ENGELMAN, Ralph - Associação Imagem Comunitária

Transcrição

ENGELMAN, Ralph - Associação Imagem Comunitária
As origens da tv a cabo de acesso público [na América do Norte]1
Resumo produzido por Ricardo Fabrino – Associação Imagem Comunitária
a partir do texto:
ENGELMAN, Ralph. The origins of public access cable television1966-1972. In:
TANKARD JR., James W. (ed.) Journalism Monographs. No. 123, oct. 1990. pp. 1-47
_______________
Novas formas de jornalismo e televisão não comercial tiveram início com a programação de
acesso público na TV a cabo norte-americana no fim dos anos 60 e início dos 70.
“Acesso público” (ou televisão comunitária) tem sido definido de uma maneira ampla como
canais ou programas disponíveis a cabo e que são controlados por comunidades em vez de
operadoras da rede. Geralmente, tais canais divulgam informação não comercial e costumam
ser oferecidos, sem custos, a entidades não lucrativas.
A introdução da televisão a cabo e da tecnologia portátil de vídeo proporcionou os meios para
fazer da televisão um meio mais aberto, descentralizado, acessível ao cidadão comum e
marcado pela diversidade.
TV Comunitária é uma alternativa tanto à TV comercial como à pública, permitindo uma
participação mais ampla. A tecnologia pode ser pensada como uma ferramenta para o
“empowerment”. É um meio profícuo para o desenvolvimento de um governo mais
responsivo à sociedade e de uma cultura mais democrática.
Quase um pioneiro: Professor Jerome A. Barron liderava esforços nos anos 60 para garantir o
Acesso Público, entendendo-o como parte essencial da liberdade de expressão. Ele
denunciava que o mercado livre de idéias estaria ameaçado pela tendência ao monopólio e à
verticalização na mídia.
Surge um Movimento pelo Acesso Público nos EUA, apontando que a televisão pública
poderia democratizar o sistema educacional, dar visibilidade a talentos artísticos não
reconhecidos e reafirmar o pluralismo e a diversidade política norte-americanos.
Congresso aprovou o Public Broadcasting Act em 1967, que criou sistema televisivo público
centralizado em Washington D.C., o que o tornou mais susceptível a pressões políticas.
1
A publicação deste resumo foi autorizada pelo autor e pela AEJMC (que possui o copyright do texto original):
“AEJMC grants permission to AIC to translate and post the monograph ‘The Origins of Public Access Cable
Television’ by Ralph Engleman published as Journalism Monographs, No. 123, October 1990.”
Em 71, a WGBH Foundation (Boston) estabeleceu um programa diário noturno de meia hora
(Catch 44) para que qualquer grupo local tivesse a oportunidade de veicular suas visões de
mundo gratuitamente. Outras experiências de acesso a serem mencionadas ocorreram na
Filadélfia (Take 12), em Detroit (Your Turn) e São Francisco (Open Studio).
Uma experiência canadense é, todavia, a mais marcante para a construção de um modelo para
a televisão comunitária: o programa Challenge for Change, do qual George Stoney foi diretor
executivo de 1968 a 1970. Logo em seguida, Stoney fundou o Alternate Media Center na
Universidade de NY, essencial para a difusão da televisão comunitária nos EUA. [Obs.:
Programa não no sentido de “programa televisivo”, mas no de um conjunto de ações].
O mencionado programa canadense, criado em 1966, tinha o objetivo de “ajudar a erradicar as
causas da pobreza através de transformações sociais básicas”. A idéia fundamental do
programa (desenvolvido, conjuntamente, pelo National Film Board e um consórcio de órgãos
federais) era usar o cinema para fazer avançar o diálogo entre cidadãos e o governo. Havia
uma grande preocupação com as pessoas desprivilegiadas, com a accountability
governamental e com o processo de manufatura dos filmes (mais do que com o produto). A
experiência buscava afastar-se da macro política, muitas vezes fraudulenta, dirigindo-se para a
conscientização local através da participação popular.
Importante perceber a relação da experiência com alguns aspectos do contexto canadense.
