Acessar documento - Opinião Filosófica

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Acessar documento - Opinião Filosófica
IDENTIDADES
AMERÍNDIAS
Sepé Tiaraju
Lendas Missioneiras
Salamanca do Jarau
COLEÇÃO AMERÍNDIOS
Aldeia Nossa Senhora dos Anjos
Protásio P. Langer
Escravidão de índios e negros no Brasil
Décio Freitas
Índio Kaingang do Paraná
Ítala I. B. Becker
Índio Kaingang do Rio Grande do Sul
Ítala I. B. Becker
Índios da Aldeia dos Anjos (Gravataí, RS)
Arquivo Histórico do RS
Sepé Tiaraju e a identidade gaúcha
Luiz Carlos Susin
Identidades Ameríndias
– Sepé Tiaraju, Lendas Missioneiras, Salamanca do Jarau –
Agemir Bavaresco e Luis Borges (orgs.)
Sepé Tiaraju – história e mito
Moacyr Flores
Sepé Tiaraju a São Sepé
César Pires Machado
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Carlos F. Sica Diniz
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Identidades Ameríndias
Agemir Bavaresco e Luís Borges
(orgs.)
IDENTIDADES
AMERÍNDIAS
Sepé Tiaraju
Lendas Missioneiras
Salamanca do Jarau
Edição comemorativa
dos 250 anos da morte de Sepé Tiaraju
1756-2006
Com a colaboração de
CARLOS F. SICA DINIZ
MÁRIO MATOS
MATEUS WEIZENMANN
Porto Alegre, 2006
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
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© Agemir Bavaresco e Luís Borges
1ª edição: 2006
Esta edição é propriedade dos Autores.
Capa:
Valder Valeirão
Ilustração da capa:
Mário Mattos
Editoração e composição:
Suliani Editografia Ltda.
Rua Veríssimo Rosa, 311
90610-280 – Porto Alegre, RS
E-mail: [email protected]
Fone/fax: (51) 3384 8579
ISBN: 85-7517-142-9
EDIÇÕES EST
R. Veríssimo Rosa, 311
90610-280 Porto Alegre, RS
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E-mail: [email protected]
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Carlos F. Sica Diniz

Identidades Ameríndias
Sumário
Carlos F. Sica Diniz
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
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Luís Borges
O folclore e a ficção como artifício didático-pedagógico
em Simões Lopes Neto
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Agemir Bavaresco, Luís Borges, Mateus Weizenmann
Recepção da tradição indígena na literatura
de Simões Lopes Neto
A mãe do ouro
Cerros bravos
A casa de M’bororé
Zaoris
Angüera: a metamorfose do índio
Mãe mulita
São Sepé / Lunar de Sepé
A Teiniaguá na Salamanca do Jarau
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Luís Borges
Uma conclusão inconclusa
De Getúlio a Machado: uma história pelo avesso
Que país é este?
Que é o Brasil e quem é o brasileiro?
Identidade gaúcha versus identidade brasileira
Tupi or not Tupi? That is the question
Concluindo uma conclusão inconclusa
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Mário Matos
Décima de Sepé Tiaraju
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Apêndice
Bibliografia e glossário de termos regionais ou históricos
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
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A presença indígena
na obra de Simões Lopes Neto
Carlos F. Sica Diniz*
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João Simões Lopes Neto legou-nos um livro de publicação póstuma, denominado Terra Gaúcha. Uma história elementar do Rio Grande do Sul, como lhe atribuía o escritor. Este livro já estava sendo escrito por volta de 1910
e, ao que se sabe, o projeto englobava dois volumes: um que se estendia de
1500 a 1737, data da chegada do comandante Silva Pais ao lugar onde hoje se
situa a cidade do Rio Grande, para fundar o fortim Jesus-Maria-José. O segundo volume espraiava-se daqueles primórdios da ocupação portuguesa no
forte do Rio Grande aos primeiros anos do século XX. Destes dois volumes
escritos, somente o primeiro foi encontrado e publicado. Começa com demorada nota preliminar pelo trato das civilizações americanas extintas, prolongando-se na análise de fatores étnicos que contribuíram para a formação do
Brasil, até chegar à gênese da história rio-grandense e encerrar, como não
poderia faltar, no resumo geográfico do território gaúcho. Ultrapassada a nota
preliminar, o primeiro capítulo recebeu o título de Tempos d’antanho, cujo
conteúdo versa sobre os indígenas, seus costumes, crenças e tribos, que habitavam o vasto território sulino.
É neste capítulo que se pode constatar a simpatia do escritor pelos indígenas, como registrou a professora Lígia Chiappini:
Ao descrever a organização da vida indígena, o arranchamento comum, a
escolha do chefe entre o mais valente e forte, que não podia mandar nem
castigar em tempo de paz, e que governava com a assistência da assembléia dos guerreiros, nota-se, apesar da rapidez e superficialidade da descrição, a profunda simpatia do historiador pelos índios e seu modo de vida
(Chiappini, 1988, p. 111).
* Advogado, professor e escritor. Autor de João Simões Lopes Neto: uma biografia (Porto
Alegre: AGE, 2003).
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
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Simpatia que se depara na observação sensorialista, sempre presente na
prosa de Simões Lopes, ao falar dos sentidos apurados dos guaranis, olfateando de longe a fumaça do fogo, a catinga do jacaré e ouvindo a cascavel e
o tigre, muito antes de ver estes animais. Simpatia que exacerba, ao expressar má vontade com o colonizador português, que deixou o Rio Grande ao
léu, mas que não se furta de reconhecer o trabalho missioneiro dos Jesuítas,
os únicos brancos, segundo o historiador, que protestaram sempre contra a
dominação dos bandeirantes que só queriam os índios como mão-de-obra
para trabalhos forçados. Simões Lopes anotou, ao introduzir as Lendas do
sul, que “o primeiro povoamento branco do Rio Grande do Sul foi espanhol; seu poder e influência estenderam-se até depois da conquista das Missões; provém disso que as velhas lendas rio-grandenses acham-se tramadas
no acervo platino de antanho” (Lopes Neto, 1913, p. 5).
Ao tratar das missões jesuíticas, da criação da Província dos Tapes e
das lutas entre portugueses e espanhóis, que redundaram na destruição das
reduções e hostilidades em relação aos sacerdotes e indígenas, Simões Lopes toma o partido dos vencidos. Mais tarde, ao compor as versões literárias
das Lendas do sul, estes temas voltariam a ocupar a força criativa do escritor, como se verá de pronto.
Não se pode dizer que a obra de Simões Lopes Neto, nos argumentos
escolhidos, tenha sofrido influência da questão indígena. Simões não era
um indianista, mas, nas páginas escritas sobre este tema, em textos históricos e ficcionais, deixou forjada a sua censura ao trato do colonizador português que, no seu entendimento, contribuiu para a destruição do povo indígena, que habitava a nossa terra gaúcha.
É nas Lendas do sul, contudo, que a referência indígena pode ser notada
na obra literária, propriamente dita, do escritor regionalista e pré-moderno
que foi.
A lenda Mboitatá, a Boiguassu dos índios, tem origem na “ingênua e
confusa tradição guaranítica”, como disse o seu criador na nota introdutória
(idem, p. 5). No livro histórico Terra gaúcha, ao tratar dos índios guaranis,
o escritor arriscou dizer que das suas lendas primitivas uma delas nos chegou, caracterizada, que é a do Boitatá, cobra de fogo, da qual se depreende
tradição vaga de um dilúvio, tal como narravam os índios:
A Mboitatá era uma grande serpente, que dormia havia já imenso tempo,
quando houve uma longa noite durante a qual choveu tanto, tanto, que as
águas cresceram e subiram até sobre as altas coxilhas; os homens viveram
tristemente durante este tempo; a mortalidade dos bichos foi espantosa. A
serpente, então, expulsa de sua toca, deu em comer os olhos das carniças,
somente os olhos, e por isso seu corpo foi ficando transparente e luminoso,
até que morreu e desmanchou-se em pedaços que ficaram esparsos pelos
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Carlos F. Sica Diniz
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Identidades Ameríndias
campos, procurando, porém, juntar-se durante a estação dos calores. Quem
topa com um deles pode ficar cego; mas também protegem os campos
contra aqueles que os incendeiam (Lopes Neto, 1955, p. 45).
No tratamento dessa pobre lenda indígena, que Simões transmudou em
beleza criativa e literária, é que se insere o ensaio de Mozart Pereira Soares
(Cf. Soares, 1974), que aqui invoco para chegar aonde quero. Na escuridão
fechada, através da qual o nosso rapsodo ambientou aquela noite apocalíptica, propícia à narrativa introdutória da cobra de fogo, Simões disse que
“nenhum flete crioulo teria faro nem ouvido nem vista para bater na querência; até nem sorro daria no seu próprio rastro”. Conquanto a lenda esteja
povoada dessas explosões telúricas e sensorialistas, vamos ficar com este
exemplo, pelo qual Simões descreveu a noite escura que tudo confundiu.
Todos sabemos que o cavalo é um animal bem dotado de olfato. Fareja os
rastros, de longe percebe as ressonâncias dos tropéis, como disse Pereira
Soares. E o sorro conhece, ao longe, no seu olfato de longo alcance. Tudo
isso aquela noite infernal desgovernou. Na descrição feita no livro Terra
gaúcha, na parte dedicada aos guaranis, Simões também introduziu descrição didático-sensorialista dos índios, como utilizara com os bichos, louvando seus apurados sentidos, “olfateando desde muito longe a fumaça do fogo, a catinga do jacaré, e ouvindo a cascavel e o pisar do tigre, muito antes
de ver estes animais” (Lopes Neto, 1955, p. 46).
Também na peça histórica, não se furtou Simões Lopes, admirador
sempre das artes das cavalgadas, de louvar os charruas e minuanos, dominadores das coxilhas e dos cavalos:
De tal modo identificaram-se à montaria, que sabiam combater alinhados,
e fazer cargas de lanças. Os seus cavalos eram primorosamente amansados; uma das astúcias de guerra, que empregavam, era a de aproximar-se
deitados sobre o dorso do cavalo ou sobre um dos lados, segurando-se às
crinas, e cair, de improviso, sobre o inimigo despercebido (Lopes Neto,
1955, p. 47).
Homem e cavalo num só corpo, um extensão do outro, como na unidade física do centauro.
Na Salamanca do Jarau, sua mais complexa criação literária, Simões
misturou por gosto a origem ibérica da lenda com muitos passos de influência indígena. Na nota introdutória, ele mesmo justifica que nasceram “idealizações novas e típicas, adaptadas ou decorrentes do meio físico e das gentes ainda na crassa infância das concepções” (Lendas do sul, 1ª edição, p.
5). A história resumida da lenda, no texto simoniano, foi revelada a Blau
Nunes, que aqui é personagem em vez de narrador, pelo santão da salamanca do cerro, que aprendera a lenda com sua avó charrua. A avó índia do
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
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sacristão recitava a lenda que já tinha ouvido contar por outros, como coisa
muito velha. Na misturança dos índios charruas, portanto, a princesa moura
virou a teiniaguá encantada, a lagartixa mágica que tinha a cabeça luminosa
e transparente, que o sacristão aprisionou numa guampa bem fechada por
distração do demônio índio Anhangá-Pitã, que nas suas maldades havia
corrido junto com ela pelas correntezas do Uruguai, por léguas, tudo lhe
ensinando sobre as furnas, encantamentos e outras coisas do diabo que ele
era. E assim o santão das furnas da salamanca apoderou-se de todas as riquezas, do amor proibido da teiniaguá transmudada em mulher e das futuras
desgraças que sobre ele se abateram. E despertou a curiosidade do ingênuo
tapejara Blau Nunes, que atravessou as sete provas da Salamanca do Jarau e
ganhou as mágicas onças de ouro que apareciam, uma a cada vez, no fundo
da sua guaiaca.
Entre as chamadas lendas missioneiras, resumidamente tratadas por Simões Lopes, fora da trilogia composta por Mboitatá, Salamanca do Jarau e
Negrinho do Pastoreio, destaco três de notável presença indígena. A casa
de M´Bororé situava-se dentro de um mato velho e crescido. Construção de
pedra e sem portas nem janelas. Lá dentro as barras de ouro e tantas pilhas
de riquezas, guardadas pelo rondador da casa branca, dia e noite em seu
redor:
[...] um índio velho, cacique que foi, M’Bororé, de nome, amigo dos santos padres das Sete Missões da serra que dá vertentes para o Uruguai. Os
padres foram tocados pra longe, levando só a roupa do corpo... mas a casa
branca já estava feita, sem portas nem janelas... e M’Bororé, que sabia tudo e era cacique, de noite, e precatado, com os seus guerreiros, carregou
de todos os lugares para aquele as arrobas amarelas e as arrobas brancas,
que não valiam a caça e a fruta do mato e a água fresca, e pelas quais os
brancos de longe matavam os nascidos aqui, e matavam-se uns aos outros
(Lopes Neto, 1913, p. 74).
O velho índio despreza aqueles tesouros, mas segue cumprindo o seu
fadário de guardador do ouro dos jesuítas. Rondando por eles, ainda espera.
Espera pelos que não vão voltar, na sucessão dos dias e das noites.
O Angoera era “um índio grande, forçudo e valente; mas era triste, carrancudo e calado”. Foi padrinho de M’Bororé. Quando deixou de ser pagão,
trocou seu nome para Generoso. Ajudou muito e por anos, com sua força
descomunal, os jesuítas na construção das sete missões. Sempre risonho e
cantador, morreu contente. Sua alma até hoje assombra os viventes. Faz
brincadeiras nas casas. No tempo dos “farrapos, quando se dançava o fandango nas estâncias ricas ou a chimarrita nos ranchos do pobrerio, o Generoso intrometia-se e sapateava também, sem ser visto; mas sentiam-lhe as
pisadas, bem compassadas ao rufo das violas” (Lopes Neto, 1913, p. 78).
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Identidades Ameríndias
Por fim, no Lunar do Sepé, o escriba maior do Rio Grande louva o herói índio Sepé-Tiaraju, vencido e morto na batalha de 7 de fevereiro de
1756, que se travou no sopé da coxilha de Santa Tecla, perto de Bagé, homenageado pelos padres jesuítas, por quem combateu e morreu, e foi canonizado pelo povo. A lenda é o lunar e daí o seu nome, por causa da mancha
estrelada de nascença na testa do índio, seu signo misterioso que luzia ao
pôr-do-sol e que, com sua morte, adquiriu perene luminosidade e se transformou no luzeiro que brilha no firmamento, assim como recitou Simões
Lopes, pela voz da velha Maria Genoína, moradora na picada que atravessa
o Camaquã, entre Canguçu e Encruzilhada, por volta de 1902: “E, subindo
para as nuvens, / Mandou aos povos – bênção! / Que mandava o Deus –
Senhor / Por meio do seu clarão... / E o – lunar – da sua testa / Tomou no
céu posição...” (Lopes Neto, 1913, p. 88).
Referências
CHIAPPINI, Lígia. No entretanto dos tempos. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
LOPES NETO, João Simões. Lendas do sul. 1. ed. Pelotas: Echenique, 1913.
LOPES NETO, João Simões. Terra gaúcha. Porto Alegre: Sulina, 1955.
SOARES, Mozart Pereira. O elemento sensorial nas Lendas do Sul. In: LOPES NETO,
Simões. Lendas do sul. Edição ilustrada. Porto Alegre: Globo/Aplub, 1974.
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
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O folclore e a ficção
como artifício didáticopedagógico
em Simões Lopes Neto
Luís Borges*
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Consideramos que Simões Lopes Neto intentava originalmente um projeto didático-pedagógico. Ao virem a lume os textos de Terra gaúcha,1 através
da divulgação de Carlos Diniz (2003, p. 124-137), foi possível a comprovação da hipótese lançada por Lígia Chiappini em No entretanto dos tempos
(1988), mas já intuída na pequena biografia escrita, em 1985, por Antônio
Hohlfeldt.
O exame do “verdadeiro Terra gaúcha”, para utilizarmos uma expressão
de Carlos Diniz, permite concluir que o projeto simoniano, no que tange a sua
missão como escritor, se esboçara na conferência de 1904, Educação cívica, e
prosseguiu nesse livro infanto-juvenil, calcado em princípios pedagógicos e
nacionalistas, cuja finalidade era inculcar ideais patrióticos nas crianças brasileiras, segundo o modelo de De Amicis (Chiappini, 2003, p. 12).
Profundamente influenciado pelo positivismo e pelo evolucionismo, eivado pela concepção iluminista, Simões Lopes Neto entendia que, no Brasil,
o progresso estava identificado com a disseminação da educação. Sua percepção do problema não era apenas de modo a definir uma noção de progresso restrita ao desenvolvimento econômico, mas também, e principalmente,
vinculava-o à idéia de emancipação política e social do homem brasileiro,
* Coordenador adjunto do Grupo de Pesquisa em Filosofia Intercultural – Universidade
Católica de Pelotas (UCPel), Instituto Superior de Filosofia (ISF).
1
Não se trata da obra homônima, que versa sobre a história do Rio Grande do Sul, editada
postumamente, em 1955, pela Sulina, mas de outra, de feitio didático, inspirada no Cuore,
de Amicis, e que permanece inédita.
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Identidades Ameríndias
ultrapassando a restrição entre educação formal e não-formal, eis que ele
mesmo era um autodidata.
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Como vimos, seu projeto de “divulgador cultural”, ação imediata decorrente de sua vocação de educador/escritor, é anterior à publicação das Lendas do sul. Conforme já afirmamos, seu projeto nasce por volta do ciclo das
conferências cívicas (1904-1906), tendo sua feição perfeitamente delineada,
quando da publicação do Cancioneiro guasca, em 1910.
A obra Lendas do sul foi publicada no ano seguinte à publicação de
Contos gauchescos; apesar disso, todo o livro já era conhecido do público,
com exceção da Salamanca do Jarau. Em verdade, as Lendas do sul nada
mais são que o Cancioneiro guasca expurgado da parte do popularium de
trovas e quadrinhas compiladas do folclore rio-grandense, acrescentada à
lenda da Salamanca.
A primeira edição do Cancioneiro guasca, de 1910, trazia, pois, todas
as lendas que comporiam o livro Lendas do sul, de 1913, com a exceção
citada. A partir da segunda edição, o Cancioneiro, aparecido também pela
editora Echenique, de Pelotas, em 1917, não mais trará as lendas, sendo este
o perfil editorial adotado até hoje. Tratava-se de um elemento de marketing.
Até 1928 – lembremos que um dos grandes fatores que desencadearam a
inserção do autor pelotense no sistema literário do Rio Grande do Sul, foi o
surgimento da chamada “edição acolherada”, da Globo, em 1926 – o maior
sucesso editorial de Simões Lopes Neto era o Cancioneiro guasca.
Como então lançar no mercado uma obra (Lendas do sul) que praticamente repetia outra aparecida três anos antes (Cancioneiro guasca)? O editor Guilherme da Cunha Echenique separou do Cancioneiro a parte relativa
às lendas, dando feitio diferente a cada uma das obras. A estratégia funcionou tão bem, que o leitor hodierno, sem acesso às raras primeiras edições
dessas obras, sequer desconfia que as Lendas do sul, quase inteirinhas, já se
encontravam no Cancioneiro guasca.
Situando a composição e publicação dos textos que apareceram em
Lendas do sul no período compreendido entre os anos de 1906-1913, vale
ressaltar também o contexto precário da realidade educacional que mobilizava intensamente a inteligência positivista do País, uma vez que o número
de escolas (desconsiderando a inadequação dos currículos e da formação
dos professores) era insuficiente para a demanda e as necessidades da nação.
Grandes pensadores e educadores, tais como José Veríssimo (18571916) e Alberto Torres (1865-1917), dedicavam-se a examinar as mazelas
sociais do Brasil, através do diagnóstico de suas políticas e metodologias
educacionais.
Nas primeiras décadas do século XX, as principais preocupações da novel república brasileira eram a fragmentação do território nacional e a modernização econômica do país.
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Identidades Ameríndias
Para sanar ou, pelo menos, minorar esses dois problemas, propunha-se
o fortalecimento do sentimento cívico, tipicamente encarnado por intelectuais como Olavo Bilac (1865-1918) e Coelho Neto (1864-1934), e a rápida formação de mão-de-obra qualificada para o implemento da industrialização do Brasil.
Lembremos que a República foi o resultado de um golpe militar e que
Simões, embora democrata convicto e republicano desde a juventude, conforme o atestam seus trabalhos no A pátria, de 1888, possuía um imenso
orgulho de ter sido capitão da Guarda Nacional do Império.
Nesse sentido, o escritor era um homem profundamente sintonizado
com o espírito de seu tempo, que confundia progresso com pensamento
positivista, e civismo com militarismo. Sua vida e sua obra foram uma tentativa de resposta àquelas duas grandes preocupações dos anos iniciais da
República Velha, naqueles tempos, então novíssima.
Simões Lopes Neto buscou obsessivamente ser capitão de indústria e
educador, chegando mesmo a ser professor na Escola de Comércio, em
Pelotas/RS. Antes de tudo, porém, havia nele uma ânsia, um afã patriótico
que o levava a uma ação cidadã, expressa em seus inúmeros e malogrados
empreendimentos, nos seus compêndios de história e psicultura, nos seus
projetos de reforma ortográfica, na “Coleção Brasiliana” de cartões postais,
para a “divulgação dos fastos da história nacional”, e dos seus livros didáticos, como o caso do “verdadeiro Terra gaúcha”, para o ensino de crianças.
À medida que o capital ia escasseando, o crédito sumindo e as falências
se iam sucedendo, o Velho Capitão foi, cada vez mais, direcionando seus
projetos para a área literária, sem perder o fito no objetivo didáticopedagógico. A literatura de Simões Lopes Neto, dotada de alto nível artístico, uma vez esboroados seus sonhos de “vulgarizador cultural” através da
publicação de livros propriamente didáticos, foi utilizada por ele de maneira
restrita, embora com fins elevados, consoante a concepção pragmáticopositivista da atividade do intelectual – definida por uma palavra hoje fora
de moda: “publicista”. Para tanto, Simões pretendia que sua ficção desse a
conhecer ao Brasil e aos próprios rio-grandenses sua fala, sua gente, sua
história e seus costumes.
A própria recepção crítica da obra simoniana padeceu desse mal. Desde
os primeiros textos críticos, tais como os de Coelho da Costa (1912) e Antônio de Mariz (1913), até os atuais, como o de Everton Pereira da Silva
(1998), considerou-se a escritura simoniana como um repositório fiel da
história sul-rio-grandense. A esse respeito afirma Arendt:
A ficção simoniana é entendida pela crítica como um arquivo em que se
encontra depositada a história sul-rio-grandense, desde os seus primórdios
até o começo do século XX, sendo esse o motivo pelo qual o escritor não
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
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obteve o reconhecimento literário dos seus livros na época da publicação.
O próprio trabalho de recolhimento do material folclórico assume, assim,
um ar de pesquisa historiográfica (Arendt, 2004, p. 93).
E adiante:
Somente nos anos 40 e 50, os estudiosos passam a questionar a originalidade da matéria folclórica e a comprovar que Simões Lopes estilizou os
textos orais, o que acaba, de certo modo, dispersando o caráter historiográfico da ficção. A obra começa a ser lida e afirmada do ponto de vista da
sua literariedade, ainda instável nos anos 20 e 30, cujo período enfatiza
principalmente os aspectos historiográficos e folclóricos da produção simoniana (Idem, ibidem).
Carlos Reverbel, ao realizar uma enquete, em 1955, procurou estabelecer as dez obras fundamentais da bibliografia sul-rio-grandense. A primeira
colocada foi Viagem ao Rio Grande do Sul (1820), de Saint-Hilaire, a segunda colocação foi obtida por Contos gauchescos e Lendas do sul (1949),
de Simões Lopes Neto.
Ao todo, entre as dez obras escolhidas, quatro são literárias, sendo as
demais do campo da história, da sociologia, da geografia e da etnografia.
Por que uma obra historiográfica e uma obra literária encabeçaram a lista?
Segundo Arendt (Idem, p. 90) a resposta pode ser encontrada em três
direções diferentes: (1) nos depoimentos dos próprios participantes da enquete e na sua relação com a crítica simoniana anterior; (2) na situação editorial e crítica de Contos gauchescos e Lendas do sul, nos anos 50; (3) na
presença de Carlos Reverbel como realizador da enquete.
Nesse sentido, é interessante, para efeito de exemplificação, o depoimento do historiador Sérgio da Costa Franco, um dos participantes da enquete realizada por Reverbel, através do Correio do Povo, de Porto Alegre,
entre os meses de setembro e dezembro de 1955:
Apesar de obras de ficção, os contos e lendas, especialmente as Lendas do
sul, de J. Simões Lopes Neto, não podem fugir a esta relação. Tal a sua
força telúrica, de tal modo autêntica a sua elaboração literária, que escapam ao padrão comum da ficção regionalista, para se transformarem em
legítimas manifestações folclóricas. E não se conheceria a cultura gaúcha,
sem as ter estudado (apud Arendt, 2004, p. 90).
Essa visão que reduz o literato Simões Lopes Neto ao folclorista, ou ao
escritor naturalista, quase sociólogo, prejudica o entendimento do escritor
propriamente dito. Dessa maneira, o estudo das lendas, neste caso, daquelas
denominadas “missioneiras”, possibilita o alargamento da compreensão do
lugar ocupado pelo elemento de cunho folclórico e/ou histórico na literatura
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Carlos F. Sica Diniz
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Identidades Ameríndias
simoniana, eliminando a falsa dicotomia entre o Simões Lopes Neto artista
e o Simões Lopes Neto folclorista/historiador. Para o autor de Contos gauchescos (1912), o material recolhido na tradição oral é matéria-prima para
sua arte. Arte, porém, que, dentro do ideário da “ilustração tupiniquim” e do
“positivismo moreno”, deve atender a uma função social: a educação popular.
Numa época em que educação/instrução eram quase sinônimos e tinham por modelos expressivos a prosa e a poesia parnasiana (sem falar na
oratória bacharelesca), com sua inerente verborragia e rebuscamento, e no
qual a crítica literária (e até os debates jurídico-políticos, vide debate Rui
Barbosa e Carneiro Ribeiro), praticamente, se restringia a querelas gramaticais e filológicas, a literatura de Simões Lopes Neto faz um profundo corte,
por assim dizer, na metodologia e no pensamento que embasava a ideologia
republicana de “educar o povo”.
Ao invés de forçar as pessoas a aprenderem o latim ou a macaquear o
vocabulário de Rui Barbosa ou Coelho Neto, Simões Lopes buscava compreender e preservar a alma popular, e, a partir desse processo, com seus
contos/parábolas, desenvolver o sentimento telúrico, o qual proveria a sede
de conhecer a história e desenvolver a pátria.
Sabemos, todavia, o quanto o “decênio farroupilha” ficou encravado no
imaginário social e histórico do Rio Grande do Sul. Parte desse imaginário,
no ambiente da recém-inaugurada República, dava a impressão negativa de
separatismo. Simões Lopes Neto, cioso desse receio, e ávido de preservar e
divulgar a história e as tradições do Rio Grande do Sul, intentava, no cumprimento de seu programa cívico, integrar e fortalecer tanto o telurismo
gaúcho, quanto o sentimento de brasilidade.
Assim como Euclides da Cunha e Lima Barreto, Simões Lopes Neto
compreendia que ao escritor cabia a missão de colocar seus livros a serviço
do país. O autor de Lendas do sul (1913) foi buscar no pensamento do século XIX as raízes para construir o necessário “instinto de nacionalidade”,
para utilizarmos a tão célebre expressão de Machado de Assis.
Poder-se-ia resumir o Brasil literário (e assim podemos dizer o Brasil
cultural e filosófico) até o tempo de Simões Lopes Neto em dois grandes
blocos, a saber: o romantismo e o real-parnaso-naturalismo. O primeiro
bloco, didaticamente, vai de 1836 a 1870; e o segundo, de 1881 até 1902,
estendendo-se difusamente, mesclando tendências diversas, até as vésperas
do Modernismo.
Historicamente, o Romantismo brasileiro, sobretudo sintetizado em figuras como José de Alencar e Bernardo Guimarães, na prosa, e Gonçalves
Dias e Castro Alves, na poesia, responderam literariamente às questões
relativas à criação de uma língua e consciência nacionais – emancipação
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
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cultural – e à luta pela abolição da escravatura, que representava a modernização econômica e o desenvolvimento das instituições jurídico-políticas,
procurava colocar o Brasil no rol das nações civilizadas.
Os países do Novo Mundo, sobretudo os da América do Sul, buscavam
fabricar uma tradição política, filosófica e artística que justificasse suas
aspirações emancipatórias. Desse modo, as nações européias não-ibéricas,
seduziam, em especial a França, essas jovens nações, oferecendo, no plano
econômico, o liberalismo, e no filosófico-cultural, a ilustração.
O indianismo está, intimamente, ligado à cultura do Romantismo, não
só brasileiro, mas também europeu, que lhe é anterior. De qualquer modo,
encontrou solo fértil em terras brasileiras, devido não só a fatores históricos,
bem como à necessidade de forjar uma mitologia que auxiliasse a criação de
uma identidade nacional.
O pai espiritual do Romantismo brasileiro foi o francês Ferdinand Denis, autor de um Resumo de história literária do Brasil. Tal como nossos
indianistas literários – José de Alencar, principalmente – Denis leu várias
obras etnográficas de viajantes europeus que vieram aos trópicos, inclusive
ao Brasil, e descreveram as sociedades indígenas.
Antes mesmo de Ferdinand Denis, o arcadismo brasileiro já mostrava
pendão indianista, adotando um padrão de comportamento típico do “bom
selvagem”, tal como aparece no Caramuru (1781), de José de Santa Rita
Durão.
A heroicização do índio possui, na literatura brasileira, uma dupla função: cultural e política. De uma só vez, o índio-herói representa o espírito
puro e saudável, inclusive moralmente, do brasileiro, e, ao mesmo tempo, é
pretexto para, conforme a tese de Gonçalves de Magalhães, introdutor do
Romantismo no Brasil, entender que a “Independência do Brasil foi apenas
rebelião triunfante dos antigos donos da terra contra os seus opressores de
três séculos” (Holanda, 1986, p. 17).
José de Alencar, o mais típico dos indianistas, faz uma crítica ao etnocentrismo dos viajantes europeus que escreveram sobre o Brasil. Baseandose no pressuposto de que o índio era um análogo nativo do cavaleiro medieval europeu, o autor de O Guarani (1857), observa que o caráter do selvagem brasileiro foi “deprimido por cronistas e noveleiros ávidos de inventarem monstruosidades para impingi-las ao leitor” (Alencar, 1958, p. 353).
Nosso enunciado problemático é: Dentro desse contexto socioliterário e
dos debates em torno dos problemas e da identidade nacional, em que Simões Lopes Neto contribuiu para inserir-lhe algo da identidade e da cultura
gaúcha sul-rio-grandense? Diante disso, podemos propor a seguinte hipótese: O índio, pois, era o Brasil, assim como para Simões Lopes Neto, o gaúcho era o pampa. Ao tratar das “lendas missioneiras”, o autor procura in18
Carlos F. Sica Diniz

