustenta a câmera, enquanto fundamento ético da representação. Deixamos claro que
o não encenar da encena-ação/afecção refere-se a uma flexibilização da ação e do afeto face à
câmera, num viés diferencial da encenação do ator no filme de ficção, por exemplo. Na realidade, a
encena-ação é ence-nada, pois não há nada de encenação, conforme a identificamos no cinema de
ficção. O fato de ser ence-nada não exclui, evidentemente, que a ação dos corpos, na tomada do
cinema documentário direto, seja flexibilizada pela presença da câmera. Apenas chama atenção para
o modo diferencial de encenação que é a encena-ação.
Podemos falar em um primeiro documentário moderno, que insiste no recuo da
posição do sujeito-da-câmera no campo ético, seguido por um segundo momento diferenciado. Na
verdade, vemos na sequencialidade também simultaneidade, entre os modos que não são
propriamente 'tipos ideais'. Neste segundo momento, avançando nos anos 1960, o novo
documentário volta-se para a dimensão da interação do sujeito-da-câmera/mundo, realçando a
dimensão do confronto (não mais em recuo) e a conformação reflexiva deste confronto, através de
procedimentos de desconstrução narrativa. A cena documentária moderna, determinada pela
encena-ação-afecção, possui, portanto, dois momentos claros: o primeiro ainda voltado para o
campo ético do pós-guerra, marcado pela noção de ambiguidade e de liberdade; o segundo, já mais
contemporâneo, incorpora a demanda de interatividade e reflexividade, questões centrais para a ética
13
documentária contemporânea. Distinguimos, portanto, dois tipos de encenação próprios ao
documentário moderno: 1) a encena-ação-afecção em recuo na qual o sujeito-da-câmera atua
recuado, com relação ao corpo que encena (mas nunca fica oculto); e 2) a encena-ação-afecção
interativa/reflexiva, na qual o sujeito-da-câmera interage de modo ativo com o corpo na tomada,
através de entrevistas/depoimentos, ou através do movimento que confronta e age sobre o mundo.
Neste segundo momento o mundo não é apenas outrem, mas também o outro, o radicalmente outro
em sua dimensão cultural ou de classe. A encenação moderna abre uma caixa de pandora na qual a
ética do documentário debate-se até hoje. A dimensão reflexiva (ou desconstrutiva) é instaurada
quando a movimentação do corpo na cena revela o estatuto do sujeito-da-câmera, enquanto sujeito
que enuncia (a mostração da câmera e de seu sujeito pela imagem é apenas um destes
procedimentos, talvez o mais comum). Certamente a dimensão reflexiva da narrativa documentária
pode ir além da cena propriamente, envolvendo, por exemplo, procedimentos de montagem
desconstrutiva. Montagem e encenação não são elementos distintos na narrativa, estando
relacionados.
A demanda ideológica da reflexividade significa modificação no contexto cultural
dentro do qual se afirmou inicialmente a estilística do direto. O quadro existencialista do pós-guerra
vai ficando para trás e o novo documentário passa a dialogar com a demanda desconstrutiva do
pensamento pós-estruturalista emergente. Em entrevistas, e na própria obra, podemos sentir os
cineastas progressivamente incorporando de modo positivo valores como reflexividade e
interatividade. Uma nova ética está no horizonte. É ela que, de um modo geral, perdura até os dias
de hoje. No novo quadro, se a encena-ação for construída (e ela sempre o é, para o documentário em
sua vertente reflexiva) os passos devem estar bem claros para espectador. Não só a construção da
encenação pode e deve ser desconstruída, mas também a construção da encena-ação deve seguir o
mesmo caminho. A encena-ação-afecção traz do primeiro momento do 'direto' as potencialidades da
indeterminação da presença do corpo e sua voz na tomada. As entrevistas/depoimentos tornam-se
recorrentes no segundo momento do direto, do mesmo modo que o cineasta entrando em ação com a
câmera. A atração pela indeterminação radical da tomada, que funda o estilo do cinema direto,
transforma-se no momento reflexivo de novo campo ético. Não existe ambiguidade na presença do
sujeito-da-câmera na tomada, existe ação, intervenção, embate, movimentos que o sujeito-da-câmera
acompanha e provoca. Existe afecção, na expressão da face do corpo na entrevista/depoimento.
Existe afecção, no olhar do mundo para a câmera e seu sujeito. O afeto e a ação sendo ence-nados,
14
não necessitam ser ambíguos, mas apenas jogar limpo com o espectador (novo ponto ótimo para a
ética documentária), mostrando o percurso da enunciação. A construção é a própria essência da
encena-ação na tomada e por isso não pertence ao campo valorado da ética. Para ser valorada
positivamente deve ser desconstruída, ou seja, deve ser revelada na estrutura de seu modo
enunciativo, para o espectador. A ausência da desconstrução, em um filme como O Homem de Aran,
serve, por exemplo, para que George Stoney, em How the Myth Was Made (1978), estabeleça o eixo
crítico ao campo ético do documentário clássico (como se Flaherty pudesse adiantar, em seu tempo,
demandas éticas próprias ao modo da encena-ação).
Procuramos, neste ensaio, determinar dois momentos éticos/estilísticos do
documentário moderno correspondendo a formas diferenciadas da mise-en-scène documentária: a
encena-ação-afecção em sua forma mais recuada, ou em sua forma mais interativa/reflexiva. Na
determinação do estilo do documentário moderno, a encenação foi definida pela introdução de novas
tecnologias nos anos 60, que permitiram que a fala e seu corpo surgissem colados na franja da
indeterminação do transcorrer presente. À encenação moderna contrapusemos a cena do
documentário clássico, designada pelo conceito de encenação construída. Nesta, a encenação é
prevista em avanço e decomposta em unidades com continuidade de ação em tomada, formuladas
previamente em roteiro. A partir do adiantamento, do enquadramento do movimento futuro, a ação
compõe-se nas unidades de imagem-em-movimento que chamamos plano. A encenação clássica não
possui condições tecnológicas para abraçar de forma mais decidida o transcorrer do mundo em
presente. Articula a ação no modo que chamo encenação construída. A construção da ação no modo
clássico ocorre sem que a preocupação desconstrutiva esteja no horizonte. Trata-se de ponto que
deve ser frisado e que costuma levar a incompreensões analíticas. A crítica contemporânea sente
dificuldades para se transpor ao modo clássico e analisá-lo de dentro, desde seu ponto de vista. Nele,
o saber que a narrativa possui é pleno, sem que a má-consciência pela potência do saber, e seu
exercício, exerça sombra. O conceito de encenação é pertinente para trabalharmos com a evolução
histórica do documentário nos séculos XX e XXI, abrangendo o conjunto de valores e
procedimentos de estilo que definem uma forma narrativa com traços estruturais. Aspectos centrais
da tradição documentária podem, portanto, ser analisados a partir da noção de ação (ou afecção) na
encenação (ou na encena-ação), dentro do que estamos chamando de cena documentária.
15
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Aumont, Jacques (2006). Le Cinéma et la Mise-en-scène. Armand Colin, Paris.
Bazin, André (1991). Teatro e Cinema. In Bazin, André. O Cinema - ensaios. Brasiliense, São
Paulo.
Bordwell, David (2008). Figuras Traçadas na Luz - a encenação no cinema. Papirus, Campinas.
Cavalcanti, Alberto (1957). Filme e Realidade. Editora Casa do Estudante, Rio de Janeiro.
Comolli, Jean-Louis (2008). Ver e Poder - a inocência perdida: cinema, televisão ficção,
documentário. Editora UFMG, Belo Horizonte.
Ramos. Fernão Pessoa (2008). Mas afinal... o que é mesmo documentário? Editora Senac, São
Paulo.
Ricoeur, Paul (1994). Tempo e Narrativa. Campinas, Papirus.
16
1
Sobre tempo presente e narrativa ver as interessantes colocações de Paul Ricoeur em Tempo e Narrativa (Ricouer:
1994).
2
É o caso de Jean-Louis Comolli em seu livro Ver e Poder - a inocência perdida: cinema, televisão
ficção,documentário (Comolli, 2008).
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
CRER, NÃO CRER, CRER APESAR DE TUDO:
a questão da crença nas imagens na recente produção documental brasileira1
Consuelo Lins2
Cláudia Mesquita3
Resumo:
Análise de quatro filmes da produção documental brasileira recente que discutem
as relações entre ficção e documentário e ampliam as possibilidades criativas do
cinema brasileiro, problematizando uma questão pouco debatida na criação
audiovisual contemporânea: a crença do espectador diante das imagens do mundo.
Juízo (2007), de Maria Augusta Ramos, Serras da Desordem (2006), de Andréa
Tonacci, Santiago (uma reflexão sobre o material bruto) (2007), de João Salles, e
Jogo de Cena (2007), de Eduardo Coutinho colocam em cena, cada um a seu modo,
situações audiovisuais nas quais a “impressão de realidade” e a crença do
espectador na “realidade”das imagens, pilares da tradição do documentário, são
colocadas em questão.
Palavras-Chave: documentário brasileiro; ficção; espectador.
Quatro filmes recentes da produção documental brasileira nos permitem retomar
reflexões em torno de questões que assombram a prática e a teoria do documentário desde a
invenção dessa forma de cinema nos anos 20. São eles Juízo (2007), de Maria Augusta
Ramos, Serras da Desordem (2006), de Andréa Tonacci, Santiago (uma reflexão sobre o
material bruto) (2007), de João Salles, e Jogo de Cena (2007), de Eduardo Coutinho. Apesar
de grandes diferenças temáticas e formais e de particularidades próprias a cada um dos quatro
filmes, são obras que dissolvem distinções tradicionais entre ficção e documentário e
ampliam as possibilidades criativas do cinema brasileiro, problematizando uma questão
pouco discutida na criação audiovisual contemporânea: a crença do espectador diante das
1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “<insira aqui o seu GT>”, do XVII Encontro da Compós, na
UNIP, São Paulo, SP, em junho de 2008.
2
Escola de Comunicação/UFRJ ([email protected])
3
Curso de Cinema/UFSC ([email protected])
1
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
imagens do mundo. Curioso, e também sintomático, que por caminhos diversos e sem que
houvesse intenção dos diretores, três diretores consagrados e uma documentarista tenham
realizado filmes que nos obrigam a nos relacionar com situações audiovisuais novas, a
renunciar ao desejo de controle sobre o que é ou não real, a nos deparar com o fato de que a
fronteira entre o mundo e a cena inexiste em muitos casos; e que, mesmo assim, não
deixamos de nos envolver com o que vemos.
Juízo
Juízo parte dos depoimentos dos meninos infratores no Tribunal da Infância e da
Juventude do Rio de Janeiro em audiências que desenham pouco a pouco um retrato
desolador de uma questão crucial do Brasil contemporâneo: o número de meninos pobres que
opta pelo crime na falta de qualquer outra perspectiva de vida. Adolescentes que mal
conseguem se expressar, fora da escola ou repetentes, grandes demais para as séries que
estudam, alguns já com filhos. Acusados de assalto a mão armada, tráfico de drogas, roubo,
homicídio, eles aguardam o julgamento no Instituto Padre Severino. O filme segue o
princípio do cinema direto, registrando situações e personagens sem quaisquer intervenções
da equipe, nos moldes dos filmes anteriores de Maria Augusta Ramos. De certo modo,
situações em tribunais do mais diversos tipos (pequenos delitos, violência doméstica, crimes)
são particularmente interessantes de serem filmadas segundo a metodologia da observação.
Os documentários de Frederick Wiseman e Raymond Depardon nos mostram isso: juízes,
promotores, defensores públicos, acusados e familiares estão tão concentrados no que ocorre
em cena que esquecem parcialmente a filmagem – embora uma das “protagonistas” de Juízo
contrarie esta afirmação. Trata-se de uma jovem juíza que intensifica, diante das câmeras, um
papel que certamente é o dela naquele tribunal: o de mãe repressiva e autoritária mas
preocupada com os destinos desses menores desajuizados, dirigindo-se a eles em uma
linguagem que ela crê mais próxima deles e quase imprópria ao cargo que ocupa.
O que foge à regra do cinema direto neste filme é o fato da diretora ter usado atores
nos depoimentos para repetir falas que foram ditas por menores filmados de costas durante as
audiências. O filme nos adverte disso logo no início: “A lei brasileira proíbe a exposição da
identidade de adolescentes infratores. Nesse filme, eles foram substituídos por jovens de três
2
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
comunidades do Rio de Janeiro habituados às mesmas circunstâncias de risco social.”
Portanto, Juízo articula na montagem planos dos meninos reais filmados de costas com
“contra-planos” ficcionais de jovens que falam para a câmera; contra-planos encenados,
interpretados, dirigidos. Maria Augusta Ramos fez questão de não usar atores já com alguma
experiência ou formação, tais como os que participam de grupos como Nós do Morro ou Nós
do cinema; grupos que trabalham com jovens de comunidades pobres das periferias e favelas
do Rio de Janeiro, aos quais as produções do cinema brasileiro contemporâneo têm recorrido
na busca de atores que encarnem com mais realismo personagens com o mesmo perfil social.
O que é muito perturbador nessa escolha é o fato de que esquecemos em muitos
momentos a informação de que os rostos que vemos na imagem não são os dos infratores informação que no entanto está bem clara nos créditos iniciais - em função do “efeito de real”
que tais imagens carregam. Mesmo os planos desses “atores” feitos fora do Tribunal, nas
dependências do Instituto Padre Severino ou nas comunidades onde os acusados moram, no
final do filme, adquirem uma “verdade” rara nesse tipo de procedimento. Em Justiça, por
exemplo, o filme funciona muito bem em todas as seqüências filmadas durante as audiências,
mas perde força quando encena, mesmo com personagens reais, situações em outros locais
registrados pelo filme. Ou seja, a diretora não faz uso de atores em Justiça e mesmo assim as
cenas fora do Tribunal estão longe de ter o impacto que essa opção possui em Juízo. É
mesmo difícil usar a palavra “ator” para falar dessas intervenções, tamanha a possibilidade
desses jovens estarem no lugar dos acusados. Trata-se do mesmo horizonte social e cultural,
de uma dificuldade de sobreviver semelhante, de uma incapacidade de se expressar comum a
todos eles.
A reversibilidade de papéis faz nossa percepção vacilar e imprime ao filme uma
camada suplementar de sentido. Não se trata em absoluto de um procedimento visando
apenas atender a um voyeurismo do espectador que quer sempre ver mais, ou de uma
facilidade para a compreensão do filme. Maria Augusta Ramos consegue transformar um
recurso de mise-en-scène, inerente às condições de produção do filme, em uma opção
reveladora de um risco real que ameaça a maioria dos jovens pobres das grandes cidades
brasileiras.
3
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Serras da Desordem
Já Serras da Desordem põe em cena a trajetória de Carapiru, índio nômade da tribo
Avá Guajá (do Norte do Maranhão), sobrevivente de um massacre contra seu grupo familiar
promovido em 1978 por jagunços contratados por fazendeiros – provavelmente interessados
em explorar uma das maiores reservas de recursos naturais da Amazônia legal. Durante dez
anos, Carapiru perambula pelos confins do Brasil Central, sendo descoberto pelo INCRA e
pela FUNAI em 1988, num lugarejo no oeste da Bahia, distante dois mil quilômetros de seu
ponto de origem. É levado para Brasília, onde seu "aparecimento" provoca comoção nacional
e cobertura melodramática da imprensa, intensificada pelo episódio que se seguiu: o índio
jovem trazido do Maranhão como intérprete é seu filho, também sobrevivente do massacre,
criado durante alguns anos pelos mesmos fazendeiros que ordenaram a matança. É essa
história que Andrea Tonacci se propõe a contar, numa ficção documental que cobre quase
trinta anos da história do Brasil.
No percurso incomum de Tonacci, Serras da Desordem pode ser visto como um
filme-síntese. A partir de meados dos anos 70, o cineasta, célebre pela realização do notável
longa ficcional Bang Bang (1971), envolveu-se com uma série de projetos indígenas,
utilizando inclusive equipamentos de vídeo pioneiros no Brasil. Dirigiu Conversas no
Maranhão
(filmado em 1977 mas só concluído em 1983), resultado de uma longa
permanência entre os índios Canela, que viviam na época o processo conflituoso de
demarcação de suas terras. Já nos anos 80, com Sidney Possuelo (sertanista que é personagem
de Serras da Desordem e um dos responsáveis por garantir a volta de Carapiru a seu povo em
1988), lançou-se na aventura de filmar a expedição de primeiro contato com os Arara, povo
nômade atingido pela construção da Transamazônica. Os documentários resultantes (três
episódios para TV, um deles inacabado) são notáveis, entre outros aspectos, por quase não
mostrar os Arara ("objetos" da busca dos brancos que fugiam tenazmente da expedição de
contato).
Para contar a história de Carapiru, Serras da Desordem mobiliza uma
heterogeneidade significativa de materiais, sem purismos: um vasto arquivo de filmes que
inclui matérias telejornalísticas, filmes de ficção e documentais (como Iracema, Uma Transa
Amazônica (1974), de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, e A Cabra na Região Semi-Árida
(1966), de Rucker Vieira); entrevistas sobre o passado e sobretudo encenações, tendo o
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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
próprio Carapiru e pessoas que conheceu no percurso como atores, fazendo os próprios
papéis 20 anos antes; além de cenas que documentam o presente da aldeia Avá Guajá, onde
vive Carapiru. A heterogeneidade de materiais corresponde a uma considerável diversidade
de qualidade e textura das imagens, pela convivência de diferentes formatos de captação
(Mini DV e 35mm, colorido e preto e branco), mas também pelos diferentes formatos
originais das imagens de arquivo mobilizadas.
O filme é encenado pelos protagonistas da história real, o que provoca uma
permanente ambigüidade entre documentação do presente e reconstituição do passado, uma
instigante contaminação ficção-documentário, derivada sobretudo desta "convivência de
temporalidades", como afirmou em entrevista Ismail Xavier (2007, p. 3).4 Já que Carapiru,
protagonista da história real, interpreta seu próprio papel no passado, duas camadas
constantemente interagem: Carapiru é ator, agente da ficção (nas encenação do passado), e é
"ele mesmo", objeto do olhar “documental”do filme (no presente). Cada uma das cenas de
"reconstituição" implica também em reencontro (bem presente) com aqueles que Carapiru
conheceu 20 anos antes, em sua jornada pelo Brasil central. Em cada situação, portanto, no
sertão da Bahia ou em Brasília, estamos sempre a nos perguntar, a ajustar o canal: Carapiru
está fazendo seu papel no passado ou está sendo ele-mesmo no presente? A ambigüidade,
permanente, entre pessoa e personagem, tem como efeito o reforço da alteridade de Carapiru,
a indevassabilidade de sua experiência, nunca "revelada" ou acessada por inteiro. Como
afirmou Xavier, Serras da Desordem "tem conexão clara com os trabalhos anteriores de
Tonacci, marcados pela vontade deconstruir uma experiência em que o espectador é
convidado a acompanhar o processo e ir montando o jogo, cujas regras só vão ficando claras
à medida que o filme avança, como já acontecia com Bang Bang".
