Veja por dentro

Transcrição

Veja por dentro
Este livro é para a Julie,
sem a qual nada haveria sobre o que escrever.
Obrigado por me amares.
Índice
Prólogo
9
Aula de Condução em Zona de Guerra
17
Uma Mulher Vestida com o Sol
39
Pequenos Atos de Amor
54
Crianças Pobres Que Sofrem
74
Rumo a África
95
Uma Terra de Fome
113
Uma Tigela de Papa
136
Um Atribulado Caminho para a Paz
158
Na Cidade das Estrelas
179
Chegar aos Párias
201
Amigos no Topo
221
Amigos no Fundo
241
Geração Esperança
264
Epílogo
281
Agradecimentos
286
Prólogo
E
screvo estas palavras no barracão do meu pai. Sopra um vento
de leste vindo de trás da montanha de Ben Lui, cujas encostas
polvilhadas de neve consigo ver através da janela por cima da mi‑
nha secretária. Um pouco do ar frio que rodeia este meu abrigo
de chapa de zinco encontrou forma de entrar. Há uma corrente
de ar a morder­‑me os pés. Ao longe, consigo ouvir alguém a usar
uma serra elétrica, talvez o meu cunhado a cortar lenha, e, de vez
em quando, passa um trator na estrada a caminho da quinta.
Não sabemos ao certo quando o barracão foi construído. Sabe‑
mos apenas que já cá estava muito antes de chegarmos, em 1977.
Está nitidamente assinalado num mapa datado de 1913, que se
encontra pendurado nas velhas paredes de madeira de um cor‑
redor da Craig Lodge (a minha parte favorita da casa quando era
a nossa casa de família), o que significa que existe há mais de
cem anos. É, pois, compreensível que o barracão esteja hoje claramente mais inclinado para um dos lados. E é também talvez com‑
preensível que, neste momento, oiça algo a ranger com o vento
no telhado que está sobre mim.
9
Magnus MacFarlane­‑ Barrow
Depois de aqui termos chegado, o barracão era inicialmente
usado como garagem e oficina do meu pai. Tinha o tamanho ideal
para estacionar o velhinho Land Rover no qual eu iria, um dia,
aprender a conduzir. Mais tarde, o meu pai converteu­‑o numa
sala de jogos, surpreendendo­‑nos num Natal ao abrir a porta para
revelar uma magnífica mesa de bilhar. Eu e os meus irmãos pas‑
sámos horas e horas a desfrutar desse presente. Atrás do barracão,
mesmo do lado de fora da minha janela, estava o nosso campo de
futebol. Seumas, Fergus e eu jogávamos lá durante largas horas
por dia, rematando na direção de balizas de madeira feitas por
nós, com as nossas botas a arrancarem pedaços de relva e a cria‑
rem poças lamacentas. Nos meses de inverno, quando, para nos‑
sa frustração, a escuridão chegava angustiantemente mais cedo,
por vezes acendíamos as luzes do barracão e de todos os edifícios
em volta, na tentativa desesperada de criarmos iluminação sufi‑
ciente para pelo menos mais alguns, escassos, minutos adicio‑
nais de jogo. Mais tarde, nos nossos loucos anos de adolescência,
alguns amigos juntavam­‑se a nós junto à mesa de bilhar. Com
eles, entravam, clandestinamente, algumas cervejas. Certa vez,
quando os meus pais estavam fora, deu­‑se a catastrófica degus‑
tação da amostra experimental da minha sidra caseira. Tinha­‑a
fermentado em segredo, usando maçãs das árvores do peque‑
no pomar, situado onde hoje se encontra a minha própria casa.
Nunca mais, desde então, fui capaz de voltar a beber sidra.
Anos mais tarde, já depois de termos deixado a casa e de a Craig
Lodge se ter tornado num centro de retiro católico, o barracão
transformou­‑se, durante algum tempo, numa pequena «fábrica
de rosários», onde os membros da jovem comunidade residente
faziam fios de oração com diferentes estilos e cores. Depois, em
1992, perguntei ao pai se podia pedir este barracão emprestado,
assim como aquele da porta ao lado, para albergar os donativos das
ajudas que estavam a chegar em resposta ao pequeno apelo que ha‑
víamos feito em nome dos refugiados na Bósnia. Ele, obviamente,
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Refeições de Maria: A Casa que Alimenta Um Milhão de Crianças
disse que sim, sem hesitar. Efetivamente, ele e a mãe eram quem
estava a fazer a maior parte do trabalho de recolha e preparação da
ajuda. Mesmo não sabendo, à época, que não mais iria voltar a ter
para si algum dos barracões, acredito que tivesse concordado mes‑
mo sabendo­‑o, não só por ser o homem mais generoso que alguma
vez conheci, como também porque seria a desculpa perfeita para
construir novos barracões. Felizmente, trata­‑se de algo que o pai
adora fazer. Ele é, de facto, um construtor em série de barracões.
Finalmente, depois de servir durante alguns anos como espa‑
ço de armazenamento para lotes de roupa, comida, produtos de
higiene e equipamentos médicos, o barracão tornou­‑se no nosso
escritório, primeiro apenas para mim, enquanto único funcioná‑
rio da nossa instituição de caridade, antes de receber a companhia
da minha irmã Ruth e, por fim, de uma equipa de cinco pessoas.
Nessa fase, encontrava­‑se tão amontoado que algumas pessoas,
sem secretárias, tinham de trabalhar com os seus computadores
portáteis em cima dos joelhos. Assim, o barracão do meu pai, que
era mesmo ao lado, foi demolido e ele, juntamente com George,
um habilidoso amigo nosso, construiu com as próprias mãos um
fantástico edifício de madeira para funcionar como escritório.
É realmente belo e, ao mesmo tempo, extremamente prático. Mas,
quando chegou a hora de transferirmos as coisas para o novo escri‑
tório, optei por ficar aqui, no velho barracão. Foi uma boa decisão.
Para alguns, pode parecer estranho, talvez até algo estúpido, man‑
ter a sede de uma instituição global neste barracão de aspeto velho
e entortado, localizado numa parte muito remota da Escócia. Mas
estar aqui ajuda­‑me a recordar como e porque começámos este
trabalho. Além disso, conheço algumas pessoas, a viver na pobre‑
za, que ficariam profundamente gratas se tivessem uma casa tão
grande e segura como este barracão para as suas famílias viverem.
De facto, entre a quantidade de fotografias e notas colocadas
na parede junto à minha secretária encontra­‑se a de uma família
que vivia numa casa mais pequena e menos mobilada do que isto.
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Magnus MacFarlane­‑ Barrow
O meu encontro com essa família, em 2002, durante uma terrível
fome no Malawi, dez anos depois de termos levado a cabo aquela
primeira pequena ajuda para a Bósnia, mudou para sempre a mi‑
nha vida — e a de milhares de outras pessoas.
Nessa fotografia, seis crianças estão sentadas ao lado da sua
mãe, que se encontrava à beira da morte. Ela estava deitada num
colchão de palha. Lembro­‑me de que estava um calor desagradá‑
vel dentro da sua casa de tijolos de lama.
A minha camisa estava encharcada e, apesar de me ter aga‑
chado, a cabeça roçava no baixo teto da sua casa. Senti­‑me des‑
confortável, como uma espécie de intruso gigantesco na pequena
casa daquelas pessoas, num dos seus mais íntimos momentos
familiares. Mas elas receberam­‑me de forma calorosa e eu acabei
por me sentar ao seu lado para conversar. Os meus olhos, com
a ajuda da pouca luz que passava por entre uma pequena janela
sem vidro, adaptaram­‑se ao escuro daquele pequeno lugar e con‑
segui ver que Emma, embrulhada num velho cobertor cinzento,
retorcia continuamente as mãos enquanto falava connosco.
«Apenas me resta rezar para que alguém olhe pelos meus fi‑
lhos, quando eu partir», sussurrou antes de, numa forma suave,
começar a contar­‑me as razões do seu tormento.
