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SEÇÃO V
DIREITO INDIVIDUAL INDISPONÍVEL
A LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA
PROPOR AÇÃO VISANDO à COLOCAÇÃO DE CRIANÇAS
E ADOLESCENTES EM FAMÍLIA SUBSTITUTA
THE PROCEDURAL LEGITIMACy OF THE PUBLIC
PROSECUTOR TO FILE ACTION AIMING TO PROPOSE
THE PLACEMENT OF CHILDREN AND TEENAGERS IN
SUBSTITUTE FAMILy
Juliana Aparecida Silva Gomes Moura
[email protected]
Advogada. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Braz
Cubas (UBC). Especialista em Direito Público pela Faculdade de Direito
Damásio de Jesus.
Sérgio Ricardo Gomes de Moura
[email protected]
Promotor de Justiça no Estado de São Paulo. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Braz Cubas (UBC).
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RESUMO
O presente artigo trata de um estudo sobre a possibilidade do Ministério Público
ajuizar ação visando à colocação de crianças e adolescentes em família substituta, considerando o perfil constitucional da instituição e o superior interesse
da criança e do adolescente. Para tanto, este trabalho foi desenvolvido com a
análise da natureza dos interesses das crianças e adolescentes, bem como sobre
considerações acerca das espécies de colocação em família substituta e quanto
à legitimidade do Ministério Público para promover ações que resultem nesta,
sempre tendo por escopo uma atuação delineada constitucionalmente e visando coibir a situação de risco na qual se encontre a criança ou adolescente por
não usufruir o direito fundamental à convivência familiar.
PALAVRAS-CHAVE
Ministério Público. Legitimidade. Família substituta. Crianças e adolescentes.
Direito à convivência familiar.
ABSTRACT
This article is a study on the possibility of the Public Prosecutor to file an action
seeking the placement of children and adolescents in foster family, considering
the constitutional profile of the institution and the best interests of the child and
adolescent. Therefore, this work was developed with the analysis of the nature
of the interests of children and adolescents, as well as considerations about the
types of placement in a foster family and the legitimacy of the Public Prosecutor
to promote actions that result in this, always with the purpose that those actions
are outlined in the Constitution and aimed at curbing the risk situation in which
the child or teenager is by not enjoying the fundamental right to live in a family.
KEywORDS
Public Prosecutors. Legitimacy. Substitute family. Children and adolescents. Right to live in a family.
SUMÁRIO
Introdução. 1. O perfil constitucional do Ministério Público e a natureza dos
interesses das crianças e dos adolescentes. 2. A colocação em família substituta.
2.1. Guarda. 2.2. Tutela. 2.3. Adoção. 2.4. A questão da legitimidade do Ministério Público. Conclusão. Referências.
INTRODUçÃO
Notoriamente afirma-se que as crianças e os adolescentes são o futuro do
nosso país, assim, não há como se falar deste se não lhes forem proporcionados os
melhores meios para um desenvolvimento completo e saudável, respeitando-se a
sua condição de pessoa em processo de formação e de adulto em potencial.
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A LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROPOR AÇÃO VISANDO
À COLOCAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM FAMíLIA SUBSTITUTA
Com isso em mente, a nossa Constituição Federal de 1988, seguindo a tendência traçada em tratados e convenções internacionais, adotou, na tutela dos interesses das crianças e adolescentes, a doutrina da proteção integral, no sentido de
que tais são sujeitos de direitos merecem tratamento diferenciado, prioritário e mais
abrangente do que os demais.
Dentre os direitos que são assegurados às crianças e adolescentes, destaca-se
o direito à convivência familiar, cabendo ainda à família, à sociedade e ao Estado
proteger os infantes de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (artigo 227, “caput”, da Constituição Federal de 1988).1
Impende frisar que o direito à convivência familiar é exercido quando a
criança ou adolescente é criado e educado no seio de uma entidade familiar (artigo
19, “caput”, da Lei n. 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, c.c. o
artigo 226, §§ 3º e 4º, da CF/88), quer seja esta formada por ambos ou apenas um
dos pais (família natural – artigo 25, “caput”, do ECA), por outros parentes próximos com os quais o infante conviva e mantém vínculos de afinidade e afetividade
(família extensa ou ampliada – artigo 25, parágrafo único, do ECA) , ou por pessoas
sem parentesco com o infante que aceitaram deste cuidar com autorização judicial
(artigos 28, “caput”, e 30, ambos do ECA).
Por outro lado, o dia a dia forense demonstra que com alarmante frequência
muitas crianças e adolescentes estão sendo privados do direito à convivência familiar devido à conduta abusiva ou negligente dos pais ou de outros responsáveis de
direito ou de fato.
Diante de tal situação, muitos infantes acabam sendo acolhidos em entidades governamentais ou não governamentais (artigo 90, § 1º, do ECA) e permanecem
ali, por tempo indeterminado, devido à ausência de parentes interessados ou em
condições de lhes proporcionar assistência material, moral e educacional.
Para evitar a institucionalização até que a criança ou adolescente alcance a
maioridade civil em violação ao direito à convivência familiar, o Estatuto da Criança
e do Adolescente estabelece que a situação do infante deve ser reavaliada pelo
menos a casa seis meses pela equipe técnica da entidade de acolhimento, a fim de
que a autoridade judiciária competente decida pela possibilidade de reintegração
familiar ou colocação em família substituta. E a permanência do infante em programa de acolhimento institucional, em regra, não deve exceder o prazo de dois
anos (artigo 19, §§ 1º e 2º, do ECA).
Enquanto a criança ou adolescente permanece no programa de acolhimento
institucional, sua família deve ser incluída em programas de orientação e auxílio,
1
O direito à convivência familiar, dentre outros, também foi estendido ao jovem (pessoa entre 15 e 29
anos de idade, nos termos do art. 1º, § 1º, da Lei n. 12.852/2013 – Estatuto da Juventude) pela Emenda
Constitucional nº 65/2010. Contudo, nosso enfoque no presente trabalho está voltado à tutela dos interesses das crianças e adolescentes, assim considerados aqueles nas faixas etárias indicadas no art. 2º,
“caput”, da Lei nº 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente.
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eis que a manutenção ou reintegração do infante à sua família tem preferência à
colocação em família substituta (artigo 19, § 3º).
Considerando a primazia do atendimento pelo Poder Público Municipal
(artigo 100, parágrafo único, inciso III, do ECA), a orientação e auxílio das famílias
de crianças e adolescentes devem ser proporcionados pela Administração Pública
local por meio de órgãos como o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS)
e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), na forma dos
artigos 6º-C, §§ 1º a 3º, 15, incisos III a V, e 23, § 2º, incisos I e II, todos da Lei n.
8.742/1993 (Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS).
Esgotados os meios para reintegração familiar, cabe à equipe técnica da entidade de acolhimento institucional elaborar relatório pormenorizado das providências tomadas e a expressa recomendação quanto à espécie de medida de colocação
em família substituta que atenderá ao superior interesse da criança ou do adolescente (artigo 100, parágrafo único, inciso IV, c.c. o artigo 101, § 9º, ambos do ECA).
Neste aspecto, é importante salientar que os princípios do superior interesse
da criança e do adolescente e da intervenção precoce devem prevalecer sobre os
interesses dos membros da família que relutam em acatar as orientações recebidas e não tomam providências para o desacolhimento do infante (vide artigo 100,
parágrafo único, incisos IV e VI, do ECA), pois do contrário o direito à convivência
familiar permaneceria sendo violado.
Assim, cabe aos atores do sistema de proteção aos direitos das crianças e
adolescentes (membros do Poder Judiciário, do Ministério Público, do Conselho
Tutelar, técnicos da entidade de acolhimento institucional e da rede de assistência social do Município, dentre outros) zelar para que a situação de acolhimento
institucional ou até mesmo familiar do infante não perdure por tempo maior do
que o necessário.
