encontros teológicos 64
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encontros teológicos 64
Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC ISSN 1415-4471 http://www.facasc.edu.br http://www.itesc.org.br FUNDAÇÃO DOM JAIME DE BARROS CÂMARA FACULDADE CATÓLICA DE SANTA CATARINA – FACASC INSTITUTO TEOLÓGICO DE SANTA CATARINA – ITESC Corpo Diretivo Diretor Geral da FACASC e do ITESC: Pe. Dr. Vitor Galdino Feller Diretora Acadêmica da FACASC: Profa. Ana Cristina Barreto Floriani Diretor Administrativo da FACASC: Pe. Dr. Vilmar Adelino Vicente Vice-Diretor do ITESC e Marketing da FACASC: Pe. Dr. Domingos Volney Nandi Coordenador da Graduação em Teologia da FACASC e Secretário do ITESC: Prof. Celso Loraschi Coordenador dos Cursos de Pós-Graduações da FACASC: Pe. Dr. Tarcísio Pedro Vieira Coordenadora dos Cursos de Extensão da FACASC: Silvia Regina Togneri Corpo Técnico Administrativo Assistente Administrativo: Donizeti Mendes Guimarães Bibliotecária: Adriana de Mello Tomaz Pesquisador Institucional: Raphael Leopoldo Novaresi Recursos Humanos: Aline Maria Pereira Secretária Acadêmica: Crisleine Daiana Radatz Recepcionista: Mariana Fritegoto Guaita Assistente da Biblioteca: Jéssica Bedin Serviços Gerais: Geane Teresa Nascimento [Catalogação na fonte por Daurecy Camilo (Beto)] CRB-14/416 Encontros Teológicos. Revista da Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC e do Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC, n. 64, Florianópolis, 2013. Quadrimestral ISSN 1415-4471 I. Instituto Teológico de Santa Catarina CDU 2 (05) Preço de Assinatura para o ano 2013 Contribuição a partir de R$ 40,00 Forma de Pagamento Cheque em nome do Instituto Teológico de Santa Catarina ou depósito bancário: Banco do Brasil, Agência 3191-7, Conta 09.645-8 Correspondência e Assinatura Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC Caixa Postal 5041 88040-970 Florianópolis, SC Fone/Fax: (0xx48) 3234-0400 Home Page: www.facasc.edu.br / www.itesc.org.br E-mail: [email protected] Revisão: Pe. Ney Brasil Pereira Editoração eletrônica e projeto gráfico da capa: Atta Projeto gráfico: Antônio Frutuoso Printed in Brasil Pede-se permuta Exchange is Requested ENCONTROS TEOLÓGICOS Revista quadrimestral fundada em 1986 Diretor: Elias Wolff Editor: Vitor Galdino Feller Redator: Ney Brasil Pereira Conselho Editorial: Celso Loraschi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Domingos Nandi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Edinei da Rosa Cândido – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Elias Wolff – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Helcion Ribeiro – PUC – Curitiba, PR Inácio Neutzling – UNISINOS – São Leopoldo, RS João Batista Libânio – ISI-FAJE – Belo Horizonte, MG José Artulino Besen – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Lilian Blanck de Oliveira – FURB – Blumenau, SC Luiz Carlos Susin – PUC-RS e ESTEF – Porto Alegre, RS Márcio Fabri dos Anjos – Pontifícia Faculdade N. Sra. da Assunção – São Paulo, SP Maria Clara Bingemmer – PUC-RJ, Rio de Janeiro, RJ Maria de Lourdes Pereira Dias – UFSC – Florianópolis, SC Marlene Bertoldi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Ney Brasil Pereira – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Rudolf von Sinner – EST – São Leopoldo, RS Valter Maurício Goedert – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Vilmar Adelino Vicente – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Vitor Galdino Feller – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC CoNSELHO CONSULTIVO: Analita Candaten – Centro de Fomação Scalabriniana – Passo Fundo, RS Armando Lisboa – UFSC – Florianópolis, SC Cecília Hess – UNIVILLE – Joinville, SC Érico Hammes – PUC-RS – Porto Alegre, RS Evaristo Debiasi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Fábio Régio Bento – UNISUL – Tubarão, SC Gabriele Cipriani – CONIC – Brasília, DF Joaquim Cavalcante – Universidade Estadual de Goiás – Itumbiara, GO Luís Dietrich – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Luís Inácio Stadelmann SJ – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Márcio Bolda da Silva – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Mari Hammes – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Marta Magda Antunes Machado – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Paulo Cezar da Costa – PUC-Rio, Rio de Janeiro, RJ Roberto Iunskovski – UNISUL – Florianópolis, SC Sérgio Rogério Junqueira Azevedo – PUC-PR – Curitiba, PR Siro Manoel de Oliveira – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Vilson Groh – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Nota: O autor de cada artigo desta publicação assume a responsabilidade das opiniões que expressa. Publicação dirigida aos agentes de pastoral das igrejas e aos professores universitários, pesquisadores e alunos nas áreas da Teologia, das Ciências da Religião e Ciências Humanas em geral, com o objetivo de favorecer a formação religiosa, social e humana, promover o debate e incentivar a troca de informações sobre temas teológicos, pastorais e sociais. Sumário Editorial ....................................................................................................... Conferência: O Concílio Vaticano II visto a partir do jubileu dos seus 50 anos 7 Demétrio Valentini.................................................................................................... 11 Debate sobre a conferência de D. Demétrio Valentini.................................. 25 Conferência: Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II Vitor Galdino Feller.................................................................................................. 29 Debate sobre a conferência do Pe. Dr. Vitor Galdino Feller......................... 51 Conferência: Da Apostolicam Actuositatem aos ministérios leigos Maria Clara Bingemer.............................................................................................. 65 Debate sobre a conferência da Profª Maria Clara Bingemer................................... 73 Conferência: Igreja, Sociedade e Juventude João Batista Libânio SJ............................................................................................ 79 Debate sobre a conferência do Pe. Dr. João Batista Libânio SJ................... 89 O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes Daniel Ramada Piendibene...................................................................................... Um concílio a caminho Walter Kasper........................................................................................................... ITESC – 40 ANOS: O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012 José Artulino Besen................................................................................................... Crônica: “O Cardeal Carlo Maria Martini (in memoriam) 97 137 147 Maurice Gilbert........................................................................................................ 175 Crônicas da FACASC e do ITESC............................................................... 184 (Faça uma cópia, caso não queira recortar esta página da revista!) Editorial Sem dúvida, nenhum fato histórico influenciou tanto o mundo eclesial católico, nos últimos 50 anos, como o Concílio Ecumênico Vaticano II. Nascido do processo histórico dos séculos anteriores, marcado pelas tensões da Igreja com a modernidade e o iluminismo, bem como pelas questões sociais decorrentes da revolução industrial, o Concilio representa um divisor de águas, no dialogo da Igreja com o mundo. O Concílio Ecumênico Vaticano II nasce diretamente do coração do Papa João XXIII, cujo otimismo e coragem incondicionais foram contagiantes, superando a mentalidade cristalizada reinante nos escaninhos eclesiásticos! Paulo VI deu continuidade à primavera inaugurada pelo seu antecessor, conduzindo com firmeza e mansidão o processo de implantação do Concílio, suportando a cruz dos problemas e dificuldades das novas concepções emanadas das decisões conciliares, legitimadas pela maioria quase absoluta dos 2500 padres conciliares. Realmente, o Concílio foi obra do Espirito Santo! Como todo processo inovador, o Vaticano II foi objeto de várias leituras e hermenêuticas, algumas duvidosas e resistentes, que geraram um inverno eclesial, projetando uma perspectiva de sabor neoconservador, inspirado nas tradições da velha cristandade. Certamente essa resistência obscurantista era tudo o que não se esperava como fruto do Concílio, e que agora o Papa Francisco nos ajuda a rever, reinventando o espírito do Vaticano II, na fidelidade ao Paráclito que o gerou! Na América Latina, o Concílio teve um impacto profundo, com posicionamentos singulares do episcopado nas Conferências de Medellin e Puebla, que deram sintonia à caminhada continental da Igreja Católica! Posteriormente, a Conferência de Santo Domingo não deixou de refletir o processo de estabilização eclesial dos anos 90, com consequências duvidosas no processo de evangelização. Finalmente, a Conferência de Aparecida retomou o espírito Conciliar, em linguagem de nova evangelização, acentuando um projeto continental para formação de discípulos e missionários, ou seja, de “discípulos missionários” de Jesus Cristo. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 7 Editorial Este número de Encontros Teológicos, fruto do “Congresso eológico” realizado em inícios de setembro de 2012, no quadragésimo T aniversário da criação do ITESC, agora FACASC, Faculdade Católica de Santa Catarina, quer focalizar, mais uma vez, a riqueza inesgotável das reflexões e decisões conciliares. Dizemos “mais uma vez”, porque nossa revista já abordou o Concílio em seu número 62 (2012/2), intitulado “Vaticano II – 50 anos”, como já o fizera em seu número 33 (2002/2), intitulado “Concílio Vaticano II: 40 anos depois”, e também em seu número 39 (2004/3), intitulado “Lumen Gentium – 40 anos” e, ainda, em seu número 42 (2005/3), intitulado “Gaudium et Spes – 40 anos”. A primeira contribuição é a conferência de abertura do Congresso, pronunciada por Dom Demétrio Valentim, Bispo de Jales, SP, que, como estudante de Teologia em Roma, foi testemunha ocular e atuou como jornalista na abertura e nas posteriores sessões do Concílio. Título da sua conferência: “O Concílio Vaticano II visto a partir dos seus 50 anos”. Pe. Dr. Vitor Feller, Diretor da FACASC, abordou a Lumen Gentium, apresentando-a como “pilar eclesiológico do Concílio”. A Profa. Dra. Maria Clara L. Bingemer, da PUC do Rio de Janeiro, propõe uma nova visão sobre o papel e a contribuição do laicato, a partir da Apostolicam Actuositatem. Destacamos ainda a reflexão do Prof. Dr. João Batista Libânio, da Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte, salientando os desafios da evangelização da juventude no tripé “Igreja, sociedade e juventude”. Cada uma dessas conferências foi seguida de debate, que foi sintetizado e consta nesta edição. Finalmente, o Prof. Daniel Ramada Piendibene, atualmente embaixador da Republica do Uruguai junto à Santa Sé, examina com acuidade o Desafio hermenêutico da Gaudium et Spes, questionando o conceito da “continuidade”. No conjunto, os textos retratam o tom e o significado das conferências e discussões do Congresso Teológico, cujo objetivo maior era celebrar, com os 40 anos do ITESC, os 50 anos do Concilio Ecumênico Vaticano II, além dos 45 anos do Documento de Medellin. Concluem esta edição da nossa Revista dois artigos muito esclarecedores: o do Cardeal Walter Kasper, síntese de uma sua conferência sobre Um Concílio a caminho, e o do Prof. Pe. José Artulino Besen sobre a movimentada história dos 40 anos do ITESC: O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012. Seguem as notícias e crônicas do ITESC e da FACASC, precedidas de uma evocação da figura ímpar do Cardeal Carlo Martini, uma das grandes vozes do pós-Concílio. 8 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Editorial Este número especial da nossa revista, que apresentamos como “Anais do Congresso Teológico de 2012”, sobre as “memórias e perspectivas do Concílio”, não deseja senão contribuir para a lucidez de nossa consciência eclesial e para o esforço de evangelização de nossa sociedade, neste tempo-kairós que nos é dado protagonizar neste alvorecer do terceiro milênio. Vilmar Adelino Vicente Coordenador do Congresso Teológico/2012 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 9 CONGRESSO TEOLÓGICO CONCÍLIO VATICANO II – MEMÓRIAS E PERSPECTIVAS Local: FACASC – ITESC Data: 3 a 6 de setembro de 2012 Programação Dia 3 de setembro (segunda-feira) 08h00 – Conferência: “Da apostolicam actuositatem aos ministérios leigos” Dra. Maria Clara Bingemer – debatedor: Pe. Ms. Pedro Paulo das Neves 20h00 – Conferência: “Lumen Gentium, pilar eclesiológico do Vaticano II” Pe. Dr. Vitor Galdino Feller – debatedor: Pe.Dr. Elias Wolff Dia 4 de setembro (terça-feira) 08h00 – Conferência: “50 anos do Concílio Vaticano II – Esperanças e Desafios” Dom Luiz Demétrio Valentini, bispo de Jales, SP – debatedor: Pe. Dr. Vitor Galdino Feller 20h00 – Conferência: “Juventude, Sociedade, Igreja” Pe. Dr. João Batista Libânio, SJ – debatedor: Pe. Dr. Domingos Nandi Dia 5 de setembro (quarta-feira) 08h00 – Conferência: “Formação Presbiteral na Igreja atual” Pe. Dr. João Batista Libânio,SJ – debatedor: Pe. Dr. Edinei da R. Cândido 20h00 – Conferência: “Gaudium et Spes, pilar teológico-pastoral do Vaticano II” Prof. Dr. Daniel Ramada, Embaixador do Uruguai junto à Santa Sé – debatedor: Pe. Dr. Vilmar Vicente Dia 6 de setembro (quinta-feira) 08h00 – Conferência: “40 anos da Caminhada do ITESC:1973-2012” Pe. Prof. José Artulino Besen – debatedor: Pe. Ms. Ney Brasil Pereira 20h00 – Apresentação teatral “O Contestado”, no teatro Pedro Ivo Campos Grupo TOCA de Teatro Universitário da UNOESC, Joaçaba, SC Debatedores: Jorge Fernandes Zommer e Carlos Alberto Pellegrin Resumo: O autor começa contextualizando o início do Concílio na Igreja local, no caso, em Santa Catarina, cuja primeira diocese data de 1908. Quanto ao próprio Concílio, destaca sua consistência, abrangência, coerência, e suas grandes intenções, a começar da eclesiologia do “povo de Deus”. Mostra como o Concílio foi um momento de grande prática eclesial, mas não deixou de ter os seus limites, inclusive por causa das resistências enfrentadas. Comenta os “percalços na recepção do Concílio”, os “retrocessos” acontecidos, os valores a resgatar, os avanços produzidos, os desafios a enfrentar. Quanto aos “frutos” do Concílio, classifica-os de exuberantes, embora não sejam percebidos como tais pelas novas gerações. Abstract: At the beginning of his exposé, the author focuses on the context of the Council drawing attention to the local Church in the State of Santa Catarina, in Brazil,, whose first diocese was established in 1908. As for the Council itself emphasis is placed on its major objectives and most of all the ecclesiology of the “People of God”. Similarly, the Council stands out due to its focus on the practice of faith in the Church, not to mention its limitations caused by resistance felt in some areas. A special comment on the “restrictions at the reception of the Council” as well as “retrogressions” in the pursuit of its goals, as opposed to the values newly discovered, the fostering of new aims to be achieved and challenges to be put into practice. As regards the “fruits” of the Council mention is made of exuberant perspectives although they are not perceived as such by the new generations. O Concílio Vaticano II visto a partir do jubileu dos seus 50 anos Demétrio Valentini* * O autor é Bispo da diocese de Jales, SP. Na CNBB, é o Presidente do SPM, Serviço Pastoral dos Migrantes, e é o Bispo responsável pela Pastoral da Mulher Marginalizada. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013, p. 11-23. O Concílio Vaticano II visto a partir do jubileu dos seus 50 anos Introdução O convite para falar do Concílio neste Congresso Teológico do ITESC, em Florianópolis, chega dentro de uma seqüência de reflexões, nas quais me vi envolvido há mais de um ano, atendendo a pedidos semelhantes, em diversas partes do Brasil e da América Latina. Pensei que não era o caso de repetir aqui algumas das reflexões já feitas em outros lugares e circunstâncias. Na proximidade da celebração do Jubileu da abertura do Concílio, a 11 de outubro, me sinto mais animado a olhar para este grande Concílio a partir das observações proporcionadas pela série de encontros já feitos. Preferi então organizar a reflexão de hoje a partir do “observatório conciliar” que a celebração do jubileu está proporcionando. Assim fazendo, me parece estar revivendo o relato bíblico dos observadores enviados para conferir a “terra prometida”. Eles já traziam exuberantes frutos, prova de grande fertilidade. Vale dizer, a celebração do jubileu já está produzindo bons frutos, e isto me parece um “fato relevante”, que comprova de maneira inequívoca a fertilidade eclesial do Vaticano II. No Brasil já pude fazer esta constatação em diversos lugares, a começar lá pelo Maranhão, seguindo para Belém do Pará, passando por Recife, indo até Porto Alegre, em Campinas, e com mais freqüência lá por perto de Jales, nas dioceses da Província de Ribeirão Preto. O último encontro foi o agradável convívio de três dias de estudo sobre o Concílio na Diocese de Rio do Sul, nesta “Bela e Santa Catarina”. Em todos os lugares, sempre procurei vincular o processo conciliar, com a caminhada de cada “Igreja Local”. Para ver como o Concílio incidiu sobre nossa realidade eclesial, e para nos apropriarmos do processo conciliar, para que ele continue incidindo positivamente em nossa vida de Igreja, com os valores que ele despertou. Sempre é importante olhar o concílio, não como um fato isolado e fora da dinâmica eclesial. Mas ao contrário, entendê-lo como um momento forte de eclesialidade, que tivemos a graça de viver em nosso tempo. Daí resulta uma constatação interessante e valiosa. O Concílio serve de boa referência comum, para avaliar nossa caminhada pastoral, fortalecer nossa identidade eclesial, tendo o Concílio como parâmetro dinâmico e desafiador. Ter o Concílio como referência para nossa caminhada de Igreja, eis uma boa proposta que o jubileu está incentivando. 12 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Demétrio Valentini Nesse sentido, é salutar situar a história de nossas dioceses no contexto da história maior da caminhada da Igreja, em nossa região, em nosso país, na América Latina, e também no contexto universal. Eclesiogênese em Santa Catarina Na semana passada, em Rio do Sul, pudemos lançar um breve olhar sobre a “eclesiogênese” da Igreja de Santa Catarina. As datas são muito interessantes. A Diocese de Florianópolis foi criada em 1908, um ano muito fecundo para a implantação das estruturas eclesiais em nosso país. Neste mesmo ano em no Estado de São Paulo foram criadas cinco dioceses: Campinas, Ribeirão Preto, Botucatu, São Carlos e Taubaté, passando São Paulo a arquidiocese. A criação dessas dioceses em 1908 já era uma demonstração de como tinha sido salutar a separação entre Igreja e Estado, com a Proclamação da República. Até o final do Império só havia no Brasil onze dioceses, espalhadas pelo imenso território brasileiro, nesta ordem de sua criação: Salvador em 1551, Rio de Janeiro em 1575, Olinda/Recife e São Luís do Maranhão em 1614, Belém do Pará (1719), São Paulo, Mariana, Goiás e Cuiabá ( 1745) Porto Alegre (1848) e Fortaleza (1854). Depois da República, já em 1892 foi criada a Diocese de Manaus, e em seguida, em 1895 da Diocese de São Paulo foi desmembrada a diocese de Curitiba, da qual se desmembraria Florianópolis em 1908. Aí já estamos chegando em casa! Mas antes de conferir a criação das Dioceses de Santa Catarina, me permito assinalar como dá para sentirnos participantes da mesma caminhada de Igreja no Brasil, constatando, por exemplo, o “parentesco eclesial” entre Florianópolis e Jales, nem que seja um parentesco de segundo ou terceiro grau! Pois o mesmo impulso que levou à expansão das estruturas eclesiais em 1908, com a criação de várias dioceses no Brasil, entre elas Florianópolis, repicou 50 anos depois, na celebração do jubileu de ouro dessas dioceses, levando à criação de muitas outras dioceses nos arredores de 1958, entre as quais Jales! Pronto, está comprovado o parentesco. Coisa, aliás, que seria bom cultivar, numa época como a nossa, de crise de identidade e de fragmentação da realidade eclesial. Em nossas diferenciações, formamos a mesma Igreja, e isto deve servir de motivação e de brio eclesial. Mas, vamos agora conferir as Dioceses de Santa Catarina, na ordem de sua criação. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 13 O Concílio Vaticano II visto a partir do jubileu dos seus 50 anos Florianópolis em 1908, Lages e Joinville em 1927, Tubarão em 1954, Chapecó em 1958 , Rio do Sul e Caçador em 1968, Joaçaba em 1975, Criciúma em 1998, e Blumenau em 2000. Uma constatação importante a ter presente é, certamente esta: o concílio aconteceu numa época de intenso crescimento eclesial em nosso país, que em cento e poucos anos passou de onze dioceses às duzentas e setenta e seis que existem agora. Certamente o panorama eclesial seria bem diferente se não tivesse havido o Concílio, com seu grande impulso de renovação eclesial! Quantos assuntos mereceriam mais reflexão, ao olhar para o Concilio à distância de 50 anos de sua realização! Bem introduzidos, vamos às constatações. 1 Vaticano Segundo: um grande concílio! Esta constatação vai emergindo com sempre maior clareza: o Vaticano II foi um grande concilio ecumênico, que não fica devendo em importância a nenhum outro dos 21 concílios ecumênicos já acontecidos. Em nossa época, tivemos um respeitável concílio, cujos desdobramentos não se esgotam tão rapidamente. Sua grandeza pode ser percebida de diversos ângulos. 1.1 Sua consistência: O Vaticano II teve como seu tema central a IGREJA, na sua natureza e na sua missão. Um tema forte, oportuno, decisivo. Na história da Igreja, o Vaticano Segundo vai ficar marcado para sempre como o concilio “eclesiológico”, que abordou a Igreja, de maneira profunda e exaustiva. 1.2 Sua abrangência O Vaticano II abordou o seu tema central de maneira ampla e diversificada, flagrando a realidade da Igreja em seus diversos ângulos e diferentes situações. Descreveu a Igreja na totalidade de sua natureza, mas também na sua missão, e a partir dos diversos sujeitos eclesiais, e confrontando a Igreja com o contexto humano em que ela vive e cumpre sua missão. 14 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Demétrio Valentini Foi muito abrangente na maneira de analisar e definir a Igreja de Cristo. 1.3 Sua pertinência: Foi muito oportuno que o Concílio tivesse abordado em profundidade o tema da Igreja. Depois de dois mil anos de caminhada, estava mais do que na hora da Igreja parar um pouco, para se analisar e avaliar, à luz dos critérios que permanecem sempre como referência indispensável: o retorno às fortes, o Evangelho de Cristo e o testemunho eclesial da Igreja Primitiva. Foi providencial que o Concílio tivesse abordado o tema Igreja, mesmo sem ainda assimilar bem todas as dimensões apontadas pelo Concílio. 1.4 Sua coerência: Os diversos documentos conciliares se complementam mutuamente. Eles formam uma verdadeira constelação, ao redor da Lúmen Gentium, o seu documento central. De fato, dá para arquitetar uma verdadeira “constelação solar” ao redor da Lúmen Gentium, colocando próximas a ela as outras três “constituições”, em seguida os nove “decretos” e depois as três “declarações”. Todos estes documentos tem um elo comum, a uni-los e situá-los: a Igreja de Cristo, sua constituição fundamental como “povo de Deus”, sua missão neste mundo, na sua tarefa de evangelização e sua presença solidária na sociedade. E´ sempre um bom exercício, sem ter os textos na mão, ir colocando todos os documentos conciliares ao redor da Lúmen Gentium. O concílio se manteve muito coerente na elaboração dos seus documentos. 1.5 A qualificação dos seus documentos O concílio foi muito consistente doutrinalmente, e muito rico pastoralmente. Não se sustenta a afirmação de que este concílio só foi uma reunião pastoral, sem a intenção de propor verdades doutrinais. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 15 O Concílio Vaticano II visto a partir do jubileu dos seus 50 anos O fato de ter sido muito pastoral, a ponto de ter elaborado até uma “constituição pastoral”, não quer dizer que ele não tenha sido doutrinal. Basta conferir como abordou teologicamente o mistério da Igreja. 2 As grandes intuições do Concílio No conjunto em que resultou o concílio, é possível destacar algumas grandes intuições, tanto de ordem doutrinal, como de ordem pastoral. De ordem dogmática se destacam a visão da Igreja como “Povo de Deus”, e a afirmação clara, firme e bem dimensionada da Colegialidade Episcopal, com as muitas decorrências que procedem destas duas afirmações. Algumas intuições de ordem pastoral são muito fecundas. Por exemplo, a dimensão histórica da Igreja, decorrente de sua condição de “povo de Deus”. É sempre oportuno ter presente esta dimensão da Igreja, tanto para relativizar algumas situações vividas pela Igreja ao longo de sua caminhada, como para valorizar a inserção na história, que a Igreja sempre precisa cultivar, para ter consistência, e poder influenciar positivamente a realidade onde ela vive. Outra preciosa intuição do Concílio consiste na valorização das “Igrejas Locais”, que continuam sendo referência indispensável para situar a eclesialidade de todos os que pretendem se identificar com a Igreja de Cristo. As “dioceses” serão sempre parâmetro para as antigas, como para a novas expressões eclesiais. Outra intuição decorrente da visão de “Igreja povo” e de “Igrejas locais” é a importância das comunidades, como realizações concretas da Igreja, e como expressão de comunhão eclesial e de inserção na realidade. 3 O Concílio: momento de intensa prática eclesial Outra salutar constatação vai no sentido de entender o Concílio não como um hiato na caminhada da Igreja, ou um acidente de percurso, ou como um evento fora da dinâmica eclesial. Ao contrário, o Concílio foi um momento de intensa vivência eclesial, em continuidade com a caminhada que a Igreja vinha fazendo. Em grande parte, o Concílio 16 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Demétrio Valentini foi fruto da vitalidade da Igreja, que se expressava através de diversos movimentos pastorais, que foram renovando sua vitalidade. Podemos citar alguns deles, com emblemáticos desta vitalidade da Igreja. O movimento litúrgico, que forneceu à reforma litúrgica preciosa contribuição. E assim outros movimentos, como o movimento bíblico, ecumênico, o despertar missionário da Igreja da Europa, voltado especialmente para a África. O próprio Padre Ângelo Roncalli, futuro João 23, abriu caminho para a sua projeção pessoal por seu engajamento nas “obras missionárias” de sua diocese de Bérgamo. O concílio não ignorou os movimentos que o precederam. Tornouse estuário, onde eles puderam desembocar, possibilitando sua realização mais eficaz. Como exemplo mais emblemático podemos citar o movimento litúrgico. O Concílio possibilitou concretizar as propostas do movimento litúrgico, que antes eram apenas sonhos para um futuro ainda incerto. Com o concílio, soou a hora da graça para estes movimentos, que assim puderam se enraizar melhor na Igreja, e serem hoje nela integrados tranquilamente. 4 O Concílio como processo desencadeado A visão do concilio como momento de vivência eclesial, nos permite compreender melhor sua dinâmica, e seu alcance, como um processo, desencadeado a partir da própria Igreja, que ainda continua. Com isto, se confirma a visão do Concílio a partir da “hermenêutica da continuidade”, como insiste Bento XVI. Como processo, se compreende melhor o alcance de algumas referências que o Concílio colocou, e que permanecerão sempre como estímulo para a Igreja buscar nelas sua inspiração. Tomemos como exemplo o “sonho de Igreja”, que João 23 apresentou no discurso de abertura do Concílio, no dia 11 de outubro de 1962. Uma Igreja chamada a ser “Mãe amorosa de todos, paciente, benigna, cheia de misericórdia e de bondade para com todos, também para com aqueles que dela se afastaram”. O Concílio propôs um ideal de Igreja, que precisa sempre ser buscado e colocado como referência. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 17 O Concílio Vaticano II visto a partir do jubileu dos seus 50 anos 5 Os limites do Concílio Seria ingenuidade não constatar limites concretos enfrentados por este Concílio. A Igreja vinha de um longo período de estagnação de suas estruturas. Havia uma predisposição para rejeitar o processo de mudanças que o Concílio propunha. Paradigma desta estagnação era a rigidez com que se lidava com a liturgia, que estava “congelada” deste os tempos de Pio V, no século 16. Os “padres conciliares” mais lúcidos, logo se deram conta que o Concílio tinha que ser “moderado nas propostas”, na recomendação do Papa João 23. Era preciso ir de vagar, para deixar as “portas abertas” para dar outros passos, quando as circunstâncias permitissem. Portanto, o trabalho conciliar era monitorado de perto pela mentalidade conservadora, que só aos poucos foi se abrindo, ao longo do processo conciliar. Havia também a percepção de que alguns temas eram “improponíveis” para o concílio, pois iriam suscitar discórdia e dissolução da maioria conseguida em plenário pela postura de moderação e de bom senso dos presidentes das comissões. Este senso dos limites do concílio foi demonstrado claramente por Paulo VI, quando o bispo de Lins, D. Pedro Paulo Koop, apresentou a proposta de ordenação dos “viri probati”. Paulo VI logo reagiu, tirando estes assunto da pauta do Concílio. Não é que Paulo VI era contra o teor da proposta. Mas ele não queria que este tema implodisse o concílio. Portanto, este foi um concílio feito com o entusiasmo pela renovação da Igreja, suscitado por João 23, mas que se defrontava com limites bem concretos. Nesse sentido, dá para dizer que o Vaticano II foi generoso nas intenções, mas tímido nas decisões. Este me parece ser um referencial muito prático para avaliar todo o processo conciliar. 6 As resistências enfrentadas Desde o início do seu processo, o Vaticano II experimentou resistências. O próprio João 23 testemunhava que no dia do anúncio do concílio, a cara de alguns cardeais demonstrava bastante ceticismo diante da proposta de um concílio ecumênico que ele acabava de anunciar. Estas resistências encontraram diversas formas e oportunidades para se manifestar. Uma delas, bem explícita, foi a manobra preparada pela Cúria Romana para a eleição dos membros das Comissões Conci- 18 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Demétrio Valentini liares, na primeira sessão de trabalho. Como cada bispo devia indicar 16 membros para cada uma das dez comissões, prevendo a dificuldade que isto representava, a Cúria preparou uma lista já pronta, colocada à disposição de cada bispo. Era claro o objetivo de manipular o concílio, pela composição conservadora das comissões. Outras resistências procediam da longa oposição ao modernismo, que vinha sendo incentivada há tempo na Igreja. Tudo o que se parecesse como uma concessão à modernidade, era visto em princípio como suspeito. As resistências específicas contra a dinâmica e o conteúdo do Concílio se articularam em forma de um grupo de bispos, identificados como “coetus internationalis patrum”, (grupo internacional de “padres”). Este grupo de bispos, à cuja frente estava Mons. Marcel Lefebvre, sistematizou uma resistência às posições majoritárias do Concílio, ao longo de todo o período conciliar, e depois do concílio endureceu ainda mais suas posições. De modo que também este concílio, proposto com tanta abertura de espírito por João 23, enfrentou sérias resistências, que acabaram se concretizando num cisma, que a duras penas o atual Papa tenta agora dissolver, através de um difícil diálogo que é levado adiante com muita paciência por parte de Bento XVI. 7 Percalços na recepção do Concílio A Igreja da América Latina deu um bonito exemplo de acolhida pronta e generosa do Concílio. Antes que terminasse o Concílio, D. Helder e Dom Larrain, Presidente do Celam, tinham proposto ao Papa Paulo VI uma espécie de “concílio para a América Latina”, para adaptar à nossa realidade as grandes orientações do Vaticano II.. Assim é que apenas três anos depois de encerrado o Concílio, aconteceu a Conferência de Medellín, que tinha o propósito de trazer a dinâmica do Concílio para dentro da caminhada da Igreja da América Latina. Se compararmos com o Vaticano Primeiro, constatamos a grande diferença. Só em 1999, trinta anos depois do Vaticano Primeiro, foi realizado o “Concílio Plenário Latino Americano”, com a intenção de aplicar à América Latina as rígidas disposições disciplinares decorrentes daquele Concílio. Ao passo que, três anos depois de concluído o Vaticano II, com a Conferência de Medellín a Igreja da América Latina se sentia profundamente envolvida com as propostas de renovação eclesial apresentadas pelo Vaticano II. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 19 O Concílio Vaticano II visto a partir do jubileu dos seus 50 anos Mas é forçoso constatar que houve muitos atropelos na recepção do Concílio. Muitas vezes não se respeitava a mentalidade das pessoas, que se sentiam desestabilizadas interiormente, e inseguras no seu procedimento. Estes atropelos, com freqüência, se traduziam em abandono do próprio estado de vida, sobretudo em desistências de padres, de religiosos e religiosas. Durante o Concílio, os próprios bispos experimentaram uma abertura progressiva de sua mentalidade. Mas na aplicação do Concílio era mais difícil seguir as boas recomendações de João 23, de manter a “serenidade de espírito, a concórdia fraterna, a moderação nas propostas, a dignidade das discussões, e a prudência nas decisões”. Se fôssemos fazer tudo de novo, com certeza algumas coisas poderiam ser feitas com mais prudência e menos atropelo das mentalidades. 8 Retrocessos acontecidos É bom também constatar que houve alguns retrocessos ao longo da aplicação do Concílio. A clara afirmação da Colegialidade Episcopal, tinha despertado a esperança de que ela seria usada como suporte sólido, tranqüilo e seguro, para uma prática eclesial de maior descentralização da Igreja, sob a responsabilidade das Conferências Episcopais. Mas, quase ao contrário, as Conferências Episcopais foram se tornando instrumento usado para a “formatação uniforme da Igreja”. Elas poderiam se tornar referências seguras que permitissem à Igreja acolher em seu seio expressões eclesiais diversificadas, que poderiam manter suas características, em plena comunhão eclesial. O potencial eclesial da Colegialidade Episcopal ainda não está sendo devidamente valorizado. Este potencial permitiria uma autonomia maior das dioceses, para decidirem o que fosse mais conveniente para a sua dinâmica pastoral, e sua responsabilidade eclesial. E assim daria para acenar para outros retrocessos. Na importância dada às comunidades eclesiais, na reflexão teológica que sempre precisa acompanhar o processo eclesial, dando-lhe segurança e consistência. Outros retrocessos podem ser identificados nos campos específicos de cada decreto conciliar. 20 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Demétrio Valentini 9 Valores a resgatar Passados 50 anos do Concílio, não é tão difícil perceber que sua riqueza não se esgotou, e pode ainda ser recuperada. Existem valores a resgatar. Dá citar os mais consistentes: – a visão da Igreja como “Povo de Deus” resgatando sua dimensão bíblica e histórica. – a Colegialidade Episcopal, como suporte simultâneo para a comunhão e a diversidade eclesial. – a valorização das Dioceses como “Igrejas locais” servindo de referência eclesial indispensável. – a importância das “comunidades eclesiais”, com seus diversos formatos sociológicos, mas sendo concretizações da Igreja, inseridas na realidade, como fermento evangélico na sociedade. – a reflexão teológica, como parte integrante do processo eclesial, com a missão de dar segurança e consistência à prática eclesial. 10 Avanços produzidos Ao lado de retrocessos, é importante constatar significativos avanços na caminhada da Igreja a partir do Concílio. Foi para garantir o processo conciliar que Paulo VI instituiu o “sínodo dos bispos”, uma espécie de “mini concílio” a se realizar periodicamente, ou de maneira especial para atender a situações localizadas. Os “sínodos” poderiam ser mais eficazes se fossem deliberativos. Mas assim mesmo, produziram avanços significativos na caminhada da Igreja em nosso tempo. Olhando a trajetória da Igreja nestes últimos 50 anos, dá para identificar algumas ênfases, que foram despertando a Igreja para dimensões importantes. A primeira destas ênfases emergiu com força no tempo do Concílio, na forma do “aggiornamento” da Igreja, proposto por João 23. A primeira ênfase, portanto, foi a “renovação”. Com o sínodo de 74, sobre a Evangelização, se firmou outra ênfase que motivou muito a caminhada da Igreja, em forma de “evangelização”. Desde aquele sínodo, até hoje, a palavra que encabeça o “objetivo geral” da CNBB é sempre a mesma: “evangelizar”. Outra ênfase pode ser identificada a partir da encíclica de João Paulo II, a “Redemptoris Missio”, onde ficou destacada a razão de ser da Igreja, que é a MISSÃO Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 21 O Concílio Vaticano II visto a partir do jubileu dos seus 50 anos que ela tem a cumprir. A Conferência de Aparecida, de certa maneira, retomou estas ênfases, identificando-as de modo operativo em forma de “discípulos (e) missionários” de Jesus Cristo. Em todo o caso, com o Concílio, a Igreja não estagnou sua caminhada. Ao contrário, a retomou, com novas motivações. 11 Continuidade do processo As reflexões sobre o Concílio fazem emergir esta outra constatação importante: ele não foi um fato isolado, mas um processo desencadeado, que pode sempre retomar vigor. Daria para dizer que o Concílio despertou a “conciliariedade” da Igreja, como uma dinâmica que pode ser acionada de acordo com as circunstâncias históricas. Tanto que, a rigor, fica relativizada a questão se teremos ou não um outro concílio. Sem negar a possibilidade, e a conveniência, de um novo concílio, podemos com segurança levar em frente o processo desencadeado pelo Vaticano II. 12 Desafios pela frente Um concílio como este coloca evidentes desafios. Seja para implementar suas recomendações, como para retomar as suas grandes inspirações. Tomemos, por exemplo, a generosa proposta de renovar a Igreja de Cristo, para que possa cumprir sua missão de evangelizar a humanidade de hoje. Como podemos empreender, de novo, um impulso renovador, que supere as resistências que até agora impediram uma renovação mais adequada e consistente da Igreja? Ou o desafio da liturgia: como melhorar nossas celebrações, valorizando os passos dados, justificando-os diante de quem os contesta e acha que se deve retroceder? É normal que um grande concílio deixe grandes desafios a enfrentar. 12 Frutos do concílio Este é um capítulo fácil, e exuberante. Quantos frutos podemos colher, agora, em decorrência do impulso positivo do Concílio. 22 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Demétrio Valentini Acontece que as novas gerações nem se dão conta das grandes mudanças ocorridas, e de quanto foram benéficas. Sem nos dar conta, respiramos as grandes mudanças trazidas pelo concílio. Não faz mal, de vez em quando, recordá-las, para constatar quanto foram diversas e profundas. 13 Ponderações finais O Concílio não foi um meteoro, que só passou perto do planeta, e na medida que se afasta vai perdendo luminosidade. Ao contrário, o jubileu está mostrando que, quanto mais os anos passam, mais nos damos conta da grandeza desse acontecimento, que ainda permanece atual. Depende de como nos posicionamos diante dele. O concílio pode ser uma graça desperdiçada, ou uma oportunidade valorizada. A celebração do jubileu está mostrando claramente que podemos fazer do Concílio uma grande oportunidade de renovação da Igreja, e de profundo envolvimento pessoal com suas causas. Depende de nós! Endereço do Autor: Rua Vinte, 3061 CEP 15700-000 Jales, SP Email: [email protected] Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 23 TRIBUTO A DOM CLEMENTE ISNARD1 Sebastião Armando Gameleira Soares2 Conheci Dom Clemente em Roma, durante o Concílio Vaticano II, quando cursava teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana. Ele era visto por nós como o bispo da Liturgia. Fazia parte da comissão conciliar internacional e da comissão da CNBB para a implantação da reforma litúrgica. Talvez tenhamos sido nós, estudantes do Pio Brasileiro, o primeiro grupo a experimentar a nova liturgia da missa, antes ainda da promulgação da Sacrosanctum Concilium. Dom Clemente sentiu-se autorizado a passar-nos o novo rito da missa, ainda em latim, para traduzir provisoriamente em português uma das orações eucarísticas, tradução que revisou e aprovou. Eu mesmo me meti a colaborar na tarefa. Num fim de tarde, na acolhedora cripta da capela do colégio Pio Brasileiro, sob a presidência dele, reunia-se uma assembleia nossa de uns vinte estudantes de teologia. Com que emoção éramos todos ali “um só coração e uma só alma”, com a doce e ingênua expectativa de que estávamos a plantar, com o sacramento do Corpo e Sangue do Cristo e a escuta da Palavra, a semente da maravilhosa mudança da Igreja que, de qualquer forma, mexeria com as estruturas da sociedade opressora. “Pão que dá vida ao mundo”, penhor, sempre, da nova vida que irradia da Ressurreição de Jesus. Terminado o Concílio, estivemos com ele muitas vezes em suas idas e vindas a Roma. [...] Reencontramo-nos muitos anos depois, no Recife, ele já emérito, e eu, casado com Madalena – a vida dá muitas voltas – bispo da Igreja Anglicana do Recife. [...] Quando celebrou os cinquenta anos de sua ordenação episcopal, em julho de 2010, fez-nos gesto de fina delicadeza. Madalena e eu estávamos na assembleia litúrgica. Ele, sentado a presidir a missa, pela fraqueza das pernas. Em certo momento, para surpresa de todos, disse mais ou menos o seguinte: “Está entre nós alguém que conheci há muitos anos, quando ele era jovem estudante em Roma. Depois, perdemos o contacto. Há algum tempo aqui no Recife nos reencontramos, ele agora bispo da Igreja Anglicana. Neste momento, antes da Santa Comunhão, vamos realizar o gesto tradicional do ‘partir o pão’, que aponta para o sentido profundo da Eucaristia, partilha em comunhão fraterna na suprema doação de Cristo. Convido Dom Sebastião a se aproximar e que nos demos o ósculo da paz, sinal da unidade da Igreja, para em seguida comungarmos da mesma mesa do único Senhor”. Madalena e eu nos dirigimos à sua cadeira presidencial, abraçamo-lo e o beijamos com intensa emoção espiritual, ao experimentar profundamente o quanto podemos ser no mundo testemunhas de unidade na diversidade. Comunhão no sentido mais pleno da palavra, gesto de delicadeza de quem sabia o que significa realmente celebrar liturgia como expressão do que se vive.[...] O exemplo de Dom Clemente, em seus últimos anos, foi o de tomar a palavra com liberdade e coragem. Assim, mesmo contrariando o sistema (editoras católicas se recusaram a publicar seus inocentes opúsculos), lançou um grito de alerta à Igreja, quanto ao risco de fechar-se aos apelos da realidade, aos “sinais dos tempos”. As estatísticas não estão a dizer o resultado da “política de avestruz”? [...] Não deve ser este o ministério dos bispos e padres eméritos, a intrépida tomada da palavra para profetizar à Igreja e anunciar-lhe corajosamente os rumos da vontade de Deus? Como calar diante da tentativa de jogar fora a luminosa herança que a Igreja tem tido em mãos nos últimos 50 anos? [...] Dom Clemente foi um bispo plenamente consciente de sua tarefa de “magistério episcopal”, que exerceu até o fim, renovando-a com admirável lucidez e coragem profética, da “emérita” altura dos seus 90 anos... (Excertos da Apresentação de Dom Sebastião ao livro “Memórias que anunciam o Futuro”, em homenagem a Dom Clemente Isnard, Recife, 2012, pp. 15-24) 1 Dom Clemente Isnard, beneditino, bispo de Nova Friburgo, RJ (1960-1994), faleceu em 24-082011 como Bispo emérito. 2 Dom Sebastião Armando é Bispo da Diocese Anglicana do Recife, da IEAB. Debate sobre a Conferência de Dom Luiz Demétrio Valentini Sintetizador: Erik Dorff Schmitz* * Graduando do 2º ano de Teologia da FACASC. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013, p. 25-27. 50 anos do Concílio Vaticano II Debatedor, Pe. Dr. Vitor Galdino Feller: Iniciou sua reflexão elogiando a retrospectiva feita a respeito da eclesiogênese da Igreja em Santa Catarina, em comunhão com a caminhada histórica da Igreja no Brasil à luz do Concílio Vaticano II. Questionou sobre como fazer com que os bispos assumam de fato o sentido pleno de sucessores dos apóstolos e também de “vigários de Cristo”, e não vigários do vigário de Cristo, com sua auctoritas, parresia e profecia. Como trabalhar mais em nosso tempo o profetismo social, não só dos bispos mas de toda a Igreja, profetismo bastante apagado na atualidade? Como fazer um verdadeiro retorno a Jesus de Nazaré, e passar de uma Igreja preocupada com o triunfo, para uma Igreja mais simples, kenótica, sóbria, empenhada em lutar contra os poderes religiosos das “novas religiões” do nosso tempo. E o que teria acontecido com a Igreja se não fosse o Concílio? Dom Demétrio concordou com a necessidade de os bispos terem maior colegialidade e comunhão, bem como eles e a Igreja darem maior ênfase às questões sociais, buscando configurar-se de fato a Jesus de Nazaré. O Concílio abrangeu um leque muito grande de preocupações como essas, que não podemos deixar de partilhar. Outras questões da assembleia, comentadas pelo conferencista Dom Demétrio: 1ª – Neste jubileu de abertura do Concílio vemos muito como negativo, ou seja, o que ainda não se realizou do Concílio. Porque não se salienta mais a dimensão da continuidade do Concílio, como a Comissão que o preparou? R.: O Concílio Vaticano II foi uma benção e alegria, porém receiase que se feche o processo de sua recepção. 2ª – O Concílio Vaticano II abriu a perspectiva para o mundo moderno, mas já estamos no pós-moderno (da globalização e consumismo; cultura individualista e autonomia do sujeito na prática; secularização total; perspectiva niilista e falta de sentido de vida). Quais as propostas do Concílio para enfrentar o nosso mundo, ou há necessidade de se fazer um outro Concílio? R.: Devemos nós mesmos fazer “pequenos concílios”, nas bases. O Concílio Vaticano II talvez veio cedo demais, antes da virada cultural de 1968. Ou talvez veio tarde demais. Em tempos de crise, tem-se a volta 26 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Debate sobre a conferência de Dom Demétrio Valentini do conservadorismo. É motivo para um novo Concílio? Pode ser. Nesse caso, teríamos o aprendizado recente do Vaticano II. 3ª – Uma palavra muito usada no Concílio Vaticano II foi “serviço”. Essa atitude devemos recuperar na Igreja pós-Vaticano II. Na liturgia se pergunta muito o que eu posso fazer ou não posso fazer, mas essa pergunta é errada. Deve-se perguntar como eu posso celebrar melhor o mistério de Deus. A grande ênfase da Sacrossantum Concilium não foi mudar ritos, mas fazer com que o mistério de Cristo fosse melhor recebido. Ficamos porém muito na mudança exterior, e a mudança interior onde está? R.: Os apóstolos se deram conta de que deveriam partilhar o serviço. Quanto a nós, é preciso estarmos abertos a novas ideias e propostas para dinamizar os ministérios, os serviços: dos leigos e leigas, diáconos e presbíteros. 4ª – Onde estão os nossos profetas hoje, já que a geração profética conciliar não existe mais? Por exemplo, na história de Israel, quando os profetas cessaram, surgiram os anônimos, como o 2º Isaías. Hoje, na ausência de Deus na sociedade, a tímida recepção do Vaticano II não seria um profetismo minguado? R.: Já que estão faltando grandes profetas, então vamos ser todos nós pequenos profetas, mas profetas de fato. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 27 Resumo: O artigo começa aludindo aos “quatro pilares”, as quatro Constituições conciliares, fazendo notar que a Lumen Gentium é o “pilar eclesiológico” do Vaticano II. Após uma contextualização remota do próprio Concílio, o autor analisa as três etapas de sua interpretação/recepção, e discorre sobre o “processo quenótico-pascal” da Lumen Gentium. Analisa os conceitos centrais de “mistério” e “povo de Deus”, aplicados à Igreja, destacando este último conceito, que marca a virada eclesiológica. Afirma que “povo de Deus” é uma realidade substantiva, a “eclesialidade primeira”. Na conclusão, lembra as duas atitudes a serem cultivadas pela Igreja: ad extra, a disposição para o serviço, e ad intra, o princípio da colegialidade. E adverte que o “retorno sincero” ao Vaticano II nos ajudará a encontrar o justo caminho da Igreja neste início do novo milênio. Abstract: The author begins by a reference to the “four pillars” dealt with in the four Constitutions of the Council, laying stress on the document of Lumen Gentium as the “ecclesiological pillar” of Vatican II. In the initial paragraph he recalls the remote context of the Council itself giving the author the opportunity to analyze the three phases both of its interpretation and reception laying stress on the “kenotic paschal process” of Lumen Gentium. He then goes on studying the central concepts of “mystery” and “people of God” which are applied to the Church, with special emphasis on the last one which is characteristic to the great change in ecclesiology. He defines the “people of God” as a substantial reality, that is, the “first ecclesiology”. In the conclusion he reminds the reader of two attitudes to be cultivated by the Church: ad extra, the involvement of the faithful in rendering service, and ad intra, the principle of collegiality. He offers a word of advice in the sense of a “sincere return” to Vatican II which will help us to find a direct way of the Church at the beginning of the new millennium. Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II Vitor Galdino Feller* * O autor, Doutor em Teologia Sistemática pela Gregoriana, é Diretor da FACASC e do ITESC. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013, p. 29-50. Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II Introdução A celebração dos 50 anos do Concílio Vaticano II é oportunidade para retomar suas grandes propostas, tal como foram elaboradas e argumentadas pela maioria conciliar, que quis promover uma virada no modo de se entender a Igreja e de ela se relacionar com o mundo. Enquanto o Vaticano II, sobretudo na Lumen Gentium, propunha o retorno às fontes bíblicas e patrísticas da fé cristã, percebe-se que hoje é preciso voltar ao Vaticano II, para interpretá-lo conforme o desejo de seus protagonistas e fazer dele a fonte inspiradora dos grandes projetos evangelizadores para o início do novo milênio. Chamamos a Lumen Gentium de pilar eclesiológico do Concílio. Um edifício se constrói com pelo menos quatro pilares. Os do Vaticano II são: as duas constituições referentes às duas mesas com as quais o Pai alimenta seu povo, Dei Verbum e Sacrosanctum Concilium, respectivamente sobre a mesa da Palavra e a mesa dos sacramentos, sobretudo da Eucaristia; e as duas constituições referentes à Igreja, Lumen Gentium e Gaudium et Spes, respectivamente sobre o ser e o agir da Igreja, respondendo às duas perguntas postas pelos Padres conciliares logo no início do Concílio: quem és tu, Igreja? E: Igreja, o que tens a dizer ao mundo? Se, depois, considerarmos que na Gaudium et Spes temos o cuidado pastoral de ampliar o leque dos serviços que a Igreja presta ao mundo, de incentivar a caridade cristã num mundo em mudança, poderíamos entender que esse documento fala, então, da terceira mesa: a mesa ou o múnus (serviço, ofício) da Caridade. Assim os três múnus – profecia ou Palavra, celebração ou Liturgia, pastoreio ou Caridade – teriam, cada um, uma constituição que lhe dá fundamento bíblico-teológico-místico-pastoral: Dei Verbum, para o múnus do ensino, Sacrosanctum Concilium para o múnus do culto, e Gaudium et Spes para o múnus do serviço. A Lumen Gentium ficaria, então, como o fundamento dos fundamentos! O presente artigo se propõe analisar a Lumen Gentium como o documento central do Concílio, em que se fazem presentes as grandes propostas de mudança histórica na imagem da Igreja e na sua relação com a modernidade. Primeiro, faremos uma contextualização do Concílio como estuário de um grande movimento histórico de reforma que sobreviveu no subterrâneo da história eclesiástica no decorrer dos últimos 1500 anos. Em seguida, faremos uma análise das três etapas diversas de interpretação do Concílio. Depois, trataremos do processo quenótico-pascal do documento. Por fim, após ressaltar-se a importância 30 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Vitor Galdino Feller do conceito de mistério, resgata-se a imagem da Igreja como povo de Deus, articulando-a com a consciência da inserção da Igreja no mistério da Trindade e com a prática eclesial da encarnação do Evangelho na história. A imagem de povo de Deus, vista à luz do conceito patrístico da comunhão, mostra-se assim como realidade substantiva e globalizante, a mais adequada e condizente com o mistério de nossa fé e com os desafios atuais da evangelização. Cinquenta anos representam muito pouco diante dos 2000 anos da história da Igreja. Seria exigir demais que, nestes poucos 50 anos após o Concílio Vaticano II, a Igreja tenha conseguido se despojar da roupagem clerical e piramidal com que se revestiu nos 1500 anos anteriores. Todavia, 50 anos significam mais que a metade da existência de um fiel. É muito, em termos particulares! Se, por um lado, deve-se cultivar a paciência histórica que vai pavimentando decidida e firmemente a estrada rumo a um novo modo de ser Igreja, de outro lado, não se pode perder tempo. É agora o tempo que temos, o tempo que nos cabe e nos resta, para fazermos acontecer, em nosso favor e para o bem das novas gerações, a mudança histórica querida e promovida pelo Concílio Vaticano II. Contextualização remota do Concílio Vaticano II Para entender a virada promovida pelo Concílio Vaticano II, sobretudo por suas duas grandes constituições – a Lumen Gentium, sobre a identidade da Igreja, e a Gaudium et Spes, sobre a presença da Igreja no mundo –, convém situar historicamente este grande evento, que marca hoje a nossa história. O Concílio Vaticano II foi a primeira ocasião, no longo período de 2000 anos, em que a Igreja parou para refletir sobre si mesma e, mais ainda, para se enxergar através dos olhos do mundo. Desde o século IV, quando, por obra de Constantino, imperador romano, o cristianismo tornou-se religião oficial do Império, a Igreja havia assumido uma postura conflitiva na sua relação com o mundo. Na segunda metade do primeiro milênio, dos anos 400 a 1000, houve supremacia do Império sobre a Igreja, os reis e imperadores interferindo nas coisas eclesiásticas, na escolha de bispos, na criação de dioceses, nas decisões de concílios e sínodos etc., com nefastas consequências para a liberdade da Igreja. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 31 Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II A primeira metade do segundo milênio, dos anos 1000 a 1500, foi caracterizada como a época da cristandade medieval, com a supremacia da Igreja sobre a sociedade, com o Papa interferindo nas coisas civis e temporais. Nessa época, aconteceram as duas grandes divisões da Igreja: em 1054, o cisma entre Oriente e Ocidente; no século XVI, a separação das igrejas da Reforma. A imposição da verdade e a preocupação com o poder fizeram com que a Igreja se tornasse protagonista de fatos claramente anti-evangélicos, por ex., a inquisição, as cruzadas e o genocídio de culturas e povos indígenas. Na segunda metade do segundo milênio, dos anos 1500 até o Concílio Vaticano II, houve um movimento progressivo de fechamento da Igreja, de enfrentamento da Reforma e do Iluminismo, de distanciamento com relação ao mundo, de oposição entre Igreja e mundo, com a Igreja se afirmando como sociedade perfeita, com leis, estruturas e quadros próprios, em competição com o mundo. Em todo esse tempo, foi intenso e persistente o desejo de reformas. Por trás de toda a movimentação reformística estava a certeza de que a Igreja não pode viver sem o mundo. Ela é, por sua própria constituição evangélica, fermento na massa, luz no ambiente, semente na terra, sal na comida, grão lançado no chão. Fora do mundo, a Igreja se perde, o grão apodrece sem poder germinar, o fermento fica na prateleira, o sal, no saleiro, a semente, no saco. Fora do mundo, a Igreja não tem salvação. Numa breve resenha dos principais anseios de reforma, temos: No século XI, com o papa Gregório VII, a Igreja, que vivia sob a influência de reis e imperadores, promove grande reforma, em busca da liberdade diante do poder civil, para poder escolher seus papas e bispos, criar suas instituições etc. Problema foi terem as coisas se invertido: a Igreja, com o fortalecimento do papado, passa a dominar o poder civil. O século XII foi marcado pelos movimentos pauperistas ou mendicantes, que queriam uma Igreja mais pobre e simples, despojada da pompa e do poder. Alguns desses movimentos (franciscanos e dominicanos, por ex.) foram integrados na estrutura eclesial, enquanto outros (cátaros) enveredaram pelo caminho da heresia. Os grandes reformadores do século XVI (Lutero, Calvino, Zwinglio) reagiram ao poder papal, ao materialismo da Igreja romana; pretendiam uma Igreja não simoníaca, mais bíblica, concebida como 32 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Vitor Galdino Feller povo sacerdotal. Não foram ouvidos; separaram-se da Igreja de Roma e passaram a criar novas expressões do cristianismo. A resposta proporcionada pelo Concílio de Trento (1545-1563) concentrou-se na área da doutrina (relação entre graça divina e liberdade humana, o realismo do pecado original, a sacramentalidade da fé etc.) e na disciplina (obrigatoriedade de residência para os bispos, cuidado na formação do clero etc.). Houve, sim, uma reforma, chamada de ContraReforma; mas foi tímida em relação à gravidade dos problemas e fez nascer uma eclesiologia da “sociedade perfeita”, visível, jurídica, em que a Igreja é comparada com a república de Veneza e o reino da França. Durante o século XIX, a Escola de Tübingen, na Alemanha, vinha apresentando algumas propostas de reformas, em termos de maior realce à unidade eclesial, à dimensão espiritual, à presença do Espírito Santo na vida da Igreja, ideias que foram abortadas pelo Concílio Vaticano I, em 1870, que se preocupou mais com a definição dos dogmas do primado romano e da infalibilidade papal. Diversos movimentos (litúrgico, bíblico, catequético, ecumênico, missionário, teológico, social, laical etc.), o estudo da Patrística, a Ação Católica, a nova teologia etc., prepararam, no decorrer do século XX, o caminho que daria no Concílio Vaticano II. Foi-se forjando o sujeito moderno, que passou a ser o interlocutor principal do Concílio. É necessário frisar também que o ambiente cultural marcado pelas filosofias modernas do personalismo, do existencialismo, da história, da práxis, pela experiência dramática das duas Grandes Guerras Mundiais, pelo surgimento da ONU e o valor sempre crescente atribuído aos Direitos Humanos, pela busca da superação da guerra fria e da corrida armamentista nuclear etc., também contribuíram para a realização do Concílio Vaticano II, acontecimento de enorme repercussão dentro e fora da Igreja. Essa corrente reformística, que percorria o subterrâneo da Igreja, produzindo tanto santos quanto hereges, latejava forte demais para continuar sendo reprimida. A decisão do papa João XXIII de convocar um Concílio foi acolhida com satisfação, não só pelo povo católico, mas por todos os cristãos e, mesmo, por todo o mundo. O grande número de bispos vindos de todas as partes do mundo tudo fez para marcar posição e garantir uma verdadeira mudança histórica no jeito de ser Igreja. Rejeitou os documentos que haviam sido preparados pelas comissões Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 33 Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II preparatórias, vazados ainda no estilo da eclesiologia tridentina. Exigiu o debate e a introdução de novos temas, que devessem levar a Igreja a uma nova maneira de se entender e de se posicionar diante da história. Produziu, assim, um magistério fecundo a respeito da identidade da Igreja e de sua configuração histórica. Continuando em essência a mesma, a Igreja ganhava um modo diferente de se relacionar com o mundo. Continuidade no ser, reforma no agir! Três etapas de interpretação Há três modos de interpretar o Concílio Vaticano II, correspondentes a três etapas distintas: A primeira recepção, seguida em grande parte de nossas dioceses e comunidades, teve seu auge nos primeiros vinte anos pós-conciliares, de 1965 a 1985. Foi comandada pela maioria conciliar, pelos bispos e teólogos que debateram os grandes temas do Concílio, redigiram seus textos, introduziram assuntos e palavras de corte renovador, trabalharam para que o Concílio realizasse o sonho do papa João XXIII: um evento significativo e modificativo da história da Igreja. A Igreja é vista a partir de sua relação com o mundo, em ótica profundamente renovadora e até inovadora, buscando um salto para a frente, um salto para além de sua própria sombra, rompendo com o jeito de ser do segundo milênio, para reaproximar-se decididamente do modo de ser do primeiro milênio, sobretudo dos tempos apostólicos. Tema-chave dessa interpretação é a imagem da Igreja como povo de Deus, imagem que, na América Latina, se configurou como Igreja dos pobres. Parece claro que a intenção do Concílio Vaticano II foi a de preparar a Igreja para uma nova era da história. A grande produção bibliográfica surgida nas décadas de 60 e 70 assim o acolheu e compreendeu. Para sustentar essa interpretação, que marcou a primeira recepção do Concílio, podem ser lembrados o discurso inaugural de João XXIII, o discurso final de Paulo VI, a consciência da soberania conciliar por parte da maioria dos bispos presentes e o desejo de retornar à tradição do primeiro milênio, quando ainda não existiam as divisões no cristianismo, quando o cristianismo não era vivido como cristandade e instituição, mas como profecia e inserção no mundo. A par dos elementos positivos dessa interpretação, não há que se negar alguns acentos marcados pela ambiguidade. Viu-se o Concílio como 34 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Vitor Galdino Feller solução de todos os problemas, abertura para todo tipo de experimentações pastorais e litúrgicas, facilitação para qualquer modo de interpretar e viver a fé, ruptura do dique que represava anseios seculares de diálogo com o mundo e de inserção na realidade, relaxamento moral e pastoral diante dos grandes princípios doutrinais, descompromisso com dogmas, verdades estabelecidas, ritos litúrgicos etc., afirmação isolada do pêndulo pastoral com rejeição do pêndulo doutrinal. Uma segunda interpretação do Concílio Vaticano II, surgida talvez por reação a esses elementos ambíguos, considera em termos críticos o otimismo generalizado do momento histórico (a década de 60) e do contexto geográfico (o Primeiro Mundo) em que o Concílio se realizou. Esta segunda recepção, que passou a ter força com o Sínodo Extraordinário sobre o Vaticano II, de 1985, teve à sua frente o então cardeal Joseph Ratzinger, reorganizando a minoria conciliar, grupo que, no decorrer do Concílio, trabalhava para impedir que passassem ideias e textos que pudessem levar a uma real mudança histórica, presumida como catastrófica, e empenhava-se para inserir ideias e textos que pudessem, depois, corrigir os desvios previsíveis. Como maior fator corretivo às mudanças, essa segunda recepção atrela as intuições do Concílio Vaticano II à linha de continuidade com a eclesiologia do segundo milênio, do Concílio de Trento e do Concílio Vaticano I, em que a dimensão institucional se faz bastante presente. Tema-chave dessa recepção é a imagem da Igreja como comunhão. Esquece-se a temática do povo de Deus, que não aparece mais nos documentos da Igreja posteriores a essa data. Fala-se da Igreja como comunhão, mas tirando-lhe sua contextualização histórica e desfigurando-a de sua concretude popular. Com isso, barra o acesso aos moldes configurativos da Tradição do primeiro milênio, em que predominava a eclesiologia da comunhão universal da Igreja una e católica na diversidade disciplinar das Igrejas diocesanas e regionais. Nota-se, aqui, um esforço por enquadrar o Concílio e inseri-lo nos moldes e parâmetros dos concílios anteriores, tirando-lhe a força revolucionária e o instigante apelo de retorno às fontes bíblicas e patrísticas. Chega-se mesmo a questionar a oportunidade da realização do Concílio em uma década claramente marcada pelo otimismo, muitas vezes ingênuo. Um sem número de diretórios e documentos emanados das congregações romanas parece ser uma tentativa de apropriar-se do Concílio, obscurecendo as suas principais riquezas, acentuando-lhe não as grandes ideias, mas incisos colocados precisamente pela minoria Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 35 Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II conciliar. A imagem da Igreja como povo de Deus é sistematicamente esquecida. A virada copernicana proposta pela maioria conciliar com a introdução do tema do povo de Deus é revista em termos de insistência no tema do mistério. Cabe aqui lembrar as restrições que em 1985 o cardeal Ratzinger pôs à categoria de povo de Deus: propõe uma volta ao Antigo Testamento; suscita sugestões políticas, partidárias e coletivistas; provoca o risco de retroceder mais que de avançar. Sua proposta é: voltar à categoria de mistério, ao conceito de corpo de Cristo, por serem mais próximos ao Novo Testamento. Foi o que prevaleceu no Sínodo de 1985, onde a categoria de povo de Deus passou a ser vista como um dos diversos modos de falar da Igreja, e voltou-se ao mistério, com o objetivo de responder a uma época de retorno ao sagrado. No mesmo ano, também a Comissão Teológica Internacional sugeriu que povo de Deus é uma entre outras denominações, e que era preciso promover um balanço entre mistério e sujeito histórico. Enfim, mistério passa a ser posto no fundamento, e povo de Deus passa a ser visto igual a corpo de Cristo e templo do Espírito Santo. Mas todas essas categorias são transformadas em a-históricas; faz-se uma eclesiologia dedutiva, perde-se a linha indutiva. Com elas pode-se avançar na compreensão da Igreja, mas não se produz nenhuma mudança histórica. A força que ganhou esta interpretação deve ainda ser creditada a dois outros fatores. Primeiro de tudo, insistiu-se demais, irresponsavelmente, que o Concílio tinha apenas caráter pastoral. Isto faz esquecer as muitas reviravoltas por ele intencionalmente operadas no dogma, como no caso da eclesiologia de corte trinitário e comunional (capítulos 1 e 2 de LG), da sacramentalidade episcopal (LG 21), do colegiado episcopal (LG 23-27), da fisionomia balanceada do governo, a um tempo monárquico e sinodal (LG 22), da facticidade local da Igreja (CD 11), da liberdade religiosa (DH), do ecumenismo (UR) e do diálogo com as grandes religiões (NAe), doutrinas estas que viriam mostrar um seguro e sereno desenvolvimento dogmático sobre a identidade e a missão da Igreja. Depois, foi uma pena que o Código de Direito Canônico e o Catecismo da Igreja Católica não tenham sido elaborados no imediato pós-concílio. Se tal tivesse acontecido, eles poderiam ter expressado melhor a intenção daqueles que tinham vivido a experiência conciliar e participado de seus debates. 36 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Vitor Galdino Feller Consequência prática dessa segunda recepção foi o reforço dado ao tradicionalismo. Em vez de retorno à grande Tradição do primeiro milênio, as vozes e práticas tradicionalistas retornam somente até o século XVI, com o apego ao juridicismo, ao moralismo e ao ritualismo litúrgico, o acento nas expressões barrocas e a ênfase na identidade católica em contraposição ao mundo, às religiões e às outras igrejas. Uma terceira interpretação, que passa a tomar força com a mensagem de Bento XVI pela celebração dos 40 anos do final do Concílio, em dezembro de 2005, insiste na reforma dentro da continuidade ou na continuidade na reforma. Trata-se de superar duas formas de negação do Concílio: passar por cima dele rumo a um futuro imprevisível ou não chegar até ele. A proposta de uma mudança radical rumo a um futuro totalmente novo nega o Concílio passando por cima dele, querendo mais do que o Concílio propôs, avançando mais do que o Concílio possibilitou, passando por cima de suas proposições prático-pastorais e teóricodoutrinais, em vista de temas ulteriores que não estavam na agenda do Concílio, num avanço desordenado e desarticulado. O apego total a um passado controlado nega o Concílio, pois não chega até ele, não aceita suas decisões em termos de atualização da verdade aos novos tempos, por ex.: colegialidade episcopal, sacerdócio comum, carismaticidade e ministerialidade, hermenêutica bíblica, reforma litúrgica, ecumenismo, diálogo inter-religioso, liberdade religiosa, presença no mundo, serviço em favor da vida e dos direitos humanos etc. O atual prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, Gerhard Ludwig Müller, ao falar de interpretações heréticas do Concílio, ensina que sua única leitura ortodoxa é a que o considera como uma ocasião de reforma e de renovação, na continuidade do único sujeito-Igreja. Esta hermenêutica é a única que respeita “o conjunto indissolúvel entre a Sagrada Escritura, a Tradição completa e integral e o Magistério, cuja maior expressão é o Concílio presidido pelo Sucessor de Pedro, como líder da Igreja visível”. Segundo ele, existe uma “interpretação herética” que se opõe à interpretação correta: “a hermenêutica da ruptura, tanto no grupo progressista como no grupo tradicionalista”. Os dois grupos possuem em comum a rejeição do Concílio: “os progressistas, porque querem deixá-lo para trás, como se fosse uma estação que é preciso abandonar para chegar numa outra Igreja; os tradicionalistas, porque não querem chegar até ele, como se fosse o inverno da Catholica”. Ele acrescenta que o erro doutrinal não é uma característica exclusiva de inovadores modernistas, como se propala em muitos campos, pois os Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 37 Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II setores neotradicionalistas, que pensam que o Vaticano II deu as costas à “Igreja de sempre”, também o cometem. A história da recepção do Concílio conta, pois, com estas três modalidades de interpretação. Cada uma delas tem forte incidência sobre a vida da Igreja, a ação evangelizadora, a organização da pastoral, a celebração, a espiritualidade, o estudo e o ensino da teologia, enfim, sobre todos os aspectos da vida cristã. Na escolha da melhor interpretação, muitos fatores exercem influência sobre pessoas e grupos: formação teológica e pastoral, posto ou cargo eclesial, idade etc. Mas, o fator mais influente é, sem dúvida, o acesso ao Concílio: em que medida o Vaticano II é realmente conhecido, estudado e valorizado? O conhecimento cuidadoso dos textos e da história do Concílio, bem como e sobretudo das aspirações e sonhos que o animaram, nos levaria a fazer dele a linha mestra de toda a nossa ação pastoral e evangelizadora. Quando há, hoje, muita gente dizendo que a Igreja está perdida, nossa diocese não tem linha, nossa paróquia perdeu o rumo, valeria a pena voltar ao Vaticano II e, através dele, voltar às fontes: Jesus de Nazaré, Deus na história humana! Central em todo este processo é a Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja! O programa do Concílio de retorno às fontes da fé cristã continua valendo para o nosso tempo. Agora, porém, com novo alcance: retorno às fontes da Igreja dos primeiros séculos, através da história e dos documentos do Concílio Vaticano II. De nossa parte, preferiremos continuar com a primeira recepção, corrigindo-lhe as ambiguidades e acrescentando-lhe os valores encontrados, agora, na terceira etapa. Entendemos que, na primeira recepção, o ideal de reforma não estava em contradição com a essência da Igreja. Ao contrário, buscava (e busca) aproximar-se das fontes bíblicas e patrísticas da Igreja. Estava em contradição, sim, com uma determinada configuração histórico-institucional da Igreja, que marcou o segundo milênio. Além disso, a concepção da Igreja como povo de Deus é mais fiel aos ideais do Concílio, é mais abrangente, mais concreta e prática que a ideia, por vezes abstrata, de comunhão. Como povo de Deus, a Igreja é, evidentemente, mistério e comunhão. É como povo de Deus que a Igreja se realiza em sua dimensão de mistério. É como povo de Deus que ela realiza sua mais profunda e verdadeira comunhão. É como povo de Deus que a Igreja irá realizar a mudança histórica, a virada que os bispos do Concílio Vaticano II quiseram promover, visando o reposi- 38 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Vitor Galdino Feller cionamento da relação da Igreja com o mundo, não mais em termos de distância, confronto e condenação, mas como aproximação, diálogo e misericórdia, como era desejo do papa João XXIII. O processo quenótico-pascal da Lumen Gentium O Concílio Vaticano II promoveu um processo de rebaixamento e despojamento na Igreja, favoreceu uma eclesiologia em tom menor para exaltar, em tom maior, o mistério de Deus. Chamamos esse processo de quenótico-pascal, pois, como em Fl 2,6-11, a um movimento de quênose, de descida, segue um movimento de subida, de exaltação. O processo quenótico-pascal deslanchado pelo Concílio Vaticano II está presente em todos os documentos, mas reflete-se de modo especial na Constituição Dogmática Lumen Gentium. De uma configuração institucional, mais voltada para sua exterioridade e mundanidade, com destaque para o triunfalismo, a Igreja passa para uma configuração mistérica, voltada para sua essência, com ênfase na simplicidade. E, paradoxalmente, quanto mais voltada para sua identidade, mais impulsionada a assumir sua presença evangélica no mundo. Este processo quenótico-pascal da eclesiologia do Vaticano II pode ser percebido no uso dos dois enfoques dos quais o Concílio se serve para ver a Igreja. Quando analisada em sua identidade, usam-se grandes dimensões. Quando vista em sua relevância na relação com o mundo, contam as pequenas dimensões. Quando vista em si mesma, em sua identidade, como o faz a Lumen Gentium, a Igreja é grandiosa. Ela é a imagem da Trindade, o povo santo de Deus, o corpo místico de Cristo, o templo do Espírito Santo, o sacramento universal da salvação, o germe e instrumento do Reino (LG 1-8). Vista em seu próprio mistério, a realidade da Igreja é grandiosa, é a obra de Deus-Trindade em sua manifestação salvadora de toda a humanidade. Mesmo sendo grandiosa, ela é, porém, o mistério de Deus encarnado, quenotizado na história. No entanto, quando vista em sua relação com o mundo, como a vê a Gaudium et Spes, ela adquire pequenas dimensões. Aí, é o mundo que é visto em grandes dimensões. O mundo é o pléroma do Verbo encarnado (1Cor 15,28; Ef 1,10; Col 1,20), dentro do qual se situa a Igreja. Na relação com o mundo, a Igreja se vê pequena. “A marca da pequenez, da quênose de Cristo, não é própria da Igreja inicial apenas, mas deve continuar e ser visível pelos séculos afora, como essencial para a missão da Igreja” (Valfredo TEPE). Ela readquire as conotações bíblicas de pequeno reEncontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 39 Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II banho em meio aos lobos, fermento na massa, semente lançada na terra, luz sobre o candeeiro. O mundo lhe dá, agora, uma dimensão com a qual ela não estava acostumada. Essa nova configuração da Igreja é fruto da deliberação dos Padres conciliares de inserir, nos esquemas preparatórios, dois conceitos básicos para a compreensão da intimidade essencial da Igreja. Ambos provenientes da eclesiologia bíblica e patrística: a Igreja como mistério e a Igreja como povo de Deus. Um conceito mais místico e outro mais histórico. Ambos colocados logo no início, antes da apresentação das diferenciações das categorias dos fiéis. Ambos profundamente entrelaçados, de modo que o mistério da Igreja só pode ser captado em sua inserção na história, e a imagem da Igreja como povo de Deus só pode ser entendida como mistério. A mudança eclesiológica acionada na Lumen Gentium precisa ser entendida dentro da mudança histórica pretendida pelo Concílio Vaticano II. Na circulação hermenêutica entre os dois capítulos, vê-se que quanto mais o mistério desce à história, mais a Igreja ganha força para o exercício de sua missão universal. Reconhece-se que sua configuração institucional não somente não dava conta da missão universal, mas até a impedia. Nesta circulação hermenêutica, entendemos, contudo, que o primado cabe ao conceito de povo de Deus. Pois, o novo paradigma da Lumen Gentium está na inserção, deliberadamente buscada e trabalhada, da imagem da Igreja como povo de Deus, como comunidade de crentes, raça de sacerdotes, em sua igualdade fundamental, em sua cidadania batismal. A elaboração da Lumen Gentium foi marcada por momentos polêmicos. De início, foi rejeitado o esquema apresentado pela comissão preparatória, por parecer por demais assemelhado à eclesiologia que vigorava desde o Concílio de Trento, uma eclesiologia feita a partir da instituição e não a partir da vida cristã, com ênfase na visibilidade jurídica exterior e não na dimensão interior do mistério. Promoveu-se, então, uma virada no esquema sobre a Igreja. Fixou-se o tema do povo de Deus como ponto de partida para centrar a Constituição. Pôs-se o tema do povo de Deus, como segundo capítulo, antes e na base dos capítulos que falam das categorias da Igreja: hierarquia (c. III) e laicato (c. IV) e vida religiosa (c. VI), antes e na base dos capítulos sobre o chamado à santidade (c. V) e à contínua renovação escatológica (c. VII), antes e na base do capítulo sobre Maria, membro 40 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Vitor Galdino Feller eminente do povo de Deus (c. VIII). Todos esses capítulos devem ser lidos, portanto, em chave histórica, como encarnações particulares e situadas do grande povo de Deus. Também o capítulo primeiro, sobre a Igreja como mistério, que serve de base e introdução ao segundo, sobre a Igreja como povo de Deus, deve ser lido em chave histórica: o mistério encarnado na história. Uma boa interpretação de Lumen Gentium deve, pois, escolher a categoria de povo de Deus, como ponto de partida da proposta conciliar. É preciso historicizar todas as categorias usadas na Lumen Gentium – sacramento de salvação, sinal da unidade do gênero humano, germe e instrumento do Reino, corpo de Cristo, templo do Espírito Santo etc. – a partir da consciência histórica que delas se tem, das ressonâncias que provocam, e do uso histórico que delas se faz. Tanto o conceito de mistério quanto o de povo de Deus são decisivos para uma mudança eclesiológica, mas o segundo mais que o primeiro. Pois mistério já estava no esquema rejeitado, que se serviu das sugestões da Mysticis Corporis (Pio XII, 1943), enquanto povo de Deus foi fruto do esforço de reestruturação do novo esquema, em vista da mudança querida pelo Concílio, com um novo roteiro que colocasse tudo em questão. A Igreja como mistério Foi a partir da categoria de povo de Deus que os bispos do Concílio quiseram que a Igreja manifestasse mais explicitamente seu rosto divino, sua origem trinitária, sua relação com a graça de Deus mais que com o poder humano. Uma eclesiologia do mistério, de corte divino, cristológico, pneumatológico, em que ficasse visível a graça (cháris) divina. Foi então reelaborado o primeiro capítulo, sobre o mistério da Igreja. Nele são apresentados os seguintes temas: a) as relações da Igreja com cada uma das pessoas divinas (LG 2-4); b) a relação da Igreja com o Reino de Deus, do qual ela é apresentada como sinal e instrumento (LG 5); c) as imagens bíblicas e patrísticas da Igreja (LG 6); d) a Igreja como Corpo místico de Cristo, peregrino na história (LG 7); e) a complexidade visível e invisível, material e espiritual, institucional e profética da Igreja (LG 8). A Igreja aparece na dimensão da sacramentalidade. O Concílio não pensa em mistério como realidade inacessível de Deus, nem como conjunto de verdades sobrenaturais. Mas como sacramento, mostrando a realidade humana de Cristo encarnada na história humana. Como Cristo Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 41 Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II em sua humanidade é comprovação histórica do desígnio salvífico de Deus, assim a Igreja, por uma não fraca analogia, é sinal e instrumento da ação de Deus na história (LG 8). A Igreja é mistério, porque tem sua origem, sua forma e seu destino no mistério da Santíssima Trindade. Fiel a Cristo e aos seres humanos, a Igreja deve tornar-se cada vez mais, na prática, aquilo que ela já é na sua essência. Ela é na terra o sinal que reflete a comunhão das pessoas divinas da Santíssima Trindade, é o ícone terreno da Trindade celeste. Acolhendo essa intuição, o Documento de Aparecida dirá: “O mistério da Trindade é a fonte, o modelo e a meta do mistério da Igreja” (DAp 155). A Igreja vem de Deus-Trindade, vive em Deus-Trindade e vai para Deus-Trindade. A Trindade é a unidade das três pessoas distintas que se amam tanto e tão bem, que são um só Deus. Em Deus Trindade, somos unidade, mas não uniformidade; somos diversidade, mas não divisão; somos comunhão, mas não confusão. A Santíssima Trindade é a perfeita comunidade missionária. Ao explicitar essa fórmula sintética, diz ainda o Documento de Aparecida: “A Igreja é comunhão no amor. Esta é a sua essência e o sinal através do qual é chamada a ser reconhecida como seguidora de Cristo e servidora da humanidade” (DAp 161). A intenção de fundo na escolha do termo mistério foi pôr fim à época da Contra-Reforma. Primeiro, o Concílio quis superar a compreensão tridentina, bellarminiana, hierarcológica, da Igreja como sociedade perfeita, e ver a Igreja como realidade complexa, visível e invisível (LG 8). Era preciso superar de vez o visibilismo tridentino e o invisibilismo luterano (como já o tentara a Mystici Corporis, mas sem sucesso, pois permanecia no fundo o esquema anterior de sociedade perfeita). Para isso, propõe-se a abertura da Igreja ao Espírito de Cristo (LG 14). O Concílio quis também superar o dualismo Igreja-mundo, pelo retorno aos Pais, à teologia e prática da comunhão, à concepção da Igreja como sacramento, como contraste provocativo com outras sociedades humanas, sacramento como instância crítica direta da Igreja visível, societária, hierárquica, das reformas gregoriana e tridentina. Ao passar da visão da Igreja como instituição, como mediação para o acesso a Deus, para a compreensão da Igreja como sacramento da salvação, isto é, da vinda e da presença de Deus, o Concílio deu importância ao Jesus histórico e à historicidade da Igreja. Mais que arca de uma salvação buscada na vida após a morte, a Igreja realiza esta salvação já agora, na forma de sinal, de mistério, na comunhão humana dos fiéis 42 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Vitor Galdino Feller reunidos em Cristo. Entende-se, agora, que o mistério encarna-se e revelase na história. Com isso, avança-se para além da Mystici Corporis, que sublimou o mistério deixando intacta a história, identificando sem mais Igreja de Cristo com a Igreja romana. O Concílio propõe, agora, que a Igreja de Cristo subsiste na Igreja romana (LG 8), questionando tanto a absolutização do sistema romano quanto a forma romana de relacionar-se com as igrejas e religiões e propondo novas práticas para o ecumenismo (LG 15) e o diálogo com as religiões (LG 16). A concepção da Igreja como mistério, ao contrário de Igreja como instituição, facilita o diálogo com o mundo, as culturas, as igrejas, as religiões. Com o termo mistério, o Concílio quis evitar o hábito de ver a fundação da Igreja só em Mt 16,18ss, para vê-la na continuidade da proclamação do Reino de Deus pelo Crucificado-Ressuscitado e da missão da Igreja impulsionada pelo Espírito Santo, em Pentecostes. A Igreja como mistério está fundada na totalidade do mistério de Jesus Cristo, do Jesus histórico e do Cristo pascal (encarnação, ministério, morte, ressurreição, pentecostes, glória). O Concílio quis, enfim, entender o mistério de Deus e da Igreja a partir dos pobres, tema que, após a inserção de povo de Deus, sacudiu a assembleia. Embora não tendo sido mais aprofundado, o tema da Igreja dos pobres aparece em LG 8, onde se fala da relação entre mistério e pobreza, entre mistério e escândalo de sua visibilidade histórica: a pobreza de Jesus, o mundo dos pobres, a identificação de Jesus com eles. A Igreja como mistério é escândalo, como o são o Jesus histórico e os pobres. Portanto, é interessante observar que, nesse primeiro capítulo, sobre o mistério, em que se busca salientar a origem divina da Igreja, há uma significativa insistência na dimensão histórica da Igreja. O mistério da Igreja nunca é mostrado como algo unicamente sobrenatural, distante do mundo, desligado da história, mas sempre em relação íntima com a história. Na lógica da encarnação, a Igreja é uma só realidade complexa, humana e divina, visível e invisível, histórica e mistérica. A chave de leitura para todo esse capítulo aparece no seu final, com a seguinte citação: “(A Igreja) é, por isso, mediante uma não medíocre analogia, comparada ao mistério do Verbo encarnado. Pois como a natureza humana, assumida indissoluvelmente unida a ele, serve ao Verbo divino como órgão vivo de salvação, semelhantemente o organismo social da Igreja serve ao Espírito de Cristo que o vivifica para o aumento do corpo” (LG 8). Vê-se que o mistério é visto dentro e a partir da história. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 43 Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II Alguns exemplos que revelam a preocupação dos bispos com a dimensão histórica do mistério da Igreja: Nos números 2 a 4 de Lumen Gentium, a Igreja é apresentada como prefigurada na história do povo de Israel, inaugurada no ministério, na morte e na ressurreição de Jesus de Nazaré, enviada ao mundo pela força do Espírito Santo, sendo por ele hoje e sempre sustentada. Nesses itens, as três pessoas divinas são vistas em sua relação histórica com a vida concreta das pessoas e dos povos. A relação da Igreja com o Reino (LG 5) tem por fundamento a pregação e o ministério de Jesus de Nazaré. A missão da Igreja deve continuar a missão de Jesus, na caridade, humildade e abnegação, no caminho da cruz. Até mesmo a imagem de Corpo de Cristo, tão apreciada pela minoria conciliar, não é vista em sua sobrenaturalidade mística, mas em sua inserção histórica. A Igreja é entendida como sacramento e não como sociedade perfeita. Ela é vista como sacramento apenas e enquanto está unida a Cristo, sendo este lembrado em sua encarnação histórica. Somos membros do Corpo de Cristo, enquanto, “peregrinando ainda na terra, palmilhando em seus vestígios na tribulação e na perseguição, associamo-nos às suas dores como o corpo à Cabeça” (LG 7). A Igreja deve comunicar Jesus Cristo, perseguido, amigo dos pobres, crucificado. Ela vive entre sombras, manifestando a plena luz (LG 8). Assim como Jesus Cristo foi enviado pelo Pai a evangelizar, também a Igreja tem como razão essencial de sua existência o chamado à salvação do sofredor. A Igreja é entendida como mistério, não no sentido de fuga da realidade, mas, pelo contrário, como engajamento ainda maior e mais comprometido com a vida do povo. Em outras palavras, só se pode entender o mistério como encarnação de Deus no mundo, sendo a cruz de Jesus a maior prova do amor de Deus e da manifestação do seu poder. Como se vê, o primeiro capítulo tem um corte profundamente histórico, ainda que seu conteúdo fosse o mistério da Igreja em sua origem divina. Desse modo, percebe-se que o primeiro capítulo prepara e introduz o capítulo central do documento, o capítulo segundo, sobre a Igreja como povo de Deus. 44 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Vitor Galdino Feller A Igreja como povo de Deus O primeiro capítulo da Lumen Gentium fala da Igreja como mistério divino, imagem humana da comunhão trinitária. Logo a seguir, porém, o capítulo segundo concretiza na história a realização desse mistério. A Igreja é mistério enquanto comunhão divino-humana, povo de Deus em comunhão e missão. A Igreja é povo de Deus, porque é, antes de tudo, comunidade de crentes, nação santa, povo sacerdotal, conceitos que pavimentam a igualdade fundamental e a cidadania batismal comum a todos. Assim, o que é comum – o mistério divino inserido na história humana do povo de Deus – vem antes das diferenças das categorias dos fiéis, de seus ministérios e carismas. A Igreja é o novo povo da nova aliança. “Qualquer que seja a nação a que pertença, Deus aceita a quem o teme e pratica a justiça” (At 10,35). Contudo, aprouve a Deus salvar e santificar os seres humanos, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em um povo que o conhecesse na verdade e o servisse santamente” (LG 9). O novo povo da nova aliança, firmada no sangue de Cristo (1Cor 11,25), não é formado segundo a carne mas no Espírito. Na Igreja realiza-se a profecia da primeira carta de Pedro: “raça escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido... que outrora não era povo, mas agora é povo de Deus” (1Pd 2,9-10). A Igreja é o povo messiânico. “Embora não abranja de fato todos os homens, e não poucas vezes apareça como um pequeno rebanho, é, contudo, para todo o gênero humano o mais firme germe de unidade, de esperança e de salvação. Estabelecido por Cristo como comunhão de vida, de caridade e de verdade, é também por ele assumido como instrumento de redenção universal e enviado a toda a parte como luz do mundo e sal da terra (Mt 5,13-16)” (LG 9). Sendo um pequeno rebanho, “esse povo, permanecendo uno e único, deve estender-se a todo o mundo e por todos os séculos, para se cumprir o desígnio da vontade de Deus que, no princípio, criou uma só natureza humana e resolveu juntar em unidade todos os seus filhos que estavam dispersos (Jo 11,52)” (LG 13). Pequeno rebanho, a Igreja de Cristo “é impelida pelo Espírito Santo a cooperar para que o desígnio de Deus, que fez de Cristo o princípio de salvação para todo o mundo, se realize totalmente” (LG 17). Povo da comunhão e da missão, pela pregação do Evangelho “a Igreja atrai os ouvintes a crer e confessar a fé, dispõe para o batismo, liberta da escravidão do erro e incorpora-os a Cristo, a fim de que nele cresçam pela caridade, até à plenitude (…) É assim que Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 45 Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II a Igreja simultaneamente ora e trabalha para que toda a humanidade se transforme em povo de Deus, corpo do Senhor e templo do Espírito Santo, e em Cristo, cabeça de todos, se dê ao Pai e Criador de todas as coisas toda a honra e toda a glória (LG 17). Assim, a imagem de povo de Deus torna-se o ponto de partida para o entendimento, a interpretação e a recepção de toda a teologia e eclesiologia conciliar. Povo de Deus foi um tema propositadamente buscado e inserido no documento sobre a eclesiologia. Desse modo, o capítulo segundo (sobre o povo de Deus: LG 9-17) é a luz que serve para ler o primeiro (o mistério da Igreja) e os seguintes, sobre a hierarquia (cap. III), o laicato (cap. IV), a santidade (cap. V), a vida religiosa (cap. VI), a caminhada da Igreja (cap. VII) e a missão de Maria na história da salvação (cap. VIII). Há em Lumen Gentium uma proposta de mudança histórica no modo de se entender e viver a Igreja. Da imagem da Igreja como sociedade perfeita, apreciada desde o Concílio de Trento em sua dimensão jurídica e institucional, passa-se para a imagem da Igreja como povo de Deus inserido na história. Da imagem da Igreja como Corpo de Cristo, entendida mais em sua funcionalidade e organicidade, como se pensava nos anos imediatamente anteriores ao Vaticano II, por obra da encíclica Mystici Corporis (1943), de Pio XII, passa-se para a imagem da Igreja como povo de Deus, entendida em sua dialeticidade e historicidade. De uma Igreja entendida em suas categorias funcionais, passa-se para uma Igreja de categorias dialéticas. Começa-se a compreender a Igreja aberta, ou seja, ainda não pronta, e por isso em continuidade com o povo de Israel (LG 9), em relação com todos os povos e culturas (LG 13), com as outras igrejas cristãs (LG 15), com as grandes religiões (LG 16), com grande consideração por todos os fiéis em seu sacerdócio comum e seus carismas específicos (LG 10-12.14), com abertura missionária (LG 17). Enfim, uma Igreja peregrina, dinâmica, evolutiva e histórica. Povo de Deus: pilar eclesiológico Ao redor da grande temática do povo de Deus são também tratados temas que dele decorrem e são com ele coerentes e consequentes. Assim, em Lumen Gentium temos em germe grandes temas que serão tratados em outros documentos do Concílio. Daí a consideração de Lumen Gentium e de seu conceito fundamental de povo de Deus como pilar eclesiológico do Concílio. 46 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Vitor Galdino Feller Há em Lumen Gentium uma portentosa eclesiologia, com temas germinais que serão pormenorizados nos demais documentos do Concílio. Em todo o documento, percebe-se que a grande mudança histórica da Igreja está em deixar de considerá-la primariamente como hierarquia (como hierarcologia, diria Congar), para tratá-la como comunidade de crentes. A realidade originária, totalizante e globalizante da Igreja é o povo de Deus. O alicerce de todo o edifício eclesiológico da Lumen Gentium está na condição de igualdade de todos os crentes, da ontologia ou antropologia da graça, ou seja, o ponto de partida é a comunidade de todos os crentes, a igualdade fundamental dos fiéis, a cidadania batismal. A relação da Igreja com o povo de Israel, sua caminhada na história, desde Abraão até hoje, a consideração da validade da primeira aliança de Deus com Israel, a importância desse povo para o entendimento da essência e da missão da Igreja, são temas tratados em LG 9 e que voltam a ser mais bem aprofundados na declaração Nostra Aetate sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs (NAe 4). O sacerdócio comum dos fiéis e seu exercício segundo os três múnus – do ensino, da liturgia e da animação pastoral – o senso da fé, o consenso dos fiéis, a carismaticidade e a ministerialidade de toda a Igreja, a índole secular, a dignidade e a apostolicidade dos leigos, a igualdade de todos em Cristo, fundada na ontologia da graça, são temas que aparecem em LG 10-12 e em no capítulo IV sobre os leigos (LG 30-38) e que irão ser mais bem detalhados no decreto Apostolicam Actuositatem sobre o apostolado dos leigos. A universalidade de todo o povo de Deus, pela qual todas as pessoas e povos, cristãos de outras igrejas e membros das grandes religiões, de um modo ou outro, pertencem à Igreja de Cristo, são temas germinais em LG 13-17, que serão mais bem desenvolvidos no decreto Unitatis Redintegratio sobre o ecumenismo, na declaração Nostra Aetate sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs, e no decreto Ad Gentes sobre a ação missionária da Igreja. Assim, a sacramentalidade e a colegialidade episcopal, em balanço com o primado papal (LG 20-23) e a dimensão do serviço dos ministérios episcopal e presbiteral nos múnus de ensinar, santificar e governar (LG 24-29), serão mais bem aprofundados no decreto Christus Dominus sobre o múnus pastoral dos bispos na Igreja e no decreto Presbyterorum Ordinis sobre o ministério e a vida dos presbíteros. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 47 Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II O apreço à vida religiosa (LG 43-47) será tratado de modo mais minucioso no decreto Perfectae Caritatis sobre a atualização dos religiosos. Todos os temas desenvolvidos nos demais documentos do Concílio Vaticano II, tanto as outras grandes constituições sobre a divina revelação (DV), sobre a divina liturgia (SC) e sobre a relação da Igreja com o mundo contemporâneo (GS), como os decretos sobre o ecumenismo (UR), sobre as Igrejas Orientais (OE), sobre as missões (AG), sobre os bispos (CD), sobre os presbíteros (PO), sobre os religiosos (PC), sobre a formação dos seminários (OT), sobre os leigos (AA), sobre o uso dos meios de comunicação social (IM), e ainda as declarações sobre a educação (GE), sobre a liberdade religiosa (DH) e sobre as grandes religiões (NAe), todos esses temas encontram seu fundamento e razão de ser na Lumen Gentium. Povo de Deus: realidade substantiva A categoria de povo de Deus é uma realidade globalizante, anterior a toda diferenciação, põe a todos na ontologia da graça, na antropologia da graça, na cidadania batismal. É o fim da perspectiva hierarcológica da Igreja, da Igreja como sociedade desigual. Esta nova perspectiva que ainda está a sacudir os alicerces de todo o edifício eclesial, é fácil de aceitá-la na teoria, na teologia; mas quanta dificuldade em torná-la prática! Um modo de vivenciar essa realidade globalizante é apreciar o sensus fidei, a experiência da fé dos fiéis. Algo que é realidade primeira e última e constituinte da Igreja, mas que estava soterrado. A realidade substantiva da Igreja, onde encontramos o que é comum a todos, na ordem da ontologia da graça – sua relação com o mistério (c. I), sua constituição como povo de Deus (c. II), seu chamado à santidade (c. V), sua índole escatológica (c. VII) – fundamenta outras realidades relativas, onde estão as diferenças de carismas e funções – a hierarquia (c. III), o laicato (c. IV), a vida religiosa (c. VI), a figura de Maria (c. VIII). O sensus fidei, esta realidade substantiva da Igreja, é a fé que vence o mundo (1Jo 5,4), pela qual tudo é nosso e nós somos todos de Cristo (1Cor 3,21-23), onde ninguém é dono e dominador da Igreja (nem Paulo, nem Apolo, nem Cefas), mas todos são servidores da comunidade crente (1Cor 3,4-5). A comunidade crente é ação convocatória, gratuita de Deus, é experiência de graça. 48 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Vitor Galdino Feller Esta realidade substantiva do povo de Deus, esta eclesialidade primeira, este nível da koinonia, este plano do ser-com (Agostinho: “convosco sou cristão, isto é graça, salvação, motivo de consolo”), é o fundamento das diferentes diakonias, serviços, no plano do ser-para (Agostinho: “para vós sou bispo, isto é um dever, perigo do poder, motivo de temor”). Esta realidade primeira é a resposta que temos a dar ao pelagianismo moderno da eficácia e eficiência humana, da razão desumana, da idolatria do mercado, da moda e da mídia, do neoliberalismo excludente, do cientificismo narcisista e do domínio da tecnocracia. É com esta realidade substancial que enfrentaremos também o pelagianismo da autorreferencialidade da Igreja e do pastoralismo carregado de ativismo humano sem espaço para a graça divina. Esta realidade globalizante do povo de Deus dá sentido e ilumina o serviço dos dirigentes da Igreja. No caso dos ministros ordenados (bispos, padres e diáconos), mas também no caso de quem quer que esteja à frente dos irmãos (coordenadores, ministros, catequistas, líderes etc.) é preciso rever a forma de presidir, propondo um jeito totalmente original e discrepante do que é normal nas sociedades humanas (“entre vós, não deve ser assim”: Lc 22,26). O sentido da fé dos fiéis (sensus fidei) e o consenso dos fiéis (consensus fidelium), como realidade primeira, como fonte da fé, como experiência pascal, vêm antes da distinção entre docente e discente, vem antes do magistério, da teologia, do planejamento pastoral. Esta realidade primeira da graça do povo de Deus funda a liberdade de crer e de interpretar e o pluralismo teológico. Como na melhor Tradição, o Magistério manifesta-se e usa de sua autoridade somente quando se trata de algo do qual depende a estabilidade da Igreja, um articulus stantis et cadentis Ecclesiae, após processo de debates, com espaço para o sensus fidei (faro do povo) e o intellectus fidei (reflexão teológica), evitando tomar o lugar dos fiéis e dar as coisas prontas. É também esta realidade total e globalizante do povo de Deus que fundamenta a primazia da Igreja local, centro em torno do qual gira toda a eclesiologia conciliar. Pode-se afirmar que LG 26 (sobre a teologia das igrejas locais, as dioceses) é a maior novidade da eclesiologia conciliar e perspectiva promissora para a Igreja do futuro (Rahner). Desde o Concílio Vaticano II, a diocese não pode ser vista como distrito, uma parte da Igreja universal, mas como a Igreja de Deus inteira acontecendo em Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 49 Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II um determinado lugar, “a partir deste fundo e deste centro, e somente dele”, “como o acontecer da própria Igreja” (Rahner). Conclusão Sintetizando…, em termos teológicos, pode-se afirmar que o núcleo de toda esta mudança histórica passa pela teologia da encarnação. Como o Verbo de Deus se fez carne humana, assim a Igreja de Cristo deve fazer-se história, deve perfazer o caminho quenótico do esvaziamento e da pobreza, a fim de poder experimentar a graça e a beleza do encantamento da fé no seu único Fundador, o crucificado ressuscitado. Em termos práticos, isso implica duas atitudes. Ad extra, a disposição para o serviço. Deve-se deixar cada vez mais clara a presença da Igreja no mundo. Não uma presença preocupada com o triunfo e o poder, mas uma presença de profecia e serviço. Ad intra, o princípio da colegialidade. A um mistério de comunhão corresponde um ministério de comunhão, um ministério colegiado. “Em colégio”, “em concílio”, “em comum” (LG 22). O Concílio Vaticano II abriu a Igreja para o futuro. Portanto, o futuro está aberto! O retorno sincero ao Vaticano II nos ajudará a encontrar o caminho da Igreja deste início do novo milênio. Endereço do Autor: Caixa postal 5041 88040-970 Florianópolis, SC Email: [email protected] 50 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Debate sobre a conferência do Pe. Dr. Vitor Galdino Feller Sintetizador: Jonathan Speck Thiesen Jacques* * Graduando do 3º ano de Teologia do ITESC. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013, p. 51-63. Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II Debatedor: Pe. Dr. Elias Wolff Saúdo inicialmente cada participante deste Congresso, os colegas professores, alunos, os membros dos cursos de extensão que estão aqui. Bem vindo Dom Demétrio;, que alegria tê-lo conosco, Professor Ramada. Para mim, pessoalmente, é uma grande alegria ter voltado à casa, após um ano quase-sabático, fora do mundo acadêmico; então retomo as atividades aqui no ITESC/FACASC. Parabenizo também os organizadores do Congresso, entendendo que, de fato, a Instituição serve exatamente para isto: para promover o debate, promover a discussão, promover um estudo que venha aprimorar, não apenas o conhecimento do que é Igreja, mas sobretudo o modo de viver aquilo que nós queremos aprofundar pelo exercício intelectual que fazemos na academia. Começo com uma frase, ou melhor, com uma constatação, do então teólogo Joseph Ratzinger, atual Papa Bento XVI. Ele escreveu num artigo sobre as eclesiologias da Lumen Gentium, um episódio que aconteceu com os bispos da Alemanha, quando na época do Concílio se perguntava qual seria o tema central, ou quais os temas sobre os quais, de fato, o Concílio devia se debruçar. E alguém, um dos bispos da Alemanha, apontou: Deus, Deus é o tema central. De fato, sem dúvida nenhuma, todo o primeiro capítulo da Lumen Gentium trata de Deus, o mistério, que o Vitor já comentou. Quer dizer: o número dois é o projeto do Pai; o número três é a missão do Filho, que realiza o projeto do Pai na história; o número quatro da Lumen Gentium, o Espírito Santo, que fortalece a realização desse mistério, de tal modo que o número cinco, então, se encaminha para o Reino. Enfim, todo o primeiro capítulo parte do mistério. E aqui é que entra o discurso da Igreja. De modo que, a Lumen Gentium, a partir do primeiro capítulo, e em sintonia com o segundo capítulo, Povo de Deus, trata do mistério que se encarna na história. Assim se entende, então, sem dúvida nenhuma, a concepção da eclesiologia, nesse contexto. Agora, três questões, ou três elementos que eu apresentaria para começarmos o debate. O primeiro deles (1), retomando a frase do teólogo medieval de que “o agir segue o ser”, agere sequitur esse. Se assim é, nos perguntamos como a Lumen Gentium, que é a tentativa de aprofundar, explicitar, numa forma mais precisa, a natureza, a identidade e a missão da Igreja, e aqui então a natureza, a identidade e a missão da Igreja entendida muito no espírito da comunhão, entendida no sentido de Corpo de Cristo, Templo do Espírito Santo, e isso tudo vivido na história do povo 52 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Debate sobre a conferência de Vitor Galdino Feller de Deus, então, Igreja como povo de Deus, como é que esta compreensão tão bela, tão linda de Igreja, que aparece na Lumen Gentium, tem tanta dificuldade para se concretizar, para ser efetivada, sobretudo nas suas instituições da história. E aqui, Vitor, eu diria que nós constatamos, sem dúvida nenhuma, uma disfunção institucional, na Igreja do nosso tempo, como em muitos momentos da história. Uma disfunção institucional no sentido de que a Igreja aponta para o Reino, a Igreja aponta para uma realidade de comunhão e participação do povo de Deus, que por si mesmo já suscita a possibilidade de valorização dos ministérios, dos carismas, dos dons que o Espírito concede a cada um, na diversidade própria da ação do Espírito. Agora, essa realidade para a qual a Igreja aponta não se faz tão presente na sua realidade concreta, efetiva, sobretudo pela dimensão institucional. Isso significa que, de algum modo, poucos aceitam a realidade atual da Igreja, como ela se concretiza, ali naquela comunidade paroquial, ali naquela Igreja local diocesana. E, percebendo então o que eu chamo de disfunção institucional, não poucos fazem com que essa realidade acabe num descrédito, ou perca de credibilidade do conteúdo da mensagem, uma vez que o modo de organizar se distancia daquilo que é o essencial, o que ela poderia/deveria apresentar. Assim, então, se relativiza o discurso feito, tanto nos documentos conciliares, como nos documentos atuais, e não poucas vezes também nos discursos que nós fazemos como ministros das comunidades onde atuamos. Um segundo elemento (2), e também como consequência disso, é a questão: como fazer hoje uma eclesiologia consequente, que significa integrar, de algum modo, essa precariedade da Igreja visível ao testemunho do Reino de Deus no qual nós acreditamos e que fortalece a esperança? De que maneira, mesmo nesta situação de carências institucionais, doutrinais e organizacionais, ali se manifesta o Reino de Deus? E agora, tratando aqui do segundo capítulo da Lumen Gentium, Igreja Povo de Deus, com o terceiro capítulo, que fala da hierarquia na Igreja, o segundo capítulo é muito claro ao afirmar que “o conjunto dos fieis é membro com igual direito nas diferentes responsabilidades”. Então aqui as estruturas, sacramentais, jurídicas, instituição de governo, estão a serviço do povo de Deus. Em função disso, a realização dos sínodos diocesanos, dos conselhos de pastoral, conselhos de presbíteros, o exercício do sacerdócio comum dos fieis, o sínodo dos bispos, enfim, tudo aponta para uma corresponsabilidade na missão. Todos os cristãos temos a mesma missão, que é pregar o evangelho, é anunciar a pessoa de Cristo. E há uma corresponsabilidade nessa missão: não são missões Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 53 Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II diferentes. Agora, há um exercício de responsabilidades específicas nesta única missão, a partir da competência de cada um. Mas essa corresponsabilidade deve envolver a todos no exercício, de fato, da colegialidade e da subsidiariedade: que as instâncias maiores respeitem as menores, naquilo que elas tem condições de fazer por conta própria, e acolham a contribuição dessas instâncias. Se assim entendemos, sobretudo no capítulo II da Lumen Gentium, nós percebemos, porém, atualmente, uma eclesiologia muito mais centrada, sem dúvida, no capítulo III da mesma Constituição. Apresenta-se, então, a constituição hierárquica de forma muito mais precisa do que o capítulo II, naquilo que é de competência do povo. E é muito mais operativa também: estatuto visível, organização, designação dos responsáveis para o futuro, instâncias de governo. Hoje, então, se de fato isso ocorre, nós percebemos uma inversão da eclesiologia conciliar. Não apenas uma resistência ao número 12, que afirma o sensus fidei de todo o povo: o conjunto dos fieis não pode enganar-se no ato de fé, pela assistência do Espírito a cada um. A partir do momento em que cada um é fiel àquilo que o Espírito lhe concede, como dom, acontece o consensus fidelium: do bispo, ao último fiel, todos na mesma comunhão da fé. Se há uma concentração da eclesiologia, sobretudo no capítulo III, onde o bispo, com toda a responsabilidade que tem na missão, às vezes torna-se isolado da comunidade dos fieis; ou o clericalismo, cada vez mais acentuado; nós percebemos que a participação do povo, nas instâncias de decisão pastoral, de governo, é mesmo indeterminada, é mesmo muito frágil, de modo que fica, em não poucos ambientes, quase que desnecessária. Então a questão que a gente se coloca é como equilibrar, de fato, neste momento atual de revisitação do Concílio, o II Capítulo, da Igreja Povo de Deus, com o III Capítulo, mostrando que o elemento mais institucional, hierárquico da Igreja, é também povo, e está a serviço deste mesmo povo de Deus. Um terceiro elemento (3) que eu gostaria de apontar, diz respeito à relação entre Igreja local e Igreja universal. O Documento Christus Dominus, ao falar dos bispos, n.11, dá uma definição de Igreja local diocesana como aquela porção do povo de Deus confiada ao Bispo que, junto com seu presbitério, na força da Palavra, da Eucaristia, da assistência do Espírito Santo, então, apascenta, orienta. Entendemos a Igreja local como uma diocese, ou mesmo o conjunto de dioceses de uma mesma região, que tem características próprias, no sentido sócio-cultural, com desafios comuns, uma cultura comum. Igreja particular parece ser uma expressão mais querida, mais usada pelo Concílio, mas talvez menos 54 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Debate sobre a conferência de Vitor Galdino Feller aceita, por dar a impressão de que é parte da Igreja universal, na qual subsiste a una e única Igreja Católica. A história mostra a Igreja local, em regime sinodal, com um metropolita, regulamentando questões como escolha de bispos ou sagração episcopal, divisão das dioceses, normas canônicas, litúrgicas, disciplina do clero, disciplina do leigo, quer dizer, houve um tempo na história em que a Igreja local tinha esta autonomia, vivida na comunhão com outras Igrejas locais. O Vaticano II parece-me acentuar mais a ideia da Igreja universal, como uma comunhão de Igrejas locais. Entretanto, o número 26 afirma que em cada Igreja local a Igreja una e única está presente. Neste ponto, parece-me necessário perceber que há carência de alguma instância entre o exercício do ministério da Igreja universal e o exercício do ministério da Igreja local. A força do primado não está numa pessoa, mas na unidade dos bispos como um todo, no sentido de colegialidade efetiva, que expressa a real comunhão das Igrejas. Assim, a questão que eu gostaria de apresentar na relação entre Igreja local e Igreja universal é como integrar, de modo efetivo, a catolicidade da Igreja una na diversidade das Igrejas locais, sem fazer da Igreja local uma mera repartição administrativa da Igreja universal, ou seja, como integrar o ministério petrino com o ministério dos bispos, que são sujeitos de autoridade na Igreja local; e o ministério petrino como um fortalecimento, uma confirmação deste ministério. Pareceme que, no livro “O Novo Povo de Deus”, citado pelo conferencista, o então teólogo Ratzinger afirmava que há possibilidade, sim, de uma instância intermédia, entre o ministério petrino e o ministério episcopal, que estaria na criação de novos patriarcados, a exemplo das Igrejas orientais católicas, que têm leis próprias, rito litúrgico próprio, patrimônio teológico-espiritual próprio. Nesse mesmo livro, o teólogo falava que não se pode aceitar na Igreja uma uniformidade do direito eclesiástico, uma uniformidade litúrgica, e não há também necessidade de controles das sedes episcopais como próprias do primado petrino. Parece-me que isso não está condizendo com o ministério do exercício do governo universal na Igreja. E por essa razão, que, na Encíclica Ut unum sint, João Paulo II convoca os cristãos do mundo todo, também não católicos, que o ajudem a compreender e a encontrar a melhor forma de governo na Igreja que seja um serviço para todos, no sentido de ser salvaguarda da comunhão, da unidade por excelência, porque isso condiz, sim, com o exercício do ministério petrino. E, por essa razão, é necessário então nós pensarmos, cada vez mais, como fortalecer a unidade na diversidade, tanto na Igreja universal quanto na Igreja local, na relação entre Igreja Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 55 Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II universal e Igreja local, como também na ministerialidade do povo de Deus como um todo. São apenas estas as três questões que proponho para o debate: uma, relativa à disfunção institucional que percebemos na Igreja institucional que não aponta para a comunhão, para o Reino, para a participação; uma segunda questão, que diz respeito mais à compreensão do povo de Deus na Igreja e, portanto, uma eclesiologia que vincule, cada vez mais explicitamente, o II e o III capítulos da Lumen Gentium; e uma terceira, em relação à Igreja universal e à Igreja local. Resposta do Conferencista Pe. Vitor: Muito obrigado, Pe. Elias, pelas suas colocações. Vou refletir sobre o que você expôs. 