O seu marido tinha falecido um ano antes, vítima de SIDA,
a mesma doença que agora estava prestes a privá­‑la de uma vida
ao lado dos seus filhos. Todos os adultos que ela conhecia na al‑
deia estavam já a tomar conta de uma criança órfã, além de cuida‑
rem dos próprios filhos. Não sabia quem estaria disposto a tomar
conta dos filhos dela, explicou. A sua dor física era igualmente
excruciante. A vizinha que estava a tratar de Emma, e que foi tra‑
duzindo a nossa conversa, tivera formação em cuidados ao domi‑
cílio e fazia o seu melhor para reduzir ao máximo o sofrimento de
Emma, mas não tinha sequer um analgésico para lhe dar, quan‑
to mais medicamentos para tratamento do VIH/SIDA. Não que
esses medicamentos a fossem ajudar muito, pois para serem
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Refeições de Maria: A Casa que Alimenta Um Milhão de Crianças
eficazes um paciente necessita de ter uma dieta saudável e nutriti‑
va. Emma e os seus filhos há muito que não tinham comida sufi‑
ciente para se alimentarem. A sua cabana era rodeada por campos
ressequidos, nos quais naquele ano o milho não tinha crescido
de forma adequada. A barriga de Chinsinsi, a mais pequena das
crianças, estava visivelmente distendida devido à malnutrição.
Comecei a falar com Edward, a criança mais velha. Ele sentou­
‑se com as costas direitas, como se quisesse mostrar ser mais
alto do que eu. A sua t­‑shirt preta era vários tamanhos acima do
que seria adequado para ele, mas, olhando para os pedaços de
trapos que os irmãos tinham à volta das cinturas, parecia limpo.
Disse­‑me que tinha 14 anos e explicou­‑me que passara a maior
parte da vida a ajudar a mãe, nos campos ou em casa. Talvez eu
estivesse apenas desesperadamente à espera de algo que pudesse
trazer alguma cor àquela nossa conversa tão deprimente, quando
lhe perguntei quais as suas esperanças e ambições. Mas não esta‑
va, garantidamente, à espera de uma resposta que mudasse para
sempre a minha vida e a de milhares de outras pessoas.
«Gostava de ter comida suficiente e de poder, um dia, ir à es‑
cola», respondeu­‑me solenemente, após um momento a pensar.
Quando a nossa conversa terminou e as crianças nos acom‑
panharam à rua, até à abrasadora luz do sol do Malawi, aquelas
palavras tão simples, proferidas por um adolescente que se atre‑
via a sonhar, estavam já gravadas no meu coração. Um grito,
uma indignação, a confirmação de uma ideia a ganhar forma,
uma chamada à ação que não podia ser ignorada; as palavras da‑
quele rapaz tornar­‑se­‑iam em muitas coisas para mim. A horrível
tragédia daquela família, naquela cabana escura, era a síntese de
múltiplos sofrimentos e problemas intratáveis que tinha acompa‑
nhado ao longo da última década. E as suas palavras autenticaram
uma inspiração que recentemente havia sido partilhada comigo;
foram a faísca que acendeu em definitivo a já latente noção do
que viria a ser a Mary’s Meals, as Refeições de Maria.
13
Magnus MacFarlane­‑ Barrow
Na parede do barracão atrás de mim, um poster proclama de
forma audaz a nossa declaração de intenções:
Que todas as crianças recebam uma refeição por dia
no seu local de aprendizagem e que todos aqueles que têm
mais do que precisam partilhem com aqueles a quem fal‑
tam as coisas mais básicas.
A cada semana que passou desde o meu encontro com Ed‑
ward, essa visão tornou­‑se mais clara e a crença de que podia ser
concretizada tornou­‑se maior. Temos visto repetidamente que a
provisão de uma refeição diária na escola pode realmente trans‑
formar as vidas das crianças mais pobres, indo ao encontro da
sua necessidade imediata por comida, permitindo em simultâ‑
neo que adquiram uma educação que lhes possibilite escapar à
pobreza. O número dessas refeições diárias — servidas por vo‑
luntários locais às crianças pobres e esfomeadas nas escolas em
todo o mundo — cresceu de forma extraordinária. Hoje, mais
de um milhão de crianças comem diariamente nas suas escolas
refeições providenciadas pela Refeições de Maria.
Gosto muito deste meu barracão. Ele oferece­‑me o espaço tran‑
quilo por que tantas vezes almejei, ao mesmo tempo que tem a
dimensão ideal para receber quatro ou cinco visitantes que quei‑
ram sentar­‑se à mesa comigo, beber uma chávena de chá e con‑
versar. E a minha permanência neste escritório oferece também
aos meus colegas a distância de que eles, certamente, necessitam
de mim, um homem extremamente desarrumado. Além disso,
é o local óbvio para escrever este livro. A fotografia de Edward e
da sua família é apenas uma das muitas coisas pregadas à parede
para ilustrarem os marcos desta nossa caminhada: um homem
bósnio a brincar com o cão junto à sua casa destruída; crianças
a rirem num empoeirado pátio em África; um homem cego da
Libéria com um pau branco improvisado a fazer de bengala e com
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Refeições de Maria: A Casa que Alimenta Um Milhão de Crianças
um sorriso maravilhoso; outro grupo de crianças em Dalmally
— com os meus filhos entre elas — a pintar o exterior do bar‑
racão; uma ainda jovem Julie a conduzir o nosso camião, pouco
tempo depois de a ter conhecido; uma Julie já de meia­‑idade e eu,
juntos com o papa Francisco; uma fotografia recente de mim e
da estrela de Hollywood Gerard Butler a rirmos, enquanto despe‑
jamos baldes de água sobre as nossas cabeças; uma foto de tipo
passe de Attila, uma das nossas primeiras crianças na Roménia a
falecer; um cartão no qual está escrito Obrigado a partir do Texas,
rodeado por vários doces comentários escritos à mão por alu‑
nos de uma escola desse estado norte­‑americano; um postal de
Međugorje; uma simples cruz de madeira feita na Libéria; e
uma fotografia do padre Tom a fingir dar um murro de boxe em
alguém no Haiti. Em cima da janela, debaixo de um já enferru‑
jado casquilho de lâmpada, está pendurado um crucifixo. Alguns
mapas grandes ornamentam as outras paredes — um do mun‑
do, um da Índia, um do Malawi e um do metropolitano de Nova
Iorque, entre vários outros.
Um monte de cartas e notas ladeiam o meu computador. Há
uma simpática carta do presidente do Malawi (onde fornecemos
agora alimentos a mais de 25% da população das escolas primá‑
rias), a agradecer­‑me pelo nosso recente encontro e pelo nosso
trabalho. Outra das cartas é do Haiti, a pedir­‑nos para avançar‑
mos com as Refeições de Maria em algumas escolas desespera‑
damente necessitadas. E outra, anónima, que me fez chorar da
primeira vez que a li:
Querida Refeições de Maria:
Segue um cheque no valor de 55 dólares para ajudar
a alimentar outras crianças. Vem de um homem que
vive num lar, preso a uma cadeira de rodas, paralisado
do lado direito e incapaz de falar. É suportado financei‑
ramente pela Medicare e pela Medicaid. Os 55 dólares
15
Magnus MacFarlane­‑ Barrow
representam o total das suas poupanças. Tirou­‑os de dois
esconderijos diferentes quando ouviu falar da Refeições de
Maria. Estou certo de que lhes darão bom uso.
Abençoados sejam.
Nunca planeei envolver­‑me neste género de trabalho e, certa‑
mente, nunca pensei em fundar uma instituição. Sou uma impro‑
vável e pouco qualificada pessoa para liderar uma missão como
esta. A verdade é que ela acabou por nascer, a partir de uma série
de acontecimentos e encontros inesperados e de gentis respostas
dos mais diferentes tipos de pessoas, com uma paixão e uma fé
extraordinárias. O encontro com Edward, ainda que crucial para
nos centrarmos no trabalho que agora desenvolvemos, foi ape‑
nas mais um numa corrente de eventos que se estendia já por
20 anos, quando ele me disse aquelas palavras. E essa corrente ti‑
nha começado a formar­‑se quando eu tinha apenas 15 anos, numa
aldeia obscura entre as montanhas da Jugoslávia, onde havia
encontrado outra afetuosa mãe preocupada com os seus filhos.