Santiago
Em Santiago, Salles coloca em prática uma idéia que vinha defendendo com afinco
nos últimos anos: a produção de documentários no Brasil deve se voltar para temas próximos
à vida dos diretores e não apenas filmar o “outro”. Salles talvez se referisse, indiretamente, ao
filme iniciado por ele em 1992, e não concluído, sobre o mordomo que trabalhou com a
família Moreira Salles por quase trinta anos. Em agosto de 2005, decide se confrontar com as
4 Entrevista a Silvana Arantes. Caderno Ilustrada, Folha de São Paulo, 03/02/2007.
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nove horas do material filmado e finaliza Santiago, que adquire um sub-título - uma reflexão
sobre o material bruto - e uma outra densidade. É um filme que contém muitas histórias: um
documentário sobre um mordomo, mas também um carta filmada dirigida aos irmãos
compartilhando memórias, um “ensaio” fílmico sobre como fazer (ou não fazer) um
documentário e uma homenagem póstuma ao mordomo, que morreu poucos anos depois da
filmagem.
Santiago é de fato um personagem e tanto. Conjuga habilidade narrativa com histórias
incomuns de vida: nascido na Argentina, começou a trabalhar com uma família aristocrática
em Buenos Aires, contraindo desde então uma paixão por tudo o que dissesse respeito à vida
de reis e rainhas, a nobreza em geral, real ou imaginária, pouco importava. É com fascínio
por esse mundo que conta as histórias dos grandes jantares e festas na mansão da Gávea, as
tarefas que envolviam a arrumação da casa, as mesas, as flores, a orquestra, os nobres e
distintos que as freqüentavam. São pequenas narrativas que desvelam aqui e ali a dureza do
trabalho contínuo, a dificuldade de uma vida privada, a submissão do mordomo a uma ordem
estabelecida.
O documentário, contudo, está longe de ser apenas isso. Salles decide também expor
no filme, implacavelmente, o que percebeu ao rever o material de 1992: o quanto se manteve
distante de Santiago ao longo dos cinco dias de filmagem, o quanto impôs a ele uma idéia
prévia de filme, o tanto que não entendeu o que de fato importava naquele reencontro. Uma
compreensão que se deu, de certa maneira, tarde demais. Santiago morreu e o que foi filmado
não poderia ser mudado.
Mas é dessa sensação de “tarde demais” que Salles extrai as condições para finalizar o
filme. Retoma erros, mal entendidos e incompreensões cometidas por ele ao longo da
filmagem de 1992 e os evidencia, sem meias palavras, sem subterfúgios, de forma cruel com
ele mesmo, quase como um castigo. Exibe truques e manipulações efetuadas 13 anos antes e
afirma na narração: “é difícil saber até onde íamos em busca do quadro perfeito, da fala
perfeita”. Desmonta imagens e sons e adverte o espectador: desconfiem do que seus olhos
vêem. Radicaliza de tal maneira que pouco a pouco um mal-estar nos acomete porque a
imagem que fazíamos do diretor nos seus filmes anteriores - gentil e atento com aqueles que
filma - toma direções inesperadas.
Nos deparamos com um diretor por vezes déspota, irritado, apressado, incapaz de
estabelecer uma efetiva interação com Santiago, que tenta a seu modo acertar e fazer aquilo
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que o diretor quer. “Santiago vai de novo, não olha para a gente não. Não olha!” diz Salles
em uma das seqüências, ou ainda: “Fala logo que estamos com um pouco de pressa”. É
preciso dizer que raras vezes na história do documentário um cineasta ousou explicitar de tal
maneira segredos que ficam, na maior parte dos casos, para sempre perdidos no material não
usado dos filmes.
A montagem extremamente hábil insere várias repetições de uma mesma fala do
mordomo, mantendo hesitações e silêncios, intensificando o desconforto tanto do personagem
quanto do espectador. São momentos em que opressões vividas pelo mordomo ao longo da
vida parecem se manifestar de forma mais contundente, e é isso que constata Salles, ao dizer,
perto do final do filme: “Durante os cinco dias de filmagem eu nunca deixei de ser o filho do
dono da casa e ele nunca deixou de ser o nosso mordomo”.
Mas o filme tampouco se limita a essa dimensão confessional. Salles vai
gradualmente ao encontro de Santiago e revê o que na época não o havia interessado: as 30
mil páginas de histórias da nobreza de todos os tempos pesquisadas em bibliotecas e
transcritas pelo mordomo ao longo de mais de meio século. Uma tentativa quase insana de
impedir que aquelas vidas desaparecessem da memória. Salles traz para o filme fragmentos
desses escritos, assim como comentários pessoais de Santiago encontrados em meio aos
textos. Refaz, a seu modo, o gesto do ex-mordomo e retira Santiago do esquecimento a que as
imagens de 1992 o haviam condenado. Santiago é, acima de tudo, a narrativa perturbadora e
comovente de um aprendizado e de uma transformação de um cineasta no confronto com ele
mesmo em um outro momento da vida. Transformação “sutil e sem alarde”, como diz Salles
no final do filme, e que ficou clara no reencontro com as imagens de Santiago.
Jogo de Cena
Podemos pensar inicialmente que a experiência do espectador de Jogo de Cena é
bastante próxima daquela produzida por outros documentários de Eduardo Coutinho. Afinal,
o essencial não parece ter mudado. O filme nos coloca novamente diante de pessoas contando
histórias de vida ao cineasta, no estilo minimalista que marca a obra de Coutinho desde Santo
Forte (1999). Só que, dessa vez, são todas mulheres, e o que as une é o fato de terem
atendido a um anúncio nos classificados de um jornal carioca convidando-as a participar de
um documentário. Por que só mulheres? Porque falam com mais facilidade das suas dores e
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alegrias, diz Coutinho; e também porque, para ele, mulheres são o que ele não é, o “outro”
que ainda busca em seus filmes. Conversam com o diretor em um palco de teatro, e não mais
em uma “locação” real - nem favela nem prédio. Falam de trabalho, cotidiano, relações
afetivas e especialmente dos filhos. Histórias de amor, cuidado e dificuldades, perda, dor e
sofrimento, mas também de enfrentamento e recuperação moral; histórias de filhos criados, a
maioria deles, sem pais por perto. Jogo de Cena poderia ser visto como uma espécie de
transposição de Tudo sobre minha mãe, de Pedro Almodóvar, para a forma documental.
O filme tem muitas camadas e essa é a primeira delas. O título Jogo de Cena sugere
outra. Coutinho convidou atrizes para interpretar mulheres com quem já havia conversado e
faz uma articulação inesperada entre esses vários depoimentos. Dissolve distinções entre o
que é encenado e o que é real e produz mudanças ao longo do filme na forma do espectador
se relacionar com ele . Se diante das atrizes conhecidas somos tentados, inicialmente, a
julgar seu desempenho, Jogo de Cena nos retira desse lugar e propicia um outro tipo de
experiência: a de compartilhar com atrizes talentosas e reconhecidas angústias e dificuldades
inerentes à encenação de personagens reais. Andréa Beltrão provoca em muitos momentos
um curto-circuito comovente entre suas sensações e as da personagem. Fernanda Torres
interrompe algumas vezes sua atuação, diz a Coutinho que parece estar mentindo e explicita a
dureza de interpretar uma personagem real: “a realidade esfrega na sua cara onde você
poderia estar e não chegou”. Marília Pêra interpreta uma personagem extremamente emotiva
mas esbarra numa atuação distanciada. Jogo de Cena exibe essas variações na forma de atuar
e leva o espectador a compreender a arte de representar como algo instável, inseguro e
exposto a riscos – extremamente próximo do documentário, tal como concebe Eduardo
Coutinho.
Em relação às atrizes e personagens desconhecidas, as questões são outras. Mulheres
anônimas narrando momentos íntimos de vida para a câmera de Coutinho adquirem, a nossos
olhos, a força da verdade, reforçando de imediato nossa crença na imagem documental. Mas
pedaços de histórias já narradas começam a voltar em uma frase, em um rap, em um relato,
instilando-nos pouco a pouco a dúvida a respeito do que vemos no filme: uma pessoa real
relatando sua história ou uma atriz desconhecida representando?
Autêntico, verdadeiro, espontâneo, adjetivos que sempre acompanharam a recepção
dos documentários do diretor, mesmo que à revelia de Coutinho (que sempre enfatizou a
dimensão de fabulação e “encenação de si” contida nos depoimentos de personagens reais),
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são estilhaçados um a um. A incerteza se espraia pelo filme todo, atinge famosos e anônimos,
e não sabemos ao final a quem pertencem as hesitações e os silêncios de Andréa Beltrão e
Fernanda Torres – se às atrizes ou às personagens que reinterpretam. Perdemos o controle
sobre o que é ou não encenado e os indícios de que o filme está nos “enganando” nos fazem
entrar, paradoxalmente, ainda mais no jogo proposto. Nos emocionamos duas vezes com o
mesmo caso, já sem querer saber qual das mulheres é a “verdadeira” dona da história. Até
porque não há garantia possível: as duas podem ser “falsas”, atrizes fazendo o papel de uma
terceira pessoa que não está no filme. Assomam as narrativas como foco de interesse do
filme, lugar de dramatização e organização do vivido, de produção de “verdades”, ditos e
episódios exemplares – narrativas “reais” cujas formas dramáticas parecem fonte inesgotável
para a ficção. Um filme sobre histórias, mais do que sobre personagens.
Imagens, apesar de tudo5
O que esses quatro documentários têm de comum, e de praticamente inédito na
produção atual brasileira, é a capacidade de perturbar a crença do espectador naquilo que ele
está assistindo, de destilar dúvidas a respeito da imagem documental e de fazer com que essa
percepção seja menos uma compreensão intelectual e mais uma experiência sensível
provocada pela forma dos filmes.
Acreditar, não acreditar, não acreditar mais, acreditar apesar de tudo: essas são
questões que agitam o cinema desde o início, nos lembra o crítico francês Jean-Louis
Comolli, em oposição à produção televisiva dominante que impõe ao telespectador a ilusão
do lugar do controle, de quem sabe, julga e decide. Espetáculos de realismo, telejornais,
telenovelas, publicidade, programas de variedades respondem a todas as supostas demandas
da “audiência” com explicações, informações, reiterações, eliminando ambigüidades,
paradoxos, contradições. O telespectador é incessantemente assegurado e esclarecido a
respeito do que vê na imagem, procedimento que faz ele acreditar ser “mestre do jogo”,
predispondo-o a sofrer manipulações de todo tipo justamente por considerar tarefa fácil se
situar em meio às imagens do mundo.
5
Esse sub-título retoma o titulo do livro de G. Didi-Huberman, Images malgré tout, que constitui de certo modo
o pano de fundo da conclusão que fazemos aqui.
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Já um certo tipo de cinema faz da incerteza e da oscilação entre a crença e a descrença
a condição essencial do espectador. Uma instabilidade que o obriga a se confrontar com os
seus limites e perceber que “a posição de controle é insustentável, tanto no cinema quanto na
vida” (Comolli, 2004, p. 418). Uma premissa simples descartada pela maior parte das
produções midiáticas talvez por conter possibilidades de evidenciar para o espectador o fato
de que ele pode, sim, ser manipulado a todo instante, de que não há absolutamente nada nas
imagens que garanta sua veracidade ou autenticidade, de que tudo pode ser simulado, e que
saber disso já é, no mínimo, um bom ponto de partida para compreender melhor o que se
passa a nossa volta.
O que não quer dizer que a imagem não valha nada: ela pode mentir, falsificar,
simulando dizer a verdade, mas pode também ser associada a outras imagens e outros sons
para fabricar experiências inéditas, complexificar nossa apreensão do mundo, abrir nossa
percepção para outros modos de ver e saber. As imagens são frágeis, impuras, insuficientes
para falar do real, mas é justamente com todas as precariedades, a partir de todas as lacunas,
apesar de todos os riscos, que é possível trabalhar com elas. Os quatro filmes aqui em questão
produzem experiências e reflexões a partir da forma como são montados; é na articulação das
imagens no tempo da projeção que oscilações, incertezas, sensações, reflexões e aprendizados
se dão, é na duração que a impressão de realidade e a crença do espectador tão caras à
tradição do documentário são colocadas em questão.
São documentários que levam o
espectador a se perguntar: o que eu vejo nessa tela? Realidade, verdade, simulacro,
manipulação, ficção, tudo ao mesmo tempo? Questões que, segundo Comolli, pertenciam
apenas ao cinema, mas que, diante de um mundo-espetáculo, se transformaram em questões
que dizem respeito a todos nós.
Bibliografia
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2003.
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“Documentário
Brasileiro
Contemporâneo”,
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CV
Cláudia Mesquita é professora do Curso de Cinema da Universidade Federal de Santa
Catarina. Doutorou-se pela Universidade de São Paulo, com tese no campo de estudos do
documentário brasileiro. Atua como pesquisadora e realizadora em filmes documentais, tendo
integrado as equipes de Saudade do Futuro (Cesar & Marie-Clemence Paes, 2000), Peões
(Eduardo Coutinho, 2004) e Em Trânsito (Henri Gervaiseau, 2006). Escreve regularmente
artigos sobre o cinema documental e é uma das organizadoras do forumdoc.bh (Festival do
Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte).
Consuelo Lins é documentarista e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Doutorou-se pela Universidade de Paris 3, com tese sobre documentário centrada na obra do
cineasta americano Robert Kramer. Trabalhou com Eduardo Coutinho em Babilônia 2000 e
Edifico Master e realizou, entre outros filmes, Leituras (2005), curta metragem filmado com
câmera de telefone celular exibido em vários festivais e premiado como melhor curta
metragem brasileiro no Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (2006). Pósdoutorado pela Universidade de Paris 3 (2005) em torno da produção documental mais
marcadamente subjetiva. Escreve regularmente artigos sobre a criação audiovisual
contemporânea e publicou em 2004 “O documentário de Eduardo Coutinho: televisão,
cinema e vídeo” pela Jorge Zahar Editor, já na segunda edição.
