A vidA durA dos puxA-sAcos

Transcrição

A vidA durA dos puxA-sAcos
CONFISSÕES
Rela ciona mento
x
Sexo
x
Ca r reira
x
Pa ter nidad e
ILUSTRAÇÕES guto l acaz
A vida
dura dos
puxa-sacos
Fa b i o S t e i n b e rg
Ninguém sabe
ao certo como
surgiu o puxasaquismo, mas há uma corrente de
estudiosos que põe a culpa de tudo
nos chimpanzés. Organizados por
hierarquia de comando desde que
surgiram na Terra, até hoje os primatas mais fraquinhos passam dias
e noites paparicando os mais fortes.
Para esses primos dos humanos, o
ritual inclui beijar os pés do chefão,
levar oferendas meio bestas, como
folhas e gravetos, e até entrar em fila
para fazer cafuné nos nobres pelos
do mandatário. Seja por gene, seja
por observação direta, o fato é que
a chegada desse comportamento
bizarro ao universo dos homens foi
só um pulo. O “processo adaptativo
para garantir a sobrevivência”, como
alguns cientistas sociais costumam
rotular a bajulação aos poderosos,
segue os mesmos princípios da era
das cavernas, mais tarde repetidos
carreira
na adoração aos faraós e na adulação
aos reis absolutos dos séculos seguintes, até se disseminar hoje como uma
praga no mundo corporativo.
Coube ao jornalista americano
Richard Stengel, hoje editor da revista Time, escrever o primeiro e, provavelmente, único tratado sobre a bajulação. Com o título You’re Too Kind
(“Você é muito gentil”), ele considera essa prática uma epidemia social, embora amenize o estrago sob a
classificação de “mentiras inofensivas
que fazem o gerador e o receptor se
sentirem melhor”. Assim, no universo empresarial, o puxa-saquismo não
seria nada além de um mal necessário indispensável ao equilíbrio das
relações profissionais. Para o autor, a
soma de elogios exagerados esconde
a estratégia do profissional de buscar
um resultado prático — desde se tornar o mais querido dos subordinados
até garantir um escritório com janela
ou turbinar a carreira. Trilhando o
caminho da ambiguidade, o ato de
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confissões
Eles riem de piadas
sem graça, elogiam
atos insanos e
concordam com
qualquer asnice
dita pelo chefe
bajular se confunde com educação e
respeito à etiqueta social.
Stengel se animou tanto com
o conceito que desenvolveu que
chegou a elevar o puxa-saquismo à
condição de arte. Uma forma de sedução em que a meta é nunca cair
no lugar-comum. É saber elogiar a
beleza se a pessoa for inteligente. E
destacar a inteligência se a pessoa for
muito bonita. Com isso, o autor acabou fazendo em sua obra uma megagentileza tão grande aos puxa-sacos
que o livro se esgotou. A experiência
demonstrou a essência da bajulação,
que é obter um benefício direto dos
que concentram o poder por meio
de um tratamento privilegiado por
quem precisa do favor.
A tese de Stengel passa um pouquinho além da conta. Enquanto na
vida social a noiva está sempre linda,
o recém-nascido é sempre uma gracinha e o morto era uma ótima pessoa, nas empresas é o chefe que está
sempre elegante e bem-vestido, suas
ideias são inovadoras e criativas e
suas iniciativas não deram certo por
serem muito avançadas em relação
ao tempo. Os princípios que regem
a bajulação são os mesmos em qualquer contexto. Só que, enquanto no
campo social se mostram em geral
inofensivos, nas empresas carregam
um interesse oculto.
Ao oferecer um ambiente acolhedor que permite aos puxa-sacos
crescer e se multiplicar, as empresas
se tornaram santuários modernos
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para o exercício da adulação. Podese falar até em carreira para eles,
que começam como simplórios
juniores que riem de piadas sem
graça, elogiam atos insanos e concordam com qualquer asnice dita
pelo chefe até os mais seniores,
que aprendem a se anular como
indivíduo para viver a vida daqueles que mandam no pedaço e, num
desprendimento inédito, praticam
um mimetismo que os faz se confundir com os superiores como se
ambos fossem uma única alma.