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Aula
de
Condução
em
Zona
de
Guerra
Sê humilde, pois és feito de terra.
Sê nobre, pois és feito de estrelas.
Provérbio sérvio
S
abíamos que os homens que lançavam a morte desde o topo
das montanhas sobre a cidade passavam geralmente as ma‑
nhãs a dormir para curar as ressacas. Assim, aproveitámos para
nos levantarmos cedo, confiantes de que poderíamos entrar e sair
de Mostar antes de as armas pesadas voltarem a soar na sua im‑
placável missão destruidora de casas, igrejas, mesquitas, veícu‑
los e pessoas. Apertados nos bancos de passageiros ao meu lado,
prontos para a última etapa desta nossa viagem de quatro dias
desde a Escócia, estavam o padre Eddie, um pequeno e roliço pa‑
dre de meia­‑idade, e Julie, uma alta, jovem e bela enfermeira.
Ao longo dos três últimos dias tínhamo­‑nos tornado bons amigos.
Duas noites antes, parados numa estação de serviço na Eslovénia,
conversámos pela noite dentro. O padre Eddie surpreendeu­‑nos
e perturbou­‑nos um pouco ao confidenciar que, antes de deixar a
Escócia, tinha a sensação de que não mais iria voltar a casa, pelo
que tinha dado a maior parte dos seus bens aos seus paroquianos.
Depois, a Julie contou que uns meses antes tinha acordado a meio
da noite com a forte convicção de que Deus lhe estava a pedir para
17
Magnus MacFarlane­‑ Barrow
deixar o seu trabalho e ir ajudar pessoas na Bósnia. A sua história
tocou­‑me, não só pela sua profunda fé como também pelas seme‑
lhanças com a minha própria história. Senti­‑me envergonhado
por, quando ela me ligou a pedir boleia para a Bósnia, não me ter
mostrado muito entusiasmado com a ideia. Mas, então, já estava
muito feliz por ela me ter convencido a mudar de ideias.
Enquanto seguíamos por entre os duros terrenos de pedras
aguçadas e arbustos espinhosos da Bósnia, rezámos juntos um
rosário e conversámos para esconder o nervosismo, ao mesmo
tempo que eu procurava concentrar­‑me na estreita e tortuosa
estrada. Depressa começámos a passar junto aos destroços das
casas das pessoas. Algumas estavam reduzidas a montes de pe‑
dregulhos e as que se mantinham em pé tinham­‑se tornado em
meras carcaças queimadas e marcadas pelas balas. Seguimos
em silêncio. A estrada começou a serpentear colina abaixo e Mos‑
tar surgiu debaixo de nós, estendida ao longo do Neretva, o famoso
rio tantas vezes descrito como a linha divisória entre a cultura do
Leste e a ocidental, agora a linha da frente entre as forças sérvias
e o território croata e muçulmano por onde guiávamos. Eram vi‑
síveis os minaretes das mesquitas, ao fundo, no antigo quarteirão
otomano. Por um breve momento, recordei a minha primeira
visita àquela cidade, muitos anos antes, quando explorámos as
pequenas bancas nas ruas junto ao rio e vimos um jovem mos‑
trar a sua coragem ao saltar da famosa ponte Stari Most para as
verdes águas que corriam por baixo. Na descida rumo à cidade,
fomos mandados parar num ponto de controlo por soldados do
HVO (Conselho de Defesa Croata). Um pequeno homem com
uma metralhadora ao ombro e um cigarro na boca caminhou até
à minha janela aberta e olhou para nós solenemente, com o seu
hálito a brandy a entrar para dentro da nossa cabina. Sem sorrir,
estendeu a mão e demos­‑lhe os nossos passaportes e papéis da al‑
fândega referentes aos equipamentos médicos que transportáva‑
mos na parte de trás do camião. A entrega destes equipamentos
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Refeições de Maria: A Casa que Alimenta Um Milhão de Crianças
era a razão da nossa viagem e, agora, a um quilómetro de distân‑
cia, na encosta da cidade que estava por baixo de nós, conseguía‑
mos ver o hospital­‑geral de Mostar, o nosso destino final. Era fácil
reconhecê­‑lo. Olhámos para aquele edifício alto e moderno, que
se elevava sobre as casas circundantes. Mesmo àquela distância,
conseguíamos perceber que um qualquer projétil lhe tinha aberto
um considerável buraco num dos lados. O soldado acenou­‑nos e
conduzimos cuidadosamente por entre as ruas repletas de metal
retorcido, estilhaços de vidro, montes de borracha, carros quei‑
mados, alcatrão derretido e grafitis cheios de ódio. Chegámos à
área do hospital. No exterior estavam estacionados vários camiões
refrigeradores com os motores a funcionar — morgues impro‑
visadas para uma cidade que há muito tinha ficado sem espaço
para os seus mortos. Por baixo da cobertura do portão de entrada,
três funcionários do hospital, vestidos com batas brancas, deram
pela nossa chegada e acenaram­‑nos. A minha ansiedade dimi‑
nuiu e deixei­‑me invadir por um sentimento de exaltação. Estava
a começar a dar, em silêncio, os parabéns a mim mesmo por um
trabalho bem feito, dando comigo a pensar se a Julie estaria im‑
pressionada, quando de repente percebi, demasiadamente tarde,
que os acenos de boas­‑vindas se estavam a transformar em sinais
urgentes para parar e que os seus sorrisos estavam a diminuir.
O meu coração bateu mais depressa do que nunca quando carre‑
guei no travão e ouvi um som triturador sobre a minha cabeça.
À nossa frente, o nosso comité de boas­‑vindas tinha agora desa‑
tado a rir. Foi aí que percebi o que tinha acontecido: o hospital
deles tinha voltado a ser atingido, mas desta feita por um peque‑
no e maltratado camião vindo da Escócia, cujo motorista amador
tinha avaliado mal a altura da cobertura colocada à entrada e, em
vez de estacionar lá por baixo, tinha ido a direito contra ela! Uma
rápida avaliação mostrou desde logo que eu tinha feito um buraco
no canto superior da cabina do camião, embora os danos causa‑
dos à cobertura do hospital fossem praticamente nulos quando
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Magnus MacFarlane­‑ Barrow
comparados com os impactos de que o resto do edifício tinha vin‑
do a ser alvo. No final, os maiores estragos foram apenas no meu
próprio ego.
Descarregámos rapidamente o equipamento e bebemos uma
horrível chávena de café com dois jovens médicos. Eles sugeri‑
ram que saíssemos da cidade antes que os bombardeamentos co‑
meçassem e que os seguíssemos até um local mais seguro para
conversarmos. Perto de Međugorje, onde tínhamos planeado pas‑
sar a noite, parámos junto a um hotel situado à beira da estrada,
cujas paredes tinham sido atingidas por tiros e granadas.
Enquanto tomávamos mais um café, os médicos explicaram­
‑nos que, em virtude dos extensos danos causados ao seu hospital
pelos projéteis que o tinham atingido, só o piso térreo estava ope‑
racional. O edifício estava completamente sobrelotado e faltavam­
‑lhes os mais básicos artigos médicos. Estavam particularmente
satisfeitos com os fixadores externos que lhes tínhamos levado,
pois tratavam de muitos pacientes com membros esmagados,
e apelaram que lhes levássemos mais equipamentos. Explicá‑
mos que a Julie tinha viajado comigo porque era enfermeira e
estava disposta a deixar o seu emprego na Escócia para trabalhar
ali como voluntária. Eles responderam que tinham enfermeiras
suficientes, mas que o equipamento médico era escasso. Suge‑
riram que a Julie podia juntar­‑se a mim nos meus esforços para
angariar mais equipamentos médicos na Escócia, pois tinham
percebido que, além de não ser particularmente bom a conduzir
camiões, eu também não percebia muito de produtos hospitala‑
res, pelo que talvez fosse boa ideia ter a meu lado alguém que per‑
cebesse, caso pretendesse continuar a ajudá­‑los convenientemen‑
te. Fiquei surpreendido com o quanto me agradou a perspetiva
de a Julie passar a trabalhar comigo, mas limitei­‑me a murmurar
que íamos ponderar essa hipótese. A Julie disse algo parecido e
decidi que talvez fosse melhor não acalentar muitas expetativas.
