o “conceito odioso” de “ordem pública” para a efetivação do
Transcrição
o “conceito odioso” de “ordem pública” para a efetivação do
O “CONCEITO ODIOSO” DE “ORDEM PÚBLICA” PARA A EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À SEGURANÇA: UMA ANÁLISE COMPARADA NO CONSTITUCIONALISMO LUSO-BRASILEIRO. RONNY CARVALHO DA SILVA FEATI – Faculdade de Educação, Ciência e Tecnologia de Ibaiti/PR 1. Introdução: Na busca pela efetividade do preceito jusfundamental que assegura a todos o direito à segurança (artigo 5º da CR/88), prevê a Constituição uma outra face desse direito, que é a face objetiva do direito à segurança, assim entendida como o exercício daquilo que se convencionou chamar por “segurança pública” (öffentliche Sicherheit). A “segurança pública”, no modelo constitucional vigente, diz respeito à forma bem como aos aspectos relativos à maneira com que o Estado efetivamente atuará no sentido de se alcançar a segurança dos cidadãos. Com efeito, a CR/88, em seu artigo artigo 144, assim enuncia: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos”. Percebe-se, facilmente, que, no caso brasileiro, a noção de “segurança pública” é moldada em um sentido funcional, porque é designativa daquela atividade a ser realizada essencialmente pelas polícias, de diferentes formas, em diferentes contextos e atribuições. Pode-se afirmar que o sentido funcional da segurança comporta, portanto, a ideia de um serviço público desenvolvido com a finalidade da preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e bens (CERQUEIRA, 1998). Trata-se de um serviço uti universi, primário e essencial (SANTIN, 2004. AMARAL, 2003). Diferente do que ocorre em Portugal, cujo texto constitucional atribui as “funções” diretamente se referindo a um único órgão que é a “polícia”, no Brasil, as funções são dirigidas ao “exercício da segurança pública”. Através de tal “exercício da segurança pública” – designativo de uma parcela da Administração Pública – é que as polícias – estas incumbidas do dever de prover, por parte do Estado, a segurança pública – deverão buscar a “preservação da ordem pública” e a “preservação da incolumidade das pessoas e do patrimônio”, sendo estas as únicas funções constitucionalmente previstas da segurança pública, logo, via de consequência, são as duas únicas tarefas dos organismos de segurança pública, notadamente das polícias. Restringiremos a abordagem do presente artigo ao conceito de “ordem pública”, pelo fato de que ele, a partir de nossa visão, configura-se como verdadeiro entrave para a efetivação de direitos fundamentais, visto que, como se verá, tal noção mantém-se atrelada à uma visão arcaica oriunda dos períodos autoritários e ditatoriais do Brasil, usado como “subterfúgio” na implementação de políticas de segurança pública equivocadas. Buscando uma análise comparada no constitucionalismo lusitano, percebe-se que o conceito de “ordem pública” já foi, de longa data, superado, não servindo como paradigma, ao nível constitucional, visto que outros conceitos surgem em sua substituição, os quais guardam mais intimidade com o modelo de Estado Constitucional e Democrático que se diz “amigo” dos direitos fundamentais. 2. O conceito obsoleto de “ordem pública”. A noção de ordem pública vigente no Brasil é aquela elementar, a qual recorrentemente se faz alusão como uma das finalidades da polícia, verificando-se facilmente que o constituinte brasileiro não rompe com um modelo tradicional de “entender” as funções policiais, não rompendo com fórmulas carregadas de autoritarismo oriundo do período ditatorial brasileiro. Neste sentido tradicional, a ordem pública significa, para alguns autores, um estado de completa normalidade onde o cumprimento da lei e das disposições emanadas das autoridades são integralmente acatadas, sem constrangimentos, pela população (PIERRO JUNIOR, 2008). De uma maneira genérica, seria a ausência de perturbações nas relações sociais (PIERO, 2004) e de “pacífica convivência social” (SILVA, 2007, p. 756). Outros a tratam como um elemento aglutinador de