Sutis, os mais tarimbados não cometem erros primários de chamar
o chefe de gênio, pois sabem que o
contrário é que soaria como autêntico. No entanto, adotam métodos
subliminares de identificação com
o dirigente da vez: copiar cortes de
cabelo, modo de vestir e até assumir o mesmo time de futebol.
Em retribuição à eliminação
da vontade própria e ao alinhamento absoluto e fidelidade canina ao
patrão, o funcionário espera dele
a retribuição, de singelos sorrisos
de aprovação a demonstrações explícitas, como aumento de salário
e promoção de carreira. Como parasita, o puxa-saco só existe porque
encontra quem patrocine seu comportamento. Isso se explica pela solidão do poder, que isola e fragiliza
seus detentores e, ironicamente, os
torna emocionalmente dependentes de mercenários que topem se
ajustar aos seus caprichos, opiniões
e atos. O final a gente já conhece:
de tanto viver à custa da hospedeira, os parasitas acabam por matá-la.
E, sem ter mais do que se nutrir,
também vão para o brejo.
Fabio Steinberg, jornalista e escritor,
autor dos livros Ficções Reais e Viagem de
Negócios, há 20 anos dá consultoria sobre
comunicação a empresas. Escreva para
ele: [email protected]
falsos
jovens,
envelheçam
Cla u d i o Ma n o e l
“Que você
possa viver
em tempos
interessantes!” Dizem que essa frase é
uma milenar (1) praga chinesa. Realmente, nossa época pode até não ser
de praguejar, mas também não é bolinho, não. Claro que a vida sempre foi
dura. Sabe-se lá o que era ter de matar o tal mamute diário, literalmente?
E, depois de horas e horas carregando
aquele bichão, chegar em casa, cansadão, louco por um banho quente e
por um xampuzinho, mas, além de
nada disso ter sido inventado, ainda
ter de aturar a patroa reclamando da
demora, que as crianças estão morrendo de fome, que você está sujando
tudo, que ela não é empregada...
Portanto, todos concordamos
que, neste último milhãozinho de
anos, a coisa toda tá bem melhorzinha. Hoje, a gente nem tem mais de
encher a despensa sozinho. As moças
que a gente pega são cada vez mais
independentes, sabem fazer coisas,
sabem ensinar a gente a fazer coisas.
E, pra tudo ficar ainda mais bacana,
não é que, justamente na nossa vez, a
tal da “expectativa de vida” deu uma
espichada danada? Paradoxalmente,
é aí que mora o tal perigo. Ou é aí
que rola a tal praga chinesa.
Se você vai viver mais, que viva o
maior tempo possível com o máximo
de vigor e juventude, não é? Se vamos ter mais vida, que a aproveitemos
como aqueles que sabem (2), �����
realmente, aproveitá-la. Então, “forever
young”! Custe o que custar. O problema é que custa, viu?
papo reto
Antes de mais nada, pra galera do
oito ou 80 (ou 90), não estou defendendo o desleixo, a capitulação total
à tal “marcha inexorável do tempo”.
Se vamos (nós, os quarentões, cinquentões e demais “ões”) seguir, que
sigamos “nos trinques”, zelando pela
parte de matéria corpórea que nos
cabe. Mas sem exageros. Se o inferno
está nos detalhes, o ridículo habita
no exagero. Lutar contra o tempo
não é só árduo. É inútil. Ele vai ganhar. Isso não significa que você deva
perder de goleada. Dar trabalho ao
adversário é sempre gostoso.
Tem coisa pior que o tal do “avolescente” (3)? Aquele tipo que não
quer “se entregar” ao passar dos anos
e, por essa “causa”, cai nos braços de
tudo que é dermatologista, esteticista
e “estica-puxista” do mercado. Esses
espécimes bizarros são facilmente reconhecidos pela tintura acaju, ou por
outros procedimentos capilares tão
exóticos quanto, e pela capacidade
Tem coisa pior que
o “avolescente”?
Aquele tipo que
cai nos braços
de tudo que é
dermatologista?
de aplicar botox até no saco (pra ficar
lisinho e perder as “rugas de expressão”), além do estranho “resultado”
facial, que sempre nos faz lembrar de
algum inimigo do Batman.
Mas também tem o tal “jovem
de espírito”... e de casaco de couro...
e cheio de tatuagens (recentes)... e
de costeletas (mesmo grisalhas) e de
rabo de cavalo (mesmo careca)... e
(ai!) com “novas” gírias. Aquele tiozão que se acha “muderno”, se acha
“cumedor”, enfim... se acha.