Neste sentido é a posição de Galdino Augusto Coelho Bordallo, Promotor de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro: 2
Assim, todos os que atuam nas varas da infância e juventude devem, deparando-se com situações deste porte, agir com bom senso, sempre visando ao
melhor interesse da criança e do adolescente. A pior coisa que pode acontecer
para uma criança/adolescente é encontrar um profissional que fica com pena da
situação apresentada pelo genitor ou parente e fica tentando manter um vínculo
que, de fato, não existe. Ao agir desta forma, o profissional está desrespeitando o
princípio do melhor interesse. Mesmo existindo norma expressa (§ 3º do art. 19
do ECA, acrescido pela Lei nº 12.010/2009) determinando que a manutenção
e a reintegração familiar serão medidas que terão preferência sobre qualquer
outra, não podemos nos esquecer de que a atuação de todos os profissionais da
área da infância e juventude deverá ter em mente o que for melhor para o destinatário da medida. E o destinatário é a criança/adolescente, não sua família.
2
MACIEL, kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente:
Aspectos teóricos e práticos, p. 297.
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A LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROPOR AÇÃO VISANDO
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Além das situações de abandono de infantes em entidades de acolhimento,
a colocação em família substituta é medida imprescindível para a regularização da
situação jurídica de crianças e adolescentes que estão informalmente sob os cuidados de membros da família extensa ou de pessoas sem parentesco, a fim de coibir a
nefasta prática da “devolução” aos cuidados da Justiça da Infância e da Juventude.
Com efeito, não raro pessoas que detêm a guarda de fato de crianças ou adolescentes, em razão de dificuldades no trato com os infantes e por outros motivos que
não consideram o superior interesse destes seres em desenvolvimento, procuram órgãos
como o Poder Judiciário, Conselho Tutelar ou o Ministério Público com o intuito de abrir
mão dos cuidados até então dispensados e para que o Estado os acolha.
Quanto a esta matéria, são oportunas as palavras de Giselda Maria Fernandes
Novaes Hironaka:3
Pais e Estado – assim como toda a sociedade, afinal – não podem, em momento nenhum, tratar a criança como coisa só pelo fato de ser ela sem experiência ou sem atividade produtiva, sem maturidade espiritual ou sem autonomia
material. A criança, apesar de seu estado de extrema e concreta dependência,
é um ser humano como qualquer outro, é um ser desejante e emotivo como
qualquer outro, que sente dor diante da crueldade alheia e revolta por não
lhe ser concedida a liberdade que é capaz de administrar sozinha. E é por ser
dotada desse desejo e dessa necessidade que a criança, enfim, é dotada de
dignidade e assim deve ser respeitada.
Para coibir esta nefasta prática de “devolução” de infantes, a regularização
da situação jurídica da criança ou adolescente, por meio da nomeação de guardião
ou de tutor, é medida que se impõe. Contudo, se depender da iniciativa do detentor
da guarda fática do infante, muitas vezes, nada mudará, pois para aquele é conveniente que nada mude, a fim de que não lhe seja atribuída responsabilidade pela
proteção da criança ou adolescente.
Diante deste quadro, assim como nas hipóteses em que o acolhimento institucional perdura por prazo superior ao necessário, a colocação do infante em família substituta se mostra a medida mais adequada.
Por outro lado, surge a questão a respeito de quem seria legitimado para suprir
a omissão dos pais ou responsáveis, ainda que de fato (artigo 98, inciso II, do ECA),
e promover a ação para colocação da criança ou adolescente em família substituta.
Dentre todos os órgãos voltados à defesa dos interesses das crianças e adolescentes, o Ministério Público é aquele que se destaca como o principal protagonista tendo em vista as múltiplas atribuições que lhe foram conferidas pelo Estatuto
da Criança e do Adolescente, como pode ser observado, a título de exemplo, nos
artigos 201 e 202 do referido diploma legal.
3
Responsabilidade civil na relação paterno-filial. Disponível em: http://www6.univali.br/seer/index.php/
nej/article/viewFile/9/4. Acesso em: 02/05/2014.
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Apesar do grande número de atribuições conferidas ao Ministério Público
na área da infância e da juventude, a doutrina é praticamente silente no tocante à
legitimidade ministerial para a promoção da medida de proteção de colocação em
família substituta, razão pela qual nos propomos a analisar a fundo tal questão, partindo do perfil constitucional do Parquet e da natureza dos interesses das crianças
e adolescentes, com a análise, ainda, de cada modalidade daquela medida, para
então concluirmos pela existência ou não de legitimidade “ad causam” do Ministério Público neste sentido.
1. O PERFIL CONSTITUCIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO E A
NATUREZA DOS INTERESSES DAS CRIANçAS E DOS ADOLESCENTES
Com o advento da Constituição Federal de 1988, o Ministério Público foi
dotado de maiores garantias, prerrogativas e atribuições, bem como de mais instrumentos para a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses
sociais e individuais indisponíveis (artigo 127, “caput”).
A atuação do Ministério Público, que não se limita ao âmbito judicial, deve
ser voltada sempre ao zelo dos interesses que lhe incumbe defender, e é com base
no perfil traçado na Constituição Federal que deve ser interpretada a legislação infraconstitucional, anterior ou posterior, consoante se denota do disposto no artigo 129,
inciso IX, da Lei Maior.
Hugo Nigro Mazzili, ao comentar o referido dispositivo constitucional, faz
as seguintes observações:
Assim, nenhuma das atribuições ou funções infraconstitucionais que lhe
venham, porém, a ser conferidas poderá desviá-lo de sua destinação institucional. Guardaria sabor de inconstitucionalidade a lei que cometesse ao
Ministério Público à defesa de interesses individuais disponíveis, sem conotação social, ou que o cometesse à representação judicial de entidades da
administração. Com isso se veda hoje ao Ministério Público não só a defesa
de interesses meramente fazendários como também a defesa de interesses exclusivamente individuais disponíveis (...). Daí a exigência de compatibilidade
entre as funções que a lei infraconstitucional venha a cometer ao Ministério
Público e sua destinação institucional.4
Assim, para verificar se a atuação do Ministério Público na defesa de interesses de crianças e adolescentes, ainda que individuais, é compatível com a sua
destinação institucional, basta identificar a natureza daqueles interesses.
No tocante à tutela de interesses difusos e coletivos de crianças e adolescentes, como aqueles referentes ao direito à educação e à saúde, nenhum questionamento pode ser feito quanto à legitimidade ministerial, ante a clareza do disposto no
artigo 129, inciso III, da Constituição Federal.
4
Regime Jurídico do Ministério Público, p. 390.
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Já em relação aos interesses puramente individuais, é preciso aprofundar a discussão, pois mesmo em casos expressos de legitimidade ministerial, como na propositura de ação de alimentos (artigo 201, inciso III, do ECA), há divergências, sendo que o
Colendo Superior Tribunal de Justiça já decidiu tanto em um sentido quanto em outro:
REsp 1072381/ MG; RECURSO ESPECIAL 2008/0150097-0; Relator(a) Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR; Órgão Julgador T4 - QUARTA TURMA;
Data do Julgamento 24/03/2009; Data da Publicação/Fonte DJe 11/05/2009;
Ementa: CIVIL E PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE ALIMENTOS.
AUTORIA. MINISTÉRIO PÚBLICO. MENOR. PÁTRIO PODER DA GENITORA
CONFIGURADO. ILEGITIMIDADE ATIVA. LEI N. 8.069/1990, ART. 201, III. I.
Resguardado o pátrio poder da genitora, não se reconhece legitimidade ativa
ao Ministério Público para a propositura de ação de alimentos. Precedentes.
II. Recurso especial conhecido, mas desprovido; e,
RECURSO ESPECIAL Nº 1.113.590 - MG (2009/0026873-9); RELATORA:
MINISTRA NANCy ANDRIGHI; RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO
ESTADO DE MINAS GERAIS; RECORRIDO: ADVOGADO: SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS; EMENTA: PROCESSO CIVIL. AÇÃO DE ALIMENTOS.
LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ART. 201, III, DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. 1. O Ministério Público tem legitimidade para a propositura de ações de alimentos em favor de criança ou
adolescente, nos termos do art. 201, III, da Lei 8.069/90 (Estatuto da criança e
do adolescente). 2. Recurso Especial provido, j. em 24.08.2010.
Considerando a possibilidade de divergência doutrinária e jurisprudencial,
especialmente quanto ao tema do presente trabalho, não é demais destacar a natureza dos interesses individuais das crianças e adolescentes.
Como as crianças e adolescentes são considerados incapazes para exercer,
por si, os atos da vida civil (artigos 3º, inciso I, e 4º, inciso I, ambos do Código
Civil)5, seus interesses são indisponíveis, o que já autorizaria a atuação do Ministério
Público, com base no disposto no artigo 127, “caput”, da Constituição Federal.
Pertinente a este tema, é a seguinte lição de Eduardo Roberto Alcântara Del-Campo e de Thales Cezar de Oliveira:
As únicas hipóteses em que o Ministério Público intervém para garantia de interesses individuais relacionam-se com a defesa de pessoas determinadas, que pelas suas
características estão em situação de desvantagem perante seus pares ou quando se
trata de direitos indisponíveis. Há, na defesa dos direitos particulares dos integrantes
desses grupos humanos, um interesse público em sentido amplo, que é o de promover uma sociedade justa e equânime. Daí a legitimidade para intervir em favor
do portador de deficiência, do idoso, do incapaz, da criança e do adolescente.6
5
6
Apesar de aos adolescentes maiores de 16 anos ser atribuída a prática de certos atos da vida civil, como
a elaboração de testamento (artigo 1.860, parágrafo único, do CC), são ainda considerados incapazes,
relativamente, para a prática da maior parte dos atos da vida civil.
Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 275-276.
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No mesmo sentido é a posição de Galdino Augusto Coelho Bordalho:
Trata-se de uma atividade específica do Promotor de Justiça da Infância e da Juventude, o que causa espanto aos juristas que não possuem intimidade com as
peculiaridades do Estatuto da Criança e do Adolescente, pois já tivemos a oportunidade de constatar a existência de inúmeras decisões do Superior Tribunal de
Justiça, afirmando que o Ministério Público não possui legitimidade para defesa
de direitos individuais das crianças e dos adolescentes. O equívoco destas decisões só pode ser atribuído a desconhecimento das regras estatutárias.7
Ademais, os interesses das crianças e adolescentes têm um aspecto social,
uma vez que sua defesa interessa também à sociedade, como bem destaca Paulo
Affonso Garrido de Paula:
Sendo um misto de interesse individual e social, porquanto seu objeto representa um bem pessoal e de toda a sociedade, interessada na sua validação
para arrimar a construção da cidadania, seu caráter público impõe a defesa
também pelo Ministério Público, encarregado pela Constituição Federal do
zelo aos interesses sociais e individuais indisponíveis.8
Assim, são perfeitamente compatíveis com a destinação institucional do
Ministério Público as disposições insertas no artigo 201, do ECA, inclusive em seu
inciso III. E não é por outra razão que a Lei Complementar Federal n. 75/1993 (Lei
Orgânica do Ministério Público da União), em seu artigo 5º, inciso III, “e”, indicou
que dentre as funções institucionais do Parquet está a defesa dos interesses das
crianças e dos adolescentes.9
2. A COLOCAçÃO EM FAMÍLIA SUBSTITUTA
Conforme já destacado, a toda criança e adolescente deve ser assegurado o
direito à convivência familiar, ou seja, de ser criado e educado, com atenção e afeto,
no seio da família, qualquer que seja a modalidade de entidade familiar.
Em regra, deve o infante ser mantido em sua família natural ou extensa e, excepcionalmente, deve ser colocado em família substituta quando esgotadas as tentativas de
manutenção, inserção ou reintegração no núcleo familiar de origem. Isso porque a regra
é que a prole permaneça com os genitores, mas em caso de não atendimento das necessidades emocionais, físicas e intelectuais desta, mesmo que haja auxílio para tanto, isto é,
diante da família disfuncional, surge a possibilidade de inserção em família substituta.10
7
8
9
Bordalho, Galdino Augusto Coelho. Op. cit., p. 523-524.
Direito da Criança e do Adolescente e Tutela Jurisdicional Diferenciada, p. 96.
Tal disposição, inclusive, é aplicável aos Ministérios Públicos dos Estados, nos termos do artigo 80 da
Lei n. 8.625/1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público).
10 Cf., MACIEL, kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Regras gerais sobre a colocação em família substituta. In: MACIEL, kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente: Aspectos teóricos e práticos, p. 215.
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A LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROPOR AÇÃO VISANDO
À COLOCAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM FAMíLIA SUBSTITUTA
Cumpre observar que nos procedimentos de colocação em família substituta, sempre que possível, a criança ou o adolescente, será previamente ouvido por
equipe interprofissional, respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida, e terá sua opinião devidamente considerada (§ 1º do art. 28, do ECA). Acrescenta o § 2º do reportado dispositivo legal que
em se tratando de maior de 12 anos de idade, será necessário seu consentimento,
colhido em audiência.
Visando evitar ou minorar as consequências decorrentes da medida, para
a colocação em família substituta devem ser observados como critérios o grau de
parentesco e a relação de afinidade ou de afetividade (§ 3º do art. 28, do ECA).
Os grupos de irmãos, em regra, serão mantidos, a fim de se evitar o rompimento definitivo dos vínculos fraternais. A exceção consiste na comprovada existência de risco de abuso ou outra situação que justifique solução diversa (art. 28, §
4º, do ECA).
De qualquer modo, frisa o § 5º do mencionado artigo que a colocação da
criança ou adolescente em família substituta será precedida de sua preparação gradativa e acompanhamento posterior pela equipe interprofissional, a serviço da Justiça da Infância e da Juventude.
Registre-se, ainda, que caso a criança ou adolescente seja indígena ou proveniente de comunidade remanescente de quilombo, devem ser atendidos os seguintes requisitos: a) que sejam consideradas e respeitadas sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, bem como suas instituições, desde que não sejam
incompatíveis com os direitos fundamentais reconhecidos pelo ECA e pela CF/88;
b) que a colocação familiar ocorra prioritariamente no seio de sua comunidade ou
junto a membros da mesma etnia; e c) a intervenção e oitiva de representantes da
Fundação Nacional do índio (FUNAI), no caso de crianças e adolescentes indígenas,
e de antropólogos (art. 28, § 6º, do ECA).
Contudo, somente será deferida a colocação em família substituta à pessoa
que revele compatibilidade com a natureza da medida e ofereça ambiente familiar
adequado. Ademais, o responsável, quando assume a guarda ou a tutela, mediante
termo nos autos, presta o compromisso de bem e fielmente desempenhar o encargo
(artigos 29 e 32, da Lei nº 8.069/1990).
É sobremodo importante assinalar que a colocação em família substituta se
dá por meio dos institutos da guarda, tutela e adoção, e sempre depende de decisão
judicial (artigo 28, “caput”, c.c. o artigo 30, ambos do ECA).
Com efeito, sequer ao Conselho Tutelar é cabível a aplicação da medida de
proteção em tela, ainda que em caráter emergencial (artigo 136, inciso I, do ECA).
Contudo, ante o despreparo de muitos conselheiros tutelares e, em certos casos, de manifesta má-fé, não raro, infantes, especialmente recém-nascidos,
acabam sendo entregues a membros da família extensa sem a devida orientação
para a regularização da situação, como o encaminhamento à Vara da Infância e da
Juventude, à Subsecção local da Ordem dos Advogados do Brasil ou ao Ministério
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Público. Piores ainda são os casos em que a entrega da criança é realizada a pessoa
sem vínculo de parentesco, que assume a guarda de fato do infante até a formação
de vínculos afetivos para posteriormente pleitear a guarda para fins de adoção, como
forma de burla ao cadastro de interessados na adoção (artigo 50, § 13, c.c. o artigo
197-E, ambos do ECA).