Àquela época Harold Innis e McLuhan tinham estabelecido um viés específico nos estudos de
comunicação. O primeiro frisava a relação entre os meios de comunicação e o
desenvolvimento econômico. Ele via a identidade cultural canadense enraizada em uma
tradição oral minada pela penetração da mídia ligada ao mercado internacional. Innis via a
comunicação oral como inerentemente democrática, ao passo que a comunicação mecânica
seria um agente da uniformização. McLuhan, por sua vez, previu, nos anos 60, que a mídia
eletrônica impulsionaria a civilização para um estágio mais avançado de desenvolvimento. A
mídia representaria uma extensão das capacidades do homem e um estímulo à sua
consciência. O autor explorou a importância crucial da mídia para moldar as relações sociais,
mas inverteu a perspectiva crítica de Innis. O Challenge for Change surgiu logo depois que
McLuhan ficou famoso.
O programa também se baseou na tradição de documentário que teve como pioneiros Robert
Flaherty e John Grierson. O primeiro (1922) realizou um revolucionário retrato da realidade
social sem estúdio, nem atores profissionais. Os próprios retratados tiveram grande
participação nas decisões de produção. Grierson pregava, na trilha de Eisenstein, o propósito
social do cinema. Ele ajudou a estabelecer o National Film Board (1939), e o programa foi
criado com base em sua visão de não fazer filme sobre pessoas, mas com as pessoas.
Vale mencionar, ainda, o caso de um cineasta canadense (Tanya Ballantyne) que fez um
documentário para demonstrar a dimensão da pobreza humana com uma família que vivia em
Montreal. Ele viveu com ela por três semanas, mas montou o filme sem mostrar-lhes o que
narraria e sem dialogar com eles. Resultado: as pessoas foram ridicularizadas e se sentiram
humilhadas.
Isso incentivou a linha de diálogo e colaboração entre filmmaker e seu “assunto”, a qual foi
consolidada no projeto Fogo Island (sobre uma comunidade de pescadores ameaçada de
desaparecer em virtude da crise na indústria pesqueira) – direção de Colin Low. Os moradores
do local escolheram a forma dos filmes (curtas), os tópicos a serem trabalhados e os locais a
serem gravados. Pessoas só eram filmadas se consentissem e eram as primeiras a ver o
material, ajudando na edição. O consentimento também era necessário para que uma produção
fosse exibida fora da comunidade. A experiência favoreceu o diálogo entre a população antes
muito dividida. Muitos se conscientizaram de que compartilhavam os mesmos problemas, e a
identidade coletiva foi fortalecida. Além disso, aumentou o “poder de fogo” dos moradores
em negociações com o governo, sendo que várias conquistas foram obtidas, como a fundação
de cooperativas. Assim, os filmes catalisaram tanto a comunicação interna entre os membros
de Fogo Island como o diálogo externo com as autoridades.
O psiquiatra Anthony Marcus afirma que:
The simple device of reflecting an image magnifies the individual’s self-image. The
emotional dilemma induced by the gap between the image on the screen and the
subjective feeling of the viewers, produces a crisis in which the person attempts to
bring the two aspects into harmony, thus increasing his self-knowledge (p. 11).
(O simples artifício de refletir uma imagem melhora a auto-imagem individual. O dilema
emocional induzido pelo hiato entre a imagem na tela e a percepção subjetiva de quem assiste
produz uma crise na qual o sujeito tenta colocar os dois aspectos em harmonia, incrementando
seu auto-conhecimento).
Mas a experiência com o cinema ainda era bastante complicada, já que havia a necessidade de
uma equipe profissional para dirigir a cena, operar as câmeras e captar o áudio, sem falar nos
custos de revelação e de sincronização e no tempo necessário para a produção.
As câmeras portáteis de vídeo que começam a surgir em finais da década de 60 aumentam
incrivelmente as possibilidades. Muito mais leves e sem a necessidade de toda uma equipe de
suporte, elas fizeram com que gravações pudessem ser bem menos intimidantes e invasivas.
Qualquer um podia aprender a manusear tais câmeras e não havia necessidade de trabalho de
laboratório e de sincronização. O material podia ser visto imediatamente, apagado e
regravado, evitando erros.
O vídeo foi incorporado na produção de Challenge for Change, ainda que houvesse
resistências: tanto técnicas (era difícil a exibição de material gravado nessas câmeras
portáteis, e a resolução era bastante comprometedora) como humanas (o ego de muitos
diretores seria ameaçado pela possibilidade de descentralizar a edição).
Grande projeto realizado em vídeo a ser citado ocorreu em 1969-70 em Alberta, numa área de
mineração. Mais uma vez, fomentou-se a comunicação interna e externa, e uma série de
benefícios foi conquistada. As câmeras portáteis foram usadas como ferramenta de
organização em várias comunidades isoladas e negligenciadas do Canadá.