Pois é... O que devemos fazer
com esse “tempo extra”? Ser só ve-
lho é chato. Mas ser velho-jovem, na
maioria dos casos, fica bem ridículo.
Então como é que fica? Como ter
um papo reto sobre esse novo dilema? Bom, meu camarada, cada um
com seu cada um, mas, se cabe a
mim palpitar, acho que a receita a
perseguir é manter a espinha e outras coisas eretas, a mente esperta,
despertar a vontade delas, o máximo
que der, do jeito que der.
Mas usar piercing não pode não,
tá?
(1) Tudo lá é milenar, cacete? E “milenar” é, por acaso, alguma espécie
de garantia de qualidade? Tipo “se é
milenar, é bom”?
(2) E desde quando jovem sabe de
alguma coisa?
(3) Claro que tem coisa pior. Mas o
tema deste mês é esse, ok?
Claudio Manoel é da turma do Casseta.
Escreva para ele: [email protected]
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confissões
Não seja uma vítima
da mulher-vítima
tat i b e r n a r d i
Sua gastrite resolveu at acar
de novo e não
deu tempo de
diminuir no cabeleireiro a juba primata que você
carrega acima de seu cérebro, que,
hoje, só precisa de descanso, silêncio e alguma bobeira na televisão.
Isso deveria ser simples para uma
mulher entender. Hoje você não
tá a fim de dirigir até a casa dela,
ouvir sobre como ela odeia tal colega de trabalho e falar coisas que
ao mesmo tempo soem dóceis, inteligentes e decididas. Você quer
amor,
paixão e
o resto
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dormir sem tomar banho, jantar
salgadinho murcho e dormir torto
no sofá babado.
Não significa que você tenha
dúvidas a respeito do amor que sente. Não quer dizer que você esteja
com uma modelo internacional ou
com sua vizinha gordinha, em casa,
ambos nus, comemorando essa
mentira deslavada que você inventou pra poder pular a cerca. Não
é porque você não sente saudades
ou desistiu de ser galanteador agora
que já ganhou a moça. Você, meu
amigo sofredor, tem todo o direito
de simplesmente não estar a fim
de vez em quando e elas definitivamente não têm o direito de transformar isso em um problema.
Mas a mulher-vítima não trata um homem como um parceiro
de vida. Um humano normal com
vontades, preguiças, indolências
e flatulências. Ela trata o homem
como um sádico algoz, pronto para
maltratá-la, enganá-la e acabar com
sua mísera vida, que é assim desde a época em que seu papai não
a elogiava como ela queria. E não
importa o que você faça, nunca será
o suficiente.Não importa que você
equilibre qualidades com defeitos,
os defeitos vão sempre sobressair.
E então, já que você é esse bosta
de ser que só mal lhe faz... por que
ela não te larga? Porque ela tem o
desejo inconsciente de ser maltratada. Ela idealiza o chicote em suas
mãos. Ela precisa sofrer e te esco-
confissões
lheu pra essa fantasia. Ela adora
pensar que você não presta.
A mulher-vítima não entende que você precisa trabalhar. Ela
acha que está sendo renegada, preterida, ignorada, humilhada, abusada, explorada, judiada. Ela não
entende que você tem amigos, família e, se bobear, até de seu sono
ela vai reclamar: como assim você
dorme ao invés de me idolatrar 24
horas por dia?
Por que você fez isso comigo
justo no dia tal? Por que você tá
me falando isso justo hoje que eu
tô num dia tal? Por que você não
fez tal coisa justo quando eu mais
precisava de tal? Por que você fez
isso sabendo que eu tenho trauma
de tal coisa? Se todo dia é um péssimo dia para errar e se a sua mulher conjuga cobranças com essas
estruturas de frase, você está sendo
vítima da mulher-vítima.
No começo, você pode até
achar que ela age assim tamanha
a segurança: se ele não for perfeito, eu berro; afinal, não me faltam
homens querendo saciar todas as
minhas vontades. Mas não se engane, trata-se do ser mais inseguro do
planeta: ele não me ama e eu não
suporto isso; portanto, vou querer
provas de seu amor a cada 2 segundos e, como isso é impossível, eu
vou me sentir uma completa infeliz e, mais uma vez, vou me provar
que nasci para sofrer e, porque sou
viciada em ser vítima, essa sensação
é a minha cheiradinha ou fumadinha ou picadinha ou pilulazinha
diária. Seu “moreco” precisa de um
médico, e não de um homem.