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CULTURA Tema: A Era do Híbrido Pesquisador: Francis Vogner dos Reis Sinopse O programa se volta a filmes contemporâneos que trabalham as fronteiras entre ficção e documentário, tendência cada vez mais recorrente na nova geração de cineastas brasileiros. Esse hibridismo entre a encenação e o real será discutido em filmes recentes como O céu sobre os Ombros, de Sérgio Borges, Juízo, de Maria Augusta Ramos, Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho e Morro do Céu, de Gustavo Spolidoro. Apresentação dos filmes e das questões Juízo (Brasil, 2007), de Maria Augusta Ramos No documentário Juízo, a diretora Maria Augusta Ramos filma julgamentos e internações de menores infratores. Como o Ministério da Justiça não permite que se filme ou se fotografe menores que cometeram crimes, na maior parte das sequências do filme a diretora usa atores não profissionais (que vivem em situação de risco como os menores infratores em questão) para interpretar os personagens reais. As cenas dos julgamentos (em que os menores infratores estão de costas) são reais e, por mais que a performance dos promotores, da juíza e do advogado parecem artificiais, são os momentos do filme tirado diretamente realidade. Já quando os adolescentes aparecem frontalmente em primeiro plano (seja respondendo a juíza ou no cotidiano da instituição correcional), não temos os menores autênticos, mas os atores que trabalham de maneira bastante convincente. Jogo de Cena (Brasil, 2007), de Eduardo Coutinho Em Jogo de Cena entrevistas são realizadas para, supostamente, recrutar mulheres com histórias interessantes para participar de um filme. As entrevistas são realizadas em um palco com o plano tomado de cima do palco, porém voltado às cadeiras do teatro. O diretor Eduardo Coutinho mistura relatos reais e interpretações ficcionais visando retirar verdades particulares de cada uma delas. A experiência com a encenação e o documentário até então, não era coisa inédita nos filmes do diretor, só que Jogo de Cena é o mais radical, problematiza a relação da ficção com o documentário de maneira particular. Morro do Céu (Brasil, 2009), de Gustavo Spolidoro O diretor gaúcho Gustavo Spolidoro realiza em Morro do Céu uma ficção filmada como um documentário. Atores não profissionais, câmera solta que visa mais o naturalismo do documentário do que o da ficção cinematográfica tradicional. Spolidoro filma adolescentes do interior gaúcho e, apesar de se basear em um roteiro previamente escrito, o filme não deixa de ser uma observação documental das pessoas, dos costumes e da vida de adolescentes em uma localidade longínquo e desconhecida do Rio Grande do Sul. O Céu Sobre os Ombros (Brasil, 2010), de Sérgio Borges O diretor Sérgio Borges venceu o Festival de Brasília em 2010 com este filme é um importante representante da nova geração do cinema brasileiro. Borges dá um tratamento documental a uma ficção que mostra o cotidiano de três personagens: uma transexual que se prostitui e faz mestrado sobre sexualidade, um rapaz adepto da religião hare krishna fanático pelo atlético mineiro e um africano, filho de portugueses que escreve livros que jamais termina. O filme possui interessantes efeitos de realidade e autenticidade típicos do documentário, como, por exemplo, a própria concepção dos personagens. Os personagens são baseados na vida dos próprios atores que os encarnam. O híbrido entre documentário e ficção é o cerne deste filme. Material Anexo Documentário, realidade e ficção Guilherme Castro1 Resumo Ao realizador de cinema documentário, um dos temas mais necessariamente freqüentes, embora compartilhado com todas as formas artísticas de mimese, é a relação da obra com a realidade. Olhamos em volta, observamos o que acontece, dirigimos nossa câmera para uma parcela do mundo tal como se nos apresenta uma situação, as pessoas que moram numa casa, seus gestos, movimentos e falas... o som de um carro que passa, uma sirene toca... Buscamos, no registro da realidade, descobrir o drama humano ali presente, para o qual será necessária uma narrativa estruturada. É esse o trabalho do documentarista. Mas a realidade lhe escapa. No texto A poesia do filme, o filósofo e crítico de arte Herbert Read já dizia que, o cinema produz seus efeitos mediante imagens projetadas. Essas imagens, lançadas na tela, estão, de imediato, associadas com as imagens armazenadas na memória do espectador e, através de suas disposições e associações, fluem as emoções de surpresa, encanto, prazer, orgulho ou tristeza que sentimos nas salas de espetáculo. (Grünnewald, 1969, p. 42). Isso é o cinema, e disso não foge o documentário. Ou seja, apesar de as imagens do documentário terem sido buscadas em situações reais, são representações para as quais pretendemos, sem garantia de êxito nem controle, significados. Ora, nisso, são muito mais semelhantes do que diferentes o documentário e a ficção. O crítico Enéas de Souza assim relacionou cinema e realidade: Se o cinema é um olhar sobre o homem no mundo, a apreensão do real não pode modificar este mundo, o pensamento do diretor deve partir do mundo e desvelar e descobrir as formas que este universo nos apresenta. A câmera, o corte, a montagem, para realizarem uma captação exata, um olhar puro sobre o mundo, devem restituir o material nos seus movimentos naturais... o mundo brota pela câmera do cineasta.(Souza, 1974, p. 48). O mundo real, com sua lógica natural, é a referência, o material do cinema. Porém, o mundo real precisa ser descoberto, recriado e revelado pelo diretor através da câmera. Enéas de Souza nos fornece uma boa definição de cinema: um olhar através da câmera sobre o homem no mundo. Por meio do ator (personagem) no cenário filmamos o homem no mundo. Esse conceito vale também para o filme documentário: por meio da pessoa (personagem) na locação, o mesmo homem no mundo. O material de trabalho é sempre a experiência humana (como no teatro, na literatura etc.), mediada pelo olhar através da câmera, o que origina os dois elementos técnicos intrínsecos ao cinema: o plano e o corte. Plano e corte são as unidades básicas conceituais da narrativa cinematográfica. Plano, aquilo que enquadramos pela lente da câmera, e que foi registrado num pedaço de filme, numa fita ou num arquivo, num decurso contínuo de tempo. Corte, a separação entre dois planos diferentes, através do qual podemos mudar de enquadramento, dentro da cena, ou de um lugar e de um tempo a outro, entre as cenas, no filme. Ambos elementos são a matéria de trabalho da montagem: a disposição de fragmentos (planos) gerando novos significados. Como ensinou Sergei Eisenstein: dois elementos concretos justapostos formam um terceiro abstrato, como no haicai japonês: “Corvo solitário, galho desfolhado, véspera de outono” (Eisenstein, 2002, p. 37). A câmera enquadra o que veremos e omite o que não veremos – narrar é administrar informações (essa é a melhor pista para se entender a importância do fora de quadro). O olhar através da câmera seleciona as informações, construindo planos a serem montados, dando sentido ao real do mundo, talvez tornando-­‐o mais evidente e compreensível. Pudovkin, fundando a teoria do cinema, já esclarecia: “A montagem é a força criadora de realidade fílmica... a natureza se limita a fornecer-­‐nos, simplesmente, a matéria-­‐prima utilizável por aquela. É esta a única afinidade entre a realidade e o filme” (Pudovkin, p. 29). Apesar de estar no centro da compreensão sobre o que é o cinema, a distinção entre o real e a narrativa nem sempre é bem reconhecida – e esse é um problema central em documentário. Ora, não raro nos deparamos com um tema – que nada mais é que uma parte do drama do homem no mundo: “Tema é aquela área do 'dilema humano’ que o autor escolheu para explorar sob uma variedade de ângulos e de maneira complexa, realista e plausível” (Howard e Mabley, 1993, p. 97) – e pensamos: daria um belo documentário, mas também um roteiro de ficção, ou uma narrativa literária. Por que não? É apenas uma escolha, pois o material de ambos, filme documentário e filme de ficção, é a referência do mundo real, a experiência humana no mundo, o drama humano por nós percebido, enquadrado, decifrado, recriado, narrado, dramatizado. Sim, documentário também é dramatização. Embora muita gente ainda pense que não. Miguel Faria Jr.2, diretor do documentário Vinícius, disse em entrevista3 que seu filme guarda uma surpresa ao fim, tem drama e, por isso, “não é documentário”. O diretor revela duas coisas: é capaz de fazer um documentário contemporâneo, cheio de qualidades, e tem dificuldade de assumir que fez isso; talvez por preconceito; talvez por ainda não reconhecer, como muita gente boa, o valor dramático que pode e deve ter o documentário. Esse valor narrativo e dramático do documentário está na origem do gênero. Um dos pioneiros do cinema documentário, John Grierson propôs e buscou uma narrativa que fosse além do mero registro de imagens e sons reais. Seguiu a crença da "verdade do documentário" (que o documentário é a expressão da verdade), mas pensou, ao modo da época, que isso só seria possível com narrativa. Grierson cunhou por primeiro o termo "documentário" e lhe deu um conceito, em 1926, que não apenas é o mais conhecido como ainda está repleto de significado: “Documentário é o tratamento criativo da realidade”. Partindo dessa formulação, Brian Winston, professor e documentarista britânico, disse o seguinte: “Escrevendo 70 anos atrás a respeito de filmes sobre viagens e curtas-­‐metragens de natureza, Grierson afirmou: ‘Estes filmes descrevem e até expõem, mas só raramente revelam um senso estético’”. O mesmo poderia ser dito de grande parte do que se vê hoje. Para Grierson, os documentários deveriam ser muito mais: deveriam passar do plano da descrição do material natural para arranjos, rearranjos e remodelação criativa do mundo natural. (Mourão e Labaki, 2005, p. 22). Winston lembra que, ao se realizar um documentário, não se deveria pretender simplesmente registrar a realidade, como uma cópia fiel. Não apenas porque o intento é impossível (como veremos adiante), mas também porque a melhor maneira de tratar a realidade em cinema é usar as ferramentas do cinema para isso, ou seja, num filme, organizamos as coisas de modo tal a propiciarmos ao espectador a leitura pretendida -­‐ embora cada um entenda a seu modo o filme assistido, sabemos. Quer dizer, ao descobrirmos nosso tema e nossa história, buscamos a melhor maneira de contá-­‐los. Nesse ponto, podemos colocar de modo bem simples e sem erro: fazer cinema é contar uma história em imagens e sons; seja quando temos atores interpretando falas e ações roteirizadas, seja quando mostramos aspectos do mundo com personagens reais. Sobre o que é nosso filme? Eis a primeira e mais importante pergunta, a qual precisamos voltar em cada cena, em cada escolha de enquadramento, em cada corte da montagem. O cineasta David Mamet defende que o ponto essencial ao se realizar uma cena é saber sobre o que ela trata, qual a intenção ao produzi-­‐la. De fato, podemos verificar hoje que muito do "virtuosismo" que ataca nossas produções – ajudando a encarecê-­‐las – têm origem na incerteza ou falta de precisão dramática. Concisão e objetividade, em função de uma profunda clareza do tema, são bons caminhos a serem buscados nos filmes documentários ou ficcionais. Há 70 anos, Pudovkin já compreendera: O tema condiciona a ação, dá-­‐lhe cor, e, assim, é claro, inevitavelmente dá cor àquele conteúdo plástico, cuja expressão é a matéria do diretor. O diretor apenas poderá submeter o tema ao trabalho de criar sua forma unificadora quando o compreender, organicamente. (Pudovkin, p. 45). Podemos acrescentar também que, em cinema, a melhor maneira de abordar um tema, mesmo que a intenção seja "realística", quase sempre, é não se atendo exatamente ao aspecto formal e à ordem aparente das coisas. Porém, já dissemos, o cinema (e a arte) nem sempre percebeu bem a diferença entre a realidade e a narrativa. Por quanto tempo os pintores ficaram obrigados a perseguir a intangível reprodução fiel do mundo? E quanto se levou para que a fotografia fosse aceita como arte, não mera técnica de reprodução? Nesses pouco mais de 110 anos de cinema essa questão tem perdurado. A ilusão "da verdade" da imagem reproduzida é, de fato, um dos pontos fortes do cinema. A ilusão de que a imagem não mente. Essa "força" do cinema ajudou a dar tamanho crédito e eficiência, por exemplo, às propagandas de guerra do século XX, e seguem servindo ao tele-­‐jornalismo cujas posições não são explicitadas. Por isso, no documentário, a "verdade da imagem" é tema central, pois ainda há muita confusão. Se "focamos o mundo real, mostramos a realidade", essa é a falsa premissa. Muita gente pensa que faz isso, grande parte do público tende a acreditar numa intrínseca verdade da imagem documental. Filme do real? Ou realidade do filme? Porém, precisamos afirmar claramente que, no cinema, e também no cinema documentário, a realidade é uma construção, cuja validade é dada pelos pressupostos estabelecidos no filme. Eis o tema da verossimilhança, sobre o qual muito já se falou; um conceito central da ficção. Mas o que é verossimilhança e como se aplica isso ao documentário? Quando vamos ao cinema, na maioria dos casos é essa a proposta, vivenciamos o estado de sonhar acordado, ou seja, "viajamos" na história que está sendo contada. É similar, por exemplo, à experiência de ler um bom romance, quando aguardamos a hora do dia em que podemos abrir o livro e "voltar ao lugar" onde se passa a narração, ao "convívio" dos personagens, para compartilharmos as emoções vividas por eles. Quando isso ocorre? Quando o público acredita na verdade da narração. Mas de qual verdade se fala? Seria a verdade do real? Alguém conhece a verdade do real? Esse assunto é para a ciência, ou para a filosofia. No cinema, trata-­‐se da verdade do filme. Por entender tratar-­‐se da verdade interna, costumamos dizer: "acreditamos que o super-­‐homem voa". Porque essa é a premissa estabelecida, habilmente construída pela narrativa em questão. Sim, a obra precisa assemelhar-­‐se à vida, mas dentro da lógica e coerência construídas pela narrativa. Se fosse apenas "semelhança" com a vida, o super-­‐homem não poderia voar. No teatro antigo grego havia a hoje ilustrativa figura do Deus Ex-­‐Machina. O Deus que descia na cena, baixado por guindastes, intervindo no drama e resolvendo os destinos. Volta e meia verificamos em roteiros mal resolvidos esse tipo de recurso a safar o protagonista na hora mais difícil, cuja conseqüência é tirar o espectador da viagem, fazendo com que se quebre a crença na verdade do filme. Hoje, sabemos que as boas soluções dramáticas precisam ser engendradas dentro da lógica da narrativa e de seus personagens, dentro daquilo que foi estabelecido e trabalhado. Em outras palavras, as soluções não devem ser gratuitas. A lógica interna do filme, se foi bem construída, é que confere a verdade do cinema. "Aceitamos acreditar" que aquilo é "real" simplesmente porque estamos no cinema e foram usados códigos adequados para indicar que essa é uma regra (quem dá as regra é quem faz o filme) necessária para acontecer a vivência da sala escura, o "sonhar acordado", e aceitamos as regras, pois "valerá a pena". Suspendemos provisoriamente a incredulidade. Porém, o público aceita apenas o que foi estabelecido. O super-­‐homem voa, a namorada dele não; ela não poderá voar para escapar dos perigos e ele deverá voar quando for necessário. As naves espaciais de Guerra nas estrelas fazem coisas incríveis, os brinquedos de Toy story têm vida... Mas tudo isso não torna os filmes menos ou mais verdadeiros, porque verdadeiro é o tanto de humanidade – de drama humano – presente naquelas situações narradas. Sabemos que os temas dramáticos se repetem sempre: ritual de iniciação, amor, esperança, busca da felicidade, fidelidade, fortuna etc., ou seja, são questões profundamente arraigadas na psique humana. Michel Chion, escrevendo sobre roteiro de cinema, diz o seguinte sobre a repetição dos temas dramáticos: [...] as histórias, decididamente, são sempre as mesmas. Há quem se aflija com isso. Quanto a nós, alegramo-­‐nos ao ver aí o sinal de uma coesão da experiência humana através do espaço e do tempo. Como as crianças, gostamos das histórias repetidas, e quase chegaríamos a negar a possibilidade de ‘histórias novas’... Em compensação, indefinidamente aberta e renovável é a arte da narração, a arte do conto. (Chion, 1989, p. 2). Ora, verdadeiro é o filme que representa com verossimilhança esses dramas; em outras palavras, verdadeira é a história bem contada. “Platoon na verdade não é nem mais nem menos realista do que Dumbo. Ambos simplesmente contam bem a história, cada um à sua maneira. Em outras palavras, é tudo faz-­‐de-­‐conta. A questão seria: até que ponto isso vai ser um bom faz-­‐de-­‐conta?”