Das questões médicas, a conversa seguiu, inevitavelmente, para
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Refeições de Maria: A Casa que Alimenta Um Milhão de Crianças
a situação de guerra. Os médicos descreveram como os Chetniks,
nas montanhas, tinham agora como alvo não só o hospital como
também as ambulâncias. Várias já tinham sido destruídas, en‑
quanto tentavam transportar pacientes para o hospital. Por essa
altura os médicos tinham já trocado o café por Slivovitz (um bran‑
de de ameixa local) e começavam a expressar o que sentiam em
relação à guerra. Demonstravam um ódio de morte para com os
seus inimigos, os Chetniks, e a conversa começou a tornar­‑se algo
perturbadora. Os dois médicos, que tinham passado várias horas
a falar connosco sobre o que necessitavam para tratar pessoas
gravemente feridas, começaram a descrever as coisas horríveis
que fariam a qualquer soldado chetnik a que conseguissem dei‑
tar a mão. Agarrámos nas listas de artigos médicos necessários
com maior urgência e partimos, prometendo que voltaríamos com
mais produtos o mais depressa que conseguíssemos.
Esta era a quinta viagem que fazia à Bósnia num curto período
de tempo e em cada uma tivera a companhia de um familiar ou
de um amigo diferente. Cada uma delas resultara numa abrupta
curva de aprendizagem para um piscicultor de 25 anos que nunca
pensara em ser motorista de camião de longo curso. Descobri um
outro mundo, com uma cultura própria, habitado por condutores
de longas distâncias, nem sempre acolhedor ou fácil de entender.
A própria língua era um problema. Havia muitos termos técnicos
para aprender, como «tacómetro» (o aparelho que regista as ho‑
ras que o motorista passa ao volante e a velocidade a que conduz)
ou «agentes de encaminhamento» (responsáveis por prepararem
os documentos de alfândega necessários nos postos fronteiriços).
Tudo isto se tornou ainda mais complicado dada a nossa falta
de conhecimento a nível de outras línguas europeias e o nosso
sotaque escocês. Numa das primeiras viagens, o meu copiloto foi
Robert Cassidy, um bom amigo de Glasgow, cujo sotaque era, con‑
sequentemente, ainda mais acentuado do que o meu, de Argyll.
Conduzíamos um camião de 7,5 toneladas cheio de batatas
21
Magnus MacFarlane­‑ Barrow
escocesas doadas a Zagrebe. Estávamos no meio do inverno e o
frio era de rachar. De noite, dormimos na parte de trás do camião,
entre duas paletes de batatas e, certo dia, quando acordámos jun‑
to à fronteira entre a Áustria e a Eslovénia, percebemos que as
nossas garrafas de água para beber tinham congelado, ao mesmo
tempo que vimos um sinal na estação de serviço a indicar que a
temperatura do ar era de ‑­6 oC. Um dos novos termos técnicos
que estávamos prestes a aprender nesta viagem era plomb. Trata­
‑se de um pequeno selo de chumbo que os oficiais fronteiriços co‑
locam na parte de trás do camião quando se entra num país, para
que, à saída, possam confirmar que o veículo transitou pelo seu
território sem abrir o atrelado e sem descarregar quaisquer bens.
Mas nós desconhecíamos o significado desse termo, quando um
inspetor fronteiriço o balbuciou em forma de pergunta na nossa
direção através do seu vidro. «Plomb?» Ele queria saber se o nosso
camião estava selado. Depois de respondermos várias vezes à sua
questão com um olhar baralhado, Robert, enfim, redarguiu no
seu fantástico sotaque de Glasgow: «Não temos ameixas*, só ba‑
tatas. Muitas batatas.» Desta feita, foi a vez de o agente fronteiriço
fazer o mesmo com um olhar confuso. Ele não sabia sequer em
que língua responder.
Nessa época, algumas das pontes da principal estrada costeira
do Adriático, que nos iriam levar até ao centro da Bósnia, tinham
sido destruídas, pelo que a viagem até lá implicava apanhar um
pequeno ferry para Pag (uma longa e estreita ilha paralela à costa),
conduzir ao longo de toda a sua extensão e apanhar um outro
ferry, a sul, para voltarmos para o continente. Certa ocasião, eu
e o Ken, o meu cunhado e copiloto nessa viagem, colocámo­‑nos
numa fila de centenas de camiões para entrar no pequeno ferry,
numa estrada que, claramente, não tinha sido desenhada para
veículos tão grandes. Ao mesmo tempo, levantou­‑se uma enorme
* Confusão com plum («ameixas», em inglês). [N. do T.]
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Refeições de Maria: A Casa que Alimenta Um Milhão de Crianças
tempestade. Os ferries pararam de fazer a travessia e nós, assim
como todos os outros motoristas, vimo­‑nos presos na cabina
enquanto um vento gelado soprava sobre o camião, fazendo­‑o
abanar tão violentamente que pensei que ia acabar por virar­‑nos.
Não havia forma de fazer inversão de marcha numa estrada tão
estreita, pelo que a única opção era mesmo esperar que a tempes‑
tade passasse. A única comida que tínhamos na cabina do camião
era uma caixa grande de barras de chocolates Twix, a qual pro‑
curámos fazer durar o mais tempo possível durante as 48 horas
seguintes. Um par de vezes, para respondermos às nossas neces‑
sidades fisiológicas, lutámos com a porta para conseguirmos ir
lá fora, acabando irremediavelmente por escorregar na corrente
gelada de urina dos outros camionistas, que descia desde o topo
da colina até ao pequeno cais de embarque no final da estrada.
Tomei nota mentalmente de que, no futuro, deveria passar a levar
comigo mantimentos de emergência mais nutritivos e variados
— ou, pelo menos, uma maior diversidade de barras de chocolate.
Comecei também a aprender, nestas primeiras viagens, que os
donativos de ajuda na parte de trás do nosso camião nem sem‑
pre eram a coisa mais importante que levávamos àquelas pessoas
desesperadamente necessitadas. Eu e o meu pai, certa vez, entre‑
gámos ajuda a uma pequena instituição para crianças com neces‑
sidades especiais, perto de Zadar. Nessa época, as forças sérvias
estavam a atacar aquela parte da costa croata e podíamos ouvir o
som dos projéteis a explodirem ao longe, enquanto nos aproxi‑
mávamos daquele pequeno e velho edifício. Deparámo­‑nos com
filas de crianças em berços, vestidas com pijamas meio rasgados,
e funcionários aterrorizados a tentarem tomar conta delas. Não
só estavam preocupados por já não terem sequer os mais básicos
produtos de que as crianças necessitavam, como também com
o facto de a guerra estar cada vez mais próxima. Sabiam que não
seria possível fugirem rapidamente, de um momento para o ou‑
tro, com aquelas crianças. Enquanto descarregávamos do nosso
23
Magnus MacFarlane­‑ Barrow
camião as caixas de ajuda, o contentamento dos funcionários por
nos verem depressa desapareceu, com uma ogiva a explodir bem
perto da aldeia. E depois outra. Disseram­‑nos para nos despa‑
charmos a descarregar e retomarmos de imediato a estrada, em
direção a norte. Mal entreguei a última caixa que tínhamos no
nosso camião despedi­‑me, saltei para o banco do condutor e pus o
motor a trabalhar. Poucos segundos depois, vi que o meu pai ain‑
da não se tinha sentado ao meu lado. Olhei pelo retrovisor e vi­‑o
a abraçar uma enfermeira visivelmente destroçada, oferecendo­
‑lhe algumas palavras de conforto e prometendo­‑lhe rezar por
aquelas crianças. Só depois entrou para o camião e partimos.