Repita comigo: você não tem de
salvar uma mulher. Amar não significa virar pai ou médico ou benzedeiro de uma criatura. Você não
tem de dizer a coisa certa na hora
certa no dia certo com o sol refletin-
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do em seus penetrantes olhos de
super-homem. Você não tem de
ter lido os livros e visto os filmes e
baixado as músicas que ela planejou para não se sentir vítima, mais
uma vez, do homem imperfeito.
Você não precisa fazê-la gozar loucamente todas as vezes (mas quase todas é bom, isso é verdade).
Vamos combinar que ela também
não é perfeita (pra começar, ela é
bem doida!) e, então, não tá com
A mulher-vítima
não entende
que você precisa
trabalhar. Ela acha
que está sendo
renegada, preterida,
ignorada, explorada
essa bola toda pra cobrar tanto
assim. Vocês vão crescer juntos,
com calma e paciência e respeito
e equilíbrio, ou ela vai continuar
esperando que você venha do céu
para resgatá-la do inferno de seu
cerebelo inquisidor (este sim o
verdadeiro algoz).
Dê o amor que pode do jeito
que der e, se ainda assim a vida
dela continuar um mar de infortúnios, saiba que seu barquinho não
tem nada pra fazer a não ser se arrancar antes de afundar nesse lodo
de lágrimas de sangue. Talvez sem
nenhum amor ela aprenda a dar
valor para o amor possível.
Tati Bernardi é autora de A Mulher
Que Não Prestava. Escreva para ela:
[email protected]
Mesada?
Eu quero
um cartão
de crédito!
Sinfonia
no colchão
k i ka s alv i
Por que as mulheres
gritam na cama? É
mesmo fato que os
homens apreciam uma sinfonia orgástica anunciando os píncaros da
glória da parceira? Ou a coletânea de
urros e sussurros não passa de mais
um dos tantos mitos que conferem
ao erotismo muita pirotecnia e pouco
gozo? Não sei, mas tenho uma tese.
Começando por uma confissão: eu não sou do tipo barulhenta.
Uns gemidinhos para sinalizar que
o amado está no caminho certo, vá
lá, faz parte do pacote. Mas não é
encenação, é reação — se está gostoso, hmmm, “dilícia” (gemidinho),
tão espontâneo e natural quanto o
sonzinho gutural de degustar um
petit gâteau. E, se está maravilhoso,
acho que nenhuma outra trilha sonora é tão eficiente quanto o silêncio
para embalar a entrega que decorre
do prazer e da alegria. Nessa hora,
quanto menos estímulos competirem, mais intensa é a sensação.
Não existe nenhuma relação
entre prazer e sonoridade — menos
ainda no raciocínio de que, quanto
maior a alegria, mais forte a gritaria.
E ainda arrisco o palpite de que muita gritaria indica justamente o contrário. Sigamos a lógica. Quando alguma coisa dói, é normal que a gente
grite. O organismo foi programado
para isso, é um mecanismo de defesa
que sinaliza um pedido de socorro.
Disso para a ópera pornográfica foram milênios de esforço adaptativo.
Talvez a associação entre gritaria
e prazer seja herança da indústria
pornográfica. Aquele esplendor de
sexo
sérgio ruiz luz
O primeiro
cartão
de crédito que dei à minha filha,
de 15 anos, fez a alegria dela e quase provocou a minha ruína. Aconteceu há poucos meses, quando
Thaís comemorou seu aniversário
indo com as amigas da mesma idade para os parques da Disney em
Orlando. A bem da verdade, o que
ela levou para os Estados Unidos
foi um cartão de débito internacional, daqueles que podem ser carregados com determinado saldo
em dólares e utilizados com uma
senha nas lojas e nos restaurantes.
O depósito realizado por este “paitrocinador” era mais do que suficiente para alguém se alimentar e
fazer boas compras durante duas
semanas de viagem. Ao nos despedirmos no aeroporto, reiterei pela
enésima vez a recomendação para
que Thaís dividisse de forma cuidadosa os gastos ao longo dos dias.