Identidades Ameríndias
corporar um fator comum entre a tradição brasileira e a identidade riograndense, fazendo com que o personagem indígena assuma, dentro da cultura regional do Rio Grande do Sul, o papel de elo integrador da nacionalidade.
Simões Lopes Neto escreveu sete breves textos em prosa, denominados
Argumento de outras lendas – missioneiras, em que encontramos, de modo
mais explícito, a recepção em sua literatura da tradição indígena. As lendas
são as seguintes: A mãe do ouro, Cerros Bravos, A casa de M’Bororé, Zaoris, O Angüera, Mãe mulita e São Sepé/Lunar de Sepé. É possível encontrar
em outros textos, ao longo de sua obra, também, a referência à tradição
indígena. No entender de Sica Diniz (2004), os melhores textos sobre a
recepção indígena em Simões Lopes Neto são: Salamanca do Jarau, A casa
de M’Bororé e São Sepé/Lunar de Sepé. Levando em conta esta posição,
sobre estes textos fundamentais, bem como os acima mencionados, faremos
uma breve análise dos mesmos. Nosso objetivo é apresentar a recepção da
tradição indígena na literatura simoniana, mostrando como o autor recriou
tradições escritas e orais anteriores.
Referências
ALENCAR, José de. Ubirajara. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1958. Obra completa, v. 8.
ARENDT, João Cláudio. Histórias de um Bruxo Velho. Caxias do Sul: UCS, 2004.
CHIAPPINI, Lígia. No entretanto dos tempos. Literatura e história em João Simões Lopes
Neto. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
DINIZ, Carlos Francisco Sica. João Simões Lopes Neto, uma biografia. Porto Alegre: AGE,
2003.
. Recepção da herança indígena na literatura simoniana. Palestra proferida no dia
14/10/2004, na Jornada Cultura Gaúcha e Olhar Simoniano, promovida pelo Grupo de Pesquisa Simoniano da UCPel/Instituto Superior de Filosofia.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. LOPES NETO, João Simões. Lendas do sul. 1. ed. Pelotas:
Echenique, 1913.
. Terra gaúcha. Porto Alegre: Sulina, 1955.
. Contos gauchescos, Lendas do sul, Casos do Romualdo. Edição crítica por Lígia
Chiappini. Rio Janeiro: Presença, 1988.
. In: MAGALHÃES, Gonçalves de. Suspiros poéticos e saudades. 5. ed. Brasília:
ILN/UnB, 1986.
VERÍSSIMO, José. A educação nacional. Crítica. Rio de Janeiro: Agir, 1958.
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
19
Recepção da tradição indígena
na literatura de Simões Lopes
Neto
Agemir Bavaresco
Luís Borges
Mateus Weizenmann*

A Mãe do Ouro
Segundo Câmara Cascudo, o verbete “mãe do ouro” refere-se a “um mito, inicialmente, meteorológico, ligado aos protomitos ígneos, posteriormente, ao ciclo do ouro. No Rio Grande do Sul, é informe, agindo com trovões,
fogo, vento, dando o rumo da mudança” (Câmara Cascudo, 1993, p. 455).
Temos três sentidos nesta definição: (a) um ligado ao fogo; (b) outro relacionado ao metal ouro; (c) e uma referência específica ao Rio Grande do Sul.
Aqui, o verbete está ligado à tempestade, entendo-se que o fogo é associado
aos raios. O importante a ressaltar é que ele dá o rumo da mudança.
Vejamos a estrutura do texto:
Primeira parte – Há uma metamorfose do corpo humano em serra de
pedra: os ossos viram pura pedra; a carne, em terra negra; os cabelos, em
mato; o sangue, em cascatinhas e vertentes; os buracos do corpo (boca e
olhos, nariz e ouvidos), em lugares ocados; as veias em ferro; os nervos em
ouro e “são os veeiros amarelos que se entranham por aí abaixo, adentro da
* Membros do Grupo de Filosofia Intercultural da Universidade Católica de Pelotas
(UCPel) / Instituto Superior de Filosofia (ISF).
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Carlos F. Sica Diniz