A este respeito, pertinentes são as observações de kátia Regina Ferreira Lobo
Andrade Maciel:
Assevere-se que a única autoridade competente para expedir o termo de guarda é a judiciária, jamais o conselho tutelar, o comissariado de justiça, nem
mesmo o órgão do Parquet ou da defensoria pública. Estando qualquer desses
operadores do direito diante de uma situação de risco de um infante e da
possibilidade de entrega a um parente ou terceiro devidamente reconhecido
como responsável informal da criança, recomenda-se que se expeça apenas
um ‘termo de entrega’, no qual esteja expressamente escrito que a pessoa
que se responsabilizará pela pessoa menor de 18 anos deverá comparecer, no
prazo máximo de três dias, ao juízo competente para regularizar a situação
desse, observando-se que aquele documento não possui o condão de transferir a guarda.11
Assim, sem prejuízo da apuração de eventual conduta ilícita do responsável
pela colocação irregular do infante em família substituta, é preciso que a situação
da criança e do adolescente seja regularizada o mais rápido possível, inclusive para
evitar a já destacada prática de “devolução” do infante aos cuidados da Justiça da
Infância e da Juventude pelo responsável informal quando o zelo pelos interesses
daquele não mais lhe convir.
Sobre a frequente “devolução” de crianças e adolescentes por famílias substitutas (inclusive regulares) à Justiça da Infância e da Juventude, a Meritíssima Juíza
da 1ª Vara de Campo Grande/MS, Maria Isabel de Matos Rocha, escreveu excelente
artigo, do qual destacamos os seguintes trechos:
A questão é se a Justiça da Infância pode e deve aceitar fazer esse “papel esdrúxulo” não previsto na lei de “setor de devolução de produtos indesejados”
(com o perdão da ironia)
(...)
Enquanto não cancelada por ato judicial, a guarda persiste com um leque de
deveres para o guardião, entre os quais o de prover a subsistência do menor
(art. 33 do ECA). Mesmo se a guarda é revogável, por ato fundamentado do
Juiz (art. 35 do ECA) , significa que basta a vontade unilateral do guardião? E
onde fica o interesse da criança? A colocação em família substituta deve ocorrer quando se evidencia o proveito para a criança ou adolescente, pois o que
se tem em vista é a proteção do acolhido, nunca as pretensões dos guardiães,
tutores ou adotantes, já que eles não têm direito a exigir, e sim, proteção a
11 MACIEL, kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente:
Aspectos teóricos e práticos, p. 223.
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A LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROPOR AÇÃO VISANDO
À COLOCAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM FAMíLIA SUBSTITUTA
oferecer. O mesmo parâmetro (o interesse da criança – art. 6º do ECA) há de
ser observado quando o assunto é ‘devolução’. É necessário que o Juiz firmemente rejeite as ‘devoluções’ levianas e sem motivo, e indefira os pedidos
de cancelamento da guarda, não motivados, pois sua decisão para revogação
duma guarda deve considerar o interesse da criança, que obviamente em
regra não é a ‘devolução’.12
Percebe-se, portanto, que é imprescindível que guardas de fato de crianças e
adolescentes sejam regularizadas com presteza assim que conhecida a omissão dos
pais ou responsáveis informais, a fim de ser devidamente firmada a responsabilidade
da pessoa que tem a posse do estado de filho do infante, e o papel do Ministério
Público neste sentido é extremamente relevante, como será apontado adiante.
Antes, porém, passaremos a uma breve análise de cada uma das formas de
colocação em família substituta para em seguida nos debruçarmos sobre a forma de
atuação do Ministério Público em prol da garantia do direito à convivência familiar
às crianças e adolescentes em situação de risco (artigo 98, inciso II, do ECA).
2.1. Guarda
A guarda, como espécie de colocação em família substituta, é disciplinada
nos artigos 33 a 35 da Lei n. 8.069/1990 e destina-se a regularizar a posse de fato da
criança ou do adolescente, podendo, inclusive, ser deferida, liminar ou incidentalmente, nos procedimentos de tutela e adoção, exceto no de adoção por estrangeiros.
No entanto, excepcionalmente, a guarda pode ser deferida fora dos casos de
tutela e adoção, para atender a situações peculiares ou suprir a falta eventual dos
pais ou responsável, podendo ser deferido o direito de representação para a prática
de atos determinados (art. 33, § 2º, do ECA).
Cumpre observar que nesta espécie de família substituta, embora não haja
alteração na titularidade do poder familiar, já que não implica a destituição deste,
transfere-se um dos atributos deste, qual seja, o direito/dever de guarda dos pais
(arts. 1.566, IV, 1.583 e 1.584, do CC). Aliás, vale destacar que se a guarda for
transferida entre os próprios genitores, não estará configurada a colocação em
família substituta.13
O detentor da guarda pode opor-se a terceiros, ainda que os pais, mas tem o
dever de prestar assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente,
e, mediante ato judicial fundamentado e ouvido o Ministério Público, a guarda pode
ser revogada a qualquer tempo (art. 35, do ECA).
12 Crianças devolvidas: os “filhos de fato” também têm direitos? Disponível em: <http://www.ambito-//juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5541>. Acesso em: 27 abr. 2014.
13 Cf., MACIEL, kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Guarda. In: MACIEL, kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente: Aspectos teóricos e práticos, p. 219.
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A guarda será provisória quando deferida por determinado tempo arbitrado
pelo magistrado, no curso do processo de guarda, tutela ou adoção. Ao revés, a
guarda definitiva é aquela deferida por sentença que resolve o mérito e extingue o
feito. Por outro lado, a guarda excepcional consiste naquela que atende a situações
peculiares ou supre a falta eventual dos pais ou responsável (art. 33, § 2º, do ECA),
sendo recomendado que tenha caráter provisório.14
É interessante apontar que o deferimento da guarda a terceiros não impede o
exercício do direito de visitas pelos pais e o dever destes de prestar alimentos, exceto
se houver expressa e fundamentada determinação em contrário da autoridade judiciária competente, ou quando a medida for aplicada em preparação para adoção
(art. 34, § 4º, do ECA).
Vale ressaltar que a inclusão da criança ou adolescente em programas de
acolhimento familiar terá preferência a seu acolhimento institucional, observado,
em qualquer caso, o caráter temporário e excepcional da medida. Aliás, a pessoa ou
casal cadastrado no programa de acolhimento familiar poderá receber a criança ou
adolescente mediante guarda (art. 34, §§ 1º e 2º, ECA).
E, nos termos do art. 33, § 3º, da Lei n. 8.069/1990, a guarda confere à
criança ou adolescente a condição de dependente para todos os fins e efeitos de
direito, inclusive previdenciários.
2.2. Tutela
Os artigos 36 a 38 do Estatuto da Criança e do Adolescente referem-se à
tutela, a qual implica necessariamente o dever de guarda e, ao contrário desta, pressupõe a prévia decretação da perda ou suspensão do poder familiar.
Nos dizeres de Luciano Alves Rossato, Paulo Eduardo Lépore e Rogério Sanches Cunha, a tutela “trata de forma de colocação em família substituta que, além
de regularizar a posse de fato da criança ou adolescente, também confere direito de
representação ao tutor, permitindo a administração de bens e interesses do pupilo”.15
Afirma kátia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel:
Desta maneira, a tutela é o instituto recomendado para os casos de órfãos de
pais mortos ou declarados ausentes (presunção de morte) (art. 1.728, I, c/c o
art. 6º do CC) e, em caso de os pais biológicos ou civis decaírem do poder
familiar (art. 1.728, II, c/c o art. 1.626 do CC), quando o menor de 18 anos não
puder ou não quiser ser adotado.16
Esta espécie de colocação em família substituta será deferida à pessoa de até
dezoito anos de idade incompletos.