Trinta anos mais tarde, quando ouvi o papa Francisco usar pela
primeira vez o termo «pecado da eficiência», recordei de imedia‑
to este evento. O papa estava a lembrar àqueles que trabalham
com pessoas que vivem na pobreza que a verdadeira caridade
não se cinge apenas a bens materiais, a «projetos» e à sua eficá‑
cia. Passa também por olhar as pessoas nos olhos, passar tempo
com elas e reconhecê­‑las como irmãos e irmãs. Mas ainda hoje
não sei se aquele abraço do meu pai precisava de ter demorado
tanto tempo!
Em cada uma dessas viagens pela Europa, à medida que nos
aproximávamos do nosso destino habitual, Međugorje, víamos
invariavelmente todo o tipo de veículos a dirigirem­‑se para aquele
mundialmente célebre lugar de peregrinação. Pequenas cara‑
vanas de camiões como o nosso, carrinhas de solidariedade ou
carros familiares a puxarem rulotes cheias de roupas, comida
e medicamentos convergiam para aquela diminuta aldeia nas
montanhas da Bósnia. Bandeiras, autocolantes nos carros ou car‑
tazes manuscritos celebravam a sua missão e a sua terra natal,
ao mesmo tempo que davam pistas sobre o seu destino. Embora
adorássemos a oportunidade de voltar a Međugorje, uma vez que
as nossas vidas ali tinham mudado muitos anos antes, começá‑
mos a considerar se devíamos levar a nossa ajuda a outros locais
24
Refeições de Maria: A Casa que Alimenta Um Milhão de Crianças
mais esquecidos, onde estivesse a chegar menos ajuda, mas onde
o número de refugiados em sofrimento fosse ainda maior.
Um desses locais era Zagrebe, a capital da Croácia, aonde che‑
gavam milhares de pessoas desesperadas, vindas de áreas alvo de
«limpezas étnicas» por parte dos sérvios. Nessa época, quase um
terço da recém­‑independente Croácia estava sob controlo sérvio e
a guerra estendia­‑se ao longo de todas as linhas da frente de um
país a lutar desesperadamente pela sua existência. Refugiados
e deslocados, croatas e muçulmanos, oriundos tanto da Croácia
como da Bósnia, dirigiam­‑se em grande número para a cidade de‑
pois de terem perdido as suas casas, as suas posses e, muitas vezes,
as suas famílias. A viver em Zagrebe estava um homem verdadei‑
ramente notável, o Dr. Marijo Živković. Um amigo em comum de
Glasgow tinha sugerido que nos encontrássemos. Explicou­‑me
que Marijo estava a desenvolver um trabalho maravilhoso em prol
dos refugiados e dos pobres e mencionou também que ele era um
reconhecido católico sem papas na língua, que, por essa razão,
havia sido perseguido pelo regime comunista. Arranjámos forma
de nos encontrarmos com ele num escritório de uma organização
muçulmana chamada Merhamet, com que estávamos a trabalhar
na distribuição da ajuda médica. Tínhamos chegado precisamen‑
te nesse dia, com uma máquina de anestesia que tinham pedido
com urgência, e passámos a manhã com um apaixonante jovem
médico e os seus colegas da Merhamet, aprendendo mais sobre
o seu trabalho e a forma como podíamos ajudar melhor. Está‑
vamos algo nervosos em relação ao encontro com o Dr. Marijo
porque, infelizmente, os croatas (na sua maioria católicos) e os
muçulmanos, que até então tinham sido aliados na Bósnia na
luta contra um inimigo comum — os sérvios —, estavam agora
também em guerra uns com os outros e vivia­‑se um ódio cres‑
cente entre as pessoas desses dois povos. Que estupidez e insen‑
satez tinha sido convidar um tão conhecido católico croata para
se encontrar connosco junto dos nossos amigos muçulmanos!
25
Magnus MacFarlane­‑ Barrow
Percebemos que os nossos anfitriões também estavam um pouco
apreensivos e um silêncio desconfortável tinha já tomado con‑
ta da sala quando Marijo finalmente chegou. Alto e de ombros
largos, entrou de rompante segurando um monte de barras de
chocolate geladas.
«Por favor, peguem nalgumas!», sorriu, aproximando­‑se, à
vez, de cada um dos presentes e convidando­‑os a servirem­‑se dos
doces que tinha para oferecer, como se fosse um velho amigo de
todas as pessoas que estavam naquela sala. Por fim, acabámos
por conseguir apertar as mãos e apresentámo­‑nos e, entre muitos
sorrisos, Marijo explicou­‑nos, num muito bom inglês, a história
dos gelados.
«Sabem, uma grande empresa italiana queria doar uma enor‑
me quantidade de gelados — meio milhão de gelados! Contactou
várias instituições de ajuda e todas lhe disseram ser impossível
aceitar, pois era uma ideia louca e ridícula enviar gelados, em
pleno verão, a pessoas que não tinham como guardá­‑los em con‑
geladores. Por fim, alguém acabou por dizer aos italianos que
deviam telefonar­‑me e foi o que fizeram. Eu, claro, disse que sim.
Como poderia dizer que não a todos aqueles gelados, que podiam
fazer tantas pessoas felizes? Então, antes de chegarem telefonei
a muitas pessoas para lhes pedir para estarem prontas a receber
grandes quantidades de gelados e a distribuírem­‑nos por todos os
seus amigos, pessoas com quem se encontrassem e crianças nas
escolas. E tenho a certeza de que são nutritivos», gargalhou, antes
de começar a comer mais um.
«Portanto, hoje, pelos quatro cantos de Zagrebe, as pessoas
estão a comer gelados de graça!», regozijou­‑se, antes de dar uma
palmada nas costas de um dos seus novos amigos muçulmanos,
que por aquela altura também já tinham começado a rir.
Foi a primeira de muitas lições que aprendi com o Dr. Marijo
ao longo dos anos que se seguiram. Ele tinha uma genuína pai‑
xão por dar e receber presentes. Não gostava de usar a palavra
26
Refeições de Maria: A Casa que Alimenta Um Milhão de Crianças
«ajuda». Gostava, antes, de falar em «prendas». E, em vez de
dizer não às prendas que eram oferecidas, encontrava formas
engenhosas de recebê­‑las. Ainda antes de a guerra terminar, ar‑
ranjou mesmo maneira de fazer ainda melhor do que conseguira
no famoso evento da distribuição dos gelados, quando lhe per‑
guntámos se podia aceitar centenas de toneladas de batatas de
agricultores escoceses. Dessa feita resolveu o problema logístico,
que outros consideravam impossível de ultrapassar, simplesmen‑
te descarregando­‑as num enorme monte numa praça pública no
centro da cidade. Dirigiu­‑se, depois, à rádio pública e convidou as
pessoas de Zagrebe a irem até à praça servir­‑se. Os esfomeados
habitantes da capital responderam em massa e em poucas horas
todas as batatas encontraram um bom destino.
Marijo, economista de formação, esteve durante largos anos
envolvido na promoção de ensinamentos católicos sobre questões
familiares, no antigo Estado comunista da Jugoslávia. Começou
a ser convidado para dar palestras em várias partes do mundo e
ele e a sua mulher, Darka, acabaram por ser solicitados pelo papa
para se tornarem membros do Conselho Pontifício para a Família.