As câmeras de vídeo também foram utilizadas em ambientes citadinos. Merece destaque uma
experiência realizada com uma organização militante de moradores de uma favela de
Montreal (Saint Jacques Citizens’ Committee). Membros dela, treinados a usar as câmeras,
foram às ruas entrevistar moradores da cidade e analisaram tais depoimentos em encontros
públicos.
Em 1970, o Parallel Institute, auxiliado pelo Challenge for Change, começou a usar o
equipamento de vídeo como ferramenta de mobilização para organizações que lutavam por
direitos. Organizaram-se exibições de rua, sob a justificativa de que as pessoas pobres só
podiam, até então, falar em suas casas, mas nunca em público. Câmeras eram usadas em
negociações com autoridades. Monitores colocados do lado de fora disponibilizavam as
discussões para maiores audiências, sem falar que as promessas podiam ser gravadas e usadas
para intimidar os representantes governamentais.
O crescimento da TV a cabo no Canadá (que ocorreu antes do dos EUA) abriu um novo
panorama para os visionários do Challenge for Change. Em 68, cerca de 25% dos lares
canadenses já tinham TV a cabo. A sinergia entre vídeo e cabo era percebida por pessoas
como Dorothy Hénaut e Bonnie Klein (membros do programa e defensores do vídeo) como
uma possibilidade de levar os filmes comunitários para grandes audiências.
Ainda em 70, uma organização cívica (Town Talk) desenvolveu um plano para administrar
um canal a cabo em prol da comunidade local (Thunder Bay). Challenge for Change forneceu
equipamentos e treinou membros da organização para o uso de filme e vídeo. Uma comissão a
ser composta por representantes da diversidade local foi sugerida, de forma a favorecer a
participação popular. Essa estrutura de uma comissão democrática viria a inspirar televisões
comunitárias de todo o Canadá. Ainda que o experimento tenha durado menos de um ano,
conseguiu produzir peças de qualidade profissional com caráter local a baixos custos. Mas
houve problemas: autoridades locais se opuseram à presença do vídeo em algumas reuniões e
governantes taxaram o projeto como controlado por radicais. A companhia a cabo negou-se a
dar o controle da programação para um grupo de cidadãos. Requereu-se que os programas
fossem submetidos a exame com três semanas de antecedência e que os quadros com ligações
ao vivo fossem suspensos.
Experiência também apoiada pelo Challenge for Change nos moldes de Thunder Bay ocorreu
no Lago St. John, em Quebec. A operadora do cabo foi mais receptiva à experiência. As
escolas assumiram responsabilidade considerável e 10% da população da área se envolveu
diretamente na produção. Aspecto a ser destacado era a promoção da recepção coletiva,
mesmo porque a TV comunitária é vista como um processo, funcionando melhor se pensada
coletivamente.
A Canadian Radio and Television Commission defende, em 1971, que os canais de acesso
público sejam parte do desenvolvimento da TV a cabo como um todo.
Alguns críticos questionavam a viabilidade da TV comunitária, dada a oposição de
autoridades e da indústria do cabo. Os custos e a estrutura comunicacional da TV também
foram sugeridos como obstáculos para uma prática mais horizontal.
Há quem aponte também que diversos projetos do Challenge for Change foram muito
marcados por interesses individuais. O Videographe e o Vancouver Metro Media deram
expressão a novos artistas, mas acabaram por privilegiar o produto em detrimento do
processo. Fortaleciam-se egos, comprometendo o objetivo de desenvolvimento comunitário.
O propósito original do Challenge for Change era o uso do cinema, do vídeo e da TV a cabo
para incrementar o diálogo governo-cidadãos e fazer aflorar os problemas sociais. A
comunicação, pensava-se, melhoraria os serviços prestados pelo governo canadense.
Impressionados pelas tecnologias e influenciados por McLuhan, muitos viram nas tecnologias
da informação e da comunicação (TICs) as ferramentas para a reintegração de uma sociedade
fragmentada.
No entanto, Boyce Richardson critica a idéia que atua como pano de fundo do programa e que
é amplamente divulgada pelo establishment: não haveria nada de errado na estrutura política.
Os problemas existiriam em virtude da falta de comunicação.
No que se refere à mobilização, Bonnie Klein faz questão de frisar que as tecnologias não
criam dinamismo onde ele não está latente; elas não criam ações ou idéias.