Identidades Ameríndias
crosta, tal e qual como os nervos estão entranhados na carnadura da gente”
(S, 177, 15).2
2
Para as citações dos textos de Simões Lopes Neto utilizaremos a edição crítica estabelecida por Lígia Chiappini (1988), conforme referência bibliográfica. A abreviação será a seguinte: “S”, número da página e linha.
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
21
Segunda parte – A alma que governa tudo é a “Mãe do Ouro”. Ela tem
três funções: (a) é imortal e defende “os nervos dos castigados, os veeiros
da fortuna”. O termo veeiro tem dois significados: Trata-se de uma fenda ou
filão e também pode ser o imposto que se pagava à coroa portuguesa na
exploração de uma mina. Aqui, o veio da fortuna é o ouro entranhado no
interior do cerro; (b) a “Mãe do Ouro” é uma entidade protetora que no “dia
do perdão” auxilia para que “cada um ache o que seu é”; (c) ela é mãe “que
chama socorro”, ou seja, é uma intercessora diante dos castigos advindos
dos temporais (S, 177, 20).
Terceira parte – A “Mãe do Ouro” muda de lugar, quando “rebenta um
cerro”: De noite, diante do fogo dos raios, ela muda para outro lugar; ao
meio-dia, em pleno sol, não se sabe qual o lugar que ela toma, apenas vislumbra-se o rumo (S, 177, 25).
O texto faz remontar ao contexto histórico na região missioneira em que
os portugueses e espanhóis destruíram aquelas reduções na busca de ouro.
Há, também, uma procura de explicação do fenômeno natural, buscando a
causa dos cerros, raios, trovões. A originalidade simoniana, na “Mãe do
Ouro”, é ir além da etiologia, para dar-lhe uma dimensão histórica, ou seja,
mostrar a resistência indígena face ao invasor. A tradição indígena permanece no texto, no que diz respeito à simbiose corpo-natureza.
O grande símbolo é a “Mãe do Ouro”, “que governa tudo, que não se
sabe o que é, que é a Alma, que não morreu” (S, 177, 17). Ela é a alma que
mantém a fusão do corpo-natureza, a proximidade com a natureza, a simbiose com o mundo.
Pode-se estabelecer uma aproximação entre a “Mãe do Ouro” e Maria,
pois ambas são femininas e têm uma função de prestar socorro aos castigados. O tema do castigo está vinculado ao do pecado e perdão. Trata-se da
influência cristã jesuítica, que organizou os povos indígenas em reduções.
Temos o tema do castigo e castigados que perpassa o texto. Inicialmente, a explicação da serra de pedra encontra-se num “castigo do céu” que
endureceu de repente o cerro (S, 177, 5). Depois, a “Mãe do Ouro” é isenta
do castigo, por isso pode defender os castigados (os nervos, os veios de
ouro) (S, 17, 20). E a explicação final afirma que a causa dos raios, trovões
e ventos são o castigo. Porém, a “Mãe do Ouro”, como a alma imortal está
junto à serra de pedra, sempre clamando por socorro.
Cerros bravos
Este texto continua a desenvolver o mesmo tema do anterior, ou seja, a
união entre natureza e corpo, os saqueadores de ouro, os cerros revoltados e
22
Carlos F. Sica Diniz
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Identidades Ameríndias
o castigo. O pequeno texto que é o mais breve dentre todas as “missioneiras”, é composto de um parágrafo, uma frase inicial e uma final. A primeira
frase enuncia os mortos pelo castigo e aqueles que estão semivivos, ainda
cambaleantes, resistem em meio às dores. Mesmo assim, alguns destes insistem em cobiçar o ouro. Então, os cerros enfurecem-se e resistem face aos
saqueadores, pois o ouro é como os seus nervos que, ao serem tirados, provocam dor (S, 177, 30). Aqui, fica explícita a referência aos cobiçadores de
ouro que arrancam à força o ouro dos cerros. Interessante perceber que a
revolta dos cerros é devida à dor causada neles. É como se, ao tirarem o
ouro, estivessem matando o corpo-natureza.
A revolta dos cerros é tamanha contra os saqueadores que, se estes teimam, acabam morrendo. Os cerros aqui, de fato, se tornam bravos, pois reagem diante do inimigo como podem: “por força do encantamento somem-se”,
ou “atiram temporais de uns para outros tão medonhos, que eriçam o cabelo e
prendem o passo dos homens, mesmo os mais desabusados” (S, 177, 35).
Na constatação de Granada (1896, p. 150),
raro é o cerro, penhasco e escarpado, desde a Cordilheira dos Andes até às
Comarcas do Uruguai, Paraná e Paraguai, que não tenha sua salamanca ou
cova encantada, que não contenha considerável riqueza de ouro e prata em
suas entranhas, que não se embraveça e dê bramidos estrepitosos.
A casa de M’bororé
Segundo Granada (1896), M’bororé é um nome guarani que significa casa encantada das antigas missões jesuíticas. A origem desta lenda estaria ligada à violenta expulsão dos jesuítas decretada por Carlos III, a qual provocou a idéia de um provável achado de tesouros. Então, começou a supor-se,
erradamente, que os jesuítas esconderam, no tempo da expulsão, grandes
riquezas. Porém, segundo Granada (idem), os padres da Companhia de Jesus
foram surpreendidos, de tal forma que não foi possível tomar nenhuma riqueza, nem falar com ninguém, nem sequer despedir-se de seus neófitos; foram
conduzidos até Montevidéu e Buenos Aires, onde foram embarcados para a
Europa. De modo que, ainda que tivessem tido riquezas, não teriam podido
escondê-las. Porém, o fato é que nos destruídos povos das antigas missões
havia, por todas as partes, junto às árvores e os muros, poços escavados com
a esperança de tirar alguma porção de ouro ou de prata maciços. “Por isso
mesmo, em meio aos imensos bosques que existem no território das Missões,
acha-se, segundo as imaginações tradicionais de seus habitantes, a casa branca sem portas nem janelas de M’bororé, onde os jesuítas expulsos esconderam os riquíssimos tesouros que possuíam” (Granada, 1896, p. 155-156).
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
23
Para Granada (1896, p. 157), “as riquezas dos jesuítas que se supõem
escondidas na casa branca de M’bororé, nunca existiram”. Parte delas foi
usada nos seus templos, e outras partes foram enviadas à Europa para as
finalidades de sua Ordem. “A mãe do ouro e da prata, acrescenta o autor,
era a força de trabalho aplicado com método e esmero” (idem, ibidem).
Esta lenda, na versão simoniana, pode ser dividida em duas partes:
a. A primeira descreve um mato grosso e no interior do mesmo há uma
“casa de pedra branca, branca como se encaliçada, e sem porta em nenhum lado nem janela em nenhuma altura” (S, 178, 10). Dentro desta
casa estão as barras de ouro e prata, sendo que em cima das mesmas estão objetos religiosos em ouro e nos corredores da casa estão sacos de
moedas de ouro.
b. A segunda fala daquele que faz, dia e noite, a ronda da casa branca.
Trata-se de “um índio velho, cacique que foi, M’bororé de nome, amigo
dos santos padres das Sete Missões da serra que dá vertente para o Uruguai” (S, 178, 20).
Nesta segunda parte, há uma nova interpretação em relação a Granada
(1896), pois Simões Lopes atribui o nome de M’bororé a um índio. Ora,
este, diante da expulsão dos padres jesuítas, imediatamente, junto com os
seus guerreiros, carregou, de todos os lugares, o ouro e a prata para a casa
branca. De fato, os índios não tinham interesse nos metais preciosos, altamente cobiçados pelos brancos, a tal ponto que estes “matavam os nascidos
aqui, e matavam-se uns aos outros” (S, 178, 25), para apoderarem-se do
ouro e da prata.
Qual era, então, o interesse de M’bororé em guardar essas arrobas?
Porque “era amigo dos santos padres das Sete Missões, guardou tudo e espera por eles, rondando a casa branca [...] ronda e espera...” (S, 178, 30).
Zaoris
Simões Lopes Neto, no final desta lenda, coloca uma nota explicativa
que diz o seguinte: “Em relação ao argumento destas lendas – 1.4 – reportamo-nos ao raciocinado estudo do Sr. Pe. C. Teschauer, sob o título – Lenda do Ouro – (Rev. do Instituto Histórico do Ceará, tomo 25, 1911)”
(S, 179, 40). Aqui, encontramos a fonte em que o autor se baseou para elaborar essas primeiras quatro lendas. Aliás, há de se notar que Simões Lopes
Neto, como se verá adiante, fará referência à fonte pesquisada para elaborar
essas lendas e o próprio poema Lunar de Sepé.
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Carlos F. Sica Diniz
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Identidades Ameríndias
Encontramos em Granada (1896) a definição do termo “zaoris”. Este
seria um termo herdado dos mouros, pois o termo “zaori” parece ser arábico.3 “Zaori” equivale ao que pratica a geomancia, sendo esta uma magia e
adivinhação supersticiosa através dos corpos terrestres, ou com linhas, círculos ou pontos feitos no chão. Esta definição reporta-se ao Diccionario de
la Lengua Castellana da Real Academia Española (Granada, 1896, p. 164,
nota 1). O Dicionário Houaiss, complementa: Geomancia é a “adivinhação
através das figuras formadas por um punhado de terra que se atira ao acaso
sobre o chão ou qualquer outra superfície”.
Na Península Ibérica, existiam estes zaoris, espécie de bruxos, que foram levados ao novo mundo. São pessoas dotadas da faculdade de ver
através de corpos opacos, de descobrir o que está oculto, mesmo que esteja debaixo da terra. São os olhos que lhes permitem a proeza da adivinhação, a tal ponto que penetram paredes e a profundidade da terra. Sua principal função é descobrir minas e tesouros. A tradição popular afirma que
Deus dá esta graça aos que nascem na Sexta-Feira Santa. No entanto, isto
deve ser, antes, obra do gênio do mal. Prossegue, Granada (1896, p. 165),
dizendo que os arquivos da Inquisição são a prova de que o zaori recebe
do diabo a faculdade de ver na obscuridade através dos corpos opacos. “O
fogo e a luz emanados do sol que o índio adora, os quais também devem
ser uma das formas e disfarces infinitos com que o diabo oculta sua figura
para assombrar e enlouquecer o mundo com invenções estupendas, formou seus zahoris”. O autor descreve casos de mulatas escravas de Santiago do Chile e Lima que se tornaram zaoris através do influxo do sol ou de
um raio. Enfim, na América do Sul, os zaoris tiveram um espaço de ação
muito grande, pois deveriam se ocupar em descobrir os tesouros enterrados pelos vassalos dos Incas, quando da invasão dos espanhóis, ou então,
por ocasião da expulsão dos jesuítas em 1768 (Granada, 1896, p. 167).
Simões Lopes Neto conta esta lenda na ótica do cristianismo, dando
uma reinterpretação com personagens, tais como São Miguel, a Virgem
Maria e os Anjos da Guarda. O texto pode ser dividido em três partes:
a. O julgamento – Na Sexta-Feira Santa, ocorreu o julgamento dos carrascos que mataram Jesus Cristo. O arcanjo Miguel recebe a ordem de
executar a sentença através dos anjos que guardavam a cruz. Da couraça de ouro de Miguel emana um brilho luzente.
b. As crianças assinaladas – As pessoas, já nascidas, estavam todas condenadas pelo pecado de ter maltratado Jesus Cristo, exceto as crianças
3
Daniel Granada escreve zahoris com “h”, porém, nós o usaremos sem, para seguir a versão simoniana.
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
25
ainda não nascidas, pois não tinham culpa do ocorrido. Porém, o arcanjo Miguel esqueceu de avisar os anjos da guarda de não castigarem as
crianças inocentes. Então, a Virgem Maria fez um milagre. Fez com
que o “vento das asas de prata do arcanjo ventasse sobre os olhos dos
que fossem nascendo nesse dia santo” (S, 179, 20). Assim, todos os
olhos das crianças, nascidas na Sexta-Feira Santa, ficaram marcados,
sendo dotados, deste modo, de uma faculdade especial: “Podiam ver
através da água até o seu fundo, e através das muralhas e montanhas até
o outro lado delas, porque tudo ficou transparente para eles” (S, 179,
24).
c. Os zaoris – Ora, como o arcanjo permaneceu na terra, o dom da faculdade de ver no interior de materiais físicos, ficou aqui, e, em todas as
sextas-feiras santas, esse mesmo fenômeno se repete. Então, “para esses, nada existe escondido ou enterrado que os seus olhos não vejam,
como os dos outros homens, de dia claro; e isso porque nasceram em
Sexta-Feira Santa: são os zaoris” (S, 179, 30).
Assim, todos aqueles que nascem em uma Sexta-Feira da Paixão são
zaoris. Há uma cristianização deste mito de origem árabe, que, na sua versão espanhola, apresenta a contradição entre Deus e o diabo, pois, ao mesmo tempo, atribui-se a eles o dom de conceder aos zaoris a faculdade de ver
no interior do físico. Na versão simoniana, ocorre uma inversão: Não é mais
o demônio que forma os zaoris, senão que o arcanjo Miguel. Portanto, o
zaori, que era um adivinho pagão, torna-se uma criança inocente: “Em todas
as Sextas-Feiras Santas procuram os olhos das crianças recém-nascidas, que
então ficam com o dom de ver no escuro e através de qualquer tapamento
de pedra, madeira, ou ferro” (S, 179, 27). Os seus olhos, com brilho mágico
e misterioso, possuem o poder de ver através de corpos opacos, localizando
tesouros escondidos, tais como barras de ouro ou prata, jóias, pedras preciosas etc.
Simões Lopes Neto opera uma dupla metamorfose na lenda original:
a) De um lado, cristianiza e vincula a lenda à figura do arcanjo Miguel,
muito venerado nas Missões, por influência, obviamente, dos padres jesuítas; b) de outro, também esta lenda que se encontra na região do Rio da
Prata, Chile, Paraguai e Rio Grande do Sul, diz respeito à localização das
riquezas e tesouros enterrados pelos índios, com a finalidade de salvaguardar seu ouro dos ibéricos. Portanto, a lenda é relida a partir do contexto sul-americano e, especificamente, situado na região missioneira, de
onde vem a tradição indígena.
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Carlos F. Sica Diniz
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Identidades Ameríndias
Angüera: a metamorfose do índio
Angüera é, segundo Granada (1896, p. 485), um termo guarani que significa fantasma. Os guaranis temiam muito os angüeras, almas saídas dos
corpos dos defuntos. Os líderes guaranis para fazerem-se temer pelos índios, ameaçavam os mesmos com fantasmas que sairiam das cavernas com
enormes espadas para vingarem-se, caso não os obedecessem.
Simões Lopes Neto conta esta lenda assim:
a. A cristianização do índio: Segunda a versão de Granada (1896), Angüera é um fantasma, anônimo. Simões Lopes Neto, porém, personifica
num índio o nome de Angüera, dando-lhe as características físicas de
“grande, forçudo e valente”, porém, é “triste, carrancudo e calado”
(S, 179, 35). É interessante observar que o autor afirma que Angüera,
“enquanto foi pagão” tinha esse estado de espírito tristonho. De fato,
Simões Lopes Neto deixa veicular o preconceito cultural da época:
O índio é um pagão em relação ao europeu cristão. Ser pagão era um
conceito depreciativo. Depois, ao encontrar-se com os padres jesuítas,
foi por eles batizado. E, como era costume, na época, trocava-se o nome
ao receber o sacramento do Batismo. Ele foi chamado de Generoso.
Ora, ao tornar-se cristão, acontece uma mudança: “Angüera, que era
triste, deixou a casca da tristura, e como Generoso, de nome bento ficou
prazenteiro” (S, 180, 5). Percebe-se que há uma diferenciação entre o
estágio de índio-pagão e índio-cristão, dando a entender que o último é
melhor que o anterior. Ele segue todo o itinerário de um neófito, recebendo todos os sacramentos até à morte.
b. Alma errante: Depois de morto, “sua alma saiu-lhe do corpo”, começa,
então, uma grande “aventura entre os vivos”, pois, entra nas casas e
provoca ruídos; toca viola, assobia, sopra a chama do fogo etc. A alma
do Generoso é divertida e brincalhona e continua a vagar no cotidiano
das pessoas.
c. A historização da lenda: Generoso entrava nos salões de dança, “intrometia-se e sapateava também, sem ser visto”. Aqui, Simões Lopes
Neto faz uma referência explícita à história do Rio Grande do Sul ao
escrever que o índio Generoso participava das danças no tempo dos
Farrapos (S, 180, 25).
Vê-se que Angüera passa por várias metamorfoses: religiosa (pagãocristão), existencial (triste-alegre), histórica (Sete Povos-Guerra dos Farrapos) e metafísica (corpo-alma). Pode-se dizer que a tradição indígena permanece viva em todo o tempo, tecendo a formação do gaúcho, dando-lhe
alma para estar em constante mutação, sem perder a sua identidade.
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
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Mãe mulita4
Mito e literatura
Costuma-se chamar “mito” a um relato fabuloso, que abriga a noção de
narrativa tradicional, geralmente, de conteúdo religioso ou a ele relacionado. Os mitos, com freqüência, referem-se a grandes feitos heróicos, que são
considerados o fundamento ou o começo de uma comunidade ou mesmo de
todo o gênero humano. É comum apresentarem também como motivo os
fenômenos da natureza, explicando-os de maneira alegórica, como é o caso
das ninhadas do tatu-mulita.
A narração mitológica envolve, basicamente, pretensos acontecimentos
relativos a épocas primordiais, antes do surgimento dos homens, como o
caso dos mitos de origem (cosmogônicos), ou dos “primeiros” homens,
como o de Adão e Eva. Uma das características do mito é que o acontecimento fabuloso narrado ocorreu em um tempo passado impreciso ou muito
remoto, como os tempos bíblicos.
O mito aparece e funciona como mediação entre o sagrado e o profano,
condição necessária à ordem do mundo e às relações entre os seres e os
fenômenos naturais. Sendo o homem um ser de profunda relação com o
sagrado, logo pensadores e estudiosos manifestaram interesse por exame
mais acurado dos mitos. Dois autores deram especial atenção ao problema
do mito: Vico e Schelling.
Giovani Battista Vico (1668-1744), em sua obra Principi di una scienza
nuova intorno alla comuna natura delle nazioni (1744), geralmente citada
apenas como Scienza nuova, fala em “conhecimento fantástico” ou “formas
fantásticas de conhecimento”, que são, respectivamente, a língua e a poesia.
Pretende, a fim de construir sua teoria epistemológica, deduzir da etimologia das palavras um saber sobre a história primitiva em que as línguas se
formaram. Para ele, a poesia teria sido a primeira forma de comunicação da
humanidade, uma vez que os povos antigos eram essencialmente poéticos.
Daí provém seu interesse pelos mitos. Vico rejeita a idéia, dominante nos
séculos XVII e XVIII, de que as narrativas mitológicas seriam alegorias
filosóficas, reconhecendo, entretanto, que nelas há resquícios de verdades
históricas (Cf. Abrão, 1999b, p. 264-266).
Friedrich Schelling (1775-1854), durante toda a sua vida se interessou
por temas relativos à metafísica, teologia, religião e mitologia. Teve seus
cursos sobre Filosofia da Revelação e Filosofia da Mitologia proferidos em
4
O título original deste ensaio é A mãe mulita, de Simões Lopes Neto, através de uma
hermenêutica simbólica da prosopopéia.
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Carlos F. Sica Diniz
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Identidades Ameríndias
Berlim, publicados, postumamente, por seu filho. Nesses cursos e noutras
obras, expôs uma preocupação teístico-metafísica, em que busca integrar
espírito e natureza. Seu sistema filosófico se constitui numa mediação entre o
idealismo subjetivo de Kant e Fichte e o idealismo objetivo de Hegel. O sistema de identidade do “Eu” e o “Não-Eu”, proposto por Schelling, apresentase de modo que o Absoluto seja a um só tempo sujeito e objeto. Em seu pensamento, há um vivo senso de arte. Sua concepção do Absoluto é a unidade
entre espírito e natureza, que se revela na história, na arte, na religião e na
mitologia. Em relação a este último ponto, Schelling estimou que os mitos
são uma forma de pensamento que representa um dos modos como se revela
o Absoluto, através do processo histórico (Cf. Abrão, 1999a, p. 341-344).
A análise científica dos mitos começou com o antropólogo Friedrich
Max Müller. Sua explicação a respeito dos mitos era que eles representavam a descrição poética de fatos da natureza. Mais tarde, James Frazer, em
sua obra monumental, em 12 volumes, The golden bough (1890-1915),
considerou os mitos explicações narrativas de ritos, cujo sentido já não era
compreendido pelos que o celebravam.
Na antropologia moderna, entretanto, a essas hermenêuticas prevaleceram as teorias estruturalistas de Levi-Strauss, que identificam, nos relatos
mitológicos, o reflexo de determinadas estruturas sociais, e a psicanálise de
Freud, que entende os mitos como racionalizações da mente primitiva em
face dos conflitos do indivíduo e deste com a família e a sociedade.
Será com a Renascença que a mitologia, sobretudo grega, começa a ser
importante para a literatura propriamente dita, fornecendo motivos, personagens e enredos. Será, todavia, com o advento da Ilustração que as narrativas
mitológicas servirão a diferentes fins no uso do texto literário. Os mitos se
constituíram então num vasto sistema de referências que é familiar a todos os
homens cultos daquele período. As metáforas míticas oferecem um sentido
imediatamente reconhecível para os leitores e que, portanto, se torna um recurso amplamente utilizado pelos escritores dos séculos XVI a XVIII.
Foi, conforme já nos referimos, durante o Iluminismo que mito e literatura se imbricaram definitivamente para diferentes finalidades. Voltaire, por
exemplo, escreveu seu Édipo (1718) para denunciar o poder do clero na
França. Goethe, retomando um anônimo do século XVI, escreve Fausto
(1808), uma metáfora de recriação prometéica.
Lançando um breve olhar sobre importantes escritores do século XX, observa-se a permanência e a estilização literária das narrativas míticas. O mito
de Electra (1903) pode ser identificado na obra de Hugo von Hoffmannsthal,
o de Orestes em As moscas (1943), de Sartre; o de Medéia em alguns argumentos das peças de Robinson Jeffers; e Antígona, obra de Sófocles, em sua
força de crítica política, encontra um sentido redivivo no teatro de Jean Cocteau e Brecht.
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
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Fábula, mito, lenda, superstição e estilização
literária
A fábula, como forma literária específica, é uma narração breve, em
prosa ou verso, cujos personagens são, geralmente, animais e, sob uma ação
alegórica, encerra uma instrução, um princípio geral ético, político ou literário, que se depreende naturalmente do caso narrado. A fábula comporta
assim duas partes, a que La Fontaine chamou corpo e alma: a narrativa e a
moralidade. Aquela trabalha as imagens, que constituem a forma sensível, o
corpo dinâmico e figurativo da ação; esta opera com conceitos, que são “a
verdade falando aos homens”. Deve-se salientar, porém, que para o leitor
moderno a literariedade possui precedência sobre o ensinamento moral.
Enfatize-se que, para o gosto moderno, a narrativa deve ser o elemento dominante. A moralidade ou significação alegórica anima o corpo narrativo,
mas de maneira velada, ficando nas entrelinhas. Os antigos tinham um ponto de vista diferente. Para eles, a parte filosófica era o drama, a vivacidade
das imagens para chegar mais diretamente ao alvo moral. Quanto mais se
avança na história da fábula, mais se vê decrescer o tom didático em proveito do entrecho.
A fábula acabou por tornar-se um gênero popular no século XVIII. La
Fontaine teve muitos seguidores: Jean-Pierre de Florian (França); Tomás
Iriarte (Espanha); George Bertolá (Itália); Bocage (Portugal), que traduziu
La Fontaine em versos; John Gay (Inglaterra). Estes autores elevam a fábula, originalmente um gênero popular, baseado em fontes folclóricas, a uma
literatura sofisticada, geralmente, de cunho filosófico-moral ou de crítica
política.
Na Alemanha, Lessing reagiu contra a hiperliteralização da fábula,
apresentando em Fabeln (1759) uma introdução em que expõe essa excessiva literalização como perversão do gênero e uma traição de suas raízes.
Apesar disso, foi Christian Gellert, contemporâneo de Lessing, o fabulista
mais popular entre os germânicos, com suas histórias engraçadas, conforme
os prejuízos da época, motejando mulheres, pobres e burgueses. Contudo, o
melhor escritor de fábulas do século XIX foi o russo Ivan Krilov. Este escritor russo foi também jornalista satírico e dramaturgo. Após traduzir La
Fontaine, em 1805, escreveu, sob sua influência, Basni (1809). Sua prosa
realista é viva e saborosa, recheada de provérbios populares, o que fornece a
seu texto uma grande força epigramática. Retirando a fábula dos salões
luxuosos, devolveu-a ao povo, no vigor telúrico do pitoresco campônio
russo. Todas essas qualidades lhe possibilitam êxito imediato.
Tendo, pois, a fábula uma tradição que atravessou os tempos, vinda do
Oriente e da Antigüidade Clássica, chegou até a Europa moderna e contem30
Carlos F. Sica Diniz
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Identidades Ameríndias
porânea. Também a língua portuguesa e, inclusive, o Brasil sofreram sua
influência, embora neste último caso, esta só se fez sentir tardiamente.
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
31
Indo buscar as esporádicas contribuições dos fabulistas em língua portuguesa, encontramos, no século XVI, Sá de Miranda, que compôs O rato
do campo e o rato da cidade e O cavalo e o cervo. Em Portugal, depois de
Bocage, o poeta Almeida Garrett publicou Fábulas e contos (1853). Em
terras lusas, todavia, o melhor fabulista é Cabral do Nascimento, também
poeta, cuja obra Fábulas apareceu somente uma centúria após.
No Brasil, destarte a longa vigência do cânone lingüístico e temático
dos clássicos portugueses e a posterior influência francesa no Romantismo,
já em 1860, a fábula fez-se gênero de destaque com a obra Fábulas, de Luiz
de Vasconcelos, que introduziu a fauna e a flora no contexto da estrutura
narrativa da fábula, buscando nacionalizá-la.
No campo do estudo, registro e adaptação de fábulas, lendas e superstições brasileiras, estilizadas literariamente, ninguém superou os esforços de
Monteiro Lobato, ainda que tenha tido predecessores e pósteros ilustres, tais
como J. Simões Lopes Neto, com suas Lendas do sul (1913), e Catulo da
Paixão Cearense, com Fábulas e alegorias (1945).
Lígia Chiappini afirma que a tradição oral, fonte dos mitos, lendas,
fábulas e superstições, transformou-se em conto culto em J. Simões Lopes
Neto (Chiappini, 1988, p. 150). Para ela: “Lendas do sul é um livro que
reúne narrativas diversas e o material folclórico que o sustenta, não pode
ser, em bloco, chamado de lendas, pelo contrário, estas se mesclam com
mitos e superstições, no mínimo” (Idem, ibidem).
A pesquisadora, ao tentar definir o tipo de material com que J. Simões Lopes Neto trabalha nas Lendas do sul, depara-se com distinções
pouco claras entre a fábula, o mito, a lenda e a superstição. Chiappini não
está interessada nessas classificações em si mesmas, senão naquilo em que
elas podem auxiliar na compreensão de sua poética (Idem, p. 151). Ainda,
para a pesquisadora, lenda é uma história vinculada à hagiografia, aplicando-se a classificação de lenda a uma história fabulosa dotada de fundo
religioso.
Seguindo Afonso Arinos, em suas Lendas e tradições brasileiras
(1917), Chiappini entende que, para distinguir lenda e mito, deve-se fixar
no caráter religioso da primeira, enquanto, embora o segundo também
transite por aí, se prenda mais à narrativa sobre deuses e heróis epopéicos.
Outro aspecto importante é que ela considera mito aquelas histórias que
indagam pelas origens dos fenômenos naturais (Idem, p. 153).
A autora de No entretanto dos tempos (1988), referindo-se ao folclorista Câmara Cascudo, em Literatura oral no Brasil, endossa sua própria
constatação, quanto à confusão terminológica. A fim de propiciar uma
solução operativa a essa questão, recorre à autoridade de Mircea Eliade:
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Carlos F. Sica Diniz
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Identidades Ameríndias
[...] o mito é uma história sagrada que conta as origens remotas de um
povo. Uma história do illo tempore, sempre repetida, retoma pelo rito, enquanto a crença subsista. A mesma história se transforma em ficção, “história falsa”, quando morre a crença que sustentava a sua verdade. O mito
passa a sobreviver, então, pela literatura, como os mitos gregos, imortalizados por Homero, numa época em que começavam a morrer enquanto
histórias sagradas (Idem, p. 153).
Chiappini continua sua exposição, afirmando a distinção entre os vários
tipos de narrativas que se alimentam em sua fonte das raízes da tradição
folclórica (narrativas míticas, lendárias ou fabulísticas) e a superstição,
conforme Câmara Cascudo:
O que Câmara Cascudo considera mito (por exemplo, os “demônios infernais”, espalhados pela selva brasileira, “deuses da floresta tropical”, que o
missionário classificou como forças demoníacas, tais como o Curupira, o
Mboitatá, o Igupiara de que fala Anchieta, já em 1560), um autor como
Ambrozetti, em Supersticiones y Leyendas del Rio de la Plata, dá como
supertição (Idem, p. 154).
E adiante:
Assim, mito, lenda e superstição se aparentam, mas se distinguem. Mas
essas distinções, no fundo, se complicam em traços comuns e recorrentes.
Se insisto em aproveitar o conceito de superstição para introduzir traços
distintivos entre fenômenos que Câmara Cascudo chama genericamente de
mitos, no folclore brasileiro, é porque em Simões Lopes, essa distinção vai
ser útil [...] (Idem, p. 154-155).
De fato, também julgamos de muita utilidade essas distinções e classificações, pois, através delas, podemos averiguar a natureza do texto, suas
fontes e o estilo do registro lingüístico usado por J. Simões Lopes Neto.
Sinopse de Mãe mulita
Desde a epígrafe, retirada do Cancioneiro guasca (1910), a história se
constrói na tentativa de explicar o nascimento das ninhadas do tatu-mulita,
isto é, porque, a cada vez, nascem somente machos ou somente fêmeas e
nunca ninhadas mistas. Isto nos é dito na reveladora expressão do narrador: “Este bicho foi mandado ficar assim [...]”.
Tendo Maria e José fugido para o Egito, a fim de escaparem da crueldade de Herodes, a certa altura do caminho, foram alcançados pela tropa
do rei, que pretendia matar o Menino Jesus e aprisionar seus santos pais.
A Virgem, entretanto, entre rogos e choro, consegue demover o centurião
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
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de mau intento e deu-lhe como paga um burro petiço. Vendo-se sem o
animal, Maria e José prosseguiram a viagem, a custo, empurrando o carrinho em que ia dormindo, muito sossegado, o Menino Jesus.
A tropa do rei ia voltar, porém, o burro empacou. Depois de ser sovado
pelo centurião e de apanhar de todos os soldados, continuou imóvel. Sentindo-se enganado, o centurião, furioso, resolveu voltar e persistir na empreitada malévola. A Virgem e São José não viam o que estava acontecendo, mas ouviam os cascos dos cavalos e as blasfêmias, assim, apuravam
forças, empurrando o carrinho.
Então, o Menino Jesus acordou e teve fome, mas devido ao cansaço e à
aflição, o seio de Maria não teve leite. Ela chorava de pesar e o Menino, de
fome. Nisto, por ali passava uma mulita e Nossa Senhora lhe disse:
– Mulita, se tens filhos, dá-me uma gota do teu leite para o meu filho!...
A mulita deu a gota de leite, mas era pouco e o Menino continuou a
chorar. Chorou de pesar também a Virgem, e disse:
– Mulita, chama as tuas filhas, para cada uma dar uma gota de leite para
o meu filho!...
A ninhada era grande, mas as filhas da mulita, eram poucas. Todavia,
cada uma deu gotas de leite para alimentar o Menino, que se calou farto.
Vendo que o centurião e sua tropa se aproximavam, Maria, muito aflita,
rogou:
– Mulita, dá-me tua força, para puxar o carro do meu filho!... E a mulita
puxou, mas era tão pouca sua força, que de nada adiantou. E os soldados
cada vez mais perto...
Nossa Senhora chorou de medo e tornou a dizer:
– Mulita, chama os teus filhos, para darem a sua força e correrem, puxando o carro do meu filho!...
– Senhora Virgem, respondeu a mulita, a minha ninhada é grande, porém nela os filhos são poucos...
Mesmo assim, o carrinho puxado pelos filhos da mulita ia andando depressa. Porquanto sejam os cavalos maiores que as mulitas, estes iam vencendo terreno e se aproximando. Nesse momento, levantou-se tremendo
temporal de areia, que obrigou a tropa perseguidora a dispersar-se e desistir.
Quando já estava salvo o Menino, Nossa Senhora tornou a dizer:
– Mulita, em memória das gotas de leite das tuas filhas, em memória da
força dos teus filhos, deste dia em diante, de cada vez que deres ninhadas,
será sempre ou só de fêmeas ou só de machos!...
Nisso, de bom grado, concordou a mulita, solicitando que a sua comadre, a tatua, tivesse também ninhadas como as suas, com o que a Virgem
prontamente anuiu.
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Carlos F. Sica Diniz
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Identidades Ameríndias
Estrutura de Mãe mulita e breve hermenêutica
A Mãe mulita é um texto de natureza híbrida. Conforme vimos, as classificações que se referem a mito, fábula e superstições são bastante imprecisas e, de modo geral, são aplicadas indiscriminadamente. Mãe mulita possui
algo do mito, se pensarmos que é uma explicação alegórica dos fenômenos
naturais. Não deixa de ser fábula pela presença de animais antropomorfizados e também é superstição, se a esse termo concebermos o sentido de
crendice popular. Deste modo, verificamos que, no caso de Mãe mulita,
especificamente, o autor quis guardar o mais intocado possível o registro do
argumento contra sua estilização literária, o que nos é revelado pela seguinte declaração: “O argumento destas duas lendas [Angüera e Mãe mulita]
está desenvolvido baseado na tradição longínqua e é de notar a acomodação
bizarra dos elementos do seu entrecho” (Lopes Neto, 1988, p. 182).
A estrutura do texto, dado o arranjo ingênuo dos elementos do entrecho,
é bem simples: (1) intróito, (2) desenvolvimento, (3) clímax e (4) desenlace.
(1) No intróito, dá-se o motivo da história, isto é, explicam-se as ninhadas do tatu-mulita. (2) O desenvolvimento ou trama é aquela parte em que a
harmonia é quebrada. A Sagrada Família está em fuga para o Egito, até aqui
há equilíbrio. A fome do menino Jesus e os soldados em seu encalço são os
fatores que complicam a trama. (3) O clímax ocorre quando aparece a mulita – é o auge da ação. (4) O desenlace ou desfecho acontece quando, passado o perigo através da providencial tempestade de areia, todos estão em
segurança e contentes.
O intróito propõe um sentido para a história, o desenvolvimento é a história propriamente dita, que necessita de um clímax e de uma conclusão.
Mãe mulita é mito no intróito, é lenda no desenvolvimento, é superstição na
conclusão e é narrativa fabulística no contexto geral de sua literariedade.
Examinemos mais acuradamente este último ponto.
Pelo exposto, a fábula compõe-se de duas partes: a forma exterior (a literariedade) e a interna (o ensinamento moral). Mãe mulita pode ser também analisada sob esta hipótese, uma vez que em sua estrutura híbrida prevalece a personificação de animais.
O esquema simbólico deste texto se reflete na própria estrutura narrativa, funcionando não apenas como fio condutor do entrecho, mas também
servindo para a construção de uma chave hermenêutica. Vejamos o paralelismo entre estrutura narrativa (1) e estrutura metafórica (2): o intróito (1)
vai desde a abertura do texto até o empacar do burro petiço (2), que desencadeia a desarmonia; o desenvolvimento da ação (1) se passa todo em função das sucessivas súplicas da Virgem à Mãe mulita e seus respectivos ajutórios (2); daí em diante, temos o clímax (1), representado pela aproximação dos cavalos dos perseguidores (2) e o desfecho (1), em que aparece a
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providencial tempestade (2), que dispersou a tropa, pôs em segurança a
Sagrada Família e, alegoricamente, explica o nascimento das ninhadas de
tatu. Além disso, cada um desses símbolos (burro, tatu e tempestade), respeitando a predominância fabulística da narrativa, encerra um ensinamento
moral.
O burro
O burro é um dos animais que mais contraditoriamente são interpretados entre as diversas culturas e mesmo dentro delas. A tradição judaicocristã é, em geral, favorável à imagem do burro, do asno ou jumento, fazendo-os representar a humildade e a humilhação. Assim é que José leva Jesus
e Maria no lombo de um burro. Essa representação da humildade nos é confirmada em Provérbios 16, 18-19: “A arrogância precede a ruína, e o espírito altivo a queda. É melhor ser humilde com os pobres, do que repartir o
despojo com os soberbos”. Outros exemplos favoráveis são: a jumenta de
Balaão (Números, 22, 22-35) e também o entrada triunfal de Jesus em Jerusalém (Marcos, 11, 1-11). Além destes, podem-se citar, pelo menos, mais
dez passagens bíblicas que se referem a asno, burro ou jumento.
Todavia, pela estrutura narrativa de Mãe mulita, percebemos que o burro é um ponto de desarmonia. Foi sua teimosia que enraiveceu o centurião e
desencadeou, novamente, a perseguição. Uma tradição cristã não ortodoxa
vê o burro como uma representação de divindades funestas. Mais próxima
das interpretações da tradição egípcia (onde o burro é associado ao assassino de Osíris), indiana (deus Nairrita, guardião da região dos mortos), grega
(associada a Dionísio) e romana (associada a Príapo) é a conhecida imagem
da noite de Natal, no presépio, em que aparecem ao lado da manjedoura o
burro e o boi. Essa imagem foi retirada do evangelho apócrifo do falso Mateus, em que o primeiro simboliza os pagãos e o segundo, os cristãos (Biederman, 1994, p. 41). Com base nessas interpretações é que o burro petiço
de Simões Lopes Neto aparece, ao contrário da tradição bíblica canônica,
como um ponto de desequilíbrio e desarmonia. O burro representa forças
maléficas ou mesmo demoníacas. A essa imagem da tradição bíblica apócrifa, associam-se os conceitos dos alquimistas que vêem no burro um demônio de três cabeças: uma representando o mercúrio (a guerra), a outra, o sal
(o dinheiro) e a terceira, o enxofre (o mal). Todos eles representam os princípios materiais da natureza: o ser obstinado. Do mesmo modo, a arte renascentista pintou diversos estados de alma com os traços de um asno: o
desencorajamento espiritual do monge, a depressão moral, a preguiça, a
luxúria, a estupidez, a teimosia (Chevalier e Gheerbrant, 1994, p. 94).
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Identidades Ameríndias
A lição do burro: em qualquer ponto de sua vida, aquilo que em dado
momento serviu para ajudá-lo (lembremos que, na narrativa simoniana, o
burro petiço puxava o carro na fuga da Sagrada Família para o Egito), pode
se transformar em grande problema.
O tatu
O xamanismo é um sistema religioso primitivo de algumas sociedades da
Ásia, da África e de outras tribos da América que possuem como figura central o xamã, feiticeiro ou pajé, cujas práticas incluem o estado de transe, o
poder de curar doenças e a comunicação com espíritos da natureza (Holanda
Ferreira, 1986, p. 1796). Nesse último ponto, é que encontramos os “animais
de poder”, são os espíritos que, no mundo natural, representam as diversas
personalidades humanas, em suas virtudes e defeitos.
Ao observarmos as características dos tatus, encontramos similaridades
de posturas psíquicas e comportamentais com os seres humanos. O tatumulita, cujo nome científico é Dasypus septemcintus, é um animal de pequeno porte, que possui uma carapaça convexa com sete cintas móveis. As orelhas são grandes e pontiagudas, sua cauda é relativamente curta com ponta
fina e revestida de anéis, sendo as unhas estreitas e fortes. Seus hábitos são
crepusculares e noturnos. Alimenta-se de raízes e pequenos invertebrados,
que encontra revolvendo a terra com o focinho. Foi descrito e classificado,
em 1758, por Linnaeus, que o colocou na classe dos Mammalias, na ordem
dos Xenarthras e na família dos Dasypodidae (Cf. Grande Enciclopédia dos
Animais).
Não é de espantar que o tatu-mulita seja personagem da mitologia popular, uma vez que sua ocorrência no Brasil é muito comum, estando a espécie
distribuída desde o Pará até o Rio Grande do Sul, indo até o interior do Mato
Grosso (Idem). O tatu-mulita possui, conforme já se disse, uma forte carapaça
com sete cintas móveis. Tal condição dota-o de uma perfeita armadura. Referindo-se simbolicamente ao tatu, afirmam Sams e Carson (2000, p. 163):
“Sua carapaça protetora é parte de seu ser, de tal forma que ele pode, facilmente, se enrolar em torno de si mesmo, transformando-se numa bola resistente que não pode ser penetrada por seus inimigos”.
Quantas vezes necessitamos nos esconder ou nos proteger daqueles que
são uma ameaça para nossa segurança ou querem invadir nosso espaço? Na
história relatada por João Simões Lopes Neto, é Maria quem está mais oprimida; o papel de José é totalmente secundário, e o menino Jesus é indefeso.
Haverá maior invasão ao universo de uma mulher do que o iminente assassínio de um filho? Num caso desses, é preciso fugir e erguer uma carapaça
protetora; se necessário, resistir e confrontar o perigo.
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O tatu não representa apenas a defesa contra o mundo hostil. Ao contrário de sua carapaça, o seu ventre é macio e extremamente vulnerável. Metaforicamente essa imagem nos diz que é necessário reconhecer e vivenciar,
sem medo, a condição humana, também repleta de vulnerabilidade.
O próprio filho de Maria, sendo Filho de Deus, se fez homem, isto é,
encarnou-se, voluntariamente, por amor à humanidade. Ele, sendo divino,
fez-se vulnerável, todavia, essa vulnerabilidade não é fraqueza, é a capacidade de estar aberto ao sofrimento como caminho de elevação e solidariedade espiritual, na certeza da vitória, através da demarcação de um território
que impede a ação predatória do perigo e do mal.
A lição do tatu é esta: “Esse território é protegido pela carapaça, não se
pode deixar, entretanto, que a armadura se transforme numa prisão e nem
que seus medos sejam seus carcereiros” (Sams e Carson, 2000, p. 165). Ou
ainda: “O casco da integridade, a segurança de propósitos e metas o protegerão dos desequilíbrios que o cercam” (Wagner, 2003).
A tempestade
A tempestade é, por excelência, um tema romântico, sendo o Sturm und
Drang, na década de 1770, um significativo exemplo disso. No fundo, o amor à
tempestade ou à tormenta é representativo das aspirações do homem para com
uma vida intensa, cheia de perigo e emoção. Chateaubriand (1768-1848), um
dos mais típicos autores do Romantismo europeu, assim se expressou:
Levantai-vos, depressa, tormentas desejadas, que deveis arrebatar René
para os espaços de uma outra vida que faz eco ao de Ossian: “Levantaivos, ó ventos tormentosos de Erin; brami, furacões dos urzais; que eu morra no meio da tempestade, raptado numa nuvem pelos fantasmas irritados
dos mortos” (Capell, 1946, p. 41-42).
A metáfora da tempestade não está presente apenas na moderna tradição do Ocidente, embora esta – sobretudo no Romantismo – se alimente de
fontes folclóricas e populares mais antigas e de variegadas origens.
Na mitologia africana, encontramos Iansã ou Oyá como o orixá feminino ligado ao vento, ao trovão, ao relâmpago e à tempestade. Conta a lenda
que Oyá recebeu de Olorum a missão de transformar a natureza através do
movimento (o vento) que ela provoca com sua dança. Às vezes, o vento se
transmuta em tormenta, o que, ao provocar destruição, também dá ensejo à
renovação do ciclo natural. Mas, geralmente, Oyá se mostra gentil, soprando apenas uma brisa que, espalhando sementes, renova a criação e semeia
vida. Além disso, esse vento manso é responsável pelo processo de evaporação de todas as águas da terra, provocando as chuvas tão necessárias à
fertilização do solo e ao equilíbrio natural (Verger, 1997).
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Identidades Ameríndias
Na Nigéria, Oyá é a deusa ligada ao rio Níger. Ela é a principal esposa
de Xangô. Impetuosa, de forte personalidade, ela é também rainha dos espíritos dos mortos. Oyá foi a única mulher de Xangô que o acompanhou em
sua fuga à terra de Tapa, mas se desencorajou em Ira, sua cidade natal. Aí,
desenganada do amor, suicidou-se ao receber a notícia da morte de Xangô.
Os tornados, furacões e tempestades são o resultado de sua tristeza e descontentamento.
Oyá ou Iansã é puro movimento. Não pode ficar parada, para não restringir a constante renovação do mundo natural. A lenda também nos relata que, embora tenha sido esposa de Xangô, Oyá ou Iansã percorreu vários
reinos e seduziu diversos reis. Foi paixão de Ogum, Osogiyan e de Exu.
Conviveu e seduziu Osossi, Logum-Edé, tentando, em vão, conquistar
Obaluaê. Depois de muitas peripécias e amores, ao chegar ao reino de
Obaluaê, este, desconfiado, perguntou o que Oyá queria. Ela respondeu:
“Quero ser sua amiga”. Dito isso, fez para ele a dança dos ventos. Dessa
dança vem a tempestade que representa a paixão indômita e frustrada de
Iansã (Idem, ibidem, 1997).
Conforme se pode observar na mitologia dos orixás, há uma intervenção sobrenatural no mundo natural – na verdade, uma representação alegórica (poética) dos fenômenos da natureza. A tempestade é explicada
através da imagem do descontentamento ou da paixão de Oyá (Idem,
1997).
Embora de tradições culturais distintas, a tormenta ou a tempestade na
Bíblia não difere no sentido, basicamente, da simbologia africana: o fenômeno é uma manifestação ou intervenção divina de cólera, socorro ou
manifestação de sua glória. Pode-se dar como exemplo de cada um desses
casos, respectivamente, a destruição de Sodoma e Gomorra (Gênesis 19,
24), a passagem do Mar Vermelho por Moisés (Êxodo 14, 21) e o Salmo
29, em que se exalta o poder de Deus (Salmos 29, 4-8).
É nesses três sentidos que João Simões Lopes Neto, em seu texto Mãe
mulita, coloca a tempestade de areia. É manifestação da divina cólera,
porque os soldados são punidos por perseguirem a Sagrada Família.
É socorro porque, quando tudo já parecia perdido, posto que os cavalos
são mais rápidos que as mulitas, a tempestade vem e dispersa o centurião
e o restante da tropa. Finalmente, é também manifestação da glória e do
poder divino, pois só Deus em sua infinita ação providencial poderia gerar
um fenômeno natural forte, a ponto de vencer a determinação do ódio e da
injustiça.
A lição da tempestade: Deus está no controle de tudo, para punir ou socorrer.
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
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São Sepé / Lunar de Sepé5
Por volta do século XII, a Europa Ocidental vive o Renascimento comercial e urbano. Com a expansão dos domínios muçulmanos e a conseqüente tomada de Jerusalém pelos seguidores de Maomé, emerge, entre os
europeus, o desejo de empreender as cruzadas. Cabe ressaltar que esta intervenção militar representava, além do questionável interesse religioso, um
novo horizonte para a expansão econômica do continente, na qual a burguesia fora a principal beneficiada. “Para as cidades comerciais italianas, por
exemplo, era muito vantajoso que as cruzadas utilizassem suas embarcações
para atingirem terras orientais. Desejavam aumentar seus lucros mediante a
expansão das transações comerciais” (Aquino, 1982, p. 14).
As expedições ao Oriente Médio lançaram um novo alento à economia.
As rotas marítimas propiciaram, aos venezianos e genoveses, a possibilidade de um grande acúmulo de riquezas, por intermediarem a entrada de produtos do oriente para os consumidores europeus, cobrando altos impostos
sobre as mercadorias. No despontar do século XV, as principais rotas comerciais mediterrânicas mantinham-se sob o monopólio das cidades italianas que, em aliança com os muçulmanos do Oriente, dificultavam as atividades comerciais na Europa. Com a tomada de Constantinopla pelos turcos
otomanos, em 1453, o estrangulamento comercial tornou-se mais acentuado, porquanto estes taxaram as especiarias de modo a encarecer muito o
preço de revenda. Estes fatores impulsionaram os países ibéricos a empreender expedições pelo Atlântico, no intento de encontrar caminhos alternativos para a Ásia. Tais empreendimentos contaram com o financiamento
da burguesia, classe, então, melhor provida em recursos móveis, ou seja,
dinheiro.
Os portugueses foram os primeiros que, desbravando a costa africana,
atingiram o Índico, chegando à Índia e ao extremo oriente. Ainda envolvida
na retomada de seu território em poder dos mouros, a Espanha retarda suas
expedições pelo Atlântico, concorrendo para isso sua falta de unidade política e territorial, pois estava dividida em reinos independentes em constantes conflitos. A união espanhola efetuou-se com o casamento de Isabel e
Fernando, herdeiros, respectivamente, dos tronos de Castela e Aragão. No
processo de formação do Estado Nacional, incorporou-se o reino de Navarra e efetuou-se a conquista de Granada. Enquanto os aragoneses estavam
mais interessados em competir com o monopólio italiano do que investir em
uma expedição incerta pelo Atlântico, a burguesia castelhana mantinha o
5
Este texto de Mateus Weizenmann foi o resultado das atividades de pesquisa como bolsista BIC/UCPel, em 2004, no GPS/ISF, sob o título de Roteiro de leitura da história das
Missões Jesuíticas por meio do Lunar de Sepé, de João Simões Lopes Neto.
40
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Identidades Ameríndias
propósito de chegar às Índias pelo mesmo caminho traçado pelos navios
lusitanos; porém, “impossibilitados de costear a África, devido à precedência portuguesa que impedia a ação de concorrentes, viram-se (os espanhóis)
obrigados a navegar pelo Ocidente, para chegar ao Oriente” (Aquino, 1982,
p. 20-21). Chegando ao Novo Mundo, que, inicialmente, se pensara ser a
Ásia, visavam estabelecer relações mercantis, o que logo se transformou em
intento colonizador.
A economia da época moderna direcionava o olhar para a extração de
metais preciosos, especialmente ouro e prata, pela praticidade que ofereciam como bens móveis. Para garantir a riqueza de um país, acreditava-se
que o acúmulo de moeda devia ser efetivado, tornando-se necessário reduzir
as importações e buscar mercados consumidores para expandir o volume de
produtos exportados.
As colônias apresentaram-se como cenário perfeito para a execução do
projeto econômico europeu, pois, além de garantir abundância de matériasprimas, extraídas por um preço mínimo, devido ao uso que se fazia da mão
de obra escrava, estavam condenadas a negociar sua produção somente com
a metrópole. A população local passou a ser vista como mero instrumento
de trabalho a serviço da Coroa. Esporadicamente, os invasores brancos se
aliavam a algumas tribos, para alimentar ódios existentes entre os nativos
da terra, a fim de enfraquecer a ambos, valendo-se de falsas promessas a
determinados grupos indígenas.
A legitimação das atrocidades cometidas pelos colonizadores assentavase no falso uso da doutrina cristã, com o chamado Estado de Cristandade.
Igreja e cristianismo eram instâncias distantes, porquanto a religião, ao ser
institucionalizada, foi posta a serviço de ambições pessoais e de Estados
despóticos. Alegando-se levar aos nativos a verdade revelada, os invasores
europeus se lhes faziam guerra em caso de não-subordinação, seus crimes
tornavam-se assim facilmente perdoados e até mesmo ovacionados, em
nome de uma cruz estupidamente carregada.
Antes de cada entrada militar, os capitães de conquista deviam ler para os
índios, sem intérprete, mas diante de um escrivão público, um extenso e
retórico Requerimiento que os exortava a se converterem à santa fé católica: “Se não o fizerdes, ou nisso puserdes maliciosamente dilação, certifico-vos que com a ajuda de Deus eu entrarei poderosamente contra vós e
vos farei guerra por todas as partes e maneira que puder, e vos sujeitarei
ao jugo e obediência da Igreja e de Sua Majestade e tomarei vossas mulheres e filhos e vos farei escravos, e como tais vos venderei, e disporei de
vós como Sua Majestade mandar, e tomarei vossos bens e vos farei todos
os males que puder...” (Galeano, 1985, p. 25).
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
41
Inicialmente aclamados como deuses, logo os espanhóis mostraram a
que vieram, quando, na busca por riquezas, promoveram matanças, mesmo
em lugares onde eram bem recebidos, a exemplo do que ocorreu em México-Tenochtitlan, antiga capital do Império Asteca.
A dúvida a respeito da identidade dos homens de Castela subsistiu até o
momento em que, já hóspedes dos astecas em Tenochtitlan, perpetraram a
matança do templo maior. O povo em geral acreditava que os estrangeiros
eram deuses. Mas quando viram seu modo de comportar-se, sua cobiça e
sua fúria, forçados por esta realidade, mudaram sua maneira de pensar: os
estrangeiros não eram deuses, mas popolocas, ou bárbaros, que tinham
vindo destruir sua cidade e seu modo de vida” (Portilla, 1985, p. 17).
Para os castelhanos, a corrida pelo ouro e pela prata estava acima de
qualquer interesse evangelizador. Aproveitando-se da autoridade de “seu
Deus”, instituíram a exploração da força de trabalho dos nativos, criando as
chamadas “encomiendas”, forma mascarada de escravizar o povo. “Para
poder seguir aprovechandose de los indios sin tenerlos formalmente como
esclavos fue creada la encomienda, mediante la cual el encomendero, a
quien era entregados todos los indios de una región para que los protegiera
y procurar su adoctrinamiento, lo que hacia era explotarlos hasta la muerte”
(Guadarrama, 1993, p. 50-52).
A respeito da legitimidade da escravidão, diferentes correntes de pensamento surgem na etapa da conquista, destacando-se as seguintes: indigenista, em favor dos direitos dos nativos, tendo como principal representante
o Frei Bartolomé de Las Casas; centrista, interessada em assegurar os interesses do Estado, sendo Francisco de Vitória o principal expoente e a escravista, liderada por Juan Ginés de Sepúlveda, que, a serviço da classe colonialista, em busca da riqueza e do poder, justifica a exploração do oprimido
e defende a supremacia natural européia, inspirada na concepção de Aristóteles de que uns nascem para serem livres enquanto outros, por natureza,
são escravos.
Frei Bartolomé de Las Casas denunciou os abusos ocorridos com as
comunidades indígenas, posicionando-se a favor da liberdade de culto, o
que significou o respeito à pluralidade cultural naquele momento. Manifestou-se contra as torturas, abusos sexuais e assassinatos que sofreram os
indígenas no processo de colonização. Na obra O paraíso destruído, afirma
que seus conterrâneos “Ensinavam os cães a fazer em pedaços um índio à
primeira vista. Estes cães faziam grandes matanças e como por vezes os
índios matavam algum, os espanhóis fizeram uma lei entre eles, segundo a
qual por um espanhol morto faziam morrer cem índios” (Las Casas, 1996,
p. 31).
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Carlos F. Sica Diniz
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Identidades Ameríndias
O relato de Las Casas aponta e critica a idéia de superioridade racial vigente entre os europeus. Através de suas denúncias, tentou minar a condição de estigmatizados que viviam os índios, promovendo o respeito ao seu
modo de viver. Numa época em que a clássica dicotomia corpo x alma,
herdeira da tradição grega, elevava a segunda à condição superior em relação ao primeiro, pela suposta ligação direta com a divindade, se pôs em
discussão a existência de uma substância além da corpórea entre os índios.
Estes teriam alma? A dúvida implicava pôr em prova se realmente eram
humanos. Ginés de Sepúlveda, defendendo o direito de escravidão, declara:
Lo perfecto deve imperar sobre lo imperfecto, lo fuerte sobre lo débil. Dado que los aborígenes son imperfectos y debiles frente a los españoles, estos deben dominarlos y ponerlos a su servicio, porque asi lo establece la
ley natural. Esta es, además, un labor civilizatoria y de caridad para con
los pobres indios, que son bárbaros, incultos, impíos, inhumanos (Guadarrama, 1993, p. 75).
Após se travarem discussões entre as diferentes concepções vigentes
neste período, as autoridades espanholas reconhecem a humanidade indígena, ainda que se suponha que o índio necessite de orientação constante, para
não cair numa vida corruptível e se afastar da religião dos seus novos soberanos. Apesar de humanos, continuam à margem, carregando um estigma
por pertencerem a uma cultura com outros valores. Este é o pano de fundo
da organização colonial da América hispânica no século XVI, longe de ser
pensada como verdadeiramente cristã. Se pensarmos nos Dez Mandamentos
recebidos por Moisés no monte Sinai, percebemos as inumeráveis contradições éticas que perpassaram o modelo colonialista que, justamente, matava
em prol do respeito às leis cristãs, princípios como não matar! e não roubar! foram relegados ao esquecimento diante do valor material que as minas do Novo Mundo podiam oferecer. E, assim, tem-se repetido a crise de
valores na história das sociedades.
Uma única bolsa de pimenta valia, na Idade Média, mais do que a vida de
um homem, mas o ouro e a prata eram as chaves que o Renascimento empregava para abrir as portas do paraíso no céu e as portas do mercantilismo capitalista na terra. A epopéia dos espanhóis e portugueses na América
combinou a propagação da fé cristã com a usurpação e o saqueio das riquezas nativas. O poder europeu estendia-se para abarcar o mundo (Galeano, 1985, p. 26).
O Tratado de Tordesilhas, com o qual Portugal e Espanha dividiram o
mundo com uma linha imaginária a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo
Verde, concedeu à Coroa Espanhola a maior parte do território americano,
incluindo o atual estado do Rio Grande do Sul. Com o despontar da extraA presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
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ção de metais preciosos, a Espanha tornou-se a maior potência colonial
européia; contudo, a grande extensão de terras a tornava vulnerável às expedições portuguesas em seu território e a pirataria de outras nações do
Velho Mundo, em especial, Inglaterra, Holanda e França.
Diante da necessidade de conter o perigo lusitano que se dirigia do Brasil em direção à porção ocidental do continente sul-americano, a Coroa
Espanhola encontrava-se em frágil posição de defesa, não possuindo exército capaz de conter a fúria de seus concorrentes pelo ouro e a prata abundante em suas colônias. A descoberta das minas de Potosi, no atual território do
Peru, dera aos espanhóis a sensação de ter encontrado a fonte inesgotável de
riquezas, o que fizera com que o Imperador Carlos V lhe outorgasse o título
de Vila Imperial e uma placa contendo a seguinte inscrição: “Sou o rico
Potosi, do mundo sou o tesouro, sou o rei das montanhas e sou a inveja dos
reis” (Galeano, 1985, p. 33). O esplendor desta cidade encravada nos Andes
alimentava o desejo de poder e a ostentação sem limites.
Dizem que até as ferraduras dos cavalos eram de prata, no auge da cidade
de Potosi. De prata eram os altares das igrejas e as asas dos querubins nas
procissões: em 1658, para a celebração do Corpus Christi, as ruas da cidade foram desempedradas, da matriz até a igreja de Recoletos, e totalmente
cobertas com barras de prata. Em Potosi a prata levantou templos e palácios, mosteiros e cassinos, foi motivo de tragédia e de festa, derramou
sangue e vinho, incendiou a cobiça e gerou desperdício e aventura. A espada e a cruz marchavam juntas na conquista e na espoliação colonial. Para arrancar a prata da América, encontravam-se em Potosi os capitães e
ascetas, toureiros e apóstolos, soldados e frades. Convertidas em bolas e
lingotes, as vísceras da rica montanha alimentaram substancialmente o desenvolvimento da Europa (Galeano, 1985, p. 32).
Contrariamente à abundância do lado hispânico, não foram encontradas
significativas minas metálicas no território brasileiro, o que acarretou no
avanço português em direção ao oeste, com as entradas dos bandeirantes
paulistas. Para conter as investidas destes, a Espanha precisava ocupar as
terras sobre as quais julgava ter direitos, formando um escudo às suas minas, assim, enviou padres jesuítas a fim de conquistar súditos à Coroa por
meio do Evangelho. Além dos fins defensivos, também visava uma saída
pelo Atlântico para escoar seus produtos, visto esta medida facilitar o transporte dos mesmos da colônia à metrópole, constituindo-se num modo mais
rápido e econômico.
As primeiras missões, onde hoje se compõe o território brasileiro, foram edificadas na região dos rios Paraná e Paraguai. As missões de Guaíra,
contudo, foram arrasadas pelos bandeirantes paulistas. Estes, além de saquear a produção da redução, capturavam um grande número de indígenas,
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Identidades Ameríndias
a fim de vendê-los como escravos em São Paulo, no Rio de Janeiro e na
Bahia. Migrando para o sul, índios e jesuítas atingiram o rio Uruguai, fundando novas reduções e ampliando o contato com a povoação guarani que
habitava estas terras.
Os índios guaranis, além da caça e da pesca, praticavam a agricultura, o
que foi um aspecto que facilitou a aceitação destes aos padres que na região
se fixavam. Os jesuítas trouxeram um aparato tecnológico capaz de expandir a produção agrícola, carente diante dos parcos recursos à disposição
destes nativos. Cabe ressaltar que a produção de alimentos consistia em
grave problema enfrentado pela população guaranítica – a terra se esgotava –, o que os obrigava a empreender migrações constantes, caracterizandose como nômades. A fome se abatia sobre a população, que enfrentava ainda outro grave problema: as lutas contra tribos inimigas da Campanha e do
Planalto mantinham-se como uma ameaça constante às suas vidas e liberdades.
O sistema produtivo preconizado pelos padres configurava um extraordinário salto tecnológico – enxada, arado, adubação, irrigação, rotação de
culturas, produção de sementes, etc. e, em geral, uma economia planificada. Ao se tornarem súditos da Coroa, subtraíam-se à encomienda e recebiam proteção contra os paulistas. Os guaranis negociavam estas duas
condições com a Coroa através dos jesuítas (Freitas, 1982, p. 30).
Assim, o projeto missioneiro representava vantagens tanto para o rei de
Castela quanto para os guaranis, e também para os jesuítas, em seu intento
catequizador.
A primeira redução em terras rio-grandenses foi a de São Nicolau do
Piratini, estabelecida pelo jesuíta Roque Gonzales de Santa Cruz, em três de
maio de 1626. Composta inicialmente por 280 famílias, transcorrido um
ano já contava com uma população de 2.500 habitantes. Entre os anos 1626
e 1637, outros padres da Companhia de Jesus fundaram mais quinze reduções no atual território do Rio Grande do Sul, estendendo-se da bacia do
Uruguai até a do Jacuí.
O processo de colonização européia, na Província de São Pedro, teve as
missões jesuíticas como marco inicial, embora comumente tenha-se atribuído à chegada do brigadeiro português Silva Paes, onde foi erigida a cidade
de Rio Grande, como primeiro foco da dita “civilização”. Esta deturpação
dos fatos se deu com o fim de resguardar os interesses de Portugal sobre o
território, visto que o reconhecimento da ocupação espanhola, representada
pela Companhia de Jesus, implicava “uti posidetis”, ou direito de posse aos
castelhanos. Por esse motivo, os manuais de história nos chegaram falseando a realidade com um escopo já definido pelos interesses lusitanos em
tempos passados. Cabe ressaltar que após a chegada da Companhia de JeA presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
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sus, por mais de um século, os portugueses se limitaram a cruzar o território
apenas praticando uma economia predatória, não empreendendo qualquer
atividade que caracterizasse um processo civilizatório.
Enquanto os portugueses apenas trafegavam pela região, os jesuítas se
estabeleciam com o intuito de criar comunidades auto-suficientes e que
professassem a fé cristã, mantendo relativa autonomia política.
Aos colonizadores jesuítas se deve o conhecimento da geografia, da zoologia e da botânica do território [...]. Introduziram e propagaram o gado
vacum, cavalar e ovino – base futura da economia rio-grandense e, mais
que isso, desenvolveram junto com os índios a técnica de pastoreio que
havia de ser adotada depois pelos portugueses e seus descendentes. A própria invocação de Rio Grande de São Pedro, que o território teve até a
proclamação da República, foi dada pelos colonizadores jesuítas (Freitas,
1982, p. 15).
O período anterior a 1641 foi caracterizado por intensas invasões bandeirantes, entre elas a de Raposo Tavares (1639) e a de Fernão Dias Paes
Leme (1639), ambas ocorridas em reduções próximas ao Jacuí. Em 12 de
março de 1641, porém, os paulistas comandados por Jerônimo Pedroso, na
margem oriental do rio Uruguai, foram derrotados pelo exército guarani, na
chamada Batalha de M’bororé, o que abriu as portas para um novo período
na região missioneira. Com a defesa guaranítica, os bandeirantes cessaram o
tráfico de escravos nos domínios jesuíticos. Inicia-se uma época de relativa
paz nas reduções, o que possibilitou um grande desenvolvimento no plano
econômico.
Segundo Décio Freitas, a locação das reduções exigia alguns requisitos,
assim descritos por ele:
Cada redução constituía uma unidade urbano-rural rigorosamente planejada. Compreendia uma área de trinta ou quarenta léguas, mais ou menos,
segundo o número de habitantes e a qualidade das terras. Estipulou-se que
o local da povoação devia medir no mínimo cem hectares de terreno plano, algo elevado e aberto para o sul, de onde sopravam os ventos refrescantes; devia possuir abundância de águas e de matas, bem como ficar
longe dos pântanos. A distância entre uma redução e outra não podia normalmente ultrapassar de três léguas espanholas (15 km); excepcionalmente, a distância podia chegar a dez léguas. Esta proximidade visava facilitar
as comunicações e a defesa (Freitas, 1982, p. 44).
Os jesuítas dinamizaram o processo de urbanização do território, implantaram nas reduções o traçado retangular espanhol, com ruas cortadas
em ângulos retos. A população se concentrava quase exclusivamente dentro
do perímetro urbano.
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Identidades Ameríndias
Cada redução formava, pois, uma unidade mais ou menos auto-suficiente.
Salvo no caso das estâncias, não havia separação entre cidade e campo. Os
que trabalhavam na terra moravam no centro urbano; tinham uma existência coletiva, não ficando submetidos ao isolamento a que está condenado o
camponês (Freitas, 1986, p. 45).
Enfocando o cotidiano agrário da população missioneira, assim se refere Simões Lopes Neto:
Cheiravam as brancas flores
Sobre os verdes laranjais;
Trabalhava-se na folha
Que vem dos altos ervais;
Comia-se das lavouras
Da mandioca e milharais.
(Lopes Neto, 1988, p. 184).
A economia das missões mantinha o caráter de subsistência, o que não
impedia que se efetuassem exportações. Predominavam as tradicionais lavouras de mandioca, milho e tabaco, bem como outros produtos agrícolas
incorporados pelos padres, tais como algodão, açúcar, cânhamo e trigo.
A extração da erva-mate era intensa e bem aceita no mercado. Era o
principal produto de exportação das reduções. O lucro era direcionado à
compra de manufaturas não disponíveis naquelas comunidades. De qualidade superior à erva produzida pelos espanhóis, dos ervais guaraníticos dirigia-se a mercadoria a Buenos Aires, Santa Fé, Chile e Peru. Convém destacar
que, devido à distância das missões aos locais de extração, os jesuítas desenvolveram um modo de produção artificial da erva-mate. Calcados em
técnicas de engenharia, efetuavam projetos de irrigação das lavouras, o que
somava para a construção de uma economia planificada e sólida.
A indústria contava com olarias, fornos de fundição de ferro, curtumes,
matadouros, moinhos d’água e vento, fábricas de carros e carroças, armas,
pólvora, secadores de erva-mate e construção de embarcações de pequeno
calado às margens dos rios. Havia também indústria tipográfica, editorial e
manufatureira. “Havia em cada redução trinta ou quarenta oficinas manufatureiras, em que trabalhavam ferreiros, tecelões, chapeleiros, curtidores,
carpinteiros, oleiros, escultores, pintores etc.” (Freitas, 1982, p. 47).
Diante do salto no desenvolvimento de uma produção primitiva a um
modelo planificado pelos jesuítas, pode-se afirmar que “o sistema configurou uma revolução econômica, à medida que os índios passaram de uma
economia neolítica itinerante para uma economia sedentária de alto nível
técnico” (Freitas, 1982, p. 46).
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
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O texto Lunar de Sepé, escrito por Simões Lopes Neto com base em um
relato indígena, apresenta uma sociedade harmoniosa e de acordo com as
leis de Deus, a qual:
Ninguém a vida roubava
Do semelhante cristão,
Nem pobreza existia
Que chorasse pelo pão
Jesus Cristo era contente
E dava sua bênção.
(Lopes Neto, 1988, p. 184).
Os padres implantaram um coletivismo que não se apresentava tão estranho aos guaranis. Estas comunidades, antes da presença da Companhia
de Jesus, mantinham uma existência conjunta. Embora cada família tivesse
sua plantação, o trabalho era executado em grupo. O produto da caça era
repartido pelo caçador a todos os cidadãos. Os jesuítas implantaram um
“comunismo cristão” que, institucionalizado nas reduções, pode ser considerado, conforme Décio Freitas, “o primeiro experimento socialista em
terras brasileiras” (Freitas, 1982, p. 16).
As reduções representaram a erradicação da fome e a proteção dos guaranis
diante das guerras contra seus vizinhos, o que não afastara eventuais conflitos
com os bandeirantes. “Formavam comunidades prósperas e pacíficas, dedicadas à produção agrícola, pastoril, extrativista e artesanal. Em quase todas, floresciam a arquitetura, a pintura, a escultura, a decoração e a música. Os índios
se alfabetizavam rapidamente na sua própria língua” (Freitas, 1982, p. 15).
Também é mérito dos jesuítas a criação das primeiras gramáticas guaranis.
A produção efetuava-se nas terras denominadas Abambaé e Tupambaé,
enquanto a primeira existia individualmente para cada família, a segunda
servia a toda comunidade e todos trabalhavam no seu cultivo.
O Abambaé, inexistente como propriedade privada voltada para a produção na tribo guarani, foi institucionalizado a partir da legislação espanhola
colonial, e passou a funcionar como propriedade das famílias que estavam
reunidas em torno dos caciques. Era controlada pelos alcaides e o produto
guardado em sacos nos depósitos, com a identificação do proprietário que
deles retirava o que necessitava. Era com os frutos do Tupambaé, entretanto, que se mantinham as viúvas e os órfãos, se atendiam aos necessitados,
quando o produto do Abambaé terminava, alimentavam as expedições que
partiam em busca da erva-mate ou em direção das estâncias de gado, para
fornecer víveres para o deslocamento das tropas indígenas das Missões,
quando em campanha militar ou em marchas de reconhecimento, para manutenção da igreja e dos padres (o Cura e seu companheiro) e finalmente
para garantir as reservas para a próxima semeadura (Kern, 1982, p. 74).
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Identidades Ameríndias
Desse modo, o Tupambaé simbolizava o espírito comunitário no processo de produção, estando cada indivíduo comprometido com o suprimento de bens necessários a todos. Nesta terra, a fome de um era problema coletivo, logo se pode pensar que “nem pobreza existia que chorasse pelo pão”
(Lopes Neto, 1988, p. 184). A solidariedade não estava fechada dentro de
cada redução, cada um dos povos era responsável pelo abastecimento dos
vizinhos. “Se a safra de uma redução fracassava, por inundação, seca ou
qualquer outro motivo, as demais estavam obrigadas a provê-la do que faltava, em alimentos, manufaturas etc.” (Freitas, 1982, p. 52). O Tupambaé
mantinha uma função social; dele retirava-se a quantia necessária de alimentos para o consumo diário das famílias.
A organização política previa que todos os meios de produção pertenciam à redução, de materiais empregados para a produção agrícola, como
arados e enxadas, a bois e sementes. Cada trabalhador utilizava os equipamentos e devia se comprometer em entregá-los em bom estado.
As casas constituíam propriedade da redução, que as entregava em usufruto aos casais. Entendia-se que não havia necessidade de herança, dado que,
ao casar, os filhos recebiam sua própria casa [...]. Somente havia propriedade privada dos objetos de uso pessoal: redes de dormir, panelas de cerâmica, arcos e flechas, animais de estimação, bem como tudo o que fosse
por eles fabricado e legitimamente adquirido (Freitas, 1982, p. 51).
Diferente do modo econômico vigente na Europa e mesmo no restante
das colônias, a circulação da moeda não se efetivava nas missões. Como as
necessidades eram suprimidas por uma economia voltada para a subsistência e o bem-estar de todos, não se fazia necessária a troca de valores. Por
ser exaltado o aspecto religioso, a humildade cristã e o trabalho eram assinalados como virtudes fundamentais.
A sociedade guarani, em plena fase de transição cultural e integrando-se,
paulatinamente, na sociedade espanhola, não foi obrigada pela força à atividade econômica. A sustentação do esforço foi dada pela própria fé difundida pelos jesuítas, pela mística e pelo solidarismo da religião cristã
(Kern, 1982, p. 80).
O “comunismo cristão” dos missioneiros não estava fundamentado em
razões econômicas, mas sim, no igualitarismo religioso. Segundo Clóvis
Lugon, em sua obra A República comunista cristã dos guaranis:
O comunismo aplicado pelos jesuítas não era moderado. Um comunismo
alicerçado em razões essencialmente econômicas poderia ser mais facilmente moderado, na acepção burguesa, por exemplo, admitindo substanciais desigualdades de renda. Na República Guarani, as condições de vida
correspondiam, em princípio, ao gênero de atividade, nada mais. Do ponto
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de vista fraternal que dominava, uma mais-valia teria parecido um abuso,
ao passo que, com as concepções sobretudo econômicas, poder-se-ia pensar na possibilidade de atribuir rendas privilegiadas, excedendo as possibilidades razoáveis de consumo, e pretender-se-ia justificar tal forma de exploração pela necessidade de estimular a produção ou acelerar a formação
de uma elite vinculada ao regime (Lugon, 1977, p. 342).
O modelo de sociedade descrito por Lugon parece estar de acordo com
o projeto cristão de fraternidade e solidariedade. Obedecendo à hierarquia
dos caciques, as diferenças de tratamento efetuavam-se por uma questão de
respeito à autoridade, longe de representar a formação de uma casta separada dos demais membros da sociedade, embora os governantes e suas famílias mantivessem status diferenciado. “O Cabildo e seus Corregedores gozavam de situação especial, na Missão, pois era aos magistrados e funcionários índios que se destinavam lugares na Igreja e seus filhos tinham o privilégio de ir à escola. Eram igualmente isentos de tributação. Recebiam rações duplas de carne, boas vestimentas e outros suplementos” (Kern, 1982,
p. 49).
Embora seguindo, internamente, um modelo de política econômica, diverso da organização da metrópole, o sistema das reduções mantinha-se alinhado à Espanha, prestando-lhe contas sobre suas decisões. Por longo tempo,
as missões representaram os interesses de Castela, mas com seu desenvolvimento tornara-se um aliado perigoso. Na sua fundação, cada índio se apresentou a fim de livrar-se dos abusos que os espanhóis cometiam naquelas terras,
solicitando tornarem-se súditos do rei. “O tributo se pagava se o viso-rei o
pedia” (Lopes Neto, 1988, p. 184) e as prestações militares eram aos guaranis
solicitadas com freqüência, a fim de defender Assunção, Santa Fé e Buenos
Aires e lutando contra os portugueses da Colônia do Sacramento que, fundada em 1680, servia de entreposto para o contrabando.
Era impossível a instalação de estabelecimentos militares ao longo de toda
fronteira do Império Colonial Americano. Não havia meios humanos disponíveis, nem mesmo pecuniários, pois o tesouro estava sendo sangrado
pelas guerras européias. Nem mesmo as cidades espanholas do Prata, nesta
época, tinham recursos para a sua defesa e o contingente demográfico era
muito restrito (Kern, 1982, p. 157).
Assim, torna-se claro o significado da afirmação de Simões Lopes Neto
que “até sangue se mandava na gente moça que ia...” (Lopes Neto, 1988,
p. 184), pois somente com a defesa a cargo dos índios reduzidos, as cidades
sob o jugo espanhol estavam seguras. E para responder à pergunta “Por que
havia aquele mal, se o pecado não havia?” (Lopes Neto, 1988, p. 184), expressão que se refere ao horror da Guerra Guaranítica, devemos nos reportar
aos interesses que dominavam as potências coloniais da época, expressos
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Identidades Ameríndias
pelo Tratado de Madri. O pacto que acabara com as Missões, selado em
1750 entre Portugal e Espanha, previa que esta cedesse os Sete Povos, o
oeste de Santa Catarina e Paraná, o Mato Grosso e o Amazonas em troca de
territórios no Pacífico e a Colônia do Sacramento. Na ocasião, os portugueses lançavam vistas às reduções pela abundância de gado bovino na região.
Seu interesse era aguçado pela valorização do couro no mercado europeu.
A transação correspondia a interesses bem nítidos das duas potências coloniais. Portugal deixara de ter interesse na Colônia do Sacramento, dada a
evidência de que só proporcionava vantagens aos ingleses, que a usavam
para fazer contrabando no Prata. Não havia motivo, pois, para que aquela
inútil posição comercial continuasse a constituir um pomo de discórdia entre as duas potências. A troca desta posição pelo vasto território dos Sete
Povos era largamente compensadora e foi na verdade um dos lances mais
hábeis da diplomacia portuguesa no Prata.
Na ótica da coroa espanhola, as missões já não tinham a mesma importância do começo do século XVII. Primeiro: o desenvolvimento da tecnologia militar anulava sua utilidade para este fim, a menos que os missioneiros fossem bem armados, coisa que a Coroa, sempre temerosa de
uma rebelião, não estava disposta a fazer. Segundo: o crescimento econômico e demográfico da colônia platina já permitia dispensar o concurso
dos missioneiros. Terceiro: era motivo crescente de apreensão para a Coroa a crescente autonomia dos missioneiros, traduzida na recusa de pagar o
dízimo e a prestação de serviços militares estranhos aos interesses dos índios. Quarto: a prosseguir o desenvolvimento missioneiro, surgiria um Estado independente, não sendo casual que por este tempo começasse a circular na Europa e em particular na Espanha, rumores de que os jesuítas
tencionavam criar um Reino ou Império (Freitas, 1982, p. 68).
Expulsos da terra de seus ancestrais, era natural que os guaranis resistissem, e o fizeram. O derramamento de sangue era certo, por este motivo
os jesuítas tentaram inutilmente persuadi-los a abandonar suas casas. Ao
deixarem as reduções, estava prevista sua locação em outras regiões da
colônia espanhola. Era intento dos portugueses estabelecer casais açorianos
na região. Com a resistência guaranítica, as coroas ibéricas se aliaram para
empreender sua expulsão.
A insurreição começou em São Nicolau do Piratini, alastrando-se pelas
demais reduções. Os rebeldes alegavam que “não era necessário mais que a
doutrina cristã para saber que o que tratavam os reis em sua linha divisória
era injusto” (Freitas, 1982, p. 70). Em palavras indignadas, questionava-se a
população guaranítica, que sempre esteve a serviço da Coroa Espanhola,
prestando-lhe serviços militares e pagando-lhe o devido tributo: Por que seu
rei rejeitaria seus vassalos, fazendo-os morrer e passar por miséria em outras terras?
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
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Eram armas de Castela
Que vinham do mar de além;
De Portugal também vinham,
Dizendo por nosso bem:
Mas quem faz gemer a terra...
Em nome da paz não vem!
(Lopes Neto, 1988, p. 184).
O episódio da guerra nas missões é narrado no texto simoniano com um
posicionamento marcadamente favorável aos vencidos. Interrogando que
motivos aquela sociedade teria dado ao seu rei, para que então se tornasse
inimiga, encontra-se o elogio de um povo que obedecia às decisões políticas
da Coroa e se consagrava ao culto do Deus que se lhes apresentaram. Agora
a terra geme tão somente pela ganância de seus soberanos, que agiam, conforme o preceito de Maquiavel de que “os fins justificam os meios”, pois
contrariavam o que uma autêntica moral cristã haveria de exigir, em virtude
de um pacto que visava beneficiar mais uma vez somente seus cofres.
Em abril de 1753, os jesuítas finalmente entregaram as terras e a autoridade que lhes foi investida sobre os índios ao clero oficial e aos governantes espanhóis, mediante escritura pública, o que foi considerada uma
traição pelos guaranis. Em seguida, a Companhia de Jesus foi expulsa do
território, bem como das demais colônias espanholas e portuguesas.
Muitos confrontos marcaram o decurso da guerra pela posse das Missões. De São Miguel surge Sepé Tiaraju, guerreiro guarani que comandou
tropas para defender o leste, de onde marchava o exército lusitano. Sua
atuação provocou o atraso da incorporação do território a Portugal. Obrigados a abandonarem suas expedições, os exércitos dos países ibéricos,
que inicialmente planejaram atacar por duas frentes de batalha, unem forças, formando um único grupo de combate. Sua chegada à redução de São
Miguel vitima o chefe indígena em 7 de fevereiro de 1756. Três dias após
sua morte, com o resultado da batalha de Caiboaté, é definida a guerra,
favorecendo Portugal e Espanha, o que deu início à marcação dos territórios.
Lançaram-se cavaleiros
E infantes, com partazanas,
Contra os Tapes defensores
Do seu pomar e cabanas;
A mortandade batia,
Como ceifa de espanadas...
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Identidades Ameríndias
Couraças duras, de ferro,
Davam abrigo à vida
Dos muitos, que, assim fiados,
Cercavam um só na lida!...
Um só que de flecha e arco,
Entra na luta perdida...
(Lopes Neto, 1988, p. 185).
As cenas de batalha, reconstituídas pela literatura, apresentam a agressão que rapidamente exterminou a resistência devido ao desequilíbrio bélico
entre índios e brancos. O Lunar de Sepé, narrado sob a óptica guaranítica,
denuncia a falta de justificativas aceitáveis às conseqüências da assinatura
do Tratado de Madri, expresso nos seguintes versos:
Dócil gente, não receia,
As iras de Portugal:
Porque nunca houve lembrança
De haver-lhe feito algum mal:
Nunca manchara seu teto...;
Nunca comera seu sal!...
E de Castela, tampouco
Esperava tal furor;
Pois sendo seu soberano,
Respeitara seu senhor;
Já lhe dera ouro e sangue,
E primazia e honor!...
(Lopes Neto, 1988, p. 185).
A terra fora tomada, e vendidas as estâncias a particulares. Houve saques às igrejas, restando pouco da iconografia jesuítica que as adornavam.
A população entrou em decadência, sendo condenada à fome e doenças
oriundas do contato com os novos habitantes que chegavam. Passou a ser
cada vez mais comum a embriaguez e a prostituição entre os índios. Estariam eles interessados nas liberdades de seu novo sistema? No que se agarrar mediante o destino que lhes fora designado?
Sepé Tiaraju tornou-se símbolo de resistência e foi considerado santo,
ao menos no imaginário popular.
Eram armas de Castela
Que vinham do mar de além;
De Portugal também vinham:
Dizendo, por nosso bem...
Sepé-Tiaraju ficou santo
Amém! Amém! Amém!...
(Lopes Neto, 1988, p. 187).
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
53
A Teiniaguá na Salamanca do Jarau
6
Na lenda Salamanca do Jarau, Simões Lopes Neto coloca em Teiniaguá o símbolo indígena, por excelência, que faz a síntese das religiões, culturas e etnias.
O discurso de Blau introduz a origem da lenda na cidade de Salamanca,
na Espanha, e nomeia duas etnias – “os tais mouros e mais outros espanhóis”.
a) A guerra de religiões ou de duas culturas – oriente x ocidente. Há
uma luta, na Espanha, entre o Catolicismo e o Islamismo. Estes últimos são
vencidos pelos católicos, daí serem obrigados a “ajoelharem-se ao pé da
Cruz Bendita”. Os mouros, “fingidos de cristãos, passaram o mar e vieram
dar nessas terras sossegadas, procurando riquezas, ouro, prata, pedras finas”
(S, 143, 2).
b) A gente pampeana, Anhangá-pitã e Tupã. Como era essa “gente nativa”? “Era gente sem cobiça de riquezas, que só comia a caça, o peixe, a
fruta e as raízes que Tupã despejava sem conta, para todos, das suas mãos
sempre abertas e fazedoras” (S, 143, 19-22). A gente pampeana da campanha e da serra é sem cobiça, ao inverso dos europeus que cobiçam riquezas.
Aparecem duas entidades metafísicas: Anhangá-pitã, “do tupi-guarani: diabo vermelho” (S, nota 5, 165) e Tupã, que para os tupis é o trovão, que os
missionários jesuítas designaram de Deus. O primeiro é identificado com o
diabo, enquanto o segundo é o doador generoso de bens.
c) A metamorfose da fada moura. Teiniaguá surge do sopro de Anhangá-pitã que, através do condão mágico, tira-lhe a cabeça e implanta em seu
lugar uma pedra transparente, “vermelha como brasa”. Então, Anhangá-pitã
carrega Teiniaguá “sobre a correnteza do Uruguai, até as suas nascentes”.
Porém, ele “só não tomou tenência que a Teiniaguá era mulher”, porque se
trata de um personagem híbrido que assume muitas figurações no desenrolar da lenda. Daí, a dificuldade de reconhecer uma única identidade, pois ela
carrega em si o ser híbrido – mulher e lagartixa; a pluralidade étnica – moura e índia; a diferença etária – velha e jovem. Ela compreende o máximo de
contradições e a capacidade de metamorfosear-se, permanentemente, por
isso Anhangá-pitã não foi capaz de reconhecer sua identidade.
Neste segundo capítulo, apresentam-se algumas etnias fundadoras da
identidade do gaúcho – os europeus e os índios. Além destes, somam-se,
sabemos pela história, os portugueses, negros e outros. O gaúcho é o resul6
Remetemos ao estudo amplo desta lenda em: BAVARESCO, Agemir. Aprender a ser
gaúcho. A Salamanca do Jarau de J. Simões Lopes Neto. Porto Alegre: WS Editor, 2003.
Esta parte segue de perto o referido texto.
54
Carlos F. Sica Diniz