Passados três dias do embarque, resolvi checar na administradora do cartão como estava o saldo. Restavam apenas 200 dólares.
Como se estivesse cumprindo um
rito de iniciação feminina, Thaís
mostrou-se muito eficiente em sua
primeira prova de torrar um cartão
de crédito (o equivalente masculino é bater o carro do pai). Em
menos de 72 horas, ela gastou mais
de 2 000 dólares nos mais variados
tipos de produto. A relação incluiu
paternidade
Não há relação
entre prazer e
sonoridade. Muita
gritaria indica
justamente o
contrário
“uh” pra cá e “oh” pra lá, e hordas
de “yes” e “give it to me”, com loiras
incandescentes transbordando orgasmos sucessivos, pode ter criado nos
homens a impressão de que, se a mulher não geme alto e em bom tom,
é porque ele não está agindo a contento. E, nas mulheres, pode ter incutido o sentimento de obrigação de
urrar agradecidamente cada vez que
ele torce a rebimboca ou ajusta a parafuseta. Tudo culpa de Hollywood.
Mas por que a gritaria sublençóis se
tornou um fetiche, eu diria que é
uma inversão compensatória para os
males da modernidade.
Para o macho oprimido pelos
tempos e massacrado pela cultura,
causar dor à sua fêmea é o resgate
de um poder ancestral de predador.
Simbolicamente, os gritos das mulheres são uma forma de dizer “ui,
como você é grande e forte” (ou seja,
macho), “ui, como machuca” (macho), “ui, sou toda sua, faça comigo
o que quiser” (machooooooooooo).
Nisso está toda a lascívia de um espetáculo que, mais do que sonoro, é
compensatório — é uma maneira de
o homem se sentir dominante sobre
a fêmea e de ela se submeter à única
coisa que ainda os difere: o pênis.
Kika Salvi assina o blog Sexo Verbal no Club
ALFA: www.revistaalfa.com.br/blogs/sexo-ver
bal. Escreva para ela: [email protected]
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confissões
um laptop, cremes da Victoria’s Secret, roupas e tênis Nike, entre outros
itens. Em razão da fúria consumista,
minha filha teria de passar o resto da
viagem comendo hambúrgueres baratos e bebendo água da torneira (um
castigo merecido, cheguei a pensar).
Ao telefone, depois de levar uma
bronca, Thaís chorou, lamentou que
era a mais miserável das criaturas
(“Você não viu quanto a turma gasta
por aqui!”) e tentou me convencer
de que o rombo financeiro tinha sido
um ótimo negócio para mim (“Pai,
você sabe quanto custa no Brasil o
computador que eu comprei?”). Desliguei o telefone com uma sensação
de fracasso, e só me restou morrer
com mais algumas centenas de dólares para recarregar o cartão.
Ensinar um filho a administrar o
dinheiro virou uma tarefa muito mais
complexa. Na minha infância (e na
de muitos outros quarentões), a “mesada” era uma coisa que só os amigos
mais ricos recebiam. Em casa, antes
de ir para a escola, a gente ganhava
mesmo era o dinheiro do lanche — e
mais algum para o ônibus (eu preferia voltar a pé para casa, economizando os trocados para comprar discos).
Somas um pouco maiores só foram
entrar no meu bolso na adolescência, para bancar as primeiras noitadas
numa danceteria do bairro e as viagens de férias. E só.
Hoje, um pai é assaltado pelo
filho numa frequência e numa diversidade de situações muito maiores.
Thaís atua quase como uma microempresária, com despesas fixas e
administrando um orçamento que
alimenta uma rede considerável de
fornecedores. Tem o celular, o cabeleireiro, a maquiagem, as roupas, os
óculos da moda, o cinema... É mesmo uma beleza essa microempresa
de Thaís. Seu único defeito é não
andar com as próprias pernas.
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Ensinar o filho
a administrar o
dinheiro virou uma
tarefa muito mais
complexa nos dias
de hoje
Já que não dá para recuar ao
tempo do “dinheiro da merenda”, seria possível administrar a situação de
uma forma mais equilibrada e evitar
exageros? Os especialistas dizem que
dá para fazer com que as crianças, ao
administrar progressivamente algumas somas em dinheiro, aprendam o
valor da coisa para, no futuro, não se
transformarem em adultos perdulários e financeiramente irresponsáveis.