valores metajurídicos não positivados, ou seja, valores “morais, éticos, sociais, estéticos”, considerados de importância para determinada coletividade, mas não detentoras de status jurídico (SOUSA, 2002). Aqueles que defendem uma noção assim, têm em primeira dimensão a defesa de “valores”, ou seja, de regras comportamentais não escritas, mas salutares ao bom convívio social. Tal perspectiva não traz à frente a proteção das normas jurídicas (CASTRO, 2003). O conceito que nos parece, foi acolhido no direito pátrio, é de ordem pública na perspectiva de HAURIOU (1919), consistente em uma situação oposta à desordem, paz em oposição à perturbação (CASTRO, 2003. LAZZARINI, 2000). Tais conotações, não encontram amparo em um “Estado amigo dos direitos fundamentais”, porque, embora cotidianamente não se verifique uma situação de desordem, a qual, parece, aproxima-se mais de uma situação extremada de quase anarquia, por outro lado é perceptível no dia a dia inúmeras situações de flagrante desrespeito aos direitos fundamentais individuais. Pelo que se pode depreender a partir de uma análise conceitual e comparada, a noção de “ordem pública” é obsoleta não oferecendo suporte doutrinário capaz de subsidiar a aplicação de modernas teorias dos direitos fundamentais, notadamente após o reconhecimento de sua subjetividade. Realmente a afirmação de que se trata de uma “expressão odiosa” (FERNÁNDEZ-VALMAYOR, 1990, p. 21) pode ser feita a partir de algumas constatações. Primeiramente a noção de “ordem pública” mostra-se demasiado ampla, vaga, imprecisa, soma-se a isto sua indeterminabilidade quanto a seu conteúdo, sempre tendencioso a se referir a valores metajurídicos, fora do contexto das leis. Tais fatores acabam sempre por dar margem a violações de toda a ordem. Com efeito, não é preciso ir muito longe para se comprovar tal assertiva. No Brasil, por exemplo, sob o pretexto da manutenção da ordem pública, ações governamentais foram praticadas à revelia da legalidade pelo governo no período em que o país encontrava-se sob a égide de um governo militar que se instalou no país em uma ditadura no período de 1964 a 1985. Em Portugal, igualmente, o regime salazarista subverteu o conceito de “ordem pública” funcionalizando-o como fim em si mesmo, da mesma forma que outros governos autoritários, como o franquismo em Espanha. Aliás, assim como Portugal, a Constituição da Espanha também abandona o conceito de “ordem pública” como uma das funções de polícia, prestigiando a ideia de que sua utilização não mais guarda correlação com o modelo de Estado Constitucional e Democrático (cfr. BARCELONA LLOP, 1991. IZU BELLOSO, 1988). Em segundo lugar porque, justamente em razão de sua “demasiada abertura”, a ordem pública quase sempre, e sem critério algum, é apontada como justificativa de restrições aos direitos fundamentais, sempre com vistas apenas ao “supostos interesses coletivos”, convertendo-se em sinônimo de “defesa do Estado”, o que se dá, na maioria das vezes, de maneira coativa e autoritária, além de antidemocrática, sob o pretexto da defesa de um pseudo “interesse público”, conceito este empregado sem qualquer reflexão, não guardando nenhum sentido concreto e prático na atuação das polícias. 3. O modelo lusitano de entender as funções policiais: Inegavelmente se pode verificar que o direito à segurança no constitucionalismo lusitano é “tomado a sério”, com sentido mais profundo e amplo. Sua proteção vertida objetivamente no artigo 272º, nº 1, da CRP demonstra uma maior sintonia com os ditames de um Estado protetor e amigo dos direitos fundamentais. Primeiramente porque baniu do texto constitucional a noção de “ordem pública”. Ao abolir tal expressão das finalidades dos serviços de “segurança” a CRP não promove apenas, sob a ótica meramente formal, uma “troca de termos a abarcar a mesma realidade” (CASTRO, 2003, p. 292), mas, com efeito, o faz elegendo assim um novo critério constitucionalmente adequado ao atual estágio de desenvolvimento jurídico vivido pelas democracias, atribuindo novo paradigma para a