Identidades Ameríndias
tado da miscigenação étnica. Aprende-se que a identidade do gaúcho não se
forma pela exclusão. A “gente pampeana” forma-se pela inclusão de um
conjunto étnico.
A Teiniaguá é como o Santão, uma personagem que passa por muitas
metamorfoses. O que a diferencia, porém, do Santão é que ela é uma personagem híbrida, porque é, ao mesmo tempo, animal e mulher. Ela conhece
todas “as riquezas”, “sabe dos tesouros”, e mantém a memória das origens:
As riquezas da Teiniaguá espalhadas aos quatro ventos são a própria história que se repetirá, pela força da palavra, de boca em boca, para que a
memória não deixe morrer esse rastro das origens sagradas do gaúcho.
O vento, espécie de intermediário do céu e da terra, é como a palavra poética, que tenta refazer a unidade, perdida com a fragmentação dos mitos no
correr da história (Chiappini, 1988, p. 212).
Convivem nela o máximo de contradições. Ela é a síntese de etnias,
pois é moura e índia, ou seja, reúne em si o oriental, o europeu e o povo
autóctone. Ela é, também, a jovem e a velha, isto é, a “princesa moura”
(cap. IV) e a “velha carquincha” (cap. X). Ela é uma “fada velha” (cap. II),
algo mitológico e uma mulher: “Só não tomou tenência que teiniaguá era
mulher” (cap. II).
Uma outra contradição central em Teiniaguá é ser “bicho imundo” e
causa do pecado e, ao mesmo tempo, aquela que liberta o sacristão e, de
certa forma, é a salvadora do mesmo (cap. V). Ela é a causa da condenação (“por ter tido amores com mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira” –
cap. V) e de salvação do sacristão (“Mas um milagre se fez, fiquei sozinho, abandonado, mas também ouvindo o chamado carinhoso da teiniaguá” – cap. V). Há como que uma aproximação ambígua entre a Teiniaguá/Eva (causa do pecado) e Teiniaguá/Maria (causa da salvação: “Os
olhos do meu rosto viam a consolação da graça de Maria Puríssima que se
alonjava... mas os olhos do pensamento viam a tentação do riso mimoso
da teiniaguá” – S, 151, 30).
A oposição entre o mal e o bem é enunciado no cap. II, quando aparece
Anhangá-pitã, que é a figuração indígena do diabo na cristandade européia.
Frente a ele, está Tupã que é o bondoso. O mal faz parte da condição humana, porém, ele toma feições socioculturais que, no caso da comunidade indígena, é amenizado ou superado através das estruturas coletivas: “Anhangá-pitã folgou muito; folgou, porque a gente nativa daquelas campanhas e a
destas serras era gente sem cobiça de riquezas, que só comia a caça, o peixe, a fruta e as raízes que Tupã despejava sem conta” (S, 143, 20). Ora, a
Teiniaguá passa a ser identificada como a única causadora do pecado/mal.
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
55
Teiniaguá parece combinar em si, ao mesmo tempo, o bem (o divino) e
o mal (o diabólico), pois é “parente do diabo, [...] dos zaoris, aqueles que,
segundo alguns por pacto divino e, segundo outros, por pacto diabólico,
enxergam “através dos corpos opacos”, capazes de “descobrir o que está
oculto, embora seja debaixo de sete palmos de terra” (Chiappini, 1988, p.
188). Ela não só é parente do diabo, mas é “filha de Anhangá-Pitã” (Idem,
p. 188). Essa ambigüidade de forças divino-diabólicas que Teiniaguá encarna prolonga-se do começo ao fim da lenda. Logo no capítulo II, Blau, fazendo memória do que a sua avó lhe contara, afirma que Anhangá-pitã,
“cansado, pegou no cochilo pesado [...], só não tomou tenência que a Teiniaguá era mulher” (S, 144, 10). Ora, enquanto o diabo dorme Teiniaguá
age de tal forma, que não é reconhecida como uma mulher. Ela não revela a
sua verdadeira identidade, mas permanece um ser híbrido. A cristandade
colonial não a reconhece; enquanto isso, Teiniaguá vai passando por uma
evolução identitária até que ao final é reconhecida como uma nova mulher –
a “tapuia formosa”. Essa contradição permeia “o conto todo, implícita, tornando a explicitar-se no final, como uma espécie de chave ou moral da história: a teiniaguá era mulher” (Chiappini, 1988, p. 193). No capítulo X,
Teiniaguá é reconhecida por Blau Nunes, enquanto personagem coletivo
representante do gaúcho. Ela não foi reconhecida por Anhangá-pitã, daí
porque ele ficou desgostoso e se escondeu, pois não foi capaz de tomar
consciência que ela era uma mulher. O projeto da cristandade colonial a
identificou sempre como algo estranho e causador do mal. Há uma incapacidade de reconhecer a identidade da mulher. De um lado, ela não seria
identificada com o pecado, enquanto índia, e de outro, pode ser entendido
que, enquanto moura e mulher jovem, é enquadrada dentro da cristandade
colonial como a origem do pecado. Nela está a culpa/castigo e também o
prazer. Para a moral institucional, há o dilema entre o que prescreve a religião oficial e as práticas não prescritas entre os nativos.
O drama do sacristão e da Teiniaguá parece estar se encaminhando para
uma tragédia pampeana, pois o sacristão é condenado à morte. No entanto,
a Teiniaguá aparece como promessa de reconciliação: do sangue de nós
ambos nascerá uma nova gente (Cf. S, 148, 20). E, de fato, no cap. X, acontece a realização desta utopia: os dois formam um par novo. No capítulo
final, acontece uma última metamorfose em três momentos – “a velha carquincha transformou-se na teiniaguá”, “a teiniaguá, na princesa moura” e a
“moura, numa tapuia formosa”. O que temos, aqui, é uma síntese de opostos superados no diálogo intercultural de diferentes experiências históricas:
a velha carquincha e a jovem moura; de etnias autóctones e estrangeiras: a
moura e a índia; de éticas tradicionais e locais: a ética cristã, a islâmica e a
indígena. O resultado desta interculturalidade é a “tapuia formosa”.
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Carlos F. Sica Diniz