As autoridades comunistas perderam a paciência e tiraram­‑lhe o
passaporte, para o impedir de viajar. Sem desencorajar, começou
a organizar conferências internacionais em Zagrebe, convidando
pessoas de vários países até que, finalmente, o passaporte acabou
por lhe ser devolvido. Entretanto, ele e a sua família fundaram
uma organização chamada Family Centre, com o objetivo de ofe‑
recer ajuda prática a mulheres grávidas a viver na pobreza — rou‑
pas para bebés, comida, carrinhos de bebé, fraldas e outras coisas
do género. A desesperante necessidade por todos os bens básicos
essenciais — e não apenas por aqueles destinados a bebés — foi­‑se
tornando enorme entre os refugiados que chegavam e entre a
população em geral, pelo que a Family Centre passou a dedicar
atenções à recolha e distribuição de bens a todos os necessita‑
dos. Depois de constatarmos que a Family Centre procurava aju‑
27
Magnus MacFarlane­‑ Barrow
dar todos, independentemente da sua etnia ou religião (de facto,
a maior parte da ajuda era mesmo dada a muçulmanos), come‑
çámos a distribuir cargas de camião com ofertas vindas da Escó‑
cia para um velho armazém de Marijo. A cada visita ficávamos a
conhecê­‑lo melhor, à sua esposa, Darka, e aos seus filhos. Muitas
vezes chegávamos mesmo a passar a noite com eles, antes de
iniciarmos a viagem de regresso. Homem com um intelecto for‑
midável e fantástico orador, Marijo brindava­‑nos frequentemente
com as suas palavras de sabedoria e filosofia. Não tinha proble‑
mas em falar dos seus vários feitos impressionantes, mas acabava
sempre por fazer questão de salientar: «O maior feito da minha
vida é ter casado com Darka… O segundo são os meus cinco fi‑
lhos… e o meu único lamento é não termos tido mais…» Falava
acerca da família — a sua beleza e a sua importância — de forma
profunda e sincera.
Grande parte da ajuda que distribuímos com Marijo foi entre‑
gue em campos de refugiados improvisados, repletos de mulhe‑
res e crianças. Numa fila de cabanas de madeira sobrepovoadas,
originalmente construídas como alojamento para trabalhadores
migrantes, vivia um grupo de mulheres e crianças vindas da cida‑
de de Kozarac, no Norte da Bósnia. Apesar do trauma vivido, ou
talvez por causa dele, algumas delas queriam falar sobre os hor‑
rores por que tinham passado. Antes da guerra, a grande maio‑
ria da sua cidade era muçulmana. Mas desde há algum tempo
a área tinha passado a ser controlada pelos sérvios e os habitantes
de Kozarac tinham sido dos primeiros a experienciar a horrível
«limpeza étnica». As mulheres contaram­‑nos como tinham fugi‑
do para a floresta quando os sérvios começaram a bombardear a
sua cidade, e como, quando os últimos combatentes muçulmanos
que resistiam se renderam, ouviram os sérvios comunicar, através
de megafones, que caso aqueles que se encontravam nas árvores
também se rendessem e se entregassem, nada de mal lhes acon‑
teceria. Muitos, acenando com bandeiras brancas improvisadas,
28
Refeições de Maria: A Casa que Alimenta Um Milhão de Crianças
saíram dos bosques e entregaram­‑se mesmo. Foram de imediato
bombardeados, com centenas a morrerem e a ficarem mutilados.
Quando os bombardeamentos pararam, os soldados sérvios ali‑
nharam os sobreviventes e separaram os homens com idade para
combater. Aqueles que identificaram como líderes ou altos mem‑
bros da sua comunidade foram, ali mesmo, junto à estrada, mortos
com tiros ou com a garganta cortada. Algumas das mulheres que
nos contavam estas histórias tinham visto isso acontecer aos seus
próprios maridos, filhos e pais. Os restantes homens foram levados
para campos de concentração acabados de criar. Amontoadas nas
suas sobrelotadas cabanas, as mulheres contavam­‑nos aquelas his‑
tórias na crença de que ninguém de fora sabia ou compreendia o
que ali se estava a passar. Insistiam em partilhar connosco alguma
da comida que lhes levávamos e perguntavam se fazia mal guarda‑
rem um pouco do que lhes oferecíamos para o transportarem até
outros refugiados, que sabiam que ainda se encontravam escon‑
didos no Norte da Bósnia e que estavam ainda mais esfomeados.
Saía sempre desses encontros com um misto de sentimen‑
tos. Cada uma destas histórias de terror fazia­‑me sentir revoltado
e indignado com aqueles «bárbaros chetniks». Tinha dificuldade
em manter­‑me imparcial nesta guerra, apesar de não ser parte
envolvida, ou em lembrar­‑me de que só estava a ouvir um dos
lados daquela tragédia. Muitas vezes, também, ficava tão tocado
com a bondade e a força de espírito de quem me contava as suas
histórias que chegava a questionar o ato de perdoar como nunca
antes na minha vida. Se eu próprio estava a começar a sentir em
mim raiva e preconceito para com os sérvios que cometiam aque‑
les crimes terríveis, como poderia, enquanto cristão, esperar que
os que tinham efetivamente sofrido tais atrocidades perdoassem?
Como poderia isso ser possível? Como poderia alguma vez voltar
a nascer ali uma paz verdadeira?
Por vezes, guiávamos pela zona leste de Zagrebe, seguindo
por estradas não assinaladas (as antigas autoestradas tinham sido
29
Magnus MacFarlane­‑ Barrow
bombardeadas) até à cidade de Slavonski Brod. Ficava situada nas
margens do rio Sava, que separa a Croácia da Bósnia e que estava
a ser alvo de bombardeamentos e ataques por parte de atiradores
furtivos a partir do outro lado das águas. As pontes encontravam­
‑se destruídas a meio e todos os edifícios próximos das margens
tinham tábuas de madeira a cobrir janelas e portas. Depois de,
com todas as cautelas, descarregarmos a comida e de a dar‑
mos a uma longa fileira de pessoas que tinham sido convidadas
a formar uma fila atrás do nosso camião com um saco de plástico
vazio cada uma (prática imposta por elas próprias, de forma a ra‑
cionarem cada parte), ofereceram­‑nos alojamento numa pequena
casa numa colina sobre a cidade, então ocupada por um casal
idoso refugiado do Norte da Bósnia. O jantar foi engolido num
silêncio constrangedor, uma vez que todas as tentativas iniciais
de estabelecer qualquer tipo de comunicação tinham falhado
(o inglês deles era pior do que o nosso servo­‑croata). Mas, depois,
eu e o nosso anfitrião, Mladen, sentámo­‑nos no exterior a beber
Slivovitz, e após alguns copos conseguimos, de alguma forma,
entender­‑nos um pouco melhor. Ele explicou­‑me que a sua ver‑
dadeira casa ficava na planície que conseguíamos ver ao longe,
do outro lado do rio. Estaria ocupada por sérvios. Ele tinha um
pequeno pedaço de terra e algumas ameixoeiras; efetivamente,
o Slivovitz que estávamos a beber tinha mesmo sido feito a partir
dos frutos dessas árvores. Quando tiveram de partir, depois de pe‑
garem em todos os pertences que conseguiam carregar (incluin‑
do aquele Slivovitz), ele agarrou num machado e cortou as suas
preciosas ameixoeiras. Os sérvios podiam estar a viver, agora, na
sua casa, mas não iriam desfrutar das suas ameixas. Riu bem alto
ao tentar convencer­‑me, e talvez também a ele próprio, de que se
tratava de uma história engraçada e não de uma narrativa repleta
de ódio.
Comecei a deixar de gostar do termo «refugiados» ou «pessoas
deslocadas». São, claro, formas simples, necessárias e úteis para
30
Refeições de Maria: A Casa que Alimenta Um Milhão de Crianças
descrever com exatidão as pessoas que tiveram de deixar as suas
casas. Mas esses termos, a partir do momento em que comecei a
conhecer as pessoas assim categorizadas, passaram a representar
para mim estereótipos pouco precisos. Noutro campo em Zagre‑
be, durante uma conversa com um simpático homem de meia­
‑idade, fiquei a saber que ele tinha sido diretor de uma empresa
de transportes com uma enorme frota de camiões. O facto de,
naquele momento em particular, ser eu quem estava a conduzir
um camião e a prestar­‑lhe auxílio, apesar de ter uma formação
inferior à dele, menos experiência de vida e muito menos conhe‑
cimentos no que toca ao transporte de bens em camiões, não me
fazia, de todo, pensar que era de alguma forma superior a ele.
Mas, embora tivesse dificuldades em admiti­‑lo, tinha­‑me come‑
çado a sentir assim: eu era o doador, este estranho o destinatário.