14 Cf., Ibid., p. 222 e 223.
15 Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, p. 197.
16 MACIEL, kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente:
Aspectos teóricos e práticos, p. 247.
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Consoante se extrai do art. 1.745, parágrafo único, do CC, quando a criança
ou adolescente tiver um patrimônio de valor considerável, o juiz poderá condicionar
o exercício da tutela à prestação de caução, que pode ser dispensada se o tutor for
de reconhecida idoneidade.
A tutela é testamentária quando a nomeação do tutor é realizada pelos próprios
pais, mediante testamento ou documento autêntico, indicando quem será o tutor após o
falecimento de ambos. Inexistindo esta disposição, a tutela será legítima, sendo deferida
aos parentes consanguíneos, observados os arts. 28 e 29, do ECA. Todavia, não havendo
indicação dos pais e na falta de parentes aos quais o juiz possa nomear tutor, ou, havendo
tais pessoas e forem excluídas ou removidas, a tutela será dativa, sendo exercida por tutor
idôneo e residente no domicílio da criança ou adolescente (art. 1.732, do CC).17
Nos termos do art. 37, do ECA, o tutor nomeado por testamento ou qualquer
documento autêntico, deverá, no prazo de trinta dias após a abertura da sucessão,
ingressar com pedido destinado ao controle judicial do ato. Para tanto deve ser aplicado o procedimento previsto nos arts. 165 a 170, da Lei n. 8.069/1990.
Determina o parágrafo único do aludido artigo 37 que devem ser observados os
requisitos previstos nos arts. 28 e 29, do ECA, somente sendo deferida a tutela à pessoa
indicada na disposição de última vontade se ficar comprovado que a medida é vantajosa
ao tutelando e que não existe outra pessoa em melhores condições de assumi-la.
Prevê o art. 38 do ECA que deve ser aplicado à destituição da tutela o procedimento previsto para a perda e destituição do poder familiar, ou seja, depende de
decisão judicial e com a garantia do contraditório.
O prazo mínimo da tutela é de dois anos, podendo ser estendido se o tutor
concordar e o juiz julgar conveniente para a criança ou adolescente (art. 1.765, do CC).
Os arts. 1.763 e 1.764 tratam das causas de cessação da tutela. Assim, cessa
a condição de tutelado: a) com a maioridade ou a emancipação do infante; ou b) ao
cair o menor sob o poder familiar, no caso de reconhecimento ou adoção. Por outro
lado, cessam as funções do tutor: a) ao expirar o termo em que era obrigado a servir;
b) ao sobrevir escusa legítima; ou c) ao ser removido.
2.3. Adoção
A adoção é disciplinada nos artigos 39 a 52-D, da Lei nº 8.069/1990, sendo
que o Código Civil, atualmente, faz menção ao instituto apenas de passagem, nos
artigos 1.618 e 1.619, limitando-se a dizer que se aplicam as disposições daquela lei
especial independentemente da idade do adotando. Trata-se de medida excepcional
e irrevogável, cabível quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou
adolescente na família natural ou extensa, não obstante certos membros desta possa
postular a adoção.
17
Cf., Ibid., p. 248-250.
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Pode ser unilateral ou bilateral. A primeira “é aquela em que quem requer
a adoção passa a ocupar a posição de um dos pais biológicos”, ao passo que a
segunda é “aquela que pressupõe total rompimento dos vínculos biológicos da
criança tanto com o pai quanto com a mãe”.18
Se for feita por somente um adotante será singular; se por dois, conjunta.
Neste último caso, é indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou
mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família (art. 42, § 2º, ECA).
Vale dizer que a adoção conjunta pode se dar, inclusive, entre divorciados, separados judicialmente e ex-companheiros, desde que sejam atendidos os seguintes requisitos,
conforme o § 4º do art. 42, do ECA: a) entrem em acordo a respeito da guarda e do regime
de visitas; b) o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância do período de
convivência; e c) seja comprovada a existência de vínculos de afinidade e afetividade com
aquele não detentor da guarda, que justifique a excepcionalidade da concessão.
A adoção caracteriza-se por ser: a) ato personalíssimo; b) excepcional; c)
irrevogável; d) incaducável; e) plena; e f) constituída por sentença judicial.19
A adoção é um ato personalíssimo, pois depende da expressa manifestação
dos interessados, tanto que não pode se dar por procuração (art. 39, § 2º, do ECA).
Como já mencionado, trata-se de uma medida excepcional e irrevogável (art.
39, § 1º, do ECA).
É incaducável, pois, ainda que falecidos os pais adotivos, não há o restabelecimento do poder familiar dos pais biológicos (artigo 49, do ECA).
Conforme se depreende do art. 41, “caput”, da Lei nº 8.069/1990, a adoção é
plena, atribuindo a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres,
inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo
os impedimentos matrimoniais.
A adoção deve ser constituída por sentença judicial, não se admitindo que
ocorra por escritura pública. Tal decisão deverá ser inscrita no registro civil mediante
mandado do qual não se fornecerá certidão (art. 47, da Lei n. 8.069/1990).
Nos termos do art. 47, § 5º, do ECA, a sentença conferirá ao adotado o nome do
adotante e, a pedido de qualquer deles, poderá determinar a modificação do prenome.
Sobre o instituto em tela, destaca Galdino Augusto Coelho Bordallo:
De todas as modalidades de colocação em família substituta previstas em nosso ordenamento jurídico, a adoção é a mais completa, no sentido de que há a
inserção da criança/adolescente no seio de um novo núcleo familiar, enquanto as demais (guarda e tutela) limitam-se a conceder ao responsável alguns
dos atributos do poder familiar. A adoção transforma a criança/adolescente em
membro da família, o que faz com que a proteção que será dada ao adotando
seja muito mais integral.20
18 ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; e, CUNHA, Rogério Sanches, op. cit., p. 206 e 208.
19 Cf., Ibid., p. 212-213.
20 MACIEL, kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente:
Aspectos teóricos e práticos, p. 264.
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O art. 42, § 6º prevê a adoção póstuma, nuncupativa ou “post mortem”, a
qual é deferida ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade, vem a
falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença.
Mister salientar que terão prioridade de tramitação os processos de adoção
em que o adotando for criança ou adolescente com deficiência ou com doença
crônica (art. 47, § 9º do ECA).
Podem adotar os maiores de dezoito anos, independentemente do estado civil,
devendo, contudo, ser, pelo menos, dezesseis anos mais velho do que o adotando.
Além disso, não podem adotar os ascendentes e os irmãos do adotando. Já o tutor
ou curador somente poderá adotar o pupilo ou curatelado após prestar contas da sua
administração e saldar o seu alcance (arts. 42, §§ 1º, 2º e 3º; e 44, ambos do ECA).
É importante observar, ainda, que, conforme o art. 43, da Lei n. 8.069/1990,
a adoção será deferida somente quando apresentar reais vantagens para o adotando
e fundar-se em motivos legítimos.
Em regra, a adoção depende do consentimento dos pais ou do representante
legal do adotando, exceto se aqueles forem desconhecidos, falecidos ou tenham sido
destituídos do poder familiar (artigo 166, “caput”). Também será necessário o consentimento do adotando, caso ele seja maior de doze anos de idade (art. 45, do ECA).
O art. 46, da Lei nº 8.069/1990 exige o estágio de convivência para a adoção, o
qual será pelo prazo que a autoridade judiciária fixar. Todavia, pode ser dispensado se
o adotando já estiver sob a tutela ou guarda legal do adotante durante tempo suficiente
para que seja possível avaliar a convivência da constituição do vínculo.
No caso de adoção por pessoa ou casal residente ou domiciliado fora do
país, o estágio de convivência será cumprido no território nacional, sendo de no
mínimo trinta dias (§ 3º do art. 46, do ECA).