Identidades Ameríndias
Teiniaguá (termo de origem indígena: teiú = lagarto + aguaíca = manceba) é um personagem que faz parte da cultura popular nas regiões das
Missões e da Campanha do Rio Grande do Sul. A tese de Cícero Galeno
Lopes é que Teiniaguá é um personagem híbrido.7 A interpretação lendaconto de Flávio L. Chaves já mostra a relação híbrido-dialógica entre o
texto ou as tradições originais e o texto do autor. A interpretação corrente é
que a Teiniaguá está marcada pelo mal, porém, Cícero G. Lopes entende, a
partir da hibridação, que é necessário compreender este personagem, enquanto contraditório. O próprio nome Teiniaguá é híbrido, porque é resultado da composição de um réptil e uma moça.
O par teiniaguá e santão aparece no texto com as iniciais minúsculas,
denotando a função ou categorias. No caso do Santão, parece apontar uma
certa transgressão. O nome identificaria o seu batismo cristão, no entanto, o
suposto nome nunca é mencionado. O nome teria sido importante, porque
ele exercia a função de sacristão. Porém, a ausência do nome poderia significar a perda de sua identidade cristã-católica, expressa na linha da doutrina
da cristandade colonial. Ele desempenhara a função de sacristão, perdendo
essa atividade, depois que fora flagrado mantendo relações amorosas com
Teiniaguá. A condição posterior, após sua expulsão da comunidade de Santo Tomé, acontece junto ao Cerro do Jarau. Aqui, ele é denominado de Santão. Este encontrara o amor junto à Teiniaguá-mulher. Ora, isto é uma contradição, porque se une com ela fora do casamento, o que constitui para a
Igreja Católica um ato ilícito, portanto, pecaminoso. Além disso, une-se a
uma “princesa moura”, de outra religião. A contradição está no conflito
entre “a cruz bendita” dos católicos e o “crescente dos infiéis” muçulmanos.
Há um processo de assimilação-hibridação em que se misturam tradições
religiosas e valores diferentes (Cf. Galeno Lopes, 1999).
Teiniaguá é mulher-lagartixa graças a um pacto com Anhagá-pitã. Ora,
este pacto tem um caráter híbrido, porque ela recebe, de um lado, o carbúnculo deste último, que lhe dá luz, ou seja, símbolo do pensamento e do poder além do animal. De outro lado, ela herda, ao mesmo tempo, do pacto
com o demônio, o estigma do mal. Esta caracterização do mal, presente em
Teiniaguá, é devida à versão religiosa que constrói as forças opostas no
mundo como sendo a luta entre o bem e o mal. Esta luta de opostos acontece historicamente, no caso, Teiniaguá, em conseqüência de sua origem árabe, oposta aos espanhóis, é identificada como a que encarna o mal.
7
García Canclini, estudando as culturas híbridas, afirma que a hibridação é uma noção
fundamental para compreender a história latino-americana. A tese da hibridação defende
que a modernidade européia não eliminou as tradições autóctones, mas “deu lugar a formas sincréticas onde as matrizes indígenas, espanholas e portuguesas foram reelaboradas
para constituir uma mistura” (Bernd e Lopes, 1999, p. 22).
A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto
57
Prosseguindo na análise do processo de hibridação religiosa em Santão,
e a hibridação antropomórfica de Teiniaguá, podem-se constatar, ainda no
texto, outros indícios relacionados à teoria do personagem híbrido. A miscigenação entre árabes e cristãos ocorrida na península ibérica e seus desdobramentos religiosos; a prática da magia atribuída aos árabes opõe-se e
relaciona-se com o culto religioso; Teiniaguá é identificada com uma bruxa,
por isso é perseguida pelos tribunais da Inquisição espanhola; Teiniaguá
toma diversas figurações e, ao mesmo tempo, carrega em si diversas contradições que constituem um personagem com multiidentidades: ela é moura e convive com cristãos; é mulher e réptil, ou seja, humana e não-humana;
gera felicidade e causa infelicidade, provoca prazer ao Santão e leva-o ao
pecado/castigo; é muçulmana e jovem e vem para a América no ventre de
uma fada velha, num navio cheio de cristãos e padres; ela é a causa da condenação do sacristão (por luxúria, apostasia e sacrilégio) e da salvação, pois
ela faz romper a terra, assusta os verdugos e liberta-o de suas amarras.
Percebe-se que a Teiniaguá encarna em si o máximo de contradição,
sobretudo na oposição entre o símbolo do mal (mulher/bicho imundo) e, ao
mesmo tempo, o símbolo do amor e da felicidade (“saudade do seu cativo e
soberano amor”, S, 149, 37; “de teiniaguá, que me enfeitiçou de amor”,
S, 152, 6). Uma leitura unidimensional atribui a ela somente o mal, visão
própria da herança da cultura ocidental dualista que separa bem/mal. No
entanto, segundo a tese do personagem híbrido, Teiniaguá apresenta-se
como a síntese da oposição, pois ela nasce da voz múltipla do povo, do
embate de muitas consciências entre negativo-positivo. “Esses sinais apareceriam ao longo da literatura gaúcha, como marca da necessidade do amor
e, simultaneamente, como marca do aprisionamento masculino exercido
pela mulher (humana e não-humana)” (Bernd e Lopes, 1999, p. 35).
Segundo Bernd e Lopes (1999, p. 35), “a hibridez é já marca da transgressão. A transgressão só é possível na desobediência e na paixão, i. e, na
ação, na mobilidade, na modificação (porque a pureza perece de imobilidade). Essas marcas, como se pode perceber, estão nas ações do casal Teiniaguá-Santão, especialmente nela, porque por dupla natureza, designada na
nominação”. Teiniaguá desestabiliza o sacristão, pois o leva a sair do estado
de vida em que estava submisso na redução de São Tomé. Ora, a ação dela
pode ser compreendida como o símbolo de superação da dependência colonial. “Talvez esse tenha sido o maior pecado encontrado nas ações da Teiniaguá, que só pode ser concebido sob a visão colonialista” (Idem, p. 35).
Há rebeldia nas palavras e ações do casal que se voltam contra o sistema de
cristandade colonial e anunciam a formação de um novo mundo, assim expresso por Teiniaguá:
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Identidades Ameríndias
Serás o meu par.... si a cruz do teu rosário me não esconjurar... Si não, serás ligado ao meu flanco, para, quando quebrado o encantamento, do sangue de nós ambos nascer uma nova gente, guapa e sábia, que nunca mais
será vencida, porque terá todas as riquezas que eu sei e as que tu lhe carreará por via dessas (S, 148, 17-21).
Na Salamanca do Jarau, podem-se encontrar referências cronológicas
tais como a fundação de São Tomé pelos padres jesuítas em 1632. Aqui, o
sacristão ajuda no serviço litúrgico. Após ter sido condenado pelo pecado
cometido com Teiniaguá, consegue fugir com ela para o Cerro do Jarau.
Neste local, encontra-se com Blau que descreve, então, as suas andanças.
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60
Carlos F. Sica Diniz

Identidades Ameríndias
Uma conclusão inconclusa*
Luís Borges**

Sou Sepé Tiaraju
O Uruguai rio-mar azul
Sou o Cruzeiro do Sul
Luz e guia de índio cru
.....................................
Sou verso
Sou maior que a história grega
Eu sou gaúcho e me chega
Pra ser feliz no universo.
(Eis o homem, Marco Aurélio Campos)
De Getúlio a Machado: uma história pelo avesso
O jornalista Diogo Mainardi, com o timbre polêmico que lhe é peculiar,
publicou na revista Veja, um artigo (2004, 183) em que retoma um tema
recorrente na história do pensamento nacional: a identidade do brasileiro.
Mainardi faz uma afirmação categórica e provocativa: “O brasileiro não
existe”. É uma declaração ambígua e, digamos, guarda algo de sub-reptícia
verdade.
* O presente texto, modificado, foi apresentado por Luís Borges como palestra no Instituto
de Ciências Humanas/UFPel, em 20 de maio de 2005, sob o título de A dialética de Peri
e Blau Nunes: o Brasil descarado, o Rio Grande encarando. Reproduzida, resumidamente,
como conferência radiofônica, em 18 de junho do mesmo ano, na Comunidade FM, de
Pelotas.
** Membro do Grupo de Filosofia Intercultural – Universidade Católica de Pelotas
(UCPel), Instituto Superior de Filosofia (ISF).
Décima de Sepé Tiaraju
61
A assertiva do referido jornalista leva-nos a perquirir: Não existe o brasileiro porque existem brasileiros que habitam diferentes brasis, os quais
formam “ilhas culturais”, conforme teorizou Viana Moog (1943)? Nessa
direção, tateando caminhos, tartamudeando respostas, devemos fazer uma
ressalva, quando o jornalista da revista Veja entende que “Quem inventou a
figura do brasileiro foi a ditadura getulista. Inventou uma língua, inventou
mitos, inventou o Carnaval, inventou a música popular. A ditadura getulista
inventou o brasileiro para melhor dominá-lo”.
Se examinarmos a história da Era Getulista, de fato, podemos verificar
que houve um grande investimento político na manipulação ideológica,
conforme demonstra a importância do DIP (Departamento de Imprensa e
Propaganda) ou o papel da Rádio Nacional, fundada em 1936, às vésperas
do Estado Novo.
Quando examinamos as fontes do pensamento de Vargas, de 1906 até
1928, ano em que assume a presidência do Rio Grande do Sul, notamos a
nítida influência positivista, e sabemos, o Positivismo brasileiro, sempre
teve o nacionalismo e o militarismo como um dos pontos principais de seu
ideário político. Sabe-se que Getúlio, num primeiro momento, optou pela
carreira militar ingressando, em 1900, na Escola Preparatória e de Tática de
Rio Pardo (RS), após ter passado pelo 6º Batalhão de Infantaria de São Borja. Mais tarde, voltou-se para as chamadas Ciências Jurídicas e Sociais,
ingressando na Faculdade de Direito de Porto Alegre, em 1903. Nessa academia polarizavam, basicamente, duas correntes: o jus naturalismo e o positivismo jurídico (Cf. Fonseca, 2001, p. 103-124).
Sem entrarmos em maiores detalhes, que fogem ao objeto de nosso estudo, pode-se observar em Vargas a influência política de Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros e Pinheiro Machado, ao lado da influência filosófica de Comte, Stuart Mill e Spencer (id., ibid.). Por aí podemos concluir
que o “brasileiro inventado” na Era Getulista foi fruto de um projeto muito
anterior, inclusive ao ideário e à retórica positivista. Getúlio respondia, a
seu modo, a uma exigência de formulação política e cultural vinda desde a
Independência. É claro que construiu um brasileiro a sua imagem e semelhança, a fim de justificar e consolidar suas políticas e interesses. Getúlio,
diferente do que afirmava categoricamente Mainardi, não inventou o brasileiro, apenas o atualizou, aplicando um novo discurso e novas tecnologias
para disseminá-lo.
De qualquer forma, o mais importante é investigarmos de que modo esse discurso sobre o que era o Brasil ou quem eram ou deveriam ser os brasileiros conseguiu ser tão eficaz, acabando, enfim, praticamente por convencer a todos nós.
62
Mário Matos