. É o que diz o contemporâneo David Mamet, falando de cinema ficcional, mas que, pelo já exposto, serve para qualquer tipo de cinema, para qualquer obra que busca representar a realidade, que é uma parte do drama humano (Mamet, 2002, p. 26). Então não basta dizer que o documentário é o filme do real. Porque o filme de ficção pode até ser mais real que um documentário. Podemos imaginar um documentário todo mentiroso; ao menos não é isso que faria com que o filme deixasse de ser um documentário. Conhecemos filmes de ficção "bem realistas". Ou seja, a verdade não é o critério diferencial do documentário. "O mundo como ele é?" Disso tudo, uma questão sempre provocou calorosas discussões sobre a essência do documentário: seria possível captar o mundo como ele é? O filme documentário trabalha com sons e imagens extraídos do mundo real. Mas isso o torna um documento da verdade? Ou melhor, podemos dizer com certeza que o filme documentário é expressão do real? O estar diante dos fatos é uma ilusão em dois sentidos: nem o cineasta pode garantir que apreendeu no filme a realidade, uma vez que são sempre possíveis outros enquadramentos; muito menos o filme deve pretender ser a realidade, pois se trata, em qualquer hipótese, de uma representação. Há, em toda narrativa, constantes e fundamentais escolhas estéticas e ideológicas, mesmo que implícitas, mesmo que remotas. Um filme documentário será sempre uma das leituras entre infinitas possíveis. Na prática, o fazer documentário é operar seguidas escolhas sobre o que vai entrar ou não no filme, e sobre qual tratamento será dado a esse material escolhido. Porque se apresentam, a todo o momento, novas possibilidades, personagens, fatos e locações. O critério para as decisões do realizador será a clareza sobre a história narrada e o conceito formal estabelecido – aquilo que chamamos de guarda-­‐chuva conceitual. Assim, a idéia central é que o filme documentário não é a realidade, simplesmente porque não pode ser, e sim uma construção. Ou, em outras palavras, o filme documentário não é mais "realidade" do que o filme de ficção. O cinema será entendido como realista se apreender e narrar bem, com verossimilhança, parte significativa do drama humano. Mas construção, narrativa... cinema, em qualquer caso. Você escolhe virar a câmera para este lado, e não para o outro, por isso, cheio de subjetividades, autoral. Há o famoso paradoxo "no filme documentário o diretor tem mais liberdade de criação do que no filme de ficção". Como?, há quem se surpreenda, "se um trata do mundo real, e o outro é uma criação ficcional?" Vejamos: no documentário, roteiro mesmo só o da edição, pois antes disso o roteiro deve ser bastante precário, embora também importante; o trabalho de decupagem do diretor também deve acontecer predominantemente no set; e a montagem de fato constrói o filme, ainda mais que na ficção. Na realização do documentário a criação é mais livre, mais aberta aos caminhos dramáticos que vão surgindo e sendo apreendidos. Aí reside o potencial e a complexidade do gênero. Nisso, a questão que se apresenta é que não existe uma realidade pronta para ser filmada, mas uma realidade em construção na frente da câmera, pois o que filmamos hoje amanhã vai estar diferente, ou com outra equipe vai ser diferente: um documentário jamais será repetido. A racionalidade que explica o mundo em conceitos fechados, ainda tão em voga, apesar de todas as conseqüências, não serve mais de modelo aos discursos do cinema documentário. O mundo apresenta uma profusão de realidades complexas, surpreendentes, repletas de verdades contraditórias; aceitar isso e lançar-­‐se ao desafio de investigá-­‐las e narrar o material encontrado, não como cientista, mas como cineasta (contador de histórias), esse é o desafio do documentarista. Diferentes posturas Por que é tão importante essa questão da realidade e da verdade no cinema ficcional e documentário? É a discussão que sempre se fez em documentário, desde o seu surgimento, e, em função desse entendimento, há diferentes posturas a serem tomadas. Esconder a natureza de parcialidade do discurso, ou assumir uma “voz da verdade”? Revelar o mecanismo, ou apenas retratar pessoas naturais? São algumas questões centrais ao trabalho do documentarista, de muita atualidade, e cujas soluções oferecem possibilidades bem criativas, pois tudo é possível em cinema. Ao fim das contas, a questão será: fizemos ou não um bom filme? É por isso que Eduardo Coutinho, por exemplo, revela-­‐se e a equipe, como a dizer: “Isso é um filme, feito por alguém que está escolhendo o que e como filmar. Isso não é realidade, é cinema”. Eduardo Coutinho apreendeu com profundidade esses conceitos em seus filmes: A verdade da filmagem significa revelar em que situação, em que momento ela se dá – e todo o aleatório que pode acontecer nela.... É importantíssima, porque revela a contingência da verdade que você tem... revela muito mais a verdade da filmagem que a filmagem da verdade, porque inclusive a gente não está fazendo ciência, mas cinema. (Lins, 2004, p. 44). A rigor, trabalhar com essas questões ajuda a tornar o filme interessante. Mas "ter verdade em" é diferente de "ser a verdade sobre". Consuelo Lins explica o processo de produção de Theodorico, imperador do sertão, dirigido por Coutinho para a Rede Globo, no fim dos anos 1970, e que inaugurou muitas das características do trabalho do cineasta: [...]se ‘de perto ninguém é normal’, outra formulação também verdadeira é: ‘de perto todo mundo é normal’. Tudo é e não é, como diz Guimarães Rosa: ‘Quase todo mais grave criminoso feroz sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-­‐de-­‐seus-­‐amigos!’. O perturbador é justamente encontrar no latifundiário, no ditador, no monstro, aquilo que o aproxima de nós. ‘A complexidade, para mim, está nisso’, diz Coutinho, ‘e não na outra frase, ‘de perto ninguém é normal’. ‘De perto todo mundo é normal’ é tentar encontrar as semelhanças por baixo das diferenças’. (Lins, 2004, p. 23). Em 2005, o longa A queda provocou críticas de alguns por ter humanizado Adolf Hitler. Porém, o cineasta realizou, nessa obra de ficção, exatamente o mesmo que propugna Coutinho em seus documentários. Seria de se perguntar: se não fosse humano, como teria acontecido o nazismo? Ao se aproximar de temas ou personagens reais podemos (é um bom caminho a seguir) deixar que ele se mostre, com suas contradições, vicissitudes, mentiras, verdades, devemos evitar ao máximo os esquemas prontos, preconceituosos, clichês. Se não, teremos personagens rasos, tal qual na ficção, quando o cineasta quer falar por seus personagens. Ora, buscamos a verdade do filme, não um filme da verdade. Personagens "reais" Tem se afirmado que as pessoas filmadas em um documentário representam na frente da câmera, e que isso é um problema, pois diminui o gênero. Precisamos ter claro que no cinema – que é uma representação de parcela do drama humano – o núcleo central são os personagens criados pelo plano e montagem cinematográfica. Salvo num tipo de filme onde os entrevistados são técnicos a falarem de objetos alheios de si, o documentário se interessará por pessoas que tenham algo a revelar de subjetivo. Assim, na frente da câmera, mesmo no filme documentário, registramos personagens. A própria presença da câmera e da equipe de filmagem do documentário faz com que a pessoa se torne personagem. Em filmes em que se escondeu a filmagem (cujo exemplo é Da janela de meu quarto: sem saberem que estão sendo focados, dois garotos brincam sob a chuva), os personagens não representam para a câmera, mas foram igualmente criados, pois enquadrados por ela. Não é difícil observar que as pessoas reais, no seu dia-­‐a-­‐dia, sempre estão representando um ou outro personagem inventado para si próprias. Quer se dizer com isso que os seres humanos não têm um tal grau de autoconhecimento e transparência. Por que então se esperaria que o personagem do filme documentário abandonasse suas máscaras, revelando-­‐se com total transparência na frente da câmera? Sabemos que o bom personagem de ficção, bem construído, é aquele cuja textura permite uma série de subtextos, dissimulações, mentiras, obliqüidades e segredos íntimos, porque assim ele é mais parecido com os seres humanos, é mais verossímil. Do mesmo modo, um personagem bem trabalhado no documentário mostra-­‐
se repleto de contradições, silêncios, titubeios, variações vocais, subtextos etc. Não queremos na ficção personagens lineares e rasos, tampouco no documentário. Assim, deixa de ter importância o fato de a pessoa estar ou não representando no documentário. E é quase certo que estará. Se o personagem do documentário está visivelmente falso, mente, discursa, quer convencer de algo, é ideológico? A primeira opção pode ser tentar desarmá-­‐lo, pois sempre vamos buscar que a pessoa se revele com mais profundidade. A segunda opção, não usar esse personagem; mas isso nem sempre conseguimos, pois não dá ou não queremos descartá-­‐lo (quem decide é o diretor, porque ele responderá se o filme estiver pior ou melhor, mas ele só pode decidir conforme a lógica do filme). Porém, o melhor pode ser escancarar isso, deixa-­‐lo falar, não ajudá-­‐lo nem desmascará-­‐lo, mas deixá-­‐lo mentir, deixá-­‐lo mostrar-­‐se como ele é; teremos um personagem que falseia, ou que mente. Como uma das coisas mais importantes que o documentarista tem a fazer é abster-­‐se de aderir ou julgar seus representados (assim como também é aconselhável ao ficcionista não ser moralista nem colocar seus pontos de vista na voz de seus personagens), será tudo uma questão, mais uma vez, de escolhas narrativas. Por isso, o documentário é chamado também de dramaturgia natural. Porque as pessoas que representam no filme documentário não são atores representando um papel dado, mas sim o papel delas mesmas, ou o papel que elas julgam ser o delas. Então, no documentário há interpretação, mas é evidente que o personagem natural interpreta de modo diferente do que o ator na frente da câmera. Porque esse é técnico, há uma técnica a serviço da estética. Aquele é intuitivo, e o próprio nem percebe que está interpretando. E não há um planejamento do que vai acontecer: interessa a espontaneidade que o momento da filmagem gera. Busca-­‐se uma situação reveladora. Porém, sendo o personagem do documentário uma pessoa com existência real, haverá profundas implicações metodológicas e éticas. Essa questão aparece bem nos filmes de Eduardo Coutinho:Se as distinções entre ficção e documentário são tênues em muitos filmes, colocadas em questão em vários outros, difíceis e desnecessárias de serem estabelecidas de maneira definitiva, em pelo menos um aspecto há uma diferença radical entre esses dois campos cinematográficos: os personagens do documentário são pessoas reais, com existências reais, uma vida fora do cinema. Tornam-­‐se ‘personagens’ depois e um longo processo em que foram pesquisados, filmados e tiveram sua participação reduzida para alguns minutos durante a montagem. Continuam a viver depois do filme, e a imagem que se produz delas pode afetá-­‐las, para o bem ou para o mal. (Lins, p. 163). Sem essa sensibilidade para perceber o ser humano que poderá nos revelar sua história, sem estabelecer uma relação de confiança baseada no compromisso de realizar um filme que não distorça as falas ditas na frente da nossa câmera, é impossível imaginar a realização de qualquer documentário de valor. Da discussão sobre a realidade e a verdade no cinema, podemos afirmar que a verossimilhança, essa necessária plausibilidade, essa esperada semelhança com o mundo, no cinema documentário também é a verdade interna, é a coerência à proposta do filme, a acuidade com que são retratados os dramas humanos do tema estabelecido, é a verdade dos personagens bem retratados (mesmo que com suas mentiras). Muito semelhante com a ficção? Sim. Necessariamente, tratamos de cinema. NOTAS 1 Cineasta. Professor de cinema. Graduado em Jornalismo e Direito. 2 Miguel Faria Jr. é autor de, entre outros filmes, O Xangô de Baker Street (2001), Stelinha (1990), República dos Assassinos (1979), Pecado Mortal (1970). 3 Miguel Faria Jr. em entrevista a Roberto D’ávila. REFERÊNCIAS GRÜNNEWALD, J.L. 1969. A idéia do cinema. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. SOUZA, E. de. 1974. Trajetórias do cinema moderno. Porto Alegre, A Nação/SEC/IEL. EISENSTEIN, S. 2002. A forma do filme. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. PUDOVKIN, V.I. Diretor e ator no cinema. São Paulo, Íris. HOWARD, D. e MABLEY, E. 1993. Teoria e prática do roteiro. São Paulo, Globo. MOURÃO, M.D. e LABAKI, A. (org.). 2005. O cinema do real. São Paulo, Cosac Naif. CHION, M. 1989. O roteiro de cinema. São Paulo, Martins Fontes. MAMET, D. 2002. Sobre direção de cinema. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. LINS, C. 2004. O documentário de Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. Juízo (2007), de Maria Augusta Ramos ‘Juízo’ é um filme sobre uma geração, diz diretora Documentário narra o cotidiano de jovens infratores no Judiciário. Juízes adotam linguajar das ruas para orientar menores infratores Um filme sobre a juventude que mora na periferia, nas áreas pobres, em favelas, que não tem oportunidades e que quer ter, mas muitas vezes se envolve com o crime. É assim que a diretora Maria Augusta Ramos entende o seu documentário “Juízo”, sobre adolescentes infratores. O filme, que estréia nesta sexta-­‐feira (14), é uma versão juvenil, e por isso mais pesado, de seu longa-­‐metragem anterior, “Justiça”, que tratava de como os adultos envolvidos com crimes lidam com o Judiciário. “Acho que é sobre essa geração de jovens, de crianças, de adolescentes, de gente de comunidades carentes que sabe, que tem consciência da miséria em que vive, da falta de possibilidades, da perspectiva de vida, que se sente explorada, que acha que tem mais direitos do que lhe é dado, e que ao mesmo tempo está sedenta, que quer sair dali, que quer trabalho, que quer estudar.” Mas ela não classifica essa turma nem de “perdida” nem com nenhum outro adjetivo. Maria Augusta está interessada em que o próprio espectador tome partido do que está vendo. “Eu acredito que (o filme) não traz as questões prontas. E eu nem tenho como explicar, eu não sei. Porque o filme, para mim, é uma viagem de descoberta. Eu não vou fazer ‘eu quero dizer isso ou aquilo’. E, nem no final, eu sei exatamente o que eu quis dizer. Eu acho que o barato é justamente deixar que a realidade fale por si só. E que o público veja muito mais do que eu, cada um veja um pouco o que quer ver.” Atores em documentário Impedida pelas leis brasileiras de mostrar os rostos dos meninos e meninas infratores, Maria Augusta optou por uma estratégia que poderia soar estranho, mas que convence do início ao fim. Ela usa atores não-­‐profissionais -­‐ com as mesmas idades, também de comunidades pobres e que vivem as mesmas dificuldades -­‐ para substituí-­‐los. “Esses meninos (os atores) são talentosos, mas eu acho que não foi difícil e não seria difícil achar meninos que vivem a mesma realidade (que os infratores) porque todos eles vivem (a mesma realidade). Setenta e cinco por cento das meninas adolescentes (das comunidades onde ela conseguiu os atores) estão grávidas ou são mães, isso é muito assustador. Porque é uma realidade muito próxima. A gente às vezes não dá conta de que filmar no (Instituto) Padre Severino (para menores infratores) era uma barra. Eu dizia para eles, ‘vocês vão encontrar gente da favela, até colegas de vocês e não pode falar nem cumprimentar’. E obviamente eles encontravam e cumprimentavam. E isso foi importante. A consciência de que eles poderiam estar ali. E também para o público, que vê isso, essa realidade deles. Está estampada no rosto.” A diretora, que é contra a pena de morte e a redução da maioridade penal, opina que, para impedir que os meninos de “Juízo” se transformem nos homens de “Justiça”, basta dar oportunidades para todos os detidos. “A solução é fazer com que eles não cheguem ali (no Poder Judiciário). É conter essa massa de acusados, de delitos. E quando eles chegam ali, tentar, porque não dá para mudar a sociedade de uma hora para outra, dar a possibilidade de ressocialização, que essas pessoas não precisam reincidir. Mas é isso que acontece. Ele sai sem a menor possibilidade de trabalho e aí volta.” Ronaldo Pelli G1 – 12 de março de 2008 Disponível em http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL347822-­‐7086,00-­‐
CRITICA+JUIZO+MOSTRA+A+REALIDADE+DOS+JOVENS+INFRATORES.html Nova integridade documental Com Juízo, o seu novo filme, Maria Augusta Ramos, a diretora de Justiça, vai sabotar um discurso recorrente nas críticas e comentários de seu filme anterior: o de que ela pratica o cinema direto (como se este fosse uma espécie de religião de “praticantes” e “não praticantes”), o filme de instituição (a exemplo de Frederick Wiseman), o documentário observacional, o docudrama – que termo antiquado -­‐, etc. Pois Juízo, em seus problemas (menores) e qualidades (enormes) é um balde de água fria nas categorizações. Que Juízo vai lidar com questões legais de importância fundamental, que vai ser um documento crítico das audiências da II Vara de Justiça do Rio de Janeiro e das condições espúrias em que os garotos são alojados, isso não dá pra questionar: Maria Augusta Ramos realizou um trabalho fundamental e obrigatório. Mas atrelar a importância de Juízo somente a essas questões é jogá-­‐lo na vala comum dos “documentários necessários” e ignorar a forte experiência estética que certamente tem muito mais a dizer sobre seu assunto (em termos informativos e pedagógicos mesmo) do que a eficiência dos documentários de tema. Maria Augusta Ramos arrumou uma solução formidável para fazer seu filme sobre o julgamento de menores de idade infratores: como o juizado não deixa que se revelem rostos e nomes de menores que cometeram crimes, a diretora escalou adolescentes não-­‐infratores para representar personagens reais que não poderiam aparecer. A cineasta elege um “outro” em seu documentário para fazer a representação de um personagem real. O fato dos garotos não-­‐atores viverem em condições similares aos garotos reais não quer dizer muita coisa: a força está justamente nessa necessidade em ter de ficcionalizar para fazer um documentário. É nesse cruzamento que acontece a inversão mais interessante do filme. O promotor, a juíza, o defensor, os pais dos garotos que, digamos, “não interpretam” têm uma performance exaustiva (no caso da juíza, até mesmo espalhafatosa), ao passo que os garotos parecem um tanto quanto constrangidos com a exigência de encenação. Eles estão muito menos preocupados com os efeitos de autenticidade do que os personagens reais de Juízo. Deve ser interessante assistir este filme sem o aviso prévio da estratégia da diretora. Naturalmente poderia se ver frieza, calculismo e indiferença em alguns dos jovens, que conseguem trazer a autenticidade que Bresson acreditava que somente os não-­‐atores podem impingir aos papéis. Pra falar de Juízo o melhor não parece ser a ida aos documentários da década de 60 e 70, mas localizá-­‐lo no presente mesmo, ao lado de, por exemplo, Dong de Jia Zang-­‐ke, e, em certa medida, Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho. Esses filmes vão compreender que é impossível alcançar integridade na ortodoxia de um documentário que não assuma, absoluta e transparentemente, sua encenação. Francis Vogner dos Reis Revista Cinética – novembro de 2007 Disponível em http://www.revistacinetica.com.br/juizo.htm Juízo É possível dizer que as mais diversas questões éticas que perpassam o ofício do documentarista possuem um denominador comum: o reconhecimento das interferências do dispositivo cinematográfico sobre uma dada realidade; a consciência de que este pressupõe, no mínimo, um duplo recorte – no espaço (através do enquadramento) e no tempo (através da montagem). Essa consciência do dispositivo – que para Eduardo Coutinho significa evidenciar na tela todo um aparato técnico (microfones, refletores, a própria equipe de realização) que é, em geral, relegado para trás das câmeras – Maria Augusta Ramos demonstra em Juízo, ao dimensionar situações reais através da representação. Não se trata exatamente de ficcionalizar fatos verídicos, mas sim de remontá-­‐los diante da câmera, com a única diferença de que seus personagens principais, isto é, os réus da II Vara de Justiça do Rio de Janeiro, são interpretados por outros jovens de condições sociais semelhantes. Por trás do que poderia parecer uma mera impossibilidade de produção, tendo em vista a proibição do juizado de menores de expor os verdadeiros infratores, há um domínio nada ingênuo dos efeitos que podem surgir da mediação do cinema sobre o real. De fato, apresentar a realidade em filme é uma tarefa difícil, especialmente porque lidamos sempre com uma instância receptora pouco previsível e que pode, para o bem ou para o mal, tomar rumos de interpretação extremos (basta pensar nas reações pró e contra Tropa de Elite). Talvez com esse pressuposto em mente, Maria Augusta Ramos tenha buscado substituir a condição do seu olhar, que por si só já age sobre a realidade e a modifica, pela condição do registro, que oferece a um olhar outro a possibilidade de fazê-­‐lo. O discurso, portanto, é construído exteriormente às imagens, no espaço de reflexão de cada espectador em sua individualidade. A câmera em Juízo desempenha um papel de observadora atenta e até respeitosa (pensemos nos enquadramentos durante as cenas de nudez dos adolescentes, absolutamente calculados para que jamais cheguemos a ver o que escutamos), sem deixar pesar sobre seus personagens a condenação moral. Contudo, é preciso dizer, essa neutralidade é também produto do trabalho em cima da representação, uma vez feita a distinção entre ela e a situação que lhe deu origem. Por mais análogas que sejam, os créditos finais são claros ao nomear o elenco adolescente que interpreta os personagens não-­‐ficcionais, a partir dos quais o filme foi realizado. É também por meio da encenação que se consegue excluir a potencialidade interventiva da câmera. Todos sabem que serão filmados e agem com essa consciência, se esforçando de antemão para ignorar