Convém notar, outrossim, que a autoridade judiciária deverá manter em cada
Comarca ou Foro Regional, um registro de crianças e adolescentes em condições de
serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção. Tal inscrição de postulantes à adoção será precedida de um período de preparação psicossocial e jurídica,
orientada pela equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude (art. 50, “caput”
e § 3º, do ECA).
Nesta esteira, serão criados e implementados cadastros estaduais e nacional
de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e de pessoas ou casais
habilitados à adoção. Já para as pessoas ou casais residentes fora do país, haverá
cadastros distintos, que somente serão consultados na inexistência de postulantes
nacionais habilitados (§§ 5º e 6º do art. 50, do ECA).
Por outro lado, o art. 50, § 13, da Lei nº 8.069/1990 traz as seguintes hipóteses
em que poderá ser deferida adoção em favor de candidato domiciliado no Brasil não
cadastrado previamente: a) se tratar de pedido de adoção unilateral; b) for formulada
por parente com o qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade ou
afetividade; ou c) oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança
maior de três anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência com193
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prove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja constatada a ocorrência
de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237 e 238, do ECA.
Apesar de a adoção, como já destacado, fazer cessar os vínculos com a
família biológica, salvo para efeito de impedimentos matrimoniais, o art. 48, da
Lei n. 8.069/1990 confere ao adotado o direito de conhecer sua origem biológica,
podendo ter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar dezoito anos. Inobstante isso, sendo o adotado
menor de dezoito anos, a seu pedido e assegurada orientação e assistência jurídica
e psicológica, o acesso ao processo de adoção poderá ser deferido.
A adoção, inclusive, é a única forma de colocação em família substituta
estrangeira admitida e apenas em casos excepcionais (art. 31, do ECA).
Por fim, a adoção internacional é aquela na qual a pessoa ou casal postulante é
residente ou domiciliado fora do Brasil, e está disciplinada pelos arts. 51 a 52-D, do ECA.
2.4. A questão da legitimidade do Ministério Público
Conforme salientado anteriormente (item 1, supra), o atual perfil constitucional
do Ministério Público, ou seja, sua destinação institucional, é totalmente compatível com
as atribuições estabelecidas na legislação infraconstitucional para a tutela judicial e extrajudicial dos interesses das crianças e adolescentes, quer sejam de natureza transindividual (difusos, coletivos e individuais homogêneos – vide artigo 81 da Lei nº 8.078/1990
– Código de Defesa do Consumidor, aplicável a todo o microssistema de tutela coletiva,
por força do artigo 21 da Lei nº 7.347/1985) ou de natureza puramente individual.
No que toca à tutela dos interesses individuais, há certa resistência, especialmente na jurisprudência, em reconhecer a legitimidade do Ministério Público não
só na defesa de interesses de crianças e adolescentes, como também de idosos e
portadores de deficiências.
Por outro lado, já destacamos que eventuais objeções à legitimidade do
Ministério Público não encontram fundamento em nosso ordenamento jurídico para
a tutela de interesses sociais e individuais indisponíveis, como ocorre com crianças
e adolescentes em situação de risco decorrente de omissão do Estado e, especialmente, dos pais e responsáveis.
Neste sentido, são oportunas as palavras de Oirama Valente Santos Brabo
Rodrigues:
Um menor sem família natural (art. 25 do ECA), nem família substituta, inegavelmente encontra-se em situação de risco pela falta de pais ou responsáveis (art.
98, inc. II), necessitando da aplicação de uma medida de proteção (art. 101 do
ECA), capaz de resguardar o direito indisponível à convivência familiar.21
21 A legitimidade do Ministério Público para propor ação de adoção no Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: <https://www2.mp.pa.gov.br/sistemas/gcsubsites/upload/14/doutrina_legitimidade.pdf>. Acesso em: 01 maio 2014.
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Reconhecendo o caráter indisponível e social dos direitos individuais das
crianças e adolescentes, Galdino Augusto Coelho Bordallo assim preconiza:
Logo, nenhuma dúvida se pode ter sobre a defesa total dos direitos das crianças e adolescentes adequar-se, de forma perfeita, às finalidades constitucionalmente previstas para o Ministério Público. Caso não haja um alargamento
da visão do jurista, que deve abandonar o apego aos conceitos tradicionais
(muitas vezes ultrapassados), certamente a finalidade protecionista do Estatuto
não será alcançada, já que as crianças e adolescentes que se encontrarem em
situação de risco não terão quem os represente em juízo na defesa de seus
direitos. A instrumentalização desta defesa se dará mediante qualquer ação,
nominada ou inominada, de tutela de conhecimento, execução ou cautelar,
desde que seja eficaz para a proteção de qualquer dos direitos previstos pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente.22
No mesmo sentido, é a posição de Eduardo Roberto Alcântara Del-Campo e
de Thales Cezar de Oliveira:
Embora não exista exclusividade, como no caso da Ação Socioeducativa Pública, o Promotor de Justiça tem legitimidade para ajuizar todos os procedimentos da competência da justiça da infância e da juventude. Ao ajuizar a
ação, age na defesa do interesse socioindividual do menor. 23
Com tais observações em mente, não é difícil concluir que o Ministério
Público tem legitimidade para promover ação com o fim de aplicar a medida de proteção de colocação em família substituta, tanto quanto a tem para as demais medidas, como a de acolhimento institucional (também denominada de afastamento do
convívio familiar) e para a destituição ou suspensão do poder familiar, sendo que
para as duas últimas há expressa previsão, respectivamente, nos artigos 101, § 2º, e
155, ambos do ECA.
Apesar de o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao estabelecer as normas
processuais para a colocação em família substituta, não ter previsto expressamente a
legitimidade “ad causam” do Ministério Público, fazendo menção apenas à sua atuação
interventiva (artigo 168), isto não significa que estaria o Parquet impedido de provocar a atuação do Poder Judiciário em benefício do infante que está em situação de
risco diante da inércia dos pais ou responsáveis de fato (artigo 98, inciso II, do ECA).
Do contrário, ninguém ingressaria em Juízo em benefício do superior interesse do
infante e a violação a seus direitos permaneceria por tempo indeterminado.
Além disso, o artigo 201, inciso III, do ECA estabelece que compete ao
Ministério Público promover, dentre outras, as ações de nomeação e remoção
de tutores e guardiães, o que significa que pode o Parquet requerer que o Juiz da
22 MACIEL, kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente:
Aspectos teóricos e práticos, p. 918.
23 Op. cit., p. 279-280.
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Infância e da Juventude atribua a guarda ou tutela de um infante a uma pessoa ou
casal determinado.
Sobre o referido dispositivo legal, Luciano Alves Rossato, Paulo Eduardo
Lépore e Rogério Sanches Cunha enfatizam que “o dispositivo fala em promover e
acompanhar, o que remete a atuações como autor e também como fiscal da lei”.24
Apesar de fazer menção apenas à guarda, kátia Regina Ferreira Lobo Andrade
Maciel defende a legitimidade do Ministério Público para requerer a nomeação de
guardião com base no dispositivo legal supracitado quando a criança ou adolescente estiver em situação de risco.25
Tal posição, inclusive, já foi acolhida pelo Egrégio Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul:
PEDIDO DE GUARDA. COMPETêNCIA, JUíZO DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE E JUíZO DE FAMíLIA. COLOCAÇÃO EM FAMíLIA SUBSTITUTA. 1. A
competência da Justiça da Infância e da Juventude é ditada pelo art. 148 do
ECA, estendendo-se aos pedidos de guarda e de tutela quando se tratar de criança ou adolescente que se encontre nas hipóteses elencadas no art. 98 do ECA.
2. Como regra, os pedidos de guarda e destituição do pátrio poder devem ser
resolvidos perante o juízo especializado da infância e da juventude. 3. Estando
a criança sob a guarda da mãe e dos avós maternos, cujo comportamento constitui ameaça aos direitos reconhecidos no ECA, tem legitimidade para propor a
ação o órgão do Ministério Público e a competência é da vara especializada.