Havia, ainda, um desentendimento sobre o futuro da televisão comunitária. A fragilidade da
TV a cabo como um fórum público deixava muitas questões abertas: Quem controla a
programação? Como garantir que todos os segmentos de uma comunidade tenham acesso à
mídia? Como financiar essas experiências?
Poderiam ser reaplicadas, no contexto bastante específico de tradições políticas e sistemas
comunicativos dos EUA, as inovações de Challenge for Change?
George Stoney voltou aos EUA para dar início a um dos maiores empreendimentos na história
do movimento de acesso público. Em 71, junto com o cineasta Red Burns, ele fundou o
Alternate Media Center em NY. A Fundação John e Mary Markle garantiu 250 mil dólares ao
projeto. A objetivo era assegurar que as TICs servissem ao interesse público. O projeto inicial
do Centro era a promoção do uso do cabo por comunicadores não-profissionais locais,
visando ao fortalecimento da comunidade.
Por um período de 5 anos, o Centro tornou-se o ponto focal do movimento por acesso público
norte-americano, sendo realizadas iniciativas de produção e também de participação na
construção de políticas. Promoviam-se discussões, assembléias, negociações.
Compartilhavam-se experiências e produções. Desenvolviam-se estratégias para a TV a cabo.
Membros do Centro ajudaram a estabelecer centros de acesso em todo o país.
Ainda que reconhecesse a influência de Challenge for Change, Stoney enfatizava o diferente
contexto em que o Centro operava. A experiência canadense era um programa governamental,
sendo levada a sério pelas autoridades. Assim, o movimento pela televisão comunitária nos
EUA seria dependente de duas fontes de suporte não-governamentais: em primeiro lugar, eles
se apoiaram muito na Markle e em outras fundações privadas; em segundo lugar, seu destino
dependia da sua relação com a indústria do cabo.
Membros do Centro que tinham experiências anteriores com a indústria do entretenimento e
com seus executivos-chave foram fundamentais para o desenvolvimento das propostas
Inicialmente, no começo dos anos 70, a indústria do cabo norte-americana apoiou a televisão
comunitária, ainda que depois viesse a mudar de postura.
Em 1948, os cabos coaxiais começaram a ser utilizados nos EUA, para transmitir sinais
televisivos em pequenas comunidades que não possuíam emissoras em sua área ou que
sofriam com uma recepção muito ruim dada a sua localização (no meio de montanhas, por
exemplo). Era o início da CATV (Community Antenna Television), que deve suas origens a
empresários locais, em geral da área de eletrônica. Seus preços eram bastante modestos. Não
havia controle de conteúdo, mas apenas venda de transmissão.
Em 1952, cerca de 70 sistemas serviam mais de 14 mil pessoas. Uma década depois, os
números pularam, respectivamente para 800 e 850 mil, sendo que o cabo chegou a cidades
como NY e San Francisco.
Quando os sistemas a cabo começaram a incorporar programas de emissoras independentes e
criar suas próprias produções, a CATV se transformou em TV a cabo. As redes de TV
tradicionais começaram a temer uma eventual perda de audiência, e fizeram um lobby através
da National Association of Broadcasters para obter proteção federal. A velha guarda da TV
(NBC, CBS e ABC) estava baseada em NY e tinha fortes conexões com as elites do leste
americano e com as vertentes liberais tanto do partido republicano como do democrata. Para
se ter uma idéia, o ex-presidente Lyndon Johnson tinha ações em nove afiliadas da CBS.
A regulamentação federal se colocou em favor da velha guarda, opondo-se à ameaça do cabo.
Restringiu-se a presença do cabo em grandes mercados e afirmava-se que a veiculação não
autorizada de sinais televisivos via cabo constituía uma infração ao direito de autoria. A
indústria do filme, através da AT&T, também se colocou contra o cabo, restringindo suas
possibilidades.
O apoio inicial da TV a cabo ao acesso público deve ser entendido nesse contexto belicoso. A
National Association of Broadcasters acusava as operadoras de cabo de mercenárias por
cobrar uma taxa por um serviço geralmente gratuito. Por outro lado, a indústria do cabo queria
demonstrar sua importância como serviço público, citando que o Junior Chamber of
Commerce of Dale City, na Virginia, operara um canal de acesso público em tempo integral
de 1968 a 72. Não havia comerciais, e havia a participação de representantes de 13
organizações comunitárias. Isso fazia com que o cabo fosse visto como um meio socialmente
mais responsável. Assim, a indústria do cabo e o Alternate Media Center acabaram por ser
parceiros naturais nessa batalha.