Identidades Ameríndias
A ressalva a ser feita à afirmação de Mainardi é que a preocupação com
a busca de uma identidade para o Brasil e de uma cara para os brasileiros já
estava colocada desde há muito. Desde a mais tenra idade do país, dir-se-ia
mesmo antes da independência política da nação, já se intuía aquilo que
Machado de Assis chamou de “instinto de nacionalidade”, em 1873.
Que país é este?8
Para traçarmos uma cara para o Brasil, é necessário antes que nos coloquemos como “descarados”, isto é, sem rosto. Quem sempre disse quem
somos foi o estrangeiro. Somos, pois, exóticos e típicos para nós mesmos.
Uma tese instigante que corrobora essa idéia de que o Brasil é estranho aos
brasileiros é a do historiador Luiz Felipe de Alencastro (2000), para quem a
sociedade brasileira se estruturou num espaço sem território nas águas do
Atlântico Sul, oceano-ponte, colocado entre a economia de monocultura
açucareira no Nordeste, de base escravocrata, Angola, lugar de onde provinha a mão-de-obra, e Lisboa, capital metropolitana do império colonial
lusitano.
Aquilo que mais tarde se denominou “Brasil” foi uma estrutura montada sobre esse tripé, a fim de beneficiar uma minoria estrangeira contra a
terra e as gentes aqui encontradas ou trazidas à força. Naqueles tempos,
“brasileiro” significava o traficante de madeira (Cf. Sousa, 1978). Ser brasileiro era um negócio, um empreendimento comercial, uma função a ser
exercida em proveito próprio. Dessa ambição, talvez, nasceu o desejo de ser
uma nação: “Eles quiseram que o lugar prosperasse e o lugar prosperou”.9
Dessa visão de mundo mercantilista, dão-nos sobejo testemunho muitos
missionários e viajantes, tais como José de Anchieta, em Província do Brasil (1585), Pero Magalhães Gandavo, em História da província de Santa
Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil (1576), Frei Vicente do Salvador, em História do Brasil (1627), Gabriel Soares de Souza, com Tratado
descritivo do Brasil (1587), Ambrósio Fernandes Brandão, com Diálogo
das grandezas do Brasil (1618), Antonil, em Grandeza e opulência do Brasil por suas drogas e minas (1711), Rocha Pita, em História da América
portuguesa (1730), entre tantos outros.10
8
9
10
Titulo de uma obra de Afonso Romano de Santana, publicada em 1980.
Afirmação relativa ao desenvolvimento de Pelotas, feita pelo viajante Nicolau Dreys, em
Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul (1839).
Para maiores detalhes, vide Holanda, 1977. Encontra-se uma boa síntese em Zilberman,
1994, p. 12-34.
Décima de Sepé Tiaraju
63
A febre de lucro vasto, além da sede de aventuras, diante da natureza
exuberante do Brasil, transitou facilmente da “prosa comercial” para a poesia, como em A ilha da Maré, de Botelho de Oliveira, em cujos versos se
louva a paisagem circundante, destacando a lucratividade da economia pesqueira:
Aqui se cria o peixe regalado
Com tal sustância e gosto preparado
Que sem tempero algum para apetite
Faz gostoso convite
E se pode dizer em graça rara
Que a mesma natureza os temperara.
(Oliveira, 1994, p. 23).
E segue, agora louvaminhando a agricultura:
E vamos aos legumes, que plantados
São do Brasil sustentos duplicados;
Os mangarás, que brancos ou vermelhos,
São da abundância espelho;
Os cândidos inhames, se não minto
Podem tirar a fome ao mais faminto.
As batatas, que assadas ou cozidas
São muito apetecidas;
Delas se faz rica batatada
Das bélgicas nações solicitadas.
(Oliveira, 1967, p. 333).
Esses fragmentos, que nos soam até engraçados, poderiam figurar ainda
hoje em qualquer prospecto turístico.
Que é o Brasil e quem é o brasileiro?
Advinda de nosso passado com características peculiares, talvez venha nossa angústia e obsessão pela pergunta a respeito da identidade do
país e de seus habitantes, diferentemente do processo, por exemplo, que
constituiu a nacionalidade estadunidense. Sobre a situação de quem somos
nós, o historiador Sérgio Buarque de Holanda (1982, p. 3), em seu clássico estudo de 1936, às vésperas do Estado Novo, faz uma abertura emblemática, dizendo: “[...] somos ainda hoje uns desterrados em nossa própria
terra”.
64
Mário Matos
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Identidades Ameríndias
O Brasil, já como Estado-Nação, ainda que em descompasso com a Europa, nasceu sob a égide do Romantismo, que se constitui, por excelência,
na estética e na filosofia política do Estado nacional moderno. Nesse
contexto, é que se intensificam as perguntas: Que é o Brasil?/Quem é o
brasileiro?
As duas interrogações não são redundantes, como possa parecer. Pode-se
pensar que brasileiro é o que desfruta da condição de cidadão do Brasil, e que
Brasil é o Estado que lhe confere esta condição. Nada mais exato, nem mais
enganoso. Tais definições nada revelam a respeito do que seja o Brasil ou os
brasileiros, pois eles podem existir um sem o outro. Pelo menos, é o que parece sugerir o texto do jornalista Diogo Mainardi (2004). Para ele, há uma
dicotomia entre a versão oficial do Brasil, inculcada pelo Estado, e outra,
oficiosa, quiçá, a verdadeira, descomprometida com uma imagem “ilha da
maré”, ou “politicamente correta” do Brasil, mas que, no entanto, não sabemos com precisão a que corresponde. Tem-se, todavia, uma certeza: o Brasil
existe e os brasileiros estão lá. Mas, afinal, que país é este? Onde mora este
povo estranho e intangível? Essa “coisa-em-si” que constitui o ontos do Brasil e dos brasileiros é uma interrogação que nos persegue e assombra.
As fantasmagorias a que chamamos “Brasil” e “brasileiros” marcam
profundamente a trajetória da história das idéias no país. O pensamento
socioeconômico, filosófico e político nacional atravessa o discurso dos
chamados “intérpretes do Brasil”, que vão desde escritores e pensadores,
passando por sociólogos e historiadores, até políticos e educadores.
Numa brevíssima revisão acerca deste vasto campo que representa o
pensamento sobre o Brasil e os brasileiros, podemos citar algumas obras
para a compreensão desse processo, como por exemplo: História da literatura brasileira (1888), de Sílvio Romero; A educação nacional (1890), de
José Veríssimo e Por que me ufano do meu país (1900), do conde Afonso
Celso.
Ora, no curto período de pouco mais de uma década, entre o fim do Império e o início da República, está concentrada praticamente toda a essencial
problemática da cultura e da civilização brasileira. O conjunto de hermenêuticas advindas das teses de Romero, Veríssimo e Celso, basicamente, se corroboram nas premissas fundamentais, além do que, se cruzam e completam.
É interessante notarmos que alguns dos critérios de Ferdinand Denis, o
“pai do Romantismo brasileiro”,11 sobre o papel de uma literatura nacional no
Novo Mundo, mas alterados já sob o influxo tainetiano, estão retomados em
Sílvio Romero. O primeiro historiador da literatura brasileira (ele mesmo se
conferiu esse título) trilhou a picada aberta pelos críticos românticos Gonçalves de Magalhães, Pereira da Silva, Joaquim Norberto e Varnhagen, que
11
Para maiores detalhes, vide Rouanet, 2003, p. 103-108.
Décima de Sepé Tiaraju
65
trouxeram dados cronológicos e outras informações de natureza objetiva.
Sem esse esforço historiográfico, necessário à sistematização do passado, não
apenas ordenando elementos conhecidos, mas trazendo a lume novos dados,
Sílvio Romero reconhece que seu trabalho não teria sido possível.
O autor enfatiza a raça (e não a natureza exuberante, nisso distancia-se de
Denis e dos românticos, em geral) como fator de formação da literatura brasileira. Romero observa os elementos postos em relevo pela metodologia de
Taine. Mas só de modo parcial, porque tem em mente as distintas etnias que
participaram da constituição da nacionalidade, o negro, o índio e o branco,
enquanto o francês lida apenas com a arte européia, diferenciada conforme os
povos, que considera raças. Ao enfatizar a miscigenação, aborda a história
nacional, inclusive a história literária, como a luta por uma fisionomia e identidade próprias: o mestiço consiste na “genuína formação histórica brasileira”
(Romero, 1888, p. 54). Ou ainda: “Todo brasileiro é um mestiço, quando não
no sangue, nas idéias” (id., p. 4). Para ele, o “mestiço constitui-se no produto
fisiológico, étnico e histórico do Brasil: é a forma nova de nossa diferenciação nacional” (id., p. 75). Em Sílvio Romero, o mestiço (o brasileiro) para
obter definitivamente sua autonomia política e cultural, no que a literatura
ocupa um papel de relevo, deve conhecer-se e expressar seu “gênio próprio”.
Em Afonso Celso, a grandeza do território, as riquezas naturais inesgotáveis, a ausência de calamidades, os nobres predicados do caráter nacional,
com seu povo ordeiro e pacífico, um único ponto negativo é a “acessibilidade
que degenera, às vezes, em imitação do estrangeiro” (Celso, 1905, p. 86),
nisso concorda com Romero, e outros tantos aspectos são discorridos com o
objetivo de demonstrar a superioridade do Brasil. Assim diz o conde em seu
prefácio:
Ousa afirmar muita gente que ser brasileiro importa condição de inferioridade. Ignorância, ou má fé! Ser brasileiro significa distinção e vantagem.
Assiste-vos o direito de proclamar, cheios de desvanecimento, a vossa origem, sem receio de confrontar o Brasil com os primeiros países do mundo.
Vários existem mais prósperos, mais poderosos, mais brilhantes que o
nosso. Nenhum mais digno, mais rico de honradas promessas, mais invejável (Celso, 1905, p. 2).
Com todo esse potencial, para que o “gigante adormecido” concretize
suas promessas, é necessária uma grande reforma educacional e moral.
“Sem orgulho patriótico – que não merece ser assim chamada nossa parvoinha vaidade nativista – sem educação cívica, sem concorrência de espécie
alguma, o caráter brasileiro, já de si indolente e mole, como que se deprimiu
[...]”, assevera José Veríssimo em A educação nacional, escrita em 1890
(Veríssimo, 1958, p. 9-31).
66
Mário Matos
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Identidades Ameríndias
Ainda hoje não estamos muito distantes desses eixos e discursos. Investigar e descobrir a identidade do Brasil e do brasileiro são ainda tarefas
pertinentes e pertinazes. Assumindo, em várias ocasiões, os olhares de
outros sobre nós – lembrando a abertura de Raízes do Brasil – podemos
dizer que fabricamos a nós mesmos como produto de importação, visando
a um processo de modernização, tantas vezes apenas paródico, eis que
descontextualizado de nossa realidade. Eduardo Prado, um monarquista
crônico e um dos clássicos intérpretes do Brasil, já alertava para isso em
A ilusão americana (1893).12 Prado associou-se, para uma visão crítica à
República, a outros intérpretes das instituições brasileiras, entre os quais
estão o Conde Afonso Celso, o Visconde de Taunay, Oliveira Lima, Joaquim Nabuco, o Visconde de Ouro Preto, o Barão de Loreto, Carlos de
Laet, Cunha Mattos, o Barão de Paranapiacaba e outros, reunidos no libelo político monarquista, publicado entre 1889 e 1902, intitulado Década
republicana.
Os debates, em geral, giravam em torno de questões específicas, como
o sistema eleitoral, por exemplo, uma vez que, derrotada a Revolução
Farroupilha, o Império havia enfraquecido uma teorização mais consistente sobre o regime republicano e sua aplicação no Brasil. Tal discussão,
contudo, voltou com força total com o Manifesto republicano no final do
Segundo Reinado. De qualquer modo, o pensamento monarquista militante só se organizou depois do 15 de Novembro, uma vez que antes não
havia uma necessidade concreta de defesa do sistema monárquico.
Na época, o impacto de Os sertões, de Euclides da Cunha, foi multiplicado, em função de que a Guerra de Canudos parecera aos contemporâneos uma síntese do conflito entre o atraso e o progresso, associando o
exército ao regime republicano e o Conselheiro e seus seguidores às hostes da restauração monárquica. O impasse estava colocado de maneira
dramática e paradoxal. Certos setores do Rio Grande do Sul, estado de
forte tradição republicana, também aderiram ao movimento restaurador,
conforme nos demonstra a obra Os crimes da ditadura, publicada em
1902, organizada por Rafael Cabeda e Rodolfo Costa.
Nesses tempos, a identidade da nação estava associada aos diferentes
regimes: monarquia e república. Nesse sentido, mais uma vez acontece o
choque entre identidade política e cultural gaúcha e poder central. Afinal,
que país é este?
12
A segunda edição, em português, saiu em 1895. A 15ª edição apareceu pela editora Ibrasa, São Paulo, em 1980.
Décima de Sepé Tiaraju
67
Identidade gaúcha versus identidade brasileira
Na ânsia de libertarem-se das influências escravizadoras, os intérpretes
do Brasil, do passado (como vimos) e do presente (neste ainda mais torturante), buscam caminhos e soluções frente a um mundo globalizado e pósmoderno, em que as diferenças culturais se diluem e se uniformizam, enquanto o abismo econômico entre os países ricos e pobres se aprofunda. Nessa
direção, talvez, devamos fugir à tautologia dicotômica que nos sugere o texto
do jornalista Diogo Mainardi, ou seja, não somos quem o Estado diz que
somos, porém, também não podemos enunciarmo-nos plenamente, uma vez
que nossa potencialidade e grandeza nos impede de nos sabermos tais como
somos.
Mainardi indica que o “verdadeiro Brasil” não pode ser reduzido à sua
versão oficial. Com isso, entretanto, caímos num velho clichê, em sua formulação esquizofrênica e paranóica: de um lado, não somos nada que preste e
nunca o seremos, porque há forças estrangeiras que impedem nosso desenvolvimento, pois bem sabem das nossas riquezas e da bravura do povo (até o
nosso pessimismo é otimista!). De outro, somos os maiorais desde sempre,
eternos Afonsos Celsos.
Deste modo, a busca de uma identidade nacional se tornou uma entidade
metafísica. O Brasil é tão exuberante, tão grande, “o gigante adormecido”,
que não se pode desvendá-lo, somente o coração (verde-amarelo?) seria capaz de senti-lo, vivê-lo, pois em face da plenitude do objeto, o pensamento e
a linguagem seriam impotentes. Nada mais ufanista, nada mais de acordo
com a tese mainardiana. E nada mais oficialista. Para o poder, quanto mais
impalpável for um país ou uma nação, mais maleável aos constructos ideológicos. Mas uma identidade não é uma realidade fixa, é fruto de uma rede
complexa de relações socioculturais, econômicas e axiológicas.
Ao lado do mito de que a identidade do brasileiro é difusa ou pejorativa
(lembramo-nos das concepções de, por exemplo, Mário de Andrade, em Macunaíma, e Paulo Prado, em Retrato do Brasil, ambos de 1928), está o de
que, diferentemente, a identidade cultural do Rio Grande do Sul, tida mais
precisamente como a dos gaúchos, é clara e distinta. A imagem dos sul-riograndenses, desenhada para si mesmos, é representada pelo gaúcho no mito
do “centauro dos pampas” ou do “monarca das coxilhas”. Temos aí um paradoxo aparente.
Se, de uma parte, há o “herói sem nenhum caráter”, de timbre macunaímico, de outra, aparece o “herói farroupilha”, dotado das virtudes mais nobres. A discussão a respeito desse suposto paradoxo se estendeu pelas mais
diferentes esferas culturais, da história à música. Um dos debates mais acirrados aconteceu nos idos de 1983, quando da publicação de Ideologia do gauchismo, de Tau Golin. Esse ensaio, descartado o tom raivoso, pela primeira
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Mário Matos
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Identidades Ameríndias
vez questionava a identidade étnica e cultural do Rio Grande do Sul e a imagem petrificada do gaúcho. Em resposta a essa obra, sem que os ânimos se
tivessem acalmado, apareceu o Manifesto gaúcho (2000), livro em que Evaldo Braz pretendia demonstrar quem são os gaúchos (refere-se ao tipo sóciohistórico, que se confunde com o tipo literário) através dos depoimentos de
viajantes:
Os epítetos atuais do gaúcho são, por este tipo de historiadores (adeptos da
Nova História), considerados fantasiosos, tais como liberdade, orgulho,
guerreiro, coragem e rude ética. Quem lá esteve parece ter outra opinião.
Isto salta aos olhos em seus livros de viagem. Nossos nouveaux historiadores preferem recriar uma nova história supondo estarem utilizando critérios científicos, critérios esses já de antemão definidos pelos nouveuax
orientadores de tese. Com aquele maravilhoso estoque de frases e pressupostos a requintadas teses, tais como imaginário, ontológico, etc. (Braz,
2000, p. 10).
Esses debates em torno da identidade do Rio Grande do Sul e, via de
conseqüência, do gaúcho, sob certos aspectos, movidos pelo combustível da
paixão, contaminaram o discurso em torno da literatura. Os escritores e
críticos, também intérpretes do Brasil e do Rio Grande do Sul, muitas vezes, lançaram mão do arsenal utilizado para o estudo sociológico, histórico
e folclórico, aplicando-o à análise literária, colocando outros elementos, de
marcante feição ideológica, acima da investigação propriamente estética.
Novamente encontramos a dicotomia entre o gaúcho desenhado pelo
centro (1870), quase um “pisa-flores”, como Manoel Canho, de José de
Alencar, e o “verdadeiro gaúcho”, ainda que tão idealizado quanto o outro,
o Avençal, no Vaqueano (escrito em 1869 e publicado em 1872), de Apolinário Porto Alegre.
É nesse antagonismo que podemos encontrar a confluência entre a formação da imagem do brasileiro e do gaúcho, aparentemente tão díspares em
sua capacidade de identificação. Um é uma figura intangível, fruto de uma
retórica romântica, e o outro, acoitado sob uma paisagem reconhecível e
valores elevados, transformou-se num personagem estereotipado.
É verdade que sempre houve uma necessidade de afirmação da identidade dos sul-rio-grandenses, a partir das Guerras Cisplatinas (1811-1828)
(Cf. Torronteguy, 1994, p. 42-48) e, principalmente, da luta contra o Império do Brasil, corporificada pela Revolução Farroupilha (1835-1845), inclusive com lances separatistas.
Terminada a Guerra dos Farrapos (1835-1845), os latifundiários e as
camadas comerciais da província receberam benesses do Império e escolheram Caxias como governador. Ele estava afinado com a política imperialista
do governo brasileiro no Prata (Cf. Bandeira, 1985). O Brasil intervinha no
Décima de Sepé Tiaraju
69
Uruguai e na Argentina, para expandir o domínio sobre o mercado da carne
e seus derivados. Para tanto, necessitava do auxílio das elites estancieiras
sulinas. Eram, contudo, os peões-soldados que constituíam a massa militar
que realizavam as intervenções armadas na bacia platina, comandados pelos
oficiais-proprietários (id., ibid.).
Os changadores ou gaudérios, que em tempos de antanho recolhiam o
gado xucro que vivia nas vacarias, acabaram por perder sua fonte de trabalho.
O gado passou a ter dono e as terras agora possuíam aramado. Esse processo
encontra em Jayme Caetano Braun a sua expressão profunda no poema
Alambrado:
Estendidos na paisagem
Com o dantesco esqueleto
Os teus fios de arame preto
Causaram constrangimento
E até o assobio do vento
Entre os buracos de pua
Encheu o pampa Charrua
Dum som triste e agourento!
(Braun, 1982, p. 97).
Os gaúchos, mesmo sofrendo esse processo de expropriação, continuaram a fazer invernadas e a se alimentarem do gado, e cruzavam as fronteiras, ignorando os limites territoriais do Brasil, da Cisplatina e da Argentina.
Eram errantes e poucos constituíam famílias estáveis. A sociedade sulina
estava se modificando, não apenas em termos de organização econômica,
mas essa mudança implicava profundas alterações na ordem social e valorativa. Não mais se aceitava o tipo social andarengo, “sem lei, nem rei”. Aos
poucos os chamados gaúchos caíram na marginalidade. Foram considerados
vagabundos e desordeiros pelos proprietários de terras e perseguidos pela
polícia. Seu mundo de liberdade e aventura havia desaparecido. Os estancieiros queriam aproveitar suas habilidades guerreiras e de trabalho para
cuidar de suas propriedades, evitando o roubo e as contendas. Com o passar
do tempo, muitos dos antigos gaúchos foram cedendo, a fim de poderem
sobreviver. Outros, porém, resistiram e persistiram em seu anterior modo de
vida. Para estes a solução foi o banditismo. José Hernández, em seu Martin
Fierro (1872), escreveu: “El anda siempre juyendo, siempre pobre y perseguido; no tiene cueva ni nido, como se fuera maldito; por que el ser gaucho... ! barajo! El ser gaucho es um delito” (Hernandez, 1987, p. 57).
Nasce aí o conceito de “nação pampeana”. Noutro viés, ao longo do tempo, podemos pensar que houve uma deliberada construção identitária. Nesse
sentido, a fundação do Partenon Literário, em 1868, possui um papel determinante.
70
Mário Matos
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Identidades Ameríndias
Embora se possa dizer que Caldre e Fião seja, cronologicamente, o fundador do gaúcho literário (e um dos criadores do romance brasileiro) com
A divina pastora (1847) e O corsário (1851), foi José de Alencar que, em
1870, fixou nacionalmente a figura do gaúcho-herói. É interessante observar que o sentido pejorativo da palavra irá alterar-se, a partir do final da
Guerra do Paraguai, na qual os soldados sulistas tiveram participação indispensável. Assim mesmo persistirá em alguma medida, pois o herói de Apolinário Porto Alegre (1872) é um vaqueano e não um gaúcho.
Ao escrever O gaúcho (1870), José de Alencar procurava construir um
vasto panorama em que pudesse inserir os contextos regionais, objetivando
dar uma unidade ao brasileiro, melhor dizendo, ao Brasil. O gaúcho alencariano não era menos fantasioso que a figura descrita em seu Sertanejo (1875),
tipo social, a respeito do quem tinha ele conhecimento. Portanto, o Manuel
Canho, o gaúcho, era um estereótipo romântico transplantado para um locus,
mais ou menos, regional.
Ao cotejarmos O gaúcho (1870), de Alencar, e O vaqueano, escrito em
1869, mas publicado em 1872, de Apolinário Porto Alegre, encontramos um
dado interessante. O personagem do primeiro escritor, embora tenha aderido
à Revolução Farroupilha, ele o faz por motivos pessoais, mero compromisso
a seu padrinho Bento Gonçalves. As causas da luta lhe são alheias.
José de Alencar, ao enfocar aspectos da Revolta dos Farrapos, elogia
Bento Gonçalves por sua honra, por seu comedimento, seu espírito patriótico
avesso à anarquia revolucionária. Os soldados são retratados como uma corja
de ladrões, desordeiros e bêbados. Não é de admirar, sabedores como somos,
de seus laços governistas.
Embora O vaqueano (1872), de Apolinário Porto Alegre, seja considerada uma obra de resposta a de Alencar, ela é também uma transposição dos
pressupostos da prosa romântica aplicados com mais cor local. Há, porém,
uma sensível diferença: aparece na obra porto-alegriana o traço liberalrepublicano e abolicionista.
José de Avençal, personagem de O vaqueano, ao contrário do que descrevia Alencar sobre os soldados farroupilhas, era quieto, pouco dado ao
fumo, ao álcool, ao jogo ou a uma vida amorosa imoral ou desregrada. Este
herói representa um olhar pró-farrapo. O clímax da ação se realiza, quando
Avençal se suicida numa explosão. Nessa explosão morrem vários soldados
legalistas e, neste momento, ele grita: “Viva a República!”
O projeto republicano, liderado pelas elites latifundiárias, será, em farta
medida, celebrado em prosa e verso pelos componentes da Sociedade do
Partenon Literário em sua Revista Mensal (1869-1879), dando respaldo ideológico ao antimonarquismo e incentivando o liberalismo político e a federação. Além disso, será apenas depois da Revolução Federalista (1893-1895)
que surgem os chamados Grêmios Gaúchos. O primeiro deles, aliás, foi funDécima de Sepé Tiaraju
71
dado em Porto Alegre por João Cezimbra Jacques, em 1898. Posteriormente,
surgirá a União Gaúcha de Pelotas, em 1899, que seria vista como uma invenção bizarra dos habitantes urbanos. Ainda na primeira década do século
XX, ser chamado “gaúcho” equivale a um qualificativo que representa um
desvalor: a brutalidade de costumes, a ignorância, o barbarismo moral. Até
1912, ser chamado de “gaúcho” causava profundo mal-estar ao cidadão da
elite urbana. Tanto assim, que o escritor Arthur Toscano, nas páginas do Almanaque do Rio Grande do Sul, editado por Alfredo Ferreira Rodrigues, escreveu um indignado artigo intitulado Gaúcho por quê?
Apesar da oposição que Apolinário fez à ditadura castilhista, seu romance
auxiliou a consolidar um dos pilares ideológicos de Júlio de Castilhos: a exaltação da memória farrapa, como ideal patriótico.
O tipo idealizado por Porto Alegre, ainda que não assumisse a alcunha de
“gaúcho”, tomava um princípio que, mais tarde, o caracterizaria como tipo
social: era um elemento fundamental na democracia da estância, ali todos
eram “gaúchos”, peões e proprietários, que, na roda de chimarrão, anulavam
todas as distâncias sociais e políticas. Esta é a vertente político-literária que
produziu a teoria da “democracia racial e social da estância rio-grandense”,
cujo maior representante é o sociólogo Jorge Salis Goulart, autor da clássica
A formação do Rio Grande do Sul (1927), obra que, certamente, se constituiu
numa das fontes do pensamento varguista.
A “fabricação do gaúcho” só se consolidou após o Estado Novo, com o
movimento dos Centros de Tradições Gaúchas (CTG), cuja fundação se deve
a Barbosa Lessa e Paixão Cortes, em Porto Alegre, em 1947. Nesse período,
a cultura brasileira já havia passado pela orgia modernista. A fase construtiva
do Modernismo começara juntamente com a Revolução de 1930. Levará,
porém, o Rio Grande do Sul mais tempo para descobrir-se ou fabricar-se, que
Getúlio para inventar o brasileiro, conforme a expressão de Mainardi.
Tupi or not Tupi? That is the question13
O Brasil (carente de uma tradição histórica, nos moldes europeus, de que
se pudesse orgulhar) e as novas elites (agora nacionais) buscaram um “mitofundador”, com o qual ou sob o qual pudessem erigir uma identidade para o
país, o que significava e, principalmente, um projeto político. O colonizador
português estava associado à dominação colonial, o negro jazia no desprezo
de ser considerado um ser inferior e bestial. Restava o índio, o “nobre selvagem rousseauniano”.14
13
14
72
Mário de Andrade em Manifesto antropofágico. Revista de Antropofagia, maio de 1928.
Para maiores detalhes, vide: Franco, 1976.
Mário Matos
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Identidades Ameríndias
O indianismo, como corrente literária, possui fundas raízes fincadas no
solo da busca de identidade. Melhor exemplo não há que O Guarani (1857)
e Iracema (1865), de José de Alencar, com os quais houve a tupinização do
europeu, segundo a expressão de Ivo Barbieri (2003, p. 513-526).
Também no romance O vaqueano (1872), de Apolinário Porto Alegre, a
figura do indígena aparece idealizada através de Moisés, pertencente à tribo
dos quase extintos guaiacanãs. Moisés era mestiço e meio-irmão de Avençal, mas afastou-se do mundo dos brancos, pois sabia que era considerado
inferior. Apesar disso, Moisés e seus guerreiros aderiam à guerra dos brancos e seguiram Davi Canabarro, pois como alguns deles, abominavam a
escravidão e a ganância.
Vale fazer menção a uma faceta praticamente desconhecida não somente dos estudos antropo-literários em nossa terra, mas também da obra de
Manoel Antônio de Almeida, o autor de Memórias de um sargento de milícias, publicado como folhetim na secção “A pacotilha”, do jornal carioca
Correio Mercantil, em 1853. Pois bem, o nosso conhecido e festejado “Maneco, um brasileiro”, foi um dos autores primeiros a reclamar e reconhecer
a autonomia cultural e o caráter artístico da civilização de nossos indígenas,
a ponto de criticar severamente o historiador Francisco Adolfo Varnhagen,
que pretendia, no Memorial orgânico, elaborar um projeto para o Brasil,
consistindo na colonização de todo o território nacional e na mudança da
capital do país – com a construção de uma nova cidade especialmente para
este fim – na abertura de grandes vias de comunicação entre as regiões e,
por fim, na reordenação da força-de-trabalho, com o fim do tráfico negreiro,
a substituição da mão-de-obra escrava pelos imigrantes europeus, e incorporação compulsória dos índios à sociedade imperial. Foi este último ponto
que proporcionou a reação indignada de Manoel Antônio de Almeida, com
seu artigo A civilização dos indígenas, publicado no jornal Correio Mercantil, do Rio de Janeiro, em 13 de dezembro de 1851. Posteriormente, em 12
de fevereiro de 1852, foi reproduzido no Jornal do Comércio, na secção de
“Apedidos”, por iniciativa da Sociedade, contra o tráfico de africanos e
promotora da colonização e da civilização dos indígenas.
Daí em diante, apesar de antropólogos, historiadores e escritores antes
dele terem pesquisado e/ou defendido o índio, estabeleceu-se uma linhagem
indianista paralela àquela tão conhecida, estrelada por Gonçalves Dias, na
poesia, e Alencar na prosa, da qual podemos citar Couto de Magalhães, com
O selvagem (1876), Capistrano de Abreu, em Ra-txa-hunikui (gramática,
textos e vocabulário Kaniauá), de 1911. Mais recentemente, podemos citar
Sepé Tiaraju, romance das Missões Orientais do Rio Uruguay (1975), de
Alci Cheyuche; Maíra (1976) e Utopia selvagem (1982), de Darcy Ribeiro;
Cem noites tapuias (1978), de Ofélia e Narbal Fontes; Moronguêtá, um
Décima de Sepé Tiaraju
73
Decameron indígena (1980), de Manuel Nunes Pereira; Quarup (1967), de
Antônio Calado, e ainda, os poemas A grande fala do índio Guarany perdido na História e outras derrotas (1978) e Índios meninos, este último contido em Que país é este? (1980).
Concluindo uma conclusão inconclusa
Termos ido tão longe para discutir a inserção da tradição indígena na literatura gauchesca, considerada emblematicamente em Simões Lopes Neto,
talvez pareça um subterfúgio ou a abertura de um leque inútil e dispersivo.
Cremos, porém, que não é possível compreendermos a localização do papel
dessa tradição na literatura do Rio Grande do Sul, sem compreendê-la em
seu grande contexto, em suas raízes históricas e estéticas.
Do que apresentamos até aqui, é possível relacionar com o autor de
Contos gauchescos (1912) muitos aspectos que, ao mesmo tempo, são esclarecidos e auxiliam a clarear no confronto com um panorama mais geral
que a questão comporta. Verifiquemos alguns:
a.
De Getúlio a Machado: uma história pelo avesso
A inegável influência positivista, muitas vezes expressa em termos de
cientificismo ou laicismo em Simões Lopes Neto,15 cuja tradição política
chega até Getúlio Vargas, o qual, segundo o jornalista Diogo Mainardi, é o
responsável pela “invenção do brasileiro”, a partir do Estado Novo (19371945). As posições políticas e filosóficas de Simões Lopes Neto, dada a sua
repercussão como escritor gaúcho por excelência, sobretudo após a “edição
acolherada”, da Globo, em 1926, pode nos auxiliar a compreender as fontes
extrapolíticas de Vargas, desde seu período estudantil (1903) até quando
assumiu a presidência do Rio Grande do Sul, em 1928.
b.
Que país é este? Quem é o Brasil e quem é o brasileiro?
Simões Lopes Neto dedicou-se também ao ofício da história, cuja maior
realização foi a Revista do Centenário de Pelotas, que circulou entre 1911 e
1912. Além disso, escreveu A forca em Pelotas (póstumo, 1917) e outros.
O autor de Contos gauchescos levava muito a sério seu ofício de historia15
74
Vide “Uma trindade científica”, série de cinco artigos publicados em janeiro de 1913, por
Simões Lopes Neto sob o pseudônimo de João do Sul, no jornal A Opinião Pública, de
Pelotas, em que discute as idéias de Darwin, Lamarck e Haeckel. In: Moreira, 1983,
p. 82-99. Quanto ao laicismo de Simões Lopes Neto, inspirado por seus brios patrióticos
e rio-grandenses e instigado talvez por sua fidelidade a Antônio Gomes da Silva, maçom,
seu amigo e patrão no Opinião Pública, Simões manteve uma dura polêmica, em defesa
de Anita e Garibaldi, contra o jornal católico A Palavra, em novembro de 1913. In: Moreira, 1983, p. 68-69.
Mário Matos
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Identidades Ameríndias
dor, tanto assim que consumiu mais de oito anos de sua vida, produzindo
um texto didático, que o biógrafo Carlos Diniz chamou de “o verdadeiro
Terra gaúcha”,16 que permanece inédito. Livro de título homônimo apareceu publicado postumamente, em 1955, pela Editora Sulina. Seu objetivo
era justamente inserir-se nas campanhas de educação cívica, tarefa que já se
impusera em 1904-1906, através de suas conferências. Em Terra gaúcha,
cujo segundo volume não chegou até nós, há trechos em que é possível
depreender seus objetivos de realçar a terra gaúcha dentro da formação da
nacionalidade:
Alfim soou o toque da victória! – a mesma língua cantou o mesmo hymno...; a mesma bandeira cobriu e beijou túmulos e berços... E des ahi as cicatrizes da lide sellaram o direito histórico do último e tão lavorado florão
da coroa portuguesa, no Brazil.
Terra gaúcha, raia traçada pelo Destino, foste a última encorporada à
nacionalidade; foi-te água lustral o próprio sangue, hóstia consagrada ao
coração, litania às juras de fiel e valoroza...
Eis porque remembrança do marco final na consolidação do território
pátrio, eis por que este livro se chamou assim.
Porém elle é nacional; aos brazilenzes é consagrado (Lopes Neto,
1955, p. 14).
c.
Identidade gaúcha versus identidade brasileira
Depois de mapearmos a trilha dessa relação tensa entre a identidade
gaúcha e a identidade brasileira, desde seus primórdios, podemos observar a
persistência dessa pergunta obsessiva no pensamento nacional e de que
modo ela se intensificou durante a Primeira República (1889-1930).
Se, de um lado, a estética, nascida com o Romantismo e perpetuada nos
pressupostos naturalistas de Romero e outros, visava à invenção ideológicoliterária do Brasil-Nação, por outro, houve a necessidade de representar e
acolher as diversas regiões culturais do país, no que o regionalismo foi o
veículo fundamental.
O indianismo de José de Alencar foi uma vertente romântica, teve uma
vida breve, sendo substituído pelo regionalismo, ao qual o romancista também aderiu. Lúcia Miguel Pereira (1973, p. 181) entende que caberia ao
regionalismo ser superado por expressões literárias mais universais, não
deixando de assinalar, porém, a relação de sucessão entre as duas tendências, apontando, com isso, que a tendência regionalista representa um certo
avanço no conhecimento do Brasil. O propósito alencariano, exemplificado
no Gaúcho (1870) ou no Sertanejo (1875), será prosseguido e, por assim
dizer, na tentativa de autentificação, mesmo dentro da idealização românti16
Para maiores detalhes, vide: Diniz, 2003, p. 124-137.
Décima de Sepé Tiaraju
75
ca, perderá grande parte de sua literariedade, até o advento da obra de Simões Lopes Neto, na ânsia da captação do registro folclórico-lingüístico ou
antropológico.
Será apenas após a proclamação da República que, ainda na trilha da fixação de um passado mítico, mas já com a necessidade de apagar os rastros
monárquicos desse passado, que novamente caberá aos artistas, sobretudo
aos escritores, a reinvenção do Brasil e do brasileiro, agora em direção ao
dístico “ordem e progresso”. Mas o passado, a ordem latifundiária e a herança escravocrata continuariam – como continuam até hoje – nos atordoando com seus vivos fantasmas.
Entre os anos de turbulência e repressão da primeira metade da República Velha, começa o Brasil a se olhar como uma nação que precisa industrializar-se e urbanizar-se, ou como então se dizia, civilizar-se. O Brasil,
contudo, não é o Rio de Janeiro, a Capital Federal. Existe o Brasil rústico e
interiorano. É desse passado incivilizado, mas ainda tão presente, que o
real-naturalismo, em sua vertente regionalista, retirará tantas vezes sua força contestatória frente a um Brasil cartão-postal. Porém, o regionalismo, de
norte a sul, sobrevive também da estandardização e da idealização de seus
tipos locais. Não é à toa que, em seus extremos, o país esteja representado
emblematicamente pelos Farrapos (1896), de Oliveira Belo, e Pelo sertão
(1898), de Afonso Arinos, e, mais tarde, pelo Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, e Contos gauchescos (1912), de João Simões Lopes Neto.
Uma pergunta nos soa imprescindível: De que maneira o regionalismo,
alimentado por uma estética esgotada, pode sobreviver, espalhar e modificar-se, posteriormente, constituindo-se em importante elemento na revolução artística de 1922 com todas as suas conseqüências?
Para esboçarmos uma resposta a essa questão, carece entendermos o lugar de João Simões Lopes Neto, sua ideologia (que era a dominante em sua
época) e sua concepção estética, aliada à compreensão da maneira como o
trinômio “bacharelismo, regionalismo e nacionalismo” se articulou, gerando
na política nossos liberais conservantistas; na filosofia, nossos positivistas
de segunda mão, e, na literatura, os matizes intelectuais que encontraram
seu palco de luta e expressão nas escaramuças entre os escritores parnasianos (chamados de “passadistas”) e os modernistas, que iniciavam a redescoberta do Brasil.
d.
Tupi or not Tupi?
De tudo isso, restam-nos perguntas, inúmeras, novas e velhas. De tudo
isso, restam-nos poucas certezas. A única, remanescente, representa um
vasto caminho a ser trilhado, descobrindo que nenhum Brasil existe, porque
todos são possíveis.
76
Mário Matos