Recurso provido (TJRS, 7.ª Câm. Cív., Apelação Cível 70007507585, Rel. Des.
Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, j. 18-2-2004).
No tocante à tutela, o Código de Processo Civil já previa a legitimidade do
Ministério Público para a ação de remoção (destituição) em seu artigo 1.194, o que
por si só já justificaria a legitimidade para a nomeação, eis que a simples destituição
sem a nomeação de um substituto deixaria o infante sem representante legal.
Ademais, por ser supletiva a legitimidade “ad causam” do Ministério Público,
a exemplo do que ocorre nas ações de interdição, não há óbice para a aplicação,
por analogia, do disposto no artigo 1.178, incisos II e III, do CPC. Porém, como a
criança ou adolescente não é parte nas ações de guarda, tutela e adoção, não figura
ela no polo passivo da demanda, sendo inaplicável, assim, o disposto no artigo
1.179 do referido diploma legal.
Consoante nossa posição, é o seguinte julgado do Egrégio Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro:
Medida protetiva. Acolhimento Institucional do Adolescente. Nomeação da
Defensoria Pública como Curadora Especial do menor. Demanda ajuizada
pelo Ministério Público no interesse do menor para nomeação de guardião. O
art. 201 da Lei nº 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente é claro
24 Ob. cit, p. 488 (grifos do original).
25 MACIEL, kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente:
Aspectos teóricos e práticos, p. 779-780.
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A LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROPOR AÇÃO VISANDO
À COLOCAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM FAMíLIA SUBSTITUTA
em dispor que compete ao Ministério Público zelar pelo efetivo respeito aos
direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes. Da mesma
forma, o art. 136 dá ao Conselho Tutelar a atribuição de tomar as medidas protetivas às crianças e aos adolescentes, bem como atender e aconselhar os pais
ou responsáveis. Nomeação da tia como guardiã provisória, não se aplicando
o parágrafo único do artigo 142 da Lei Especial. Descabimento da atuação da
Defensoria Pública como curadora especial do menor. Recurso provido (TJRJ,
2.ª Câm. Cív. Agravo de Instrumento 0065141-44.2012.8.19.0000, Rel. Des.
Alexandre Câmara, j. 17-4-2013).
No que tange à adoção, a legitimidade ativa do Ministério Público é objeto
de controvérsias. Muitas destas são oriundas do fato de o inciso III, do artigo 201, do
Estatuto da Criança e do Adolescente não ter mencionado esta ação.
Contudo, tendo em vista o tipo de interesse em questão, não se admite tão
somente uma interpretação literal da norma, fazendo-se necessário um estudo que
logre responder a razão da sua existência.
Neste diapasão, Oirama Valente Santos Brabo Rodrigues lembra que a razão
e a intenção da Lei nº 8.069/1990 são a proteção integral da criança e do adolescente, os quais são sujeitos de direitos indisponíveis.26
Não bastassem tais constatações, o Estatuto da Criança e do Adolescente
ainda prevê que cabe ao Ministério Público zelar pelo efetivo respeito aos direitos
e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medidas
judicias e extrajudiciais cabíveis (artigo 201, inciso VIII), e que para a defesa dos
direitos e interesses dos infantes são admissíveis todas as espécies de ações pertinentes (artigo 212, “caput”).
A este respeito, preconiza Valter kenji Ishida:
Seja por ação civil pública, mandado de segurança, medida de proteção ou
outro tipo de ação semelhante, está o MP legitimado a requerer a tutela do
direito individual. Nesse caso, atua o Parquet como substituto processual, dispensando a inclusão da criança ou do adolescente no polo passivo.27
Ainda em relação à adoção, objeções poderiam surgir devido a seu caráter
personalíssimo, eis que os interessados devem manifestar expressamente, por escrito
ou em audiência, sua intenção, ante a vedação da adoção por procuração (artigo 39,
§ 2º, c.c. o artigo 165, parágrafo único, ambos do ECA).
Tal característica do procedimento da adoção não constitui empecilho para
a atuação ministerial, eis que, na ausência de pessoas nas condições do artigo 50,
§ 13º, do ECA, a deflagração do processo de adoção pelo Ministério Público deverá
implicar a intimação dos interessados, segundo a ordem do cadastro de adoção,
26 A legitimidade do Ministério Público para propor ação de adoção no Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: <https://www2.mp.pa.gov.br/sistemas/gcsubsites/upload/14/doutrina_legitimidade.pdf>. Acesso em: 01 maio 2014.
27 Estatuto da Criança e do Adolescente: Doutrina e Jurisprudência, p. 536.
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para vir a Juízo e expressar sua intenção em adotar ou não o infante e, em caso
positivo, ser iniciado o estágio de convivência (artigo 46, do ECA).
Nos casos em que o interessado já estiver com a guarda de fato do infante,
bastará a indicação desta circunstância, com a qualificação de todos na petição
inicial, observando-se, no que couber, o disposto no artigo 165, do ECA.
Muito comum, no cotidiano do membro do Ministério Público, é a ausência
de informações sobre o guardião de fato da criança ou do adolescente ou sobre
parentes que poderiam assumir a guarda ou tutela destes ou manifestar eventual
interesse na adoção.
Nestes casos, estando o infante em programa de acolhimento institucional,
as informações necessárias devem ser buscadas pela equipe técnica da entidade,
com o auxílio, se houver necessidade, do Conselho Tutelar e dos serviços de assistência social do Município, como o CRAS e o CREAS, e devem constar do Plano
Individual de Atendimento ou de outro relatório pormenorizado a ser apresentado
nos autos do respectivo processo (artigo 101, §§ 4º a 6º, do ECA), sem a necessidade
de instauração de procedimento investigatório específico pelo Ministério Público.
Nas hipóteses em que a criança ou adolescente não está sendo acompanhado pela Justiça da Infância e da Juventude e as informações chegarem ao conhecimento do Ministério Público por meio de relatório do Conselho Tutelar ou pelo
atendimento ao público (com a tomada por termo, se for o caso, das declarações
da pessoa que noticiou o fato), se houver necessidade de maiores esclarecimentos,
poderá o Promotor de Justiça com atribuições na área da infância e da juventude
instaurar procedimento administrativo de natureza individual.28
De outro modo, se as informações fornecidas ao Ministério Público forem
suficientes, a instauração de procedimento investigatório poderá ser dispensada e
ajuizada imediatamente a ação cabível.
Qualquer que seja a modalidade de colocação em família substituta que
se pretenda, é importante lembrar que no curso do processo deverá ser realizada
avaliação psicossocial por equipe interdisciplinar para aferir se a medida atenderá
ao superior interesse do infante e se a pessoa que deverá assumir seus cuidados têm
condições para tanto.
Em caso de recusa do parente ou terceiro (neste caso quando já detém a
guarda fática do infante) em assumir a guarda ou tutela, entendemos que deve ser
aplicado, no que for cabível, o disposto no artigo 1.736 do Código Civil, salvo a
manifesta disposição inconstitucional do inciso I, por violação ao disposto no artigo
5º, inciso I, da CF/88, e o previsto no inciso V, eis que a criança ou adolescente pas28 No Estado de São Paulo, o atendimento ao público e a instauração de procedimentos administrativos
para apuração de lesões a direitos individuais pelo Ministério Público estão disciplinados pelo Ato
Normativo n. 619/2009 –PGJ-CPJ-CGMP.
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sará a residir no domicílio do responsável. O prazo para a escusa é de 10 dias, na
forma do artigo 1.738 do CC, que dispôs de forma diversa do artigo 1.192 do CPC.29
Já nos casos de adoção, existindo recusa, deve se passar aos demais habilitados segundo a ordem cronológica do registro e, em último caso, à procura por
interessados no cadastro internacional (artigo 50, § 10, do ECA). Se ainda assim não
houver interessados, por falta de opção, o pedido deve ser aditado para outra forma
de colocação em família substituta.