1. Você pergunta, a partir da frase o agir segue o ser, como é que essa beleza da Igreja, apresentada em Lumen Gentium, pode se concretizar? Como superar a dificuldade para que se concretize essa beleza aí anunciada? Você fala da disfunção institucional, na nossa realidade concreta. Eu tenho para mim que, embora tenhamos que falar de Igreja, que é o nosso tema aqui, não podemos cair numa espécie de eclesiocentrismo, ou seja, de ficar falando demais da Igreja. Porque senão, a gente fica falando daquilo que é Instituição, etc e tal, e se esquece de falar do mistério que está dentro da Instituição, da graça que está dentro da nossa proposta. Tenho para mim que somos muito pelagianos. Bom, aí eu tenho que explicar mais uma vez, porque eu já tinha falado antes o que é pelagianismo... O pelagianismo, lá dos anos 300 para 400, foi a proposta de um monge irlandês que achava que Deus concedeu para o ser humano as condições para que ele, por sua própria razão, faça as coisas sem precisar mais da graça de Deus. No fato de ter sido criado, já tem tudo, não é preciso a graça de Deus. Santo Agostinho reagiu a isso dizendo que nós precisamos sempre da graça de Deus para libertar a nossa liberdade, cativa do pecado, e podermos então deixar que Deus opere em nós. Eu entendo que, e neste ponto estou muito de acordo com um discurso de Ratzinger já bem antes de ele ser Papa, e agora também como Papa ele insiste muito nisso, que nós temos que dar mais crédito para a graça de Deus, ao mistério de Deus, ao divino de Deus que está presente em nós e que muitas vezes nós obscurecemos com nossas preocupações, por demais humanas: carreirismos, funções, títulos, cargos... Imagino que isso não seja fácil, pois temos atrás de nós dois mil anos de 56 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Debate sobre a conferência de Vitor Galdino Feller história, e todos nós sonhamos assim: estar na frente, poder, homenagens etc. Aquela crítica que Jesus fez aos fariseus “a ninguém chameis de Mestre” ainda vale para nós, hoje. Então, quando nós entramos num “pastoralismo”, de muita ação, muita correria, muita agenda, muita sobrecarga, e eu estou falando de mim, de você, de todos nós que corremos demais, e muitas vezes não explicitamos corretamente o porquê disso tudo, o porquê dessa paixão, desse elã; o que nos faz mesmo estar aqui hoje, por exemplo. Se a gente não esclarece, não deixa claro que é Deus, tudo o que nós fazemos perde a credibilidade. Dom Murilo gostava de citar um bispo colombiano, cujo nome esqueci, mas que dizia o seguinte: “os Santos nunca falharam em ação pastoral”. Não sei se é verdade, mas eu acredito... Porque apresentavam Deus, testemunhavam Deus, o mistério de Deus. Eu acho que, às vezes, ficamos muito no exterior, também no exterior do teológico, também no exterior do eclesiológico, também na crítica da Instituição, e com isso eu não estou desfazendo aquilo que falei no começo (aliás, falei exatamente do mistério encarnado no povo de Deus). Então, eu acho que nós relativizamos demais a nossa mensagem e perdemos credibilidade, quando não absolutizamos essa verdade, quando não somos pessoas convertidas a Deus, ao Cristo, a Jesus de Nazaré, e não à Igreja, que é sempre uma mediação. Muitas vezes a gente corre o risco de defender a Igreja (e é claro que devemos defender a Igreja), mas fazê-lo por causa de Jesus e, às vezes, justamente por causa de Jesus, temos que ser críticos da mediação eclesial, críticos de muitas maneiras como a Igreja se manifesta. Nós somos uma família, e na família precisamos, muitas vezes, lavar roupa suja. O problema é que a gente muitas vezes sofre demais, e se esquece de voltar sempre às fontes primeiras... 2. Segundo ponto, a relação entre o Capítulo 2 da Lumen Gentium, Igreja Povo de Deus, e o Capítulo 3, da Hierarquia. Ou seja, uma eclesiologia consequente, de corresponsabilidade, de colegialidade, que supere aquela (uma) inversão que, possivelmente, esteja acontecendo, de valorizar mais a hierarquia, e não tanto o povo. É um caminho que nós temos que percorrer e que começa conosco, nas comunidades, nas pastorais, nos movimentos, nas paróquias. Às vezes, a gente espera muito que as coisas mudem a partir de cima: a partir de cima as coisas não vão mudar! As coisas vão mudar a partir de baixo, ou seja, quando nós começarmos a fazer a eclesiologia conciliar acontecer onde a gente vive; quando nós começarmos a promover espaços para que os carismas, os ministérios, os dons do povo de Deus, das pessoas, dos jovens, das Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 57 Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II mulheres, das crianças, dos idosos, nessa diversidade toda de manifestação eclesial, que isso tudo se torne realidade, que isso tudo tenha espaço de manifestação. Gosto muito da comparação do padre com o regente de uma orquestra: o regente (o padre, no caso) de uma orquestra não precisa saber tocar cada instrumento. Talvez ele não saiba tocar nenhum instrumento. Mas ele sabe a hora que entra cada um dos instrumentos, todos os instrumentos, pois ele rege a orquestra. Quem está à frente da comunidade, qualquer pessoa que seja, tem que ter essa capacidade de regência, de descobrir quais são as carências, para cobrir essas carências, resolver essas carências com os carismas. Eu creio que o Espírito Santo não vai deixar, não deixa faltar carismas na sua Igreja, para resolver as carências. Nosso problema é que estamos muito apegados, às vezes, ao que já fazemos, ao que já sabemos, então achamos que a solução para a carência disso, daquilo, é padre! E talvez não seja o carisma que o Espírito Santo esteja suscitando pra resolver essa carência. Pode ser que o Espírito Santo esteja sugerindo outros carismas. Bom, recordei agora, e é uma ideia insistente na minha cabeça, que gostaria de colocar aqui. Comblin dizia: “será que o caminho da mudança da Igreja não vai passar pelos leigos?” Porque ele dizia que, dos padres, não dá para esperar mais nada! Infelizmente, quem está falando é um padre! Mas também não acredito que a gente tenha que ser assim tão ou ... ou. Mas acreditar nos carismas dos leigos, o que não é fácil. De manhã eu até falei, assim, rapidamente, que nós quisemos introduzir na Arquidiocese a Escola de Ministérios, até pode ser que fomos ousados demais e por isso houve muita reação, mas não foi fácil. É preciso ter essa paciência histórica, o que não significa cruzar os braços, mas é fazer acontecer: fazer acontecer nos ambientes que nós vivemos essa colegialidade, essa corresponsabilidade. Nós também somos membros da hierarquia, nós, padres. Não somos bispos, mas somos auxiliares próximos, e quanta coisa a gente pode promover, como por exemplo, um encontro como este aqui. 3. Sua terceira colocação, a relação entre Igreja local e Igreja universal, que foi até tema de um debate teológico vivo, dinâmico, entre Ratzinger e Kasper, dois cardeais da Igreja, alemães, porém cardeais da Igreja romana, em Roma, porque um era da Congregação para a Doutrina da Fé e o outro era do Ecumenismo, “brigando”, teologicamente, com artigos – um contra o outro: Ratzinger defendendo o primado da Igreja universal e Kasper defendendo o primado da Igreja local. O que é que vem antes? Vem antes a Igreja universal? Ratzinger dizia: primeiro a Igreja universal, numa visão mais platônica. E Kasper dizia: não, 58 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Debate sobre a conferência de Vitor Galdino Feller primeiro vem a Igreja local. A comunhão das Igrejas locais é que faz a Igreja universal. Bem, o debate terminou, bateram palmas para os dois, mas não sei se a gente conseguiria ter uma solução... Acho que é um mistério de Deus! Digo não brincando, mas para teologizar mais isso, num sentido trinitário. Na Trindade nós temos um e três: nós temos um princípio de unidade, que é o Pai..., princípio monárquico; e um princípio da diversidade, que não é só do Filho e do Espírito Santo, é diversidade dos três, o princípio da sinodalidade. E isso é bem interessante, porque aparece no número 22 da Lumen Gentium. Como não falei aqui, mas em outras oportunidades já falei, o Concílio Vaticano II tentou responder também à pergunta sobre o lugar dos bispos, porque o Vaticano I havia insistido muito no lugar, na missão do Papa. [...] E o Vaticano II tentou salientar o episcopado como sacramento, a colegialidade episcopal, e lá no número 22 começa a dizer “os bispos são sucessores dos apóstolos porque Jesus Cristo escolheu apóstolos... e portanto os bispos, como colégio episcopal... mas, o Romano Pontífice detém o poder universal, porque o Romano Pontífice é o sucessor de Pedro..., mas o governo do Romano Pontífice deve ser equilibrado com o poder dos bispos, porque eles também têm solicitude pela Igreja universal, mas....”, tem lá uns 4 ou 5 “mas”. Isso tudo revela a dificuldade que temos de uma ideia clara e distinta sobre este mistério, que é o mistério da Santíssima Trindade encarnado na Igreja, nesse princípio da unidade e da diversidade da Igreja. Agora eu acho que, em termos práticos, o que está acontecendo é que o princípio da unidade tem-se tornado muito forte. Concretamente falando, o polo “monocêntrico” foi muito forte no 2º milênio e é preciso que haja mais espaço para a diversidade, para a colegialidade dos bispos. Por que no Sínodo dos Bispos os bispos não podem falar tudo o que queiram e a mensagem final não é uma mensagem dos bispos, mas uma Exortação Apostólica do Papa? Por que o Sínodo dos bispos não tem valor decisório, mas apenas consultivo? Afinal de contas, são sucessores dos Apóstolos. Então, este peso da unidade está ainda muito forte. Acho que ele precisa ser mais desequilibrado com o princípio da diversidade, que nós podemos fazer acontecer entre nós, por exemplo numa diocese: o bispo é o “monarca”, e os padres, conselho de pastoral, conselho de formadores, conselho presbiteral, conselho administrativo, são o polo da diversidade e podem desequilibrar muito o poder monárquico de um bispo. E a gente poderia trabalhar mais nisso (estou falando “desequilibrar” no sentido positivo). Assim, também, desequilibrar o poder monárquico do Diretor, do professor numa sala de aula, do coordenador de uma pastoral. Evitar Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 59 Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II todo o tipo de concentração e, quem está à frente, não concentrar, mas ter essa capacidade de valorizar a diversidade. Participação de Carlos Lucas Besen, professor. Vou falar pouco. Não sei se todos sentiram este problema, mas eu senti: tem a Igreja local, com o bispo, os padres, e tem as paróquias; os diáconos, que dão assistência aos padres. Estou sentindo, ultimamente, na Igreja, que as paróquias estão se pulverizando. Por exemplo, “eu vou naquela paróquia porque lá o padre é ‘assado’”, “o outro é assim”, então as paróquias estão perdendo um pouco a identidade da comunidade local, ali, no chão. Isso é um problema que eu sinto muito. Então as pessoas, ao invés de ficarem na sua paróquia, vão em outras. Eu não sei qual é problema que está acontecendo, mas este é um fenômeno muito recorrente, nesse momento, na Igreja aqui local, não sei nas outras cidades. É um ponto que eu gostaria de colocar, porque não foi abordado. Para mim, o chão da Igreja está na Paróquia. Participação do Pe. Valter Goedert, professor do ITESC/FACASC. Pe. Vitor, parabéns; Pe. Elias, muito bem. Você, Pe. Vitor, me fez recordar duas coisas, e uma até você citou rapidamente: eu me lembro que o professor Salvatore Marcíli, que foi professor meu em Roma e foi perito do Concílio (na Sacrosanctum Concilium), monge beneditino, ele nos dizia uma vez em sala de aula que, para acolher o Concílio, não basta se adaptar, é preciso se converter. Ele tinha toda a razão. Pois se trata de uma mudança de mentalidade e não se muda a mentalidade de qualquer forma – cansou da roupa, troca! Ou volta à antiga, como está acontecendo! Eu acho muito forte essa colocação dele, que já é falecido... E também uma coisa que você lembrou, Vitor, do discurso de Paulo VI no final do Concílio Vaticano II: a partir desse discurso, dei um encontro em Brasília para as escolas diaconais. Acho lindo o que ele diz lá: “a Igreja não pode ir para o mundo com medo, como se o mundo fosse um inimigo”, como aconteceu durante tanto tempo, e você, Vitor, lembrou. Nós, continua Paulo VI, “temos de ir para o mundo como Cristo veio para o mundo: para se encarnar, dialogar e salvar”. 60 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Debate sobre a conferência de Vitor Galdino Feller Participação do Pe. Ney Brasil, professor do ITESC/FACASC. Apenas duas coisas: a primeira, diante da beleza do magnífico resumo que o Pe. Vitor apresentou da Lumen Gentium, vem à tona o desejo de conhecer sempre mais o mistério de Deus, o mistério da Igreja. Daí a importância de os leigos e as leigas fazerem teologia, como está começando, um pouco por toda parte, ainda timidamente. A segunda, para conhecerem a Igreja e conhecerem a teologia, talvez o caminho relativamente fácil é conhecer a história da Igreja. E temos agora duas obras de história da Igreja publicadas por um professor desta casa, Pe. José Besen, “histórias da Igreja” muito interessantes, de cerca de 300 páginas cada uma, realmente acessíveis, e ao mesmo tempo uma introdução preciosa para a eclesiologia, através da história. A terceira observação, é sobre a Igreja particular. A Igreja particular é um problema bastante complicado, principalmente na prática. Mas eu, pessoalmente, penso que, do ponto de vista inclusive bíblico, vendo as igrejas do Apocalipse, as igrejas dos Atos dos Apóstolos etc, não se entende uma Igreja particular gigantesca, como é o caso da nossa Arquidiocese querida, de Florianópolis, com mais de 1 milhão e meio de habitantes atualmente...Convenhamos que é uma dimensão grande demais para sentir-nos uma Igreja particular, visto que a Igreja particular deveria ter dimensões menores, que possibilitassem um mais próximo relacionamento entre o Bispo e os fiéis. Respostas do Pe. Vitor: Professor Carlos Lucas Besen falou das paróquias: eu não gostaria que fosse entendido aquele princípio de unidade de que eu falei – que o Papa exerce o princípio da unidade na Igreja universal; o episcopado, o colegiado dos bispos exerce o princípio da diversidade – e, analogamente, na diocese, o bispo exerce o princípio monárquico da unidade e os conselhos, presbiteral, de formadores, pastoral, administrativo exercem o princípio da diversidade. Caros párocos: isso não vale para a paróquia! Pároco não exerce o princípio monárquico; pároco, teologicamente falando, não é, na sua paróquia, monarca. Por quê? Porque a paróquia, por mais que seja uma Igreja local, ela é sempre relacionada com a Diocese. Não se pode, portanto, falar analogamente também da paróquia. É claro que, em termos pastorais, não em termos teológicos, o Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 61 Lumen Gentium: pilar eclesiológico do Concílio Vaticano II pároco, na paróquia, também exerce o princípio da unidade. Então vamos falar em termos pastorais, depois eu volto para os termos teológicos. Em termos pastorais, o pároco exerce o princípio da unidade; o que tem acontecido hoje é que nós, padres, eu me incluo também, nós, padres, não estamos sabendo exercer o princípio da unidade. Quero ser mais incisivo: nós não estamos sabendo exercer a autoridade, nós estamos com medo de exercer a autoridade. Exercemos o poder, o tacape, mas não a autoridade. Porque, para exercer a autoridade tem que ter sabedoria, tem que ter conhecimento, tem que ter fundamentação teológica, bíblica, principalmente espiritual, e principalmente santidade. Porque a autoridade, do latim augere, significa promover, fazer crescer, estar por baixo para promover tudo o mais. E para isso tem que ter paciência, empenho, sacrifício, disposição, não é? Quando você quer ser alguém igual aos outros, colocar-se no mesmo nível dos outros, você está fugindo do seu carisma. Então, o carisma de um pároco, ou de um vigário paroquial, é o de alguém que tem que exercer esse princípio de unidade. [...] Quanto às as nossas paróquias, o fato de estarem perdendo muito este centro vital, de pastoral, de liturgia, do ministério da palavra, isso se deve também a dois fatores, penso eu: primeiro, o fator da urbanização, onde cada um escolhe a paróquia onde deseja ir, e isso pode esfacelar muito o modo de as pessoas se entenderem membros da Igreja, pois vão aonde querem e gostam, aonde podem estacionar melhor, ao padre que faz coisas mais agradáveis, ou pela sua teologia, enfim, se pode escolher. E tem também o fator, hoje, dos Movimentos, que também retiram as pessoas da paróquia para oferecer uma proposta própria. Acho que devemos saber articular isso tudo, porque eu não sou contra os Movimentos, mas penso que, em termos de diocese, [...] o bispo deve promover a unidade entre as pastorais, os organismos, os serviços e também os Movimentos, de modo a fazer acontecer, o melhor possível, que as paróquias descubram um modo novo de ser paróquia, [...], por exemplo, como “rede de comunidades”. Pe. Valter, também acho que é necessário uma conversão para acolher o Concílio. Apreciei esta sua colocação. Porque, às vezes, a gente fica querendo muita novidade e, como eu comecei dizendo, está dada a resposta para as crises da Igreja, hoje: o Concílio Vaticano II deu muitas respostas, abriu muitos caminhos, ofereceu muitas pistas. É claro que, para isso, é preciso conversão: conversão espiritual, mas também conversão intelectual e, como fala o Documento de Aparecida, conversão pastoral [...]. Saiu agora, pelas Paulinas, uma nova tradução dos documentos do Concílio Vaticano II, com todas as falas, discursos, 62 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Debate sobre a conferência de Vitor Galdino Feller inaugurais e finais, de João XXIII e de Paulo VI. É muito interessante isso, também, para contextualizar o Concílio e essas falas. Sobre não ter medo do mundo, Paulo VI disse: “A Igreja, finalmente, colocou-se diante da grande estatura do mundo, a estatura terrível do mundo”. “O que aconteceu?” ele pergunta: “uma oposição, um conflito, uma guerra? Não. Um diálogo aconteceu”. E a Igreja é chamada a descobrir, você falou, Pe. Valter, a necessidade de ela entrar neste mundo para poder evangelizar, como fez Jesus Cristo. Pe. Ney, acabei de dizer, claro, que o que nós estamos facilitando, na abertura da FACASC, é exatamente este conhecimento da teologia, da história da Igreja, que é ótimo, que é necessário para se poder entender melhor a realidade eclesial. Em 2000 anos, a gente percebe muito bem que só pelo Espírito Santo, e não pela força das pessoas... é que a Igreja chegou até aqui. Quanto à nossa Igreja particular “muito grande”: bom, vamos continuar lutando, não é Pe. Ney? Quem sabe um dia a gente consiga fazer com que haja mais dioceses, mais pequenas Igrejas particulares, nas quais o relacionamento entre hierarquia e povo se torne mais próximo, mais fraterno, mais evangélico. Debatedor, Pe. Elias: Duas palavras ainda. Primeiro ao Maestro, Carlos Lucas Besen, lembrando que, de fato, historicamente, a organização da paróquia assumiu o modelo da sociedade feudal, que se marcava pela territorialidade, e isso está em questão. O Documento de Aparecida compreende que o essencial, na Paróquia é, de fato, a experiência comunitária: então, ela é uma comunidade de comunidades, e temos que fortalecer exatamente isto. E a Assembleia dos Bispos do Brasil no ano que vem – foi decidido na semana passada, na reunião do Conselho Pastoral Episcopal, em Brasília – será exatamente sobre o tema da Paróquia, o que se quer como paróquia, uma “nova paróquia”, comunidade em missão, num ambiente cada vez mais urbano. E Pe. Valter, fala-se hoje de um terceiro momento da recepção do Concílio. Pe. Vitor apresentou dois momentos: de 1965-1985 e de 1985 até agora... Esse “terceiro momento”, não seria mais o de uma recepção meramente jurídica, administrativa, institucional, mas exatamente uma recepção a partir de convicções. Eu acho que isso é que faz, de fato, a Igreja caminhar. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 63 REMINISCÊNCIAS DO VATICANO II (1) Dom Clemente Isnard Durante as sessões do Concílio, os bispos brasileiros, hospedados na Domus Mariae, tinham quase cada semana uma conferência à noite, promovida por um perito, Pe. Antônio Guglielmi1. Convidava ele para essas conferências os maiores luminares do Concílio e, sobretudo, os mais famosos peritos. Foi assim que ouvimos o Cardeal Bea, o Cardeal Suenens, o Arcebispo melquita Edelby, Hans Küng, Karl Rahner, Diez Alegria, Jean Daniélou, Henri de Lubac, Yves Congar etc etc. Foi uma verdadeira reciclagem para todos nós, que devemos agradecer ao zelo desse padre. As conferências na Domus Mariae começaram a ser frequentadas por pessoas de fora, Bispos ou não, e se tornaram tão conhecidas em Roma que, um dia, o Secretário geral do Concílio, o Arcebispo Felici, se julgou no dever de esclarecer, em plena aula conciliar, que essas conferências “não eram oficiais ou autorizadas”. Sim, não eram oficiais, mas eram muito interessantes e proveitosas, embora fossem sempre na linha de abertura, que não agradava ao Secretário geral. [...] Quando se tratou, na terceira sessão, do Decreto sobre os padres, o bispo brasileiro Dom Fernando Gomes, fez um discurso memorável, que arrancou aplausos do plenário, aplausos que eram proibidos pelo regimento. Apesar da proibição, relembrada mais de uma vez, grandes oradores como Máximos IV e De Smedt, foram aplaudidos depois de suas intervenções. Fernando Gomes propunha a rejeição do esquema apresentado, demasiado resumido, e pedia uma quarta sessão do Concílio para o ano seguinte, que se sabia não ser do desejo do Papa. Parece que Paulo VI desejava encerrar o Concílio em 1964, mas os Bispos viam que isso não era possível. À medida que o Concílio prosseguia, os Bispos iam se tornando mais maduros e livres, num bom sentido. Os aplausos a Fernando Gomes, o bispo brasileiro que mais se distinguiu por esse discurso na aula conciliar, parecem ter decidido a rejeição do mencionado esquema, motivando assim a redação do atual decreto Presbyterorum Ordinis. E devem ter contribuído para a convocação da quarta sessão em 1965. Exemplo dessa liberdade crescente dos bispos foi o que aconteceu com o primeiro esquema da Ad Gentes. O esquema não agradava, mas o Cardeal Agagianian, um dos moderadores do Concílio e prefeito da “Propaganda Fide”, desejava muito que servisse de base para as deliberações. O Cardeal obteve que Paulo VI, na aula conciliar, falasse uma palavra em favor do esquema, dizendo que poderia ser melhorado. Mas nem a intervenção do Papa adiantou. O esquema foi rejeitado e, graças a isso, temos hoje o excelente decreto Ad Gentes, um dos mais maduros do Concílio. [...] (Excerto do capítulo “Reminiscências do Concílio”, do livro “Memórias que anunciam o Futuro”, em homenagem a Dom Clemente Isnard, Recife, 2012, pp. 237-238) 1 Pe. Guglielmi, da arquidiocese de Florianópolis, formado no Instituto Bíblico, depois professor na PUC do Rio e na Universidade de Juiz de Fora, faleceu em sua terra natal, Içara, em 1999. Resumo: Dois documentos são importantes no diálogo conciliar sobre os leigos: Lumen Gentium, que fornece o pano de fundo eclesiológico para que a questão dos leigos possa emergir e, segundo, a Apostolicam Actuositatem, que impulsionou posteriormente o debate nas questões que se levantam sobre os ministérios leigos, sobretudo num país como o Brasil. Nós somos fruto de um movimento renovador, o maior talvez em toda a história da igreja. O laicato desejava ardentemente uma maior participação na vida e missão eclesiais, e esse desejo foi abundantemente contemplado nos documentos conciliares. O Concílio procurou superar a definição do leigo pelo negativo, como “aquele que não é padre”, “que não é ordenado”, e consagrou a valorização fundamental do batismo, que insere numa unidade anterior à diversidade das funções, carismas e ministérios. Há um retorno, portanto, à eclesiologia do Novo Testamento, que apresenta todo o povo de Deus como santo e sacerdotal. A Apostolicam Actuositatem, tratando da missão dos leigos, sublinha sua “índole secular”, o fato de que eles são chamados, como fermento, a exercerem seu apostolado no meio do mundo. A ministerialidade, porém, é estatuto de todo o corpo eclesial, não apenas de alguns de seus segmentos. Entre as várias realizações do pós-Concílio, que apontam para novo paradigma, destacam-se, entre outras, a admissão dos numerosos ministros e ministras leigos, bem como o aumento do número e qualidade dos teólogos leigos e leigas. Entre os desafios pendentes, o fato de que tantas comunidades não podem celebrar dominicalmente a Eucaristia: não está na hora de repensar a questão dos ministérios? Abstract: Two documents of the Council are important concerning the ministry of laity in the Church: Lumen Gentium providing the reader with the ecclesiological background of all the issues relating to this activity, and the text of Apostolicam Actuositatem which gave raise to the debate about the performance of the tasks involved, especially in Brazil. Indeed, we are the outcome of this innovating movement, perhaps the most influential in all the history of the Church. In fact, the laity had already manifested its ardent desire to be actively involved in the life and the ecclesial tasks, as it is abundantly mentioned in the documents of the Council. Thus, it is imperative that the negative definitions of laity as “those who are not priests”, that is, “not ordained to the priesthood”, be eliminated from the vocabulary. A positive formulation should be adopted from now on based on the consecration and fundamental enhancement of God’s grace bestowed in baptism. It is a much more exalted one than the definition based merely on the diversity of functions, charismas, and ministries. Therefore, this perspective goes back to the ecclesiology of the New Testament which presents the people of God as a holy and priestly community of the faithful. The document Apostolicam Actuositatem dealing with the tasks of laity in the realm of its “secular character” insists on its matrix as an effective leaven perceived in the world through the lay apostolate. Another topic should be treated as well which refers to the whole body of ministers being entrusted with the duty of ministry in the Church, not just a few segments, since all the roles have a collective practicality and co-responsibility. One of the major challenges prevailing among the issues to be treated concerns the diminished number of Churchgoers attending Sunday Mass and the absence of quite a few from receiving the Eucharist. There is indeed an urgent need for radical revision in this area of ministries in the Church. Da Apostolicam Actuositatem aos ministérios leigos Conferência de Maria Clara Bingemer Auditório do ITESC, 03/09/2012, 08h Sintetizador: Murilo Guesser * Graduando do 2º ano de Teologia da FACASC. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013, p. 65-72. Da Apostolicam Actuositatem aos ministérios leigos É bom ver a teologia procurada por tantas pessoas, enfrentando as novas grandes questões. A demanda de leigos estudando teologia, um fenômeno interessante que entrou na academia. Os leigos trazem perguntas diferentes, pois eles vêm de situações de vida variadas, e isso é enriquecedor. A inserção de outras denominações religiosas estudando juntas num mesmo curso de teologia, também é fruto do Concílio Vaticano II. Dois documentos são importantes no diálogo conciliar sobre os leigos: Lumen Gentium, que fornece o pano de fundo eclesiológico para que a questão dos leigos possa emergir e, segundo, a Apostolicam actuositatem, que impulsionou posteriormente o debate nas questões que se levantam sobre os ministérios leigos, sobretudo num país como o Brasil. A celebração do jubileu da abertura do Concílio nos convida a olhar esse importante acontecimento que foi um divisor de águas no debate eclesiológico. Lamenta-se que os jovens hoje não sintam essa realidade da mudança eclesiológica que de fato ocorreu. Esse Concílio, inesperada primavera, entrou com seu sopro renovador e foi sendo assimilado, ainda que com dificuldade, desde seus inícios. Nós somos frutos de um movimento renovador, o maior talvez em toda a história da Igreja. O papa João XXIII, na tentativa de responder a uma demanda latente dentro da Igreja, sentiu a necessidade de renovação. O pontífice surpreendeu o mundo, em 1959, com a convocação do Concílio. Seu objetivo era repensar e renovar os costumes do povo cristão e adaptar a disciplina eclesiástica às condições do mundo moderno. Havia inúmeras questões no âmbito mundial que a Igreja não mais podia acompanhar, considerando a velocidade das transformações, e no entanto era preciso caminhar, dialogar com esse mundo novo. A palavra aggiornamento, expressava o espírito e os frutos que se pretendia alcançar. Na visão profética de João XXIII, o Concílio seria como um novo Pentecostes, ou seja, uma profunda e ampla experiência espiritual que reconstituiria a Igreja Católica não somente como instituição, mas como movimento evangélico dinâmico. As estruturas já eram sólidas, o que se queria recuperar era esse sopro, esse carisma, esse movimento que parecia estar travado. O Concílio buscou olhar o mundo com o olhar reconciliado, atento à sua complexa realidade, não mais um mundo visto como lugar de pecado, de onde se deve fugir para encontrar a Deus, mas o mundo visto com seus conflitos, seus males, e no entanto amado por Deus. 66 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Maria Clara Bingemer O Concílio foi marcado pelo aspecto positivo e participativo, não buscando decidir apenas questões dogmáticas e teológicas, mas voltando sua atenção para problemas sociais e econômicos que interpelavam também a Igreja, autênticos desafios pastorais que pediam uma resposta eclesial. A Igreja conciliar propô-se usar mais de misericórdia e menos de severidade. Isso significava ir de encontro às necessidades dos tempos. Maior participação dos leigos O laicato já desejava havia algum tempo uma maior participação na vida e missão da Igreja, e esse foi um dos temas importantes dos quais tratou o Concílio. No Concílio deu-se a explosão oficial da emergência dos leigos na Igreja e o assumir por parte do magistério da Igreja uma teologia do laicato que já vinha sendo sistematizada por grandes teólogos europeus. Por exemplo, Yves Congar, dominicano, escreveu antes do Concílio o livro “Balizas para uma teologia do laicato”, que já coloca as bases para o que vai ser a novidade que o Concílio vai trazer e oficializar. Os documentos conciliares vão ser pródigos em reflexões sobre os leigos, em tomadas de posição com respeito à sua importância para a Igreja hoje. A partir dos documentos mencionados, queremos examinar as interpelações que eles lançam à teologia hoje. De fato, somos desafiados a ir mais longe que a própria letra do Concílio. O Concílio fala muito e positivamente dos leigos. Isso tem um antecedente, pois os movimentos leigos apostólicos eram muito ativos nas décadas anteriores ao Concílio, com destaque para a Ação Católica. Esse famoso movimento, iniciado na França, de forte garra apostólica, no Brasil teve uma atuação marcante até inícios da década de 60. Com a vitória do golpe militar, em 1964, ficou bastante combalido, porque muitos de seus militantes, não sentindo apoio para a sua luta em prol dos direitos humanos e da transformação da sociedade, migraram para a luta armada, e muitos foram presos, torturados. Tudo isso é um antecedente que chamava a atenção da Igreja para ver a necessidade de voltar-se para a questão dos leigos, pensando uma eclesiologia mais integrada. Nesse sentido, o Concílio procura superar a definição do leigo pelo negativo, como “aquele que não é padre”, “não é ordenado” etc. Sublinhando essa negatividade, criou-se no imaginário eclesial uma visão de cidadão de segunda categoria, de menos importância. O Concílio buscará dar uma caracterização mais positiva do leigo Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 67 Da Apostolicam Actuositatem aos ministérios leigos enquanto membro do povo de Deus, batizado, valorizado enquanto membro ativo e responsável pela construção do tecido eclesial. O Concílio proclama e consagra uma definição de Igreja na qual a condição cristã comum, pelo sacramento do batismo, é anterior à diversidade de funções, carismas e ministérios. O cristão é, antes de tudo, membro da comunidade eclesial, do povo de Deus, onde todos são membros plenos, não há cidadão de segunda categoria. Já a Igreja primitiva aprendeu de Jesus a abrir as portas a todas as classes de pessoas. O Concílio veio afirmar que no povo de Deus todos são membros iguais, o batismo traz em si essa dignidade, essa graça comum a todos. O batismo não é mais visto, então, como detergente eliminador de manchas, mas como incorporação a Cristo. O Concílio revaloriza a comunidade, contrastando com as teologias verticalistas e hierarquizantes, em prol de uma comunidade mais dinâmica, mais circular, onde emergem os carismas suscitados pelo Espírito Santo para o serviço do todo da comunidade. A percepção do leigo, na Lumen Gentium, afirma que os leigos não são súditos ou meros servidores. (LG 32) No Novo Testamento O Novo Testamento é uma bela chave de leitura do laicato. Ele fala de discípulos, cristãos, fieis, de crentes, eleitos, santos, sem distingui-los entre leigos e não leigos. O próprio Jesus não aparece como um sacerdote, mas um secular, sem nenhum poder oficial na sua religião. Ele questiona a maneira inclusive como sua religião era vivida. Há uma diversidade de ministérios no texto neotestamentário. Um só é o Espírito, mas vários os carismas e ministérios que dele decorrem. Todavia, não se pode dizer que a Igreja das origens fosse anárquica, ou carecesse de uma mínima organização ou funcionasse apenas num entusiasmo ardente com os olhos voltados para a Parusia iminente. No entanto, para as Igrejas do Novo Testamento, todo o povo de Deus é consagrado e sacerdotal. A Ideia de Igreja é sublinhada enquanto elemento congregacional e assembleístico da comunidade dos crentes. A ecclesía neotestamentária é essa comunidade carismática e ministerial toda ela. O ministro é um batizado, discípulo de Jesus, identidade fundamental, que participa da comum dignidade cristã, ainda que exerça funções específicas como ministério. Nesse sentido, todo cristão é ungido com a unção do Espírito, e não existem grupos especialistas e privilegiados à parte da totalidade dos fieis. 68 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Maria Clara Bingemer A hierarquização se dá na virada constantiniana, nasce depois, séculos depois. Talvez a confusão do conceito “leigo” seja marcada pela influência do mundo grego helenístico, que remetia a “plebe”, os que não sabem, apenas seguem. Incorporando em parte essa concepção, ao se expandirem para o mundo, as primeiras comunidades foram absorvendo a identificação do cristão comum com uma conotação de subordinação, de passividade. Isso dificultou, ao longo do tempo, e dificulta até hoje, manter a consciência da comum dignidade cristã entre os que são e os que não são ministros ordenados. Essa condição inferior dos leigos ao longo da história da Igreja é mais sociológica do que teológica. A teologia que afirma existir um só povo é afetada pela sociologia que distingue e subordina os leigos, como plebe, a um grupo que dirige e que governa. Tais ambiguidades conceituais já são debatidas por Santo Agostinho na sua célebre afirmação: “para vós sou o bispo, convosco sou cristão”. Os padre conciliares percebem, com a ajuda dos teólogos assessores, que a dicotomia falseava a revelação neotestamentária, pois segundo esta, todos os membros são sacerdotes porque participam do sacerdócio único de Cristo. As consequências teológicas e eclesiais dessa dicotomia são graves, pois levam a uma desqualificação do sacerdócio comum dos fieis, além de uma minimização da importância do batismo em favor da consagração da Ordem e dos votos religiosos, reduzindo o leigo a mero leigo, igreja “discente”. Segundo Congar, isso é evidente, considerando as três posições que o leigo assumia dentro da Igreja: 1. Sentado, recebendo a catequese que o padre transmite; 2. Ajoelhado, assistindo à Missa celebrada de costas, 3. Com a mão no bolso para contribuir com as missões, a quermesse... Isso é uma minimização da vocação cristã, intolerável. Ainda hoje, quando se fala de Igreja, facilmente atribuem-se ao substantivo os “sufixos” padres, bispos, uma hierarquia, uma compreensão distorcida de clero, o letrado e instruído, e leigo o iletrado, sem poder de decisão na Igreja. No entanto, o povo de Deus é a base da qual tudo deriva e sobre a qual a própria Igreja se edifica. O batismo é sinal de comum pertença a Cristo, selo comum de pertença ao povo de Deus. Missão dos leigos Ao procurar uma identificação do leigo, o Concílio o faz centrando na sua secularidade: o leigo é aquele que deve construir a cidade dos homens, tratar do que é profano, deixando o sagrado aos cuidados Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 69 Da Apostolicam Actuositatem aos ministérios leigos do clero e dos religiosos. Nos documentos conciliares coexistem duas eclesiologias: uma mais jurídica e outra de comunhão. Embora a segunda se tenha imposto sobre a primeira, o fato de coexistirem ambas, tem marcada influência sobre outros temas eclesiológicos conexos. O tema do laicato na Igreja é um deles. No capítulo IV da Lumen Gentium, número 31, o Concílio entende pelo nome de leigos todos os cristãos, exceto os membros da ordem sacra e do estado religioso aprovado pela Igreja. Ainda que a definição comece de forma positiva, “todos os cristãos”, e a constituição Lumen Gentium afirme a igualdade fundamental dos batizados do povo de Deus, sua continuação vai seguir um caminho mais jurídico, ainda marcado pelo negativo. Isso impacta sobre a compreensão da missão do leigo. É “própria e peculiar dos leigos”, a característica secular (LG 31). Os leigos são situados no mundo, no século, e ali está a sua missão apostólica. Ao dizer isso, a Lumen Gentium abre uma perspectiva positiva, ainda que reforce a dicotomia entre secular e sagrado, Igreja e mundo. A Apostolicam Actuositatem, quando vai tratar do apostolado dos leigos, sublinha também a índole secular do leigo, afirmando ser próprio do estado dos leigos viver no meio do mundo e das ocupações seculares. Eles são chamados, como fermento, a exercerem seu apostolado no meio do mundo. Como consequência, a formação cristã do leigo acontece na ordem temporal, assumindo como membro e testemunha da Igreja, tornando-a presente e ativa no meio das coisas temporais. As áreas de atuação apostólica dos leigos estão todas elas no domínio da secularidade: as comunidades eclesiais, as famílias, a juventude, o meio social, a esfera nacional e a internacional. Entretanto, o leigo deve trabalhar também na Igreja (AA 10), atuação essa que é exemplificada explicitamente pela catequese,como própria dos leigos. Hoje é preciso assimilar o que o Concílio trouxe, para se ter coragem e ir além dele, pois é isso que o próprio Concílio desejou ao abrir pistas aonde se possa caminhar. Essa visão conciliar do leigo trouxe inúmeros avanços, restaurou a dignidade do leigo como parte do corpo eclesial. Tirou-se o leigo do lugar de mero expectador da pastoral, organizada pela hierarquia, para ser participante ativo da mesma. Hoje se percebem cada vez mais importantes tendências teológicas pós-conciliares para superar as contradições existentes entre leigo e clero, religioso e não religioso. Um novo eixo comunidade/carismas/ministérios. A Igreja se redescobre em sua vocação batismal englobante, na qual os carismas são recebidos e os ministérios exercidos como serviço. 70 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Maria Clara Bingemer Os diferentes carismas O Espírito Santo age em toda comunidade, organiza e suscita os diferentes carismas para edificar o corpo de Cristo. A ministerialidade é estatuto de toda a Igreja, e não apenas de alguns dos seus segmentos. As próprias categorias – “leigo” e “laicato” – vão sendo superadas, relidas, deixando de existir só como abstração negativa que pode empobrecer o dinamismo eclesial. A eclesiologia que emerge daí é total e a laicidade passa a ser uma dimensão de toda a Igreja. O leigo tem plena cidadania na comunidade eclesial. O itinerário da reflexão sobre os leigos nestes últimos cinquenta anos levanta para nós hoje algumas questões mordentes: nos primeiros séculos da vida cristã, a Igreja era vista na sua totalidade como proposta e alternativa ao mundo. A carta a Diogneto relata isso. Não existiam os especialistas do Espírito e outros dos assuntos temporais, mas sim a novidade cristã e a sociedade que precisava ser evangelizada. A Igreja da primeira hora não parece apresentar traços do fenômeno leigo contemporâneo, mas se compreende como um conjunto de pessoas, uma totalidade de batizados que tem como meta fundamental o seguimento de Jesus. Existe hoje, então, uma urgência de voltar às fontes para descobrir as raízes do que ainda chamamos laicato. Outra questão: as novas tendências teológicas pós-conciliares parecem sugerir a progressiva eliminação da divisão que traz consigo a categoria “leigo” em favor de uma eclesiologia mais totalizante, toda ela suscitada pelo Espírito Santo e ministerial, sem dicotomias e contraposições. Por trás da sedução positiva que essa suposição traz, existe uma suspeita: abolir a palavra não é eludir o problema! Não estaria por trás dessa tendência o perigo de um novo tipo de clericalização, onde o diluir do específico laical pode significar a tentativa de camuflar e deixar intocada a espinhosa e delicada questão do poder na Igreja? Um novo paradigma Resultantes do movimento realizado pelo Concílio, destacaramse ao longo destas ultimas cinco décadas algumas realizações, por parte dos leigos, que parecem apontar para um novo paradigma. Por necessidade das circunstâncias, os cristãos leigos foram assumindo e desempenhando ministérios e serviços que antes eram restritos apenas aos clérigos e religiosos. Houve uma queda das vocações, uma evasão Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 71 Da Apostolicam Actuositatem aos ministérios leigos dos seminários. Por outro lado, surgiram os movimentos que descobriram novas formas de vida consagrada, ou seja, houve importantes mudanças no perfil ministerial da Igreja. Surgem figuras que desenham um novo paradigma laical: essas figuras se inspiram na renovação conciliar e dão passos audaciosos. Numa Igreja onde as vocações sacerdotais e religiosas diminuem dramaticamente, os institutos e cursos de teologia hoje recebem um bom número de alunos e professores leigos, sobretudo mulheres, surgindo as teólogas leigas. Muitos prestam relevante serviço na reflexão sobre a fé, sobre a qual podem dizer uma palavra qualificada e solidamente sustentada, especialmente na teologia do matrimônio, e em certos aspectos da teologia moral. Os leigos pleiteiam e obtêm graus acadêmicos nos melhores institutos e faculdades de teologia. Estão preparados para a docência em qualquer instituição acadêmica em igualdade de condições com os padres ou religiosos. Outra realidade são os mestres e mestras espirituais: em contrapartida a outras épocas, ascende uma nova geração de leigos envolvidos no atendimento espiritual dos seus irmãos e irmãs. Inúmeros leigos pregam retiros, produzem material para oração e liturgia em diversos níveis, e é notável o seu progresso e a ajuda que prestam nas comunidades. Existem hoje também os leigos coordenadores litúrgicos, criando espaços com beleza e luminosidade. Na Conferência de Aparecida, em 2007, surgiu a questão: Como dizer que “a Eucaristia faz a Igreja e a Igreja faz a Eucaristia”, com tantas comunidades sem a possibilidade de ter a Eucaristia? Entre as propostas, saíram duas sugestões: repensar com maior profundidade a questão do ministérios leigos e repensar uma nova abordagem dos ex-padres casados, dos padres que não estão exercendo o ministério. No documento final aparece ainda o problema, mas sem a solução. Sugere-se “rezar pelas vocações”, o que é ótimo, e foi também uma recomendação de Jesus (Mt 9,37-38). Mas não haveria outros caminhos? 72 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Debate sobre a conferência da Profª Maria Clara Bingemer Sintetizador: Murilo Guesser* * Graduando do 2º ano de Teologia da FACASC. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013, p. 73-77. Da Apostolicam Actuositatem aos ministérios leigos Debatedor: Pe. Ms. Pedro Paulo das Neves Pe. Pedro Paulo: A presença de Maria Clara entre nós, sua própria apresentação, formação, já é um sinal dos frutos conciliares, é um sinal evidente de que o Espírito do Concílio está dando frutos, ainda que a dicotomia não seja de todo superada ainda. No ITESC, a questão dos leigos na graduação também teve seus dilemas. Como fazer com que o Concílio permaneça vivo com a base laical hoje? Como entender o ministério ordenado, dentro de uma Igreja toda servidora? Que caminho buscar para que a interpretação não acabe por ofuscar e até inibir o espírito do Concílio? Qual o lugar da Teologia no mundo secularizado, que se mostra apático às explicações teológicas, buscando reduzir a vida religiosa ao espaço do privado? A posição dos que dizem que o Concilio já passou, que já está superado... Como agir e atuar com esse movimento de retorno ao Concílio Vaticano I atingindo os seminários, volta ao latim, à liturgia pré-conciliar. Seria uma confusão eclesiológica na cabeça de todo esse povo? Maria Clara: Hoje, de fato, existe na Igreja um grupo com saudades das cebolas do Egito. O pontificado de João Paulo II centrou-se num modelo de Igreja da Polônia, que não entendia a Igreja Latino-americana. Os hábitos e vestimentas eram marcas de sua cultura. Outro elemento: a vida religiosa sempre foi um orgulho da Igreja, foi de vanguarda, de mártires, a vida religiosa é uma força muito importante, mas houve uma retração da vida religiosa e um apoio muito forte à vida de alguns movimentos, Opus Dei, Legionários... João Paulo II achava que esses movimentos combateriam o secularismo latente no mundo. Tudo isso criou uma massa crítica e se ajuntou àqueles que já não estavam contentes desde o Concílio. O que acontece é que o Concílio trouxe uma certa democratização do sagrado, o padre não é mais um ser interplanetário. Na Europa da cortina de ferro fazia sentido um sinal externo, mas não é falta desses sinais que explica o esvaziamento das Igrejas. As pessoas saem por que não encontram na Igreja aquilo que estão buscando. Há uma rede solidária que procura relações humanas e afetuosas, isso é essencial. Uma liturgia mais participada. O modelo pastoral paroquial ainda é rural, é preciso pensar outros modelos. Não é usando uma batina que se irá congregar uma Igreja novamente. Essas diferenciações vão contra o sentido do cristianismo que visa integrar a todos em igualdade. A questão da homilia, por que sempre o padre? Leigos poderiam assumir funções assim... Essa nostalgia dos tempos de outrora que se 74 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Debate sobre a conferência de Maria Clara Bingemer vem reforçando não é maioria dentro da Igreja. Não aceitar o Concílio, não integrá-lo ao modelo de Igreja contemporânea faz mal à Igreja como um todo. Os dados do censo mostram isso. A questão da fidelidade presbiteral, o celibato. Padres e leigos devem trabalhar juntos, ter consciência de que a Igreja é nossa, de que é uma necessidade assumirmos a Igreja como nossa. Somos cidadãos plenos da Igreja, é dessa consciência que sairá a Igreja do futuro. Ministérios leigos são essenciais para a Vida da Igreja hoje. Somos responsáveis em construir a Igreja e em certas questões os leigos têm muito mais a falar, por viverem certas questões mais diretamente, p.ex., sexualidade, família e todas as consequências, inclusive os que buscarão cidadania na Igreja com dois papais, duas mamães. A nova Eclesiologia não precisa de um terceiro Concílio, precisamos sim viver bem o que o Vaticano II buscou apresentar e ainda não se concretizou. Pe Valter: Feliz colocação, quanto ao ministério dos leigos. Os ministérios leigos não são aceitos por um grupo da Igreja que tem o poder, que está na cúpula, para os quais esses ministérios são apenas tolerados. No último documento sobre os leigos, se diz que o leigo exerce o ministério “como suplência”, ou seja, não se valoriza o leigo, na dignidade do seu batismo. Ora, essa mentalidade precisa ser mudada. Veja-se a questão das leitoras na Igreja, não podem receber o ministério de acólito, leitor, etc. Isso anula a abertura conciliar. Maria Clara: A Igreja hierárquica parece ter medo do leigo, medo de que este cause sombra à hierarquia... Quando há problemas, debates, fecham-se as portas. A solução é criar condições para que os leigos entrem nas estruturas da Igreja. No campo da Academia já está mudando. Pessoas leigas estão nas faculdades e lecionam. Na vida paroquial é mais problemático: tantas divisões, tantos pequenos ou grandes ciúmes. Como é importante buscar a unidade querida por Jesus! Pe Vitor: O Concílio Vaticano II ainda é muito novo numa caminhada de 2000 anos. Sua recepção nos primeiros trinta anos foi calorosa, mas depois decaiu. Quem sabe agora neste jubileu, as novas gerações se encantem com o Concílio. Os leigos são homens e mulheres da Igreja presentes e atuantes na Igreja e são homens da Igreja presentes e atuantes no mundo. Ora, é significativa a presença dos leigos na Igreja, pois eles dão à Igreja um rosto menos clerical, uma vivência mais normal, mais povo de Deus, uma Igreja mais democrática, enquanto comunhão. Os leigos dão esse rosto para a Igreja. Os leigos têm muito a contribuir Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 75 Da Apostolicam Actuositatem aos ministérios leigos na missão da anunciar e viver o Evangelho. A presença dos leigos no mundo: como entender a índole secular, quando falamos de Igreja do Brasil? Facilmente identifica-se a Igreja com os bispos, padres, religiosas. Leigos falando em nome da Igreja ainda é algo novo, facilmente visto com desconfiança. Ainda há muito medo do mundo, os leigos têm medo de estar no mundo e nele ser presença do Evangelho. Maria Clara: Parece que o leigo sofre mais dentro das estruturas da Igreja, parece que a hierarquia se sente invadida, perdendo o seu terreno... O leigo também pode ser teólogo e atuar com propriedade dentro da Igreja. A Ação Católica tinha um pouco essa visão: JUC, JEC, os “braços da hierarquia” no mundo. É preciso resgatar o perfil laico e apostólico da Ação Católica, que priorizava isso. Gilson Siqueira Alves: A Apostolicam Actuositatem, n. 2, fala da unidade da missão. Ao que nos parece, existe um embate, um conflito entre clero e laicato. Como superar esse conflito? Na pastoral é algo inclaro. A questão das identidades, para que a Igreja seja mais discípula, seja mais profética, mais sal da terra... Maria Clara: É preciso ouvir os leigos. Infelizmente a formação presbiteral forma para falar, mandar, delegar. Não se pode ficar preso a isso, precisamos aprender a ouvir. Escutar-se de parte a parte, leigo ouve padre e vice-versa. Ter intimidade. A preocupação do poder é forte no clero, apesar da insistência de Jesus no serviço, mais que no poder. Pe Ney Brasil: Na Igreja, percebe-se fortemente a presença feminina nos serviços pastorais, na vida comunitária. Para que essa presença aconteça também nas instâncias de decisão, para que as mulheres tenham mais vez e voz na Igreja, é preciso que elas estudem teologia. Aí está um caminho possível, e necessário, para chegarmos a uma unidade maior, inclusive mais de acordo com os avanços da presença feminina na sociedade. Silvia Togneri: Maria é mãe da Igreja, mas as mulheres na Igreja são servas. A mulher não pode ser apenas serva, mas ser mãe. Muitas mulheres são as educadoras da fé, nos lares e nas comunidades. Como valorizar devidamente esse fato? Maria Clara: É preciso acreditar em si. As mulheres precisam acreditar umas nas outras. Isso não é feminismo, um machismo às avessas. Os debates são antropológicos, não femininos ou masculinos. Maria como modelo dinâmico, não apenas do eterno feminino. 