Outro fator a impulsionar o acesso público veio de fora da indústria do cabo: os Radical Video
Collectives. Grupos como Raindance, Videofreeks, People’s Communication Network, Video
Free América, People’s Communication Network, Video Free América, Ant Farm, Global
Village e May Day Collective adicionaram um toque de utopia ao movimento. Eles surgiram
dos movimentos anti-guerra, pelos direitos humanos e liberdade de expressão. Buscavam
estender, às novas TICs, o papel da imprensa alternativa no desenvolvimento de uma contracultura. A imprensa alternativa, à época, era o principal instrumento de organização e
educação da Nova Esquerda (nota: corrente política que mantém os ideais igualitários —
característicos da esquerda —, mas que se opõe às interpretações ortodoxas do marxismo; há
uma crítica ao determinismo econômico e uma revalorização da cultura, que expande a
acepção de política para além das relações de produção. Os conceitos gramscianos de
ideologia e hegemonia são alicerces fundamentais para a Nova Esquerda. A discussão sobre
identidade também ganha novos rumos através dessa corrente, que trabalha a questão da
contra-cultura).
Raindance Corporation: fundada em 1969 por entusiastas do vídeo, incluindo o pesquisador
Paul Ryan, que fora aluno de McLuhan. Era responsável pela publicação de Radical Software,
que abarcava as tendências culturais e políticas do movimento pela mídia alternativa. Havia
artigos sobre o uso do vídeo como instrumento político, relatos sobre o Challenge for Change
e outros projetos comunitários de vídeo sediados nos EUA. As principais influências teóricas
eram McLuhan, Gregory Bateson e Buckminster Fuller. Paul Ryan trabalhava,
incansavelmente, a questão da auto-descoberta através do vídeo, que ele designava
“infolding”.
O pano de fundo geral era que as TICs (radical software) podiam transformar a consciência
humana e as relações sociais. As tecnologias não existem descoladas do social. Elas moldam a
forma como subjetividades, valores, quadros de entendimento e, enfim, o próprio mundo se
configuram. A idéia central era estender a contra-cultura para contra-tecnologias. As
tecnologias tinham um papel desafiador, podendo criar brechas de contestação aos grupos
hegemônicos. (Obs: Essas idéias acabam por criticar a Nova Esquerda, que adotava um viés
antitecnológico).
Michael Shamberg, um dos fundadores da Raindance, expressou uma proposta de
transformação social via tecnologias na edição Guerrilla Television. Esse trabalho, um
clássico do movimento de mídia alternativa, faz uma interessante síntese da experiência e da
filosofia dos grupos de vídeo (video collectives). A publicação passou a ser adotada como
manual, guia, programa político e molde para o estabelecimento de prognósticos.
Guerrilla Television afirmava que as tecnologias determinavam o caráter da sociedade. A
escrita teria participado da conformação um tipo de sociedade (com suas respectivas
estruturas e instituições sociais), assim como a imprensa, a TV, os computadores e o vídeo.
Antecipando a idéia de sociedade da informação, ele defendia que uma guinada fundamental
do produto para o processo teria ocorrido, resultando na primazia da informação eletrônica.
Deduzia-se que a mudança social dependia de uma apropriação das TICs. O destino dos EUA
estaria ligado ao futuro da televisão. O autor criticava tanto a TV comercial quanto a pública
como unidirecionais e autoritárias. Ele enfatizava a significação histórica da câmera de
portátil, as vantagens do vídeo sobre o filme e a promessa dos videocassetes.
Shamberg ressaltava a importância de ligar o grande avanço do vídeo ao poderoso meio
televisivo. Para ele, o casamento entre o vídeo e a tecnologia do cabo resultaria em uma nova
forma emancipatória de guerrilha televisiva. Ele visualizava a possibilidade de uma linha
informativa de mão dupla. Programas locais poderiam garantir grandes audiências e permitir a
expressão do cidadão ordinário.
O autor convidava os ativistas a se engajarem para garantir a existência de canais públicos nos
sistemas a cabo. Ele sugeria que a qualidade técnica no uso do vídeo era uma excelente
estratégia para ganhar o apoio tanto do povo como da indústria.
Ainda que tivesse uma retórica radical, Shamberg avisou que seu livro desagradaria os
revolucionários mais tradicionais, porque ele propunha o uso de TICs e não ações
clandestinas e violentas. Ele criticava as táticas do Black Panters, bem como do Students for a
Democratic Society. Em uma cultura cibernética, dizia ele, o poder vinha de computadores e
não de armas. Para ele, as TICs podiam renovar a democracia americana, desde que as
pessoas fossem capacitadas a lidar com as ferramentas da informação.