atuação das polícias, qual seja, a proteção da “legalidade democrática”. Em segundo lugar porque no constitucionalismo português, determina-se, ainda, à polícia, como uma de suas funções, a “defesa dos direitos dos cidadãos”. Através deste imperativo categórico uma nova concepção de serviço policial passa a ser formulada. Com efeito, a explicitação de um dever de atuação policial em prol dos direitos fundamentais não deixa margem alguma de dúvida quanto a reconhecer-se um direito subjetivo à intervenção policial, por parte do cidadão, e de que o serviço policial, de agora em diante, está comprometido com o ser historicamente e antropologicamente situado, auxiliando na promoção de sua dignidade humana. 4. Conclusão: O Constituinte brasileiro, ao manter a expressão “ordem pública” como uma das funções da atividade policial, no exercício da segurança pública, anda em sentido oposto àquele almejado pelo processo de renovação promovido pelo momento histórico vivido em 1988. A fim de promover uma nítida mudança de paradigmas, deveria, àquela altura, como no constitucionalismo português, ter substituído a expressão “ordem pública” por outra que melhor representasse a ruptura com os arcaicos modelos não recepcionados pelo novo Estado Constitucional e Democrático que se inaugurou em 1988. Não se pode concordar com a ideia de que a Constituição de 1988, venha a dar prevalência à “ordem pública” como um fim em si mesma, e mantendo-a no programa constitucional, informando toda a atividade policial no Estado brasileiro, dentro da lógica autoritária dos regimes ditatoriais, repetida dia após dia pelas autoridades públicas da área de segurança, sob a alegação formalista de “respeito à constituição”. Ao nosso ver é preciso o romprimento com tais arcaicas teorias que visualizam na atividade policial apenas uma vertente restritiva dos direitos, objetivando-se na sua atuação apenas a salvaguarda de “interesses públicos”, os quais, de fato, “camuflam” apenas os interesses do próprio Estado e de seus agentes, dentro de uma afirmação de força e poder. É preciso que as forças policiais vejam o cidadão e percebam que deve ser ele protegido, em si mesmo, individualmente, em todas as suas necessidades, inclusive e primordialmente em suas necessidades de segurança. Todavia, ao contrário do verificado no constitucionalismo lusitano, a visão do constitucionalismo brasileiro permaneceu – e permanece – atrelada à uma noção reducionista, pela qual o interesse da segurança estará sempre vinculado à uma noção “pública”. Por tal razão insiste-se no uso do adjetivo “público” a fim de acentuar a impossibilidade do uso do aparato estatal de segurança para a defesa de direitos estritamente individuais (CAETANO, 1983). A solução, ao nosso ver, passa por uma “nova formulação material”, principalmente aplicando-se a “teoria das posições jurídicas fundamentais”, conforme assente na doutrina alexyana, compreendendo-se a vertente subjetivista do direito fundamental à segurança, por meio do trabalho densificador da jurisprudência constitucional. Igualmente, relevante papel está reservado, nesta seara, ao legislador que, detendo a representatividade democrática do poder político, poderá densificar coerentemente a esfera objetiva do direito à segurança do artigo 144, funcionalizando-a aos direitos subjetivos individuais, alocando o homem e sua dignidade na posição central da atividade policial. Com efeito, é preciso que seja realizado também um trabalho legislativo ao nível infraconstitucional, visto que a legislação em matéria de polícia, no Brasil, data do período ditatorial, portanto, não se insere no conceito de “legalidade democrática”, permanecendo, até hoje, por meio dela, o ranço de autoritarismo que permeia as instituições policiais no país. Basta um passar de olhos sobre a legislação para se verificar quão dissonante se apresenta com a realidade constitucional inaugurada pelo documento de 1988. Especialmente relevante se mostra o caso das polícias militares, as quais, conforme a expressa previsão constitucional compete