76 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Debate sobre a conferência de Maria Clara Bingemer Prof. Ramada: Estamos vivendo a passagem de uma sociedade moderna diacrônica, para a pós-moderna, onde tudo acontece num mesmo instante, sincrônica. No mundo ortodoxo, a teologia é uma questão dos leigos, porque se considera que são os leigos, por estarem envolvidos no meio dos sinais dos tempos, que podem contribuir nesse sentido. O que fazer nesta pós-modernidade? Como repensar os sinais dos tempos num contexto sincrônico? Qual o papel dos leigos num mundo que se esgota num tempo líquido? Maria Clara: Estamos no bojo da onda dessa passagem do moderno para o pós-moderno. Na teologia trabalhamos com a revelação na história, e numa história que se acaba já. A pós-modernidade construiu um novo panteão de ídolos, jogadores, astros midiáticos, etc. Precisamos suscitar os santos dos novos tempos. Aqueles que recolhem elementos da fé, da modernidade, como experiências de Deus. Resgatar essas pessoas, dar visibilidade. Experiências místicas fora da Instituição, mas dentro da História. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 77 REMINISCÊNCIAS DO VATICANO II (2) Dom Clemente Isnard1 Uma das maiores alegrias da minha vida eu a tive no dia 4 de dezembro de 1963. Tendo lutado pelo movimento litúrgico desde 1933, como membro da Ação Católica, tive a satisfação de ver solenemente promulgada a Constituição Sacrosanctum Concilium. A compreensão da liturgia que eu tinha já antes do Concílio e que, no Brasil, sofrera sérias contestações, estava agora proclamada por uma constituição conciliar. Na porta da basílica de São Pedro, naquela manhã, me encontrei com o abade Martinho Michler, também ele Padre conciliar, que havia sido o iniciador do movimento litúrgico no Brasil e que havia sofrido calúnias e perseguições por esse motivo, e nos abraçamos com profundo sentimento de ação de graças. Meu aprendizado na Ação Católica e no mosteiro de São Bento me tinha preparado para a Sacrosanctum Concilium, para a Lumen Gentium e outros documentos do Concílio. Quando, porém, entrou em discussão um projeto que se chamava “esquema 13”, e que seria posteriormente aprovado como Constituição pastoral Gaudium et Spes, senti que algo de diferente era proposto. Eu pensava que, depois da Lumen Gentium, não era preciso dizer mais nada sobre a Igreja e, a princípio, não do novo projeto, que julgava muito prolixo. Foi justamente a Gaudium et Spes que completou meu caminho de conversão: a abertura para a presença da Igreja no mundo, para as realidades sociais iluminadas pelo Evangelho. E o pós-Concílio, vivido na CNBB e em Medellin e Puebla, levaram adiante essa conversão. O dia 8 de dezembro de 1965, dia do encerramento do Concílio, foi ocasião de júbilo e de exultação. Na praça de São Pedro, a emoção igualava à do dia 11 de outubro de 1962. Só que lá era um caminho a ser percorrido, sem previsão da chegada, e agora era a conclusão, apalpando os resultados obtidos. À figura, agora, de Paulo VI, correspondia a de João XXIII, tendo de permeio os quatro longos anos de trabalho do Concílio que reformou a Igreja. Minha impressão naquele dia era que a vida da Igreja tinha um novo início, e que nela minha vida de bispo renascia. A grande mensagem do Concílio consistia nas Constituições, nos Decretos e nas Declarações. Mas naquele dia ecoaram ainda as belas mensagens dirigidas a vários setores da sociedade. Eu me sentia outro. E muitos bispos brasileiros também se sentiam renovados, convertidos, como eu. Foi assim que regressamos ao Brasil, cheios de ânimo para aplicar as decisões conciliares. A 25 de janeiro de 1964, Paulo VI criou um Conselho para executar a sacrosanctum Concilium, e a 29 de fevereiro nomeou os membros desse Conselho: para grande surpresa minha, meu nome estava na lista dos nomeados. Durante os cinco anos de duração do Conselho, estive em Roma duas vezes por ano, participando de suas reuniões. O trabalho do Conselho está registrado magistralmente no livro “La riforma litúrgica”, de Annibale Bugnini. Quando o Conselho foi extinto e criada por Paulo VI a Congregação para o Culto Divino, fui também nomeado para o novo órgão, onde por seis anos estive presente, tomando na preparação de todos os novos livros litúrgicos, até a supressão da Congregação e a consequente disponibilidade de seu secretário Arcebispo Annibale Bugnini. Paralelamente ao andamento do Concílio, evoluía e crescia a CNBB. Em 1964 foram aprovados em Roma novos estatutos e era eu eleito Secretário Nacional de Liturgia, cargo correspondente ao de Presidente da Comissão Episcopal de Liturgia. [...] No Brasil, durante 24 anos, três Presidentes da CNBB, Aloísio Lorscheider, Ivo Lorscheiter, e Luciano Mendes de Almeida, todos os três reeleitos uma vez, garantiram a continuidade do espírito conciliar. [...] Nesta aurora do terceiro milênio, muitos se perguntam: para onde caminhará a Igreja? Vai fechar-se sobre si mesma, como um castelo medieval, ou vai se abrir para o mundo, numa continuidade do aggiornamento preconizado por João XXIII? O desafio que se abre é este: o espírito do Concílio continuará inspirando os rumos da Igreja, ou o Concílio será um corpo de leis do passado, certamente venerado e elogiado, mas desprovido de continuidade? Será um fim de linha, ou a estrada continua? (Excerto do capítulo “Reminiscências do Concílio”, do livro “Memórias que anunciam o Futuro”, em homenagem a Dom Clemente Isnard, Recife, 2012, pp. 239-241.243) 1 Dom Clemente Isnard, beneditino, bispo de Nova Friburgo, RJ (1960-1994), faleceu em 24 de agosto de 2011, como Bispo emérito. Resumo: O autor começa, observando: Quando temos uma trilogia – Igreja, Sociedade e Juventude – podemos escolher o centro e fazer circular em torno dele a reflexão. Aqui, tomemos como centro a Juventude, pensando a Igreja e a Sociedade em relação a ela. Quanto à juventude, ela é a mesma, hoje, ou é diferente, em relação à de “outros tempos”? O fato é que ela carrega consigo duas tendências: a explorativa e a projetiva, privilegiando a explorativa, sincrônica. Diante disso, como trabalhar pastoralmente essa realidade juvenil? Como levar em conta o fato de que a cultura pós-moderna vê cada vez menos diferença entre o masculino e o feminino? Uma dificuldade, ainda, da relação Igreja-juventude é o fato de que o jovem instintivamente é avesso à autoridade, à instituição, à hierarquia. Há que se achar outro viés para se alcançar a mocidade. Abstract: The author begins his exposé by focusing on the trilogy: Church, Society, and Youth, with special emphasis on the need for a central point in theological thought. He centers on the topic of Youth and linking the thought pattern about the Church and Society. A question to be raised concerns the identity of youth whether it is always the same or could be different from that of “other times”. The fact is that it implies two tendencies: already exploited or projective. When preference is placed on one, the other is underprivileged. The question arises in relation to the pastoral activity among young people. Awareness of basic trends in modern culture requires that we pay attention to a particular aspect which affects the distinction between masculine and feminine qualities but today is more and more diffused. An additional difficulty to be taken into account in the relationship between Church and Youth is the fact that young people are instinctively hostile to authority, institution, and hierarchy. There is a need to find another way of approach to enter into contact with the new generation. Conferência: Igreja, Sociedade e Juventude Pe. João Batista Libânio SJ* * Doutor em Teologia e Professor na FAJE, Faculdade de Teologia dos Jesuítas de Belo Horizonte, MG. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013, p. 79-87. Igreja, Sociedade e Juventude Boa noite! Muito feliz por falar aqui. Quando temos uma trilogia – Igreja, Sociedade e Juventude – podemos escolher o centro e fazer circular em torno dele a reflexão. Aqui, tomemos como centro a Juventude, pensando a Igreja e a Sociedade em relação a ela. Assim, fica bem determinada a ótica sob a qual queremos falar. Comecemos, então, esta palestra, que pretende ser leve e simples. De início, façamos esta pergunta: A juventude é a mesma ou é diferente? Quando o professor fizer essa pergunta a vocês, jovens, respondam sim e não. É a melhor resposta, pois deixa o interlocutor desnorteado, sem saber o que fazer (risos). E por que e resposta é sim e não?! Vejamos. Cromossomicamente, a época da juventude passa, mas ela se caracteriza por ser a mesma no que se refere aos aspectos biológicos, é uma etapa idêntica para todos os jovens, possui uma identidade que lhe é peculiar. A diferença é que cada um a vive de maneira diferente. Portanto, podemos dizer que os jovens não são os mesmos em sua experiência concreta vivencial do período juvenil. O jovem é e não é o mesmo em todas as épocas. Podemos falar sobre ele sempre, e cada vez trazendo à tona novidades devido à sua irreverência nata. Ainda falando da parte biológica, o cérebro do jovem, por exemplo, desenvolve mais um lado do que o outro. Este que é menos desenvolvido está relacionado à dimensão afetiva, e por isso ele acaba errando muito nas suas escolhas, é facilmente enganado. É uma questão biológica, daí resultando que a sua culpabilidade em determinadas situações acaba sendo quase nula. As pessoas mais velhas, por sua vez, olham as situações por outro ângulo, as entendem de imediato, devido à experiência adquirida. Na fase terminal, nosso cérebro tem uma capacidade impressionante. Mas, voltemos nossa atenção para o seguinte: o impacto que a cultura impinge sobre os jovens, e nesse sentido entra em jogo a Sociedade, que influencia diretamente sua maneira de se comportar. Os jovens, por possuírem menos passado, estão amplamente abertos ao futuro e às suas novidades. O passado tem a capacidade de nos fazer desconfiar das coisas, porque já experimentamos. Como o jovem carece de um número significante de experiências, isso gera uma lacuna em sua vida, deixando-o vulnerável às artimanhas da Sociedade, justamente porque seu passado é relativamente curto. Um exemplo concreto é o mundo da 80 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 João Batista Libânio, SJ informática, na qual ele está mergulhado, mas que não lhe dá uma base de referência crítica. Pois as informações transmitidas, em sua maioria, são fragmentadas ou descontextualizadas. Portanto, antes de analisarmos a juventude e lançar sobre ela determinada conceituação, devemos levar em conta o momento cultural que estamos vivendo. A cultura é um fenômeno que marca o jovem, imprime-lhe uma identidade. Para conhecê-lo é preciso tornar-se familiar à sua cultura, entrar em seu mundo, identificar-se com ela para identificar-se com ele. Depois de ter dado esse passo, é necessário tomar distância para poder elaborar uma crítica consistente, com conhecimento de causa, pois quem não se identifica com a situação real e concreta não toma verdadeira consciência dos fatos. Esse jogo de inculturação e distanciamento do mundo juvenil não é fácil. Antes, é muito exigente e, se não for bem feito, seus resultados podem ser desastrosos, gerando muito preconceito em relação ao universo habitado pela juventude. Um exemplo concreto que temos em nosso meio é o do educador Paulo Freire. Ao realizar um trabalho junto aos camponeses do nordeste, ele deixou-se envolver pela realidade nua e concreta daquele povo. Passou a ouvir o que eles falavam e pensavam e, ao mesmo tempo, foi ensinando-os a também tomarem consciência da cultura na qual estavam inseridos. Ajudou-os a perceber que tal cultura era de exploração, mas para isso primeiro foi necessário que eles tomassem distância a fim de poderem conscientizar-se dessa realidade. É o mesmo que, como ressaltamos acima, devemos fazer em relação aos nossos jovens. Duas tendências A juventude carrega consigo duas tendências: a explorativa e a projetiva. A tendência explorativa caracteriza-se pela busca em conhecer as coisas por meio das experiências. E aquelas que são mais próximas a si se mostram as mais difíceis, pois o sujeito e o objeto se relacionam mais intimamente. Expliquemos melhor: para haver uma experiência é necessário um sujeito que a realize e um objeto que é o foco dessa experiência. Quanto mais o sujeito presta atenção no objeto, quanto mais se volta sobre ele e o apreende, o suga, mergulha nele, mais intensa será a experiência e mais efeitos e conclusões dela se desprenderão. Por exemplo: alguém atravessa o jardim e então lhe perguntam: o que você viu? Não sei, o que aconteceu!? – é a resposta. E o porquê dessa Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 81 Igreja, Sociedade e Juventude resposta? Porque não olhou, não sentiu o objeto, não o experimentou. Cito ainda um missionário espanhol que trabalhou na China, e escreveu um livro sobre controle emocional. Ele nos ajuda a experimentar mais profundamente a realidade que nos circunda e sugere como exercício ficar à janela e olhar para uma árvore, depois, deter-se numa única folha da árvore e movimentar o dedo em riste para ver qual será sua experiência de árvore. Será totalmente diferente. Portanto, há uma fase forte da juventude marcada pelo fator experiência, que se encerra em um momento concreto e definido, circunstancial. Mas, há também a tendência projetiva. Essa é marcada pelos sonhos, projetos, utopias, desejos, enfim, pela realidade futura, por isso projetiva, que se lança. É a capacidade ilimitada de sonhar que o jovem tem em si. Ela tem o aspecto positivo, pois fomenta a criatividade do jovem e o faz não permanecer passivo diante da realidade. Porém, pagase o preço do sacrifício das relações experimentais, uma vez que tudo é lançado para o ainda não, em detrimento do agora. Fernando Gabeira, em seu livro Que é isso companheiro?, faz uma comparação que clareia bem essa tendência projetiva. Ele fala de um jovem universitário que participa do sequestro do embaixador e, quando em plena missão, em meio àquela tensão geral, ele olha para praia e vê as mulheres, percebe que não está vivendo o momento presente, preocupando-se apenas com o futuro e, então, decide recuperar o tempo perdido. A década de 60 é marcada fortemente por essa tendência projetiva, devido aos grandes ideais surgidos então. A vida religiosa também padeceu disto, muitos foram os consagrados e as consagradas que deixaram o colégio para ir morar nas favelas, passando necessidades, por vezes extremas, em nome de um idealismo, sacrificando o momento presente. Hoje o que temos é a primazia da tendência explorativa sobre a projetiva. A juventude hodierna só tem o gozo do presente e carece de sonhos, ocupa-se apenas com o momento presente. Um francês, João Claude Guillebald, faz uma abordagem da juventude a partir do que ele chama de a “tirania do prazer” e analisa a passagem da geração de 60 para as de hoje, cada vez com menos sonhos, menos ideais. Os espanhóis de Madri criaram este epitáfio: “As flores as queremos já e não no funeral”. Da voz de Renato Russo ecoa ainda hoje este refrão: “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã...”. Falando em amanhã, certo jornalista perguntou a um jovem: o que você vai fazer daqui a dez anos? Ironicamente, responde o jovem: não sei 82 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 João Batista Libânio, SJ nem o que vou fazer amanhã... (risos). Esses fatos refletem a juventude da sociedade moderna, para a qual só existe o presente. De certa forma, isso dá a impressão de que a história acabou, e há até o livro de um americano intitulado O fim da história. Quando se perde a noção de história, a ética entra em crise, porque os fundamentos, que são históricos, desmoronam. Será que há uma resposta para essa ênfase no momentâneo? Talvez, ao olharem para o passado, nossos jovens se decepcionem com alguns fatos negativos que o marcaram, tais como o nazismo com Hitler, os demais totalitarismos, as guerras mundiais, as grandes revoluções sociais e ideológicas que não deram muito certo, a crise de 89... e ao se deparar com os políticos de hoje – que maravilha! (risos), a decepção é total. A mediocridade da política não provoca o desejo pelo futuro. Os jovens da revolução de 68, em uníssono, repetiam “é proibido proibir” e, voltando-se aos professores, confessavam “vocês nos envelhecem”. Esse amálgama de eventos históricos pode ser justificação para a hostilidade da juventude para com a história e os faz querer viver somente do presente, tendendo à dimensão explorativa. A pastoral da juventude Desdobram-se, diante disso, algumas questões: como trabalhar pastoralmente essa realidade juvenil? Como lidar com alguém que só vê diante de si o momento presente? Como levá-lo a perceber que no presente estão as raízes do futuro, dum futuro em projeto? Talvez o primeiro passo seja ajudar nossos jovens a criarem fantasias e estimulá-los a usarem sua criatividade. Essas duas características, tão fortes entre os poetas e os romancistas, estão em crise, empobrecendo a experiência vivencial do jovem de hoje. O lugar da fantasia foi substituído pelo campo do imagético, cujo poder de influência na formação da personalidade do jovem é tremendo. O jogo de imagens faz com que o jovem se torne passivo diante da realidade na qual está inserido, pois não lhe permite pensar no que vê. No mundo do imagético, entram em choque dois conceitos: o de imagem e o de símbolo. Ambos comportam mundos diferentes, cada qual com suas peculiaridades, porém, o mundo da imagem existe em detrimento ao mundo do simbólico. Vejamos o porquê. A imagem tem a capacidade em apresentar ao jovem uma realidade tal, de modo tão forte, que paralisa o seu pensar, não permite que ele reflita sobre aquilo, que ele aplique o seu senso crítico, pois acaba sendo levado pela emoção, pelo sentimento. É o que fazem, por exemEncontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 83 Igreja, Sociedade e Juventude plo, os jornalistas: exploram os temas a partir de imagens fortes, cenas chocantes, geralmente de violências, de crimes, que acabam tendo um caráter mais apelativo do que educativo. Importa mais a capa do juiz do que suas ideias... (risos). As novelas caminham este mesmo trilho, não servem para estimular o pensar, apenas para entreter a atenção do telespectador, usando de imagens que, passadas rapidamente, acabam gerando uma cultura da imagem, do passageiro, do fútil, sem nenhuma espécie de senso crítico. A imagem faz parar o pensamento, bloqueia nossas emoções, agarra nossa afetividade. Nossos jovens vivem numa enxurrada constante de imagens, gastam tempo e dinheiro com imagens. Por outro lado, temos o mundo dos símbolos, que vêm na contramão do imagético. Os símbolos, segundo Paul Ricoeur, levam-nos a pensar, a refletir sobre aquilo que representam, aquilo que significam, aquilo que eles unem, aquilo que está oculto neles. Diante de uma realidade simbólica, somos provocados a pensar as mais variadas coisas, uma vez que os símbolos nos fazem reagir, não nos deixam passivos, indiferentes. O símbolo tem uma força que a imagem não contém. Por exemplo, se estou andando e encontro o semáforo no vermelho, logo eu paro, pois o significado que está por trás do vermelho é o de advertência. Mas, para alguém que recebe um buquê de rosas vermelhas, a reação será outra, o significado do vermelho nesse caso será diferente. O que abre a mente não são conceitos, mas símbolos. Portanto, quanto mais imagens, menos símbolos. Os símbolos se explicam por si e educam, carregam consigo uma dimensão antropológica. Se virmos no altar duas crianças com velas acesas tendo a Palavra no meio, essa simbologia representa a inocência que carrega a Palavra. Isso é educação por meio da simbologia. Se, ao iniciar um encontro, pedirmos para um jovem desenhar no quadro um símbolo que represente a expectativa deles para o encontro e depois perguntarmos aos demais jovens o que representa ou significa aquele símbolo, as respostas serão as mais diversas, ainda que o símbolo seja o mesmo. O mundo dos símbolos é vasto, possui uma diversidade muito rica, e rebate em cada um de formas variadas. Esse dois universos, o da imagem e o do símbolo, nos permitem pensar numa antropologia que brota do mundo jovem. Se pensarmos o jovem de dez anos atrás, estaremos falando de outro tipo de jovem que não este de hoje. Se retrocedermos ainda mais no tempo, chegando à década de 60, por exemplo, a abordagem será ainda outra. Aqueles jovens “da vanguarda” não tinham uma preocupação com o corpo como se tem hoje, não se importavam muito com o que vestiam, com o que estava 84 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 João Batista Libânio, SJ na moda. As academias naquela época não tinham vez no mercado. Por outro lado, a leitura dos clássicos era comum, a interação com o mundo da política e a indignação com as ditaduras, a luta em prol de grandes ideais, era o que ocupava os jovens de outrora. O corpo era a expressão da presença do jovem no mundo, na sociedade, era a força da sua vocação, representava a exterioridade do jovem como extensão de uma causa interna mais forte, um ideal. Hoje, a dimensão corporal significa uma presença meramente exterior, um culto à superficialidade, um objeto da ideologia mercadológica que endeusa o corpo, fazendo dele o escopo do campo econômico, em torno ao qual giram os demais campos. Essa cultura do externo reflete a não profundidade das relações, a liquidez dos valores que se anunciam como sendo verdadeiros, a troca do fundamental pelo passageiro, do essencial pelo contingente, do absoluto pelo relativo. O místico da sociedade pós-moderna é aquilo que aparece – o estético; não aquilo que significa – o ético. Chegar à sétima morada da caminhada mística é impensável, mas chegar ao teto do shopping é facílimo. Cultura pós-moderna A cultura pós-moderna vê cada vez menos diferença entre o masculino e o feminino. O rapaz está cada vez mais feminino, esteticamente falando (vaidade), e a moça se aproxima cada vez mais do universo masculino, devido à emancipação social, política, econômica, trabalhista etc, conquistada por elas. Quando as diferenças diminuem, crescem as frustrações, pois se perdem os referenciais. Cria-se uma confusão interna, uma espécie de esquizofrenia da identidade. Isso gera uma mudança psicológica no jovem pós-moderno, que se evidencia quando fazemos uma comparação com aqueles jovens de outras épocas. Eles tinham introjetados em si padrões interiores, valores, normas, princípios... Seus exemplos eram os pais, os professores, os padres, os literatos, os mais velhos. Hoje, esses modelos não servem mais de inspiração, devido ao universo de informações que se desdobram diante deles e que os fazem autodidatas em todas as áreas. Porém, esse aprendizado por conta própria carece de experiência e gera certa deficiência em termos de maturidade. A arte de aprender de nossos jovens é confundida com a arte da informação. O Google é a principal fonte de informação que o jovem tem à sua disposição, mas não tem a capacidade de o levar ao conhecimento, ao aprendizado. Ele prolifera ideias diarreiamente difundidas por aí (risos). A informação googleana é objetiva e simplória, não dá nada além daquilo Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 85 Igreja, Sociedade e Juventude que se pede, não é capaz de contextualizar um fato, de fazer ligações interdisciplinares, de purificar os conteúdos, de oferecer um conhecimento crítico etc. Não ensina a pensar. Por exemplo, ao procurarmos alguma coisa sobre Hitler, o máximo que a informação on line conseguirá oferecer são dados informativos objetivos. Não ensinará a pensar o que foi o nazismo, quais suas verdadeiras origens, quais seus efeitos a curto e longo prazo para a humanidade, que ligações podem ser feitas entre o nazismo e outros fatos históricos da época, o que a psicologia tem a dizer sobre a figura de Hitler, enfim. Aprender é uma arte dialética, assim como ensinar também o é. O aprender consiste em receber uma informação, perceber o que há de valor em si, o que há de verdade, em que realidade esta informação se insere, o que tem de positivo e negativo, de verdadeiro e de falso. E sobre esses dados, produzir uma análise crítica. O maior desafio que encontramos, em meio a esse emaranhado de informações ao qual a juventude está exposta, é o de conseguir ensiná-la a adquirir essa capacidade crítica. Afirmar o positivo (+/ + = +) e negar o negativo (- /- = +). (Três saberes: matemático, linguístico e filosófico. Só foi abordado o matemático, e de forma breve. Há, portanto, uma lacuna neste ponto do texto). Relação Igreja – juventude Por fim, queremos trazer um dado que emerge da relação Igreja – Juventude. O jovem tem dificuldade com autoridade, e por isso não conseguiremos, enquanto Igreja, entrar no mundo da juventude por meio do autoritarismo. Essa característica presente historicamente na Igreja sempre faz referência à instituição, à hierarquia, ao poder. No diálogo com o universo jovem, isso acaba sendo um empecilho. O jovem só recorre à instituição quando precisa dela para se defender; quando é para viver, ele prescinde de sua presença. Há de se achar outro viés para alcançar a mocidade. O jovem, por natureza, quer estar no centro, e a cultura moderna contribui imensamente para este centrismo. Recorrendo à mitologia grega, fazemos três comparações: os jovens da década de 60, tantas vezes evocados por nós nesta conferência, os comparamos a Prometeu, conquistador, corajoso, comprometido. Por sua vez, a juventude hodierna, a comparamos a Sísifo: carrega a pedra e, quando chega lá em cima ela cai, 86 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 João Batista Libânio, SJ ou seja, está sempre andando em círculos. Prepara-se para o vestibular e cai, e assim por diante. Sua característica é acostumar-se ao cotidiano. Há ainda, Narciso, que representa uma juventude que só olha para si. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 87 Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Bioética Especialização Justificativa e Objetivo Geral Reconhecendo a bioética como um campo importante no mundo científico atual e visando aprofundar o conhecimento nesta área, a Faculdade Católica de Santa Catarina (FACASC) oferece o Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Bioética – Especialização. O objetivo geral deste curso é dar aos agentes das profissões biossanitárias e jurídicas, bem como a outros profissionais de áreas afins, os instrumentos para adquirir um maior conhecimento científico e prático no campo bioético. Período do Curso Outubro de 2013 a Outubro de 2014 Estrutura do Curso O Curso será divido em duas grandes partes, cada qual com 4 (quatro) módulos, divididos do seguinte modo: Primeira parte: • Aula inaugural – Prof. Pablo Requena. • Introdução. A pesquisa em bioética – 40h/aula. • Direitos e Deveres dos pacientes – 40h/aula. • Direitos e Deveres dos profissionais sanitários – 40h/aula. • A ética das profissões biomédicas. Comitês éticos assistenciais – 40h/aula. Segunda Parte: • Problemas éticos do enfermo crônico e do fim da vida – 40h/aula. • Ética biomédica da sexualidade e da reprodução humana – 40h/ aula. • Ética das aplicações genéticas e biotecnológicas – 40h/aula. • Ética da investigação biomédica – 40h/aula. • Módulo de conclusão: • Apresentação dos trabalhos acadêmicos – 40h/aula. Informações • www.facasc.edu.br • [email protected] • Fone: (48) 3234-0400 Debate sobre a Conferência do Pe. Dr. João Batista Libânio, SJ Sintetizadores: Ismael Weiduschath e Fernando Steffens* * Graduandos do 2º ano de Teologia da FACASC. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013, p. 89-95. Igreja, Sociedade e Juventude Debatedor: Pe. Dr. Domingos Volney Nandi A minha saudação carinhosa a todos, de modo particular, ao Pe. João Batista Libânio, que nos presenteou com sua brilhante apresentação. Quero dizer que tenho sido muito elogiado em minhas falas, não pelo conteúdo, mas pela brevidade. (risos). Meu objetivo central será costurar a trilogia apresentada pelo Pe. Libânio (Igreja-Sociedade-Juventude) com o fenômeno da comunicação, cuja repercussão é forte na sociedade atual e, além disso, é minha área de especialização. Abro a reflexão com um mito grego: O canto das sereias. Ulisses saiu com os seus jovens marinheiros a navegar (hoje grande parte da juventude encontra-se “navegando”) nos mares bravios e, num dado momento, eles se encontram com as sereias. Seduzidos pelo canto das sereias, os marinheiros se deixam lançar para os braços delas. Apavorado com a situação emergente, Ulisses começou a amarrar seus jovens marinheiros, e depois até ele mesmo, ao mastro do seu navio... O filme Piratas do Caribe retrata o mito em questão de uma forma instigante. Nele, a Igreja é representada por um padre, o que conota segurança e credibilidade. Até o padre, porém, sempre firme, num dado momento é também seduzido pela sereia e cai em seus braços. Sereia eletrônica Com isso quero dizer o seguinte: a mídia é a sereia eletrônica. A trilogia – Sociedade, Juventude e Igreja – é seduzida por esta sereia. Sedução por conta da linguagem da multimídia e da interatividade digital. Frente a isso, cabe perguntar-se: é o modelo midiático realmente o modelo de evangelização? Será que não é preciso retomar o modelo evangélico tradicional, isto é, olho no olho, mão a mão, coração a coração? Sinto uma tentação tímida em afirmar que, desde o momento em que a Igreja passou a ser seduzida por essa sereia, seus marinheiros começaram a se atirar para fora da barca de Pedro. A última estatística do IBGE revela que 9% de marinheiros caíram fora desta barca. Isso não quer dizer que sou contra o uso da mídia. Usá-la faz bem, ser usado por ela faz mal e gostar de ser usado pela mídia é o fim. Isto, por sua vez, podemos ilustrar com os padres terceirizados. Creio que precisamos amarrar nossos navegadores, particularmente os jovens, ao mastro de uma catequese sólida e mistagógica (a mística aqui no 90 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Debate sobre a conferência do Pe. Dr. João Batista Libânio, SJ seu verdadeiro sentido). A nossa catequese, infelizmente, parece estar reproduzindo uma imagem de escola, o que faz perder de vista a questão mistagógica. É importante também resgatar a Tradição de Jesus de Nazaré, como nos pede o Concílio Vaticano II. Os jovens são incansáveis navegadores no oceano da web, embarcados na diversidade de mídias. São seduzidos pelo consumismo, pelo hedonismo, pelos ídolos midiáticos, pelas modas e modismos, enfim, pela cultura da morte. Aliás, a morte virou espetáculo e diversão. Por exemplo: presenteiam-se certas crianças com brinquedos de matar. A mídia também é responsável por outro aspecto que eu chamo de cultura miojo. Uma cultura assinalada pelo imediatismo e, por isso, não se consegue aprofundar quase nada. Por exemplo: Hoje, há educadoras no Jardim que não conseguem contar uma história para as crianças até o fim, porque estas não têm mais a paciência de ouvir. Outro exemplo é a pesquisa rápida pelo site de busca Google, colocando em crise um conhecimento adquirido por leituras mais complexas ou, mesmo, visitas às bibliotecas. Os sonhos, influenciados por esta cultura, são também marcados pela importância do aqui e agora. A tal problemática Pe. Libânio fez excelente referência em sua exposição, quando disse que na pós-modernidade acena-se unicamente com o presente. No que diz respeito ao mundo da educação, faço um breve apontamento. Enquanto os estudantes estão com ideias do século XXI, os professores estão com a mentalidade dos séculos XX ou XIX. Ora, na Igreja também não é assim? Eis, portanto, um desafio. Uma das saídas é talvez somar os dois saberes: o tecnológico dos jovens com o vivencial dos professores. A mídia e os atributos de Deus É necessário ainda destacar a vinculação existente entre a mídia e os atributos de Deus. Assim como temos os atributos de Deus, como onipotência, onipresença, onividência e onisciência, também de outra forma, eles estão presentes no campo da mídia. Uma vez se dizia que a mídia era o quarto poder. Não. Ela é o poder. Onipresença, quer dizer, ela está em toda a parte e lugar. Basta perguntar quem que está com seu celular ou notebook aqui na sala. O olho da mídia que tudo vê se refere à Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 91 Igreja, Sociedade e Juventude onividência. O “santo Google” que tudo sabe nos faz lembrar o atributo da Onisciência. Diante desses atributos de Deus na mídia, não estaria aqui uma nova forma de idolatria? Não é verdade que todo ídolo exige sacrifício? E os jovens vivem segundo esses códigos de comportamento. A exterioridade torna-se valor absoluto. Impera a cultura do corpo. Se os jovens são os mais facilmente enganados, como o senhor disse, Pe. Libânio, não seriam eles as vítimas mais frágeis da mídia, ainda mais que ela trabalha com o poder de imagem? Pois bem. Outro ponto sobre o qual faço referência diz respeito à relação estrita entre a mídia e a Igreja. Em geral, as pessoas reproduzem no serviço de pastoral o que veem nas mídias. A mídia e o modelo de Igreja estão em crescente processo de veiculação. Prova disso é o florescer dos devocionismos, da lógica do espetáculo e do mercado, e o predomínio da imagem de um Deus milagreiro, nos meios de comunicação. Sob esse prisma, desdobra-se outra problemática referente à mídia e a crise de identidade. Por exemplo: ao sintonizar uma determinada rádio, a pessoa que escuta não sabe se é um padre ou um pastor quem fala, pois o discurso é o mesmo. Ora, é possível evangelizar com a lógica do espetáculo e da imagética? Por que tanta resistência em evangelizar sem ser igrejeiro? Por que tanta dificuldade com a pastoral urbana se o cristianismo nasceu nesse contexto? Qual o lugar da Tradição na Pastoral da Juventude? Ou ainda, no contexto contemporâneo, como fazer Pastoral da Juventude? Por fim, no mundo pontuado pela imagética (imagens que bloqueiam o pensamento), pela sonoridade (casamento perfeito entre imagem e som), como comunicar o invisível e o inaudível para esta juventude? Pe. Libânio: Agradeço a reflexão desenvolvida pelo Pe. Nandi. Como a minha maneira de pensar é dialetizar, todos esses problemas apresentados, oriundos principalmente de uma cultura da imagética e da comunicação, eu procuro olhar para onde há alguma coisa de evangelizável. O não evangelizável é muito claro! Foi mencionado pelo debatedor e, por isso, nem preciso reforçar. 92 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Debate sobre a conferência do Pe. Dr. João Batista Libânio, SJ Certa vez li o livro de um inglês chamado A armada do papa. Ao ler esse livro, pude perceber a genialidade de três grandes movimentos no que diz respeito à dinâmica, não ao conteúdo. A partir dessa leitura, inventei uma palavra chamada “círculos concêntricos adstringentes”. O autor do livro diz que quando Chiara fazia alguns vídeos e os distribuía para o mundo inteiro, milhões de pessoas assistiam. Posteriormente, pensou-se em criar um grupo menor e que se reunissem fisicamente uma vez por ano. Tal sonho se concretizou e surgiram as grandes Mariápolis. Em seguida, se cogitou em criar um grupo menor e que se reunissem a cada mês. E, por fim, se chegou à criação de um grupo mais reduzido e que se reunissem a cada semana. Assim, se tinha um grupo bem coeso e convicto, engajado e comprometido. A evangelização pelo mundo da mídia é início, mas não é evangelização ainda. Essa história mostra a passagem que precisamos fazer, da superficialidade midiática para o mínimo de aprofundamento. Depois, um grau maior de aprofundamento. Logo depois um pouco maior, e assim por diante. Portanto, se nós trabalharmos com esta dinâmica do pouco, acredito que teríamos alguma resposta positiva. Os grupos menores são os que vivem o evangelho de forma mais vigorante, mas não é a única possibilidade. Há muitas maneiras de viver pelo menos uma dose mínima de cristianismo. A pedagogia de Jesus nos ajuda a entender tal questão. Quando Jesus conversa com aquela mulher samaritana que tinha cinco maridos – não cabe aqui estudar a exegese do texto – à qual se revela como o Messias, ele não pede para ela entrar em um convento, apenas lhe diz a verdade sobre os cinco maridos. Também quando outra mulher foi surpreendida em adultério, Jesus só pergunta se alguém a tinha condenado e, não a condenando ele também, despede-se dela dizendo-lhe apenas: “Não peques mais!” Já no caso do jovem rico que cumpria os mandamentos, Jesus lhe exige mais, mas o jovem não aceitou a proposta. Trata-se da pedagogia do passo seguinte. É preciso perceber que a única exigência do evangelho é sair do lugar de onde estamos para um passo seguinte. E mais: só a própria pessoa pode dar esse passo; não adianta ser imposto por pressão externa. Assim, teremos bom futuro no campo da pastoral. Pergunte a si mesmo: o que posso propor a mais do que a simples atitude estética e emocional? Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 93 Igreja, Sociedade e Juventude Pe. Siro: Desejo fazer a união de algumas ideias advindas da reflexão do Pe. Nandi e do Pe. Libânio. Quanto ao mito das sereias, ressalto um detalhe importante. Ulisses mandou a tripulação selar os ouvidos com cera de abelha, e mandou que o amarrassem ao mastro, com as mãos para trás. Os marinheiros surdos impulsionaram o navio na direção das sereias. Impedidos de escutar o seu canto não eram seduzidos e, consequentemente, não se afogariam. É interessante lembrar que apareceu Morfeu, e cantou mais belamente que as sereias. Sendo assim, foram elas que se afogaram no mar. Devemos ter um canto melhor para cantar. Em nosso caso, é o Evangelho inserido no mundo de hoje que vai afogar as sereias. Como será? É uma luta... Pe. Pedro Paulo Alexandre: Hoje o conhecimento teológico está muito acessível. Existem diversos meios para se estudar Teologia. Isso tem despertado em nossos jovens um maior amor à Igreja. Sinto que hoje temos uma juventude, apesar de tudo, marcada pela fidelidade. Como nossos jovens e nossos padres jovens podem ser realmente fieis ao Magistério, sem abafar o que é próprio da nossa Igreja local? Dom Demétrio: Tantas coisas profundas que nos fazem pensar. Isso é muito bom. Não sei se captei bem, mas a imagem bloqueia a reflexão. No que diz respeito à Liturgia, é preciso deixar de encher de imagens para aumentar os símbolos. Afinal, as parábolas de Jesus eram simbólicas e estas desencadeavam um processo de reflexão. Como superar o imaginário em nossa Liturgia? Como valorizar mais o símbolo, para que nossa Liturgia seja verdadeira e que possa conseguir atingir nossos os maiores de uma verdadeira evangelização? Pe. Libânio: A raiz da palavra “fidelidade” é fé. Fé é entrega de si mesmo a Deus Pai e aos irmãos. Esta é a fidelidade radical. Qualquer fidelidade 94 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Debate sobre a conferência do Pe. Dr. João Batista Libânio, SJ fora disso é formalismo. Jesus critica bastante uma fidelidade obcecada pela lei e pelos costumes. Cito, por último, uma frase bela do Cardeal Martini: “Agora, na minha idade, quando me perguntam alguma coisa, eu procuro pensar o que Jesus diria ou faria.” Portanto, não se trata especificamente do que a norma ou a regra diz. O importante é notar aquilo que Jesus diria a partir do que nós conhecemos do Evangelho. É essa a nossa vocação. Professor Ramada: Imagino que, por causa da voz, Pe. Libânio não teve condição de ressaltar a importância da etimologia das palavras “jovem” e “juventude”, pois, segundo Jung, a etimologia é um caminho que leva a pessoa da palavra ao símbolo. Fidelidade ao Evangelho, a meu ver é importante, pois esta vai constituir o caminho para que fiquemos enraizados onde Deus nos chama. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 95 Curso de Pós-Graduação em Estudos Bíblicos Lato Sensu – Especialização Justificativa e Objetivo Geral A Bíblia está sendo redescoberta. Cada vez mais ela desperta o interesse da sociedade em geral. Muitas pessoas engajadas em serviços eclesiais, em organizações e movimentos populares, em instituições de ensino ou mesmo inseridas em outros espaços, manifestam o desejo de aprofundar o conhecimento da Bíblia, tanto em seu aspecto histórico-literário como na metodologia de leitura e interpretação e também como fonte de mística e de espiritualidade. A Faculdade Católica de Santa Catarina (FACASC), ao promover este curso, deseja acolher as expectativas destas pessoas, visando, especialmente, a capacitação de agentes pastorais das diversas igrejas cristãs. Período do Curso Outubro de 2013 a Abril a Novembro de 2014. Estrutura do Curso • • • • BLOCO I: Introdução ao Estudo da Bíblia: Introdução ao Estudo da Bíblia e Linha do Tempo (30 h/a) Geografia e Arqueologia Bíblicas (15 h/a) Noções de Hebraico Bíblico (15 h/a) Metodologia de Leitura e Interpretação de Textos Bíblicos (15 h/a) Metodologia de Estudo, Pesquisa e Elaboração de Trabalho Científico (15 h/a) BLOCO II: História e Literatura do Primeiro Testamento: Formação do Povo de Israel - Êxodo e Tribalismo (15 h/a) Monarquia e Profetismo (15 h/a) Exílio da Babilônia (15 h/a) Pós-Exílio e Sapienciais (15 h/a) Intertestamento e Ambiente Neotestamentário (15 h/a) Noções de Grego Bíblico (15 h/a) BLOCO III: História e Literatura do Segundo Testamento: Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos (30 h/a) Escritos Joaninos (15 h/a) Escritos Paulinos (15 h/a) Cartas Católicas e Pastorais (15 h/a) Apocalíptica e o Apocalipse (15 h/a) BLOCO IV: Temas Bíblicos: Bíblia e Ecologia (15 h/a) Bíblia, Etnias e Diversidade Religiosa (15 h/a) Bíblia e a Questão de Gênero (15 h/a) Cristologias Bíblicas (15 h/a) A Bíblia na História da Igreja (15 h/a) Seminário sobre as Monografias de Conclusão de Curso (15 h/a) Informações • www.facasc.edu.br • [email protected] • Fone: (48) 3234-0400 Resumo: O propósito do artigo, que se concentra na questão hermenêutica, está expresso no título da Introdução: continuidade, rupturas e espírito do Concílio. Advertindo contra o perigo de “matar o espírito do magistério conciliar com a arma de sua própria letra”, o autor começa estudando a Gaudium et Spes como instrumento epistêmico, ressaltando a dimensão constitutiva do último documento do Concílio, uma “Constituição”. Mostra também suas “repercussões epistêmicas”, e discute o alcance e valor teológico da ação pastoral no terreno doutrinário. Situando a GS cinquenta anos depois, o autor distingue entre “doutrina social” e “dimensão social da doutrina católica”, considera a GS uma “semente plantada na terra”, e apresenta o conceito de “sinais dos tempos como marco epistêmico”, contrapondoos aos “sinais de Deus como marco teológico”. Apresenta ainda o espírito do Vaticano II como suporte epistêmico da relação entre Deus e o seu Povo, e reforça a necessidade de considerar a episteme de Jesus de Nazaré, um judeu do seu tempo. Finalmente, depois de considerar a intimidade de Deus no íntimo do ser humano, formula a sua conclusão: não é possível reduzir a GS a um piedoso conjunto de conselhos pastorais. Os desafios lançados por essa Constituição conciliar têm um longo caminho a percorrer. Abstract: The main objective of this article is to analyze the hermeneutic approach which is expressed in the title of its introduction: continuity, rupture, and the spirit of the Council. One should be aware of a sense of caution against the danger of “killing the spirit of the counciliar teaching with its own letter”, as the author starts his study of the document Gaudium et Spes (GS) as an epistemic instrument, laying stress on the constitutive dimension of the last document of the Council, which is defined as a “Constitution”. He shows forth its “epistemic repercussions” and discusses the ambit and theological value of the pastoral activity as regards the doctrinal area. Looking back at GS fifty years after its publication, the author distinguishes between “social doctrine” and the “social dimension” of the Catholic doctrine, he considers GS as a “seed planted in the soil” and presents the concept of the “signs of the time as an epistemic mark of reference”, as a counter position to the “signs of God as a theological stamp”. Similarly, he presents the spirit of Vatican II as an epistemic support of the relationship between God and his People, and reinforces the need to consider the episteme of Jesus of Nazareth, as a Jew of his time. Finally, after considering the intimacy of God in the innermost kernel of the human being, he advocates in the conclusion that it is not possible to reduce GS as a pious monograph of pastoral advice. The challenges raised by this counciliar Constitution still have a long way to go until they are fulfilled. O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes Daniel Ramada Piendibene* * O autor é Mestre em Sociologia e Ciências Políticas, Montevideo, Uruguay, 1971; Mestre em teologia, Fribourg, Suíça, 1985; foi Professor no ITESC, Florianópolis, e na PUC, Curitiba, 1988-1992; Diretor do ITESC, 1988-89; é Embaixador do Uruguay junto à Santa Sé, residindo em Roma desde inícios de 2012. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013, p. 97-136. O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes Introdução: Continuidade, rupturas e espírito do Concílio Parece-me oportuno começar esta exposição situando o ponto em que se encontra atualmente o debate sobre o alcance do Concílio Vaticano II em geral, e da Gaudium et Spes em particular. Desde alguns anos, em diversas manifestações do Magistério alude-se explicitamente a uma correta hermenêutica dos documentos do Vaticano II. Os quarenta e cinco anos de seu encerramento e, agora, os cinquenta anos de sua abertura, voltaram a colocar sobre a mesa uma pretendida diferença entre as chamadas, respectivamente, Hermenêutica de continuidade e Hermenêutica de descontinuidade ou da ruptura1. Sem pretender julgar as intenções dos que defendem uma ou outra dessas posições, a distinção, em si mesma, se parece muito com um paralogismo de falsa oposição. Com efeito, em algumas instâncias canônico-administrativas da estrutura do governo eclesiástico central se acentua, com ênfase, que existe uma correta hermenêutica dos documentos conciliares que exclui outras leituras, desviantes ou incorretas. Essa leitura deve basear-se no texto deixando de lado o contexto ou a história que levou à formulação documental que recebemos. Mais ainda. Apartando-se da complexidade que o próprio Bento XVI assume em fins de 2005, não são poucos os que advertem contra o perigo de postular um espírito do Concílio2. Do ponto de vista da teologia parece-me mais adequado distinguir – sem contrapor – ambos os métodos. Em última instância, um poderia definir-se como hermenêutica formalista, com o risco do reducionismo, e o outro como hermenêutica contextual que, sem negar o produto documental final, procura entender as legítimas novidades incorporadas no processo histórico de formação do texto. Todos sabem, e seria uma aberração jurídica negá-lo, que qualquer texto normativo se baseia em um espírito, um conjunto de intenções, com os quais o legislador pretende 98 1 O próprio Bento XVI o havia feito em várias ocasiões, antes e depois de seu duplo ministério romano – Prefeito e Papa. O pronunciamento mais expresso teve lugar no advento de 2005, isto é, poucos meses depois de assumir o pontificado. Diante da Cúria romana contrapôs dois tipos de hermenêuticas que chamou de ruptura e de reforma. O discurso, equilibrado e rico, vai bastante além das simplificações reducionistas que lhe atribuem de forma equivocada – quando não oportunista – alguns de seus intérpretes. (cf. http://www.vatican.va/holy_father /benedict_xvi/speeches/2005/ december/documents/hf_ben_xvi_spe_20051222_roman-curia_sp.html). 2 Em que pese às leituras redutivas, o então Bispo de Roma não só fala de um espírito do Concílio, mas até fundamenta a necessidade de revivê-lo. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Daniel Ramada Piendibene enfrentar as situações que o levaram à sua intervenção. A tal ponto isso é inegável, que o espírito do legislador tem sido sempre uma das regras da interpretação jurisprudencial. Os documentos do Concílio, além de sua expressão formal, têm uma história que revela o caminho que levou ao texto aprovado que mostra quais as formulações que os Padres conciliares descartaram por julgá-las inadequadas ao espírito e à intenção da Assembleia. De um ponto de vista puramente epistêmico – e a hermenêutica é uma operação epistêmica – continuidade e ruptura não são antinômicas, mas só estão em níveis diferentes. O método antinômico que exclui o contrário – confundindo o âmbito de aplicação das regras da lógica formal ao projetá-las sobre processos histórico-diacrônicos – este, sim, é incompatível com a tradição. É impossível negar que na hermenêutica doutrinal da Igreja Católica o princípio calcedônio de “distinguir sem separar”3, constitui um são antídoto e previne, ao mesmo tempo, contra os reducionismos e os absolutismos. Assumir a complexidade do processo de formação de uma doutrina permite conservar o espírito que vivifica sem menosprezar sua expressão mediatizada pela letra. Para que a letra não mate, o espírito deve ser cuidadosamente recordado e evocado. Desse modo, não se desnaturaliza a expressão escrita da doutrina, por redução a uma pura fórmula enunciativa. Em todo caso, obriga sempre a discernir a novidade dentro da continuidade. A substituição de um modelo ou paradigma conceitual, que durante algum tempo tenha sido necessário para sustentar o discurso dogmático, não cancela a continuidade, mas antes a enriquece, porque mostra os aspectos emergentes que permitem atualizar a expressão do mistério dando nova vida à tradição multissecular4. A ruptura significa descartar os odres velhos para conservar o vinho novo. Pôr a salvo a tradição como operação dinâmica e complexa de recepção, entrega e transmissão de um depósito, supõe entender que em cada Concílio Ecumênico houve um antes e um depois. Na primeira metade do século XX, por exemplo, falar de “história do dogma” era 3 Sem confusão, sem mudança, sem divisão, nem separação. 4 O processo de quebra de paradigma ou modelo, como estrutura prévia e subjacente à lógica do discurso, produz-se no mais das vezes por insuficiência do seu alcance instrumental para incluir corretamente as variáveis conceituais que devem associar-se na descrição ou explicação de um fenômeno. Nesse plano não se trata de verdade ou falsidade, mas sim de aptidão ou coerência funcional e inclusiva na hora de levar em conta os elementos causais, cada vez mais numerosos e complexos, que concorrem tanto para os processos históricos como para sua contrapartida de decodificação cognitiva. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 99 O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes equivalente a ruptura. Mas o Concílio assumiu a historicidade como princípio e, desse modo, rompeu com o costume de enunciar a fé em termos formais de exclusão (anathema sit – seja anátema). Não creio que o tenha feito para agradar ao cidadão secular5, mas porque entendeu que as formas de conceber o homem e a sociedade mudaram, tornaram-se mais complexas e mais ricas, tanto como a própria realidade do conhecimento humano. Esta preocupação de entender o espírito do tempo, que João XXIII descreve com a formulação evangélica de sinais, constitui uma ruptura epistêmica. Há um antes e um depois, como o houve em Niceia, Éfeso, Calcedônia, ou Trento. Renunciar ao espírito do Concílio como marco hermenêutico; renunciar a incluir a intenção manifesta dos Padres de renovar a metodologia da expressão e da ação, ou não querer levar em conta o contexto no qual se geraram os textos, significa um tipo de ruptura qualitativamente mais grave do que a que põe o acento nas novidades. Significa autoexcluir-se da vontade dos Padres em nome de uma fidelidade abstrata, não à tradição da Igreja, mas a uma forma não poucas vezes contingente de enunciá-la. Como disse, os Concílios ecuménicos são acontecimentos da história da Igreja que marcam um ponto de inflexão. Aqueles que, querendo emular com o inefável Cardeal Alfredo Ottaviani6, definem o sentido e destino da Igreja pelo semper idem porão, logicamente, o acento na continuidade doutrinal – imutável quanto a seu objeto – dizendo que o Concílio não acolheu nenhuma pluralidade. O preço que se paga por esta posição é julgar as rupturas, empíricas, como desvio, e a discrepância, como anátema. Numa palavra, estarão confundindo um nível formal de expressão contingente com a realidade total. Corre-se assim, ao mesmo tempo, o risco de matar o espírito do Magistério conciliar com a arma de sua própria letra. Primeira parte: A Gaudium et Spes como instrumento epistêmico Nos últimos dez ou quinze anos, para não dizer nos quarenta e sete que passaram desde que se promulgou a Gaudium et Spes, frequentemente se argumenta que este escrito do Magistério extraordinário da Igreja, novo e excepcional de muitos pontos de vista, não tem o mesmo alcance ou projeção doutrinal que as demais Constituições emanadas do 100 5 Parafraseando Harvey Cox. 6 Um homem cuja fidelidade a seus princípios e, sobretudo, cuja santidade de vida, está fora de toda discussão. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Daniel Ramada Piendibene mesmo Concílio. Mediante uma distinção excludente entre o dogmático e o pastoral – antinomia por contraposição que não fizeram nem quiseram os Padres conciliares – atribui-se à Gaudium et Spes uma espécie de status teológico de menor valor. Nessa perspectiva, afirmar seu caráter pastoral equivale a postular que seu conteúdo não deve ter maiores repercussões na área dogmática7. Estou convencido de que esta visão não só é injusta em relação à vontade do Concílio Vaticano II, mas ainda induz em erro do ponto de vista estritamente doutrinal. Porquanto, por sobre todas as coisas, significa desvirtuar mediante distorção redutiva o alcance de um ato do Magistério – inspirado pelo Espírito Santo e garantido pela comunhão do Colégio episcopal com o Sumo Pontífice – que assume a densidade dos novos tempos como terreno a ser explorado e evangelizado a partir da sua própria complexidade e pluralidade8. Como disse, o argumento não é novo. Aparece aqui e ali, nos primeiros anos do pós-Concílio, geralmente sob a intenção de evitar presumíveis desvios no âmbito dogmático. Entretanto, nos últimos lustros, essa visão parece dominar como uma espécie de cânon exegético para a correta interpretação do magistério conciliar. Os que assim raciocinam esquecem ou escondem que, apesar das propostas em contrario, Gaudium et Spes é uma Constituição de mesmo título que as outras três. Que foi querida como tal pelo Concílio em comunhão com o sucessor de Pedro e aprovada por dois mil e trezentos e nove (2.309) Padres que representaram, no momento culminante da Assembleia, nada menos que noventa e sete por cento (97%) do Colégio Episcopal presente na aula conciliar9. Um Colégio Episcopal heterogêneo em idades, tendências, regiões de proveniência, culturas e funções eclesiásticas10. 7 O conceito de contraposição deve ser entendido como choque de antinomias, mais além da simples distinção. A distância que há entre distinguir e separar é a mesma que faz a diferença entre um tipo de dialética de integração, á maneira de Hegel, e a dialética da exclusão (antinômica), própria das variantes mais radicais do paradigma materialista. 8 Isso me faz lembrar aquela afirmação tão clara e radical de Jesus sobre o pecado contra o Espírito Santo. O único que não tem perdão nem nesta vida nem na outra, porque atribui a Deus algo que em realidade vem do Maligno. 9 Por honradez intelectual restrinjo-me à percentagem “estatisticamente menos favorável”, porque, se deixarmos de lado as abstenções e os placet juxta modum (3%), tomando como dissenso apenas o número de non placet (sete votos em quase quatro mil), chegamos à aprovação de 99,7%, isto é, apenas 0,3% de não aprovação. 