Gerrilla Television tem as idéias de McLuhan como pano de fundo. O autor, à época muito
celebrado nos EUA, se afastou do viés crítico com que Harold Innis olhava para a crescente
dominação do continente americano pelas indústrias da comunicação dos EUA. Ele afirmava
que a televisão requeria grande envolvimento de todos os sentidos por parte da audiência. Ele
argumentava que esse nível superior de participação levaria ao fim da alienação,
retribalizando e reintegrando a civilização contemporânea. Poeta da tecnologia (como James
Carey o cognominava), ele exalta os poderes redentores da mídia eletrônica. Sua apologia à
televisão acabava por desconsiderar questões políticas e econômicas.
Assim, o texto de Shamberg buscava cumprir a tarefa quase impossível de dar ao pensamento
de McLuhan a tonalidade do radicalismo dos anos 60. Vale ressaltar que os ativistas da mídia
alternativa não eram tão reducionistas quanto McLuhan, já que não acreditavam que o meio
fosse a mensagem por inteiro. Mas acreditava-se que as ações políticas tradicionais (como
greves e marchas) nada mais seriam do que matéria bruta para as câmeras, as verdadeiras
ferramentas revolucionárias.
Havia algumas contradições no mcluhanismo de esquerda de Guerrilla Television, mas não se
pode desconsiderar a relevância desse manifesto e dos membros de collective videos na luta
pelo acesso público à TV a cabo no início dos anos 70.
A realização das aspirações de Shamberg dependia da existência de canais de acesso público
nos sistemas a cabo. A cidade de NY, capital midiática da nação e lar do Alternate Media
Center, dos video collectives e da Fundação Ford, era um local natural para um grande
experimento em acesso público. Os resultados seriam acompanhados de perto, influenciando
as decisões do FCC (Federal Communication Commission) sobre o requerimento (ou não) de
que as companhias a cabo reservassem canais de acesso.
Fred Friendly, conselheiro da Fundação Ford e força importante na constituição de políticas
para a televisão pública, desempenhou um papel central no desenvolvimento do acesso
público nos EUA. Ele recomendou que as operadoras de Manhattan abrissem mão do controle
de dois canais, alugando-os a preços módicos para o público.
Em 1970, duas companhias (Sterling Information Services e Teleprompter Corporation)
requereram franquias de 20 anos para sistemas a cabo em Manhattan. Um acordo de
bastidores foi feito com as autoridades da cidade. Especialistas e membros do comitê de
comunicação do American Civil Liberties Committee se opunham à concessão de franquias
por períodos tão grandes em uma época de rápidas mudanças. Membros dos movimentos de
mídia alternativa também criticavam a realização de acordos envolvendo temáticas tão
relevantes sem a participação popular. Defensores do acesso público requeriam o uso gratuito
de canais não-comerciais, contrapondo-se à idéia de pagar uma taxa pelo uso.
Querendo evitar uma confusão ainda maior, o presidente da Teleprompter Corporation
prometeu abrir seus canais públicos gratuitamente, desde que a FCC não tivesse nada contra
tal ato. A companhia concordou em fornecer um estúdio para os produtores comunitários com
uma câmera, um playback deck e um diretor. Ambas as operadoras também ofereceram
pontos gratuitos de TV a cabo para instituições públicas, como igrejas, creches e escolas.
Além dos dois canais de acesso público, dois outros foram reservados para a Cidade de NY,
formando aquilo que ficaria conhecido como acesso governamental.
Em julho de 1971, programas de acesso público começaram a chegar aos 80 mil assinantes de
TV a cabo de Manhattan. O foco mudou da luta por obter acesso para aquela por produzir
programas. Uma grande dificuldade era informar a população sobre a existência dos canais e
desmistificar o meio televisivo para obter participação.
Para facilitar a experiência de acesso público, a Markle Foundation e a Stern Fund
patrocinaram um grupo liderado por Theodora Sklover (o Open Channel) para providenciar
material e pessoal a grupos que desejassem fazer uso dos canais de acesso público. Sklover
alertava para a importância da experiência de NY. Ela dizia que, se os canais não fossem
usados, apresentassem uma programação que não despertasse a atenção ou fossem utilizados
para o entretenimento de uns poucos, eles seriam um potente combustível para aqueles que
lutavam contra a abertura do meio televisivo.