Eu com o poder, ele sem nenhum. Comecei a perceber que este
tipo de trabalho era, de facto, perigoso.
Entretanto, Marijo tinha encontrado uma nova maneira de
distribuir as nossas ofertas de roupa para aqueles com maiores
carências. Percebera que muitos tinham na própria necessidade
desesperada de ajuda a sua maior forma de sofrimento. Assim,
para respeitar a dignidade dessas pessoas, Marijo arranjava um
espaço amplo e deixava as roupas em longas filas de mesas.
Depois anunciava­‑o e convidava as pessoas a escolherem o que
desejassem, «para poderem dar a alguém que soubessem que es‑
tivesse a precisar». Desta forma, descobriu uma maneira de as
pessoas irem recolher as roupas de que necessitavam e gostavam
sem o sentimento da humilhação pública.
Assim continuou, carga após carga, sempre com um maior
volume de donativos vindos da Escócia. Julie, para minha feli‑
cidade, tinha mesmo decidido continuar a ajudar e era agora a
minha parceira na maioria das viagens. À medida que o volume
de apoio aumentou, tornou­‑se evidente para nós que um camião
tão pequeno não era, a nível de custos, a forma mais eficaz de
31
Magnus MacFarlane­‑ Barrow
transportar largas quantidades de bens para tão longas distâncias.
Precisávamos de algo maior. Para poder conduzir os camiões
maiores tivemos de tirar a carta de veículos pesados de transporte
de bens, pelo que, durante o mês de novembro de 1993, ficámos
em Inverness com a família da Julie (que sempre tinha sido das
maiores apoiantes do nosso trabalho, mesmo antes de a ter co‑
nhecido) e começámos a ter as lições de condução necessárias.
Para meu desconforto, após um par de aulas em conjunto, ficou
bem evidente que a Julie era muito melhor do que eu na condução
de um camião articulado. Depois da primeira «lição» com Julie ao
volante, o instrutor disse­‑lhe mesmo, num tom incrédulo: «Está
a brincar comigo, não está? Não é uma principiante, já conduziu
coisas destas antes, não foi?» O meu coração contraiu um pouco
e subi para o lugar de condutor para tomar a minha vez.
«Você talvez precise de um pouco mais de trabalho», disse­‑me,
com algum tato, o instrutor, depois de ter sido eu a conduzir, «so‑
bretudo nas rotundas.»
Foi simpático da parte dele, tendo em conta as manobras drás‑
ticas que pelo menos um condutor teve de fazer para evitar ser
esmagado pelo meu atrelado. Nunca antes tinha pensado em
tudo o que é preciso considerar quando se conduz um veículo de
16 metros que dobra quando damos curvas. Aquelas palavras, em‑
bora simpáticas, provocaram­‑me um pequeno nó no estômago
que, ao longo das duas semanas que se seguiram, se tornou numa
espécie de pânico. E não era medo de esmagar alguém numa ro‑
tunda ou de demolir uma estação de serviço com uma desajei‑
tada guinada do atrelado que me causava ansiedade. Era, sim,
a perspetiva de ter de confessar aos meus amigos em Dalmally
que a Julie tinha passado no exame e eu não. Isso oferecer­‑lhes­‑ia
um enorme arsenal de piadas à minha custa durante anos.
E assim acabou por acontecer, pois a Julie passou mesmo no
exame com distinção e eu reprovei (sim, o meu atrelado desviou­‑se
para outra faixa enquanto fazia uma rotunda). A desculpa de que
32
Refeições de Maria: A Casa que Alimenta Um Milhão de Crianças
estava em desvantagem, pois tinha feito o meu primeiro exame
de condução num velho Land Rover, na nossa pacata aldeia de
Inveraray — onde não há rotundas —, de nada serviu. Para meu
grande alívio, acabei por passar à segunda tentativa e logo com‑
prámos um enorme camião articulado de 44 toneladas. A Julie
tinha o hábito de batizar todos os camiões e, por alguma razão,
que nunca compreendi, resolveu chamar àquele Mary, o mais
improvável nome que eu poderia imaginar para um gigante da‑
queles. Ficámos encantados por perceber a quantidade de ajuda
que poderíamos transportar dentro daquele camião, sobretudo
porque, de repente, estávamos a ser alvo de um volume de dona‑
tivos sem precedentes por parte das pessoas.
Durante vários meses acompanhámos de perto o perturbador
desenrolar dos acontecimentos em Srebrenica, outra cidade mu‑
çulmana numa região da Bósnia controlada pelos sérvios, que se
encontrava agora cercada por forças inimigas e sobrepovoada. Tal
como tantas outras cidades em situação similar, tinha sido decla‑
rada como um «porto seguro» pela ONU, que prometeu garantir
a segurança de todos os que lá procurassem refúgio. Em julho
de 1995, mais de 30 mil muçulmanos amontoavam­‑se naquela
que fora, em tempos, uma pequena cidade situada num vale. To‑
dos os edifícios estavam repletos de pessoas e milhares dormiam
nas ruas. À medida que os meses passavam, muitas começaram
a morrer de fome, enquanto outras eram mortas pelos bombar‑
deamentos vindos das montanhas que ficavam por cima da cida‑
de. Finalmente, connosco e muitas outras pessoas a assistirem,
perplexas, àquele horror, os soldados sérvios invadiram a cidade.
Os 400 militares holandeses da ONU renderam­‑se sem disparar
um único tiro. Os sérvios levaram, depois, os homens muçulma‑
nos em idade de combater até uma fábrica abandonada e mata‑
ram mais de oito mil em dois dias. A maior parte das mulheres
(depois de muitas terem sido violadas) e crianças foram soltas e fu‑
giram para as florestas. Grande parte rumou a Tuzla, a cidade mais
33
Magnus MacFarlane­‑ Barrow
próxima, onde foi erigido um campo de tendas improvisado, num
velho aeródromo. Tudo isso aconteceu perante os olhos do mundo
inteiro. Nós continuámos a acompanhar os relatórios regulares.
A juntar à raiva que nutria contra os sérvios, começava agora a
sentir também raiva para com a ONU e para com o nosso próprio
governo, que tinham deixado acontecer todas aquelas atrocidades
pré­‑planeadas num lugar que tinham tido a audácia de apelidar
de «porto seguro». Senti vergonha.
Imediatamente após este evento, os donativos começaram a
aparecer em ainda maior quantidade, tanto por parte do público
anónimo, revoltado, como por parte de empresas de alimenta‑
ção, que ofereciam paletes de farinha, açúcar, comida enlatada
e muito mais. Então, com um carregamento enorme e precioso,
partimos no nosso novo camião articulado para levar ajuda àque‑
las mulheres e crianças recém­‑chegadas a Tuzla — tarefa nada
fácil, uma vez que o único caminho para a cidade nos obrigava
a passar pelo centro da Bósnia, onde a guerra continuava bem
latente. Sabíamos que o nosso grande camião não tinha sido de‑
senhado para as estradas de montanha que iríamos atravessar e
concordámos em colaborar com outra instituição de caridade do
Reino Unido, a qual estava a usar camiões mais pequenos para
distribuir ajuda dentro da Bósnia.
Encontrámo­‑nos na cidade croata de Split e, num complexo in‑
dustrial, dividimos a nossa carga pelos cinco camiões deles, sob um
sol abrasador. Depois de um imperativo mergulho no Adriático,
Julie e eu arrancámos num dos pequenos camiões juntamente
com os nossos novos colegas. Ao segundo dia de viagem trocámos
o alcatrão pelas mais seguras estradas de terra, na floresta.
Faziam­‑me lembrar as estradas da Escócia onde tinha apren‑
dido a conduzir, quando adolescente. E a paisagem circundante
também me parecia familiar, embora as montanhas fossem um
pouco mais altas do que as de Argyll. Porém, depressa percebi
que estes camiões, ao contrário dos Land Rover e das pick­‑ups
34
Refeições de Maria: A Casa que Alimenta Um Milhão de Crianças
a que estava habituado, não tinham tração às quatro rodas e
não haviam sido, claramente, desenhados para aquele terreno.