Na incerteza da medida mais adequada, a qual, conforme já assinalado,
dependerá de estudo psicossocial no curso do processo, recomendamos que seja
ajuizada pelo Promotor de Justiça ação para aplicação da medida de colocação em
família substituta que se mostrar cabível ao final, observando-se as disposições dos
artigos 28 a 32, 33 a 52-D (conforme o caso) e 165 a 170 do ECA, bem como do
Código Civil e do Código de Processo Civil no que forem cabíveis.
Também vale lembrar que a tutela depende da prévia suspensão ou destituição do poder familiar dos pais, e a adoção da destituição do poder familiar, de modo
que, se com o relatório referido no artigo 101, § 9º, do ECA, for indicada a forma
de colocação em família substituta mais adequada, o Promotor de Justiça poderá
cumular o pedido de suspensão ou destituição com o de nomeação de guardião ou
tutor, ou para que sejam intimados os interessados constantes do cadastro de adoção
para se manifestarem e, ao final, ser deferida a colocação na família substituta, tendo
em vista o disposto no artigo 157 do ECA.
Para finalizar este tópico, é importante frisar que não estamos defendendo
uma atuação indiscriminada do Ministério Público, e sim supletiva, quando houver
omissão dos pais ou responsáveis de fato, ou seja, quando há situação de risco
para as crianças e adolescentes, eis que nos demais casos, inclusive nas questões
de guarda e tutela de atribuição das Varas de Família, há pessoas interessadas que
devem se valer dos serviços de profissionais da advocacia ou da Defensoria Pública,
devendo, inclusive, os membros do Parquet, no atendimento ao público de casos
desta natureza, orientar os interessados a constituir advogado ou a buscar a nomeação de Defensor Público em caso de hipossuficiência econômica (artigos 133 e 134,
“caput”, ambos da Constituição Federal).
E, ainda, nos casos em que os pais forem falecidos, foram destituídos ou
suspensos do poder familiar, ou optarem por aderir expressamente ao pedido de
colocação em família substituta, o membro do Ministério Público deve orientar os
interessados a formular o pedido diretamente no cartório da Vara da Infância e da
Juventude do domicílio do infante (artigo 166, “caput”, do ECA).
Ao assim proceder, o membro do Ministério Público atuará de forma
racionalizada, não assumindo atribuições em desconformidade com seu perfil
29 Houve a derrogação tácita do dispositivo do CPC, eis que apesar da dúbia disposição do artigo 2.043
do CC, os dois diplomas tratam de normas de caráter geral (artigo 2º, § 1º, do Decreto-lei nº 4.657/1942
- Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).
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constitucional, e evitará que sua atuação judicial e extrajudicial seja prejudicada
nos casos em que deve efetivamente atuar, e ao mesmo tempo, não descurará
da defesa dos interesses de crianças e adolescentes quando verificada a efetiva
situação de risco, zelando pela intervenção precoce (artigo 100, parágrafo único,
inciso VI, do ECA).
CONCLUSÃO
Do exposto neste trabalho, conclui-se que as crianças e adolescentes são
seres humanos especiais, em processo de desenvolvimento e que devem ter esta
condição peculiar considerada no que atine aos seus interesses. Aliás, a Constituição Federal de 1988 e a Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente),
visando tutelar essas pessoas, adotaram a doutrina da proteção integral.
Salientou-se que dentre os direitos assegurados às crianças e adolescentes
destaca-se o direito à convivência familiar, o qual pode ser exercido através da família natural, da família extensa ou ampliada, ou, ainda, por pessoas sem parentesco
com o infante, mas que aceitaram deste cuidar com autorização judicial.
Com efeito, em regra, a criança ou adolescente deve ser mantido na sua
família natural ou extensa e, excepcionalmente, deve ser colocado em família substituta quando esgotadas as tentativas de manutenção, inserção ou reintegração no
núcleo familiar de origem.
A colocação em família substituta se dá por meio dos institutos da guarda,
tutela e adoção, e sempre depende de decisão judicial.
Como explanado, dentre todos os órgãos voltados à defesa dos interesses das
crianças e adolescentes, o Ministério Público é aquele que se destaca como o principal protagonista tendo em vista as múltiplas atribuições que lhe foram conferidas
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, como pode ser observado, a título de
exemplo, nos artigos 201 e 202 do referido diploma legal.
Assim, o Parquet possui instrumentos constitucionalmente previstos para a
defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, perfil este que deve ser observado quando a questão envolver o
delineamento da sua legitimidade na atuação nas mais diversas áreas.
No que concerne aos interesses individuais das crianças e adolescentes, insta
dizer que são indisponíveis, o que já autorizaria a atuação do Ministério Público,
com base no art. 127, “caput”, da CF/88.
Além disso, os interesses das crianças e adolescentes têm um aspecto social,
uma vez que sua defesa interessa também à sociedade.
Como se procurou demonstrar neste artigo, a destinação institucional do
Ministério Público é totalmente compatível com as atribuições estabelecidas na
legislação infraconstitucional para a tutela judicial e extrajudicial dos interesses
das crianças e adolescentes, quer sejam de natureza transindividual ou de natureza
puramente individual.
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Indubitável é, portanto, que o Ministério Público possui legitimidade para
promover ação com o fim de aplicar a medida de proteção de colocação em família
substituta, qualquer que seja a modalidade desta, tanto quanto a tem para as demais
medidas, como a de acolhimento institucional e para a destituição ou suspensão do
poder familiar. Aliás, o infante sem respaldo familiar, pela inexistência ou desinteresse dos pais ou outros responsáveis de direito ou de fato, está em situação de risco,
o que enseja a aplicação de medidas de proteção.
É importante frisar que, apesar do Estatuto da Criança e do Adolescente,
ao estabelecer as normas processuais para a colocação em família substituta no
capítulo específico, não ter previsto expressamente a legitimidade “ad causam” do
Ministério Público, fazendo menção apenas à sua atuação interventiva (artigo 168),
isto não significa que estaria o Parquet impedido de provocar a atuação do Poder
Judiciário em benefício do infante que está em situação de risco diante da inércia
dos pais ou responsáveis (artigo 98, inciso II, do ECA). Do contrário, ninguém ingressaria em Juízo em benefício do superior interesse do infante e a violação a seus
direitos permaneceria por tempo indeterminado.
Com efeito, no que concerne à guarda e à tutela, vale apontar que o art. 201,
III, do ECA dispõe que compete ao Ministério Público promover, dentre outras, as
ações de nomeação e remoção de tutores e guardiães.
A controvérsia maior encontra-se em relação à adoção, já que esta não é
mencionada no reportado dispositivo legal. Entretanto, conforme mencionado neste
trabalho, não se pode admitir tão somente uma interpretação literal da norma, pois,
em se tratando da Lei nº 8.069/1990, a intenção é a proteção integral da criança e
do adolescente, os quais são sujeitos de direitos indisponíveis.
Ademais, cabe ao Ministério Público zelar pelo efetivo respeito aos direitos
e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medidas
judicias e extrajudiciais cabíveis (artigo 201, inciso VIII, do ECA), e para a defesa dos
direitos e interesses dos infantes são admissíveis todas as espécies de ações pertinentes (artigo 212, “caput”, do ECA).
Por outro lado, não se está defendendo uma atuação indiscriminada do
Ministério Público, e sim supletiva, quando houver omissão dos pais ou responsáveis de fato, ou seja, quando há situação de risco para as crianças e adolescentes,
eis que nos demais casos, inclusive nas questões de guarda e tutela de atribuição das
Varas de Família, há pessoas interessadas que devem se valer dos serviços de profissionais da advocacia ou da Defensoria Pública, cabendo ao membro do Parquet
orientá-las neste sentido.
Deste modo, o Ministério Público atuará de forma racionalizada, não
assumindo atribuições em desconformidade com seu perfil constitucional, e
tampouco deixará de prestigiar o princípio do superior interesse da criança e
do adolescente.
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