Ela enfatizava a necessidade de identificar o público, organizar comitês locais, treinar os
cidadãos para a apropriação do equipamento técnico. Mais de 200 profissionais se
voluntariaram para participar.
Open Channel buscava garantir a diversidade, arranjando tempo de difusão para grupos que
iam de militantes negros ao Museu de Arte Moderna.
Havia, ainda, outros grupos facilitadores ao lado do Open Channel, como o Alternate Media
Center, que recebera 10 mil dólares da Sterling em equipamentos. Baseando-se nas
experiências do Challenge for Change, o Centro demonstrou como o vídeo poderia ser
utilizado em conflitos locais com autoridades. Outros grupos facilitadores de destaque foram
o Global Village (que produzia, principalmente, documentários), a Raindance Corporantion e
a People’s Video Threater (especializados em reportagens pouco tradicionais). Cerca de 200
horas de fitas eram veiculadas toda semana.
Julho de 1972: realiza-se um grande evento, com duração de três dias, para celebrar
aniversário do acesso público. Por meio dele, buscava-se conscientizar a população e explorar
a integração de vários tipos de mídia em redes comunicativas para criar sistemas de acesso
público flexíveis e abrangentes. O evento foi divulgado pela imprensa e pelo rádio para
encorajar ampla participação. Sterling e Teleprompter se interconectaram pela primeira vez.
Circuitos fechados especiais foram construídos com os canais de acesso público. Um canal
mostrava uma seleção de programas do ano que se passara. Outro exibia vídeos produzidos na
celebração. Um terceiro apresentava o evento ao vivo do Central Park. Uma estação de rádio
também deu ampla cobertura ao acontecimento. Criaram-se pontos para a recepção coletiva
das transmissões em 18 lugares de Manhattan. Contou-se com a participação de vários grupos
tradicionalmente pouco representados na TV: negros, latinos, feministas, sindicatos, idosos e
homossexuais.
A última transmissão do evento, que durou três dias, traçou a trajetória do acesso público,
colocando-a em relação com seu futuro. Ficou claro que a celebração era também um
protesto. Enfatizaram-se as restrições sob as quais funcionava o acesso público na cidade:
dependência das companhias operadoras, falta de representação comunitária na administração
do sistema, necessidade de facilidades para o treinamento da população, bem como de centros
coletivos para que as pessoas que não tivessem TV a cabo pudessem ver os programas.
A experiência na cidade de NY ocorreu em uma época de intensos debates sobre a legislação
da TV a cabo.
Um grupo de fundações privadas ajudou a determinar a política do cabo no final dos anos 60 e
início dos 70. A participação da Markle Foundation e da Ford Foundation já foi bastante
mencionada. A Alfred P Sloan Foundation instaurou, em 1970, a Sloan Commission on Cable
Communications, cujos relatórios influenciaram as tão demoradas regulamentações da FCC.
A comissão era composta por autoridades políticas e pesquisadores de alto gabarito.
Ralph Lee Smith, pesquisador assistente dessa comissão, logo percebeu o potencial das
propostas dos ativistas do movimento por mídia alternativa. Em suas palavras, “aquelas
pessoas estavam muito à frente de seu tempo”.
O relatório da Sloan Commission foi divulgado no fim de 71, chamando a atenção para a
capacidade da nova televisão de abundância (i.e. a TV a cabo) para revolucionar a vida
cultural e política norte-americana. Enfatizou-se o potencial do cabo para a multiplicidade de
serviços e perspectivas, nas arenas social, política, artística e de entretenimento. Argumentouse que o crescimento da TV a cabo era de interesse público.
A questão do acesso público recebeu atenção especial no relatório. Afirmava-se que ele
poderia facilitar a expressão e solucionar as reivindicações comunitárias, além de fazer
desenvolver a manifestação cultural local. Concluía-se com indicação de que todo sistema a
cabo deveria ter, no mínimo, dois canais de acesso público para servir às vozes da
comunidade.
Em 72, A FCC divulgou o seu relatório, endossando o da Sloan Commission. A FCC requereu
que todos os sistemas a cabo dos 100 maiores mercados americanos reservassem três canais
de “acesso”: um educacional, um governamental e um público.