10 Vale a pena perguntar se esta surpreendente unidade na heterogeneidade não constitui um argumento de infalibilidade, por obra do Espírito Santo, mais patente e forte Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 101 O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes Sublinhar ou enfatizar que se trata de um documento prevalentemente pastoral – quase se diria exclusivamente pastoral – para eludir suas opções teóricas de base, equivale a julgá-lo como uma espécie de amontoado de conselhos práticos, circunstanciais ou ocasionais, cujo valor principal se limitaria ao tempo que o produziu e cuja vigência permaneceria circunscrita à atualidade ou obsolescência dos problemas que motivaram sua redação. Assim se subestima o valor dogmático da metodologia doutrinal que nos propõe, olvidando-se que, por mais que repugne aos adversários esse modelo teológico, a Gaudium et Spes também é vinculante em termos de opções teóricas11. Uma teologia que incorpora a realidade fenomênica de uma sociedade em constante crescimento, complexificação e desenvolvimento, como ponto de partida do discurso sobre Jesus e Deus, seu Pai, é algo mais do que um esboço implícito. É uma opção lícita e, de certo modo, como já disse, vinculante. O Senhor da história chama os cristãos de cada nova geração a darem sua resposta no tempo que lhes toca viver. A Gaudium et Spes inaugura a doutrina epistêmica do tempo da complexificação da história humana pelo aumento exponencial das relações intersubjetivas no plano social. Seria muito míope crer que, insistindo em um discurso que ignora essa complexidade, seja possível cancelar seus desafios e evitar suas consequências. Não é enterrando o talento, para guardá-lo sem riscos de perda, que se transmite fielmente o depósito, menos ainda negando a singularidade do presente e qualificando de “relativismo” o que na realidade é complexidade plural. Para enfrentar esse reducionismo metodológico e que qualquer consenso obtido ao preço da exclusão das discrepâncias. A autoridade doutrinal da metodologia teológica do Concílio deriva imediatamente desta espécie de milagre, esquecido ou voluntariamente ocultado nos anos seguintes, quando começou a aplicar-se uma política de ostracismos na hora de convocar peritos e censurar supostos rebeldes ou “dissensionários”, para usar um neologismo que evita o termo “dissidente”. 11 102 Quando digo vinculante não proponho a exclusão dos que não pensam como, em seu tempo, pensaram os Padres conciliares. A Gaudium et Spes vincula porque obriga a respeitar a perspectiva que a mesma Igreja assumiu, como marco teológico, e o compromisso de desenvolver suas consequências. Afirmo, sim, a inclusão da complexidade no método que ampliou as regras hermenêuticas da teologia mediante a incorporação do fenômeno social como variável passível de reflexão e juízo, também teológico. Assumo o diálogo – em pé de igualdade – entre a Igreja e o mundo como enriquecimento à contribuição da Igreja ao serviço do mundo. Assumo o risco da pluralidade de opiniões no seio de uma sociedade que se pensa a si mesma sem outorgar à doutrina eclesiástica um caráter vinculante no terreno de sua própria autonomia. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Daniel Ramada Piendibene o consequente menosprezo doutrinário, é necessário ir à raiz das coisas e esboçar, pelo menos, três linhas de raciocínio: a) Intenção magisterial dos Padres conciliares b) Estatuto epistêmico da metodologia da Gaudium et Spes c) Alcance e valor teológico do discurso doutrinário subjacente a partir das premissas da ação pastoral 1.1 A dimensão constitutiva da Gaudium et Spes O documento sobre as relações entre a Igreja e o mundo contemporâneo poderia ter sido concebido como uma Declaração. Entretanto, o Concílio o quis sob a forma de uma Constituição. Que significa este caráter explicitamente buscado pelo Colégio conciliar, em comunhão com Pedro? E em que aspectos é juridicamente vinculante? Se algo não se pode negar é que os Padres conciliares, todos formados na disciplina eclesiástica anterior aos anos 60, para além de suas diversidades, têm em comum um sólido conhecimento das regras canônicas. No âmbito jurídico – e o estatuto de um documento marca sua intenção normativa – distingue-se entre atos declaratórios e atos constitutivos. Uma declaração reconhece do ponto de visto formal uma realidade ou fato precedente, cujas consequências normativas explicita ou resgata o jurista. Um ato constitutivo é aquele que, a partir do imperium de quem tem poder para isso, provoca ou gera um fenômeno institucional e/ou normativo novo. Cria uma realidade fática não preexistente, e a cria com alcances jurídicos. Em nosso caso, constitui uma realidade doutrinal e prática que orienta e delimita os termos da relação entre a Igreja e o mundo contemporâneo. Aqui há um ponto de inflexão. Não é procedente falar de ruptura antinômica, porque não se está negando nenhum valor ou doutrina anterior. Mas, sim, é necessário falar de constitutividade e, nesse contexto, de novidade, de descontinuidade criadora, quase diria, de ontogênese. Vetera sed nova. Mas há mais. Constitucionalmente falando, seu alcance pastoral não é concebido em detrimento de seu alcance doutrinal. Pelo contrario. O caráter constitutivo da doutrina eclesiológica da Gaudium et Spes a coloca em pé de igualdade e em linha de projeção complementar com relação à teologia da Lumen Gentium. Se não é lícito ler Gaudium et Spes em contraposição a Lumen Gentium (e a Dei Verbum!), tampouco é lícito ler Lumen Gentium com exclusão de Gaudium et Spes, nem Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 103 O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes colocar a segunda em posição doutrinalmente subordinada à primeira. A longa história do célebre “Esquema XIII” só ratifica o alcance destas afirmações. Portanto, ao optar pela forma constitucional, os Padres conciliares introduzem um elemento novo na doutrina eclesiológica. Concebem que, doravante, a missão da Igreja passa pelo diálogo de igual para igual com o mundo contemporâneo, e instituem a categoria “sinais dos tempos” – perscrutar os sinais dos tempos – como o instrumento a desenvolver para manter apta, na história, nesse diálogo, a comunidade eclesial. A vocação pastoral da Igreja, muito mais que uma função, é uma dimensão. Eleva a racionalidade, a alteridade coletiva, ao estatuto de categoria epistêmica, de ratio teológica. Os Padres conciliares acolhem a missão e o diálogo com o mundo – plural e exterior a ela – como nota constitutiva do mistério da Igreja. 1.2 Repercussões epistêmicas da Constituição Gaudium et Spes Até o momento, tenho utilizado o termo episteme insistentemente, sem dar-me ao trabalho de definir o alcance e significado que lhe atribuo12. Na segunda parte desta exposição abordarei o ponto com um pouco mais de detalhe. Por enquanto baste dizer que me refiro aos pressupostos que orientam a lógica de incorporação e comunicação do conhecimento através de um sistema pré-consciente ou meta-racional de associação de conceitos e representações com referência à visão do mundo e aos valores consensuais para uma sociedade ou civilização13. No parágrafo anterior sustentei e provei que o caráter constitucional da Gaudium et Spes projeta consequências doutrinais no terreno da eclesiologia. Aludi, também, à evolução histórica do “Esquema XIII”. O longo caminho percorrido pelas sucessivas redações, até alcançar o status de textus denuo recognitus, não pode desconhecer-se como chave 104 12 Os ouvintes que acompanharam minha trajetória docente no ITESC e nesta revista “Encontros Teológicos” podem consultar as apostilas da época ou alguns artigos relativos às balizas do pensamento teológico, como, por exemplo, “Para além do paradigma de Hegesipo” (in “Canto da Palavra”, ITESC, Florianópolis, 2005, pp. 111176) e “Dimensões epistemológicas na economia da Revelação e Verbum Domini”, in “Encontros Teológicos” n.59 (2011/2), pp. 55-84. 13 Configuração do saber de uma época, na perspectiva de Foucault, ou paradigma, na de Feyerabend, Kuhn, Toulmin e, de certo modo, Lakatos. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Daniel Ramada Piendibene hermenêutica. Um exemplo: inicialmente o documento começava pelas palavras “Gaudium et Luctus”, mas um grupo de Padres observou que a intenção do Concílio era estabelecer um diálogo de reconciliação com os valores positivos do mundo contemporâneo. Começar falando de “gozo e dor”, para além da legitimidade dessa formulação dialética, não caracterizava o acento que João XXIII quis dar explicitamente ao Concílio14. A esperança, no limite da utopia, representava uma aspiração maior e um eixo de compreensão da cultura contemporânea. A versão seguinte mudou a ordem dos fatores, alterando o produto15. Estabelecido o status e valor doutrinais da Constituição, quero deter-me agora em outro aspecto fundamental. O caráter vinculante de sua metodologia teológica. Com efeito, Gaudium et Spes também apresenta um aspecto normativo em termos de epistemologia teológica. Isto pode dizer-se de duas maneiras, que não só não se excluem, mas sim conformam uma totalidade hermenêutica circular: Seu caráter pastoral traduz uma opção epistêmica e, ao mesmo tempo, suas opções epistêmicas – logicamente anteriores à formulação propositiva textual – convertem a ação pastoral em lugar teológico. Não qualquer lugar teológico, mas sim o seu ponto metodológico inicial. Tomar como ponto de partida do discurso teológico a realidade fenomênica, coletiva, quer dizer, interativa e social, significa fundar o método doutrinal no discernimento da ação divina no tempo, mutante, das circunstâncias históricas. A ação, pastoral, converte-se em parte e instrumento do processo cognitivo e, ao mesmo tempo, em categoria doutrinal: os sinais de Deus se descobrem ao perscrutar os “sinais dos tempos”. Buscar e encontrar a vontade de Deus absoluto no mistério do tempo contingente significa reconhecer que o homem conhece e se conhece na dimensão de profundidade transcendente a partir das respostas imanentes alinhavadas através do trânsito histórico. Gaudium et Spes é constitutivamente epistêmica porque é pastoral, e é constitutivamente pastoral porque assume a dimensão histórica e social do conhecimento como ponto de partida do descobrimento da vontade de Deus. 14 São célebres as palavras mediante as quais tomou distância dos profetas da desgraça, despojando-se de um tipo de magistério condenatório, inadequado, a seu juízo, em ordem à missão evangelizadora do momento. Se aqui não há uma chave hermenêutica sobre o espírito do Concílio, onde deveríamos buscá-la? 15 Por isso, Paulo VI, na alocução pública da sessão de encerramento, acentuou que o Concílio quis, expressamente, transmitir uma mensagem “deliberadamente otimista” sobre o ser humano e a sociedade. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 105 O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes 1.3 Alcance e valor teológico da ação pastoral no terreno doutrinário A esta altura cabe perguntar: de que ação pastoral fala o Concílio? Precisamente da ação pastoral de descobrir e proclamar o mistério divino manifestado no povo de Israel, plenamente revelado naquele homem israelita chamado Jesus, reconhecido, por acolhimento da obra do Espírito, como mistério de encarnação do Verbo eterno que se fez homem, que se fez ação histórica mediante gestos e palavras, especialmente pela morte em sua natureza humana e a ressurreição gloriosa. Se formos consequentes com a metodologia teológica da Gaudium et Spes, devemos admitir, como base discursiva, que Jesus, o Deus feito homem, tomou sua natureza humana, imanente, precisamente no contexto cultural de um povo cuja episteme deriva da memória histórica, não da especulação abstrata. Com efeito, o Pai eterno, em sua infinita sabedoria e bondade, dispôs que Israel fosse a matriz cultural do Verbo divino, quer dizer, a base e, sobretudo, a estrutura epistêmica para veicular em linguagem humana a plenitude da revelação. Assim, entre outras muitas maravilhas, escolheu Abraão, do qual formou um povo com quem celebrou uma Aliança, libertou-o da escravidão genocida, deu-lhe a conhecer no deserto a sua força, sua misericórdia e seu amor salvífico, entregou-lhe uma terra santa como herança, pelos profetas foi manifestando-lhe sua intimidade, resgatou-o do cativeiro e, chegada a plenitude dos tempos, mediante o poder do Espírito, cobriu com o poder de sua sombra a uma humilde jovem de Nazaré na Galileia, em cujo seio aninhou o Salvador. Ora bem, todos esses santos têm um elemento comum: uma episteme baseada na memória histórica, que se traduz em imagens arquetípicas, como experiência gravada na natureza humana no nível de psique profunda. O homem Jesus veio aos seus em um Povo no qual o processo do autoconhecimento é como um subproduto de ação e reflexão. Ação de resposta à iniciativa divina, e de memória que busca atualizar em cada geração a fidelidade a uma Aliança chamada a gravar-se, como reflexo, no coração de seus escolhidos. A teologia pastoral da Gaudium et Spes, através da lógica epistêmica implícita no discernimento dos sinais dos tempos – que para o discípulo de Jesus se convertem em sinais de Deus - devolve ao método hermenêutico sua dimensão bíblica: buscar e encontrar a vontade divina no terreno da ação histórica concebida ao mesmo tempo como memória, vocação, resposta e missão. 106 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Daniel Ramada Piendibene A modo de primeiras conclusões Visto desta perspectiva não é, precisamente, douta ignorância, mas ignorância indouta, ou, no melhor dos casos, “ignorância invencível” por obstinação culposa, pretender que por ser uma Constituição pastoral, a Gaudium et Spes tem menor valor dogmático. Seu valor doutrinal deriva, justamente, da adequação harmônica ao método de teologizar próprio da matriz antropológica que o Pai dispôs como suporte epistêmico do Verbo encarnado. Segunda Parte: O Concílio Vaticano II cinquenta anos depois Acabamos de mostrar que a Gaudium et Spes possui uma dimensão teórica que impede por antecipação qualquer tentativa de reducionismo doutrinal. É um texto magisterial de primeira ordem ainda na área dogmática16, em primeiro lugar porque supõe uma revisão no terreno dos pressupostos epistêmicos implícitos ao trabalho teológico; e mais profundamente porque determina, também e por orientação expressa dos Padres conciliares,17 a incorporação nesse âmbito das regras do conhecimento atual, tais como se formulam a partir dos novos métodos e descobertas das ciências históricas, filosóficas, linguísticas, psicológicas e sociais.18 16 Quase ousaria dizer, “sobretudo na área dogmática”, pelas consequências que sua orientação epistemológica acarreta para o trabalho de pesquisa do teólogo, tanto como do pastor. 17 GS 62: Ainda que a Igreja tenha contribuído muito para o progresso cultural, mostra, contudo, a experiência que, devido a causas contingentes, a harmonia da cultura com a doutrina nem sempre se realiza sem dificuldades. Tais dificuldades não são necessariamente danosas para a vida da fé: antes, podem levar o espírito a uma compreensão mais exata e mais profunda da mesma fé. Efetivamente, as recentes investigações e descobertas das ciências, da história e da filosofia, levantam novos problemas, que implicam consequências também para a vida, e exigem dos teólogos novos estudos. Além disso, os teólogos são convidados a buscar constantemente, de acordo com os métodos e exigências próprias do conhecimento teológico, a forma mais adequada de comunicar a doutrina aos homens do seu tempo. 18 Pode parecer contraditório dizer “e sociais”, porque de fato a história, a filosofia, a psicologia etc., são por definição e, ao mesmo tempo, ciências do espírito e ciências sociais. Mas decidi deixar a frase dessa forma, para sublinhar a dimensão social de qualquer conhecimento humano, mesmo o teológico, na hora de ser formulado mediante a linguagem. É verdade que a fé é uma virtude infusa, mas sua expressão mediante a linguagem teológica é feita por homens que, epistemologicamente falando, são filhos de uma história vivida em sociedade. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 107 O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes Nesta segunda parte, pretendo analisar as consequências da Gaudium et Spes no terreno da teologia e no âmbito específico da doutrina social da Igreja.19 A primeira coisa a sublinhar é que foi o último documento promulgado pelo Vaticano II. Adquiriu oficialmente o estatuto de Constituição, isto é, regra de orientação da fé, em fins de 1965.20 Este fato não deve ser desprezado ou esquecido porque significa, de um lado, que é o fruto mais maduro do trabalho dos Padres e, de outro, que constitui uma espécie de síntese e testamento doutrinal do Concílio. Hoje, quase cinquenta anos depois, continuamos a estudá-la. Não se trata, apenas, de uma tarefa acadêmica ou erudita, mas, sobre tudo, de um ato vital para o Povo de Deus que peregrina nesta fase da história. Sublinho, nesta fase. A Gaudium et Spes inaugura uma nova modalidade no magistério da Igreja. Abre uma porta específica, ou uma janela para entrar o “ar fresco” que vem da sociedade, como disse João XXIII, que foi o primeiro Papa do século XX a falar da necessidade de um “pôr em dia” a doutrina no que refere à sua forma de apresentação aos homens do nosso tempo. Sua célebre expressão italiana aggiornamento virou vocábulo universal. A Gaudium et Spes acolheu o desafio. Aquilo que João XXIII disse na homilia de abertura do Concílio21, a Constituição Pastoral o incorporou no texto com que se encerraram os trabalhos doutrinários, determinando assim que a intenção do Pontífice fosse textual e explicitamente acolhida pelo magistério extraordinário. Com efeito, na homilia de inauguração do Concílio o Papa Roncalli dissera: O espírito cristão, católico e apostólico, do mundo inteiro, espera um progresso na penetração doutrinal e na formação das consciências; é necessário que esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e exposta de forma a responder às exigências do nosso tempo. Uma coisa é a substância do «depositum fidei», 108 19 No final, vou incluir um resumo e algumas pistas de leitura que faltou desenvolver na palestra por causa dos limites do tempo de exposição. Não se trata de um resumo – ou “apenas” de um resumo – mas, quando mister se faz, vou sublinhar alguma palavra-chave, importante para os Padres conciliares, que aparece como novidade desta Constituição, por vontade explícita daqueles que a elaboraram. 20 07 de dezembro de 1965, último dia do Concílio. 21 Homilia Gaudet Mater Ecclesia, de 11 de outubro de 1962. AAS 54 [1962] 792. Opportet ut haec doctrina certa et immutabilis, cui fidele obsequium est praestandum, ea ratione pervestigetur et exponatur, quam tempora postulant nostra. Est enim aliud ipsum depositum Fidei, seu veritates, quae veneranda doctrina nostra continentur, aliud modus, quo eaedem enuntiantur, eodem tamen sensu eademque sententia. http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/speeches/1962/documents/hf_j-xxiii_spe 19621011_opening-council_lt.html. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Daniel Ramada Piendibene isto é, as verdades contidas na nossa doutrina, e outra é a formulação com que são enunciadas, conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance.22 A Gaudium et Spes, quatro anos depois, incorpora o desejo de João XXIII sob a forma de texto normativo: [...] os teólogos são convidados a buscar constantemente, de acordo com os métodos e exigências próprias do conhecimento teológico, a forma mais adequada de comunicar a doutrina aos homens do seu tempo; porque uma coisa é o depósito da fé ou as suas verdades, outra o modo como elas se enunciam, sempre, porém, com o mesmo sentido e significado.23 E ainda acrescenta: Na solicitude pastoral, conheçam-se e apliquem-se suficientemente, não apenas os princípios teológicos, mas também os dados das ciências profanas, principalmente da psicologia e sociologia, para que assim os fiéis sejam conduzidos a uma vida de fé mais pura e adulta.24 2.1 Doutrina social e dimensão social da doutrina teológica Costuma-se dizer que a Rerum Novarum de Leão XIII inaugura a Doutrina Social da Igreja. A esta altura do desenvolvimento do discurso social católico, não interessa discutir se, do ponto de vista técnico, tal pensamento deve ser considerado como doutrina sociológica formal 22 Versão em português: http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/speeches/1962/ documents/hf_j-xxiii_spe_19621011__opening-council_po.html. 23 GS 62: Etenim scientiarum, necnon historiae ac philosophiae recentiora studia et inventa novas suscitant quaestiones, quae sequelas pro vita quoque secumferunt et etiam a theologis novas investigationes postulant. Praeterea theologi, servatis propriis scientiae theologicae methodis et exigentiis, invitantur ut aptiorem modum doctrinam cum hominibus sui temporis comunicandi semper inquirant, quia aliud est ipsum depositum Fidei seu veritates, aliud modus secundum quem enuntiantur, eodem tamen sensu eademque sententia. http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documentns/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_lt.html. Versão em português: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/ vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html. 24 Id. In cura pastorali non tantum principia theologica, sed etiam inventa scientiarum profanarum, inprimis psychologiae et sociologiae, satis agnoscantur et adhibeantur, ita ut etiam fideles ad puriorem et maturiorem fidei vitam ducantur. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 109 O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes ou não. O uso da expressão doutrina social terminou legitimando suas pretensões teóricas. Acredito, porém, que seja intelectualmente mais preciso dizer que o magistério social da Igreja católica, anterior à Mater et Magistra e à Gaudium et Spes, contém uma série de propostas de base teológica sobre a responsabilidade pessoal (e/ou grupal) e sobre as virtudes morais do individuo, no âmbito coletivo da sociedade. Trata-se de uma teologia moral projetada sobre a convivência entre pessoas e grupos individualmente considerados. A realidade social, porém, ainda é imaginada como fenômeno – somatório – de agrupação dos indivíduos. Nessa perspectiva, finalmente, a sociedade é apenas um conjunto de indivíduos mutuamente relacionados e unidos por laços jurídicos de direitos e obrigações. Porém, para termos doutrina social, propriamente falando, é necessário que o discurso sobre a sociedade assuma seu objeto como uma totalidade autônoma e complexa em vez de pensá-la como epifenômeno subsidiário de uma totalidade metafísica ou natural.25 Agrade ou não agrade a alguns porta-vozes da autoproclamada hermenêutica de continuidade – frequentemente imaginada como expressão perfeita e linear de uma verdade filosoficamente pura e incontaminada de historicismos – quem provocou a quebra de paradigma foi João XXIII.26 Com efeito, a Mater et Magistra, publicada durante o período de preparação do Concílio, é o primeiro documento do magistério que considera a sociedade como uma totalidade autônoma com leis próprias, isto é, como uma estrutura ou fenômeno cuja lógica de funcionamento ultrapassa a simples adição de partes. Para falarmos em forma didática, mesmo se, de um ponto de vista individual, todos os membros de uma sociedade ou grupo social se comportarem de modo eticamente justo – e até virtuoso – no conjunto se poderia perpetuar um sistema portador de consequências injustas, porque a unicidade do fenômeno como totalidade estrutural é logicamente anterior ao funcionamento das partes. 110 25 As encíclicas e pronunciamentos pontifícios entre 1891 e 1961 contêm diferentes elementos oriundos da ciência sociológica, conforme o desenvolvimento desta para cada época, mas a dimensão social do conhecimento e a sociedade como fenômeno e objeto autônomo de estudo não entra no sistema de pensamento que funda o discurso magisterial. A Mater et Magistra será a primeira peça interdisciplinar do magistério pontifício onde a doutrina moral incorpora a ciência específica do social. 26 Insisto. Aqui há uma confusão perversa. Imaginar a continuidade como ausência de rupturas ou de conflitos, mesmo que seja na base epistêmica das interpretações, equivale a excluir, pouco importa se intencionalmente ou não, a complexidade plural como contexto de conhecimento e proclamação da Palavra de vida. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Daniel Ramada Piendibene A partir de João XXIII, a doutrina da Igreja assume que as relações sociais constituem um campo autônomo, que cada dia tem maior impacto sobre a vida humana, e que a evolução das relações intersubjetivas no terreno coletivo constitui um fenômeno complexo, que ultrapassa a conduta individual das pessoas. Torna-se evidente que a interação humana e as relações sociais formam um objeto específico de conhecimento. O magistério entra, assim, na era da complexidade sistêmica das ciências humanas, como disciplinas que buscam entender a realidade empírica a partir dos fenômenos. O processo aberto pela Mater et Magistra conduz a um novo nível de interdisciplinaridade. Em rigor, não existe doutrina social sem uma ciência específica do social, e não existe ciência sem uma avaliação����� ���� crítica do conhecimento. Aqui temos uma hermenêutica de maturidade. A Gaudium et Spes será encarregada de assumir tal desafio epistêmico. A perspectiva que busca no discernimento dos sinais dos tempos o ponto de partida gnosiológico para descobrir a ação e a vontade de Deus no trânsito da peregrinação terrena, opera a atualização da forma como é pensada a fé da Igreja no contexto sincrônico da teoria social do conhecimento, e na perspectiva diacrônica do devir histórico. No capítulo anterior, falei de um antes e um depois. De Kant a Hegel e de Hegel aos diversos modelos de existencialismo, de positivismos e/ou de materialismos, os fenômenos históricos e sociais se convertem em ponto de partida do discurso gnosiológico.27 O Concílio assume a complexidade dos fenômenos como um initium fidei do sistema teológico. Eis a quebra de paradigma que, do ponto de vista dogmático, permite e legitima a Gaudium et Spes, tanto através de suas opções analíticas como mediante a teologia dos sinais dos tempos. Os textos dos concílios proclamam a fé e orientam o rumo do discurso teológico. É nesse sentido que se tornam, para além de uma 27 Não é este o momento para mostrar o caminho que o pensamento europeu e ocidental percorre desde o início do processo de emancipação das ciências humanas de sua tutela metafísica ou teológica. Apenas uma nota ao pé de página: É impossível entender a pós-modernidade (ou alta modernidade) sem aceitar que o pensamento da modernidade não é bom ou é ruim per se. É um dado da realidade e uma consequência da complexificação das relações sociais que provoca mutações no processo epistêmico. Rejeitar esse fato equivale a rejeitar nossa vocação e missão hoje. Pena não termos nascido no Egito das cebolas metafísicas. Mas o Senhor nos chama neste deserto – caótico para alguns – de pluralidades e relatividades! Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 111 O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes declaração, a regra constitutiva na forma específica de “vinculação”.28 Caráter vinculante significa que o documento mostra a forma como se expressa a fé da Igreja a fim de que seus membros a recebam a título de mediação correta para proclamar o mistério de Deus revelado através da Palavra. É uma ruptura com a fé tradicional da Igreja? Obviamente não! Trata-se da incorporação dos elementos epistêmico-diacrônicos da teoria social do conhecimento, dentro da base do discurso dogmático. Quarenta anos depois, apenas começamos a ver a dimensão espantosa deste desafio científico-teológico. 2.2 Gaudium et Spes como semente na terra (nisi granum frumenti) A multiplicação das informações, característica da sociedade contemporânea, isto é, aquelas que circulam em tempo real ou são disponibilizadas nas enciclopédias e bibliotecas eletrônicas, exige das ciências do conhecimento um tipo aprofundado de discernimento. A dimensão social e intersubjetiva da formação dos conceitos e das categorias analíticas é um fenômeno que abrange, embora através de modalidades específicas, todas as áreas do conhecimento humano. Nesse sentido, tanto as doutrinas sociais como as meta-sociais, incluindo a teologia, supõem no processo de formação de seus discursos, pressupostos e chaves implícitas de incorporação, formulação, interpretação e leitura. Tais regras ou recorrências constantes estão relacionadas com modelos estáveis de categorização (por abstração) e hierarquização (por associação valorativa). Na teologia católica, entre a segunda metade do século XIX e o pontificado de João XXIII, para além de nuances casuísticas ou funcionais sem a menor importância teórica (apesar de muito sublinhadas hoje pelos defensores da hermenêutica de continuidade lineal), o marco teórico predominante no campo dogmático, incluída a eclesiologia, foi invariavelmente de base metafísica, de corte neoescolástico e, ainda, com pretensões disciplinarias. Sublinho: estou falando em marco teórico, isto é da lógica subjacente ao discurso doutrinário. A metafísica neoescolástica 28 112 Lex credendi. O primeiro passo do cristianismo emergente em direção da diferenciação religiosa em relação ao judaísmo matriz, foi a mudança das regras legais no tipo de vínculo com a comunidade. Do povo judeu se faz parte pelo sangue e pela circuncisão, é uma pertença étnica. Para ingressar, porém, no caminho dos messianistas é necessário assumir, como lei, uma regra de confissão: a fé em Jesus ressuscitado. Trata-se de uma pertença doutrinal, confessional. A fé publicamente confessada virou norma de comunhão e limite institucional. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Daniel Ramada Piendibene não chegou a ser definida como dogma de fé29, mas, de fato, foi apresentada e até imposta como “o” ou único marco filosófico verdadeiramente compatível com a fé. Um marco que, na prática, era o limite conceitual para os teólogos de confissão católica. A metafísica escolástica permitia o acesso à verdade, uma espécie de formulação eterna de fé, formalmente plena e situada por cima e para além da contingência histórica. O Vaticano II, acolhendo a dimensão temporal do conhecimento, mudou essa perspectiva e abriu o pensamento teológico para a complexidade. Aqui temos, então, a primeira novidade ou descontinuidade doutrinal acontecida com o advento da Gaudium et Spes. Eis o ponto que deve ser focado na hora de avaliar a mudança de perspectiva operada. Eis, ainda, por que é indispensável mostrar a orientação fundante e não apenas declaratória de nossa Constituição, a fim de captar, em sua devida dimensão, o desafio que, através do Magistério, o teólogo deve honrar.30 Pois precisamente nesse terreno, a sua teologia fornece elementos que permitem ultrapassar uma falsa contraposição entre teologia e ciências sociais, entre verdade e ideologia,31 entre dogma e relatividade, entre sincrônico e diacrônico ou entre horizontal e vertical. 29 Embora, de parte de muitos durante a primeira metade do século XX, vontade não tenha faltado! 30 Hoje, na teologia acadêmica europeia, especialmente aquela vinculada a movimentos de perfil institucional, voltamos a escutar falar muito em Verdade, assim com maiúscula. Verdade, como uma espécie de absoluto para além do espaço e do tempo. Tal Verdade, pretende-se incontaminada de ideologias ou sistemas sociais de pensamento, e voltaria a ser a expressão formal definitiva e mais adequada para pensar a teologia. Não apenas, mas também a sua base, sua tarefa central e seu ponto de chegada. 31 O contrário de verdade, nessa ótica, seria ideologia ou “relativismo”. A imensa maioria dos cidadãos do continente americano não entende a ideologia como visão destorcida da realidade por interesses egoístas. Ele pensa diferentemente, porque vive outra experiência. Acostumado mais do que a protagonizar, a padecer o egoísmo exógeno de terceiros; acostumado a ser geralmente vítima de interesses estrangeiros e a sofrer as consequências do egocentrismo dos poderes coloniais e neocoloniais e do pecado que se reproduz nas relações humanas de interação coletiva, filho da escravidão, sabendo que sua vida é um segundo movimento no concerto da história que outros escrevem desde cinco séculos atrás, percebe a realidade com a perspectiva de quem a enxerga de fora. Seu presente é deficitário, como o era no Israel do pós-Exílio. Precisa de um futuro diferente, imagina-o, e busca a maneira de lá chegar. Precisa do tempo histórico para desenvolver a solução de problemas crônicos e sempre postergados. Para as sociedades centrais, o passar do tempo significa um risco de desestabilização. Uma ameaça. Um perigo. O reflexo é conservar, buscar que as coisas não mudem mas apenas transcorram sem maiores alterações. Nosso homem, em contrapartida, precisa do tempo como condição de possibilidade para dar respostas próprias a decisões tomadas por terceiros, inclusive em seu nome. Assim, vive ou experimenta o conhecimento, mas como visão parcial, sempre perfectível e sempre condicionada pela situação. Sabe que os interesses egoístas existem. É vítima deles. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 113 O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes Estou convencido de que numerosas confusões podem ser evitadas se tivermos o cuidado de mostrar que os mesmos fatos ou textos tradicionais são passíveis de análise sob diferentes perspectivas – em realidade níveis – que mais se complementam do que se contradizem. Em nosso caso, isto significa tornar explícitos os marcos epistêmicos envolvidos na abordagem e na análise, porque mesmo a mediação doutrinal do dogma eclesial não é isenta das regras que acompanham a complexidade. Proponho agora três enquadramentos conceituais e, ao mesmo tempo, vitais: primeiro, o marco epistêmico como suporte precedente ao discurso conceitual, não importa se este tiver por objeto a fé religiosa ou outra área. É o que se chama de “pressupostos de fé antropológica”. Trata-se daquela base logicamente anterior a toda aproximação analítica, que é irreversivelmente subjacente a qualquer tentativa de fazer ciência, mesmo teo-lógica. Num segundo momento, a análise entra no terreno específico da fé religiosa, isto é, no marco teológico que inclui – duplamente – o epistêmico. Enfim, veremos o contexto histórico, o espírito do tempo do Concílio Vaticano II e da Gaudium et Spes, que é seu produto final e, provavelmente, mais maduro e mais explícito. Um fruto que vai além dos sinais dos tempos e exige ser lido e acolhido como um sinal de Deus, como uma manifestação do Espírito de Deus que temos a obrigação de reconhecer no magistério pastoral dos Padres conciliares. Este marco é o mais difícil e controvertido, porque não foi expresso por extenso. Os Padres o apontam em diversos momentos, mas sem fazer dele uma construção formal. Nós, porém, somos obrigados a acolhê-lo, porque está intrinsecamente pressuposto na letra do Concílio. Por último, antes de concluir esta introdução à segunda parte, vejase até que ponto a distinção entre sinais “dos tempos” e sinais “de Deus” constitui um salto analítico de dimensões vinculantes. É a passagem do nível de leitura sociológico – que pressupõe una fé antropológica – ao nível teológico, da interpretação que assume as bases epistêmicas da fé antropológica, projetando-as num âmbito de fé especificamente religioSabe que a busca de uma verdade absoluta não pode esquecer a situação relacional – relativa – de qualquer episteme. Por isso, entende a ideologia apenas como visão contextual e limitada pela posição geográfica, temporal, social, cultural, a partir da qual os homens vivem e tentam dar conta da sociedade, dar sentido a suas vidas no pessoal e no coletivo. A verdade absoluta, imutável, que nega o tempo – mesmo se a negação seja apenas instrumental – pode ser um postulado formal, uma premissa provisória na lógica dos meios, mas não é um fim. 114 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Daniel Ramada Piendibene sa.32 Eis o espírito do Concílio que manifesta a docilidade dos Padres ao Espírito de Deus. 2.2.1 O conceito de Sinais dos Tempos como marco epistêmico Qual a lógica conceitual da Gaudium et Spes no nível dos suportes epistêmicos precedentes ao discurso? Quais seus pressupostos, não importa se estes tiverem por objeto a fé religiosa ou outra área? Eis o que se chama de nível de fé antropológica. De um ponto de vista técnico, as ciências sociais do conhecimento descrevem o enquadramento subjacente ao discurso e seus níveis de estruturação doutrinal, como marcos epistêmicos.33 Já disse que a expressão “marco epistêmico” se refere ao conjunto de opções gnosiológicas, teóricas e metodológicas, filosóficas e práticas, pressupostas a qualquer elaboração intelectual, e que a fundamentam como suporte de sua lógica interna. Sua parte estrutural define-se, normalmente, como “marco teórico”. Aqui, na América Latina, até alguns anos atrás, quando se abria qualquer exposição filosófica ou teológica, era um procedimento docente típico tornar explícitos os pressupostos teóricos. Esta prática de reconhecimento da contingência e provisoriedade do trabalho acadêmico no plano do conhecimento científico é também, no fundo, um ato de humildade intelectual. Atualmente, porém, poucos autores dão-se ao trabalho de explicitar suas opções teóricas, o que, a meu ver, pode constituir uma mudança de rumo e, igualmente, uma claudicação. Estaríamos aceitando sem discutir, isto é, por submissão intelectual ou por 32 Não se trata de sociologia horizontal e teologia vertical. Isso é uma simplificação canalha ou, pior ainda, falsidade epistemológica (para evitarmos falar em burrice ou oportunismo ideológico de restauração de uma filosofia essencialista, identificada a priori com metafísica). Trata-se de um nível enterrado, isto é, pressuposto e inerente a qualquer construção, mas não visível, e dois níveis visíveis que são todos, ao mesmo tempo, verticais e horizontais: o sociológico, que assume a historicidade do conhecimento e analisa a lógica dos tempos, e o teológico, que acrescenta o sensus fidei específico e explícito da revelação, sempre para aqueles que aceitamos a Palavra de Deus como dom comunicado no contexto da temporalidade, isto é, na história de Israel – de Abraão e Jesus de Nazaré – e na História como categoria inerente à manifestação do Verbo, da Palavra, no Tempo. Eis a complexidade que deve assumir o discurso teológico, muito especialmente nesta fase pós-moderna. 33 Dependendo da abrangência de seu objeto, serão chamados de modelos ou paradigmas. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 115 O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes simples ignorância de nossa tradição local, que existe um pensamento puro, uma filosofia essencial, apresentada em termos de superioridade última. Esse fundamento teórico de uma metafísica da verdade – como suporte último do conhecimento ou como raiz primeira de todo discurso verdadeiro – finalmente postula a desnecessidade da mediação epistêmica no terreno da teologia, isto é, não se precisa da epistemologia como ciência do conhecimento em sua dimensão social. Tal metafísica formal pretende fornecer um conjunto de regras infalíveis mais aptas, per-se, para conhecer as verdades da fé no nível dogmático. A teologia pastoral tentaria traduzir tais verdades numa linguagem mais popular, ou mais adaptada aos homens de nosso tempo. Eis um tipo de enfoque que frequentemente está por trás quando se postula que, sendo a Gaudium et Spes uma Constituição pastoral – subentendido, “não dogmática” – tem menor valor doutrinal que as Constituições dogmáticas. A intenção básica e a dimensão pastorais da Gaudium et Spes não é, porém, uma concessão de barateamento da doutrina para que o povo, quem sabe ignorante ou menos cultivado em teologia, possa participar das verdades eternas. Ao contrário, é o primeiro passo doutrinário, sim, sublinho, doutrinário, do Magistério da Igreja, tendente a encarar o desafio da complexidade. É uma opção deliberada de mais de dois mil e trezentos bispos reunidos sob a assistência do Espírito Santo34 e que, na docilidade ao Divino, provocaram uma quebra de paradigma no nível epistêmico, tão vinculante para a teologia quanto a letra mesma dos documentos. 34 116 Sem que mediassem critérios humanos, funcionais, ideológicos ou políticos, de afinidade, ou de coincidência filosófica, na pré-seleção dos candidatos teoricamente mais aptos para declarar a verdadeira fé. No Vaticano II não houve ausências, fora aquelas, ínfimas, derivadas de uma opção para não comparecer ou para negar o assentimento de fé como foi o caso Lefebvre. Não houve exclusão de pastores, como as que vieram depois, quando foi a vez de interpretar a doutrina e impor linhas de pensamento redutivas, e até contrárias ao espírito dos Padres, fosse através dos instrumenta laboris, fosse mediante os eleitos e, sobretudo, mediante os marginalizados só pela decisão disciplinar da autoridade central. A nova política de seleção por afinidade, tal como aconteceu em diversos eventos magisteriais dos anos oitenta e noventa, bem como na primeira metade da década que inaugurou este século, parece bem estranha ao acontecimento Vaticano II. No Concílio dos anos 60, não houve pessoas vetadas, ao contrário, os vetados antes do início viraram peritos (“sessentismo”?). Houve, sim, comunhão, docilidade ao Espírito e uma impressionante unanimidade de coração e pensamento dos quase dois mil e quatrocentos bispos de todo o mundo, vindos de diferentes regiões, línguas e culturas, com as mais diversas idades, tradições e tendências teológicas. Se o digitus Dei non est hic, será que a digitação humana passou a ser manifestação carismática? Quem sabe. Os caminhos do Senhor são inescrutáveis. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Daniel Ramada Piendibene Mas escutemos, agora, a voz do texto constitucional. Depois de proclamar que: As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo [GS-01], esclarece-se o marco que será objeto de consideração: O Concílio Vaticano II [...] tem, portanto, diante dos olhos o mundo dos homens, ou seja a inteira família humana, com todas as realidades no meio das quais vive; esse mundo que é teatro da história da humanidade [...] [GS-02] O ponto de partida é o fenômeno. Está duplamente sublinhado. Primeiro, porque o Concílio abre sua análise no terreno da experiência social, acentuando, como caso concreto, a predileção pelos pobres e todos os que sofrem. Em seguida, porque enquadra a inteira família humana e o mundo, não como categorias analíticas abstratas, mas como âmbito histórico de vida da humanidade. A busca de sentido, tarefa tradicional da filosofia especulativa, agora começa no acontecer histórico: Para levar a cabo esta missão, é dever da Igreja investigar a todo momento os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz do Evangelho; para que assim possa responder, de modo adaptado em cada geração, às eternas perguntas dos homens acerca do sentido da vida presente e da futura, e da relação entre ambas. É, por isso, necessário conhecer e compreender o mundo em que vivemos [GS-04]. A realidade em suas dimensões vivenciais, sociais e históricas, sendo o ponto de partida do discurso de fé, é a fortiori o ponto de partida do conhecimento, o locus epistêmico. Tal marco gnosiológico supõe igualmente uma perspectiva fenomênico-diacrônica. O conhecimento como sentido da realidade – no caso dos cristãos, nada mais nem nada menos que a descoberta da presença e a vontade de Deus – começa com a análise e o discernimento dos acontecimentos no seu processo de desenvolvimento temporal. No teatro da história, praticamente nada acontece por geração espontânea. As quebras de modelos, como as mudanças e os fatos que as provocam, se inscrevem em processos coletivos. Interessa destacar agora Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 117 O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes a mudança no paradigma da filosofia, que ocorre entre Kant e Hegel.35 O primeiro, assenta as bases formais que fornecem ao discurso sobre o universo empírico uma consistência própria, autônoma, na área gnosiológica. Não há necessidade de convocar premissas teológicas – exógenas – dentro do objeto de estudo. A realidade empírica, em seu nível, vira passível de um conhecimento completo, sem necessidade de ultrapassar os limites epistêmicos de sua própria consistência e autonomia. Na seguinte geração, Hegel acrescenta um novo salto qualitativo, propondo e praticando a inversão do processo discursivo no âmbito do conhecimento. O ponto de partida do discurso filosófico será a multiplicidade dos fatos históricos. A realidade coletiva, incorporada em chave diacrônica mediante o método da observação e agrupação dos fenômenos sociais por indução associativa, chega a ser o primeiro insumo para conhecer o espírito de uma época ou fase da história no cenário da vida social.36 Tal espírito do tempo (Zeitgeist) se manifesta, por exteriorização, no universo cultural coletivo das sucessivas civilizações.37 Não é o momento de entrar aqui nas consequências da filosofia hegeliana na evolução doutrinal da dogmática cristã. Para isso segue – a modo de excurso – uma breve nota no fim deste capítulo. O que interessa aqui é destacar que a mudança no método da filosofia europeia de Kant a Hegel preparou o terreno para a recuperação da gnosiologia semítica de perscrutar os sinais dos tempos como marco de conhecimento da vontade divina no tempo da história, e como chave para aprofundar o sentido da Palavra de Deus na vida do Povo da nova Aliança. Baste para fechar estas observações a expressão explícita do problema epistêmico que a Gaudium et Spes deixa em aberto, sem propor velhas receitas: 118 35 Hoje parece mentira, mas a doutrina católica demorou mais de um século para aceitar a mudança de paradigma no pensamento moderno como alternativa intelectual legítima, mesmo no plano da interlocução filosófica. Modernidade foi sinônimo de maldade sacrílega e desvio satânico, por parte de seus cultores. 36 É importante notar que, na teologia católica, o pensamento de Hegel demorou mais de um século a deixar de ser suspeito (cf. infra, o Excurso). 37 Nos últimos anos, desde 2007, o termo Zeitgeist passou a ser utilizado num projeto cultural desenvolvido como série de filmes documentários, divulgados gratuitamente na rede, sobre a situação social e financeira no mundo desenvolvido e a utopia de uma sociedade capaz de funcionar sem dinheiro. O líder do movimento, Peter Joseph, vive nos Estados Unidos. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Daniel Ramada Piendibene A humanidade vive hoje uma fase nova da sua história, na qual profundas e rápidas transformações se estendem progressivamente a toda a terra. Provocadas pela inteligência e atividade criadora do homem, elas reincidem sobre o mesmo homem, sobre os seus juízos e [...] seus modos de pensar e agir, tanto em relação às coisas como às pessoas. De tal modo que podemos já falar de uma verdadeira transformação social e cultural, que se reflete também na vida religiosa. [...] descobrindo gradualmente com maior clareza as leis da vida social [...]. Aumenta o intercâmbio das ideias; mas as próprias palavras, com que se exprimem conceitos da maior importância, assumem sentidos muito diferentes segundo as diversas ideologias. [GS-04] E também: A actual comoção dos ânimos, e a mudança das condições de vida, estão ligadas a uma transformação mais ampla, a qual tende a dar o predomínio, na formação das mentes, às ciências matemáticas e naturais, e as que tratam do próprio homem [...]. Esta mentalidade científica modifica amplamente a cultura e os modos de pensar, de uma maneira diferente do que no passado. 38 [GS-05] Excurso: O pensamento filosófico de Hegel na teologia A primeira pontualizaçao importante a se fazer, para evitar equívocos à teologia católica, é definir o objeto do pensamento hegeliano. O discurso de Hegel é filosófico. Nunca interessou ao filósofo entrar na área da teologia. Mais ainda, por diversas vezes afirmou o contrário. Tentou, sim, uma metafísica idealista do acontecer temporal, mas sempre permanecendo dentro dos limites de seu objeto filosófico e, como bom alemão, foi completamente fiel a suas premissas inteclectuais; sem falhas. Assim, dizer que sua visão é “panteísta” demonstra ignorância e absurdidade. Significa projetar na filosofia do autor um nível estranho a suas intenções e argumentos. Hegel nunca entrou no mérito teológico da terceira pessoa da Trindade. Em todo caso, desde uma teologia que ele não quer praticar, sua iniciativa poderia ser catalogada como panteofania. Eu acrescentaria de caráter sincrônico. Isto é: a busca, pelo conhe38 Hodierna animorum commotio et in vitae condicionibus immutatio cum ampliori rerum transmutatione connectuntur, qua efficitur ut in mentibus efformandis scientiae mathematicae et naturalres vel de ipso homine tractantes [...]. Haec mens scientifica rationem culturalem modosque cogitandi aliter quam antea fingit. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 119 O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes cimento humano imanente, das manifestações históricas da “Ideia” ou “Espírito absoluto” como reflexo – simbólico e mediatizado – do espirito comum à natureza humana, no desenvolvimento diacrônico da realidade temporal. Na melhor das hipóteses, a manifestaçao do Espírito absoluto seria o reflexo, no nivel filosófico, de um plano divino, a-priori excluido do objeto da disciplina que Hegel pratica. Hegel jamais identifica a Idéia com a pessoa do Espírito Santo, nem sequer no plano da especulação filosófica. O problema é que a perspectiva pneumo-teofânica foi objeto de diversos sistemas, desde Montano a Joaquim de Fiore e seus herdeiros. Por isso, a teologia católica sempre ficou com um pé atrás, quando alguns teólogos ou líderes carismáticos pretenderam identificar suas intuições com a encarnação ou manifestação empírica do Espírito Santo. A tradiçao dogmática protestante, especialmente nos casos de Tillich, Moltmann e Pannenberg, para citar apenas os mais conhecidos, não teve dificuldades em assumir a intuição filosófica hegeliana como base de trabalho na área teológica. Voltando a Hegel, o que sim podemos afirmar é que, a partir do método histórico indutivo, a Fenomenologia do Espírito devolveu à filosofia europeia aquela perspectiva do pensamento semita que sustenta a lógica epistêmica do povo de Israel, desde Abraão a Jesus de Nazaré. O conhecimento – ainda no nivel só imanente – é uma incorporação indutiva e diacrônica, cujo ponto de partida reside na memória dos fenômenos históricos vividos pelo(s) Povo(s). No caso de Israel, inclui, mediante uma dialética de respostas presentes e lembranças históricas, a busca da vontade do Senhor e do sentido da caminhada coletiva, em fidelidade à Aliança que parte da iniciativa divina de eleição. Por último, uma breve nota sobre o alcance da lógica dialética: apenas assinalar que a dialética hegeliana: a negação – antítese, não significa destruição antinômica, mas incorporação, dir-se-ia, sincrônica, numa ótica funcional. No sistema hegeliano, a lógica da manifestação, como processo dialético, deve entender-se em termos de uma sucessão diacrônica de exteriorizações, onde o autoconhecimento do espírito absoluto se processa através dos povos e suas construções jurídicas, filosóficas e culturais. O “espírito” se conhece a si mesmo por integração inclusiva do novo, como processo de superação das carências epistêmicas precedentes. A negação não opera como aniquilação do contrário, mas como momento de superação sequencial de formulações anteriores (teses), que, como consequência da aparição de novos fenômenos, resultam insuficientes e passam a ser criticadas (antíteses) por suas carências. 120 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Daniel Ramada Piendibene 2.2.2Os Sinais de Deus – no contexto dos sinais dos tempos – como marco teológico Os meios de comunicação colocaram o pensamento humano, e a doutrina cristã, na segunda metade do século XX, frente ao conhecimento da diversidade cultural e a pluralidade de valores ao longo do planeta. Assim, ao lado do marco gnosiológico essencialista, que opera por redução hierárquica do múltiplo mediante submissão ao uno – o que exige a aceitação prévia de um juízo implícito de valor (seus críticos falam de ocultação) – abre-se caminho à busca de sentido mediante o discernimento dos valores evangélicos, no contexto da multiplicidade dos fenômenos históricos como determinantes categóricos na dinâmica social de formação e atualização do conhecimento. O conceito de sinais dos tempos, eixo principal, senão vertebral, das linhas de sentido da Gaudium et Spes, aparece como um instrumento exegético apropriado à complexidade de um novo cenário conceitual e de existência eclesial. No contexto da historicidade do conhecimento, a Gaudium et Spes introduz uma distinção que passou relativamente desapercebida na teologia sistemática. Os sinais dos tempos, vinculados ao marco epistêmico da teoria social do conhecimento, conforme a Constituição, servem como plataforma para descobrir os sinais de Deus. A afirmação do Magistério conciliar é que Deus se manifesta através dos fenômenos históricos. O espírito do tempo constitui um indicador na tarefa coletiva de discernir a vontade de Deus na situação presente. O alcance desta opção doutrinal fica patente: O Povo de Deus, movido pela fé com que acredita ser conduzido pelo Espírito do Senhor [...] esforça-se por discernir, nos acontecimentos, nas exigências e aspirações, em que participa juntamente com os homens de hoje, quais são os verdadeiros sinais da presença ou da vontade de Deus. [GS-11] É oportuno assinalar aqui outra mudança de rumo, neste caso de atitude, mas que constitui um leitmotiv de toda a Constituição. O respeito e a pluralidade. A Igreja, descrita nessa ocasião – mais uma vez e não por acaso – como Povo de Deus, realiza seu discernimento – juntamente com os homens de hoje – participando de igual para igual nos trabalhos inerentes à cidade terrena [GS-43]. Com eles compartilha a tarefa de pensar a realidade: discernir os acontecimentos. A responsabilidade Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 121 O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes de construir a sociedade: as exigências. E os valores que orientam as opções: as aspirações. Se colocarmos esta afirmação (GS-11) no contexto do parágrafo que conclui o proêmio (GS-03) o texto atinge outra profundeza epistêmica: O Concílio, testemunhando e expondo a fé do Povo de Deus [... manifesta] a sua solidariedade, respeito e amor para com a inteira família humana, na qual está inserido, [...] estabelecendo com ela diálogo sobre esses vários problemas [... assim] oferece ao gênero humano a sincera cooperação da Igreja, a fim de instaurar a fraternidade universal [...] Nenhuma ambição terrena move a Igreja, mas unicamente este objectivo: continuar, sob a direcção do Espírito Consolador, a obra de Cristo, que veio ao mundo para dar testemunho da verdade, para salvar e não para julgar, para servir e não para ser servido. [GS-03] A atitude que preside o discernimento é de solidariedade, respeito, amor, diálogo, cooperação. O objetivo é imanente, histórico: instaurar a fraternidade universal. Mas não se trata de dominar mediante a espada do poder temporal – nenhuma ambição terrena – senão de testemunho, compaixão e serviço. O discernimento da vontade Deus se processa num âmbito coletivo – o sujeito ativo do conhecimento é o Povo de Deus – e também plural, isto é, o Povo de Deus é povo entre povos. Por último, é interativo, o que significa, na linguagem da epistemologia, conhecimento social. A construção da fraternidade universal, sendo um valor necessário e irrenunciável, e permanecendo a tarefa essencial à vocação e à missão, do ponto de vista epistêmico constitui também um meio que transcende sua consistência própria. É o caminho histórico de busca e conhecimento da vontade de Deus. Do ponto de vista teológico, a distinção entre sinais dos tempos e sinais de Deus no contexto de uma sociedade complexa e plural, preserva, de um lado, a autonomia do temporal, sua consistência própria como âmbito de conhecimento, mas, por outro lado, distingue, sem separar, uma dimensão de presença divina que se manifesta no íntimo da criação. Em ambos os níveis, temos pressupostos gnosiológicos específicos. O conhecimento imanente supõe opções baseadas em valores (axiológicas), cuja validade não é verificável no plano estritamente secular ou empírico. Eis um tipo de fé, secular, que não ultrapassa o 122 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Daniel Ramada Piendibene nível estritamente antropológico39. O fundamento último dos paradigmas como conjunto de operações cognitivas de incorporação dos dados da realidade fenomênica – mediante adjudicação de valor – descansa numa lógica interna de sentido relacional, que exige a aceitação de premissas autovalidantes. A doutrina católica que se expressa na teologia não foge desta regra, nem poderia. Os dogmas, ainda os mais abstratos, descansam em premissas e pressupostos filosóficos. A Gaudium et Spes alarga este procedimento, incorporando na reflexão teológica a dimensão social de todo conhecimento. Isto não significa que a teologia seja apenas uma ciência social. A relação entre teologia e ciências sociais é mais complexa. Acontece que a dimensão social de qualquer tipo de conhecimento está presente, também, na formação do discurso teológico. Assim, não seria errado afirmar que a teologia, enquanto disciplina tributária de seu tempo histórico, também possa ser catalogada, in aliqua parte, como ciência social. A sua construção doutrinal, porém, guarda uma relação diversa com muitos elementos comuns à gnosiologia geral, porque inclui um nível específico de complexidade epistêmica. Aceita a densidade própria deste nível – distinguir sem divorciar – a partir do contexto diacrônico, a tarefa de discernimento se projeta para um âmbito diferenciado: a descoberta de vontade de Deus como resposta humana à sua iniciativa amorosa e salvífica. Em resumo, o discurso religioso como elaboração teológica stricto sensu, pressupõe a fé antropológica como estrutura epistêmica. A dimensão interativa e intersubjetiva do conhecimento histórico, compartilhado com o resto da sociedade plural, ultrapassa o terreno estritamente metodológico e se torna uma construção doutrinal e um âmbito sistemático para descobrir a transcendência divina, como alteridade sincrônica, no desenvolvimento da experiência diacrônica. A distinção entre os sinais dos tempos e os sinais de Deus, da Gaudium et Spes, constitui uma novidade doutrinal no magistério constitucional da Igreja: ela abre o caminho para uma teologia das realidades históricas, cuja epistemologia é muito mais correspondente à perspectiva epistêmica semita, escolhida pelo Pai para conformar o modo de conhecimento humano do Filho em sua natureza encarnada. Eis o último ponto desta segunda parte. 