o policiamento ostensivo nos espaços públicos para o fim da “preservação da ordem pública”. A lei que “reorganiza” as polícias militares do Brasil (Decreto-Lei nº 667, de 2 de julho de 1969, com alterações introduzidas por último em 1983 e 1984), enumera as funções da polícia militar, sendo elas: a execução do policiamento fardado a fim de assegurar o cumprimento da lei, a manutenção da ordem pública e o exercício dos poderes constituídos; atuação de maneira preventiva, como força de dissuasão, em locais ou áreas específicas, onde se presuma ser possível a perturbação da ordem; atuação de maneira repressiva, em caso de perturbação da ordem, precedendo o eventual emprego das Forças Armadas e, por fim, atender à convocação do Governo Federal em caso de guerra externa ou para prevenir ou reprimir grave perturbação da ordem. Pela simples análise das funções desse organismo policial (Polícia Militar), pode-se verificar quanta ênfase é dada à “ordem pública”. Em nenhum momento foi atribuída expressamente à polícia a defesa dos direitos dos cidadãos e de seus interesses, como ocorre na Lei de Segurança Interna de Portugal (Lei nº 53/2008, de 29 de agosto), cujo artigo 1º, nº 1, define expressamente como uma das funções da polícia “o regular exercício dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos”. É preciso, portanto, que se proceda urgentemente a uma reforma legislativa que corrija as “distorções” apontadas, colocando dentre as funções da polícia a proteção e promoção dos direitos fundamentais individuais. Não obstante, tal trabalho deve, sem dúvidas, ser iniciado pelo próprio texto constitucional, pois seria de grande valia a abolição do odioso conceito da “ordem pública” por meio de uma reforma constitucional, iniciando-se, a partir dele, o processo de transformação das funções policiais, incutindo na vida institucional o entendimento que o serviço policial está, acima de tudo, a serviço da efetivação de direitos fundamentais. BIBLIOGRAFIA: AMARAL, Luiz Otávio de Oliveira, Direito e segurança pública – a juridicidade operacional da polícia, Brasília, Consulex, 2003. BARCELONA LLOP, Javier, «Sobre las funciones y organización de las fuerzas de seguridad: presupuestos constitucionales, problemática jurídica y soluciones normativas», Revista Vasca de Administración Pública, nº 29, Enero-April, 1991. CAETANO, Marcello, Manual de Direito Administrativo, t. II, 9ª ed., Coimbra, Almedina, 1983. CASTRO, Catarina Sarmento e, A questão das polícias municipais, Coimbra, Coimbra Editora, 2003. CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth, «Questões preliminares para a discussão de uma proposta de diretrizes constitucionais sobre a segurança pública», Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 6, n. 22, abril-junho, 1998, pp. 139, 175. FERNÁNDEZ-VALMAYOR, José Luis Carro, «Sobre los conceptos de orden público, seguridad ciudadana y seguridad pública», Revista Vasca de Administracion Pública, nº 27, Mayo-Agosto, 1990. IZU BELLOSO, Miguel José, «Los conceptos de orden público y seguridad ciudadana tras la Constitución de 1978», Revista Española de Derecho Administrativo, nº 58, 1988. LAZZARINI, Álvaro, Temas de direito administrativo, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000. HAURIOU, Maurice, Précis de Droit Administratif et de Droit Public, 9ª ed., Paris, Recueil Sirey, 1919. PIERO, Mônica Maria Costa Di, «Segurança pública», Revista do Ministério Público, nº 19, Rio de Janeiro, 2004. PIERRO JUNIOR, Miguel Thomaz Di, O efetivo exercício da segurança pública, Tese de doutoramento, FDUSP, fevereiro, 2008. SANTIN, Valter Foleto, Controle judicial da segurança pública – eficiência do serviço na prevenção e repressão ao crime, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2004. SILVA, José Afonso da, Curso de direito constitucional positivo, 28ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007. SOUSA, Antonio Francisco de, A polícia como garante da ordem e segurança públicas, Separata da Revista do Ministério Público, nº 90, Lisboa, 2002.