Identidades Ameríndias
Ao decidirmos estudar as identidades indígenas, utilizando para tanto os
textos simonianos do Lunar de Sepé, Lendas missioneiras e A Salamanca
do Jarau, importou-nos, fundamentalmente, tratar da noção de “nova gente”,17 isto é, a constituição étnica e cultural dos povos do Novo Mundo.
A compreensão do papel do índio na cultura gaúcha em muito pode ajudar a
desatar os nós entre nós. Nós quem, cara-pálida?
Esses nós são as relações de continuidade e ruptura estabelecidas entre a Província e o restante do Brasil, estabelecidas desde Caldre e Fião,
do Grupo do Partenon Literário, passando por Simões Lopes Neto e Alcides Maya, até Cyro Martins.
É na complexa dialética ente Peri e Blau Nunes que abrimos caminho
para examinar o problema da identidade cultural gaúcha e brasileira. De
qualquer modo, encontramos na arte simoniana, inclusive naquilo que ele
mesmo considerava “arte menor”, uma atividade que ele supunha apenas
de folclorista, uma chave para a investigação dos diversos projetos de
nação e, conseqüentemente, de identidades múltiplas, ora em conflito, ora
concorrendo para uma visão de integração nacional.
A escritura gauchesca de Simões Lopes Neto, diferentemente da idealização romântica ou parnasiana, embora existam interpretações em contrário, põe em crise a imagem do gaúcho-herói, tão empobrecida porque
estereotipada em intuitos ideológicos, para situá-lo no cerne de uma crise
identitária, conforme explanou Franzkonviak Martins (2003, p. 93-104).
Se não sabemos ainda quem somos nós, gaúchos, dentro da nação brasileira, e em que termos essas duas identidades culturais se cruzam e se
repelem, vale saber que somos filhos não só do Brasil, mas também do
Prata, o que nos serve para olharmos para o Brasil – até com olhos de
estrangeiro, já que pertencemos à “nação pampeana” – com uma visão
mais crítica, e para nós mesmos, como os que não ficaram congelados à
beira de um fogo de chão. Como bem disse o escritor e músico Vitor Ramil, em sua conferência de Genebra, Estética do frio: “Somos a confluência dessas três culturas [a platina, a rio-grandense e a brasileira], o encontro de frialdade e tropicalidade. Qual é a base de nossa criação e da nossa
identidade se não essa? Não estamos à margem de um centro, mas no centro de uma outra história” (Ramil, 2004, p. 28).
17
Para detalhar este conceito, vide: Bavaresco, 2003, p. 99-110.
Décima de Sepé Tiaraju
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Décima de Sepé Tiaraju
81
Décima de Sepé Tiaraju*
Mário Matos

PRIMEIRA PARTE
O desafio;
Blau evoca a morte de Sepé;
Missioneiro canta a memória de Sepé;
Açoriano contesta a brasilidade de Sepé;
Missioneiro defende em Sepé o gaúcho primitivo.
O DESAFIO
1
Certa vez fui assistir
Um rodeio em Vacaria;
Palavra, que não sabia,
O quanto eu ia aprender –
Cheguei ali pra vender
Uns trabalhos que eu fazia...
3
Antes de a festa iniciar,
Os piquetes vão chegando
E no fundo se acampando;
Cravando no chão estacas
E armando suas barracas
As saudações vão trocando.
2
Na Porteira do Rio Grande,
A gauchada atrevida,
Desde cedo está reunida,
Vinda de cada rincão –
E revive em tradição,
As raízes da sua vida.
4
Vai entrando gente em penca
E o recinto fica cheio;
Povo nosso, povo alheio;
Muita cor, muita alegria;
E, a tirar fotografia,
Muito gringo pelo meio.
* Esta “Décima de Sepé Tiaraju” foi publicada em primeira edição em 1985 por Martins
Livreiro Editor, de Porto Alegre. Edição esgotada há vários anos.
82
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Identidades Ameríndias
5
Depois de um grande desfile
De todas as comitivas,
Com belas flamas nativas,
Nas mãos de guapos campeiros,
Dispersam-se os cavaleiros,
Para as provas decisivas.
10
Num bom cavalo crioulo,
Vale da rédea a leveza,
Pois pouco serve a beleza,
Se a sua boca for dura –
Por isso, a raça se apura
Nos torneios de destreza.
6
No parque a gente se apinha,
O palanque está lotado;
A pista é um rincão cercado,
Todo de grama nativa,
Que é palco e que é cena viva,
Do campeador afamado.
11
Enquanto reinam no parque,
O gaúcho, o laço, a espora,
A juventude, lá fora,
Vai mostrando, nos tablados,
Com suas vestes e bordados,
Nosso fandango de outrora.
7
Baguais corcoveando feio,
Com ginetes destemidos;
Laços grandes em zunidos,
Atrás do novilho forte;
Provas de destreza e sorte,
Nos lances mais aplaudidos.
12
Desfilam formosas danças,
Desde o Anu, a Chimarrita,
A Tirana, o Pau-de-Fita,
Aos mais fortes sapateadores,
A Chula, os Facões ousados, Cada qual a mais bonita.
8
Montar num potro de em pêlo
E agüentar a velhaqueada,
É a ciência da gineteada;
Mas, se o bicho se planchar,
O jeito é de pé saltar,
Pra não ter perna quebrada.
13
Nem sei o que apreciar mais,
Se a força dos dançadores,
Com seus facões lutadores,
Ou se a graça no voltear,
Da linda prenda o seu par,
Em movimentos e cores.
9
Pra se alcançar um novilho,
Há que ter pingo ligeiro;
Mas o laço é traiçoeiro...
Pra a armada grande cerrar
E o chifre não escapar,
O índio tem que ser campeiro!
14
Enfim, quando chega a noite,
Cria vida o acampamento,
Pois é chegado o momento
Dos poetas e cantadores
Mostrarem os seus pendores,
Sua cultura e sentimento.
Mário Matos
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Identidades Ameríndias
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15
Vestindo os trajes da terra,
A mocidade desfia
A alma gaúcha em poesia,
Lado a lado co´os peões,
E as cordeonas e os violões,
Dão fundo à bela porfia.
20
O desafio do Açoriano
Pegava no povo inteiro,
Mas, das Missões o terreiro,
Sentiu pisado o seu poncho:
– Pra bater com esse troncho,
Só trazendo o Missioneiro!...
16
Desta vez, um desafio
Estava sendo esperado,
Desde o Rodeio passado,
Entre o Chiru Missioneiro
E o Açoriano sobranceiro,
Sobre um índio questionado.
21
Missioneiro era um chiru –
Mestiço lá da fronteira –
Conhecia a História inteira
Dos Sete Povos Cristãos,
E, pra atender seus irmãos,
Não disparou da carreira.
17
Contou-me uma gauchinha,
Que, no Rodeio anterior,
Discursava um orador:
Falava de Caiboaté –
E um monumento a Sepé,
Cobrou do Governador.
22
Estava chegando a hora
Do desafio ter início:
E, uns por gosto, outros por vício,
Todo o mundo estava atento;
O fato é que o acampamento
Mais parecia um comício.
18
Em aparte, o Açoriano
Gritou, que um tal monumento,
Não teria fundamento
Em nossa História oficial.
E um desafio, afinal,
Lançou, com atrevimento:
23
Já chegavam os dois tauras,
Para a frente do fogão,
Quando, pegando o violão,
Levantou-se um vacariano
E gritou – Falta um vaqueano,
Pra fazer a evocação!
19
– Dou prazo e não peço luz,
Pra quem saiba cantar bem;
Vamos ver quem é que tem
Violão pra me encostar,
E a História pra cotejar,
Até o Rodeio que vem!...
24
Foi então que do piquete,
Vindo de São Nicolau,
Trouxeram o velho Blau
E lhe disseram: – Tropeiro!
Na tradição és cancheiro;
Vai na frente deste vau!
81
Décima de Sepé Tiaraju
25
O velho Blau pigarreou,
Fumaceou bem seu palheiro,
Deu uma pensada primeiro
E disse: – Me dêem o pinho;
Vou ver se marco o caminho,
Pra o começo do entrevero!
SE BATEM COM FORÇA
E FÉ, CANTA
A MEMÓRIA DE SEPÉ
BLAU EVOCA
A MORTE DE SEPÉ
33
Silenciou o velho Blau,
Pra dar vez ao desafio
E um novo violão se ouviu –
Era o Chiru Missioneiro,
Que disse: – Bravo, tropeiro,
Por isso é que te aprecio!...
26
Um triste acontecimento,
Há mais de duzentos anos,
Nos traz o vento minuano;
Eu lhes conto, neste pinho,
Quem foi o grande e o mesquinho,
Neste pago americano.
34
Faz mais de duzentos anos,
Que Sepé tombou ao chão,
Mas eu tive a sensação,
Que estava ali do seu lado
E o seu sangue derramado,
Senti no meu coração!...
27
O sangue tingia o pasto
No Cerro do Batovi,
A vanguarda guarani,
Numa lomba era atacada,
Pela força conjugada
Do Tratado de Madri.
35
Daquele sangue no pasto,
Brotaram miles de flores,
Formosas como os amores,
Que os nossos ranchos guardaram
E que os fogões avivaram,
Na boca dos cantadores.
28
Já peleavam os valentes,
Há dois anos, por seu chão;
E, naquela situação,
Se batem com força e fé,
Pois seu cacique, Sepé,
É mais guapo que um leão!...
36
Inda hoje, pampa afora,
Se conserva a sua memória;
Tiaraju ficou na história
Da tradição missioneira;
E logo a América inteira
Há de cantar sua glória!...
Mário Matos

Identidades Ameríndias
82
AÇORIANO CONTESTA
A BRASILIDADE DE SEPÉ
37
Chegou a vez do Açoriano,
Moço bonito e elegante,
Sabido, mas arrogante,
Tinha ficado afamado,
Por ganhar, em todo o Estado,
Um concurso de estudante.
38
A idéia que apresentou,
Sobre a Guerra das Missões,
Foi baseada nas lições
Da História oficializada,
De uma turma bem montada
Do arraial dos sabichões.
39
Ele ergueu seu violão,
Num bordoneio seguro
E o acorde saiu tão puro,
Que a gente toda gostava;
Mas ninguém desconfiava,
Que o Açoriano ia ser duro...
42
O território que temos,
Do Rio Grande quase inteiro,
Seria hoje estrangeiro,
Se vencesse a rebelião;
Não seria mais um chão
Neste solo brasileiro.
43
Glória eu vejo nos heróis
Da tradição nacional!
Mas, ai do sentimental,
Que ao índio segue no engano
E esquece do lusitano,
Nosso tronco principal.
44
E me responde, se podes,
Mas não fujas, Missioneiro:
Era Sepé brasileiro,
Ou um súdito da Espanha?
Eu pago um trago de canha
A quem responder primeiro!...
MISSIONEIRO DEFENDE EM
SEPÉ O GAÚCHO PRIMITIVO
40
– Senhores, peço licença,
Pra lhes clarear a memória;
Não vejo nenhuma glória,
Na morte do tal Sepé;
Por mim esse índio até
Nem entrava em nossa História!...
45
Depois daquela agachada,
O Açoriano se calou,
Mas inda repinicou
O violão por desacato;
A trova dele, de fato,
A muitos impressionou.
41
Que herói é esse afinal?
Pra mim é um pobre coitado,
Pois, combater um Tratado
E enfrentar duas potências,
Sem pesar as conseqüências,
É querer ser derrotado!
46
Não faltaram os aplausos
Pra a cantiga do rapaz:
Era um pessoal lá de trás,
Que estava ali de gaiato,
Sem entender bem do fato
E achando o moço sagaz.
83
Décima de Sepé Tiaraju
47
Bufavam velhos campeiros,
De marca quente co’aquilo,
Enredados com o estilo,
Sem encontrar argumento,
Mas em meio a tudo atento,
Missioneiro está tranqüilo.
52
Com cidades e lavouras,
Oficinas, gado e estâncias,
Tinham tudo em abundância,
Pois se uniam no trabalho;
O seu único atrapalho
Era do branco a ganância.
48
Ele retoma seu pinho,
E recomeça a trovar:
– Açoriano, ao teu cantar,
Estou pronto a responder;
Não te apotres que vais ter
Muita canha que tomar.
53
Por ironia da História,
Os índios eram cristãos,
Desejavam dar as mãos
Aos brancos da mesma crença,
Mas só levavam ofensa
Dos desalmados irmãos.
49
O que Sepé combatia
No Tratado de Madri,
Não era o tratado em si,
Do qual nem tinha noção;
Era sim, contra a expulsão
Do seu povo guarani.
54
Quem escravizava o índio
Por todo este continente,
Não podia estar contente
Vendo florir as Missões,
Pois elas davam lições,
Mostravam que o índio é gente.
50
Foi a ordem desumana
Resolvida no além-mar,
Sem nada considerar,
Mandando os índios embora,
Das suas terras pra fora,
Pra delas se apoderar!
55
Isso explica o tal Tratado
Entre as potências rivais;
Nele, as Cortes coloniais
Aplainavam suas questões,
Pra dar um fim nas Missões,
Que já lhes eram demais...
51
Golpe baixo nas Missões,
Onde o índio progredia
E a riqueza produzia,
Mostrando ao resto do mundo
Um viver novo e fecundo,
Que ao seu redor não se via!
56
A insurreição guarani
Foi legítima defesa,
Teve heroísmo e beleza;
Só interessa aos potentados
Chamar heróis de coitados
E ignorar sua grandeza!
Mário Matos

Identidades Ameríndias
84
57
Quem pode entender teu gesto
De ao índio negar direito
E de achar que foi perfeito
O invasor que o massacrou?
“Se foi luso, não errou” –
É esse o teu preconceito!
62
Entendo enfim que Sepé
Foi súdito de sua gente;
E que esse índio valente,
Nascido na nossa terra;
Contra a injustiça fez guerra,
Dando a vida heroicamente.
58
Nosso tronco é lusitano,
Mas a raiz é mestiça,
Pois se criou na injustiça,
Como raça marginal,
E do patrão colonial
Só vinha o mando e cobiça.
63
Querer negar a importância
De Tiaraju e das Missões,
É ignorar tradições
Da nossa faina campeira,
Que tem marca missioneira
Do focinho até os garrões.
59
É falso querer cobrar
De Sepé “brasilidade”,
Pois nesse tempo, em verdade,
Brasil ainda não havia –
Brasileiro não podia
Ter pátria e nem liberdade!
64
Quem o gado introduziu
E o laço já manejou;
Quem o chiripá criou
E as primeiras campereadas,
Nas coxilhas orvalhadas
De um rodeio praticou?
60
Já te esqueceste, Açoriano,
Da morte do Tiradentes
E o fim dos Inconfidentes,
Como traidores julgados,
Pelas Cortes condenados,
Por se acharem diferentes?
65
Quem já domava baguais
Crioulos de pura raça,
Montando com garbo e graça,
De laço e bolas nos tentos,
De poncho ondulando aos ventos,
Nesta campanha lindaça?
61
Pretender marcar Sepé
Como súdito espanhol,
É como tapar o sol –
Só falta que me sustentes
Que era luso o Tiradentes,
Pra completar o teu rol!...
66
Um primitivo gaúcho,
Foi o índio missioneiro
E hoje seu sangue altaneiro,
Também faz parte do nosso.
É por isso que eu não posso
Negar que ele é brasileiro...
85
Décima de Sepé Tiaraju
67
Mesmo o povo deste pago,
Negar isso poderia,
Se o seu nome, Vacaria,
Vem dos gados iniciais?
Vacaria dos Pinhais –
Estância índia de cria!...
70
Um grande aplauso acolheu
A trova do missioneiro,
Que o Chiru não foi tambeiro,
Respondendo a tudo esperto,
Cantando de peito aberto,
Sem disparar do terreiro!...
68
Ao teu cantar, Açoriano,
Eu respondi com o meu;
Vamos ver quem foi que deu,
A esta gente da campanha,
Não o teu trago de canha,
Mas algo que a convenceu!
71
Mas a noite era avançada
E o pessoal da comissão
Interrompeu a função,
Pra descanso da peonada,
Que, naquela madrugada,
Tinha muita obrigação.
69
Se tens os olhos fechados,
Ou se pensas com preguiça,
Andas longe da justiça.
Sepé sempre vivo está.
O mesmo já não se dá
Com tua verdade postiça!
72
Ficou pra noite seguinte
O desafio continuar;
E a turma foi se encostar;
Cada um no seu achego;
Eu fui dormir num pelego,
Que puderam me arrumar.
SEGUNDA PARTE
Recomeça o desafio;
Blau evoca a batalha de Caiboaté;
Açoriano nega a liderança dos índios;
Missioneiro reafirma a liderança dos índios.
RECOMEÇA O DESAFIO
73
O sol levantou bonito
No pago de Vacaria
E o rodeio já seguia,
Agora em nova atração:
O mouro contra o cristão,
Nas cavalhadas corria.
Mário Matos

Identidades Ameríndias
74
Grupos rivais de ginetes
Formam de um oito a laçada;
E ao cruzar em disparada,
Cotejam com altivez,
Uma arma em cada vez:
A lança, a pistola e a espada!
86
75
Muitas cenas são corridas,
Sem parar pra desafogo:
Castelos de cruz e fogo,
Esc’ramuças pelo meio,
Alcancilhos e torneio,
Das argolinhas, o jogo.
80
E o dia correu pesado,
Com rodadas de mau jeito,
Dessas que põem um sujeito
A depender de um irmão,
Que lhe dê respiração,
Boca a boca e peito a peito!
76
No final tem um assalto,
Onde o castelo é tomado;
E o rei mouro, derrotado,
Já liberto da maldade,
Ingressa na cristandade
Co’o rei cristão do seu lado...
81
Mesmo assim, a gauchada,
O cansaço não sentiu
E, quando o dia sumiu,
Todo o mundo achou alento,
Pra voltar no acampamento
E assistir o desafio.
77
Apesar da ingenuidade
Desse enredo milenar,
A cavalhada é sem par,
Quando em ação se apresenta;
Delicada ou violenta,
Mas bonita de se olhar.
82
Antes da hora marcada,
Viu-se chegar o Açoriano,
Num poncho de belo pano,
Já pronto pra começar;
Mas alguém mandou parar
E falou para o aragano:
78
No passado, essa peleja,
Era um treino ao lutador;
E ali muito campeador
Deu prova da sua destreza,
Antes de usar, na dureza,
As armas do peleador.
83
– Açoriano, és preparado
E pode correr de alcance;
Por isso, aguarda um relance,
Pois o leme desta nau
Vai voltar ao velho Blau,
Pra nos contar outro lance!
79
Nela, o gaúcho e o cavalo
Mostram artes e proezas
Unindo suas naturezas;
Cada prova é um risco quente,
Com perigo de acidente,
Nos ataques e defesas.
84
A deixa do vacariano
Teve logo aprovação:
E, ao correr do chimarrão,
Todo o fogão se animava,
Enquanto o Blau retornava,
Pra fazer a evocação.
87
Décima de Sepé Tiaraju
BLAU EVOCA
A BATALHA DE CAIBOATÉ
85
Amigos – disse o tropeiro –
Está bonito este pleito,
Mas já que me dão direito
De atalhar esta moçada,
Eu não refugo a parada.
Pego o pinho e abro o peito:
90
Ao chegar em Caiboaté,
Avistam na sua frente,
A formação imponente
Do exército coligado,
Que logo forma em quadrado,
Para o combate iminente.
86
Geme o sopro do minuano,
Geme a corda do violão;
Meu cantar brota do chão,
Dos campos de Caiboaté;
De uma tosca cruz ao pé,
A História surge em visão.
91
E as duas forças opostas,
Estacam, fazendo praça;
Os índios, em ameaça,
Cortam inteira a passagem,
Com tanta audácia e coragem,
Que o inimigo se embaraça.
87
Dia dez de fevereiro,
Rumo à batalha final,
Vem a força colonial,
De duas nações formada
E em dois anos preparada,
Por Espanha e Portugal.
92
Ficam assim por uns tempos,
Fingindo parlamentar;
E os índios, ao negacear,
Querem ver se o tempo corre,
Que a hora em que o dia morre,
Será melhor pra atacar.
88
São quase quatro mil homens,
Marchando com desafogo;
Armas brancas e de fogo,
Muitas peças de canhão,
Cavalos e munição,
Como quem domina o jogo.
93
A tarde já está no meio
E Gomes Freire, impaciente,
Ante o bloqueio insolente,
Manda um próprio lhes dizer,
Que, se não querem morrer,
Tratem de se abrir urgente.
89
Os guaranis, galopando,
Em bons fletes vêm montados,
Lanças e arcos nos costados,
Na cintura as boleadeiras,
E bem na frente, as bandeiras
Dos Sete Povos amados!
94
Na frente dos guaranis,
Lhes responde Languiru,
Firme como um velho Umbu:
– É melhor morrer peleando
Do que viver rastejando –
Nos ensinou Tiaraju!
Mário Matos

Identidades Ameríndias
88
95
Partiu do lado espanhol,
Um tiro, naquele instante;
Caramba! No soflagrante,
Rebenta o clamor de guerra,
E os cascos soam na terra,
Como num tambor gigante!...
100
Depois de todo esse estrago,
Por fazer mui pouco havia;
Quanto corpo ali jazia,
Espalhado na coxilha!
E o que sobrou da guerrilha,
Nem tinha mais montaria...
96
São dois mil a galopear
Contra as fortes legiões;
Têm fúria seus corações
Já lhes mataram Sepé.
Mas inda empunham com fé,
As lanças contra os canhões!...
101
Nessa hora, os coloniais,
Montados e bem armados,
Atacam, pelos dois lados;
Não dão prova de coragem,
Mas de simples bandidagem,
Contra os índios derrotados.
97
O céu quase escurecia,
Com as flechas que voavam,
Mas pouco dano causavam
Aos homens encouraçados;
Somente a alguns descuidados,
Que com a vida pagavam.
102
Parecendo caçadores,
Contra os bichos sem defesa,
Fazem seu alvo na presa,
Por trás de seus mosquetões;
Não são valentes dragões –
São covardes sem nobreza.
98
Ao romper da artilharia,
Começa a carnificina;
Não é combate, é chacina,
Pois o invasor nem se bate:
Aos cavaleiros abate
Com sua metralha assassina.
103
Mil e quinhentos morreram
Do lado dos guaranis,
Num massacre dos mais vis,
Por culpa dos potentados,
Donos do mundo arvorados,
Dentro dos nossos Brasis.
99
Cada obus cai como um raio,
Sobre as fileiras cerradas;
São relinchos, são rodadas,
São bravos rolando a terra,
Morrendo o grito de guerra
Na garganta destroçada!...
89
Décima de Sepé Tiaraju
AÇORIANO NEGA A
LIDERANÇA DOS ÍNDIOS
104
A trova do velho Blau,
Com emoção foi ouvida
E de pé muito aplaudida,
Por toda a aquela gauchada;
Mas stava sendo esperada
Uma resposta atrevida.
108
Nessa guerra das Missões,
Aos índios eu dou desconto,
Pois quem age como tonto,
É porque não tem cabeça,
E basta que se conheça,
Pra ver quem caiu no conto.
105
A resposta ia ser dada,
Pelo açoriano a trovar;
Ele estava para estourar
Por ser passado pra trás;
A verdade é que o rapaz
Não gostava de esperar.
109
A Companhia dos padres
Moveu campanha ao Tratado,
Desde que fora assinado,
Entre Espanha e Portugal;
E fez de tudo, afinal,
Pra que não fosse aplicado.
106
– Aqui stou eu novamente,
Caros Senhores da festa,
Levando coice na testa,
Por não crer em ilusão;
Mas rasgo com meu violão,
Picada em qualquer floresta!
110
Esses padres jesuítas,
Tinham aqui sua potência
E abusaram da inocência
Dos índios catequizados,
Já por eles educados,
Na paz ou na violência.
107
Afinal, quem não lamenta,
Dos índios a triste sorte,
De encontrar assim a morte,
Como um rebanho aloucado,
Que, cego e desembestado,
Investe contra o mais forte?...
111
Por cartas e documentos,
Em que a História se respalda,
Sabemos que um padre Balda
Fica lá na Redução,
Dando ordens e instrução,
Enquanto o índio se escalda.
Mário Matos