39 Juan Luís Segundo chamava esses pressupostos de plano da fé antropológica. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 123 O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes 2.2.3O espírito do Vaticano II como suporte epistêmico da relação entre Deus e seu Povo 2.2.3.1 O contexto que não vemos no texto O que estamos fazendo aqui? Estamos buscando uma capacitação específica para dar melhor resposta a uma vocação, isto é, a um chamado cuja iniciativa, pensamos, seja de origem divina. Mais do que pensamos, confessamos. Por isso estamos juntos esta noite, neste nosso caro ITESC, porque acreditamos, mais ou menos, nas mesmas coisas. Cuidado. Digo “mais ou menos” não porque nossa fé seja um “mais ou menos”. Não! É porque cada um, confessando o mesmo Pai, o mesmo Cristo morto e ressuscitado, e confessando que fomos chamados a sermos suas testemunhas pela resposta ao Espírito, mediante nosso assentimento, cada um entende sua resposta à vocação a partir de uma visão do mundo que lhe é própria, pessoal, mesmo se formada no âmbito do coletivo social que temos recebido desde antes de sair do ventre materno e buscamos mudar com nossos atos cada dia que passa. Eis o mais ou menos. Recebemos a fé segundo uma situação de vida que envolve a intercomunicação, o aprendizado por meio da interação na base de categorias para a incorporação de conceitos e, ainda, se não bastasse tão complicada simplicidade, é uma situação que envolve e induz valores transformando-se no decorrer do tempo e dentro do espaço que nos tocou como pátria. Voilà!, diz o francês. Assim, os que participamos deste Congresso Teológico, em princípio, temos uma fé comum. Estamos aqui porque buscamos aprofundar seu alcance e suas exigências. Porém, trata-se de um ponto de partida ao mesmo tempo homogêneo e heterogêneo. Estamos reunidos em nome de nosso Deus, em nome de Jesus de Nazaré morto e ressuscitado, constituído Senhor e ungido de Israel, ou seja, Messias, Cristo. Confessamos uma fé idêntica, mas cada um a vive em consonância com a sua experiência de Deus e a sua história particular. Dentro dessa história situa-se o Concílio Vaticano II, como acontecimento que atualizou a forma de interpretar as exigências da fidelidade à Palavra de Deus no mundo atual. Muita coisa tem mudado desde que começou o Concílio Vaticano II até hoje. Os contextos de convivência na sociedade têm sofrido simplesmente mutação. Não mais existem. Não sobrou nada! Ao ponto que, para explicar aos mais jovens a razão de muitas frases da Gaudium et Spes terem sido finalmente aprovadas como hoje as lemos, temos que 124 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Daniel Ramada Piendibene contar histórias da vida quotidiana dos Padres conciliares que eram óbvias a eles, mas hoje poucos conhecem. Então, onde fica a contextualidade como elemento hermenêutico? Precisamente no impacto que a Gaudium et Spes recebeu da sociedade e o impacto que os Padres conciliares provocaram, através do povo cristão na evolução da sociedade e da Igreja. Aqui é necessario fazer uma pequena distinção conceitual. Contextualidade aponta ao mesmo tempo, pelo menos, para dois campos semânticos: um externo e outro interno. Ambos, estão sempre mútua e interativamente relacionados. O primeiro é o ambiente social e cultural de vida dos protagonistas do Concílio. O segundo é o conjunto de supostos comuns no terreno doutrinal que a Gaudium et Spes desdobra e projeta. É precisamente neste segundo campo que se produz a principal consequência teológica. O marco teológico, o marco daquela fé religiosa agora assumida, professada e confessada, é o enquadramento que coloca os fatos de nossa história no nível da vontade divina, no nível do plano de Deus na minha vida pessoal, na vida da comunidade que me rodeia e me conforma, e na sociedade e no tempo que Deus escolheu para me chamar à vida. Em nosso caso, entre outras coisas, o século XXI, com suas quebras de paradigmas discursivos40. É o marco último de sentido da revelação, nas circunstâncias presentes e cambiantes de nossas existências. “Marco teológico” significa explicitar quais os elementos que privilegiamos na hora de interpretar esse patrimônio comum que é a Palavra de Deus cuja proclamação se atualiza na história. É o desenvolvimento do marco de fé no terreno da doutrina. Santo Inácio de Loyola, um santo moderno para tempos pósmodernos, ao começar os Exercícios Espirituais, propõe o que ele chama Princípio e fundamento. Antes de entrar nessa verdadeira ginástica do espírito que são os Exercícios, ele pára, a fim de explicitar seu marco epistêmico. Ali apresenta, como método permanente, como lógica subjacente a toda a sua teologia, a exigência e a técnica, de focalizar (contemplar) sempre o central, aquilo que é essencial em relação ao resto. Porque o resto é resto! O resto é acessório. O Princípio e fundamento ensina a distinguir entre a finalidade última de nossa vida, que nunca deve perder-se como eixo e foco – amar e servir em tudo a Deus – dos 40 Sem contar os quebra-cabeças da teologia de alguns professores, como quem vos fala, e os quebra-quebras dos protestos que herdamos daqueles anos 60, que foi o decênio do Concilio e de Medellín. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 125 O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes meios para chegar a tal fim. Os meios são indiferentes porque subordinados ao amor de Deus41. Em sociologia, e assim aproveito para mostrar aquilo que disse bem no início das diferentes leituras para um mesmo fato, esse procedimento, técnico, se chama descobrir ou estabelecer a variável principal para focalizá-la, e colocar as demais variáveis como variáveis acessórias. Vejam como o que eu disse sobre sinais de Deus nos sinais dos tempos aqui ganha sua consistência dogmática. Em nosso caso o ponto central, a variável principal, é a vontade de Deus. O núcleo central é Ele. Nós somos resposta, interlocutor que responde a uma iniciativa, nós somos um segundo momento, somos consequência, epifenômeno derivado, em certo modo deuterosis42. Ele é o fim. Nós e nossas circunstâncias históricas, nossos desejos e projetos, são subordinados, porque estão na ordem dos meios. É Ele que constitui o centro. Nós, em contrapartida, somos resposta, estamos em posição excêntrica. Mas, como pessoas humanas, como natureza humana, para falar na linguagem dogmática da cristologia de Calcedônia, somos seres no tempo. Conhecemos em perspectiva diacrônica, e aqui esse nós passa a querer dizer, também, nós como Igreja. A Igreja! Aqui temos uma chave epistêmica da Gaudium et Spes que se projetou na eclesiologia43. Vejam que aqui não estamos tratando dos pressupostos metodológicos da revelação nem sobre a influência teórica da Dei Verbum na evolução dos outros documentos conciliares. Desde uma perspectiva de fé católica, a partir do Concílio Vaticano II e como consequência de suas orientações disciplinares na área doutrinal, passou a ser perfeitamente legítimo convocar a história, a sociologia do conhecimento, a psicologia arquetípica e as ciências humanas como elementos diferentes, 126 41 A inferência inaciana diz respeito aos meios. É algo assim como uma apaixonada inferência. Educar o desejo, suprimir, pelo amor ao fim último, o apego ao fim imediato, contingente, histórico, estratégico ou tático, é deixar que o amor de Deus eduque o amor humano. Um amor do Deus revelado no homem Jesus e encarnado no próximo. 42 Deutérosis (hebraico: Mishná) O termo aqui se entende no sentido da Didascalia apostolorum: “Segunda parte”, isto é, derivação e resposta. Cf. Marcel Simon, Le Christianisme antique et son contexte religieux, Vol. II. Art. The ancient Church and Rabbinical Tradition; pp. 379-ss. 43 A única forma histórica de em tudo amar e servir a Deus é amando e servindo aos irmãos, porque são imagem, semelhanças e sacramento de Jesus, o Filho de Deus que nos revelou o amor do Pai. A Igreja está a serviço da sociedade, do homem, fora do centro epistêmico. Só é plenamente fiel e capaz de autoconhecimento se, contemplando o amor de Deus ao homem, ela aceita ser a sua escrava e servidora. Antropocentrismo? Não! Cristo-centrismo, isto é: irmão-centrismo. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Daniel Ramada Piendibene mas convergentes ao discurso da “fé que busca entender” e proclamar a Palavra. Uma leitura histórica ou sociológica, por exemplo, da história de Israel ou da pregação de Jesus, não significa, de ofício e irreversivelmente, uma visão redutiva ou desviada no plano teológico. Da mesma forma que, durante séculos, convocamos a filosofia platônica ou aristotélica como instrumento auxiliar da pesquisa teológica, hoje podemos, e de certa forma devemos, convocar as ciências humanas em sua interdisciplinaridade para entender melhor a humanidade do Povo de Israel e do próprio Jesus, nascido, por vontade do Pai, no seio da história daquele Povo e dentro da matriz gnosiológica própria da cultura semítica, com sua tradição epistêmica “não filosófica” mas diacrônica.44 2.2.3.2 A episteme de Jesus de Nazaré, o homem israelita Chegamos, assim, ao último ponto desta segunda parte. Ficou estabelecido que a Gaudium et Spes, ao incorporar a dimensão social e histórica do conhecimento no âmbito da doutrina, mediante a categoria epistêmica dos “sinais dos tempos”, recupera para o discurso dogmático a perspectiva gnosiológica que é própria da cultura israelita, isto é, que constitui o contexto de vida e pensamento de Jesus de Nazaré.45 A historia de Israel está como que duplamente inserida na natureza humana do Verbo encarnado.46 Primeiramente, porque o modo de conhecimento próprio do Povo da Aliança opera a partir de uma matriz diacrônica. Até onde sabemos, é o único caso nas culturas antigas. Jesus, como natureza encarnada, conhece, humanamente falando, mediante um relacionamento de conceitos que se incorporam ao conjunto de sentido por memória, lembrança, narração, e atualização da história na situação presente. Não é qualquer história. É uma história de respostas pessoais e coletivas de um grupo humano (Povo) que ficou unidade conceitual como 44 Cf. Neher, André. La no filosofía hebrea; em Historia de la Filosofía, s-XXI, T. I, pp. Xxx. Íd. Concepto del tiempo y de la historia en la cultura judía, em Las culturas y el tiempo, Salamanca, 1979, pp 169-190. 45 E também dos discípulos da Igreja primitiva, isto é, da geração apostólica. 46 Digo o Verbo Encarnado, para falar numa linguagem mais familiar a todos, mas, para ser consequente com nossa perspectiva epistémica, deveria dizer a Palavra (dabar) Encarnada (basar + nefesh), vindo a nós numa embalagem epistêmica semítica. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 127 O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes resposta a uma eleição, a uma Aliança.47 São pessoas que conhecem a realidade e se conhecem a si mesmas a partir de um ponto de referência exterior. Um modelo de referência, “relativo-a”, exógeno. Em segundo lugar, porque os mecanismos particulares do conhecimento humano de cada unidade cultural e linguística, no decorrer dos séculos, vira estrutura sincrônica, matriz arquetípica no nível das imagens primordiais. O processo epistêmico semítico está constituído por estas duas chaves de sentido no coletivo do grupo israelita: Alteridade. Isto é, conhecimento por auto-identificação a partir de um primeiro movimento externo – e no caso do Povo da Aliança, oriundo de um Senhor transcendente ou totalmente Outro – que lhe confere identidade como Povo de Deus. E historicidade. Isto é, incorporação diacrônica. Sentido do tempo como variável principal, dentro do sentido da realidade. Em resumo. Alteridade, que determina uma percepção essencialmente relacional e derivada em relação com a esfera do Absoluto transcendente, mais intimidade, porque o Senhor que fala desde a história, fala no mais íntimo do coração do homem, da pessoa. Imprime sua iniciativa de amor e salvação nos níveis arquetípicos da identificação profunda. Finalmente, historicidade. O conhecimento de Deus, que em Jesus atinge a plenitude, se processa humanamente como memória, anamnese, de um Senhor que foi e é Pai misericordioso ao longo de toda a história de Israel. Eis o que Jesus mostra aos discípulos de Emaús. Eis o que determina uma perspectiva diacrônica, onde o tempo presente faz sentido em relação à experiência vivida pelo coletivo ao longo dos séculos. Para o Jesus histórico, perscrutar nos sinais dos tempos os sinais de Deus é um mecanismo espontâneo, próprio da cultura que o Pai escolheu com berço epistêmico da revelação. A Gaudium et Spes também constitui um retorno às fontes do ponto de vista da gnosiologia. Que consequências doutrinais apresenta esta novidade – tradicionalíssima – no terreno dogmático? Será apenas uma dica pastoral? Sim e não. Sim, porque a vida pastoral passa a ser uma dimensão do conhecimento teológico. Não, porque o movimento epistêmico que parte da realidade fenomênica não pode ficar, apenas, como uma dica que permanece na superfície. Deve ir ao nível profundo, inclusive das imagens arquetípicas. 47 128 Aliás, também não é qualquer história. É uma história de salvação. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Daniel Ramada Piendibene Em segundo lugar, porque os mecanismos particulares do conhecimento humano de cada unidade cultural e linguística, no decorrer dos séculos, viram estrutura sincrônica, matriz arquetípica no nível das imagens primordiais. O processo epistêmico semítico está constituído por estas duas chaves de sentido no coletivo do grupo israelita: Alteridade. Isto é, conhecimento por auto-identificação a partir de um primeiro movimento externo – e no caso do Povo da Aliança, oriundo de um Senhor transcendente ou totalmente Outro – que confere identidade como Povo de Deus. E historicidade. Isto é, incorporação diacrônica. Sentido do tempo como variável principal, dentro do sentido da realidade. 2.2.3.3 A intimidade de Deus no íntimo do homem: Illum oportet crescere Como exemplo da interdisciplinaridade que a Gaudium et Spes inaugurou na teologia sistemática, gostaria de fazer um pequeno exercício de leitura sincrônica da experiência de Deus no coração da pessoa humana. Vocês lembram que falamos duas coisas: Que a dimensão sincrônica do conhecimento mostrava como as experiências históricas chegam a ser imagens primordiais e que os fenômenos podiam ser lidos desde diferentes níveis, sem divorciar por contraposição antinómica o antropológico do teológico. Eis um ponto que pode ser lido a partir das duas perspectivas. Tinha preparado um exemplo de leitura teológica que integra a experiência de Santo Agostinho, quando descreve Deus como o mais íntimo da minha intimidade, com o ponto de ancoragem e passagem que constitui o arquétipo de centro para o inconsciente coletivo, na perspectiva que Jung descreve como Selbst ou Self. O mais íntimo equivale ao coletivo: o ponto onde, para que Deus cresça, o ego deve diminuir. Aqui, infelizmente, tenho uma pequena discrepância, bem que só aparente ou semântica, com uma coisa que o Padre Libânio disse ontem. Pena que não esteja aqui para compartilhar esta nuance. Se nós somos resposta, somos segundo momento, somos dêutero-phainomai, então: É necessário que Ele cresça e eu diminua. É necessário que Ele ocupe o espaço central em minha existência histórica, que Ele seja meu foco, Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 129 O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes o sentido permanente e último de meus projetos e desejos48, o objeto de meus desvelos, o grande amor de minha vida e, assim, como por acréscimo, que minha tendência espontânea ao egocentrismo, diminua. O que acontece é que, quanto mais cresce Deus em nosso centro, quanto mais espaço Ele ocupa em nosso ser, em nossa alma, em nossas decisões e intenções, em nossa vida quotidiana e escondida, sem querer e sem sequer nos darmos conta, aí sim, mais nós crescemos. Aqui entramos no terreno do mistério da gratuidade divina. E isto também é dialética, a dialética da alteridade, da presença divina, da comunhão. Mistério de santidade. É necessário que Ele cresça e eu diminua, porque se Ele cresce, nós nos convertemos em melhores instrumentos de sua ação. Claro que crescemos! Por acréscimo, como epifenômeno. Espero poder mostrar que sempre é possível visualizar os fenômenos e processos desde diferentes chaves de leitura. Desde una chave epistêmica, secular, científica, esta dialética é muito boa, profundamente sadia para a pessoa. Jung a descreve como Princípio de individuação: Quanto mais o homem aprende a distinguir entre seu ego como posição excêntrica (como fora do centro, isto é, auxiliar) e o centro da alma – self – como eixo real do que acontece nele, quanto mais o homem as percebe como instâncias diferentes, como fronteira, como lugar onde a pessoa transcende seu ego centrípeto, mais invulnerável se torna ao desequilíbrio, à depressão e, paradoxalmente também, à esquizofrenia. Eu sempre faço um desenho – gosto muito de desenhos nas palestras – que representa um relógio de areia. É um símbolo, analógico, do funcionamento de nossa pessoa. Assim vemos como, quanto mais se desce da parte de cima, aberta, luminosa, para a profundidade, mais parece estreitar-se e ficar fechada a profundeza. É como se estivermos para chegar a um ponto de estrangulação. Porém, na parte mais 48 130 A posmodernidade de Inácio de Loyola reside, precisamente, em sua antropologia, que ensina a educar o desejo: ensina que o desejo é passível de educação, de exercitação. Algo que parece tão selvagem, espontâneo e incontrolável como o desejo, pode ser educado, domesticado, orientado para aquilo que é mais conforme com nosso fim último, não pela submissão do desejo à razão, mas pelo enquadramento no amor de Deus como centro, eixo e sentido. O reto sentir precede o reto pensar. A ortofrônesis precede epistemicamente tanto a ortodoxia como a ortopráxis. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Daniel Ramada Piendibene estreita, mais difícil de visualizar, existe uma passagem onde o relógio se abre para outra parte, para outra dimensão. Para uma profundeza que desde a parte superior é impossível ver. O ponto de passagem funciona como ponto de ancoragem na raiz da espécie, no coletivo. O que Jung chama de inconsciente coletivo. Agora, se o mesmo fenômeno se visualiza ou se enxerga desde a experiência mística, é nesse ponto, nesse lugar que Agostinho chama “o mais íntimo de minha intimidade” (chave ainda epistêmica antropológica, arquetípica, da psicologia profunda), é ali que aparece a condição de possibilidade para discernir a presença do sagrado. Para escutar sua voz. O âmbito onde antropologicamente se opera a passagem do pessoal para o coletivo é a condição de possibilidade para o homem se tornar capaz de chegar a ser o que Rahner chamou ouvinte da Palavra, do chamado, da voz do Senhor (chave epistêmico-teológica). Mesmo fenômeno, diferente paradigma analítico. Os níveis analíticos, quando bem distinguidos, não se contradizem, se complementam. Eis o marco da nossa antropologia teológica: o homem é capaz de dialogar com Deus, é “capaz de Deus”, capax Dei, e nessa capacidade repousa ou consiste sua condição de segundo momento, sua potencialidade, livre, de dar a resposta. Deus vem em Primeiro. O homem vem depois. O homem recebe seu ser de Deus, isto é, ele “chega a ser” como resultado de um ato de outro que o chama à vida, um ato, aliás, de amor pessoal. Deus chama a cada um por seu nome: Abraão, sai de tua terra! e o homem responde: aqui estou. Se o homem é historicamente responsável de seus atos, é porque antes disso é antropologicamente respondente, capacitado para responder. Na visão bíblica, a resposta humana acontece no interior de uma relação descrita como Aliança, e essa Aliança não é um elemento contingente ou acréscimo acidental. Na matriz do homem, a relação de resposta à proposta de Aliança que Deus lhe oferece, faz parte essencial de seu ser. Assim, ele recebe sua existência de outro, a recebe desde fora. Mas só fica constituído, completo, quando decide responder aceitando sua parte na relação de Aliança, quando a iniciativa de fora é reconhecida e internalizada, porque esse fora só pode ser experimentado dentro, no mais íntimo de seu interior. Mas cuidado, que isto é muito lindo quando se diz assim, em abstrato: Ah que bonito! Que coisa mais mística! Deus nos fala aqui dentro, na intimidade. Porém, mesmo se Deus chama a cada um de nós por seu nome, pessoalmente, não nos chama individualmente, como diz Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 131 O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes o Concílio49: chegar a ser homem, mediante a entrada numa relação de Aliança, tem uma dimensão coletiva! Não fomos chamados cada um para si, mas para formarmos um povo; um Povo santo, porque de fato já fazemos parte de um povo. Em certo sentido, fomos povo antes de sermos indivíduo. Nascemos no seio de um povo, de uma família, de uma realidade temporal, de uma história que reflete no profundo de nossa estrutura arquetípica. Somos pessoas históricas. Porém não somente pessoas históricas em abstrato, somos o fruto dessa história. Vivemos no século XXI, no Brasil, em Santa Catarina, na América Latina, num mundo onde cada ano o conhecimento duplica aquilo que era conhecido no ano anterior. Quando nos chamou? Neste momento, em tempos de posmodernidade; em tempos de fragmentação; em tempos de dissolução do método discursivo do conhecimento; no pós-guerra fria. Aí vem a Gaudium et Spes. Para que nos chamou? Para sermos santos como Ele é Santo, para tornar-nos santos, para chegarmos a ser santos em cada momento, santificados pelo acolhimento de sua vontade. Recebemos a fé, que se atualiza mediante a tradição, para virarmos resposta. Somos a resposta do homem no tempo da história e na comunhão dos valores que confessamos e tentamos praticar, todos os que acreditamos na ressurreição de Jesus. Marco de fé, que vem através da escuta (fides ex auditu), da interlocução, da alteridade em comunhão, em sociedade. Marco teológico, de reflexão da fé que busca entender (fides quærens intellectum) para virar resposta em santidade: marco de ação que permita a projeção das palavras, atitudes e obras do dabar divino. De Jesus, o Nazareno. Aqui é onde o marco epistêmico se transforma em marco teológico, mediante uma atualização permanente dos valores revelados em e através da Palavra e que exige, de forma inerente, irrenunciável, a análise da situação, complexa e em permanente mutação. O homem conhece a partir de sua história, de sua situação coletiva. Conhece, mediante a incorporação dos dados empíricos a uma base de sentido que é irrenunciavelmente social e diacrônica. Assim, o marco teológico exige, ao mesmo tempo, um marco de estrutura axiológica. É fé que se expressa em valores, em atitudes, em respostas de amor ao Amor primeiro. É fé que se projeta, se transforma em obra, “as obras da fé”, se expressa na vida prática – práxis – e tenta 49 132 GS 3xx. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Daniel Ramada Piendibene permanecer em sintonia com a vontade do Pai, com a santidade do Pai, ao ponto de transformar as estruturas de convivência para que cheguem a ser melhores cada dia, melhores meios e também veículos e instrumentos compatíveis com os valores revelados em Jesus. Conclusão Perscrutar os sinais dos tempos como metodologia teológica pressupõe admitir – e incorporar – a mudança de paradigma nas regras da filosofia que, a partir de Hegel, inverte o método dedutivo para tomar a realidade empírica, fenomênica, como ponto de partida do processo epistêmico e, consequentemente, do discurso filosófico (initium). Nessa operação há algo mais do que uma concessão dos Padres conciliares ao pensamento moderno ou uma adaptação a seu espírito. Há, primeiro, uma tomada de consciência sobre a complexidade da tarefa discursiva em sua dimensão diacrônica. O conhecimento humano nasce em um contexto de temporalidade e história, isto é, de sociedade e interatividade subjetiva. Não são elementos a isolar ou subordinar em altares da eternidade do discurso ou de sua validez formal, meta-temporal; antes, formam parte estrutural, ou então, substancial, do conhecimento humano. Mas há também um segundo elemento, especificamente teológico. Refiro-me ao marco doutrinal unitário que, como já disse, preside a hermenêutica de Gaudium et Spes, Dei Verbum, e Lumen Gentium. Trata-se de uma relação entre revelação como Palavra de Deus na história e o discernimento da vontade divina que atualiza essa revelação no momento presente. A volta às fontes estabelece o primado da Palavra. Propor os sinais dos tempos como lugar teológico de discernimento da vontade de Deus na história supõe a aceitação da dupla dimensão epistêmica: antropológica e teológica. Equivale a aceitar a autonomia da realidade temporal como âmbito que possui uma consistência própria, mesmo do ponto de vista gnosiológico e, ao mesmo tempo, assumir essa consistência como estrutura de entendimento da revelação. A Gaudium et Spes recupera assim a perspectiva semítica do conhecimento. Há uma episteme humana, aquela que precede – por anterioridade lógica – a episteme teológica. Sinais dos tempos e sinais de Deus, sem confusão nem separação. Em Israel, a memória de sua história multissecular opera como base de decodificação do presente. Esse é o parâmetro de conhecimento. O Povo da Aliança foi o primeiro coletivo cultural a induzir ou elaborar um método gnosiológico diacrônico. Aí está a sua originalidade. Essa Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 133 O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes prática supõe – ou gera através do tempo – uma estrutura epistêmica estável, que dota de conteúdo simbólico (anámnesis), os núcleos profundos, e imagens primordiais, próprias da espécie. É uma dinâmica gnosiológica de exteriorização e interiorização por memória, discernimento e resposta50. Do mesmo modo como, num marco teológico sacramental, a anámnesis vai muito além de uma nuda commemoratio, no marco epistêmico israelita a memória histórica se converte em estrutura sincrônica de conhecimento por decodificação da experiência diacrônica. Dito de um modo mais bíblico, a recordação viva da história da relação de Deus com seu Povo passa a estar gravada na lógica dos filhos de Israel – a fortiori em Jesus e seus discípulos – como imagens primordiais ou arquetípicas próprias da episteme cultural do coletivo semita. Por último, a episteme bíblica apresenta um segundo elemento, que só posso mencionar fugazmente: a alteridade. O homem israelita descobre e conhece seu próprio mistério não de dentro, mas de fora, ou seja, saindo de si mesmo. Conhece sua origem, seu destino e o sentido de sua vida como um segundo momento e em referência, dialogal, ao Deus totalmente outro. Descobre sua intimidade na exterioridade de uma história que é situação e resposta. Chamado – iniciativa divina – e discernimento, que desemboca em assentimento. Agora temos a totalidade dos elementos em sua inteira complexidade e força. Assim, entramos no terreno da plenitude da revelação. Não podemos esquecer que essa particularidade, simultaneamente temporal e arquetípica, está inscrita na natureza humana individual do Jesus histórico e seus discípulos (minha Igreja)51. O aspecto diacrônico afunda suas raízes na história de Israel como igualmente na história de Jesus – um homem culturalmente nascido no contexto antropológico da episteme israelita – e na história das testemunhas da vida, pregação, morte, e ressurreição do Mestre. O aspecto sincrônico reside nas estruturas estáveis de decodificação, gerais para a espécie humana, e específicas dos núcleos simbólicos da episteme israelita. É a ciência contemporânea que deve estudar a fundo esse aspeto, para chegar a um conhecimento mais completo das premissas antropológicas da revelação. Aqui está 134 50 Esse é o conteúdo da profecia de Jeremias (Jr 31,33-34) sobre a internalização da Aliança no coração dos homens e mulheres de Israel. 51 Mt 16,18: ekklêsía moû. A expressão aparece também em Qumran, na boca do Mestre de Justiça, o que demonstra sua origem semita (Cf. Casciaro, J.M., “El concepto de Ekklesía en el Antiguo Testamento”, Est. Bibl. 25 [1966], 317-348 e 26 [1967] 5-38). Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Daniel Ramada Piendibene uma tarefa teológica para o nosso tempo, que teria sido impensável sem os pressupostos teológicos da Gaudium et Spes e seu marco doutrinal unitário, em consonância com as outras Constituições. Esta proposta magisterial transcende a teologia pastoral. Melhor dizendo, pressupõe que o discernimento dos sinais de Deus nos sinais dos tempos – eixo e centro da vida pastoral – ensina o cristão a buscar e encontrar a vontade divina à maneira de Jesus. Com efeito, o modelo de conhecimento do Verbo, a Palavra Eterna, no nível de sua natureza encarnada, parte da base – epistêmica – de que o Senhor de Israel se manifestou gradualmente no contexto de uma história de salvação, para revelar sua vontade amorosa. É a interioridade Deus oferecida ao ser humano, na profundidade do seu mistério relacional. O conhecimento do mistério divino, nós o recebemos porque acolhemos, pela fé, uma Palavra escutada (fides ex auditu). Entretanto, esta Palavra, que nos apresenta a intimidade do Senhor de Israel, possui chaves de interpretação inscritas em um modelo humano de conhecimento histórico diacrônico, que se desdobra em um nível epistêmico mais profundo, arquetípico e sincrônico. É uma história de salvação e coparticipação. Responsabilidade diacrônica e alteridade sincrônica. O Verbo Eterno – Dabar ha‘Olam – feito homem no seio do Povo escolhido por seu Pai para nele dar-se a conhecer, manifestou plenamente o mistério de sua intimidade, por assim dizer, numa embalagem epistêmica. Devemos conhecer suas regras para conhecer melhor o Pai e, finalmente, a nós mesmos. De modo por vezes intuitivo e por vezes explícito, a Gaudium et Spes se torna um signo de maturidade gnosiológica para a teologia como elaboração doutrinal, stricto sensu. Não só o espírito do Concílio, mas a letra da Gaudium et Spes exigem do teólogo que saia do seu cômodo universo de certezas formais no plano enunciativo, para discernir, buscar e encontrar a vontade de Deus, no tempo que lhe toca protagonizar. O Magistério, constitutivo da Gaudium et Spes, o enfrenta, enquanto ouvinte da Palavra, isto é, como receptor participante de um depósito vivo (testemunha) e como protagonista de seu anúncio no tempo em que foi chamado à vida, a incorporar o método fenomênico no marco de sua inteligência da fé. Esta exigência é inerente à sua vocação. Com efeito, se o homem, na revelação israelita, gravada na matriz epistêmica de Jesus, se constitui e conhece enquanto deutero-fenômeno, segundo momento, resposta que desvela o mais íntimo de seu ser, o cristão de hoje deve aprender a discernir, nos sinais dos tempos, aqueles sinais de Deus que Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 135 O desafio hermenêutico da Gaudium et Spes mostram sua Vontade sempre e somente na incerteza das cambiantes circunstâncias temporais. Creio que reduzir a Gaudium et Spes a um piedoso conjunto de conselhos pastorais é, no melhor dos casos, um ato de miopia intelectual. Diacronia e sincronia, memória e anámnesis, vocação e assentimento, intimidade e alteridade, episteme humana semítica e conhecimento teológico. Sinais dos tempos e Sinais de Deus. As consequências doutrinais, as repercussões dogmáticas e a dimensão epistêmica da Gaudium et Spes são desafios, que têm ainda um longo caminho pela frente. E-mail do Autor: [email protected] 136 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Resumo: Esta síntese da conferência original apresenta uma visão de conjunto do Concílio, desde o contexto da sua convocação. Passa pelas várias fases da sua recepção, até o momento atual, insistindo em que o Concílio “despertou em nós a alegria de Deus”. É preciso, pois, estar atentos a que essa alegria “não seja estragada”. Comenta o sínodo de 85, celebrando os 20 anos do encerramento do Concílio, bem como o discurso de Bento XVI em 2005, por ocasião dos 40 anos. Reflete sobre a “renovação na continuidade” e sobre os novos desafios, de modo especial a questão de Deus em nossa época de crescente secularização. E formula a esperança de que a Igreja, num mundo inseguro, se torne de novo bússola e sinal de encorajamento para a humanidade. Abstract: A synthetic conspectus of the original conference dealing with the Vatican Council is a major contribution of this article which also takes into account the context since its convocation. In a retrospective view of the various phases of its reception until today its focus is the theme of “the joy in God” which was inflamed in us by the Council. Therefore we need to be careful that his joy be spared from being spoiled. An additional comment on the Synod of 1985, celebrating twenty years of the conclusion of the Council, inserting as well the discourse delivered by the Pope Benedict XVI in 2005, on the occasion of forty years since its final date. The author provides us with some fruitful thoughts on the “renovation of its continuity” and points out new challenges especially on the question of God raised in our time amidst growing secularization. A new hope is needed for the Church confronted by trends of insecurity undermining the life in the surrounding world so as to offer new guidelines and become a major source of encouragement for human kind. Um concílio a caminho1 Despertou em nós a alegria de Deus: não deixemos que no-la estraguem Walter Kasper* * O Cardeal Walter KASPER é Presidente emérito do Pontifício Conselho para a promoção da unidade dos cristãos. O artigo foi publicado no L’OSERVATORE ROMANO, ed. semanal em português, em data de 21-04-2013, pp. 12-13. É uma síntese da intervenção inaugural do Cardeal WALTER KASPER no Congresso Internacional dedicado a “João XXIII e Paulo VI, os Papas do Vaticano II”, em Bergamo, nos dias 12 e 13 de abril p.p. Os subtítulos são da nossa redação. 1 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013, p. 137-145. Um concílio a caminho Era a época da guerra fria. Um ano antes do início do concílio, foi construído o muro de Berlim e, durante o período da primeira sessão, o mundo, por causa da crise de Cuba, encontrou-se à margem do precipício da guerra atômica. Hoje, cinquenta anos depois, vivemos num mundo globalizado, completamente diferente e em rápida transformação, com novos questionamentos e desafios renovados. A fé optimista no progresso e o espírito do encaminhar-se a novos confins já passaram há muito tempo. Para a maior parte dos católicos, as mudanças postas em movimento pelo concílio fazem parte da vida quotidiana da Igreja. No entanto, aquilo que hoje experimentam não é o grande arranque, nem a primavera da Igreja que nessa época esperávamos, mas é ao contrário uma Igreja com um aspecto invernal, que manifesta evidentes sinais de crise. Para quantos conhecem a história dos vinte concílios reconhecidos como ecumênicos, isto não constituirá uma surpresa. Os tempos pós-conciliares foram quase sempre turbulentos. Mas o Vaticano II representa um caso particular. Diversamente dos concílios precedentes, não foi convocado para eliminar doutrinas heréticas ou para reparar um cisma; não proclamou qualquer dogma formal nem sequer tomou deliberações disciplinares formais. João XXIII tinha uma perspectiva mais ampla. Viu perfilar-se uma nova época, ao encontro da qual caminhou com otimismo, na confiança inabalável em Deus. Falou de um objetivo pastoral do Concílio, referindo-se a uma atualização, a um «devir hoje» da Igreja. Não se visava uma adaptação banal ao espírito dos tempos, mas o apelo a fazer com que a fé falasse nos dias de hoje. A ampla maioria dos Padres conciliares entendeu essa ideia. Quis atender aos pedidos dos movimentos de renovação bíblica, litúrgica, patrística, pastoral e ecumênica, que surgiram entre as duas guerras mundiais; começar uma nova página da história com o judaísmo, repleta de dificuldades, e entrar em diálogo com a cultura moderna. Foi o projeto de uma modernização que não queria nem podia ser modernismo. Uma minoria influente opôs uma resistência obstinada a essa tentativa da maioria. O sucessor de João XXIII, Paulo VI, estava fundamentalmente da parte da maioria, mas procurou empenhar a minoria e, em sintonia com uma antiga tradição conciliar, alcançar uma aprovação, na medida do possível, por unanimidade, dos documentos conciliares, num total de 16. Conseguiu, mas foi preciso pagar um preço. Em muitos pontos foi preciso encontrar fórmulas de compromisso em que, muitas 138 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Walter Kasper vezes, as posições da maioria se encontram imediatamente ao lado daquelas da minoria, pensadas para as delimitar. Desse modo, os textos conciliares têm em si mesmos uma enorme potencialidade conflituosa; abrem-se a uma recepção seletiva em ambas as direções. Que rumo indica a bússola do Concílio e para onde conduz o caminho da Igreja católica, no século XXI ainda tão jovem? Permanece assente na confiança crente de João XXIII, ou percorre a direção oposta, rumo a estéreis atitudes de defesa? Três fases da recepção Podem-se distinguir três fases da recepção, até aos nossos dias. Antes de tudo, a primeira fase da recepção entusiasta. Karl Rahner, logo depois de ter regressado do concílio, numa conferência em Munique, falou de «começar pelo princípio». Mas permaneceu cautamente céptico naquilo que se referia ao futuro. Outros foram mais além e quiseram deixar de lado aquilo que consideravam elementos da tradição levados ao concílio como acessórios, fruto de comprometimento e, como Hans Küng, com um salto de quase dois mil anos de história da Igreja, interpretaram a doutrina da Igreja de maneira totalmente renovada, começando a partir da Sagrada Escritura. A reação não se fez esperar por muito tempo. E veio não só da parte do arcebispo Lefebvre e da Fraternidade Sacerdotal de São Pio X, por ele mesmo fundada, mas também da parte de teólogos que, durante o concílio, tinham sido incluídos entre os progressistas (Jacques Maritain, Louis Bouyer e Henri de Lubac). Diversamente de Lefebvre, eles não criticaram o concílio em si mesmo, mas criticaram a sua recepção. Com efeito, nas primeiras duas décadas depois do concílio, houve um êxodo de numerosos sacerdotes e religiosos; em muitos âmbitos verificaram-se o declínio da prática eclesiástica e movimentos de protesto por parte de sacerdotes, religiosos e leigos. O Papa Paulo VI falou de uma «fumaça de Satanás», que teria entrado através de alguma fenda no templo de Deus. Ainda hoje alguns críticos consideram o Vaticano II, no contexto da história da Igreja, como um desastre e como a maior calamidade dos tempos modernos. Mas representa um curto-circuito considerar que tudo o que aconteceu depois do concílio ocorreu também por causa do mesmo concílio. Os críticos desconhecem as tendências de amplo alcance que Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 139 Um concílio a caminho agiram já antes do concílio e que conheceram uma aceleração notável nas sublevações sociais ligadas ao protesto dos jovens e dos estudantes em 1968. Depois de 1968, as tendências emancipadoras tiveram efeito também em âmbitos eclesiásticos. Durante o concílio, progressistas foram os verdadeiros conservadores, que queriam renovar a tradição antiga; em seguida, tomaram a palavra progressistas de um novo gênero, que não se orientavam tanto segundo a tradição mais antiga, quanto ao contrário segundo os «sinais dos tempos» e que queriam interpretar o Evangelho com base na mudada situação social. O Sínodo episcopal extraordinário de 1985, vinte anos depois do encerramento do concílio, deu início à terceira fase da recepção conciliar. O Sínodo tinha como tarefa realizar um balanço. No entanto, consciente da crise, não quis unir-se ao difundido coro de lamentações. Falou de situação ambivalente na qual, para além dos aspectos negativos, havia também bons frutos: a renovação litúrgica, que levou a uma maior acentuação da Palavra de Deus e a uma participação mais vigorosa por parte de toda a comunidade celebrante; a participação e cooperação fortalecidas dos leigos na vida da Igreja; as aproximações ecumênicas; as aberturas ao mundo moderno e à sua cultura; e muitos outros frutos. O Sínodo de 85 Fundamentalmente, o Sínodo ressaltou o fato de que a Igreja, em todos os concílios, é sempre a mesma e que, por conseguinte, o último concílio deve ser interpretado em relação a todos os outros. Com esta regra hermenêutica, o Sínodo tornou-se o ponto de cristalização da terceira fase da recepção, relativa ao magistério. O primeiro passo oficial da recepção foi a reforma litúrgica; principalmente, foi a introdução do novo Missal, que tinha entrado em vigor no primeiro Domingo do Advento de 1970. Esta reforma foi acolhida com gratidão pela ampla maioria, mas também encontrou críticas, em parte por motivos teológicos e, parcialmente, também porque alguns já sentiam saudades da sacralidade e da estética do rito em uso até então. Os documentos conciliares não permaneceram letra morta. Caracterizaram a vida nas dioceses, paróquias e comunidades religiosas, mediante a renovação da liturgia, uma espiritualidade que se distinguia por uma conotação bíblica mais acentuada e pela participação dos leigos, estimulando o diálogo ecumênico e inter-religioso. O Concílio foi recebido positivamente, em particular pelos novos movimentos 140 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Walter Kasper espirituais que surgiram nos anos setenta, os quais trouxeram à luz de uma maneira renovada a multiplicidade dos carismas e a vocação universal à santidade. Nem sequer a recepção oficial permaneceu inerte. Em parte, ultrapassou o concílio nas reformas litúrgicas, nas quais o concílio ainda seguia o latim como normal língua litúrgica e não se falava de uma celebração orientada para o povo. O mesmo é válido para as indicações sociais e éticas do Papa João Paulo II, a propósito da prática da liberdade religiosa mediante a anulação de concordatas que entravam em conflito com ela e, finalmente, em relação à «política» dos direitos humanos, com a qual João Paulo II ofereceu uma contribuição essencial para a derrota das ditaduras comunistas da Europa Oriental. É importante mencionar também a sua carta encíclica sobre o ecumenismo, Ut unum sint (1995), que aprofundou as enunciações ecumênicas do concílio, promovendo-as com energia. Tudo isso transformou positivamente, sob diversos aspetos, a face da Igreja, tanto no seu interior como na sua imagem externa. O ecumenismo, outro tema importante, deu bons frutos, mais do que se esperava na época do concílio. Uma Igreja que se fundamenta no mainstream social torna-se, em última análise, supérflua. Não se torna interessante, se é ornamentada com elementos que não lhe pertencem, mas sim, se faz valer a causa que lhe é própria de modo credível e convincente, e se manifesta como contraforte à opinião pública predominante. Cinquenta anos depois da sua inauguração, ainda há ocasião para se ocupar, de maneira aprofundada, dos textos conciliares, para deles haurir os tesouros ainda inesgotáveis que neles se encontram. Naturalmente, não se pode mitificar o concílio, nem se deve reduzi-lo a algumas frases de efeito. Não se pode nem sequer utilizá-lo como uma pedreira de onde extrair o material para desejadas teses individuais. É necessária uma hermenêutica conciliar, ou seja, uma interpretação meditada. Os textos conciliares Ponto de partida devem ser os textos conciliares, cuja interpretação deve ser feita segundo as regras e os critérios universalmente reconhecidos para a interpretação dos concílios. É necessário extrair o sentido de cada afirmação com cautela, da história da redação, muitas vezes complexa; em seguida, é preciso Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 141 Um concílio a caminho inseri-la no conjunto, diversificado e rico de tensões, de todas as afirmações conciliares; novamente, é necessário entender isso no complexo de toda a Tradição e do seu desenvolvimento histórico, assim como da recepção entretanto obtida. Enfim, cada uma das afirmações deve ser interpretada, no contexto da hierarquia das verdades, a começar pelo seu centro cristológico. A recepção sob a direção e a moderação do Magistério, constitui uma questão que diz respeito a todo o povo de Deus. Bento XVI – renovação na continuidade Um importante indício ulterior foi oferecido pelo Papa Bento XVI, num discurso dirigido aos cardeais e aos colaboradores da Cúria romana, pronunciado no dia 22 de Dezembro de 2005, por ocasião do quadragésimo aniversário do encerramento do concílio. Assim ele introduziu a fase mais recente do debate a respeito da interpretação do mesmo concílio, esclarecendo que o consenso não deve ser apenas sincrônico (relativo à Igreja contemporânea), mas também diacrônico (a respeito da Igreja em cada época). Opôs entre si duas hermenêuticas: a da descontinuidade e da ruptura, que ele rejeitou, e a «da reforma e da renovação». As palavras do Papa foram muitas vezes interpretadas de modo unilateral, deixando de considerar que ele não contrapôs, como muitos chegaram a afirmar, a hermenêutica da descontinuidade à hermenêutica da continuidade. O Sumo Pontífice falou de uma hermenêutica da reforma e da «renovação na continuidade» da Igreja. O termo “reforma” é, no conjunto da Tradição medieval, um termo fundamental e um desafio que se volta a propor continuamente. Reforma não significa só a necessária adaptação prática de parágrafos separados ‘a novas circunstâncias’. Quem fala de reforma pressupõe que subsistam deficit e disfunções que tornam necessário referir-se a tradições mais antigas, esquecidas, de modo particular aos primórdios apostólicos, renovando-os de maneira criativa. O discurso do Papa sobre a reforma e a renovação na continuidade reflete uma concepção viva da Tradição que, se as argumentações fundamentais são seguidas por consequências práticas, poderia voltar a fazer arder de novo o fogo do concílio, ou seja poderia, na continuidade, trazer novamente o impulso inovador do concílio. 142 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Walter Kasper Qual renovação? Perguntemo-nos: como pode manifestar-se tal renovação, e para onde pode levar o caminho sucessivo? Como aplicar a herança dos Papas João XXIII e Paulo VI nos dias de hoje? Não disponho de um programa global. No entanto, posso mencionar apenas alguns pontos de vista. Em primeiro lugar, o concílio atendeu, de modo crítico-construtivo, a pedidos importantes da modernidade. Hoje, meio século mais tarde, da idade moderna pudemos passar para a pós-moderna. Muitas das antigas questões voltam a apresentar-se de modo renovado; também muitos dos ideais do iluminismo são hoje novamente postos em questão. A fé no progresso, que havia nessa época, assim como a confiança na razão, foram abaladas. Isso não significa que o concílio deixou de ser atual. A Igreja deve levar a sério as interrogações legítimas da idade moderna. Deve defender a fé, quer contra o pluralismo e o relativismo pós-modernos, quer contra as tendências fundamentalistas que se afastam da razão. Segundo desafio: na era pós-moderna, é aquele que provém não só do nosso mundo ocidental secularizado e relativista, mas do hemisfério sul, ou seja, o desafio da pobreza da grande maioria dos homens. O Papa Francisco, com a sua opção por uma Igreja pobre para os pobres, já nolo recordou. E fê-lo em continuidade com o Vaticano II, que na Lumen Gentium, numa parte muitas vezes esquecida do seguimento de Jesus, que por nós se fez pobre, e da pobreza e simplicidade apostólica da Igreja. Neste sentido, o Papa Francisco desde o primeiro dia do seu pontificado ofereceu a sua interpretação, diria profética, do concílio, e deu início a uma nova recepção. Ele mudou a nossa agenda: em primeiro lugar, agora, os problemas do hemisfério sul. Isto leva a um terceiro ponto: devemos reconhecer que a situação da Igreja mudou desde os tempos do concílio. No início do século passado, um quarto dos católicos do mundo vivia fora da Europa; hoje, um quarto deles vive na Europa e mais de dois terços dos católicos do mundo vivem no hemisfério sul, onde a Igreja está a crescer. No nosso mundo globalizado, a Igreja tornou-se uma Igreja mundial e universal, de modo novo. Portanto, o problema da unidade e da multiplicidade salta aos olhos de modo absolutamente novo. Igreja, mistério de comunhão O concílio concebeu a Igreja como uma communio, ou seja, como participação na comunhão trinitária e como unidade na multiplicidade. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 143 Um concílio a caminho Sem dúvida, a unidade no ministério petrino constitui um bem excelso e um verdadeiro dom do Senhor para a sua Igreja; uma recaída na menta lidade da Igreja nacional não seria, no nosso mundo globalizado, abso lutamente capaz de indicar o caminho para o futuro. No entanto, aceitar um centro não significa aceitar um centralismo transbordante. Já em 1963, o então jovem teólogo Joseph Ratzinger chamava a atenção para o facto de que a unidade no ministério petrino não deve ser necessariamente entendida como uma unidade administrativa, mas deixa espaço a uma multiplicidade de formas administrativas, disciplinas e litúrgicas. João Paulo II, na carta encíclica Ut unum sint (1995), exortou a meditar sobre novas formas de exercício do primado. Bento XVI retomou pelo menos duas vezes esta frase. Por conseguinte, foi deveras significativo que o Papa Francisco tenha feito referência ao bispo de Roma que preside na caridade, famosa afirmação de Inácio de Antioquia. Ela é de importância fundamental, não só para a continuação do diálogo ecumênico, principalmente com as Igrejas ortodoxas, mas também para a própria Igreja católica. Quarto ponto de vista. O problema da unidade na multiplicidade aumenta na questão da liberdade de cada ser humano e do cristão indivi dualmente. Hoje em dia fala-se muito da individualização da nossa so ciedade. O problema apresenta-se também na Igreja. Estas problemáticas levantam-se para muitos cristãos e pastores, sobretudo no que se refere às questões éticas. A questão de Deus O último ponto é o mais importante: a questão de Deus. Já o concí lio incluiu o ateísmo, nas suas várias modulações, entre as questões mais sérias desta época. Esta situação, a partir de então, aumentou de modo dramático. O problema de hoje é que, para muitas pessoas, Deus já não representa um problema, ou seja, parece que já não é um problema, e que a sua existência já não tem qualquer interesse. Hoje o problema é a indiferença. Em tal situação, não podemos preocupar-nos somente com os efeitos sociais, culturais e políticos da fé, considerando a fé em Deus como uma premissa óbvia. Não é suficiente nem sequer preocupar-se apenas com as questões de reforma interna da nossa Igreja; elas são interessantes unicamente para os insiders. As pessoas lá fora, no «átrio dos gentios», levantam outras interrogações: de onde venho e para onde vou? Por que e para qual finalidade existo? Por que o mal, por que o 144 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Walter Kasper sofrimento no mundo? Por que devo sofrer? Como posso encontrar a felicidade? Onde encontrar alguém que esteja perto de mim, que me entenda, me conforte e me infunda um pouco de esperança? Não devemos falar de uma transcendência vaga, mas temos o dever de falar concretamente do Deus que, em Jesus Cristo, se revelou como Deus conosco e para nós, do Deus infinitamente misericordioso que nos espera, que em cada situação nos oferece uma nova oportunidade e a quem na oração nós podemos dizer: «Abá, Pai!». Devemos falar sobre a misericórdia de Deus, daquela misericórdia, que é – como disse o Papa Francisco – o nome do nosso Deus. Conclusão O caminho encetado pelo concílio não terminou. A rica herança que os dois Papas, João XXIII e Paulo VI, nos deixaram, ainda não findou. Devemos percorrê-lo com paciência mas também com determinação e coragem e, não obstante tudo, com hilaritas, alegria interior. Como disse Esdras ao povo de Jerusalém: «A alegria do Senhor é a vossa força» (Neemias 8,10). O concílio despertou a alegria por Deus, pela fé e pela Igreja. Antes de tudo, é necessário voltar a despertá-la dentro de nós, a fim de que ela possa entusiasmar também os outros. A alegria é contagiosa. Sem dúvida, cada um de nós é apenas uma pequena luz. Também o movimento de renovação pré-conciliar começou com alguns indivíduos e pequenos grupos. Na renovação pós-conciliar não será diversamente. No entanto, se não deixarmos que estraguem a nossa alegria, então um dia ela poderá ser transmitida aos outros. Poderá fazer com que a Igreja, num mundo que se transforma de modo rápido e se sente profundamente inseguro, se torne de modo novo bússola e sinal de encorajamento. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 145 Resumo: O artigo mostra como a história dos 40 anos do ITESC coincide com a dos 50 anos do início do Concílio. Observa como os Bispos de Santa Catarina, em 1972-73, ao criarem o ITESC, estavam todos inspirados pelas propostas conciliares. Pouco antes, em 1970, fora criado o Regional Sul IV da CNBB, abrangendo as dioceses do Estado, então em número de sete. Procurava-se, também, pôr em prática as propostas da Conferência de Medellin, de 1968 e, em muitos setores da pastoral, aderia-se ao Método da “criatividade comunitária”. O Diretor do ITESC, P. Bratti, optou decididamente pela eclesiologia do Vaticano II, surgindo daí um conflito entre ortodoxia e ortopraxia. Em 1976 é criado o Diretório Acadêmico dos estudantes. O longo pontificado de João Paulo II deixou marcas na evolução do ITESc. Na década de 90 criaram-se os “Seminários Teológicos” das várias dioceses, com exceção de Chapecó. Em 1978 conseguiu-se o reconhecimento dos estudos do ITESC pela Santa Sé, com a concessão do Bacharelado eclesiástico através da Faculdade de Teologia da Companhia de Jesus. Finalmente, o Bacharelado civil, pelo MEC, em 2011-2012. No final do artigo, uma “visão de conjunto”, abrindo perspectivas de esperança. Abstract: The author is pointing to the fact that the period of 40 years of ITESC coincides with 50 years since the beginning of the Council. He then lets us know that the bishops of Santa Catarina, in 1972-73, were inspired by the ideals of the Council by creating the ITESC, the theological school established in Florianópolis. In fact, just before that date, in 1970, the ecclesial organization, named Regional Sul IV of CNBB was founded, known as the national conference of Catholic bishops in Brazil, integrating seven dioceses of the State of Santa Catarina. It was an attempt to put into practice the objectives of the Conference of Medellin held in 1968. In many sectors of the pastoral activity the method of “communitarian creativity” was adopted. The director of ITESC was the late Father Paulo Bratti who put to full use the ecclesiology of Vatican II, causing a conflict between orthodoxy and orthopraxis. In 1976 was created the Academic Organization of the student body of ITESC. The lengthy pontifical reign of Pope John Paul II left a decisive marc of the evolution of ITESC. In the decade of the nineties, several “diocesan seminaries” were created in Florianópolis. In 1978 an important event took place by the recognition of the academic status of ITESC by the Holy See in Rome granting the degree of Bachelor in theology through its affiliation with the theological school of the Jesuits. Finally, the Ministry of Education of the Brazilian State Department authorized ITESC to grant the academic degree of Bachelor of theology in 2011-2012. In the conclusion of the article a wider perspective opens up to the reader by promising a future of even greater achievements. ITESC – 40 ANOS O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012 José Artulino Besen* * O autor é especialista em História da Igreja, Professor emérito do ITESC, e Pesquisador da FACASC. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013, p. 147-174. ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012 Em 1973, num pequeno edifício no bairro Pantanal, defronte à Universidade Federal de Santa Catarina, tinha início o INSTITUTO TEOLÓGICO DE SANTA CATARINA, o ITESC. Presentes à Missa de inauguração: o arcebispo de Florianópolis, Dom Afonso Niehues; o bispo de Tubarão, Dom Anselmo Pietrulla; Pe. Agostinho Petry (hoje bispo de Rio do Sul); o primeiro professor e diretor, Pe. Paulo Bratti; e os primeiros alunos, das dioceses de Florianópolis, Rio do Sul, Lages e Tubarão. Os primeiros professores: Pe. Paulo Bratti, Pe. Francisco de Sales Bianchini, Pe. Eloy Guella, SJ, Pe. Waldomiro O. Piazza, SJ, Nereu do Vale Pereira, Pe. Ney Brasil Pereira (a partir de agosto), aos quais, no ano de 1974, se uniram Pe. Orlando Brandes e Pe. José Longen. Realizavase, em fim, o desejo acalentado desde a década de 50 do século XX, de formar em Santa Catarina os presbíteros que nela trabalhariam, criando uma identidade eclesial no Estado catarinense. Já se tinha concretizado a decisão do Concílio de Trento (século XVI), de cada diocese ter seu seminário, norma repetida por São Pio X em 1907, com a Encíclica Pascendi Dominici Gregis: se não cada diocese, ao menos criar seminários provinciais. Com a criação do bispado de Florianópolis, em 1908, o primeiro bispo, Dom João Becker, sentiuse obrigado a buscar abrigo no Seminário “Conceição”, dos Padres da Companhia de Jesus, em São Leopoldo. Criar um seminário não era o mais difícil, mas, como ter professores e formadores? Para a formação filosófica e teológica, os seminaristas foram matriculados nos Seminários maiores de São Leopoldo, RS, Mariana, MG, São Paulo, SP e no Pontifício Colégio Pio latino americano de Roma e, a partir de 1934, no Pio brasileiro. Na década de 50, já eram 4 as dioceses: Florianópolis, Joinville, Lages e Tubarão, e os bispos se preocupavam com a dificuldade de formar seus padres. Uma janela abriu-se em 14 de março de 1954, com a inauguração do Seminário Maior Nossa Senhora da Conceição em Viamão,RS, que contou com a colaboração dos católicos catarinenses. Estava habilitado a receber seminaristas das dioceses gaúchas e catarinenses, em sua imensa estrutura com capacidade de abrigar 250 filósofos e 250 teólogos. Evidente que era solução provisória, pois havia dificuldades na convivência dos jovens dos dois Estados e divergências entre as orientações das Igrejas diocesanas. Entre 1960 e 1965, a diocese 148 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 José Artulino Besen de Joinville preferiu enviar os seminaristas maiores para cursarem teologia em Friburgo, na Suíça, tanto por razões de seriedade acadêmica como por facilidade econômica, pois as bolsas cobriam todas as despesas. Aproximadamente uma dezena seguiu esse caminho. Bem formados, com doutorado, prestaram grande ajuda à Universidade Federal de Santa Catarina e, especialmente, na fundação da Universidade de Blumenau. Os ventos de renovação eclesial, pastoral, formativa, que convergiram no Concílio do Vaticano II (1962-1965), apresentaram novos desafios. Além disso, o clima de contestação em Viamão forçou os bispos catarinenses a nova solução: em 1964, os seminaristas maiores foram encaminhados para o Seminário Maior Rainha dos Apóstolos, em Curitiba e, no ano seguinte, foi inaugurado o PAULINUM, seminário maior da Igreja catarinense naquela capital, com o nome prestando homenagem ao apóstolo Paulo e ao papa Paulo VI. Foram tempos fecundos de busca de caminhos teológicos, pastorais e formativos, sob a orientação generosa e paciente dos padres Osmar Pedro Müller, Afonso Paulo Guimarães, Paulo Bratti e Evaristo Debiasi. Passo seguinte, após tantas andanças e experiências, foi crer na possibilidade e necessidade de um Seminário teológico em Santa Catarina. Nascia em Florianópolis, em 1973, o Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC. Episcopado catarinense Era mais difícil a tomada de decisões por parte dos bispos, pois a prática pastoral isolava cada um em sua diocese. A Igreja se constituía em unidades estanques, embora com isso tenha começado a mudar a partir de 1952 quando, por incentivo de Dom Giovanni Montini (depois Paulo VI) e a coordenação eficiente e carismática de Pe. Hélder Câmara, nasceu no Rio de Janeiro a Conferência nacional dos bispos do Brasil, a CNBB. Dom Hélder, eleito bispo em 3 de março de 1952, foi secretário geral até 1964. Em 1977, a sede da CNBB foi transferida para Brasília, DF. Num território vasto como o brasileiro, foi sumamente positiva a criação dos Regionais da CNBB. Em nosso Estado, passamos a pertencer ao Regional Sul I, a partir de São Paulo, depois ao Sul II, a partir do Paraná, seguindo ao Sul III, com o Rio Grande do Sul. Entretanto, em 18 de março de 1969, quando do 1º Encontro do Episcopado de Santa Catarina (agora acrescido das dioceses de Chapecó, Rio do Sul e Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 149 ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012 Caçador), dom Afonso Niehues, arcebispo de Florianópolis, manifestou interesse na criação de um Regional próprio em Santa Catarina. A idéia foi bem recebida por todos, e provocou o envio de uma solicitação para que a CNBB, em sua Assembléia Regional, aprovasse a criação do novo Regional ainda naquele ano. Tudo foi muito rápido, pois a intermediação era do Cardeal Dom Jaime de Barros Câmara. O pedido foi apreciado pela Comissão Central da CNBB que, em 28 de setembro do mesmo ano enviou o deferimento da solicitação, nomeando o novo Regional como “CNBB Regional Sul 4”. Durante a Assembléia do Regional Sul 3 (Rio Grande do Sul e Santa Catarina), realizada em Lages entre 16 e 23 de novembro, foram dados os primeiros passos práticos para a criação do novo Regional. E, já no primeiro dia útil de 1970, aconteceu a instalação da CNBB Regional Sul 4. Dom Afonso foi eleito seu presidente, o que se repetiu sucessivamente até 1986. A primeira sede do Regional foi num prédio cedido pela Arquidiocese, no centro de Florianópolis. A partir de 1995, passou a funcionar junto ao ITESC, no bairro Pantanal. A unidade afetiva e pastoral do episcopado catarinense A Província eclesiástica de Santa Catarina, que corresponde ao Regional Sul IV da CNBB, foi constituída em 1927, com a arquidiocese de Florianópolis e as dioceses de Lages e Joinville. Chegou ao ano 2000 com 10 Igrejas particulares: Florianópolis, Lages, Joinville, Tubarão, Chapecó, Rio do Sul, Caçador, Joaçaba, Criciúma e Blumenau. Foram duas as realidades que convergiram, tanto na criação do Regional e sua pastoral orgânica, como na do Instituto Teológico de Santa Catarina. Em primeiro lugar, a atuação colegial, prudente, humilde e respeitosa de Dom Afonso Niehues, Arcebispo. Por mais difíceis que parecessem os conflitos, a ponderação serena de Dom Afonso encontrava ponto de equilíbrio, caminhando devagar, mas sabendo onde se queria chegar. Em segundo lugar, o que é muito importante, a estabilidade dos bispos em suas dioceses, delas sendo pastores até a renúncia pela idade canônica de 75 anos, o que prevaleceu até 2000. Para se ter uma idéia, levando em conta o tempo trabalhado na Igreja de SC, foram estes os anos de permanência: Dom Afonso Niehues – 33 anos, Dom Honorato 150 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 José Artulino Besen Piazzera – 21 anos, Dom Oneres Marchiori – 32 anos, Dom Gregório Warmeling – 37 anos, Dom José Gomes – 30 anos, Dom Anselmo Pietrulla – 26 anos, Dom Osório Bebber – 11 anos, Dom Tito Buss – 31 anos, Dom Henrique Muller – 24 anos, Dom Orlando Dotti – 7 anos, Dom Luiz Colussi – 13 anos. Isso permitiu o encaminhamento e amadurecimento das grandes diretrizes pastorais, e tornou realidade a amizade fraterna dos senhores bispos e foi decisivo para a fundação do ITESC e a constituição do patrimônio da entidade mantenedora, a Fundação Dom Jaime de Barros Câmara. Uma grande primavera na Igreja Era esse o panorama eclesial em 1973, ano natalício do ITESC: oito anos de encerramento do Concílio, cinco da Conferência de Medellín, 10 anos de pontificado de Paulo VI. A Igreja Universal vivia as alegrias e esperanças do Vaticano II, enquanto que a América latina estava mergulhada nos anos de chumbo das ditaduras militares, catequizadas na norte-americana Doutrina de Segurança Nacional. O episcopado latino-americano, reunido em Medellín e inspirado pelo Paulo VI, revelou em toda a sua verdade o rosto de pobreza do povo latino americano. Os pastores zelosos estavam decididos a trabalhar pela libertação de seus povos, mas os regimes de força pouco a pouco foram mostrando seu rosto insensível frente ao pobre, mas sensível ao capital internacional, para cuja defesa não hesitavam em recorrer à prisão, à tortura, à censura, ao assassinato. Os bispos brasileiros tinham o privilégio de lideranças firmes, proféticas e corajosas, à frente da CNBB, mas Dom Hélder Câmara, a grande alma da CNBB, estava proibido de ser citado nos MCS desde 1968. Paulo VI, o grande papa do século XX, sofria no corpo e na alma os dramas da Igreja, uma instituição que, levada pelo entusiasmo conciliar, queria caminhar depressa e, ao mesmo tempo, carregava em seu ventre saudosistas e tradicionalistas inseguros, tendo de caminhar lentamente para não perder alguns filhos nas freadas ou aceleradas, o que era visto como indecisão ou medo do Concílio. Todos os bispos catarinenses de 1973 participaram do Concílio, o que foi causa de grande unidade eclesiológica e comunhão diocesana, alimentando criativamente a Pastoral de Conjunto. Ao final do Concílio, assim se expressou Dom Afonso na Rádio Vaticana: “Aqui Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 151 ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012 viemos como príncipes, e retornaremos como despojados pastores a serviço do povo”. Dom Gregório Warmeling, de Joinville, com outros bispos, assinou o Pacto das Catacumbas, comprometendo-se a uma vida e estruturas despojadas. Deixou de residir no Palácio episcopal, para mágoa de muitos joinvillenses. Com a maioria desses grandes bispos já na paz do Senhor, podemos dizer, sem fazer exceções, que foram dedicados pastores, humildes, despojados, sem outro projeto do que o bem de seus rebanhos e de seus padres. Viveram intensamente a colegialidade de que falou o Concílio e, depois, o conjunto das Conferências latino americanas. O método da Criatividade Comunitária Entre 1969 e 1978, o episcopado e coordenações de pastoral assumiram como método de organização pastoral a “Criatividade Comunitária”, método de organização comunitária baseado nos 14 Sistemas de Antônio Müller, da USP e adaptado por Waldemar Gregori: Parentesco, Saúde, Manutenção, Lealdade, Lazer, Viário, Educacional, Patrimonial, Produção, Religioso, Segurança, PolíticoAdministrativo, Jurídico, Precedência. O que era para ser um método pedagógico, transformou-se numa quase ideologia, colocando o homem no centro, mas um homem libertado de dependências, inclusive dos “recheios” religiosos e da cruz. Padre Paulo Bratti, então ainda lecionando em Curitiba, alertou o episcopado paranaense sobre essa redução da fé cristã, analisando o Método em artigo publicado no SEDOC com o título “Fé cristã e justificação pela fé”. Vindo para Florianópolis, não se furtou a colocar-se fora da unanimidade entusiasmada e, diante dos bispos e dos Coordenadores de Pastoral, acusou com veemência a Waldemar de Gregori de anunciar um panteísmo imanentista. Nunca foi perdoado pela coragem profética e foi marginalizado do Regional Sul IV, que não mais o convidou para nada. O ITESC foi mal visto por isso: acusavam-no de oferecer apenas “recheio teológico”. A história encarregou-se de dar-lhe razão quando da grande crise em que se viram envolvidas as Congregações das Irmãs Catequistas Franciscanas, Irmãzinhas da Imaculada Conceição e da Divina Providência, tendo essa última passado por dolorosa Visita canônica que em 1978 terminou com a exclusão de mais de 90 Irmãs, que constituíram a “Fraternidade Esperança”. 152 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 José Artulino Besen O Instituto Teológico e as dioceses – riqueza e conflito Na Igreja catarinense, havia três anos constituída em Regional Sul IV da CNBB, vivia-se a tensão entre ortodoxia e ortopraxia, entre reflexão teológica e reflexão pastoral, entre o presbítero pastor e o sacerdote da tradição. Se pudéssemos pessoalizar, citaríamos três nomes que, por estarem na eternidade, já dispensaram os manuais de teologia: em Florianópolis, Dom Afonso Niehues sonhava com uma Igreja aberta aos problemas do mundo mas fiel à tradição; em Joinville, Dom Gregório Warmeling era o protótipo do homem livre, para quem o importante era experimentar novos caminhos sem medo de errar e recomeçar (“valeu a experiência”, o que denota sua confiança na Providência); em Chapecó, Dom José Gomes não tinha dúvidas: suas ovelhas prediletas eram os camponeses, os índios, os caboclos, os excluídos da sociedade. Se a primeira década do ITESC foi mais centrada no binômio teologia-pastoral, a segunda década, a de 80, foi vivida nas opções da Conferência do Episcopado em Puebla (1979): os jovens, a família, os pobres, desses renovando-se a opção preferencial formulada em Medellín, em 1968. Foram os pobres, e a marginalização que os gera, o grande campo de amadurecimento e conflito no Instituto Teológico. De modo até agressivo, os alunos perguntavam: por que estudar “dogmas”, se o povo pede pão? A ação pastoral é quase identificada com ação social. Se o Concílio oferecia a imagem de um presbítero pastor, Puebla parecia exigir um presbítero agitador. Simultaneamente, a vida pastoral recebe outro método – ou espírito – a Renovação Carismática Católica, com toda a atração que exerce sobre as massas tanto no campo católico quanto no competidor Pentecostalismo evangélico. A eleição de João Paulo II, em 1978, representou aquilo que se denominou “retorno à grande disciplina”. O clima da pós-modernidade triunfante que anuncia a civilização do hedonismo e das aparências provocou o surgimento de um novo tipo de presbítero: o apreciador das liturgias faustosas, o sonho de ser “padre popstar”. As lutas por uma sociedade justa e fraterna perdem o lance animador, não por influência do ITESC, mas do ambiente donde surgem as novas vocações. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 153 ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012 O ITESC – início humilde e desapego eclesial A primeira Ata do Instituto Teológico de Santa Catarina foi redigida por Ademar P. de Faveri, em 1o de dezembro de 1972, e assim começa: “No dia primeiro de dezembro de mil novecentos e setenta e dois, reuniram-se no Arcebispado Metropolitano, em Florianópolis, das quatorze às dezessete e trinta horas, os senhores Dom Afonso Niehues, Pe. Paulo Bratti, Pe. Francisco de Sales Bianchini, Pe. Waldemiro Otávio Piazza e Pe. Eloy Guella, para fazerem deliberações a respeito do funcionamento do Curso de Teologia do Instituto Teológico de Santa Catarina, no próximo ano de mil novecentos e setenta e três”. Na reunião seguinte, de 17 de fevereiro de 1973, “foi feita a comunicação de que os senhores Bispos do Regional Sul IV, em reunião realizada no dia dez de janeiro do presente ano, houveram por bem oficializar a criação do ITESC e nomearam para Diretor e Vice-Diretor, respectivamente, Pe. Paulo Bratti e Pe. Evilásio Volpato”, este, da diocese de Tubarão. Ficou decidido que as aulas teriam início no dia 8 de março de 1973, dia do início do ano letivo na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, e que o Instituto promoveria “duas semanas teológicas anualmente”. Tendo em conta o fato consumado, Dom Afonso Niehues construiu pequeno prédio, de dois andares, no Pantanal, abrigando os primeiros alunos e as primeiras aulas. Foi denominado “Convívio Emaús”. Hoje, ampliado, é o Seminário Teológico da arquidiocese de Florianópolis. As aulas eram ministradas na parte da tarde e funcionavam em salas cedidas por Convênio pela UFSC. Sem custo. A sexta reunião aconteceu já nessa sede do Instituto, em 5 de maio 1973. Na espiritualização, Dom Afonso “lembrou a responsabilidade dos membros do ITESC, pois dele depende o futuro da Igreja em Santa Catarina”. O Arcebispo repetiu muitas vezes essa frase, especialmente nos momentos de maiores dificuldades. A partir de 25 de fevereiro de 1975, as Atas passaram a ser redigidas pelo Pe. Ney Brasil Pereira, recém-chegado de Roma onde, no Pontifício Instituto Bíblico, recebeu o título de Mestre em Exegese bíblica. Continuando no dedicado magistério, Pe. Ney simboliza o entusiasmo e a memória histórica do Instituto, não se deixando levar nem pelo desânimo, nem pelos modismos. 154 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 José Artulino Besen No terceiro ano de funcionamento do ITESC, o número de alunos previstos para o início do semestre: 10 no terceiro ano, 5 no segundo, e 13 no primeiro. Destes, 7 eram seminaristas diocesanos, 4 freis capuchinhos, e duas irmãs da Divina Providência. Em 1980, o ITESC passou a contar com os seminaristas do PIME. A diversidade de origem, e a presença de leigos, enriqueceu a comunidade acadêmica. Em 5 abril daquele ano, 1975, foi inaugurada e ocupada a nova sede do Instituto, propriedade da Fundação Dom Jaime de Barros Câmara, entidade mantenedora, nome que prestava homenagem e reconhecimento ao primeiro reitor do Seminário Menor de Azambuja, primeiro cardeal catarinense e colaborador na criação do Regional Sul IV. Tinha alojamentos individuais para 25 seminaristas e hoje sedia o Regional e seus organismos pastorais. Nesse mesmo ano, Dom Afonso fez construir outro edifício, à Rua Arno Hoeschel, para o Regional e residência dos professores do ITESC. No tempo devido, passou a patrimônio da Fundação. Na seqüência da organização estrutural do Instituto, em 1979 foi inaugurado o edifício-sede do Seminário Maior Catarinense e no qual hoje funciona o Instituto Teológico de Santa Catarina. Construído com recursos oriundos da venda do PAULINUM de Curitiba, e com ajuda da arquidiocese alemã de Köln, foi dividido em alas onde teriam residência os seminaristas, idealmente cada grupo diocesano com seu assistente, tendo um Reitor geral. Comuns eram refeitório, capela, área de lazer e biblioteca. Permanecia aberta a pergunta: que título e em que nível de reconhecimento os estudantes receberiam ao terminar o curso de teologia? Uma possibilidade, depois concretizada, foi a assinatura de Convênio com a Faculdade de Teologia Cristo Rei, de São Leopoldo, dos padres jesuítas. Sendo essa transferida para Belo Horizonte, houve continuidade na concessão do título eclesiástico de Bacharel, reconhecido pelas Universidades católicas. Deve ser lembrada, aqui, a contínua presença da Companhia de Jesus no ITESC, tanto contribuindo com professores como com a titulação. Igualmente era desejável a criação de uma Revista teológica, que receberia as contribuições de professores e de alunos. Após muitas discussões e propostas surgiu, em 1986, por iniciativa do 2º Diretor, Pe. Hélcion Ribeiro, a Revista ENCONTROS TEOLÓGICOS que, até os dias atuais, não sofreu interrupção. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 155 ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012 Partida prematura de Padre Paulo Bratti Na madrugada de 15 de maio de 1982 aconteceu o inesperado: com apenas 46 anos de idade, no vigor de sua produção teológica, falecia Padre Paulo Bratti, até essa data Diretor do Instituto. Por suas qualidades pessoais, espirituais e de liderança, tanto no Instituto como na Capital, deixou um vazio não preenchido. A Igreja catarinense lhe deve o reconhecimento por sua dedicação e generosidade na condução do barco em momentos difíceis. Pe. Paulo perdoava generosamente as críticas, as maledicências: era um homem reconciliado consigo e que vivia intensamente a intimidade com o Senhor. De tal modo era fiel a seu ministério, que os alunos o apelidavam de “o Presbítero”. Pe. Paulo desejava publicar, em livro, alguns dos seus muitos textos saídos na imprensa local. Pe. José Artulino Besen, professor de História da Igreja, apresentou material já reunido para esse livro com 46 dos mais de 100 artigos deixados. Com o estímulo de Pe. João Evangelista Martins Terra, SJ, saiu pelas Edições Loyola, com o título “A Fé no Desterro”. O retrato de Pe. Paulo está belamente traçado nos três artigos a ele dedicados na revista ENCONTROS TEOLÓGICOS, por ocasião do 10o aniversário de seu falecimento: “Paulo Bratti – peregrino do Absoluto”, do Dr. Paulo Leonardo Medeiros Vieira; “Paulo Bratti – ‘um pecador que Deus amou’”, de Pe. Ney Brasil Pereira; e “Padre Paulo Bratti – presbítero da Igreja”, do Pe. José Artulino Besen. Assumiu como Diretor do ITESC o Vice-Diretor Pe. Orlando Brandes, e para esse cargo foi escolhido Pe. Valter Maurício Goedert. No ano de 1982 o primeiro ex-aluno foi nomeado professor: Pe. Siro Manoel de Oliveira. O ITESC – Seminário-Pastoral-Academia – DACIT/DAT Retornemos aos inícios do Instituto Teológico, para alguma notícia sobre sua vida interna, tantas vezes conflituosa, no que se refere à ligação Seminário-Pastoral-Academia-Diretório acadêmico. Logo no início, em 1973, ficou estabelecido que os seminaristas teriam orientação de prática pastoral dois sábados por mês, e que essa orientação seria dada pelo Pe. Evilásio Volpato, coordenador de pasto- 156 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 José Artulino Besen ral da diocese de Tubarão. Além disso, fariam um sábado por mês uma manhã cultural e uma manhã de espiritualidade. Dos sábados à tarde aos domingos à tarde se dividiriam pelas paróquias vizinhas, auxiliando na pastoral. Foi muito fecundo esse serviço às paróquias e comunidades, especialmente no acompanhamento dos jovens. Pe. Evilásio insistia, e com ele os coordenadores diocesanos, que o objetivo do ITESC era “não apenas a formação de pesquisadores, mas de pastores”. Pe. Evilásio externava o desejo de “maior entrosamento entre ITESC e CNBB. Os alunos do ITESC, uma vez que estão se preparando para atuar na Igreja de Santa Catarina, deverão estar mais avisados das linhas de ação do Regional”. As coordenações pastorais do Regional e das dioceses queriam uma teologia pragmática, que ensinasse o agir pastoral, sem perder muito tempo com a dogmática e uma exegese muito científica. Para eles, o ITESC deveria ser uma alavanca da modernidade pastoral, uma escola de presbíteros que soubessem agir, organizar, planejar. As escolhas não eram fáceis para nenhuma instituição teológica no Brasil: poucos eram os manuais que expressavam a teologia do Concílio, poucos eram os professores aptos para uma teologia eminentemente pastoral. Nos períodos de transição, alguns são afoitos, até simplificando os problemas e desafios, e outros, mais tímidos. Essa realidade já se fizera presente no início, na discussão sobre o Currículo do ITESC: os padres do Regional e Coordenadores de Pastoral (Pe. Osmar Pedro Muller, Pe. Evilásio Volpato, de modo particular) pensavam num Currículo sem disciplinas específicas de Teologia, mas estendido pelos 14 Sistemas da Criatividade Comunitária. A teologia/ religião era vista como recheio intelectual. Os bispos catarinenses, porém, fizeram uma opção, norteadora até hoje da vida acadêmica do ITESC: uma teologia séria, renovada, aberta à formação de presbíteros pastores. Renovação dentro da tradição. Para evidenciar essa opção, fizeram uma escolha muito concreta: o Pe. Paulo Bratti, catarinense de Orleães, professor de teologia em Curitiba e Reitor do PAULINUM. Sua formação teológica tinha acontecido em Roma, durante o Concílio, onde tinha escutado com interesse e proveito os grandes bispos e peritos. Bebera do poço da renovação conciliar. Humanamente rico, Pe. Bratti sabia acolher o novo e rejeitar o novidadeirismo, sabia dialogar com a oposição sem acumular amargura. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 157 ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012 Fino diplomata no relacionamento humano, tinha noção da distância que devia percorrer ou dos passos que deveria retroceder. Pe. Paulo tinha muito nítida a preocupação com a grande tradição da Igreja católica de ter padres bem formados espiritual e teologicamente, padres capazes de dialogar com a cultura e não padres triunfalistas arrotando presumidos modernismos. Sofreu incompreensões, marginalização, mas não deixou de orientar o ITESC no caminho de uma profunda e atual formação teológica. Como estava programada a primeira visita oficial dos Bispos de Santa Catarina ao seu Instituto Teológico em 17 de junho de 1975, Pe. Bratti sugeriu a formação de um grupo de trabalho para a redação dos objetivos do ITESC, levando em conta a “tensão entre pastoralistas e teólogos”. Quanto a esses objetivos, Pe. Bratti e Pe. Brandes apresentaram uma proposta por escrito, logo submetida aos outros professores. No debate, observou-se o seguinte: 1) evitem-se, na redação, os termos de conotação emocional, p. ex., antiintelectualismo, pragmatismo, e os “ismos” em geral; 2) levem-se em conta as possibilidades da metodologia indutiva, também na Teologia, procurando-se partir da realidade; 3) que haja integração com os objetivos do Regional Sul IV; 4) que professores e alunos tomem consciência da necessidade do estudo aprofundado, para a obtenção do imprescindível conteúdo teológico; 5) que se favoreça a integração com a Universidade, tirando-se as conseqüências da presença física do ITESC no campus universitário. Quanto à Pastoral Universitária, viu-se a sua necessidade de fazer um planejamento. Os problemas e soluções são diferentes, mas interdependentes. Um bocado das tensões entre a Academia e a Pastoral se alimentavam de outra tensão: o conflito entre o ITESC-Seminário e a Academia. Na reunião de 29 de setembro de 1975, foi questionado se a “atmosfera” da casa-seminário era realmente de estudo. Constatou-se que “há conscientização nesse sentido, mas falta intensidade, perde-se tempo: ‘o dia começa tarde e termina cedo’; as críticas são feitas à base de slogans ou rótulos, faltando o aprofundamento; o clima é de dispersão; os alunos criticam, mas não levam a sério a própria crítica...”. Pe. Bratti, querendo amenizar esse quadro um tanto negativo, deu o testemunho de quem convive continuamente com os alunos, como seu Reitor, dizendo que “neles nota sinceridade, esforço, espírito crítico sincero”. Mas Pe. Orlando Brandes, retrucando ao depoimento, observou 158 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 José Artulino Besen que não se trata de defender a situação antes criticada, mas de procurar soluções objetivas, concretas, para os vários pontos. Assim, pela primeira vez numa Ata, focalizou-se o problema que, anos depois, ia ser equacionado com a separação entre as duas Instituições: o ITESC-Academia e o ITESC-Seminário. O aluno não distinguia entre professores e formadores que, em alguns casos, eram os mesmos, e entendiam certas aulas como repreensão por seu comportamento em casa. Diretório acadêmico dos estudantes – buscas e contrastes Para conduzir o diálogo dos alunos entre si e apresentar suas aspirações à Academia, falava-se na necessidade de um diretório acadêmico que também representasse o ITESC junto à Universidade. Após idas e vindas, em 9 de agosto de 1976, a assembléia dos alunos concretizou o Diretório Acadêmico do Instituto de Teologia-DACIT, depois alterado para DAT. A 26a reunião do Colegiado, em 19 de novembro de 1976, contou pela primeira vez com a representação do Diretório Acadêmico na pessoa do seu Presidente, o aluno Agenor Brighenti. O DACIT, através do Presidente, apresentou uma “carta aos estudantes” fazendo uma enquete e propondo um debate sobre os estudos do ITESC no ano de 76. Comunicou também a adesão do DACIT ao manifesto dos outros Diretórios da UFSC contra a continuidade da prisão política do Prof. Marcos Cardoso Filho. A propósito, Pe. Bratti observou que “essa participação, certamente elogiável, deveria estar condicionada a um entendimento prévio com a Diretoria do Instituto, dada a característica especial do DACIT”. Outro conflito foi motivado pelo fato de o DACIT ter sido copromotor da visita de Fernando Gabeira à UFSC, tratando-se de um “marxista considerado amoral e perigoso”. Vivia-se nos anos de chumbo do regime militar, e todo questionamento à ordem constituída era visto como esquerdismo, comunismo. Nesses conflitos, Pe. Paulo enfrentava as críticas de diversos padres catarinenses, que suspeitavam de sua presumida simpatia pela direita Em 1977, o citado Presidente do DACIT, Agenor Brighenti, propôs uma nova metodologia de trabalho acadêmico no ITESC, a partir da enquete realizada entre os alunos no ano precedente: “o professor não Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 159 ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012 ensina, mas é companheiro na pesquisa, na qual todos se empenham... Daí, a ausência de aulas expositivas...” Seguiu-se animado debate, com muitos questionamentos dos professores, sintetizados na ata. Brighenti insistiu no fato da insatisfação dos alunos. Pe. Bratti sugeriu um confronto entre a proposta do DACIT e o recente documento da Santa Sé sobre a formação teológica (“A formação teológica dos futuros sacerdotes” - 1976). Na revisão do primeiro semestre, em junho de 1976, o representante do primeiro ano, José Fritsch, mencionando a “falta de motivação” e o “descontentamento com a metodologia”, disse que “há muita vontade de ‘fazer teologia’, mas os professores não correspondem...”. O descontentamento continuou e, na reunião do Conselho de outubro do mesmo ano, o representante do 1o ano, José Lino Buss, disse que, “dos professores, alguns dão apostila, mas lêem; outros não dão, e torna-se difícil acompanhá-los; alguns bancam ‘donos da verdade’ e não aceitam o diálogo”. Esse período, difícil porque a época era difícil também nas outras instituições universitárias, que exigiam diálogo, abertura, consciência social e, no caso específico do ITESC, uma Igreja livre de imposições teológicas, se estenderá até o final da década de 80, com a separação entre comunidade seminarística e comunidade acadêmica. A Ata de 25 de abril de 1978 reporta mais severas contestações, não muito objetivas: Pedro Damásio “falou da sensação de esterilização, diante de métodos primários de exposição e de verificação, do desligamento da realidade...” E José Fritsch, presidente do DACIT, chega a dizer: “A gente era ativo, estava evoluindo dinamicamente, e aqui involui, perde o ânimo. Se nada funciona aqui no ITESC, então algo de profundo deve ser mudado”. No dia 23 de novembro de 1978, houve uma reunião extraordinária dos professores com os senhores Bispos de Joinville e Chapecó, respectivamente, Dom Gregório Warmeling e Dom José Gomes. Ambos encontravam-se em visita ao ITESC em nome do Regional, e ouviram também os alunos. Concluindo a ata, o secretário anotou que “esse encontro apenas chegou a tocar na chaga, a qual poderia ser resumida no seguinte: há um fosso entre professores e alunos, e vice-versa, difícil de transpor. De outro lado, o ITESC, como obra necessária da Igreja em Santa Catarina, e com estes recursos humanos que temos (estes professores, não outros; estes alunos, não outros) deverá vencer, pelo diálogo e o esforço mútuo, coadjuvado pela graça de Deus, esta situação que se apresenta como um verdadeiro impasse”. 160 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 José Artulino Besen Nas reuniões seguintes, os comentários são mais moderados e objetivos permanecendo, porém, o problema: que teologia? que tipo de padre? qual o lugar do social na formação e no ministério?. Pe. Bratti, até para animar os professores nesse ambiente não amistoso, insistia em que “um professor de Teologia é antes de tudo confessor da Fé: confessor é também o que sofre humilhações pela fé”. Pe. Orlando Brandes lembrava que a teologia do ITESC parecia não estar respondendo à preocupação dos alunos com o social. Apontou algumas falhas essenciais, a seu ver: a) da parte dos professores, falta de conteúdo teológico, e falta de conteúdo ‘libertário’, isto é, de Teologia da Libertação; b) da parte dos alunos, falta de assumirem o seu dever de estado, por causa do ‘contexto fácil’ e dos preconceitos com que já vêm para a Teologia. Em 1979, a Igreja latino americana celebrou a Conferência geral em Puebla, no México. Retomando as opções de Medellín (1968), o tom do enfoque social na pastoral foi acentuado, marcando as alegrias e tristezas do período. Em julho de 1982, Pe. Orlando relatou algo sobre o Encontro da Organização dos Seminários e Institutos Filosófico-Teológicos do BrasilOSIB em Brasília, de que participara e donde colheu esses temas que são os mesmos em todo o Brasil: as reflexões sobre o “tipo de Padre”, para que “tipo de Igreja”, prevalecendo o conceito de Igreja ministerial, portanto, do Padre-ministro, servidor do povo de Deus. Na Teologia ensinada, vários Institutos optam decididamente pela Teologia da Libertação. Pe. Ney referiu-se também ao Encontro nacional de Liturgia, em Belo Horizonte, marcado por uma grande preocupação pela inserção da Liturgia no social, mas sem qualquer alusão aos documentos da Santa Sé. Pe. Debiasi, referindo-se a um Encontro de formadores do Clero, no Paraguai, mencionou a insegurança e o pluralismo das diretrizes na formação do Clero. Pe. Ney observou que, “dentro desse pluralismo, é preciso manter a identidade do nosso Instituto: seriedade e fidelidade à Igreja”. A última reunião do ano de 1982, em 7 de dezembro, contou com a presença do sr. Arcebispo, Dom Afonso, e de Mons. Valentim Loch, recém-nomeado Reitor do Seminário do ITESC. Pela sua história de vida, pela respeito recebido no meio do clero catarinense, Mons. Valentim foi julgado o nome adequado para assumir a reitoria. Dom Afonso comunicou também que Pe. Evaristo Debiasi fora nomeado Orientador Espiritual do Seminário. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 161 ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012 Mesmo com toda a sua boa vontade, Mons. Valentim não conseguiu apaziguar o ambiente inteerno, pois julgava que ainda poderia pedir silêncio, pontualidade, estudo... Logo reconheceu a dificuldade e, a partir de 1984, a reitoria foi assumida pelo Pe. Nilo Buss, da diocese de Tubarão e aluno da primeira turma do ITESC. Os problemas tornaram-se mais serenos ao em 1988/1989, quando se separou o ITESC do Seminário, cada diocese tendo os alunos em seminário próprio e com formador próprio. João Paulo II e a grande disciplina O ITESC viveu 25 anos sob o pontificado de João Paulo II (19782005), o papa que veio do Leste. É difícil não se cair na injustiça ao se fazer uma avaliação desses 25 anos woytilianos. Alguns preferem o refrão “esse Papa só fez retroceder”; ou então, “esse Papa colocou a Igreja nos eixos”. Se isso fosse verdade, o Espírito seria descartável e a Igreja estaria na mão voluntariosa de um ser humano. Houve, de fato, um retrocesso no sentido de viver grandes utopias sociais. Com a queda do Muro de Berlim e o colapso do Império soviético (1989-1990), a governança global mergulhou no neo-liberalismo, onde o que conta é o capital financeiro, o verdadeiro agente administrativo do mundo. Para conhecer melhor a realidade da formação presbiteral no Brasil, João Paulo II promoveu o envio de visitadores apostólicos para os seminários, cujo fruto mais vistoso e doloroso foi o fechamento do Instituto Teológico do Recife – ITER e do Seminário Regional do Nordeste – SERENE, em 1989. Eram as duas jóias da coroa de Dom Hélder Câmara, o qual sentiu a decisão de seu sucessor a partir de 1985 como punhalada pelas costas. Em 1988, também os seminários catarinenses e o ITESC receberam a visita na pessoa de Dom Ivo Lorscheiter, bispo de Santa Maria, RS, homem sumamente aberto. Na ocasião da visita, encontrou o ambiente meio conturbado, como acontece periodicamente com as instituições formativas. Nas entrevistas com alunos e professores, Dom Ivo captou essa insatisfação e incluiu-a no Relatório entregue à Santa Sé. Evidente que os problemas foram contornados ficando, porém, a notícia. Quando, em março de 1991, Dom Eusébio Oscar Scheid,SCJ assumiu como arcebispo de Florianópolis, disse que, entre seus trabalhos, um seria “pôr a casa em ordem”, por casa entendendo-se o ITESC. Para surpresa sua, não havia casa desarrumada. 162 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 José Artulino Besen Os Seminários Teológicos catarinenses Em 1988 foi desativado o Seminário que, no mesmo prédio, congregava diferentes dioceses, causa de diversos conflitos, pela mistura de vida comunitária e academia, como analisamos antes. Em vez de um único grande seminário regional, optava-se por seminários diocesanos, com a opção de morar em residências simples, nas periferias de Florianópolis. Um medo: ser alienado; um sonho: ser libertador. É claro que o binômio não funciona por não ter lógica, mas motivou as opções sérias de muitos itesquianos em seu posterior atuar pastoral. A redemocratização de 1984, a maioridade dos Movimentos populares, dos partidos, sindicatos, mostrou que a Igreja não é dona da justiça social, mas motivadora, fermento na massa, humilde servidora dos pobres, apoiando os movimentos populares. Sem uma profunda espiritualidade, sem uma séria reflexão teológica, pouco fará o presbítero por um mundo novo. A partir de 1994, as aulas passaram da UFSC às atuais dependências do Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC, onde antes funcionava o grande Seminário, e na parte da manhã. Alguns alunos reclamaram da perda de contato com a Universidade, mas, de fato, a Universidade não tinha mais salas à disposição. A anterior convivência seminário-academia tinha a vantagem da troca de experiência, mas a desvantagem da mistura dos “humores” com a identificação professorformador. A questão das Ordenações diaconais e presbiterais alcançou uma qualidade maior. No sistema anterior, os bispos ordenavam sseminaristas sem muito levar em conta a opinião dos padres e formadores. Com cada Diocese tendo seu Seminário e Reitor, ficava melhor a qualidade da formação e da informação aos Bispos, que levam em conta os escrutínios encaminhados pelo Reitor. Também foi decidido que os Bispos não aceitariam ex-seminaristas, decisão unânime mas não unívoca, pois um bispo diocesano é livre em suas escolhas. Aqui se percebe a conseqüência de experiências feitas e a mudança do perfil do episcopado catarinense. O perigo nesse processo é a dificuldade maior da transparência na formação: sabendo estar sendo cobrado para a ordenação, o seminarista assume, mesmo não concordando, uma espécie de convivência pacífica, para ser ordenado. Depois de ordenado, pode surpreender negativamente. Evidente que essa nota vale para alguns casos apenas. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 163 ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012 Cronologia dos Seminários teológicos Assim aconteceu a fundação dos seminários teológicos, diocese por diocese. Diocese de Florianópolis: Em 1989 estabeleceram-se dois grupos: um, pequeno, no Morro da Mariquinha-Monserrat, e a maioria, no atual prédio do Regional Sul IV. Dom Afonso sentiu muito essa realidade nova, que aceitou como sofrimento pelo seu áureo jubileu presbiteral. A partir de 1999, todos foram transferidos para o novo edifício “Convívio Emaús”. Diocese de Lages: Em 1976, os seminaristas residiam num edifício da Fundação, depois adquirido pela diocese. Com a construção da nova casa, a partir de agosto de 2008 a Diocese de Lages passou a contar com uma residência ampla, o “Seminário Dom Honorato Piazzera”. Diocese de Chapecó: Devido às distâncias e a uma especial orientação teológica, em 1990 Dom José Gomes e seu presbitério decidiram manter seus seminaristas no território da diocese, optando pelo ITEPA, o vizinho Instituto Teológico de Passo Fundo, RS. Uma opção que de certo modo frustrou a intenção primordial do ITESC, destinado a todas as dioceses catarinenses. Diocese de Caçador: Em 1989 foi inaugurado o “Seminário Teológico São José”, no bairro Pantanal, bem perto do ITESC. Diocese de Joaçaba: Criada em 1975, ainda não possui seminário próprio, tendo sido acolhida pela diocese de Lages. Dom Henrique Muller, OFM, primeiro bispo, no decorrer do tempo enviava os seminaristas para União da Vitória, PR, pois não concordava com a linha teológica do ITESC. Diocese de Tubarão: Em meados de abril de 1989, saiu do Seminário o primeiro grupo, que se estabeleceu em uma casa no bairro Pantanal; em seguida, outro grupo estabeleceu-se no Ribeirão da Ilha; um terceiro grupo, num apartamento, na Trindade. Durante as férias de julho de 1989 foram iniciados os trabalhos de construção do que viria a ser o primeiro Seminário Teológico da Diocese de Tubarão, instalado modestamente na Serrinha. Em 1998 foi inaugurado o “Seminário Teológico de Tubarão – SETT” em terreno da Fundação e situado atrás do ITESC. 164 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 José Artulino Besen Diocese de Criciúma: Criada em 1998, seus estudantes residiam junto com os seminaristas da Diocese de Tubarão. O “Seminário Teológico Bom Pastor” foi inaugurado em agosto de 2003. Diocese de Joinville: Em 1988, os estudantes foram morar numa casa no Morro do Horácio e, em seguida, na residência do Pe. Vilmar Adelino Vicente, no bairro Santa Mônica. Em 2001 foi inaugurado o “Seminário Teológico Nossa Senhora de Guadalupe”, nos altos do Pantanal. Diocese de Rio do Sul: Em 1989, os seminaristas ocuparam residência na Rua São Marcos, no bairro Carvoeira. A partir do ano 2000, têm o Seminário Teológico na Trindade. Diocese de Blumenau: Criada em 2000, seus seminaristas residiam com os de Joinville. Em 2009, foi inaugurado no bairro Santa Mônica o “Seminário Diocesano de Teologia da Mãe de Jesus”. Inicialmente vista com suspeita, a história dos seminários teológicos diocesanos revelou-se positiva para a vida do ITESC. Outro ponto: a idéia inicial era posicionar os seminários em locais pobres, nas periferias de Florianópolis. Posteriormente foi constatada e assumida a melhor localização nas proximidades do ITESC. O Seminário Filosófico Catarinense No dia 26 de agosto de 2012 o Seminário Filosófico de Santa Catarina – SEFISC festejou os 30 anos de criação jurídica. Mas, sua história concreta tem início antes, e não se confunde com a fundação oficial. Desde a criação do ITESC, em 1973, Dom Afonso Niehues, arcebispo de Florianópolis, falava aos bispos catarinenses da oportunidade de se encontrar um caminho colegial também para a Filosofia, pois a Santa Sé recomendava estudos filosóficos. O caminho colegial já estava acontecendo desde 1969, quando as dioceses catarinenses deixaram de enviar para Curitiba (PAULINUM) os seminaristas que concluíram o 2º Grau. Optou-se, então, por cada Diocese deixá-los em seu território, cursando uma faculdade de Ciências humanas, na falta de Filosofia. A arquidiocese de Florianópolis, concretamente, deixou-os residindo em Azambuja. Os Padres dehonianos, de boa vontade os matricularam em seu Curso filosófico, ainda no velho Convento. Isso em 1970. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 165 ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012 Com o início do ITESC, pouco a pouco se percebeu a carência de formação filosófica naqueles seminaristas que estudavam em faculdades públicas. Era questão de enfrentar o desafio de um Filosofado catarinense. Ao mesmo tempo, Pe. Orlando Maria Murphy, SCJ, de saudosa memória, tinha criado em Brusque um curso de extensão da Fundação Universidade Regional de Blumenau-FURB. Assim, na parte da manhã os seminaristas estudavam Filosofia no Convento e, à noite, cursavam disciplinas complementares na FURB-Brusque. Pe. Orlando, grande dinamizador dos estudos em Brusque, e que foi Reitor da FURB, em 1973 fundou a FEBE, Fundação Educacional de Brusque, hoje UNIFEBE. Com isso, resolvia-se o problema de os seminaristas não terem um curso reconhecido. Em 1978 Dom Afonso retornou ao assunto com os bispos catarinenses. Passo concreto, Dom Tito Buss, bispo de Rio do Sul, pediu que a arquidiocese acolhesse seus seminaristas em Azambuja. E assim, em 1979 chegaram 5 seminaristas riosulenses para o Seminário de Azambuja. Assistente da comunidade de Filosofia era o Pe. José Artulino Besen, que também lecionava na FEBE. Essa vinda estava condicionada à construção de um prédio, na cidade, para a residência dos filósofos. Pe. Orlando se entusiasmou, deu início à construção desse prédio em 1979 mesmo, onde hoje é a sede da Faculdade São Luís. Mas, não foi possível concluí-lo. Os bispos – com exceção de Tubarão – já contavam com essa solução e, agora, o que fazer com os seminaristas em 1980? Dom Afonso promoveu a adaptação do dormitório dos menores no Seminário de Azambuja, que foi dividido, recebendo sala de reuniões e 7 quartos de bom tamanho, e ainda havia vagas no terceiro andar.Assim, em 1980 chegaram a Azambuja mais estudantes: 7 de Chapecó, 5 de Lages, 3 de Joinville, 8 de Rio do Sul, 3 de Caçador. No total, eram 36 estudantes de Filosofia, tendo como assistente o Pe. José Artulino Besen. Não foi nada fácil trabalhar com seminaristas de mentalidades e formação bastante diferenciada, não havia estatuto formativo, enfim, tudo foi feito com boa vontade. Nesse mesmo ano de 1980, Dom Afonso, Pe. Vito Schlikmann (reitor de Azambuja) e Pe. José Artulino Besen procuraram terrenos em Brusque, e terrenos que facilitassem a locomoção para a FEBE. Finalmente foi encontrado um que pareceu o melhor, em Santa Teresinha, de propriedade de Walmor Vecchi. A construção dos blocos teve início sob orientação de Dom Gregório Warmeling e supervisão de Pe. Agostinho 166 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 José Artulino Besen Staehelin, pároco em São João, Itajaí. Pe. Orlando, percebendo que a construção não iria vingar tão cedo, em 1981 recebeu numa ala do antigo Colégio Santo Antônio os seminaristas de Lages e Joinville, que deixaram Azambuja por falta de espaço. Ele mesmo se encarregou da formação, auxiliado pelo Pe. Pedro Canísio Rauber, reitor do Convento SCJ. A construção do Seminário andou rápido, para alegria dos senhores bispos. E, em 1982, a casa foi inaugurada com a chegada de novos seminaristas e os que estavam no antigo Colégio Santo Antônio e em Azambuja. O primeiro reitor foi o Pe. Alcido Kunzler, da diocese de Chapecó, heróico batalhador. Dom Tito pediu que seus seminaristas continuassem em Azambuja, o que aconteceu até 1983. Posteriormente, os padres dehonianos criaram seu próprio filosofado reconhecido pelo MEC, a Faculdade São Luiz, onde foram matriculados os seminaristas residentes no SEFISC. A Faculdade São Luiz, iniciada no ano 2000, foi autorizada pelo MEC em 2004 e credenciada em 2005. Os seminaristas diocesanos deixaram a FEBE e passaram a freqüentar essa Faculdade, que oferece estudos filosóficos completos. ITESC – Faculdade reconhecida Desejo do episcopado catarinense, e dos padres e seminaristas, era que os estudos teológicos ou tivessem reconhecimento oficial ou oferecessem um título aos formados. Desde o início havia essa preocupação. Lembro que em 1959, na criação da UFSC, Dom Joaquim Domingues de Oliveira endereçara consulta ao Reitor João Ferreira Lima a respeito de a Universidade Federal abrigar o curso de Teologia. A resposta foi negativa pois, no Brasil, uma entidade pública não pode subvencionar determinada religião ou Igreja, devido à separação Igreja-Estado. Pouco mais de duas semanas após a aprovação do ITESC, na reunião de 19 de dezembro de 1972, compareceu o Prof. Nereu do Vale Pereira, que aceitou a incumbência de estudar o regimento e a oficialização do Instituto. Ele entraria com o processo no Conselho Estadual e também no Conselho Federal de Educação, para verificar a possibilidade do reconhecimento. Enquanto isso, Pe. Francisco de Sales Bianchini, Professor na UFSC, ficou encarregado de conseguir da Universidade uma sala de aula para o nascente curso o que, felizmente, se conseguiu. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 167 ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012 Em 5 de maio de 1973, Pe. Paulo Bratti, Diretor, deu notícia da audiência que Dom Afonso Niehues e ele tiveram com o Reitor da UFSC, visando a “agregação do ITESC” à Universidade. Nesse sentido, foi entregue ao Reitor “um processo com mais de trinta páginas”... Na reunião seguinte do Colegiado, realizada em 26 de junho, o próprio Arcebispo, Dom Afonso, comunicou que o pedido de “agregação” à UFSC fora indeferido pela Comissão Consultiva da Universidade. Em vista disso, haviam sido tomadas providências para novo pedido, em forma de convênio com a UFSC. No ano seguinte, Pe. Francisco de Sales Bianchini, professor e Chefe de Departamento na UFSC e Relações Públicas do Instituto com a UFSC, comentou que o “convênio” com a Universidade estava em andamento, pois as salas eram cedidas sem a formalização de um documento que garantisse a cessão. As aulas do ITESC, ministradas no ano anterior numa sala do Campus pela manhã, passaram a ser ministradas à tarde, por conta do espaço disponível. O Convênio ITESC-UFSC foi assinado em 23 de dezembro de 1974 e vigorou até 1994. Comentou-se que as vantagens eram poucas, comparadas com as que se previam para os primeiros projetos, sucessivamente reelaborados (Cursos de extensão, intercâmbio, pastoral). Entretanto, é já alguma coisa, e o ITESC recebia assim um primeiro reconhecimento oficial, embora incipiente. A presença dos itesquianos no Campus da UFSC representava mais um sonho de presença ativa do que a realidade de simples presença física. Os estudantes universitários se unem e reúnem por áreas de interesse, o mesmo acontecendo com os estudantes de teologia. Concretamente, no início da década de 1980 houve uma presença mais ativa do Diretório Acadêmico-DAT junto à UNE e à UDCE, patrocinando causas de direitos humanos e de liberdade. Era presidente do DAT Serenito Moretti, da diocese do Rio do Sul. Reconhecimento dos estudos Quanto ao reconhecimento junto a uma Universidade Pontifícia, em 1976 Pe. Afonso Birk, jesuíta e professor no ITESC, ficou encarregado de fazer as devidas sondagens. Pe. Birk tinha sido o primeiro e último capelão da UFSC e fora excluído no início dos anos de chumbo da ditadura militar, em 1968. Convém lembrar a presença amiga dos padres jesuítas tanto como professores ordinários como para ministrar 168 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 José Artulino Besen cursos intensivos. Aqui podemos citar o Pe. João E. Martins Terra, Pe. Francisco Taborda e o Pe. Luís Stadelman. Foi essa presença, com a intermediação do Colégio Catarinense, que, na reunião de 30 de abril de 1976, levou a se falar no “diploma” a ser conferido aos alunos que concluíssem o curso com todos os requisitos (tesina e exame “de universa”), e decidiu-se conferir o título de Bacharel em Teologia com a possível agregação à Faculdade dos Jesuítas de São Leopoldo, RS, ou mesmo à da PUC do Rio. Aliás, Prof. Celestino Sachet, consultado, informou que, segundo informação do Pe. Vasconcelos, “ainda não há clima, no Conselho Federal de Educação, para o reconhecimento oficial do curso de Teologia”. Mas que, aqui, está surgindo a possibilidade de a UFSC organizar o curso de pós-graduação em Filosofia com a opção da Teologia, possibilidade a ser verificada pelo ITESC. Isso foi muito sonhado e com muita seriedade: um curso de Teologia e de Ciências da Religião. Foram feitas gestões junto a UFSC e a FURB, mas sem sucesso. Na reunião dos professores, no dia 21 de fevereiro de 1978, Pe. Bratti comunicou que fora feito oficialmente o pedido de agregação do ITESC à Faculdade Teológica do Cristo Rei, de São Leopoldo, RS: o documento, assinado no dia 30 de janeiro pelo Sr. Arcebispo Dom Afonso e pelo Diretor da Faculdade, já tinha sido encaminhado a Roma, para a sua esperada aprovação. Em 5 de maio de 1978, a 27ª reunião do Conselho Departamental começou com a notícia de que “a direção da Faculdade de Teologia dos Jesuítas, de São Leopoldo, concordava com a nossa afiliação a eles. Para isso, os professores deverão entregar logo a documentação referente ao seu currículo acadêmico e aos programas dos seus cursos”. Em 1981, a Faculdade de São Leopoldo foi transferida para Belo Horizonte, onde se estabeleceu o novo Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, antes projetado para Brasília. É a essa Faculdade Teológica, dos jesuítas, que o ITESC se afiliou. A cada final de ano acadêmico, um professor da Companhia de Jesus vem ao ITESC para participar da banca examinadora dos estudantes que terminaram os estudos. Nos primeiros anos, os alunos não demonstravam muito interesse em obter o Bacharelado. Com o tempo, porém, viu-se o quanto valia esse título, especialmente nas Universidades européias, pois era (e é) conferido por uma Faculdade da Companhia de Jesus. Atualmente os bispos catarinenses exigem o título para a Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 169 ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012 admissão às Ordens sacras. Deve-se aqui salientar a boa fama que o ITESC conserva junto a Belo Horizonte, fruto da seriedade de seus professores e alunos e de seu currículo. A Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC Desde 1975, o ITESC se fez promotor da iniciação bíblicoteológica para os leigos, oferecendo-lhes cursos noturnos, geralmente no início da semana. Ao mesmo tempo, estabeleceu convênio com Movimentos populares validando e acompanhando cursos pastorais por eles oferecidos. Permaneceu, porém, o projeto de uma Faculdade reconhecida pelo Governo, projeto sempre complicado pelo espírito laico/ laicista dos Conselhos estaduais e federal de Educação, o que não acontece em países europeus, que mantêm Cursos de Teologia em suas Universidades. Isso mudou, no Brasil, quando o Conselho Nacional de Educação afinal reconheceu a existência dos Cursos de Teologia. Em 1999, esse Conselho emitiu o Parecer 241, que dava a possibilidade de os cursos de teologia serem autorizados e reconhecidos pelo MEC. O curso de Teologia dos Padres dehonianos em Taubaté, SP, foi o primeiro a ser reconhecido, em 2001. Conforme a lei, o credenciamento dá-se após 4 anos de funcionamento e de acompanhamento pelo MEC. O ITESC passou a trabalhar pelo reconhecimento de seu curso, conforme desejo desde sua fundação. Foi sob os períodos de Direção de Pe. Vilmar Adelino Vicente (1999-2002), Pe. Agenor Brighenti (20032005) e Pe. Vitor Galdino Feller (2005- ...) que foi iniciado e continuado o processo de documentação, projetos e preenchimento de exigências para o reconhecimento do Curso de Teologia como Faculdade. Foram muitas as exigências, tanto em nível acadêmico como de instalações. Após muito trabalho, recomeços e perseverança, veio a notícia esperada: A FACULDADE CATÓLICA DA SANTA CATARINAFACASC foi credenciada pelo Ministério da Educação, pela Portaria n. 1.823, de 30 de dezembro de 2012, publicada no Diário Oficial da União em 02 de janeiro de 2012. Assim, já em fevereiro de 2012 foi promovido o processo seletivo (vestibular) e a grade curricular foi adaptada às novas exigências. 