o aparato técnico fora da tela. Se é visível que alguns se saem melhor que outros no cumprimento dessa tarefa, ainda assim não se pode dizer que há demonstrações de desconforto; no limite, não há demonstrações da consciência de se estar sendo filmado. Em Juízo, o constrangimento usual, originado pelo confronto de personagens não-­‐ficcionais com a câmera de cinema, que muitas vezes limita o desenvolvimento da situação a ser filmada, é minimizado a partir do próprio planejamento dessa situação. Enquanto o método distancia Maria Augusta Ramos de uma suposta filiação ao cinema direto, o resultado final parece atingir a grande pretensão desse movimento; afinal, estamos aparentemente diante de um olhar quase estritamente observacional. Embora produzido artificialmente, o efeito é o mais verossímil possível, e sem a informação externa de que os personagens reais serão representados por outros, seria impossível pôr em questão se se está diante de um documentário estrito senso. Ainda no caminho em direção a esse olhar de observação, chama a atenção um segundo procedimento, aquele que aparenta ser uma não-­‐seletividade do material de acordo com a carga dramática: em Juízo, os momentos de confronto são tão importantes quanto os de respiro – os intervalos, os tempos mortos. A todo o momento, corta-­‐se do interior do tribunal ao interior do reformatório, chegando, ao fim, à favela, onde residem (ou residiam) os adolescentes acusados. Assim, se no primeiro espaço assistimos a uma quase desumanização da figura do menor infrator, enquanto o corpo jurídico do tribunal discute seu futuro muitas vezes indiferente à sua presença na sala, no segundo ocorre o exato oposto. Ao mesmo tempo em que a rotina oficial do reformatório expõe os maus tratos e as más condições de vida aos quais o menor está submetido, os momentos íntimos no dormitório revelam a simplicidade e a naturalidade desses adolescentes enquanto inventam jogos e implicam uns com os outros, na tentativa de fazer passar o tempo. Nesses momentos, talvez os melhores do filme, a relação personagem-­‐câmera e, consequentemente, personagem-­‐espectador, se estreita como nunca. É assim, nesse ininterrupto jogo dialético de proximidade e distanciamento, mas sempre com uma postura de registro, que Maria Augusta Ramos expõe a precariedade da situação do sistema de reabilitação infanto-­‐juvenil no Brasil, ao mesmo tempo em que dá margem ao questionamento da autoridade dos representantes da justiça para decidir o futuro desses jovens. Duas atitudes que, por si só, já mereceriam alguma atenção, mas que, aliadas à consciência da potência do dispositivo cinematográfico como veículo de idéias, fazem movimentar o panorama do cinema brasileiro em 2008. Alice Furtado Contracampo – revista de cinema Disponível em http://www.contracampo.com.br/91/critjuizo.htm Jogo de Cena (2007), de Eduardo Coutinho A personagem no documentário de Eduardo Coutinho Virgínia Baumhardt* Resumo Este artigo tem como objetivo compreender o que caracteriza as personagens dos documentários recentes do cineasta Eduardo Coutinho. Os filmes em questão apresentam entrevistados que contam histórias variadas que viveram ao longo de suas vidas. O enfoque dado ao tema refere-­‐se à maneira com que essas personagens apropriam-­‐se de tais relatos, tais quais atores em relação a um script. A personagem de um documentário pode ser estudada sob diferentes pontos de vista – geralmente baseados no papel que exerce ao longo da narrativa e nas características dela em decorrência disso. No nosso objeto de pesquisa, trata-­‐se de um conjunto de filmes realizados pelo diretor Eduardo Coutinho em pouco mais de uma década – sendo eles Santo Forte (1999), Babilônia 2000 (2001), Edifício Master (2002), Peões (2004), O Fim e o Princípio (2005), Jogo de Cena (2007) e As Canções (2011)[i]. Em comum, esses documentários trazem personagens que contam histórias sobre suas vidas, em variados ambientes e com mais de uma temática. Os filmes não têm por objetivo sustentar uma tese central, mas reunir um conjunto de depoimentos em torno de uma narrativa. A opção por esses documentários tem por objetivo entender o que faz com que as personagens transformem relatos aparentemente banais – a perda de um familiar ou o fim de um relacionamento, por exemplo – em histórias efetivamente atrativas[ii]. Ora, a utilização de entrevistas ou depoimentos é um artifício trivial no documentário brasileiro contemporâneo[iii] e não serve, assim, como único elemento constituinte das personagens em questão. Entendemos que o estudo desses elementos da narrativa passa, antes, pela compreensão do processo de realização desses filmes. Esses sete documentários são resultado de uma metodologia estabelecida por Coutinho e já amplamente referida por pesquisadores como Consuelo Lins (2004). Em seu trabalho, o cineasta utiliza alguns procedimentos, entre os quais destacaremos dois principais – o dispositivo e a entrevista prévia. Entendemos que ambos são cruciais para a constituição das personagens desses filmes. Em primeiro lugar, o dispositivo trata-­‐se do argumento inicial ou das “linhas gerais” que guiam a realização do projeto – pode ser um determinado ambiente (uma favela carioca, uma comunidade paraibana, um edifício de classe média) ou assunto (fim de ano, religião, movimento sindical), por exemplo. Este artifício refere-­‐se à maneira pela qual um determinado universo será abordado e não à formulação de um roteiro ou da determinação de um tema para o filme – procedimentos que o próprio Coutinho, inclusive, refuta. Segundo o cineasta, as opções de dispositivo são diversas, mas dentro de certo padrão: “filmar dez anos, filmar só gente de costas, enfim, pode ser um dispositivo ruim, mas é o que importa em um documentário” (COUTINHO para LINS, 2004, p. 101). O procedimento foi desenvolvido principalmente a partir da realização de Santo Forte. O filme tem como pretexto inicial tratar das diferentes manifestações religiosas na favela Vila Parque da Cidade, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Mesmo que efetivamente boa parte dos depoimentos trate do tema, eles se destacam pelo fato de não serem simples conversas curtas, mas longos períodos de reflexão de cada um dos entrevistados a respeito do tema proposto. O dispositivo e a abertura dada às personagens se aperfeiçoam a partir dos filmes seguintes do cineasta – Babilônia 2000 parte da ideia de fazer um balanço de fim de ano com moradores do morro que dá nome ao filme; Edifício Master é focado em um prédio de classe média baixa em Copacabana; Peões concentra-­‐se nas histórias de antigos operários de montadoras no ABC Paulista; O Fim e o Princípio filma moradores idosos do município de São João do Rio do Peixe, no interior da Paraíba; Jogo de Cena apresenta entrevistadas e atrizes que contam histórias e interpretam depoimentos, em um teatro no Centro do Rio; e As Canções também se passa em um palco de um teatro vazio, mas cada entrevistado canta uma música relacionada à história narrada[iv]. Outro aspecto essencial do método empregado pelo diretor é a entrevista prévia de personagens, feita por pesquisadores da sua equipe. Esse grupo tem o objetivo de conhecer algumas histórias e sondar quais seriam possíveis personagens para o filme. O contato que o diretor tem com as pessoas que participarão do documentário se dá, na maioria das vezes, apenas no ato da gravação. Tanto o dispositivo quanto a entrevista prévia, assim, são meios de se aproximar dos entrevistados, conhecer suas histórias e de prepará-­‐los para contá-­‐las em frente à câmera. Ambas as características são trabalhadas com graus diferentes de segurança ou maturidade ao longo dos filmes. O resultado final é que, por mais que alguns documentários tenham um refinamento maior das personagens, os principais depoentes dos filmes possuem um grau de semelhança muito grande entre si. A moral de Maria Pia, uma senhora idosa de nacionalidade espanhola, a respeito do trabalho, em Edifício Master, por exemplo, poderia existir em algum funcionário aposentado de Peões. O plano de People em frente à sua casa dizendo que gosta muito de conversar, em Babilônia 2000, é perfeitamente crível em Edifício Master. A definição de morte feita por Mariquinha em O Fim e o Princípio caberia a qualquer personagem de Santo Forte, e assim por diante. Isso ocorre porque, conforme entende o pesquisador Ismail Xavier (2004), os filmes não giram em torno de determinados assuntos e as personagens não assumem papéis específicos e diferentes entre si dentro da história – tais como protagonista, observador, testemunha. Ao contrário: os documentários de Coutinho, ao descartarem quaisquer recursos além das histórias dos entrevistados, definem-­‐se por uma identidade radical entre a construção da personagem e a entrevista (XAVIER, 2004, p. 52). Segundo o autor, “No centro de seu método, está a fala de alguém sobre sua própria experiência, alguém escolhido porque se espera que não se prenda ao óbvio, aos clichês relativos à sua condição social. O que se quer é a expressão original, uma maneira de fazer-­‐se personagem, narrar, quando é dada ao sujeito a oportunidade de uma ação afirmativa. Tudo o que da personagem se revela vem de sua ação diante da câmera, da conversa com o cineasta e do confronto com o olhar e a escuta do aparato cinematográfico.” (XAVIER, 2004, p. 52) Assim, o conteúdo dos relatos acaba por se descolar de seu dono, fazendo com que tanto as personagens de um mesmo filme quanto as de outros se assemelhem em função daquilo que contam. Longe, portanto, de serem simples depoentes que reportam um determinado episódio que viveram, tal qual ocorreria em um documentário comum, as personagens desses seis filmes constroem narrativas a partir de histórias que viveram. O estudo desses elementos da narrativa nos documentários de Coutinho passa, portanto, por dois eixos principais – o conteúdo dos relatos e a forma com que eles são contados[v]. A partir de agora, estudaremos o segundo aspecto desta dinâmica. Um estudo da personagem Eduardo Coutinho utiliza a personagem nos seus documentários como elemento central da narrativa, colocando-­‐a com pouquíssimos aspectos exteriores em cena. Evidentemente essa é uma característica do diretor, mas a personagem costuma ser, em qualquer história (seja ela literária, cinematográfica ou teatral), a figura principal daquele enredo. Tomando um romance, por exemplo: por mais que a história de um livro seja composta tanto por um número determinado de eventos quanto por aquilo que é realizado neles, é com a personagem que se encontra maior identificação e é ela que parece ser o que há de mais vivo naquela composição. Quem primeiro aborda essa questão é Aristóteles, a partir da conceitualização da verossimilhança de uma obra. Segundo o autor, um texto trata-­‐se não de uma adequação ao “mundo real” ou a algo que tenha acontecido, e sim ao que poderia ter acontecido. Nesse sentido, concorre para a verdade dentro de uma obra o fato de que ela possui uma coerência interna no que se refere ao mundo imaginário das personagens e situações vividas, e não algum grau de aproximação com algo efetivamente possível no mundo real. Beth Brait (2006) utiliza um exemplo bastante ilustrativo a respeito do tema: no filme Indiana Jones e o Templo da Perdição (1984), de Steven Spielberg, a personagem principal, vivida por Harrison Ford, participa de uma longa luta à beira de um precipício contra seus inimigos e sai dela intacta e sem sequer deixar cair o chapéu da cabeça. Conforme entende a autora, trata-­‐se de uma narrativa tradicional na qual a personagem já é, até então, reconhecida como o “mocinho” da história, a partir de traços como inteligência e esperteza. Dessa perspectiva, o espectador aceita que tanto narrativa quanto personagem cumpram os seus destinos, fazendo com que a segunda se salve de situações complicadas, mesmo que com alguma dificuldade. Tanto é fato que a verossimilhança encarrega-­‐se de conferir uma coerência e verdade internas à narrativa que, por outro lado, quanto mais a história e as personagens tentam imitar o “mundo real”, mais artificiais elas soam, segundo Anatol Rosenfeld (1995). “Quando chamamos de ‘falsos’ um romance trivial ou uma fita medíocre, fazemo-­‐lo, por exemplo, porque percebemos que neles se aplicam padrões do conto de carochinha a situações que pretendem representar a realidade cotidiana.” (ROSENFELD, 1995, p. 19) O autor entende, portanto, que essa “aparência de realidade” é construída a partir de fatores contidos, por exemplo, nos detalhes, na coerência interna, na lógica das motivações das personagens, que, conjuntamente, revelam a intenção ficcional de uma obra, e não sua tentativa de aproximação de um modelo exterior. A perspectiva aristotélica, no entanto, ainda relegava a personagem a um plano secundário da história, enquanto uma função do enredo – logo, pelo que ela fazia e não pelo que ela era. A trajetória do desenvolvimento deste elemento narrativo se dá ao longo da evolução do romance moderno, na qual há uma complicação crescente da psicologia das personagens. Segundo Antônio Cândido (1995), a revolução sofrida pelo romance no século XVIII constitui-­‐se na passagem do enredo complicado com personagens simples para o enredo simples com personagens complicadas. Brait, por sua vez, compreende essa mesma transição enquanto um desenvolvimento do aspecto psicológico desses tipos. Nesse sentido, caminham concomitantemente dois grupos de personagens, nomeados por Johnson como de costumes e de natureza – respectivamente aquelas apresentadas por meio de traços distintivos, fortemente escolhidos e marcados, de forma a também serem facilmente distinguíveis e caricaturais; e traços íntimos e não facilmente identificáveis, na qual o autor usa uma caracterização geralmente analítica e não pitoresca. Já no século XX, Edward Morgan Forster retoma esta distinção a partir da classificação das personagens planas e redondas – respectivamente as de tipos, logo caricaturais, e as imprevisíveis, logo complexas. Disso, denota-­‐se que não é o fato de que as personagens não se assemelhem ao “mundo real” que faz com que necessariamente elas precisem ser mais simples ou rasas do que os seres humanos, mas antes o contrário. Conforme entende Rosenfeld, a caracterização confere às personagens lógica e nitidez, o que não significa simplicidade psicológica. O autor explica tal posição da seguinte forma: “Precisamente porque se trata de orações e não de realidade, o autor pode realçar aspectos essenciais pela seleção dos aspectos que apresenta, dando às personagens um caráter mais nítido que a observação da realidade costuma sugerir, levando-­‐as, ademais, através de situações mais decisivas e significativas do que costuma ocorrer na vida. Precisamente pela limitação das orações, as personagens têm maior coerência do que as pessoas reais (…); maior exemplaridade; maior significação (…); e, paradoxalmente, maior riqueza.” (ROSENFELD, 1995, p. 34 e 35) Conforme entende o autor, o fato de uma personagem ser mais ou menos complexa está diretamente relacionado ao grau de sofisticação das camadas irreais existentes em uma obra ficcional e ao valor estético que ela adquire em função disso. Partindo da perspectiva literária, Rosenfeld assinala que uma obra é dada primeiramente de forma direta ao leitor, através das palavras. Existem, no entanto, outros graus de apreensão de um livro, entre eles as unidades significativas, na qual o texto projeta um mundo aparte daquele que é dado diretamente no livro, ;e as zonas indeterminadas, que possibilitam uma variedade de concretizações de um texto ficcional e dão, em função disso, uma existência autônoma à obra literária. Assim, a noção da personagem enquanto uma entidade viva se dá precisamente porque não é possível ter consciência destas diversas camadas de uma obra. Rosenfeld entende que a apreensão do leitor ocorre a partir do que é positivamente dado em um texto e, por isso, cobre as camadas irreais, atualiza certos esquemas preparados pelo autor e chega mesmo a ultrapassar o texto, embora geralmente guiado por ele. Por serem de diferentes níveis, portanto, as camadas irreais servem tanto para projetar características das personagens e elementos da narrativa, quanto para requerer que cada leitor concretize a obra à sua maneira. A perspectiva da verossimilhança cunhada por Aristóteles, assim, constituiu uma parte importante do estudo da personagem ao longo do desenvolvimento da teoria literária. Os autores citados até agora confluem para a compreensão do romance enquanto uma obra descolada do “mundo real” e que tenta, à sua maneira, construir um universo crível de personagens e enredo. Nesse sentido, boa parte do valor estético de uma obra está na complexidade de sua narrativa, construída tanto por personagens de natureza ou redondos, respectivamente segundo Johnson e Forster, quanto pela sofisticação das caracterizações, de acordo com Rosenfeld. Essas questões propostas até agora se referem ao universo literário. Consideramos, no entanto, importante trazer a perspectiva do tema em relação ao teatro uma vez que, conforme havia sido explicitado anteriormente, as personagens dos documentários de Eduardo Coutinho devem ser consideradas a partir de uma dupla perspectiva: o conteúdo das histórias narradas e a forma com que isso é feito. Assim, a noção de personagem no documentário que nos interessa não está atrelada à autonomia desses elementos da narrativa em função de estarem em um filme “não ficcional”, e sim às apropriações que as personagens fazem das histórias que contam, tais quais atores teatrais em relação ao texto que interpretam em cena. Um estudo da personagem de teatro No teatro, a perspectiva da verossimilhança aristotélica se dá de maneira diferente do que ocorre com a literatura, uma vez que, ao contrário da personagem de um livro, na qual os aspectos esquematizados são puramente intencionais e precisam ser concretizados pelo leitor, no palco ela é apresentada diretamente para o espectador, expondo características que até então estavam inferidas no texto. A concretização da ficção nos atores e no cenário poderia levar à compreensão de que esta arte tenha uma aproximação maior com qualquer realidade determinada ou histórica ao qual a peça se refira, uma vez que, no teatro, não são as palavras que constituem as personagens e seu ambiente, e sim as personagens e o mundo fictício da cena absorvem as palavras do texto (ROSENFELD, 1995, p. 29). O que ocorre, no entanto, é exatamente o contrário: é por incorporar aspectos puramente intencionais do texto que a ficção teatral adquire tamanha densidade e reveste-­‐se de tal força que encobre a realidade, não deixando que o conteúdo da peça aparente qualquer paralelo com o “mundo real” em consequência puramente da sua concretização em “pessoas reais”. O principal aspecto que incorre para tal erro de percepção é o fato de que as personagens, em um palco, parecem inventar seus discursos, ou seja, falar em cena tal qual ocorre em uma situação cotidiana. Segundo o teórico Patrice Pavis (1999), no entanto, o que ocorre é que são os próprios discursos, lidos e encenados pelo ator, que inventam a personagem. Nesse sentido, a percepção equivocada de que elas pudessem criar aquilo que falam é exatamente a origem do seu embuste e, consequentemente, da sua força de persuasão. “A análise da personagem desemboca na análise de seus discursos: trata-­‐se de compreender como a personagem é, ao mesmo tempo, a fonte de seus discursos (ela os enuncia em função de sua situação e seu ‘caráter’) e seu produto (ela não é senão a figuração humana de seus discursos).” (PAVIS, 1999, p. 289) Sentado em uma plateia escura e frente a uma peça de teatro, o espectador costuma esquecer-­‐se desta dupla influência entre cena e texto porque está diante de um locutor resoluto e que não se cala. O que ocorre é que a personagem só diz e significa o que o seu texto parece querer dizer: na prática, tal ato também depende da situação de enunciação em que ela se encontra e dos seus possíveis interlocutores em cena. Podemos observar, assim, que não é pelo fato de a personagem teatral ser concretizada em um ator que faz com que ela não possua zonas indeterminadas, ou seja, menos complexa do que a literária. Se os atores são reais e, eles sim, determinados, as personagens, ao contrário, seguem sendo entes imaginários e ficcionais. O que é apresentado diretamente no palco são aspectos visuais e auditivos delas, sendo que, através deles, podem ser apreendidas características psíquicas e espirituais destes elementos da narrativa (ROSENFELD, 1995, p. 33 e 34). Tal qual entende Rosenfeld, portanto, a personagem do teatro também é composta por diversas camadas irreais além dos elementos apresentados diretamente no palco – assim como ocorre com a história de um livro em relação às palavras impressas na página da obra. Tomando esta perspectiva a respeito dos documentários de Coutinho, primeiramente observa-­‐