As estradas foram­‑se tornando mais duras e íngremes. As rodas
derrapavam e comecei a ficar preocupado. A minha principal
preocupação não era apenas causada pela instabilidade dos veí‑
culos em que nos encontrávamos, como também por perceber
que entre a equipa que agora integrávamos havia quem parecesse
mais interessado na procura da emoção e da adrenalina do que na
entrega segura da ajuda que transportávamos. Um pouco a nor‑
te da cidade de Mostar, vimos e ouvimos projéteis a explodirem
a curta distância. Fiquei aterrorizado ao escutar um dos colegas
que seguia connosco sugerir que tomássemos a estrada que fica‑
va mais perto de onde o fumo das explosões ainda se fazia sentir,
«para percebermos o que se estava a passar». Parecia­‑me que o que
alguns deles queriam era brincar aos soldados. Quando parámos
numa base da ONU para recebermos conselhos sobre quais as
estradas mais seguras por onde seguir, alguns dos nossos colegas
de viagem persuadiram mesmo os soldados a emprestarem­‑lhes
uma metralhadora, para tirarem umas fotografias com elas.
Comecei a perceber, pela primeira vez, por que razão as insti‑
tuições de auxílio de maiores dimensões viam as ações de algu‑
mas instituições de caridade mais pequenas como amadoras e
perigosas. Enquanto nos instalávamos para passar a noite, ao lado
da nossa fila de camiões estacionados, eu e a Julie conversámos
acerca da nossa apreensão em trabalhar com aquelas pessoas,
mas concluímos que, tendo chegado até ali, uma região do centro
da Bósnia que não conhecíamos, não tínhamos outra opção a não
ser seguir com eles até Tuzla. E, além disso, era necessário con‑
firmar aos dadores que tínhamos visto as suas ofertas chegarem
em segurança ao destino. De mau humor, meti­‑me no saco­‑cama.
Os nossos parceiros não tinham sequer trazido mantimentos sufi‑
cientes para comermos e deitar­‑me com fome sempre contribuiu
para a minha autocomiseração. Durante a noite, acordámos com
35
Magnus MacFarlane­‑ Barrow
uma matilha de cães abandonados junto a nós. Foi uma sensação
estranhíssima. Eles passaram por cima dos nossos sacos­‑cama,
aparentemente sem darem por nós, e desapareceram no escuro.
Questionei­‑me sobre o que teria acontecido aos seus donos e do
que estariam eles a fugir.
No dia seguinte as estradas tornaram­‑se ainda piores. Os ca‑
miões maiores tinham agora de rebocar outros nas colinas mais
inclinadas e a progressão tornou­‑se angustiantemente lenta. Para
nossa própria segurança, precisávamos de chegar a Tuzla antes
do cair da noite, mas tal parecia ser cada vez mais improvável.
À medida que a tarde foi avançando, o número de paragens para
reparar furos aumentou e temi que alguns dos camiões se ava‑
riassem sem reparação possível. Quando começou a escurecer,
a densa floresta que ladeava a estrada tornou­‑se sinistra. Tudo
parecia estar a correr mal, até que uma caravana de enormes ca‑
miões noruegueses «todo­‑o­‑terreno» surgiu atrás de nós. Os seus
simpáticos motoristas — civis a colaborarem com as tropas da
ONU — perceberam a nossa situação e perguntaram se podiam
ajudar. Tiveram mesmo a gentileza de não rirem de nós e de se
oferecerem para nos levar até à base deles em Tuzla, rebocando­
‑nos sempre que necessário. Com o inesperado auxílio daqueles
«anjos da guarda», começámos a avançar mais rapidamente.
Chegámos, enfim, à base da ONU às 3 da manhã e aí, exaustos,
caímos num sono profundo — mas não antes de a Julie me confi‑
denciar, entusiasmada, que havia tido oportunidade de conduzir
um daqueles enormes veículos «todo­‑o­‑terreno» na última etapa
da nossa viagem, já de noite. Disse­‑mo como se tivesse acabado
de concretizar o sonho de uma vida. Comecei a pensar que talvez
ela fosse um pouco estranha.
Na manhã seguinte guiámos até dentro da cidade de Tuzla,
onde nos encontrámos com um grato, mas muito cansado,
presidente da câmara. Descarregámos a nossa preciosa carga
— milhares de caixas de alimentos secos, sabão, fraldas — para
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Refeições de Maria: A Casa que Alimenta Um Milhão de Crianças
um pequeno armazém improvisado, de onde iria ser transporta‑
da em quantidades controladas até aos refugiados num aeródro‑
mo ali perto. Mais tarde fomos também até ao enorme campo
de refugiados, que albergava 30 mil pessoas. Seguimos por um
caminho entre as tendas. Uma rapariga tentava lavar o cabelo
num balde e, perto, uma senhora mais idosa com um lenço na
cabeça esforçava­‑se para acender uma fogueira com um pequeno
monte de cartão. Numa tenda, alguns médicos examinavam
crianças severamente malnutridas, com rostos extremamente
magros. Lembrei­‑me de que tinham passado apenas dez dias des‑
de a queda de Srebrenica. Dez dias desde que aquelas mulheres
e crianças, sentadas junto às suas tendas, definhadas e queima‑
das pelo sol, tinham assistido ao assassinato a sangue­‑frio dos
seus maridos, filhos e pais — entre muitos outros horrores. Dez
dias durante os quais, aterrorizadas, tinham vagueado pelas flo‑
restas. No caminho, pelo menos uma delas, Ferida Osmanovic,
de 20 anos, tinha­‑se enforcado numa árvore com um lenço.
E, tendo elas passado por tudo isso, eu andava a lamentar­‑me da
minha falta de horas de sono e de boa comida!
Enquanto os nossos recentes companheiros de jornada resol‑
viam fazer a viagem de regresso para Split pelas mesmas estradas
por onde tínhamos passado, eu e a Julie decidimos arriscar num
voo de um helicóptero militar de que os noruegueses nos tinham
falado. Disseram­‑nos para irmos até um local de aterragem que
ficava ali perto e esperarmos. No primeiro dia o helicóptero aca‑
bou por não aparecer. Os soldados que estavam à espera connos‑
co disseram que era porque não tinham arranjado pilotos sóbrios.
Pensei que estavam a brincar. Mas, no dia seguinte, quando fi‑
nalmente um enorme helicóptero aterrou junto a nós, os mem‑
bros ucranianos da tripulação que de lá saíram para descarregar
o carregamento estavam, de facto, claramente embriagados.
Os nossos amigos noruegueses tinham­‑nos dito que ninguém
podia andar naqueles helicópteros sem um colete de proteção
37
Magnus MacFarlane­‑ Barrow
militar, algo que não tínhamos. Explicámos a situação a um ins‑
trutor da ONU que também aguardava boleia para Split e ele,
gentilmente, emprestou­‑nos uns coletes azuis que disse terem as
mesmas cor e forma dos coletes de proteção tradicionais.
«Vistam­‑nos quando estiverem a embarcar e a tripulação nem
vai reparar», aconselhou­‑nos.
Tinha razão. Subimos para o helicóptero, a tripulação olhou
para nós com um sorriso ébrio e percebi que, provavelmente, até
podíamos não ter vestido nada que eles não ligariam. Descolá‑
mos, balançámos um pouco enquanto os pilotos empregavam
um «voo tático», que significava voar consideravelmente baixo,
rasar as colinas e deambular de um lado para o outro do vale.
Era, talvez, algo necessário para reduzir o risco de sermos abati‑
dos, mas questionei­‑me quanta daquela oscilação não se estaria
a dever à embriaguez de quem nos conduzia. Fosse qual fosse
a razão, desejei ter voltado pelas estradas da floresta. Mas aca‑
bámos por chegar em segurança a Split e encontrámos o nosso
grande camião, Mary, fielmente à nossa espera para nos levar até
casa. Tê­‑lo­‑íamos abraçado se os nossos braços fossem suficien‑
temente grandes.
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