O requerimento da FCC por canais de acesso em 1972 pode ser visto como um marco na
história da TV Comunitária. Uma confluência de forças (tecnológica, institucional e
ideológica) contribuiu para o nascimento da TV comunitária na América do Norte. Ainda
assim, a TV comunitária tinha problemas e não chegava gratuitamente às pessoas. A
experiência de NY demonstrou que a simples existência de canais de acesso era insuficiente
para a criação de um sistema de acesso. O movimento por TV comunitária dependia da
indústria do cabo, mas as condições que possibilitaram essa aliança começavam a mudar, com
o grande crescimento das redes a cabo. Tom Paskal levantava alertas quanto a esse
crescimento, afirmando que a doação dos canais a cabo nada mais era do que um presentinho
que as indústrias davam aos suplicantes para possibilitar a pavimentação de uma nova estrada
rumo ao consumo capitalista.
Uma guinada para a direita também estava acontecendo naquele momento. O movimento
estudantil que, nos anos 60, tinha uma forte imprensa alternativa e colocava no foco político a
questão da TV comunitária, entrou em declínio. O clima de ativismo também sumiria. Havia
indicativos de que o vídeo estava sendo transformado de um gesto contra-cultural em um
gênero artístico; de uma ferramenta de protesto em um veículo de expressão artística.
Apesar de todas as dificuldades, a institucionalização do acesso público, em 1972, confirmou
que a TV comunitária tinha ultrapassado uma importante barreira. Depois de 72, o Alternate
Media Center realizou uma série de iniciativas para levar o acesso público para fora de NY. O
National Endowment for the Arts financiou uma proposta de George Stoney para levar
videomakers para diversas localidades e desenvolver novos centros de acesso.
No meio dos anos 70, o Alternate Media Center implantou uma experiência (Reading)
aplicando a idéia de TV comunitária à capacidade dos sistemas de TV a cabo e para um fluxo
bidirecional de informação. O projeto demonstrou como as tecnologias podiam ser utilizadas
para facilitar a comunicação entre cidadãos, prefeitura e agências de serviço social,
demonstrando que a TV comunitária podia fazer avançar formas de democracia participativa.
Em 1976, membros do Alternate Media Center criaram a National Federation of Local Cable
Programmers (NFLCP), que se tornou a mais importante expressão institucional do
movimento de TV comunitária. Ela fornecia serviços de apoio e mecanismos de ligação
através de suas publicações, workshops, festivais de vídeo e conferências nacionais. Além
disso, representava os interesses dos envolvidos com TV comunitária junto a FCC, ao
Congresso e outros organismos governamentais. Sua infraestrutura institucional foi
fundamental para que o movimento encarasse grandes desafios como a decisão da Suprema
Corte, em 1979, de que a FCC não tinha autoridade para requerer acesso público e as
tentativas da indústria do cabo para produzir uma legislação proibindo qualquer requerimento
(local, estadual ou federal) por canais de acesso.
Mas, em 1984, a Cable Franchise Policy, maior regulamentação a respeito da TV a cabo,
proclamava que o acesso público era o equivalente eletrônico dos panfletos: eles
possibilitavam a oportunidade para que grupos que estavam fora da mídia pudessem se tornar
fontes de informação no mercado eletrônico de idéias.
A TV comunitária continuava a crescer. Tal desenvolvimento foi enfatizado por outro marco
na história do acesso público: em 1986, um grupo de NY (Paper Tiger TV) organizou Deepv
Dish TV, a primeira rede nacional de acesso público via satélite. Vinte anos depois das
experiências pioneiras do Challenge for Change no Canadá, a TV comunitária dava um
grande passo.
Vídeos chegavam de todo o país e eram transmitidos por canais de mais de 400 cidades
espalhadas pelo país. A experiência durou dez semanas. A variedade de programas
demonstrava a amplitude da atividade de acesso público. A série foi inaugurada com um
programa sobre acesso público, no qual Stoney havia apresentado o conceito de televisão
comunitária: um novo tipo de informação televisionada em que cidadãos podiam se
comunicar uns com os outros e com seus representantes.
A experiência estabeleceu uma outra fronteira para as lutas. A partir de então, a tarefa das
novas gerações de defensores da TV comunitária seria o aproveitamento dos canais de acesso
sub-utilizados. Como se proclamava: Use-o ou perca-o.
Nota do tradutor
Para informações atualizadas sobre as experiências de acesso público norte-americanas, ver os
sites:
http://www.museum.tv/archives/etv/A/htmlA/activisttele/activisttele.htm
http://www.radicalsoftware.org/e/history.html
http://www.geocities.com/iconostar/history-public-access-TV.html

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