se que não é possível entender as personagens desses filmes enquanto meros narradores de histórias, ou seja, cuja compreensão se dê apenas por aquilo que elas contam no filme. Conforme entende Pavis, as personagens de teatro não inventam os seus discursos, tal qual ocorre em uma situação cotidiana, e sim os discursos, lidos e encenados pelos atores, é que inventam a personagem. Evidentemente o conjunto de filmes analisados é do gênero documentário e, portanto, com raras exceções, composto por “pessoas reais” e não atores[vi]. O que ocorre é que a apropriação singular que cada depoente faz do texto, nesses filmes, resulta em uma frequente incoerência entre o que é narrado e a forma com que isso é feito. Se em uma situação cotidiana ou em um documentário mediano, por exemplo, descrever a perda de um familiar requereria sobriedade, as personagens desses filmes, ao contrário, com freqüência riem em momentos em que a história requerer seriedade, ou ainda se contradizem ou admitem estar mentindo. Desta forma, a complexidade dos depoimentos dos documentários de Coutinho requer também uma maior complexidade na compreensão das personagens dos filmes em questão. Além do que é apresentado diretamente em cena, devem ser levados em conta aspectos como elipses do texto, aquilo que elas deixam inferir na história ou ainda o somatório de gestos, movimentos corporais, vestuário, trejeitos, acentos e outros elementos eventualmente incoerentes em relação ao texto narrado. * Virgínia Baumhardt é mestre em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERNARDET, Jean-­‐Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 2006. CANDIDO, Antônio. A personagem do romance. In: A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1995. LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho – televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. PRADO, Décio de Almeida. A personagem no teatro. In: A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1995. ROSENFELD, Anatol. Literatura e personagem. In: A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1995. XAVIER, Ismail Norberto. Indagações em torno de Eduardo Coutinho e seu diálogo com a tradição moderna. In: Mostra diretores brasileiros: Eduardo Coutinho – cinema do encontro. Catálogo do CCBB/SP, 2004. [i] Durante esse período, Coutinho também realizou outros dois documentários experimentais e não baseados em entrevistas – Moscou (2008), que acompanha um grupo de teatro de Minas Gerais durante os ensaios da peça As Três Irmãs, do dramaturgo russo Anton Tchekhov; e Um Dia na Vida, que registra um dia na programação da televisão aberta brasileira e não chegou a ser lançado. [ii] Eduardo Coutinho começou sua carreira no cinema na década de 60 e atualmente é um dos documentaristas mais profícuos e reconhecidos do Brasil. O cineasta já recebeu prêmios em diversos festivais do país e frequentemente é convidado para retrospectivas de sua obra em festivais internacionais. [iii] Em seu livro Cineastas e Imagens do Povo, o pesquisador Jean-­‐Claude Bernardet afirma que a entrevista, atualmente, é um cacoete no documentário. “Não se pensa mais no documentário sem entrevista, e o mais das vezes dirigir uma pergunta ao entrevistado é como ligar o piloto automático.” (BERNARDET, 2003, p. 286) [iv] Os dois últimos filmes desta série de documentários – Jogo de Cena e As Canções -­‐-­‐– depuram mais a presença das personagens em cena, colocando-­‐as como elemento quase que efetivamente exclusivo da narrativa. Ambos se passam no palco de um teatro, na qual há apenas uma cadeira, a cortina fechada ao fundo e uma iluminação exígua. [v] Tanto conteúdo quanto forma aplicados ao documentário Jogo de Cena foram estudados com maior profundidade na dissertação de mestrado da autora deste artigo. [vi] Jogo de Cena é o único documentário desta série de filmes que utiliza, além dos depoentes, atores que interpretam algumas das histórias. Para fins de análise, no entanto, todas as personagens dos filmes em questão são tratadas de forma igual, independentemente de serem profissionais da interpretação ou não. RUA – Revista Universitária do Audiovisual – n. 58, março de 2013 Disponível em http://www.rua.ufscar.br/site/?p=13346 Eduardo Coutinho & Sophie Calle Pode-­‐se superar JOGO DE CENA? Se ficamos no quadro dessa modalidade de cinema documentário, não se veem muitas luzes no fim do túnel. MOSCOU – o filme da palavra encenada ou da encenação da palavra – que Eduardo Coutinho realizou após JOGO DE CENA, mais atesta, me parece, um impasse do que uma superação. Talvez não haja possibilidade atual, ficando no cinema da fala, de ultrapassar o filme de Coutinho. A impressão (que eu tenho) de beco sem saída é intensa (da mesma forma que ULYSSES colocou o realismo num beco sem saída). A não ser que a fala se torne debochada, grotesca, irônica, e neste sentido iríamos na direção de JESUS NO MUNDO MARAVILHA que me parece ser atualmente o único filme brasileiro que consegue dialogar com JOGO DE CENA (imagino que Coutinho, caso o tenha visto, deve detestar o filme de Newton Cannito). JOGO DE CENA pertence ao mesmo universo estético e cultural que a magnífica instalação de Sophie Calle no Sesc Pompéia: CUIDE DE VOCÊ. Há inclusive um lugar e um momento em que vemos uma multiplicidade de fotografias de mulheres lendo a carta que está no centro da exposição, e ouvimos vozes sem identificar a que corpos elas pertencem. Neste conjunto há um espaço maior onde passam vídeos; um deles mostra uma mulher interpretando a carta ao violão; ela está sentada sozinha numa sala de teatro com poltronas vermelhas vazias. Essa articulação: muitas mulheres, um discurso referente a uma história de vida, corpos e vozes desvinculadas dos corpos, uma sala de teatro: é a síntese do dispositivo de JOGO DE CENA. Mas CUIDE DE VOCÊ não me deu a impressão de impasse provocada pelo filme: e depois, o que vai ser? Ao contrário, a exposição de Sophie Calle deixa uma sensação de abertura, de respiração, dá para retomar o fôlego. Há um contraste sensorial entre o filme e a exposição que já pode fornecer um primeiro elemento de compreensão: o filme é claustrofóbico (no dispositivo minimalista construído por Coutinho, todas as mulheres, por mais diversas que sejam, convergem para o mesmo espaço e ficam na mesma disposição espacial em relação ao cineasta e à sala), enquanto as paredes brancas e o necessário deslocamento do observador na sala de exposição deixam circular o ar. Ocorre que o filme adota uma dinâmica centrípeta, enquanto a exposição é centrífuga. Diferença essencial. A disposição dos textos e fotos na parte alta de algumas paredes, e portanto de acesso mais difícil para a vista, como que expande os limites do espaço, sugere um espaço em expansão. E acredito que este seja um dos aspectos fundamentais da exposição. O ponto de partida é uma pequena célula – a carta de ruptura – que reverbera numa multiplicidade de mulheres que a leem e a interpretam. Estas mulheres são filmadas, imagem e som, em diversos ambientes, o que provoca uma multiplicação dos espaços. O espaço onde está o observador se abre, ao limite, indefinidamente. Além das mulheres que interpretam a carta (interpretar em dois sentidos: a simples leitura já é uma interpretação, além dos comentários que podem ser acrescentados), outras, juristas, tradutoras, linguistas etc., teorizam (digamos assim) sobre a carta, o que multiplica as abordagens e as facetas. Mesmo que não haja nenhuma paleontóloga, esta é potencialmente possível nesse universo em expansão. Mesmo que a exposição não apresente uma tradução da carta para o grego, ela está em potencial no universo em expansão. Contribui à construção dessa dinâmica a multiplicidade das mídias e meios de expressão que interpretam e refletem sobre a carta: a fotografia fixa, a imagem animada, o texto escrito, a sobreposição de texto e grafismo, a música, o canto, a dança, a performance, o origami etc. A partir de uma pequena célula, de uma situação de vida documentada por uma carta de ruptura, abre-­‐se um universo em expansão: é uma dinâmica da liberdade. Jean-­‐Claude Bernardet Blog do Jean Claude Bernardet Disponível em http://jcbernardet.blog.uol.com.br/arch2009-­‐08-­‐02_2009-­‐08-­‐08.html Movimento das palavras Parece um tanto auto-­‐referente o início do jogo de máscaras provocado por Eduardo Coutinho em Jogo de Cena. Vemos como primeira imagem um anúncio que procura mulheres para falar de si. Surge um corpo, um vulto, subindo uma escada. No final dos degraus, adentramos um palco, com a equipe do documentário lá instalada, Coutinho sentado diante das cadeiras do teatro, completamente vazias, que se tornam o fundo dos planos nas entrevistas. Entra a primeira mulher, a segunda, Andrea Beltrão dá continuidade ao relato de uma delas, Fernanda Torres faz o mesmo com outra, Marilia Pera com uma terceira, deixando mais ou menos claro os limites entre o autêntico e a representação. Temos a impressão de estarmos diante de uma sessão de descarrego afetivo e de uma competição entre atrizes pela melhor atuação mimética. Porém, conforme a regra do jogo se move, o jogo se desdobra. Em alguns momentos, as falas das atrizes e não-­‐atrizes se confundem, porque, quando as atrizes começam a falar para o diretor sobre o próprio processo de interpretar, os depoimentos confessionais das não atrizes, trazem algo de suas experiências e, em outros momentos, surge a dúvida se interpretam ou se testemunham, como as outras mulheres, ameaçando os limites entre a verdade suposta das narrações e a simulação de verdades narradas. Quem controla as instâncias discursivas? De quem são as vidas narradas? Quem é a autora dessa ou daquela biografia? Entrar no jogo de máscaras para tentar desmontar seus mecanismos e procurar localizar a origem e a propriedade dos pedaços verbais de vida talvez seja ir contra a proposta de Coutinho. Porque ninguém é dono ou autor de suas vidas quando começa a narrar e compartilhar suas experiências com quem ouve. Essas narrativas deixam de ser exclusivas e íntimas para se tornarem de todos nós. Por isso, não importa se, ao falar de uma experiência no candomblé, Fernanda Torres fala dela ou, como fez até então e fará depois, simula a fala de alguém. Não importa se Andrea Beltrão sente falta do perfume de sua babá negra ou se está narrando a saudade de alguém. Só importa o efeito cênico da linguagem, a revelação e a confusão, com fusão entre narração original e narração cópia. Com o avançar do jogo, porém, o jogo deixa de ser central e, graças à notável capacidade das mulheres abrirem coração e memória para Coutinho, o material humano torna-­‐se o eixo dramático, com histórias de abandono, perda, traumas, rupturas familiares – mas, sobretudo, histórias de superação de tudo isso. Se Godard disse que mulheres não fazem guerra, porque vivem a guerra em seu interior, as mulheres aqui são sobreviventes de batalhas, embora, em alguns casos, continuem no front resistindo às dores. O mais importante em Jogo de Cena é essa capacidade de, no documentário mais assumido como jogo na filmografia de Coutinho, também nos depararmos com as mais intensas explosões de intimidade. Algumas confissões chegam a causar desconforto, sem nenhum pudor – como a da jovem assumindo ter parado de gostar do pai, sobretudo após ele quase morrer; ou como a da mulher que engravidou na rua, com quem tinha acabado de conhecer e a quem nunca mais viu, sem nenhuma mágoa. Pode-­‐se rir em um trecho, pode-­‐se chorar em outro, a catarse é assumida, mas conduzida pelas mulheres, que também se desmontam diante da câmera, porque revivem as feridas e as emprestam para as atrizes, que, em alguns instantes, também choram com a memória alheia. E por que cargas d’água Jogo de Cena é mais que um descarrego emocional, com disposição ou efeito de catarse – para elas e para nós? Porque se sente cada vez mais, a cada palavra, um transbordamento de verdade à frente da lente, com a câmera filmando apenas o rosto de quem fala, eventualmente cortando de uma parte da fala para outra sem alterar a angulação, às vezes mostrando as cadeiras vazias atrás delas, com raras movimentações no enquadramento, a não ser um ou outro corpo subindo a escada ou chegando no palco. Um filme estático. Porém, cheio de movimento – não físico, mas da memória, das emoções, da vida mesmo. Na verdade, nenhuma dessas palavras acima ou a soma delas dá conta de Jogo de Cena. Cléber Eduardo Revista Cinética – Outubro de 2007 Disponível em http://www.revistacinetica.com.br/jogodecenacleber.htm Jogo de Cena (2007), de Eduardo Coutinho Depois da obra-­‐prima Cabra Marcado para Morrer (1985), Eduardo Coutinho realizou grandes filmes, Santo Forte (2002) e Edifício Master (2002), que se caracterizavam pelo dom do diretor de escolher bem seus entrevistados e conseguir extrair deles revelações ou uma humanidade que escapava a vários outros documentaristas mortais. Para abordar as relações religiosas de um grupo (Santo Forte) e para radiografar os moradores de um condomínio (Edifício Master), Coutinho, mais do que construir filmes, construiu um método, construiu um dispositivo fílmico próprio. O dispositivo, ou os procedimentos adotados na filmagem, o como registrar, se tornaram para Coutinho mais importantes que o tema do filme em si e passaram a dar ao filme uma diretriz. E, se os bons depoimentos dos filmes anteriores só se tornaram possíveis graças à filmagem digital, que não limitava o tempo de gravação e não quebrava o fluxo da entrevista, fluxo tão bem orquestrado pelo diretor que sabe jogar com o depoente e respeitar o silêncio como momento revelador, o passo seguinte foi aliar à ideia do dispositivo a noção do acaso, do inesperado encontro com o tema do filme, tema que passa a nascer do nada ou motivado por um desafio como aqueles que existiam nas antigas gincanas, caso de O Fim e o Principio (2005) no qual o tema é encontrado a posteriori, com a equipe se dirigindo a uma cidade qualquer e lá vendo o que renderia um filme. Jogo de Cena (2007), um marco na história do cinema brasileiro das últimas décadas, resulta da confluência destas duas experiências. É também um filme que brinca com a possibilidade de se fazer, ou encontrar, um filme, e, neste sentido, se parece muito como Moscou (2009), ainda que Coutinho diga que não tenha encontrado em Moscou um filme ou o filme que queria. E Jogo de Cena é um marco porque ao embaralhar documentário e ficção, ao amalgamar a voz dos depoentes com a de atores que se fazem passar por eles, a ponto de não sabermos ao certo se aquela é a realidade ou o seu duplo, acaba problematizando também a (des)crença em relação à verdade posta e imposta pelo cinema documentário e pelo documento filmado dado como real, o “é tudo verdade”, a suposta verdade do mundo e no mundo. Marco também porque brinca deliciosamente com o caráter lúdico da representação, o tal jogo de cena, jogo que a vida é; e tendo o palco, presente também em Moscou, ainda que figurado de outra maneira, e em Canções (2011), como espaço ideal para essa construção que é da mesma forma desconstrução. A obra então se dá no entre, ou no movimento pendular do ser e do não ser – para usar um termo da fortuna crítica da obra machadiana, que também serve a Coutinho e a toda obra crítica que se propõe estudar a cultura brasileira nos seus movimentos dialéticos ou limítrofes (como já foi dito, Cabra Marcado também é muito Deus e o Diabo na terra do sol). Jogo de Cena é, talvez pelas discussões que o fazer cinema na contemporaneidade constrói ou impõe, parente, voluntário ou involuntário, de Close Up (1990), a obra-­‐prima de Kiarostami. Em ambos, a problematização do real e do homem frente ao real, no limite do que é ou não representação, essência ou aparência das coisas, serve para se especular a própria natureza do cinema e do espaço da encenação no mundo, ou do mundo como encenação, visto que os personagens/atores ao emprestarem voz a um discurso local estão, ao mesmo tempo, muito impregnados e iluminados por aquilo que há de mais universal na condição humana. São filmes de cineastas que pensam, e que pensam o mundo e o cinema como uma coisa só, como uma experiência única. Cesar Zamberlan Revista interlúdio – 15 de dezembro de 2012 Disponível em http://www.revistainterludio.com.br/?p=4835 JOGO DE CENA de Eduardo Coutinho No meio de tantos outros nomes, a pergunta se faz inevitável: por que Eduardo Coutinho como expectativa? Direto ao ponto: pois seu novo filme, Jogo de Cena, parece realmente apontar para um novo caminho, despertando a nossa curiosidade. Após alguns filmes de destaque como Santo Forte, Babilônia 2000, Edifício Master ou Peões o diretor pareceu consolidar um modo específico de se fazer documentário. O que em um primeiro momento foi importante para a reformulação do documentário brasileiro, no instante seguinte tornou-­‐se uma influência negativa, pois os novos realizadores pareciam presos a um modo específico que Coutinho parecia determinar. E quando todos o seguiam, o diretor se distanciava do modelo que criara. O Fim e o Princípio marca uma guinada em sua carreira. O estudo de campo feito numa pré-­‐filmagem é deixado de lado e aparece uma entrega na busca pelo novo e pelo desconhecido. Na chegada a Paraíba, logo no começo do filme, o diretor revela sua curiosidade pela cultura e, sobretudo, pelo cotidiano local. Araças é o ponto de descobrimento. Coutinho, conhecedor da abordagem e da manipulação sadia do entrevistado, era conforontado com um universo que desconhecia e o seduzia. Deparava-­‐se com gente que não necessariamente se identificava com aquele registro de então, muitas vezes desviando-­‐se da câmera não por vergonha ou revolta, mas por desinteresse. E é essa espontaneidade vivaz presente em O Fim e o Princípio (como resultado obtido) que parece fazer com que Coutinho sinta vontade de descobrir o novo, de tirar a máscara onde ela existe. E, agora, de colocá-­‐la onde ela não está presente. Jogo de Cena parece ser um trabalho no mínimo interessante, em que o diretor parte da premissa de questionar o postulado da imagem com suas variabilidades dramatúrgicas. Ao colocar um anúncio no jornal, convidando uma série de mulheres a realizarem o