Há vários livros, sites e até mesmo
cursos tratando hoje do assunto. E
quais seriam as grandes descobertas
dos especialistas nessa matéria? In-
felizmente, você não vai encontrar
nada muito além de platitudes do
tipo “seja direto e ensine a eles, desde cedo, o valor do dinheiro”.
Meu palpite é que os conselhos
são propositalmente superficiais para
não tocar no ponto fundamental da
questão: a educação financeira do(s)
filho(s) passa obrigatoriamente por
uma discussão mais profunda de valores, como a real importância das
coisas na nossa vida, os pequenos
prazeres que o dinheiro pode comprar e aqueles que nem ele pode nos
dar. Eu já comecei a levar esse papocabeça com a Thaís e espero colher
os resultados disso nas próximas
férias. Para contrabalançar a experiência de consumismo radical nos
Estados Unidos, talvez seja a hora de
ela conhecer de perto as belezas da
Coreia do Norte...
Sérgio Ruiz Luz é redator-chefe de ALFA e
“paitrocinador” de Thaís: [email protected]
confissões
Com meus amigos
de infância reparti
festas, bebidas,
namoradas, roupas,
(pouco) dinheiro
e uma banda
Juntos e ao vivo
kiko nogueira
Na pesquisa
que ALFA rea����
o amigo
razoável
lizou com os
homens e que
virou matéria no primeiro número,
havia uma pergunta sobre a origem
dos amigos atuais do entrevistado.
A maioria convivia com colegas de
trabalho. Poucos ainda viam os companheiros de infância. Eu faço parte
desse último grupo.
Ainda tenho amigos que conheci aos 7 anos de idade, na Escola de
Aplicação da Faculdade de Educação da USP. Com dois deles, Ado
e Otávio, mantenho uma sólida
relação. Juntamente com meu primo-irmão, Marcelo, nós repartimos
festas, bebidas, cigarros, namoradas,
viagens, roupas, dinheiro (pouco) e
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uma banda, que teve vários nomes,
todos, basicamente, ruins (se serve
de algum consolo, o nome da maior
banda de todos os tempos, The Beatles, não tem nada de especial,
enquanto ninguém se lembra, por
exemplo, da espetacularmente batizada Suburban Kids with Biblical
Names. Estamos combinados, então,
que nós não estouramos nas paradas
por causa disso).
Não me gabo de ter amigos antigos e não considero isso bom ou
ruim. O Facebook é responsável por
uma infinidade de reuniões trágicas
de colégio. Eu caí nessa. Churrascos com o pessoal que se formou
em 1983. O primeiro foi bom, o segundo foi ruim e o terceiro acabou
melancolicamente, com a certeza de
que havia um excelente motivo para
não ter encontrado aqueles senhores
e senhoras durante tanto tempo. A
nostalgia pode ser fatal.
Com o Otávio, o Marcelo e o
Ado é diferente. Uma sintonia que
não está ligada, necessariamente,
aos clichês da Grande Amizade.
Nenhum de nós apanhou ou bateu
em brigas com outras turmas ou esse
tipo de baboseira. Estávamos mais
preocupados em tirar os acordes de
So Lonely, do Police, e fazer planos
sobre o estrelato. Houve momentos
em que estivemos próximos e afastados. Nossas brigas eram homéricas.
Cheguei a achar, em inúmeras ocasiões, que não existia razão para vêlos mais. Somos muito diferentes em
quase tudo. Por que forçar a barra?
Recentemente, o irmão do Otávio, João, morreu. Ado me ligou às
8 da manhã dando a notícia. Ele apanhou o Marcelo e, juntos, fomos ao
enterro. No bonito cemitério de Congonhas, abraçamos Otávio, sem dizer
palavra. E, ao caminharmos pelas
alamedas largas, depois de o caixão
baixar à sepultura, me ocorreu que,
naquele silêncio que só os amigos
que se desobrigam de conversar conseguem dividir, residia o segredo de
um amor que, talvez não por acaso,
dura mais de 30 anos. E eu dei graças
a Deus por aqueles caras.
Kiko Nogueira é diretor de redação de
ALFA e baixista do grupo Los Paranoias:
[email protected]