170 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 José Artulino Besen Sua mantenedora é a Fundação Dom Jaime de Barros Câmara. Os alunos que passarem pelo processo seletivo e concluírem o curso, receberão o bacharelado em Teologia e, paralelamente, continuarão a receber o bacharelado eclesiástico pelo ITESC. Isso foi muito importante: a insistência de conservar a ligação com os Padres jesuítas e seu Curso em Belo Horizonte porque, desse modo, os estudantes que preenchem os requisitos recebem o duplo Bacharelado: eclesiástico e civil. Talvez se gaste tempo e recursos com burocracia, o que se constitui tradição em solo brasileiro, mas vale a pena. Com essa etapa do reconhecimento da FACASC, o ITESC ingressa numa nova fase, coroando 40 anos de trabalho dos senhores bispos, diretores, professores e alunos. Como antes, são oferecidos cursos de pós-graduação nos meses de férias, agora, porém, com reconhecimento oficial. Creio ser justo, nesta altura da história, citar os nomes dos Diretores do ITESC. Com competência e muita paciência tornaram possível o caminho formativo do clero catarinense e de tantos leigos e leigas que freqüentaram seus cursos: – Pe. Ms. Paulo Bratti (1973-1982) – Pe. Ms. Orlando Brandes (1982-1984) – Pe. Dr. Hélcion Ribeiro (1985-1986) – Pe. Ms. Ney Brasil Pereira (1987) – Prof. Daniel E. Ramada Piendibene (1988-1º. semestre de 1989) – Pe. Dr. Vitor Galdino Feller (2º. semestre de 1989-1993) – Pe. Dr. Manoel João Francisco (1994-1998) – Pe. Dr. Vilmar Adelino Vicente (1999-2002) – Pe. Dr. Agenor Brighenti (2003-2005) – Pe. Dr. Vitor Galdino Feller (2005- ...). À sua firmeza e dedicação o ITESC deve a perseverança aos ideais dos fundadores de 1973. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 171 ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012 Uma visão de conjunto Os 40 anos do ITESC podem ser lidos através de quatro contextos da vida na Igreja e da Igreja no Brasil, que não são excludentes, mas indicam acentuação: 1. O Concílio Vaticano II (1962-1965) – eclesiologia do Povo de Deus, da comunhão. No Brasil – e no Paulinum-ITESC – a preocupação com o pastoreio, os problemas psicológicos das pessoas: o padre deve ser um pastor e um psicólogo. 2. Conferências de Medellín e de Puebla (1968 e 1979) – opção preferencial pelos pobres: a ação do padre deve ser orientada para o “povo”. O padre deve ser um agente de transformação social. 3. João Paulo II e a Nova Evangelização: retorno à vida interna da Igreja, à grande disciplina, à eclesiologia. O padre deve ser um agente do sagrado e da instituição. 4. O êxodo rural, a urbanização (87%) e os movimentos católicos e pentecostais. A preocupação com a perda de fiéis, com dados estatísticos. Há uma modernização da pastoral, mas que não consegue superar o substrato rural: procissões, devoções, novenas, santos. Chama a atenção a origem urbana das vocações, especialmente das classes mais humildes. Nossa época é marcada pela busca do religioso, do sentimento do divino, mas pouco pela busca da fé. Numa época de poucos ideais, como o é a pós-modernidade, o grande mal é a falta de fé, representada por três males na vida da Igreja clerical: estetismo invasivo (confunde-se celebração litúrgica com cerimônias, paramentações, clericalização dos ministérios leigos), verbalismo (confunde-se o anúncio da Palavra que salva com estrelismo de pregadores popstar cuja espiritualidade é inversamente proporcional ao tamanho dos sermões e cujo sucesso é medido pelas “conversões” e milagres) e moralismo (a comunidade das Bem-aventuranças, como deve ser a Igreja, é substituída pela comunidade dos 10 Mandamentos, da moral reduzida a preceitos de ordem sexual, com casuísticas para demarcar o campo do pecado como se ainda houvesse cristãos interessados nessas recomendações). Contra o espírito ecumênico e do diálogo inter-religioso, percebe-se retorno ao fechamento denominacional, à acentuação de que somente a Igreja católica tem a verdade. 172 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 José Artulino Besen Nossa época é revolucionária, de pouca memória, de rapidez de técnicas, do subjetivismo, mas também da busca da subjetividade, de pessoas em busca de sentido para suas vidas, de uma fé madura, escolhida. É época que oferece aos padres e evangelizadores o grande dom de anunciar a Cruz redentora e a Palavra que dá vida. Como todas as épocas, esta também é de evangelização, nova, como todas. Escreveu o Pe. Adolfo Nicolas Pachón, superior geral dos Jesuítas: “A nova evangelização tem início com a descoberta do que Deus fez no povo. Isso antes de dizer o que eu quero ou o que eu penso que Deus quer dizer. Não nos esforçamos bastante para descobrir o que Deus fez no povo e nos povos. Deus está trabalhando antes que nós cheguemos. Já está trabalhando. Isso vale tanto para as missões no Oriente como para o trabalho com o povo. Nossa cultura envelheceu, as nossas igrejas são grandes, as nossas casas religiosas estão vazias, e o aparato burocrático da Igreja aumenta, os nossos ritos e os nossos hábitos são pomposos. O padre Karl Rahner usava de bom grado a imagem das brasas que se escondem sob as cinzas: “Eu vejo na Igreja de hoje tantas cinzas sobre as brasas, que muitas vezes me assola uma sensação de impotência. Como se pode livrar as brasas das cinzas, de modo a revigorar a chama do amor? Em primeiro lugar, devemos procurar essas brasas. Onde estão as pessoas individuais cheias de generosidade como o bom samaritano?”. Perguntaram ao Cardeal Carlo Martini, SJ: Que instrumentos o senhor aconselha contra o cansaço da Igreja? Ele respondeu: Conversão, Palavra, Sacramentos. Reconhecer os próprios erros, restituir a Bíblia ao católicos, oferecer o acesso aos Sacramentos, pois têm poder de cura. Se limitarmos a recepção dos Sacramentos aos que estão “em dia”, estaremos privando os doentes da cura e libertação. A Igreja é mãe e quer a saúde de seus filhos. “Antes da Comunhão, nós rezamos: “Senhor, eu não sou digno...”. Nós sabemos que não somos dignos [...]. O amor é graça. O amor é um dom. A questão sobre se os divorciados podem comungar deve ser invertida. Como a Igreja pode ajudar, com a força dos sacramentos, aqueles que têm situações familiares complexas? Encerrando: o Clero catarinense, hoje, realiza o que Dom Afonso falara há 40 anos: é o futuro tornado presente da Igreja catarinense. Santa Catarina pode se orgulhar de seus padres, de sua qualidade humana e pastoral. O ITESC/FACASC não tem fôrma: nele há lugar para a formação Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 173 ITESC – 40 anos – O Instituto Teológico de Santa Catarina: 1973-2012 de um padre segundo o coração de Jesus, padre líder comunitário, e lugar para um padre de barrete, batina e residindo num mundo que não mais existe. Os professores e orientadores sempre deixaram campo à liberdade, ao pluralismo. Há 40 anos Dom Afonso Niehues e os bispos de Santa Catarina falavam do ITESC como futuro da Igreja catarinense. Agora podemos dizer que o futuro sempre permanece, mas já fundamentado num rico passado e presente. Endereço do Autor: ITESC, cx postal 5041 88040-970 Florianópolis, SC Email: [email protected] Fontes: Arquivo Histórico Eclesiástico de Santa Catarina, Cúria Metropolitana, Florianópolis. Livro de Atas do ITESC, compilado pelo Pe. Ney Brasil Pereira para o período de 1973-2003. Besen, José Artulino: Padre Paulo Bratti – Presbítero da Igreja. Florianópolis, Revista ENCONTROS TEOLÓGICOS, n. 12 (1992/1), pp. 29-41. Arquivo pessoal do autor. 174 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Crônicas O Cardeal Carlo Maria Martini (In memoriam)1 Maurice Gilbert* À tarde de sexta feira, 31 de agosto de 2012, pelas 15.15, na enfermaria do Aloysianum de Gallarate, perto de Milão, o cardeal Martini, que tinha recusado todo tipo de refinamento terapêutico, retornou à Casa do Pai. Uma voz doce e forte extinguiu-se na Igreja, e o mundo inteiro, inclusive Israel, tomou consciência desse fato com pesar e um imenso reconhecimento. Quem aqui escreve esteve próximo a ele durante quarenta e cinco anos e viveu a seu lado por dois períodos, de 1967 a 1979, em Roma e, depois, de 2002 a 2008, em Jerusalém, quer dizer nos anos mais férteis do biblista, e nos primeiros anos do arcebispo emérito, durante os quais ele se defendia corajosamente contra a enfermidade, o Parkinson, que finalmente o levou. Trinta e cinco anos na Companhia de Jesus Seu percurso foi linear, no sentido ascensional. Nascido em Turim, em 15 de fevereiro de 1927, ele entrou para a Companhia de Jesus na mesma cidade, em 29 de setembro de 1944. Frequentou o currículo clássico de então, mas não fez a regência como escolástico, passando diretamente da filosofia à teologia. Desses estudos, não guardava muito boa lembrança. Estava-se ainda longe do Vaticano II. Entretanto, ele havia descoberto o pensamento do Pe. Joseph Maréchal, o metafísico de Louvain, graças a um de seus discípulos, André Hayen, cuja tese tratava da Intencionalidade em São Tomás. Quanto à teologia, para sair do ensino esclerosado que recebeu em Chieri, às portas de Turim, ele confessou que depois teve de recomeçar tudo, e o Concílio lhe trouxe o que procurava. * Maurice GILBERT é jesuíta, professor emérito do Pontifício Instituto Bíblico, especialista dos livros sapienciais, atualmente reside no Luxemburgo. 1 Crônica, publicada na RIVISTA BIBLICA da Associação Bíblica Italiana, ano 40 (2012), n. 3, pp. 435-441, traduzida do francês por Ney Brasil PEREIRA. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 175 Crônicas Ordenado presbítero em 13 de julho de 1952, com vinte e cinco anos, coisa rara entre os jesuítas, completou a formação normal que a Companhia oferece a seus membros. Destinado a ensinar a Escritura, de 1954 a 1956 frequentou o Pontifício Instituto Bíblico de Roma, conseguindo a Licença em ciências bíblicas. Esses foram os anos em que o Pe. Stanislas Lyonnet publicava trabalhos renovadores na exegese paulina. Martini revelou-se um aluno extraordinariamente brilhante, e foi com o Pe. Lyonnet que redigiu sua monografia sobre a 2ª carta aos coríntios. Mas não prosseguiu no Instituto Bíblico. Pensando que, se ele fizesse um doutorado no Instituto, não voltaria mais para Turim, seu Provincial enviou-o a fazer um doutorado em teologia na Gregoriana. Esse doutorado, terminado em 1959, estudava O problema histórico da Ressurreição nos estudos recentes (AnGr 104). Durante o verão de 1959, participou da 36ª caravana organizada pelo Instituto Bíblico na Terra Santa. Foi então que correu um grave perigo no poço de El Gib, a antiga Gabaon: esse episódio foi comentado em seu livro Verso Gerusalemme (Milão 2002). De retorno a Turim, fez parte do corpo dirigente do teologado dos jesuítas em Chieri; foi Superior dos escolásticos, bibliotecário, e professor de teologia fundamental. No mesmo ano de 1959, Pe. Ernesto Vogt2 sucedeu ao Pe. Augustin Bea, futuro cardeal, como Reitor do Instituto Bíblico. Ele me comentou que achava Martini mal aproveitado em Chieri. E que fora pessoalmente falar com o Padre Geral John Janssens, a fim de pedir-lhe que fizesse Martini voltar ao Bíblico, o que de fato aconteceu em agosto de 1962. Durante o ano acadêmico de 1962-63, Martini completou, sempre brilhantemente, o programa do curso preparatório ao doutorado. E passou o ano acadêmico seguinte, 1963-64, em Münster, na escola de Kurt Aland. Foi lá que o especialista nos Atos dos Apóstolos, E.Haenschen, lhe fez notar o aparecimento do papiro Bodmer XIV, contendo uma parte importante dos evangelhos de Lucas e de João. Haenschen fez-lhe notar a semelhança entre o texto desse papiro e o do Códice Vaticano: assunto para uma tese de crítica textual, imediatamente assumido por Martini, primeiro na forma de dissertação. Logo em seguida, pôs-se a trabalhar 2 176 Jesuíta alemão, que nas décadas de 40 e 50, com muito sucesso, lecionou Exegese Bíblica no Seminário Maior de São Leopoldo, RS. Ainda no Brasil, publicou a sua preciosa tradução dos SALMOS, com comentário, terminada em 1947 e publicada pela LEB (Liga de Estudos Bíblicos) em 1951, em São Paulo, na col. “Arma Lucis”, Publicações da PUCSP. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Crônicas na redação da sua tese doutoral, que defendeu no Bíblico em 12 de maio de 1965, com o título: Il problema della recensionalità del codice B alla luce del papiro Bodmer XIV (AnBib 26, Roma, 1966). Nessa tese ele demonstrou que o Códice Vaticano apresenta um texto dos evangelhos já fixado cerca do ano 200, mais próximo das origens cristãs do que se pensava. Nesse meio tempo, ele havia preparado uma nova edição do Novum Testamentum Graece et Latine do Pe. Augustin Merk. Em 1968, publicou as cartas de Pedro tais como estão no papiro Bodmer VIII, que a Biblioteca Vaticana acabava de receber. Entende-se então por que, no mesmo ano de 1968, Martini passou a integrar a comissão ecumênica que editava The Greek New Testament, sob a coordenação de Kurt Aland. Sua vida ia tomar, entretanto, outra direção. Em 10 de dezembro de 1967, foi eleito decano da faculdade bíblica do Instituto. Por ocasião da ebulição estudantil de maio de 68, ele tomou a iniciativa de convidar os estudantes do Instituto a participarem da reforma de seus estatutos; no mesmo mês, Paulo VI acabava de publicar suas Normae quaedam, com diretivas para tal reforma. Ninguém se espantou então quando, em 7 de outubro de 1969, ele foi nomeado reitor do Instituto. E nesse cargo permaneceu até 26 de julho de 1978. Durante seu longo reitorado, Martini mostrou do que era capaz: discernimento e criatividade, doçura e firmeza, audácia e atenção fraterna, abertura ao mundo e uma arte consumada de governo. Renovou os edifícios do Instituto em Roma e também em Jerusalém, pois era o responsável por ambas as sedes. Ele é quem teve a ideia de pedir à Hebrew University of Jerusalem que oferecesse um programa especial aos estudantes do Instituto, programa que ainda continua, com satisfação de ambas as partes: foi esse o primeiro contacto direto entre as duas instituições acadêmicas, dependendo, uma, do Estado de Israel e a outra, da Santa Sé. Contactos ecumênicos no Oriente como no Ocidente; comunicações em congressos internacionais, propagando um vivo interesse pelo uso da Escritura na vida da Igreja, segundo o que recomendava o capítulo VI da constituição Dei Verbum do Vaticano II; ao mesmo tempo, numerosas sessões de exercícios espirituais bíblicos sobre os evangelhos, publicando posteriormente seu conteúdo. Quanto a comentários exegéticos, escreveu só o dos Atos dos Apóstolos, publicado em 1970. Os últimos meses do seu reitorado o deixaram esgotado, à beira da depressão, segundo o que me confiou em abril de 1978, quando o Padre Geral Pedro Arrupe propôs para ele o reitorado da Universidade Gregoriana, o que de fato sucedeu em setembro daquele ano; foi, aliás, Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 177 Crônicas uma das últimas decisões de Paulo VI. Na Gregoriana, Martini desfrutava de grande autoridade moral, a tal ponto que em certo momento foi incluído numa lista de vítimas potenciais das Brigadas Vermelhas. Entre suas realizações nesse novo posto, é preciso destacar a criação do Conselho dos decanos das faculdades, a fim de fazer o reitor sair de um certo isolamento que ele havia sentido no Bíblico. Tudo balançou em dezembro de 1979. No começo do mês, voltando com ele de uma reunião na Cúria Generalícia dos jesuítas, disse-lhe que, a meu ver, a sua carreira científica estava chegando ao fim, e que seria bom editar uma boa coletânea dos seus melhores artigos. Curiosamente, ele concordou na hora. É a origem do volume intitulado La Parola di Dio alle origini della Chiesa (AnBib 93, Roma, 1980), título escolhido por ele. Fiz a apresentação desse volume em La Civiltà Cattolica 132 (1981), 462-469. No dia 15 de dezembro, João Paulo II veio à Gregoriana e ao Bíblico. Na Gregoriana, a saudação ao Papa foi proferida pelo reitor Martini, inspirando-se no v. 26 do Salmo 118: “Bendito o que vem em nome do Senhor”. Normalmente, a saudação deveria ser feita pelo Padre Geral, mas o Vaticano tinha requerido essa inversão protocolar; havia já alguma coisa no ar, e o abraço caloroso que o Papa deu ao reitor no momento da saída foi um presságio. Alguns dias mais tarde, Martini soube que estava sendo pensado para a sé arquiepiscopal de Milão. O Cardeal Wojtyla o conhecia desde 1972. Martini foi consultar seu padre espiritual, Pe. Michel Ledrus, e o Padre Geral; ambos acharam a proposta excelente. Entretanto, Martini, talvez um pouco inseguro, obteve uma audiência do Papa, a quem abriu o coração lealmente, argumentando que, entre outras coisas, como professo da Companhia de Jesus, havia feito voto, em 2 de fevereiro de 1962, de jamais aceitar uma prelatura, a não ser que a obediência o obrigasse. No final da conversa, João Paulo II confirmou a nomeação e Martini aceitou. Em 29 de dezembro, a notícia tornou-se oficial e Martini deixou logo o seu cargo de reitor. Alguns dias mais tarde, me segredou: “Você sabe, até que me agrada ser bispo”. O Papa o ordenou na basílica de São Pedro, em 6 de janeiro de 1980. Um detalhe que ainda guardo desse dia: para a cerimônia, ele engraxou bem seus sapatos, mas, quando se prostrou para a Ladainha dos Santos, sua irmã, que não estava longe, observou que suas meias estavam furadas... Martini foi sempre sóbrio e pobre. Ele o demonstrou a seguir, em Milão. Ainda uma lembrança. Alguns dias após sua ordenação episcopal, voltávamos de L’Aquila, onde o bispo local lhe havia oferecido um 178 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Crônicas banquete como forma de agradecimento pelo apoio que ele dera ao Studio Biblico Teologico Aquilano. Paramos no caminho para abastecer, e enquanto o motorista o fazia, Martini me disse que estava pensando em reunir os jovens de Milão no Duomo (a Catedral), para ajudá-los a descobrir a Escritura e lhes mostrar o caminho da oração. De fato, chegando a Milão em 15 de fevereiro, ele começou, um mês mais tarde, a realizar seu projeto. Como se sabe, foi um enorme sucesso, a ponto de atrair junto ao arcebispo cinco ou seis mil jovens, cada mês, durante vários anos. Vinte e dois anos e meio na Sé de Milão O biblista que João Paulo II havia escolhido pessoalmente para a Sé de Milão estava preparado, e ia demonstrá-lo rapidamente. Não era só um especialista em crítica textual do Novo Testamento, mas também – suas intervenções escritas e orais o tinham revelado – um homem de Deus que se situava na linha do capítulo VI da Dei Verbum: tal era mesmo seu projeto pastoral fundamental. Se tinha dado provas da sua capacidade de governar, Martini era também um homem de diálogo, não só com os que ele devia dirigir, mas igualmente nos meios ecumênicos, como com os representantes do judaísmo. Poliglota, podia dialogar com cada um, e a sua palavra, sempre compreensível e de rara segurança, tocava os jovens, os seminaristas romanos, os pobres aos quais havia servido na comunidade de Santo Egídio. Era também um mestre espiritual: já havia dado os exercícios espirituais a comunidades religiosas, a partir de cada um dos evangelhos, que ele situava em um itinerário espiritual preciso: “A primeira etapa é a do catecumenato, que se pode pôr em relação com o evangelho de Marcos, o evangelho da ‘iniciação catecumenal’. A segunda etapa é a da ‘iluminação’ ou do batismo, em relação com o evangelho de Mateus, o ‘evangelho da Igreja’, porque ele contém tudo o que é necessário para inserir o novo batizado na comunidade. A terceira etapa é a da ‘evangelização’ ou do testemunho, em relação com o evangelho de Lucas e os Atos dos Apóstolos, nos quais está contido tudo o que contribui para a formação do evangelizador. A quarta etapa é a do ‘sacerdócio’ ou do ‘cristianismo adulto’, em relação com o evangelho de João, porque ele contém o que pode educar para a maturidade da fé, para o ‘sacerdócio’ cristão” (Bibbia e vocazione, Brescia, 1983, cap. 3). Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 179 Crônicas Sensível, Martini punha-se à escuta do outro com simplicidade. Com uma calma imperturbável, ao menos aparentemente, ele compreendia as situações difíceis e podia restabelecer a paz ou reconduzir cada um ao bom caminho. Tinha escolhido como lema episcopal uma frase de São Gregório Magno: pro veritate adversa diligere, “pela verdade, amar a adversidade”. Diante das dificuldades e mesmo das oposições, aprendeu a aceitá-las e mesmo a amá-las, mesmo atendo-se ao que, nas suas escolhas, ele considerava ser verdadeiro. Firmeza no essencial, suportando pacientemente o que pudesse contrariá-lo. Audacioso, a ponto de provocar, escreveu logo uma carta pastoral a seus diocesanos, sobre A dimensão contemplativa da existência. Ele sabia que falava diretamente a esses milaneses tão ufanos de sua característica industrial, e foi bem acolhido. Homem livre, e entretanto disposto a servir, disse-nos um dia, no Instituto Bíblico, pouco depois de sua posse em Milão: “Para um jesuíta, a responsabilidade episcopal não deveria prolongar-se além de uma quinzena de anos, o tempo de dar o melhor de si”. Ficamos surpresos, mas, coerente consigo mesmo, ele apresentou sua demissão a João Paulo II em 1995. Evidentemente, o Papa não a aceitou. Em apenas três anos de episcopado, durante os quais se empenhou com toda a força da sua juventude, ele havia conquistado a confiança e o respeito dos milaneses, e do Papa. Quando, em 2 de fevereiro de 1983, João Paulo II lhe entregou o barrete cardinalício, a diocese de Milão publicou uma brochura in-quarto de cinquenta páginas, intitulada: Carlo Maria Martini, Cardinale Arcivescovo di Milano, 2 Febbraio 1983. Esse fascículo continha cerca de vinte depoimentos sobre a ação do arcebispo em todos os ambientes de sua enorme diocese e, em cada página, fotografias o mostravam em plena ação. Em seu último livro, Il Vescovo, aparecido em dezembro de 2011, escreveu: “No mundo contemporâneo e pós-moderno, não encontro só conotações negativas. Pelo contrário, parece-me um mundo que obriga a ser sério nas intenções e ações” (p. 90). Confissão importante do que ele vivia diariamente. Nesse mesmo livro, pouco volumoso, tão denso de sua longa experiência e no entanto acessível a todos, há também um capítulo no qual ele explica como o episcopado não consiste antes de tudo em governar, mas em proclamar o Evangelho: “Parece-me que, acima de tudo, se deve apresentar a figura do bispo como um servidor da Palavra de Deus. Durante a ordenação, é colocado sobre a sua cabeça o livro dos Evangelhos. É um belíssimo símbolo: significa que ele deve ter o Evangelho dentro 180 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Crônicas de si mesmo e portanto ser um Evangelho vivo. Ele se lhe submete em todo sentido: sua palavra deve fazer repercutir o Evangelho e cada gesto seu deve ser uma realização do Evangelho. Eis porque é útil que ele se pergunte, acima de tudo, antes de qualquer ação ou pregação: ‘Quid hoc ad Evangelium?’ Isto é: ‘O que estou para fazer ou dizer, que relação tem isso com o anúncio do Evangelho?’” (pp.38-39). Em 22 de maio de 2002, três meses e meio antes de se tornar emérito, Martini encontrou-se com os estudantes do Instituto Bíblico, entretendo-se com eles sobre “a importância da Escritura na vida daquele que crê”. Depois de ter aludido a todo o trabalho de pesquisa sobre os textos bíblicos que ele mesmo havia realizado no Instituto, reafirmou como o capítulo VI da Dei Verbum tinha continuado a inspirar o seu ministério da Palavra em Milão, especialmente o n. 25 do texto conciliar, que resumiu assim: “Todo cristão deve adquirir uma familiaridade orante com a Escritura”. Enquanto bispo, ele o havia experimentado em três campos, que ficam como lembranças indeléveis de sua atividade pastoral: 1. A Escola da Palavra para os jovens. Lembrei acima que esse projeto lhe veio em mente, apenas ordenado bispo. A centenas, milhares de jovens, ele ofereceu uma abordagem da Escritura a partir do texto. Seu método comportava três etapas: a lectio, para compreender verdadeiramente o texto e acolhê-lo naquilo que ele diz realmente. Depois, a meditatio, consistindo em deixar-se penetrar por uma apreensão interior e uma acolhida em profundidade. Enfim, a contemplatio, voltando-se para o Senhor para louvá-lo e suplicar. 2. Os exercícios espirituais. Martini deu tantos, comentando figuras bíblicas maiores, como José, filho de Jacó, posto em paralelo com Inácio de Loyola – retiro dado aos jesuítas da Califórnia – ou os acontecimentos fundadores da vida do Senhor, como a Transfiguração, ou ainda textos com oa 1ª carta de Pedro, que ele havia estudado de modo crítico. Seguia sempre o método de Inácio de Loyola, do arrependimento à oferta de si para seguir o Senhor mais de perto. 3. Mesmo a Cátedra dos não crentes, que reuniu certa de duas mil pessoas em seus últimos anos em Milão, nasceu desta palavra do descrente do Sl 14,1: “Deus não existe”. O bispo adentrava um caminho “inquietante”, no sentido forte da palavra, como repetia: tratava-se de escutar atentamente quais as razões pelas quais os descrentes se diziam tais, para fazê-los depois dialogar com os crentes, ele mesmo apresentando as conclusões. Diálogos graves, sérios, e sobretudo respeitosos de uns e de outros. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 181 Crônicas Sendo útil recordar algumas das atividades do cardeal milanês, eu assinalaria o dia em que as Brigadas Vermelhas lhe entregaram as armas. Lembraria também que, de 1987 a 1993, esse poliglota presidiu o Conselho das Conferências Episcopais Europeias; e, nessa condição, com a Conferência das Igrejas da Europa e a seu pedido, ele participou da organização, em Basileia, do primeiro Encontro Ecumênico Europeu desde o século XVI; o tema era “A justiça e a paz”, partindo do texto do Sl 85,11: “Justiça e Paz se abraçarão”; foi ele quem falou por primeiro e, no fim, formulou as conclusões desse Encontro que reuniu mais de 700 participantes. Enfim, ele estava em Jerusalém no dia 1º de fevereiro de 1994, no encontro de mais de 500 Líderes religiosos numa sociedade secularizada; falou na primeira noite do congresso e traçou o retrato do líder religioso: servo, mais que chefe, sempre confiando em Deus que salva a humanidade, portanto, homem de oração, cheio de esperança e de paz. Era seu próprio retrato. Para saber mais sobre suas atividades e relações pessoais em Milão, pode-se ler algumas coletâneas de testemunhos publicados após sua partida. Penso nos seguintes: Luisa Bove, Carlo Maria Martini. Una voce nella città, Saronno, 2003; Damiano Modena, Carlo Maria Martini. Custode Del Mistero nel cuore della città, Milano, 2005; Marco Vergottini et al., Affinchè la Parola corra. I verbi di Martini, Milano, 2007; Giuliano Vigini (ed.), Carlo Maria Martini. Incontro al Signore risorto, 2 vols., Milano, 2007: excertos das melhores páginas do cardeal, tiradas dos numerosos exercícios espirituais dados por ele. Volta por dez anos para a Companhia Tendo tomado posse, na Sé de Milão, o seu sucessor, o cardeal retirou-se para o Instituto Bíblico de Jerusalém. Ele esperava terminar seus dias na Cidade Santa e aí ser sepultado. No centro de seu brasão episcopal, havia colocado três corações: as três cidades que amava, Roma, Milão, Jerusalém. Chegando aí em setembro de 2002, após alguns anos teve de retornar para a Itália, pois sua enfermidade necessitava de mais cuidados. Em Jerusalém, mergulhou mais intensamente na oração e no silêncio, mesmo atendendo a alguns pedidos de exercícios espirituais. Em 2007, não se sentiu mais em condições para dá-los a um grupo de padres milaneses que ele havia ordenado dez anos antes; pediu-me que o substituísse, o que fiz, um pouco preocupado, sobre o tema de “Jesus Sabedoria” a partir da Bíblia. Ele confessou-me não ter jamais pensado nesse tema. No fim do retiro, ele os recebeu e percebi então como ha- 182 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Crônicas via sido um pai para seus padres, uma experiência, disse-me ele, que a Companhia de Jesus não conhece. Em Jerusalém, dedicou-se ao hebraico moderno, que conseguiu conhecer suficientemente para poder celebrar a Eucaristia também nessa língua. Foi assim que celebrou diante de um grupo de estudantes judeus da Universidade Hebraica, desejosos de conhecer o mistério cristão. Retornou à crítica textual. Em Roma, o Vaticano desejava refazer a edição do papiro Bodmer contendo as duas cartas de Pedro. Martini pensou que seria fácil: acreditava ter-se escrito pouco sobre o assunto depois da primeira edição de 1968. Aceitou que eu investigasse as bibliografias recentes e eu lhe mostrei uma dezena de trabalhos que ele desconhecia e que levou em conta. Em 2003, publicou então sua nova versão das Beati Petri Apostoli Epistolae ex Papyro Bodmeriana VIII Transcriptae. Introductio, Textus et Apparatus. João Paulo II mandou que se oferecesse um exemplar aos cardeais vindos a Roma para celebrar o 25º aniversário de sua eleição ao pontificado, mas esqueceu-se de enviar um ao autor-editor, que finalmente recebeu-o do bibliotecário da Vaticana. Havia outro projeto de critica textual, o de analisar as notas marginais do Códice Vaticano, com a esperança de aí se encontrar alguns indícios da história anterior do manuscrito. Mas a tarefa era grande demais, e ele não a pôde concluir. Excepcionalmente, Martini aceitou o doutorado honoris causa da Universidade de Belém e, depois, da Universidade Hebraica de Jerusalém. Em janeiro de 2008, esta última organizou um colóquio interconfessional sobre a “Intercessão”. O cardeal deu uma conferência pública sobre o assunto: tratou-o com profundidade e, diria, com a autoridade de quem sabe do que está falando. Foi impressionante. Durante os cinco anos e meio que passou em Jerusalém, ele precisava ir a Roma a cada quatro meses. Tinha, portanto, um alojamento reservado com os jesuítas de Galloro, nos Castelli romani. Quando teve de deixar definitivamente Jerusalém, por razões de saúde, partiu sobre a ponta dos pés. Foi em 27 de março de 2008. Cheguei tarde demais para saudá-lo: muito emocionado, provavelmente decidira evitar as despedidas. Tendo retornado a Galloro, teve de deslocar-se logo para a comunidade dos jesuítas idosos, em Gallarate, perto de Milão. Apesar da perspectiva de aí terminar sua vida, ele estava satisfeito por estar novamente na sua diocese e, ao mesmo tempo, numa casa da Companhia. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 183 Crônicas CRÔNICAS DA FACASC E DO ITESC Aula Inaugural e início das aulas A Faculdade Católica de Santa Catarina (FACASC) e o ITESC (Instituto teológico de Santa Catarina) retomaram suas atividades acadêmicas no dia 14 de fevereiro. Na parte da manhã houve a aula inaugural sobre “Juventude e Igreja em Santa Catarina”, desenvolvida pela Coordenação da Pastoral da Juventude de Santa Catarina, nas pessoas de Uilian Dalpiaz e Rodrigo Szymanski. Neste ano que a Igreja do Brasil dedica à juventude e no qual acontece, em julho, no Rio de Janeiro, a Jornada Mundial da Juventude, a FACASC quer estar antenada com este grande sinal dos tempos que é a presença, a vocação e a missão dos jovens na Igreja e no mundo. Ainda na parte da manhã houve o coquetel de acolhida dos 27 estudantes do 1º. Ano do curso de bacharelado em teologia, com todos os estudantes, funcionários, formadores e professores e, por fim, a celebração eucarística de abertura do ano acadêmico, o 41º do ITESC e 2º da FACASC. A parte da tarde foi dedicada à recepção dos estudantes do 1º. Ano, aos quais foram apresentados dados importantes da vida da FACASC e do ITESC: história, objetivos, dados do regimento, infraestrutura, direção e administração, núcleos e Diretório Acadêmico. “Ao acolher a toda a comunidade acadêmica da FACASC e do ITESC, a direção deseja que todos – professores, alunos e funcionários –, confiantes no Deus de nosso passado, de nosso presente e de nosso futuro, tenhamos um abençoado e proveitoso Ano Acadêmico de 2013” diz Pe. Vitor Feller, diretor da Instituição. Pós-graduação em juventude, religião e cidadania Teve início no dia 1º de fevereiro o curso de pós-graduação (especialização lato sensu) em “Juventude, religião e cidadania” oferecido pela FACASC. Participam do curso um total de 38 alunos, a maioria jovens, provenientes de todo o Estado catarinense e de outras partes do país. Na primeira etapa os participantes trataram sobre Metodologia da Pesquisa, Teologia da Libertação, Aspectos históricos, socioculturais e teológicos da juventude, e Juventude e diálogo inter-religioso: matrizes culturais e religiosas do Brasil. Os estudantes retornarão, na segunda etapa, durante a primeira quinzena de julho para tratar dos seguintes temas: Psicopedagogia e metodologia do trabalho com a juventude, Direitos humanos e direitos da juventude, Sociologia da Religião e da Juventude, Organizações e Movimentos Juvenis. A coordenação do curso está a cargo 184 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Crônicas de Pe. Gilberto Tomasi, Doutor e Mestre em Ciências da Religião pela PUC, São Paulo. O curso foi concebido, segundo ele, com o objetivo de “capacitar jovens para o exercício da cidadania, para a proposição e defesa de políticas públicas em favor da juventude, para a urgência de reunir jovens em grupos e em redes de comunhão e de comunicação, na busca de solução para seus problemas cotidianos e estruturais”. Formação continuada dos professores da FACASC Nos dias 20, 21 e 22 de fevereiro de 2013 os professores da FACASC (Faculdade Católica de Santa Catarina) se reuniram para a formação continuada do Corpo Docente. Esta é a primeira etapa formativa do ano. No primeiro dia, 20/02, o tema centrou-se no sentido da CPA (Comissão Própria de Avaliação): relação com o SINAES e INEP, aspectos avaliados pela CPA, relação da CPA com os gestores da FACASC etc. No segundo dia, 21/02, os professores receberam treinamento para a utilização do sistema UNIMESTRE – um sistema integrado de gestão educacional, que possibilita acesso ao Plano de Ensino, ao Diário de Classe (com inserção de conteúdos, notas e frequências), à Avaliação Institucional e à interação entre professores e alunos como também entre os diversos organismos da Instituição. O terceiro dia, 22/02, foi dedicado às políticas de ensino, pesquisa e extensão. A formação permanente e sistemática dos professores é uma prática da FACASC que dá continuidade à prática que já havia sido consagrada pelo ITESC. A próxima etapa da formação continuada do Corpo Docente deverá acontecer nos dias 14 a 16 de agosto. Cursos de extensão na FACASC A Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC – tem a função de oferecer formação teológica nos diversos níveis. Dando continuidade aos Cursos de Extensão oferecidos pelo ITESC desde sua fundação, a FACASC assumiu, desde 2012, a formação de lideranças nas áreas: teológica, bíblica, litúrgica, catequética e de canto e música litúrgica. Quer desta forma colaborar com uma resposta efetiva aos apelos e indicativos dos diversos documentos da Igreja, que insistem na formação adequada e contínua dos fiéis leigos e leigas, que muito contribuem na evangelização das comunidades eclesiais. O Documento de Aparecida pede que todas as instâncias da Igreja favoreçam a seus membros um itinerário de formação. Em consonância com a teologia do Concílio Vaticano II e sua eclesiologia da comunhão, a Igreja do terceiro milênio Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 185 Crônicas deverá ter, cada vez mais, um rosto marcadamente laical, onde leigos e leigas desempenham suas funções, fazendo transparecer o rosto do Povo de Deus, todo ele sacerdotal, régio e profético, e também carismático e ministerial. Na fidelidade à sua missão, contando com a competência de seus professores e outros colaboradores convidados, a FACASC oferece, às segundas-feiras à noite, diversas oportunidades para que os membros das paróquias e comunidades, dos movimentos e pastorais, dos organismos e serviços eclesiais da Grande Florianópolis, mantenham-se atualizados em sua formação teológico-bíblico-pastoral. Neste ano de 2013, esses cursos tiveram início na noite do dia 25 de fevereiro, com uma exposição geral sobre o tema da Campanha da Fraternidade, desenvolvido pelo Pe. Josemar da Silva, responsável pelo Setor da Juventude da Arquidiocese de Florianópolis. Além desses cursos oferecidos em sua sede, a FACASC se dispõe a certificar cursos de formação de lideranças dados por dioceses e paróquias, pastorais e movimentos da Igreja catarinense. Para tanto, é preciso que esses cursos se adequem ao regulamento dos cursos de extensão da FACASC. Visita dos bispos catarinenses A FACASC e o ITESC (Instituto Teológico de Santa Catarina) receberam, na manhã do dia 27 de fevereiro, a visita dos bispos catarinenses, primeiros responsáveis por ambas das instituições. Após a celebração eucarística, os bispos reuniram-se com os estudantes. Na ocasião, os estudantes levantaram questionamento sobre a atual matriz curricular da FACASC, que contempla carga horária muito reduzida na disciplina dos Evangelhos Sinóticos em relação à anterior matriz curricular do ITESC. Na segunda parte da manhã, os bispos encontraram-se com os professores. Os bispos foram informados, entre outros temas, sobre a implantação do programa de bolsas de estudo, a política de pesquisa e de iniciação científica, a criação da Associação Paulo Bratti e sobre a aquisição do sistema UNIMESTRE de gestão acadêmica. O diretor Pe. Vitor Galdino Feller comunicou aos bispos o número de estudantes matriculados e pediu apoio no sentido de incentivarem suas dioceses e paróquias no envio de lideranças para fazer um dos cursos oferecidos pela FACASC, seja de graduação, pós-graduação ou extensão. Na sequência, a direção também verbalizou as carências da Instituição destacando a necessidade de mais professores e de uma maior valorização dos mesmos. No sentido das carências o diretor também assuntou sobre as necessidades de reformas no prédio. A questão levantada anteriormente pelos estudantes a respeito 186 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Crônicas da carga horária dos Evangelhos Sinóticos foi trazida pelos bispos na reunião com os professores. O professor Celso Loraschi, coordenador do curso de teologia, disse que a observação é procedente e, completando, o diretor lembrou que, ainda este ano, terá início a revisão da matriz curricular do curso de teologia da FACASC. Pe. Ney termina sua participação na Pontifícia Comissão Bíblica No dia 12-04, com a audiência concedida pelo Santo Padre Francisco aos 20 membros da Pontifícia Comissão Bíblica, encerrouse a participação do Pe. Ney Brasil Pereira, professor do ITESC, nesse organismo da Santa Sé, para o qual ele foi nomeado em 2001, pelo papa João Paulo II. A nomeação vale por um período de 5 anos, durante o qual a Comissão se reúne uma vez por ano e debate um tema, proposto pela Congregação da Doutrina da Fé. A nomeação pode ser confirmada para um segundo período de 5 anos, o que aconteceu com Pe. Ney, confirmado na Comissão por Bento XVI, em 2008. O tema do primeiro turno, 2002-2007, foi “Bíblia e Moral”, que resultou num documento com esse título, publicado em 2008 (aqui no Brasil, por Ed. Paulinas, 2009, em tradução do original italiano pelo Pe. Ney). Para este segundo turno (2009-2013), o tema foi “Inspiração e Verdade da Bíblia”, tema pedido pelo Sínodo dos Bispos sobre a Palavra de Deus, em 2008, e mencionado na Exortação Apostólica Verbum Domini, de Bento XVI em 2010. Os trabalhos da Comissão resultaram num documento com esse título, o qual, porém, ainda deve ser aprovado pela Congregação da Doutrina da Fé, para, então, ser traduzido e publicado. A Pontifícia Comissão Bíblica é um organismo criado em 1903 pelo Papa Leão XIII, como uma Comissão de Cardeais, naturalmente assessorados por peritos em exegese bíblica. Após o Vaticano II , a Comissão foi reformulada por Paulo VI, em 1971, transformando-se em órgão consultivo da Congregação da Doutrina da Fé, e sendo constituída não mais por Cardeais, mas por 20 exegetas de vários países, nomeados diretamente pelo Papa. Da Comissão agora cessante faziam parte 3 italianos, 2 franceses, 2 alemães, 2 americanos, 2 espanhois, 1 mexicano, 1 argentino, 1 brasileiro (Pe. Ney), 1 nigeriano, 1 indiano, 1 coreano, 1 polaco, 1 irlandês, e 1 maltês. A audiência, concedida na “Sala dos Papas”, no Palácio Apostólico do Vaticano, começou com uma saudação ao Santo Padre pelo Arcebispo Gerhard Müller, atual Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 187 Crônicas Ele referiu-se à maneira como a Comissão abordou o tema proposto, “Inspiração e Verdade da Bíblia”, sem deixar de enfrentar alguns dos mais prementes desafios que encontra a leitura bíblica. Assim, a questão da verdade histórica e, também, a da violência de certos textos. O discurso do Papa Francisco, breve, como aliás têm sido assim as suas alocuções, insistiu na unidade entre a Escritura e a Tradição. Disse, textualmente: “Exatamente porque o horizonte da Palavra Divina se estende para além da Escritura, é necessária, para compreendê-la adequadamente, a constante presença do Espírito Santo, que guia à “plena Verdade” (cf. Jo 16,13). É preciso colocar-se na corrente da grande Tradição que, sob a assistência do Espírito Santo e a orientação do Magistério, reconheceu os escritos canônicos como Palavra dirigida por Deus ao seu povo, e jamais cessou de meditá-los e de neles descobrir suas inexauríveis riquezas.” Sua palavra final, diretamente aos membros da Comissão, referiuse a Nossa Senhora: Ela, “modelo de docilidade e obediência à Palavra de Deus, vos ensine a acolher plenamente a riqueza inexaurível da Sagrada Escritura, não só através da pesquisa intelectual, mas na oração e em toda a vossa vida de crentes, sobretudo neste Ano da Fé. Assim, o vosso trabalho verdadeiramente contribuirá a fazer brilhar a luz da Sagrada Escritura no coração dos fiéis.” II Jornada Brasileira de Estudos Patrísticos no Exterior Conforme previsto no calendário, aconteceu em Roma no dia 07 de maio pp., no Pontifício Instituto Oriental, sessões vespertinas, e no Pontifício Colégio Pio Brasileiro, sessão noturna, a II Jornada Brasileira de Estudos Patrísticos no Exterior, coordenada pelo nosso Professor de Patrística, Pe. Dr. Edinei da Rosa Cândido. Foi uma ocasião oportuna para socialização de trabalhos acadêmicos e atualização acerca da pesquisa patrística desenvolvida por estudantes brasileiros no exterior. Com a fundação da ABEPatri – Associação Brasileira de Estudos Patrísticos todos esperam encontrar um espaço para trabalho de conjunto entre patrólogos e interessados pelos Estudos Patrísticos no Brasil. O evento contou com a participação de mais vinte estudantes brasileiros dos programas de Mestrado e Doutorado das pontifícias universidades romanas e antecipou-se ao XLI “Incontro di Studiosi dell’Antichità Cristiana”, ocorrido entre os dias 9 e 11 de maio pp., no Instituto Patrístico Augustinianum. 188 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Crônicas NOTÍCIAS DO REGIONAL SUL 4 – CNBB CIMI Sul lança caderno contra PEC que ameaça terras indígenas O caderno “PEC 215: ameaça aos direitos dos povos indígenas, quilombolas e meio ambiente” foi lançado pelo Conselho Indigenista Missionário Regional Sul 4 na aldeia Morro dos Cavalos na Grande Florianópolis, dia 23 de abril. Objetivo do organismo, vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, é debater as implicações dessa Proposta de Emenda à Constituição. O missionário Clovis Brighenti explicou que os parlamentares pretendem “ter o poder de demarcar não só as terras indígenas mas, também, as áreas quilombolas e de conservação, como reservas florestais”. Para ele, a PEC “é uma das ameaças mais contundentes aos direitos dos povos indígenas”. Um trecho do caderno diz que “passar a responsabilidade da demarcação das terras aos deputados é o mesmo que dizer que os indígenas não possuem o direito originário”, pois, se aprovada PEC, as homologações dependerão de negociações políticas. Atualmente a competência é do Poder Executivo. Brighenti afirmou que é necessário pressão para que parlamentares não aprovem a proposta. Para isso, o caderno relaciona os nomes e correios eletrônicos dos deputados federais de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná. A recente criação de um colegiado composto de dez deputados e de representantes das comunidades indígenas para discutir questões relacionadas às demarcações, entre elas a PEC 215, é tido como resultado do protesto realizado em Brasília no dia 16. Centenas de índios ocuparam vários espaços da Câmara e, inclusive, o plenário da Casa, durante sessão. A cacique Eunice Antunes contou que, inicialmente, o objetivo não era entrar no Congresso. – Aconteceu uma coisa muito forte nesse dia. Deus colocou a sua mão naquele momento. Íamos só fazer um ritual na frente [do Congresso], mas de repente a porta se abriu – contou. Ela acredita que a força dos povos indígenas unidos pode “enterrar a PEC” porque, agora, “eles [os deputados] terão que pensar bastante [antes de aprová-la]”. O lançamento do caderno foi acompanhado por lideranças da comunidade, professores e estudantes das universidades federal e estadual de Santa Catarina, além de representantes de pastorais sociais da Igreja Católica. Na ocasião, também aconteceu o lançamento do livro “A terra que volta ao verdadeiro dono”, que conta a história das aldeias Guarani ao logo do litoral catarinense. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 189 Crônicas CNBB Sul 4 homenageia empresa que transportou símbolos da JMJ em SC O grupo de empresas responsáveis pelo transporte e logística da Peregrinação da Cruz da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) em Santa Catarina recebeu um troféu em acrílico, oferecido pelo Regional Sul 4 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. A entrega aconteceu na manhã do dia 26 de março, em Itajaí. Diante dos funcionários, os proprietários José Salvelino Dalçóquio e Cícero Humberto Ferrari receberam o agradecimento do presidente do regional, arcebispo Dom Wilson Tadeu Jönck. Na entrega, o prelado afirmou que não é possível retribuir o “grande favor que a empresa prestou para a Igreja em Santa Catarina”. Ele também lembrou que esta “foi uma contribuição muito importante para a JMJ”, prevista para acontecer no Rio de Janeiro, em julho. O secretário-executivo do regional, Ademir Freitas, lembrou que o Conselho Regional de Pastoral “foi unânime ao avaliar positivamente o uso do caminhão”. Uiliam Dalpiaz, coordenador regional da Pastoral Juvenil lembrou que o evento é raro e “daqui a 50 anos poderemos olhar para a história e lembrar o que vocês fizeram”. Cícero, responsável pela Ferrari Logística, disse que, “além de ter sido uma honra, esse trabalho foi emocionante”, ao recordar momentos do qual participou. Ele também ressaltou a importância do trabalho realizado por Alexandre da Silva, funcionário encarregado pela operacionalização logística da empresa. Um troféu extra foi entregue ao padre Josemar Silva. Foi sua a iniciativa de contactar os empresários para disponibilizar um veículo adequado para o transporte da Cruz e do Ícone de Nossa Senhora. Os suportes construídos pelos funcionários permitiram que os símbolos fossem transportados montados e visíveis. Todos os custos, incluindo o combustível, foram doados pelas duas empresas. Em Santa Catarina, o caminhão percorreu 6.116 quilômetros e consumiu 848 litros de diesel. O caminhão também atuou no Paraná, em que 898 litros de combustível foram consumidos em 5.472 quilômetros. “Cruz do Ano Santo”, “Cruz do Jubileu”, “Cruz Peregrina” ou “Cruz dos Jovens”, é uma cruz de 3,8 metros. Após a Semana Santa de 1.983, o Papa João Paulo II deu-a aos jovens do Centro Juvenil Internacional São Lourenço, em Roma. Desde então, tem sido levada para as jornadas mundiais, em várias partes do mundo. Desde 2003, por iniciativa do mesmo Papa, ela está sendo acompanhada pelo ícone de Maria (Quadro de Nossa Senhora). 190 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 Crônicas Mais um livro do Pe. Valter GOEDERT, Valter Maurício. A Constituição Litúrgica do Concílio Vaticano II: A Sacrosanctum Concilium a seu alcance. São Paulo, Editora Ave-Maria, 2013, 144 p. Citamos a Introdução do autor: “Por ocasião dos cinquenta anos do Concílio Vaticanno II, muitas publicações vêm refletindo sobre os diferentes aspectos da reforma conciliar, todas elas pertinentes e valiosas. O Concílio propôs uma fonte inesgotável de elementos fundamentais da ávida da igreja no diálogo com a pós-modernidade, que precisam ser continuamente aprofundados diante da nova evangelização. O livro que ofereço aos agentes de pastoral tem por objetivo retomar temas importantes da Constituição Litúrgica Sacrosanctum Concilium, visando a uma melhor compreensão das orientações conciliares no tocante à celebração do mistério pascal de Jesus Cristo. Como ação de Cristo e de seu Corpo, que é a Igreja, a liturgia constitui ‘uma ação sagrada por excelência, cuja eficácia, no mesmo título e grau, não é igualada por nenhuma outra ação da Igreja’. Espero contribuir para que possamos não somente redescobrir as riquezas que o Concílio nos deixou como herança, mas também tirar desse tesouro ‘coisas novas e velhas’ (cf Mt 13,52).” Do Prefácio, escrito pelo prof. Carlos Martendal: “Ler o que Pe. Valter escreve a respeito da Sacrosanctum Concilium é perscrutar o documento conciliar com um novo olhar, com um entendimento que vai superando as dificuldades e descobrindo os benefícios presentes e futuros que a nova norma da Igreja traz para nossas celebrações. [...] Quanto mais entendermos a ação litúrgica de que participamos, mais poderemos alimentar-nos dela, transformando a nossa vida. Compreenderemos para amar e amaremos para compreender, suscitando em nossos corações ‘um novo fervor, um novo amor, como que um novo espírito’ (Paulo VI). E, assim, daremos glória a Deus e nos santificaremos. Isso também será possível graças a este excelente livro.” O livro se estrutura em quatorze pequenos capítulos: 1. A liturgia no Concílio Vaticano II. 2. Princípios gerais da reforma litúrgica. 3. A liturgia, momento histórico da salvação. 4. Liturgia, celebração do mistério pascal. 5. Liturgia, exercício do sacerdócio de Cristo. 6. Sacerdócio ministerial e sacerdócio comum dos fiéis. 7. Participação na liturgia. 8. Pastoral litúrgica. 9. O mistério eucarístico. 10. Os sacramentos. 11. Os sacramentais. 12. A Liturgia das Horas. 13. O ano litúrgico. 14. Música sacra e arte sacra. Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013 191 Crônicas Tese doutoral sobre o ITESC KRETZER, Altamiro Antonio. Catolicismos em disputa: Discursos teológicos em confronto no ITESC – Instituto Teológico de Santa Catarina (1973-2003). Florianópolis, 2013, 336 p. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal de Santa Catarina. Resumo: A Tese centra-se na análise do Instituto Teológico de Santa Catarina, ITESC, criado em 1973. O momento histórico em que se dá tal criação coincide com a década seguinte ao Concílio Vaticano II e as disputas relativas às diferentes leituras dos textos do Concílio referentes à formação sacerdotal, à maneira de se estudar e fazer teologia, enfim, quanto ao jeito de ser-Igreja e ser-cristão. Diante dessa realidade em efervescência, o bispado catarinense decide retirar seus seminaristas do Seminário gaúcho de Viamão, apelidado por muitos de “Seminário Vermelho”, em virtude de atitudes contestatórias em relação à Ditadura Militar e a proximidade de muitos dos seus alunos da UNE. Ao buscar identificar os discursos teológico-filosóficos produzidos por uma intelectualidade católica nas décadas que se seguiram ao Concílio Vaticano II, este trabalho reflete sobre as relações de poder em jogo no mercado simbólico da construção de subjetividades e de discursos que permeiam as relações sociais na história, de modo especial no interior do próprio Instituto Teológico. Para tanto, são analisadas as relações de poder estabelecidas entre os intelectuais (teólogos, estudantes de teologia) e a hierarquia da Igreja Católica, as relações de poder estabelecidas entre os próprios intelectuais, entre estes e a comunidade leiga, assim como também entre os estudantes de teologia e seus formadores. Estão em jogo, portanto, as intrincadas relações entre os sujeitos individuais e entre estes e as instituições. Catolicismos em disputa retrata, portanto, o embate entre discursos contrários e, às vezes, também contraditórios, no interior da Igreja Católica e, de modo mais particular, no interior do Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC. Títulos dos três capítulos nos quais se estrutura a Tese: 1. Catolicismos: entre a unidade pretendida e a pluralidade existente. 2. Um mercado de trocas simbólicas e linguísticas: a Revista Encontros Teológicos. 3. Discursos teológicos e práxis: conflitos e acomodações. A Tese, orientada pelo Prof. Dr. Rogério Luiz de Souza, foi julgada e aprovada em sua forma final, em 26-03-2013, para obtenção do título de Doutor em História Cultural. 192 Encontros Teológicos nº 64 Ano 28 / número 1 / 2013