documentário, o diretor trás para si pessoas interessadas no documentário e ao mesmo tempo no jogo que propõe. Coutinho convida as personagens a compartilharem suas experiências, alegrias e tristezas, chamando para bem perto as experiências pessoais mais marcantes. Mas se o filme indica apontar para a familiaridade e reconhecimento na história do outro, o postulado da verdade é posto em cheque quando atrizes também são convidadas a participar do jogo, contando suas experiências pessoais e interpretando as experiências já narradas pelas "não-­‐famosas". Uma mistura que parece confundir o espectador, fazendo-­‐se questionar se está ligado nos relatos pessoais e "verdadeiros" ou na interpretação. Como complemento, o diretor fez um filme nú. Sem cenário, sem figurino. Uma cadeira colocada em um teatro e uma mulher sentada nela. Assim é Jogo de Cena. Basta saber agora se os questionamentos e levantamentos que o filme parece levantar são correspondidos na imagem. Raphael Mesquita Contracampo – revista de cinema Disponível em http://www.contracampo.com.br/89/artjogodecena.htm Morro do Céu (2009), de Gustavo Spolidoro As grades do rigor Morro do Céu parte de uma estrutura interessante, além de um pouco negligenciada no panorama de produção brasileiro: usar um material captado de forma documental para organizá-­‐lo tal qual um filme de ficção, construindo uma dramaturgia. Isso, porém, nunca fica literalmente expresso, podendo apenas ser intuído pela maneira como as cenas se apresentam. Não temos discussões metalinguísticas dentro do filme, ou um plano sequer onde há presença do diretor – nem mesmo em voz off – ou da equipe. Na verdade, não existe equipe, tampouco: Morro do Céu é captado solitariamente por Gustavo Spolidoro, e organizado como material contínuo na montagem. A impressão – ou incerteza – de estarmos diante de uma organização ficcional é questão de estrutura: em cada sequência, predomina a montagem em raccord espacial ou sonoro, enquanto a estrutura-­‐macro do filme organiza essas sequências entrecortadas por elipses. Não estamos, como em alguns dos filmes exibidos na Semana dos Realizadores, perto de Jogo de Cena, Santiago ou Serras da Desordem; mas sim, de Robert Flaherty e Jean Rouch. Existe, porém, uma certa subversão da abordagem comum a ambas as referências. Pois enquanto Flaherty e Rouch partiam da re-­‐encenação de costumes para fins etnográficos, aqui, a aproximação de Spolidoro com as personagens e o espaço é de essência narrativa ainda mais primária: construir um autêntico boy meets girl. A ida à serra italiana do Rio Grande do Sul – local que, para além do túnel, carrega um ar de novidade cinematográfica semelhante ao das serras japonesas de Suzaku, de Naomi Kawase – é para acompanhar um rapaz chamado Bruno e, como logo descobrimos, sua primeira paixão por uma menina de Potiporã – cidadezinha próxima ao morro onde o rapaz mora com a família, que dá título ao filme. Existe, sim, um interesse por tudo aquilo que torna esse espaço particular: dos sotaques que fazem pensar em Fargo, aos costumes e festas que mobilizam aquela comunidade. Mas, ao fim das contas, a ambientação prepara uma atmosfera para aquilo que mais interessa a (e em) Morro do Céu, que é justamente a possibilidade de se construir dramaturgia a partir de algo tão mínimo e avassalador quanto uma primeira paixão. Esse frescor da situação filmada envolve o filme em um prazer bastante raro, que se vive em pequenas doses ao longo da projeção. Mas uma primeira paixão pode ser tudo, menos modesta em seus arroubos. É preciso atenção, portanto, à maneira como Gustavo Spolidoro se aproxima do que ele filma, para se perceber problemas que se escondem – com bastante facilidade, e alguma justiça – atrás de uma beleza plástica que, embora notável, é incapaz de reproduzir integralmente esse feelgood. Spolidoro determina, para a câmera e a montagem, um protocolo tão fechado de convenções que acaba por desperdiçar, em grande parte, aquilo que poderia produzir um impacto realmente especial a partir delas; o momento em que uma primeira paixão pode se tornar uma paixão de (e por) cinema. Pois o jogo estabelecido por Bruno e sua pequena – muito sabiamente deixada sempre no extracampo – é uma dança de atração e repulsa, cheia de regras sociais que a própria paixão inspira a quebrar; algo que raramente contamina o filme. Sobrevivem os planos fixos, enquadrados com notável rigor (existem, ao menos, uma meia dúzia de planos de extraordinária beleza de composição), que observam a cena com um pudor enorme em interferir naquilo que ela filma. Percebam, porém a diferença entre se filmar o pudor, e filmá-­‐lo com pudor: mesmo nos filmes que mais abertamente se entregam à observação – de Lumière a Wiseman –, o salto da reportagem pro cinema sempre esteve na reorganização de um espaço a partir de uma impressão que a dinâmica interna desse espaço produzia, e determinava à câmera. Mesmo no mais estrito cinema direto, o espaço sempre se curvou às deformações da zoom. O que falta a Morro do Céu para ser um grande filme – pois não há dúvidas que, mesmo quebradiço, o interesse que ele suscita é íntegro – é perceber que só faz sentido oferecer às situações filmadas uma mise-­‐en-­‐scène que é anterior a elas se essa inadequação produzir um curto-­‐
circuito. Aqui, isso não existe; se perde, com isso, tanto a crise quanto a entrega. A reticência em interferir não pode ser confundida com ética: às vezes é preciso se aproximar, se afastar, se colocar criticamente dentro de uma situação para produzir, assim, um sentido novo dentro dela. Caso contrário, o que resta é um protocolo anterior, paralelo ao que é filmado, que nem sempre é capaz de extrair toda a potência das situações que se oferecem para a câmera. Esse problema é perceptível tanto na maneira de enquadrar quanto, ainda mais gravemente, na montagem. Pois a insistência nos planos médios e gerais é lentamente sabotada pela estranha opção de deixar todos os planos com uma duração quase padronizada, com cortes que piscam na tela a cada seis segundos, sem produzir com isso um efeito significativo. Morro do Céu poderia ter a mesma duração com 2/3 dos planos que tem, não por uma defesa incondicional da duração, mas sim de planos essenciais, que durem o quanto sua ação interna solicitar. Muito parecido com filmes como A Casa de Sandro, de Gustavo Beck, e Dia dos Pais, de Júlia Murat e Leonardo Bittencourt, Morro do Céu mostra uma enorme consciência na organização interna do plano – da unidade cinematográfica – que não se repete na sensação de unidade que precisa conjugar esses planos. A relação com o filme se dá neste terreno ao mesmo tempo desigual e estimulante, onde o impacto de cada partícula nunca extravasa para a obra completa, mas é ainda forte o suficiente para sustentar um certo transe. Talvez seja esta a maior dificuldade da passagem dos filmes de curta-­‐metragem para os longas: perceber que os atos respondem a um corpo muito maior, que depende ainda mais de uma harmonia, de um equilíbrio entre tempos e formas visuais – algo que, no curta, é mais fortemente condicionado ao impacto de cada golpe. Quanto maior o corpo, mais sensível ele é à vertigem. Por conta disso, o filme de Gustavo Spolidoro inspira sensação muito semelhante à linha do trem inacabada que seus protagonistas visitam, transitando em um limite tenso entre o que não foi descoberto e o que foi abandonado. Após a desilusão amorosa – o fim da história, e o fim da noite – vemos Bruno caminhar, sobre os trilhos, de volta para a casa. Em plano mais aproximado, o rosto do garoto aparece em contraluz, completamente escuro, cercado pelo leve brilho da noite. Na banda sonora, ouvimos o barulho do trem em movimento, sem sabermos se o som é sobreposto àquela cena, ou se o trem se aproxima, de fato, fora do quadro. Nesses segundos onde a diegese é suspensa, jogando o espectador em um estado de indefinição que o aproxima da personagem, Spolidoro constrói, enfim, um momento de grande força – que será, em parte, neutralizada pelo restabelecimento da diegese no plano final. Ali, no casamento de dissonâncias que move aquele plano, parece existir o grande filme que Morro do Céu nunca chega a ser. Fábio Andrade Revista Cinética -­‐ Setembro de 2009 Disponível em http://www.revistacinetica.com.br/morrodoceu.htm Os Famosos e os Duendes da Morte, de Esmir Filho, e Morro do Céu, de Gustavo Spolidoro “Estar perto não é uma questão física” escreve em determinado momento o protagonista de Os Famosos e os Duendes da Morte em seu blog. Para Esmir Filho nada é “uma questão física”. Seus personagens flutuam em devaneios, videologs, fotoblogs e músicas como a névoa disforme paira sobre a pequena cidade gaúcha em que se passa o filme. O empuxo que acomete os corpos que se atiram da ponte da cidade em direção à morte é tratado como uma vaga ameaça, uma sombra passível de gerar expressões pseudo-­‐poéticas (“gostaria de fotografar o rosto deles quando se dão conta de que não há mais volta”) e nunca como um risco real que perfure a sociedade. Desconectados, seus jovens desconhecem o embate com a alteridade, pois seus dilemas giram apenas em torno deles próprios: o desejo do rapaz em partir para ver Bob Dylan tocar não é confrontado a uma proibição materna ou a uma falta de recursos financeiros, mas simplesmente a um misto indefinido de indecisão e ausência de encorajamento. Ou seja: entre esta consciência e o mundo há uma barreira maleável, mas tão intransponível quanto imaterial, como a metáfora visual do papel celofane em Saliva. Neste sentido, o uso da teleobjetiva é preciso: os personagens não pertencem ao cenário que habitam e só podem efetivamente se unir a ele como “manchas de luz” que se confundem na abstração das formas, nunca como corpos dotados de matéria e que se chocam (como bem demonstra o plano final, aliás, em que, após contemplar o “abismo” da ponte eleita pelos suicidas locais, o personagem parte em direção ao infinito e some na paisagem desfocada). A morte é, portanto, apenas uma ligeira reconfiguração da vida. A inexistência de corpo não afeta estes fantasmas que se apaixonam e se relacionam de forma espectral através da virtualidade de chats e afins. Como esperar deles, portanto, qualquer sentido de realidade, qualquer responsabilidade afetiva? Muito distante da verdadeira força presente na música de Bob Dylan – utilizada aqui apenas como referência estilizada e cult – estes personagens existem em um mundo de mentira, idealizado, construído peça a peça para formar um ambiente asséptico onde nenhum elemento de risco jamais poderá penetrar por um descuido qualquer. A colônia alemã é apenas um mundo distante, controlável em suas nuances. O sentido de comunidade, assim como o de família, está ausente, pois tudo o que temos são indivíduos. E a idéia de país, então, chega a parecer anômala. O amor pode, pois, desfilar como esta entidade de reverberações metafísicas cujo habitat privilegiado é a imaginação: uma vez que a matéria já foi desqualificada como constituinte do mundo, os corpos podem tranquilamente prescindir da carne para se relacionarem. A menina está morta, mas o espírito do rapaz também não toca a terra. E eis que o puritanismo bate à porta, fazendo coro ao amor adolescente bem-­‐comportado dos vampiros de Crepúsculo. Em Morro do Céu, de Gustavo Spolidoro, a história é bem diferente. O cenário é praticamente o mesmo, assim como a faixa etária dos protagonistas, mas a urgência da vida faz-­‐se presente com uma força pouco vista no cinema brasileiro recente, em especial o documental. O conflito natural entre Bruno, em seu início de vida adulta, e o mundo é descortinado pouco a pouco numa narrativa de contornos ficcionais com surpreendentes ecos de Jean Rouch. Primeiro, conseguir passar de ano na escola, em seguida, conversar com os pais sobre o futuro: estudos, curso de mecânico... E, ao mesmo tempo em que o trabalho de colheita o chama, há o primeiro amor a ser conquistado. Solicitado intensamente pelo entorno, Bruno é uma subjetividade em formação que se esforça para negociar sua identidade. Ao mesmo tempo em que sua ligação com a terra é intensa, como testemunham suas longas peregrinações com os amigos por entre as árvores, entre a conectividade e a investigação, a vontade de partir e as ambições maiores que o estreito território irrompem apontando para o fora daquele universo. A observação de Spolidoro é a do campo-­‐contracampo, a de um olhar que não se furta a fazer inferências, a do registro que incorpora as contradições e a dinâmica complexa do mundo – por menor que este aqui se apresente. Se em determinadas passagens o valor de documento de um estilo de vida que, embora circunscrito a um espaço e um tempo específicos, reverbera uma cultura que em muito lhe ultrapassa nos faz lembrar dos Profils Paysans de Raymond Depardon, em outras o que temos é o autêntico prazer de dar a ver ações concretas que revelam o interior de um personagem. Bruno se desvela nos gestos, nas falas espontâneas, na interação com tudo que o cerca. Paralelamente, a perspectiva da conquista da menina concede ao filme um elemento propulsor da narrativa, ao construir uma expectativa no tempo: a menina anuncia (sob dúvida) que o encontro deles apenas se dará no carnaval de rua da cidade. Até lá, portanto, instala-­‐se este impasse: o que fazer para garantir que o encontro se dê de fato, para prolongar o interesse dela e impedir que este se esvaia? Encontrado tal elemento de tensão que sustenta em grande parte a aura ficcional do relato, Spolidoro pode dedicar-­‐se a registrar um cotidiano marcado pelos ciclos da natureza, uma rotina de hábitos que se repete dentro de uma idéia de tempo tradicionalmente cíclica, mas que o filme ousa apresentar como espiralada. O movimento aqui não é um constituinte estético-­‐filosófico que molda os planos do filme, mas uma concepção profunda da natureza: o universo buscaria de forma inerente sua superação. Bruno é o vetor que nega a alta taxa de suicídio entre os jovens locais, que não se contenta com o horizonte de montanhas instransponíveis, que é alimentado por uma inquietude tão forte e natural como as forças de permanência que alimentam sua comunidade. E Morro no Céu é o filme que se recusa a retratar seu objeto sob a chave em voga da observação carinhosa da singularidade (eventualmente salpicada de exotismo), que se aventura na construção de uma narrativa em que a dialética entre a câmera e a matéria do mundo é a pedra de base. Em suma, um filme para o qual tudo é, em maior ou menor medida, uma questão física. Tatiana Monassa Contracampo – revista de cinema Disponível em http://www.contracampo.com.br/94/pgtiradentes02.htm Documentário 'Morro do Céu' mostra juventude rural no RS Produção retrata cotidiano de um garoto de 16 anos morador da região. 'Morro do Céu', documentário do gaúcho Gustavo Spolidoro, faz boa companhia a duas excelentes ficções sobre o mesmo tema, a adolescência no Brasil -­‐ os recentes e premiados 'Antes que o mundo acabe', de Ana Luiza Azevedo, e 'As melhores coisas do mundo', de Laís Bodanzky. O filme de Spolidoro, cineasta com uma longa carreira no curta-­‐metragem e alguma estrada na ficção ('Ainda orangotangos'), tem mais afinidades com o trabalho de sua conterrânea, Ana Luiza Azevedo, por se passar no interior gaúcho. Mas é uma pequena afinidade, já que 'Morro do Céu' se aproxima de uma juventude bem mais rural. E, pelo fato de ser um documentário, certamente faz escolhas bem diferentes em sua narrativa. Rito de passagem O diretor faz-­‐se invisível por trás da câmera, que acompanha quase como uma segunda pele o seu protagonista, Bruno Storti, 16 anos. Morador da pequena Morro do Céu, localidade da serra gaúcha sob influência da imigração italiana, Bruno torna-­‐se o emblema de um ritual de passagem para a vida adulta. Está no limiar dela, com todas as suas incertezas. No momento em que o filme começa, Bruno não deu conta ainda de sair do Ensino Fundamental. Uma de suas angústias é este exame, além da indefinição profissional -­‐ ele flerta com a mecânica, mas não está seguro disso -­‐ e amorosa. Uma certa garota na vizinha cidade de Cotiporã é objeto de seu desejo. E o celular, como aconteceria com qualquer garoto das maiores cidades do mundo, torna-­‐se a caixa de ressonância de sucessivas mensagens e ligações enviadas mas nem sempre respondidas. Um Carnaval próximo é o "deadline" desta situação. Intimidade revelada A câmera de Spolidoro é sensível o bastante para entrar numa intimidade com Bruno que permite cobrir com imagens mesmo seus silêncios, os tempos mortos, os vazios de palavras e ações -­‐ que sintonizam com clareza a estreiteza, por vezes, desta vida rural de onde a imaginação e os sentimentos do personagem esboçam escapar. Há belas imagens, como as que mostram Bruno e amigos caminhando ao longo dos trilhos do trem -­‐ e que evocam filmes sobre outras adolescências, como 'Conta comigo' (1986), de Rob Reiner. A sequência que acompanha o garoto voltando a pé, no escuro, depois do Carnaval que decide o rumo de seu primeiro romance, é eloquente como poucas. Mais do que acontece em alguns de seus filmes anteriores, nos quais tende a resvalar para um estetismo nem sempre eficaz, aqui Spolidoro revelou-­‐se capaz de uma quase sempre adequada economia narrativa. Integrante do Projeto Vitrine, dedicado à exibição de filmes brasileiros, o longa de Spolidoro será precedido, em sete das oito capitais que o integram -­‐ São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Porto Alegre, Curitiba, Goiânia e Vitória -­‐, do curta 'Recife Frio', de Kléber Mendonça Filho (PE), que já foi premiado em diversos festivais, como Brasília e Cine PE. O curta encena uma fantástica onda de clima frio sobre a ensolarada capital de Pernambuco, com todas as suas incríveis consequências sobre o turismo e a população local. No Recife, também integrante do projeto, porém, só será exibido o longa 'Morro do Céu'. Neusa Barbosa, do Cineweb G1 – 22 de junho de 2011 Disponível http://g1.globo.com/pop-­‐arte/noticia/2011/06/estreia-­‐documentario-­‐morro-­‐do-­‐
ceu-­‐mostra-­‐juventude-­‐rural-­‐no-­‐rs.html O Céu Sobre os Ombros (2010), de Sérgio Borges O Céu Sobre os o Ombros Elevar ao máximo o exercício de observação. Observar e interferir como duas peças possíveis no mesmo jogo. Adentrar o universo de três personagens, mudar-­‐lhes os nomes, solicitar que encenem, misturar o que não é deles ao que é, através de uma construção que não enfatiza nem um nem outro elemento e deixa a cena fluir, no bailar de todas as incongruências próprias de ser humano, levando-­‐nos para o miolo disso tudo, como observadores sem voz, receptores de uma imagem que vem sem julgar. Temos visto nos últimos anos muitos filmes que parecem bater de frente com as insistentes tentativas de análise que tentam lidar com terrenos de impalpável conclusão interpretativa totalizante e vêm dando provas de que, para além de questionamentos acadêmicos, é possível fazer cinema sem nenhum tipo de adequação teórica. Um cinema que é real na mesma medida que é risco, é ficção, é silêncio, é pergunta e é resposta. Não há um caminho uníssono, mas a possibilidade de diversos caminhos sem que se precise chegar a algum lugar ou conclusão. Afinal de contas, o cinema é uma arte aberta, ainda que saibamos que o ato de enquadrar implica intrinsecamente em retirar do quadro todo um universo que pulsa fora dele. Nesse frisson documentário/ficção/real/fabulação, diversos diretores contemporâneos vêm trazendo questões, colocando possibilidades e abrindo caminhos fascinantes de se ver. Dá-­‐se nome aos bois, mas as nomenclaturas não abarcam nem excluem nada: é documentário e ficção, é ficção documentada, é vida encenada, é cena projetada. Nesses processos, o gozo que fica é o de saber que para além de qualquer coisa, cinema é arte. Os movimentos são muitos, diversos e também semelhantes, e o mais curioso disso é que têm sido feitas obras quase que simultâneas, que por vezes parecem ir a lugares semelhantes para nos mostrarem como ainda existe espaço para mais e mais explorações estéticas e narrativas. Na última década vimos essas questões reflorecerem (uma vez que não são filmes que parecem reivindicar vanguardismos) em filmes como Juízo, Serras da Desordem, Santiago, Sábado à Noite, Jogo de Cena, Moscou, etc. E em pouco intervalo de tempo pudemos ver Avenida Brasília Formosa, Transeunte, Morro do Céu lidarem com os gêneros os “desgeneralizando” – nesses filmes o que é próprio da ficção também faz parte do documentário e o que é registro e documentação também inclui movimentos ficcionais. Luta-­‐se para encontrar definição para o cinema documentário e os processos criativos do cinema contemporâneo vêm desencadeando novas formas e possibilidades. Nesta busca (na maioria das vezes acadêmica) pelo risco do real, temos visto que o real não se impõe a nada. Ele é, ele existe, e assim como na vida há espaço para o que é próprio da realidade, há também lugar para o que vem da fantasia (em nossos delírios, autoenganos, máscaras). Sérgio Borges parece muito consciente disso neste filme que consegue ser enorme mesmo com sua pouca metragem (61 minutos). Enorme, pois grandioso em diversos aspectos. Se no cinema direto pretendeu-­‐se fazer um cinema que podia registrar o real sem interrompê-­‐lo em interferências que retiravam dele a naturalidade que lhe é própria, no cinema verdade compreendeu-­‐se que intervir não é violentar a forma documental. Foi-­‐se ao real de cara limpa e desse terreno, ao longo de toda a história do documentário, foram realizadas obras incríveis. Por quê então, na era da experimentação com o digital, em época de produção desenfreada de imagens a todo tempo, em meio a um momento de ascensão político-­‐econômica nacional estes filmes recorrem à forma documentária para nela repetir gestos, introduzir dispositivos, roubar imagens, emprestar olhares, questionar, refletir, perguntar em voz alta? Estaria o cinema brasileiro em sua forma documental experimentando a possibilidade de encabeçar um movimento que viria driblar ainda mais suas limitações? E que momento incrível de se ver: um cinema que vem sido construído a partir de uma premissa já debatida, já ecoada nas palavras de Godard (que dizia que todo documentário é também uma ficção), mas uma premissa que privilegia o olhar (do diretor e do ser filmado) e em que tem sido feito um movimento (como bem disse Cláudia Mesquita em um debate na 14ª Mostra de Cinema de Tiradentes) de inserção da ficção como forma de abordar o real. Em O Céu Sobre os Ombros caminhamos com seus personagens (os quais Borges não furtou chamar de “atores” na apresentação de seu filme em Tiradentes) sem pressa. Temos ali instantes de observação distante, mas também closes incríveis de seus rostos em enquadramentos de força expressiva bergmaniana saltando à tela. Temos também instantes de total intimidade, em que os vemos nus, professando suas crenças, assistindo a um jogo de futebol e transando. Em O Céu Sobre os Ombros não há problema em encarar a câmera, assim como agir como se ela lá não estivesse também é parte de sua mise-­‐en-­‐scène. O filme conjuga dúbios, idiossincrasias, credos e preconceitos sem falar diretamente sobre eles, sem utilizar de qualquer estratégia narrativa que possa sugerir uma posição ou julgamento moral. Observa-­‐se como no cinema direto, interfere-­‐se como no cinema verdade, interpela-­‐se como na narrativa documental clássica e a cena é abandonada sem conclusão. Fazemos arte – é o que grita na tela. Aquelas pessoas são uno e ao mesmo tempo são todos nós: homens, mulheres, bons, maus, justos, injustos, egoístas, amorosos, religiosos, violentos. A distância entre os personagens é apenas de abordagem narrativa – surgem numa montagem paralela e em momento algum se encontram. São três vidas distintas, mas são seres que não necessariamente são irmãos perante a Deus, mas sim nossos irmãos perante o cinema e a vida. Carregamos o céu sobre nossos ombros e seguimos dia a dia com e sem ilusões. Seguimos acreditando na realidade sem duvidarmos dela. Querendo viver e morrer ao mesmo tempo. O homem com nome e sotaque africanos é existencialmente desencantado. E fala de pênis e sexo sem pudor aparente, escreve, dá conselhos ao telefone, pede à esposa (ou namorada, irmã, não sabemos) que tente ficar viva até que ele acorde de seu cochilo, mesmo tendo lhe aconselhado o suicídio. Foge do filho que tem retardo mental, pois não quer enfrentar a dureza de vê-­‐lo, mas ao mesmo tempo vai a ele e faz uma declaração de amor profundo. A transsexual anda nua pela casa, secando seus cabelos, aplicando maquiagem, observando os seios e passando tranquilamente com seu pênis defronte a câmera. É mulher e puta, é professora e acadêmica, e é homem também. O terceiro personagem aparece ostentando uma jaqueta da Galoucura, torcida organizada do Clube Atlético Mineiro, de Belo Horizonte. Torcida que não está em suas melhores fases, pois recentemente alguns de seus membros assassinaram um torcedor do time rival em uma morte estúpida, violenta e primitiva. Mas lá está o rosto deste homem ocupando a tela. Ele é membro de torcida organizada e também do movimento hare khrishna. Reza em hindu e passeia pelas ruas de Belo Horizonte pichando muros e andando de skate. Sérgio Borges fez um filme enorme, pois o deixou crescer em silêncio. Estamos todos ali, de alguma forma. Pessoas que amam e odeiam na mesma sentença, que querem viver e vivem constantemente suas pulsões de morte e sexo, são puritanos e prostitutos em intervalos de horas e carregam consigo uma beleza que somente o cinema é capaz de capturar. O último plano, da transsexual Dani sentada em sua cama é de uma poesia descomunal: seu rosto aparece grande, olhando para os lados enquanto o vento balança seus cabelos. Uma emulação incrível de um universo de fantasia abrigado pelas marcas de shampoo. Linda, ela posa para a câmera como se provocasse o olhar de um pintor do século passado que foi pago para pintar-­‐
lhe num quadro pelo qual ele seria lembrado eternamente. Em um corte vemos o plano aberto e a fantasia sendo desfeita: o calor excessivo, o quarto singelo e o locutor da rádio comentando uma circunstância política do país. Como se Borges dissesse: tomem aí o real, pessoas. É possível desfazê-­‐lo com o simples revelar de partes do enquadramento. Basta não se enganar, posto que cinema é sonho e pesadelo, a poesia é bela e também é suja, a vida é boa e insuportável, a ficção pode ser documentada, assim como o real pode ser encenado. Como transitar nisso tudo? Talvez a partir de uma verdade própria da arte – podemos ir a qualquer lugar, projetar qualquer sentimento e convocar o olhar tanto à reflexão e desconforto, como à comodidade de não nos responsabilizarmos pela cena. Tudo pode, nada pode (pois como disse o diretor de “Santos Dumont Pré-­‐Cineasta?” Carlos Adriano, o cinema pode quase tudo). Aceitemos, portanto, o peso do céu sobre nós, venha ele de evidências da química, física ou de dentro dos templos, igrejas e de nossas mentes. Mas não nos esqueçamos do óbvio: ele está em todos os lugares. Ursula Rosele Filmes Polvo Disponível em http://www.filmespolvo.com.br/site/artigos/raccord/1150 O Céu sobre os Ombros A transsexual Evelyn, o hare krishna Bogus e o escritor angolano Lwei Bakongo são os personagens de O Céu sobre os Ombros, de Sérgio Borges, vencedor do Festival de Brasília de 2010. São personagens diferentes, escolhidos entre dezenas de outros candidatos. O que o diretor viu neles? Talvez, num primeiro momento o que lhe pareceu a diferença radical em relação à norma. Uma transsexual, formada em psicologia, professora universitária e prostituta. Outro, hare-­‐krishna, líder da Galoucura, a fanática torcida organizada do Atlético Mineiro, cozinheiro de restaurante natural e atendente de telemarketing. O terceiro, um angolano com ambições literárias, avesso ao trabalho e pai de filho deficiente. Não é gente que se encontra todo dia. São histórias incomuns, certamente, e esse fato deve ter pesado na hora da seleção. Mas, mais do que o conteúdo dessas pequenas biografias, parece ter contado o modo como os personagens se dispunham a interpretá-­‐las. Isto é, vivenciá-­‐los para o outro, no caso o diretor, ou mais ainda, o olho anônimo da câmera. O que faz com que pessoas se “abram” diante de uma câmera e deem uma interpretação tão viva de si mesmas? Em especial quando se trata de pessoas que tão obviamente se prestariam ao exercício da intolerância alheia e da chacota preconceituosa? Possivelmente, a confiança no diretor. A fé de que suas vidas não seriam falsificadas, deturpadas ou usadas contra elas. Confiança de que poderiam interpretá-­‐las (quer dizer, ficcionalizá-­‐las) de maneira livre e tendo por testemunho ouvidos e olhar acolhedores. Apenas dessa forma é possível chegar a um resultado como o de O Céu Sobre os Ombros, no qual a força reside tanto na distância como na proximidade que sentimos em relação aos personagens. São diferentes de nós; mas também tão iguais a nós… A maneira como são tratados faz com que esses personagens, ao longo do filme, percam qualquer pecha de exotismo que de início poderiam ter. Reúnem-­‐se no traço comum de humanidade que nos une. É esse o procedimento que poderíamos chamar de autoficção, já que o termo, embora impreciso, está na moda. Ou seja, a maneira como tento ver a mim mesmo, não através de um espelho que me refletisse com exatidão sempre problemática, mas através de um personagem de mim mesmo que vou interpretando. E de tal modo que se aproxime, tanto quanto possível, dessa verdade de mim mesmo, no limite inacessível. É, portanto, um trabalho de construção de si e não de reflexão – com tudo o que este último termo conota de mecânico e de exatidão ilusória. Luiz Zanin Oricchio O Estado de S. Paulo – 18 de novembro de 2011 Disponível em http://blogs.estadao.com.br/luiz-­‐zanin/o-­‐ceu-­‐sobre-­‐os-­‐ombros/ Em transformação O Céu sobre os Ombros se alinha a Morro do Céu, de Gustavo Spolidoro, e Avenida Brasília Formosa, de Gabriel Mascaro, em uma mesma estratégia, surpreendentemente recorrente para filmes separados por tão pouco tempo: partir de um material documental para uma montagem que adere às convenções da ficção, superando as questões do próprio documentário ao ficcionalizar as personagens. O específico do documentário -­‐ essencialmente uma questão ética, de quem lida com pessoas que seguirão com suas vidas fora do filme -­‐ é trocado por uma apropriação que tenta tirar deste contato com o real apenas seu impulso de autenticidade. Três personagens são acompanhados pela câmera e reunidos em uma montagem aqui realmente paralela -­‐ em trajetórias que nunca se cruzam -­‐, em uma escolha que se assume absolutamente deliberada: não há nada que aparentemente conecte as três protagonistas a não ser o olhar do próprio filme e seu contato com a mesma câmera. A similaridade entre os três filmes não pára por aí: todos eles são norteados por uma estratégia de filmagem em tableaux, com enquadramentos rigorosos e fotografia de expressiva plasticidade (aqui, de Ivo Lopes Araújo, mais uma vez surpreendente em suas escolhas de cor e luz), investindo em uma narrativa que é menos calcada em sua própria linearidade, e mais no fluxo e orquestração dos tempos e deslocamentos internos de cada cena. Em todos os casos, o limite dos filmes é o limite da proposta: como encontrar uma estrutura de dramaturgia onde ela é imprevista? É possível articular esses sentidos sem violentar a autenticidade da experiência? -­‐ a propósito, uma certa aleatoriedade que servia como primeiro ponto de atração do filme por aquelas personagens e situações. O Céu sobre os Ombros, nesse sentido, toma uma decisão bastante feliz, que tira do acaso a responsabilidade pela dramaturgia: é um filme não somente sobre determinados personagens, mas uma afirmação de um ethos em relação ao conceito de "personagem" cinematográfico. Pois o que é surpreendente no filme de Sérgio Borges é a maneira como a instalação no real é constantemente surpreendida por personagens que se desdobram incessantemente em cena (e, não à toa, são pessoas que mudaram seus próprios nomes), levando a encenação para lugares que antes não pareciam possíveis, entortando nossa percepção sempre que achamos que já os conhecemos. É isso que há de comum aos três protagonistas do filme: sua capacidade não exatamente de reinvenção para a câmera, mas de revelar a incapacidade do cinema de captá-­‐los em toda sua multiplicidade, de tipificá-­‐los para um roteiro. A busca no real se justifica justamente nessa extrapolação da vida em relação ao cinema: um travesti se revela um estudioso sobre sua própria prostituição; um monge Hare Krishna que é skatista, pichador de muro e devoto do Atlético Mineiro; uma figura pictórica de um homem que anda pela casa vestindo apenas um par de meias cor-­‐de-­‐rosa se revela um escritor e pai de família; etc, etc etc. Se Morro do Céu e Avenida Brasília Formosa esbarravam nas limitações de seu próprio projeto (em um caso, filmando a busca por um tema; no outro, provocando-­‐o em conexões que o mundo não oferecia), O Céu sobre os Ombros avança não só ao tematizar essas próprias limitações, mas também ao promover um encontro um tanto improvável entre o cinema de modulações que vemos em Adeus ao Sul, de Hou Hsiao-­‐hsien, e Ossos, de Pedro Costa (filme aqui muito evocado pela plasticidade pálida de seus tons, embora eles sejam sensivelmente mais quentes do que a palheta de cinzas do filme de Pedro Costa) com o ethos realizador de Eduardo Coutinho: não há ser humano que se permita reduzir aos limites de uma personagem. É justo, portanto, que as personagens e o filme expressem isso, apontando sempre para fora, esbarrando nos limites inventados do quadro, dos cortes e da duração -­‐ por vezes com resultados um tanto frustrantes para um filme de dramaturgia, especialmente claro na ausência de um final: O Céu sobre os Ombros não acaba; pára. Neste encontro entre o controle e o descontrole, O Céu sobre os Ombros faz diversas operações de re-­‐significação que destacam essa relação, seja por meio da montagem ou do uso da música -­‐ especialmente forte quando salta da diegese para a não-­‐diegese, no plano em que Murari Krishna anda de skate pelas ruas da cidade. Em um dos momentos mais bonitos do filme, uma panorâmica por uma paisagem aos poucos a re-­‐situa como um papel de parede no serviço de atendimento onde trabalha Murari Krishna, que vemos sentado frente ao falso parque. Em um único plano, Sérgio Borges realiza o jogo de dentro/fora que Tiago Mata Machado expõe como conceito em Os Residentes, e que isso aconteça no contato com um cenário real (e não construído para o filme) só reafirma a força do procedimento. Fábio Andrade Revista Cinética -­‐ Novembro de 2010 Disponível em http://www.revistacinetica.com.br/ceusobreosombros.htm A autoficção como retiro espiritual, intelectual e afetivo, contra a desarticulação urbana A indistinção entre documentário e ficção, um tema constante no cinema brasileiro na última década, está no centro da produção do coletivo Teia desde a sua criação, em 2003. Filmes como o recente Girimunho, que esteve em Veneza neste ano, e A Falta que Me Faz, que teve lançamento discreto nas capitais e hoje passa no Canal Brasil, testam os limites e os cruzamentos desses dois gêneros. É um processo que não se esgota porque os filmes da Teia têm em comum uma eterna procura: seguem personagens em busca de um espaço e um tempo que lhe sejam próprios, personagens atrás de pertencimento. Autoficção, uma palavra bastante recorrente quando se discutem os docudramas brasileiros, é termo apropriado à obra do coletivo: são filmes com gente "real" que diariamente formula "ficções" nessa busca por estar no mundo. O premiado O Céu Sobre os Ombros talvez seja o filme mais acessível da Teia porque lida com a autoficção de uma forma quase literal. De seus três protagonistas -­‐ a transexual Everlyn Barbin, o atendente de telemarketing Murari Krishna e o escritor Edjucu "Lwei" Moio -­‐ dois deles se expressam, ou tentam se expressar, no papel. A angústia de verbalizar o que se vive e o que se sente está então, nos aspirantes a escritores Everlyn e Lwei, em um outro estágio de articulação. Isso não significa que O Céu Sobre os Ombros seja menos complexo que os outros filmes do coletivo, ou que o drama com que esses personagens lidam não se reflita em interiorização. A escrita é apenas uma das formas de exteriorizar necessidades. O início do filme dá a entender que as questões de cada um são muito particulares -­‐ a de Murari, espiritual; a de Lwei, intelectual; a de Everlyn, afetiva -­‐ mas nada é tão simples na realidade (ou na boa ficção). Pode parecer aqui que a Teia opera pensando na unidade em seus filmes, o que seria uma grande injustiça com seus cineastas, mas o fato é que O Céu Sobre os Ombros funciona muito bem como narrativa e como olhar sobre a realidade porque consegue aglutinar vários talentos individuais. É um filme dificílimo de ser feito com o naturalismo que se propõe (a câmera segue Everlyn trabalhando como prostituta, Murari no estádio de futebol), e o diretor Sérgio Borges tem no diretor de fotografia Ivo Lopes Araújo e no montador Ricardo Pretti -­‐ cearenses que lançam seus curtas e longas por outro coletivo, o da produtora Alumbramento de Fortaleza -­‐ duas ajudas fundamentais. É com eles que Borges consegue dar forma ao peso inexplicável do tal céu sobre os ombros. Articular angústias, afinal, não é uma busca apenas dos personagens, mas também dos realizadores. A câmera está sempre próxima dos corpos dos "atores" para ver na pele reflexos desses problemas invisíveis, e quando se afasta (como nas cenas dentro da empresa de telemarketing de Murari) é pra resgatar um contexto, situar esses corpos. Não é fácil entender o mal-­‐estar que se abate sobre quem vive em nossas cidades -­‐ a frase do cliente de Everlyn, que quer "dar uma trepada, esquecer um pouco esse mundo", nunca fez tanto sentido -­‐ e O Céu Sobre os Ombros busca identificar na paisagem urbana que mal-­‐estar é esse. Por mais que pareça abrupto, o final do filme é certeiro. Primeiro, porque é impossível encontrar uma resposta definitiva para os dilemas que o filme sugere -­‐ mesmo porque esses dilemas não estão sempre claros. Segundo, porque cada um dos protagonistas encontra, no desfecho, uma conformação mínima que seja para aquilo que os aflige -­‐ inclusive Murari, que, embora não se apresente como escritor, também experimenta a escrita como escape. O verbo é o elemento central de O Céu Sobre os Ombros, enfim, seja um mantra, o canto de uma torcida de futebol, um pixo ou uma discussão de mesa de bar -­‐ e por meio dele é possível o entendimento. A falta do verbo, inclusive, está na fonte do drama de Lwei: a desarticulação do filho. Nesse sentido, Borges faz um filme abertamente intelectualizado -­‐ a cura pela fala, de que a psicanálise trata -­‐ e ao mesmo tempo absolutamente sensorial, no seu olhar desafetado, sem pudor e sem julgamentos diante de tudo aquilo que vê. Marcelo Hessel Omelete – 17 de novembro de 2011 Disponível em http://omelete.uol.com.br/cinema/o-­‐ceu-­‐sobre-­‐os-­‐ombros-­‐critica/