Identidades Ameríndias
90
112
É triste a gente saber,
Que os índios foram usados
E à guerra fanatizados,
Pelos padres, seus tutores,
Que estavam nos bastidores,
Ao seu império agarrados.
116
Assim é o nosso gaúcho:
Jovial e despretensioso,
Esquece o gesto acintoso
E até gosta da ironia,
Se alguém lhe deu a alegria
De se mostrar valoroso.
113
Me dá pena quando vejo
Gente que se acha sabida,
Fazendo trova comprida
E explorando sentimentos,
Sem pôr a razão nos tentos,
Querer ganhar a corrida.
117
Até o Chiru Missioneiro,
Sem perder o bom humor,
Foi saudar seu contendor:
– Gostei da tua agachada;
Monto a petiça suada
E vou para o partidor
114
Para esses fracos ginetes,
Minha verdade é postiça
E o meu pensar tem preguiça,
Mas não preciso esporear:
Não pode a um puro alcançar,
Quem vem montado em petiça!
118
Minha petiça, Açoriano,
É sã de pata e de lombo
E não é de levar tombo;
Se tu não tomas cuidado,
Com esse puro estropiado,
A petiça te abre um rombo!...
MISSIONEIRO REAFIRMA
A LIDERANÇA DOS ÍNDIOS
115
As tiradas do Açoriano
Tiveram lá o seu efeito;
Mas não tinha o mesmo jeito,
O eco que ele encontrava;
Ninguém mais se impressionava
Com o moço tão perfeito.
91
119
Não tiro tua razão,
Em achar que me alonguei,
Na resposta que te dei;
Porém não vou te enganar.
Pois pretendo continuar
A dizer tudo o que eu sei.
120
Não se afinam as cantigas
Dos nossos dois violões,
Sobre a História das Missões:
Afinal quem fez a guerra?
Os nativos desta terra,
Ou os padres das Reduções?...
Décima de Sepé Tiaraju
121
Tu lamentas o massacre,
Dos índios em Caiboaté
E ao te ouvir, eu creio até,
Que tenhas sinceridade,
Mas toda a História, em verdade,
Não olhas com boa fé.
126
Por várias cartas e audiências,
Pediram ao rei de Espanha
Para desfazer a barganha;
Pois as Missões, até então,
Estavam na proteção
Dessa Coroa piranha.
122
Eu digo que essa chacina
Só teve um grande culpado –
Que a causa foi o Tratado
E a guerra a sua conseqüência;
Tu dizes que sem consciência,
O índio foi sacrificado.
127
Vale a pena recordar,
Que foi dessa proteção,
Dada em segunda intenção,
Que os padres aproveitaram
E sua obra iniciaram,
Com puro zelo cristão.
123
Vou mostrar, contando os fatos,
E clarear que o teu mistério,
Da lenda de um tal império,
Dominado pelos padres,
É história só de comadres,
Que não tem base ou critério.
128
Nascidos na velha Europa,
Eram de muitas nações,
Aqueles guapos varões,
Na Companhia irmanados,
E nos Colégios treinados,
Para a faina das Missões.
124
Essa velha acusação
Vem do Marquês de Pombal,
Ministro de Portugal,
Que da Ordem de Jesus,
Mais do que o Diabo da Cruz,
Era inimigo mortal.
129
Com sua coragem e fé,
Penetrando no sertão,
Viram no Índio seu irmão;
E foi seu primeiro plano,
Fazer dele um ser humano,
Antes de o fazer cristão.
125
Dizes bem, que os jesuítas,
Desde o começo, buscaram
E muito esforço tentaram,
Para evitar que o Tratado
Viesse a ser aplicado,
Pelos reis que o assinaram.
130
Esses homens de Jesus
Fizeram obra de paz,
Dando mensagem capaz
E enfrentando o sacrifício,
Morrendo até no suplício,
Sempre à frente e nunca atrás.
Mário Matos

Identidades Ameríndias
92
131
Havia no meio deles
Variados profissionais,
Dos ofícios principais:
Arquitetos e engenheiros,
Tecelões e carpinteiros,
Artistas e muito mais.
136
República foi chamada;
Não era império, afinal,
Mas conquista espiritual;
E essa conquista tamanha
Era escondida da Espanha,
No relatório anual.
132
Partindo da estaca zero,
Cheios de amor e paciência,
Passo a passo, a sua ciência,
Foram trocando em miúdos;
E o índio aprendeu de tudo,
Brilhando na inteligência.
137
Por quase século e meio,
Brilhara a luz proibida
Dessa alegria escondida;
Mas quando a opressão é moda,
A liberdade incomoda
E tem de ser destruída!
133
Os índios foram artistas,
Na música e na escultura,
Nas danças e na pintura;
Desse tempo luminoso,
Há um cabedal precioso,
De expressão ingênua e pura.
138
Teve fim a longa farsa
Da proteção espanhola
E chega a hora da esfola –
O lobo diz ao cordeiro,
Que saia do seu terreiro,
Que a proteção... era esmola!
134
Por ocasião das colheitas,
Grandes festas se faziam;
Cavalhadas se corriam;
E até os atos religiosos
Davam sinais grandiosos
De um povo com alegria!...
139
O Tratado de Madri.
Por três anos retardado,
Agora ia ser aplicado;
E até um padre desumano,
Um tal Luís Altamirano,
De cima foi enviado.
135
Foi assim que construíram,
Por quase século e meio,
Com grande e sólido esteio,
A vida das Reduções
E o sucesso das Missões,
Que o índio apoiava em cheio.
140
Esse padre comissário
Do Superior Jesuíta,
Tinha uma carta esquisita,
Dando-lhe posto eminente,
Pra todo este continente,
Onde a Ordem tem guarita.
93
Décima de Sepé Tiaraju
141
Os guaranis esperavam,
Que os seus mestres veteranos
Assumissem de vaqueanos,
Com sua ciência batuta,
Entrando firmes na luta,
Pra dar vitória a seus planos.
146
Foi quando a voz dos caciques,
Mais alta se fez ouvir:
– Não temos para onde ir!
A deixar a nossa terra,
Preferimos ir à guerra –
Daqui não vamos sair!
142
Se os padres participassem,
Com toda sua liderança,
Talvez virasse a balança,
Pois, unindo as Reduções,
Seriam grandes legiões,
Equipadas, com pujança.
147
Os padres não convenciam
Os índios em reboldosa
E, nessa hora custosa,
Todo padre é um ser humano;
Só o padre Altamirano
Teve fuga desonrosa;
143
Eles teriam mostrado,
Como outrora em M’bororé,
Quando o índio pôde até
Resistir ao Bandeirante,
E, com tática arrasante,
O obrigou a arredar pé!...
148
Quase todos sacerdotes,
Na hora da decisão,
Seguiram seu coração:
Ficaram nas suas capelas,
Dando provas das mais belas
Do sentimento cristão.
144
Mas os padres das Missões,
Pensando na disciplina,
Que aceitaram na doutrina,
Não entraram nesse plano;
É que o tal de Altamirano
Já mandava atrás da esquina...
149
Padre Balda, Tadeu Henis,
Foram homens de respeito –
Diminuí-los não tem jeito;
Açoriano, estuda a sério,
E não me vem com mistério
De documento suspeito!...
145
Contra os próprios sentimentos,
Pregando à população,
Tentaram a emigração,
Começando a procurar,
Na outra banda, um lugar,
Para a nova instalação.
150
Se não te basta, contudo,
O que acabei de contar,
Lembrança deves guardar
De outro fato conhecido:
O inquérito promovido,
Após a guerra findar.
Mário Matos

Identidades Ameríndias
94
151
Foi Don Pedro de Ceballos,
Vice-rei do Rio da Prata,
Quem fez a devassa exata,
Por ordem da sua coroa;
E, mesmo que isso te doa,
Eu conto o que ela relata.
156
Achas que o índio lutou,
Só por ser catequizado
E viver fanatizado,
Nas rédeas de “agitadores”,
Os jesuítas, seus tutores,
Que o teriam dominado...
152
A acusação aos jesuítas,
O inquérito investigou
E as tais “provas” estudou –
Mas, por mais que procurasse
O que aos padres implicasse,
Nada de culpa encontrou!
157
Que me dizes, entretanto,
Do guerreiro não cristão,
Que lutou na mesma ação,
Como o Guênoa e o Minuano,
Por sentir o mesmo dano,
Que o guarani, seu irmão?
153
Ora, quem senão a Espanha,
Estaria interessado
Em condenar o acusado
Da mais alta traição,
Se o julgasse em rebelião
Contra o seu trono sagrado?...
158
Esses índios cavaleiros,
Não eram catequizados,
Não podiam ser levados
Por cabeça de terceiros –
Eram os mais altaneiros,
Dos guerreiros indomados.
154
Mesmo assim, o tal Pombal,
Mandando nas duas coroas,
Inda fez poucas e boas,
Contra os padres das Missões:
Deportados em grilhões,
Foram judiados, à toa.
159
Sem a ajuda de ninguém,
Por dois anos nas guerrilhas,
Os centauros das coxilhas
Já sabiam sua lição,
Pois o amor ao pátrio chão,
Descobre suas próprias trilhas!...
155
Tu garantes que o nativo
Nada resolveu por si;
Tu negas ao guarani,
Qualquer personalidade;
Sua cabeça e sua vontade,
Não têm valor para ti.
160
Com isso eu dou por provado,
Que a luta – o duro caminho –
O índio escolheu sozinho,
Preferindo a resistência,
Contra o abuso e a prepotência,
Por sentir na carne o espinho!
95
Décima de Sepé Tiaraju
161
Entre todos os caciques,
Tiaraju se agigantou,
Pois foi ele que ponteou,
Naquele primeiro instante,
Dos guaranis o levante
E que à luta os comandou.
164
Ficou na História gaúcha,
Aquele brado altaneiro
Do caudilho missioneiro;
- Alto! Esta terra tem dono!
E o nativo com entono,
Fez recuar o estrangeiro.
162
Foi ele quem pôs em fuga
E derrubou todo o plano,
Do tal padre Altamirano,
Esse que era o pau mandado,
Para aplicar o Tratado,
Contra o índio americano.
165
Foi enfim o Tiaraju,
O incansável lutador,
Que em dois anos, por amor
Da sua gente e da sua terra,
Pôs o pampa em pé de guerra,
Sem dobrar-se ao invasor.
163
Foi Sepé que, logo após,
Noventa léguas andou
E com sua Força embargou
Os primeiros invasores,
Soldados e agrimensores,
Que em Santa Tecla encontrou.
166
Sua morte não foi em vão,
Foi salto de qualidade,
Pois nunca morre em verdade,
Quem nos dá tão grande exemplo:
Montado ele está, no templo,
Dos Heróis da Liberdade!...
TERCEIRA PARTE
A entrega do prêmio;
Blau evoca o encontro de Sepé e Gomes Freire;
O destino do prêmio.
A ENTREGA DO PRÊMIO
167
Vibra o Parque do Rodeio,
No dia da despedida;
A gineteada é renhida;
E, lá nas arquibancadas,
As vistas estão voltadas,
Pra uma cena sacudida.
Mário Matos

Identidades Ameríndias
168
Urrando como um demônio
E corcoveando volteado,
Este bagual colorado
Já derrubou muita gente,
Mas parece que o valente,
Agora, está bem montado.
96
169
Co´a mão esquerda na crina
E a outra mão reboleando,
O ginete rodopiando,
Não perde aprumo no espaço
E as pernas são como um aço,
No costilhar se fechando.
174
No matungo de sua rédea,
O velho é um quebra largado,
Que corta reto ou quebrado
E, ao voltear cada baliza,
Nem deixa rastro onde pisa,
Num galope costurado!...
170
Quando o bicho, que é maleva,
Por refugar a parada,
Se atira noutra negada
E vai à terra de plancha,
O gaúcho em pé deslancha,
Folheiro, de rédea alçada!
175
Velho Blau não tem cavalo –
É de um amigo o rosilho,
Que adestrou desde potrilho;
Tropeiro de profissão,
Ele é a própria tradição,
Sempre em cima de um lombilho.
171
Levantam-se aclamações,
Para aquele topetudo,
Que dominara o clinudo,
Com fibra de um veterano;
E foi a vez do Açoriano
Sair da cancha com tudo!...
176
Chega ao seu fim o rodeio:
A tarde morre na pista;
Quem stava ali de turista,
Vai logo se retirando,
Mas o povo, ali ficando,
Tem outro programa em vista.
172
Quem também tirou sua lasca,
Foi o Chiru Missioneiro,
Que, num bragado ligeiro,
Cerrou mui lindo o seu laço,
Nas aspas de um boi picaço,
Depois de um tiro certeiro.
177
Em volta do acampamento,
Chega gente de montão,
Pra esperar a comissão,
Que vai dar o resultado
Do desafio encerrado,
Outra noite, no fogão.
173
Mas o encanto da platéia
Foi nas provas de destreza,
Presenciar a ligeireza
Do velho Blau vaqueano,
Num rosilho rabicano,
Estribando com firmeza.
178
No fundo de uma barraca,
Há um prêmio que ninguém viu,
Guardado pra o desafio;
Uns dizem que é coisa fina,
Mas o peão lá da cortina,
Não conta a ninguém um pio.
97
Décima de Sepé Tiaraju
179
A lua no firmamento,
Sua claridade estendia,
Sobre o pampa, em Vacaria;
E nas nuvens que passavam,
Os gaúchos enxergavam,
Mil e uma fantasias...
184
– Eu e estes quatro parceiros
Tivemos, desde o começo,
De avaliar com muito apreço,
Este debate tão raro
E a todos nós muito caro,
Que em verdade não tem preço.
180
– Ali vai, no Pastoreio,
O Negrinho e sua Tropilha!...
Vejam só que maravilha!...
– E aquele gigante nu?
É o Sepé Tiaraju,
Em combate, na coxilha!...
185
O julgamento foi feito,
Pensando em toda a nação;
Por isso, nenhum senão
Pudemos acrescentar,
Ao que já soube julgar
O povo deste fogão.
181
Proseando e tomando mate,
Rodeando o grande fogão,
Esse pessoal folgazão,
Fica sério por encanto,
E faz um silêncio e tanto,
Quando chega a comissão.
186
O Açoriano trovou bem
E mostrou ter valentia,
Teve até categoria;
Mas faltou na sua rima,
Aquela força que anima,
Chamada democracia.
182
Vem na frente o Vacariano,
Que logo passa a anunciar:
– Tenho a honra de saudar,
Nossos guapos trovadores
E peço aos dois contendores
Que venham se apresentar!
187
O Missioneiro foi claro,
Nos dando todo elemento,
Pra entender seu argumento –
E sua visão da História,
Na trova teve a vitória,
Merecendo acatamento!...
183
E diante dos dois torenas,
Que se haviam cotejado,
Ele apontou ao seu lado
Os jurados do fogão,
Gaúchos de tradição,
Dos quatro cantos do Estado:
188
No meio do barulhão,
Da alegria que estourou,
Vacariano autorizou,
No ouvido do capataz,
Pra trazerem lá de trás
O prêmio pra quem ganhou.
Mário Matos

Identidades Ameríndias
98
189
Perceberam no fogão,
Alguém, que a pua sentia
E lá pra fora saía:
Não sabendo levar cano,
O orgulhoso do Açoriano
Se foi embora à lá cria...
194
Se surpresa teve o povo,
Maior teve o Missioneiro,
Que até ficou caborteiro,
De um prêmio assim cobiçado,
Pra quem stava calejado
De trovar o tempo inteiro.
190
Ninguém vaiou nem se riu
Da atitude do rapaz,
Que afinal, sabe o que faz,
E o pessoal agora olhava
O prêmio que já chegava,
Da barraca lá de trás.
195
Mas se o chiru duvidava,
Teve ali confirmação,
Por parte da comissão,
Que tudo no acampamento
Constou do regulamento
Do centro de tradição.
191
O pingo que ali surgia,
Não se tinha visto igual;
Que pintura de animal!
Gateado de frente aberta,
Olho vivo e orelha esperta,
Crioulo puro e especial!
196
Missioneiro se acalmou;
E, enquanto o povo aplaudiu,
Beijou o potro e sorriu,
Respirou fundo um pedaço
E então, levantando o braço,
Que lhe escutassem pediu:
192
Com pilchas de qualidade,
Já vinha o flete encilhado:
Coberturas de veado
E as tranças de couro cru,
Do feitio de Canguçu –
Tudo forte e delicado!...
197
– Um pingo deste quilate,
Parece até, minha gente,
Regalo pra Presidente;
Mas tenho a satisfação
De saber da Comissão,
Que é prêmio, não é presente!
193
Num clarão onde ficou
Pra o povo poder olhar,
O gateado a relinchar,
Parece até que sabia,
Que tinha a categoria
Da sua raça pra mostrar!
198
Se o presente é compromisso,
O prêmio dá liberdade;
E eu tenho a felicidade
De dispor desse direito,
Que me deram neste pleito,
Para um ato de vontade.
99
Décima de Sepé Tiaraju
199
Amo um cavalo de lei,
Por Deus e um patacão!
Com este pingo e um violão,
Qualquer gaúcho é Monarca;
Mas deixo o bicho orelhano
E aqui chamo o Blau Vaqueano,
Pra que lhe ponha sua marca!
204
Velho Blau stava parado,
Vendo tudo acontecer,
Pensando no que dizer;
E notaram que o tropeiro
Tinha na vista um argueiro,
Que não dava para esconder...
200
Tendo à frente o velho Blau,
Que veio quase empurrado
Pelo povo entusiasmado,
O chiru, com forte abraço,
Fez a entrega do pingaço
Para o amigo admirado:
205
Talvez ele recordasse,
Maneado pela saudade,
Os tempos da mocidade;
Ou talvez fosse surpresa
Com tanto valor e alteza,
Pra um pobre da sua idade...
201
– Aqui está, tropeiro velho,
Vê se este pingo te agrada;
Eu não sou nenhuma fada:
Só agradeço à comissão,
Por ter me dado ocasião
De fazer esta gauchada.
206
Mas sem se dar por achado
Disse sorrindo o tropeiro:
– Este Chiru Missioneiro,
Me dando assim num pialo
Esse mimo de cavalo,
Foi mais que um cavalheiro!
202
Tu com o teu guapo cantar
Já provaste merecer;
Mas terei grande prazer,
Se esta noite em despedida,
Deres outra sacudida
Na História, com teu poder!...
207
Não me abro por enquanto
E agradeço o seu presente –
Também não sou presidente;
Por isso, findando a trova,
Pretendo lhes dar a prova,
Do que eu penso realmente.
203
Conta pra nós, índio velho,
Com teu violão que não erra,
Mais passagens dessa guerra,
No tal passo do Jacu,
Que mostrem o Tiaraju
Em ação, por esta terra!...
208
E o velho Blau Vaqueano,
Depois do trago espumoso,
De um mate quente e gostoso,
Passa adiante o chimarrão
E já dedilha o violão,
No seu trinado harmonioso:
Mário Matos

Identidades Ameríndias
100
BLAU EVOCA O ENCONTRO
DE SEPÉ E GOMES FREIRE
209
– A História de nosso pago,
Torno a cantar neste pinho;
Cantei a rosa e o espinho,
Cantei a morte que dói;
Canto agora, vivo, o Herói,
Nas trilhas do seu caminho.
214
Perdendo vários soldados
Flechados pelos nativos,
Os coloniais vingativos
Usavam a artilharia,
Mas o índio já respondia
Com seus canhões primitivos.
210
Subindo pelo Jacuí,
Vem a força portuguesa,
Que, vencendo a correnteza,
Quer atingir as Missões;
E, no Rio Pardo, os dragões
Encravam sua fortaleza.
215
Inventados nas Missões,
Pra enfrentar os bandeirantes,
Eram trabucos gigantes,
Feitos de grosso bambu,
Forrados de couro cru
E arcos de ferro abraçantes.
211
No comando lusitano,
Vem um chefe de nomeada
Da colônia encastelada
Nas sedes do Litoral: –
É o Vice-Rei, General,
O Gomes Freire de Andrada.
216
Por meio dos oficiais,
Gomes Freire toma ciência
Da bravura e da insolência
Dos guaranis em ação
Tendo à frente um Capitão
De invulgar inteligente.
212
Para lutar contra o Forte,
Se agrupam os guaranis
Do Povo de São Luís,
Que vai à guerra com ânsia,
Pois o Rio Pardo é estância
E agora está por um triz.
217
Eles tomaram do Forte,
Numa audaciosa sortida,
A cavalhada reunida,
Que pastava num rincão,
Deixando ali pelo chão,
A ronda toda estendida.
213
A luta fica parelha
Quanto a maior Redução –
São Miguel – entra em ação:
O índio cresce em potência
E ataca com mais freqüência
A patrulha e o pelotão.
218
As buscas que foram feitas
Não tiveram resultado;
Mas vendo o esforço baldado,
O comando português
Jogou sujo dessa vez,
Pra ter o índio enrascado.
101
Décima de Sepé Tiaraju
219
Propondo uma Conferência,
É hasteada bandeira branca –
Dos índios, lá na barranca,
É chamado o Capitão –
E o Forte abre seu portão
De covil da Salamanca.
224
Queriam os portugueses
Que o índio, dessa distância,
Explicasse a extravagância,
De gente valer cavalo;
E o cacique, sem abalo,
Zomba dessa ignorância
220
Pela honra militar,
Que julgava ser sagrada
E nunca desrespeitada,
O chefe dos missioneiros,
Com cinqüenta companheiros,
Entra... e cai nessa cilada.
225
– Sem passar pra o outro lado
E com eles conversar,
Como posso negociar?
O intérprete traduziu
E o pelotão todo riu:
– O que ele quer é escapar!...
221
Diante dos índios cativos
Já destinados à morte
Gomes Freire crê na sorte
E resolve outra cartada:
– Vamos trocar esta indiada,
Pelos cavalos do Forte!...
226
Indiferente ao motejo,
Sorriu o índio altaneiro
E retruca em tom brejeiro
– Se eu quiser com eles ir,
Ninguém pode me impedir,
Mesmo estando em cativeiro!
222
Um pelotão bem armado,
De manhã cedo partiu;
E, ao chegar um largo rio,
Vai dali fazer uma proposta
Aos índios da banda oposta,
Que lá estão em desafio.
223
Pra fazer a mediação,
Na barraca é colocado
O cacique, nu, montado
Sem esporas e de em pêlo,
Para servir de sinuelo,
Naquele aparte encrencado.
Mário Matos

Identidades Ameríndias
227
Ante a barranca do rio
Vendo o leito largo e fundo,
O lusitano jacundo
Desata na gargalhada:
– Só pode ser patacoada,
Coisa de índio vagabundo!
228
– Diz então, seu fanfarrão,
Fugir, como podes tu?
– Assim! – diz o índio nu.
E fincando o calcanhar,
Com a rédea a fustigar,
Já se escapa a Tiaraju!...
102
229
Vai pela beira do rio:
E atrás dele, um alarido –
Grito, galope, estampido,
As balas passando perto,
Mas chega a um mato coberto,
Desmonta e corre escondido...
234
É que Sepé já voltou
E, com seu tino e clareza,
O índio luta com firmeza
Emboscando aos espanhóis
Que ficam em maus lençóis
E recuam pra a defesa.
230
Pagam caro os portugueses
Seu orgulhoso desdém,
De achar que o índio é ninguém;
Sepé lhes leva vantagem,
Pois notara na viagem,
Que o matungo andava bem!
235
Mas Gomes Freire tem pressa
E não pode esperar mais:
Já trouxe muitos casais,
Dos Açores, pra ocupar
As terras que quer tomar
Desses índios infernais.
231
No mato não tem mais jeito
De acharem o fugitivo;
Ele sumiu nesse crivo
E lá, num ponto afastado,
Atravessa o rio a nado
E volta aos seus, são e vivo!...
236
Ele corre ao litoral,
Consegue reforço urgente
E volta de ânimo quente:
Mil e seiscentos soldados,
No Rio pardo são treinados,
Para a tal Segunda Frente.
232
Foi esta a primeira vez,
Que o soberbo general
E vice-rei colonial,
Contra a sorte blasfemou;
E contra o índio jurou
Dar combate até o final.
237
É uma força bem armada –
Muitos canhões e artilheiros,
Esquadrão de fuzileiros,
Dragões de Cavalaria,
Escravos, Infantaria,
E um corpo de Granadeiros.
233
Gomes Freire quer juntar
As forças com seu aliado,
O Espanhol lá do outro lado,
Pra espatifar as Missões,
Entre as duas legiões
E esse plano está atrasado.
238
Já pela entrada do inverno,
O exército deixa o Forte,
Avançando em rumo Norte,
Pelas margens do Jacuí:
Quer levar o Guarani
Pra uma cilada de morte...
103
Décima de Sepé Tiaraju
239
Muitas léguas são andadas
E o índio não dá sossego:
De noite, é como morcego
Avança sem fazer bulha
E vai sangrando a patrulha –
Quem dorme, arrisca o pelego...
244
Tudo pronto pra o massacre
E a conquista das Missões;
Só falta que os batalhões,
Que Adonaegui comanda,
Surjam lá da outra banda,
Pra falarem os canhões...
240
A chuvarada caindo,
Torna mais dura a jornada,
Pois só tem várzea alagada;
E crescem as investidas
Das indiadas destemidas,
Sobre a tropa desgastada.
245
Mas o tal de Adonaegui –
O general espanhol –
Demora a vir como o Sol –
Que os guaranis de Sepé
Não afrouxam de seu pé:
E ele anda num caracol...
241
Bem acima do Rio Pardo,
O rio Jacuí forma um passo,
Que dá vau sem embaraço.
Chegando nesse lugar,
Faz Gomes Freire parar
Seu exército em rechaço.
246
Cá no Jacuí, Gomes Freire,
Se vê de novo em rodeio,
Com esse inverno tão feio:
A enchente de São Miguel,
Vem com chuvas de tropel
E o Passo se torna cheio.
242
Examinando o remanso,
Ele fica entusiasmado,
Achando o Passo ajeitado,
Pra a Tropa esperar o sol
E a chegada do Espanhol,
No encontro já combinado.
247
Acaba todo o conforto
No acampamento inundado;
Tudo ali fica encrencado,
Desde as armas à comida;
Muita pólvora perdida,
Muito animal afogado.
243
Se acampam os portugueses,
Dos dois lados do regato;
Por ali tem muito mato
E eles arranjam madeiras:
Seus ranchos cobrem as beiras
Do Passo, raso e pacato.
248
A disciplina da tropa
No calcanhar vai caindo;
Tem soldado até fugindo,
Mas é morte a deserção:
O índio não tem compaixão,
Daquele que está invadindo.
Mário Matos

Identidades Ameríndias
104
249
Foi esta a segunda vez,
Que o vice-rei orgulhoso,
Mandou pra os ares raivoso,
Maldições, ao índio e ao santo,
Por terem furado tanto
Seu plano tão ambicioso.
254
A resposta do cacique,
Não se faz muito esperar:
Sepé manda recusar,
Pois ele tem a experiência
De uma certa conferência,
Que o luso não soube honrar.
250
Mas o nobre português,
Ao se ver sitiado assim,
Não desiste do seu fim
E imagina outra manobra:
Esconde a pele da cobra
E veste a do graxaim.
255
Mas Gomes Freire, insistindo,
Reforça suas garantias
E encarece as regalias
Que pretende oferecer,
Buscando se engrandecer,
Co’um montão de fidalguias.
251
Resolve jogar paciência,
O ardiloso general;
E escreve pra o litoral,
A Adonaegui avisando,
Que ele ainda está contando
Com a ofensiva geral...
256
Esta nova conferência,
Ele não pensa em trair;
O que ele quer é iludir,
Impressionar na aparência
E ostentar uma potência,
Pra mandar e não pedir.
252
A força do Tiaraju,
Ele sente a cada dia;
E ganhar tempo queria:
– O Índio tem de ser dobrado,
Antes de eu ser derrotado,
No meio desta água fria...
257
A notícia se espalhando,
Leva o nativo a sonhar:
– Quem sabe ele vai mudar?...
Pode ser que venha a paz,
Se o invasor voltar atrás
E as nossas terras deixar...
253
Por isso manda um convite,
Por dois índios prisioneiros,
Que solta de mensageiros,
Pra que o chefe da guerrilha,
Sem perigo de armadilha;
Apareça em seu terreiro.
258
Por sua gente, o Tiaraju,
Ao convite enfim topou:
Marcado, o encontro ficou;
E Gomes Freire contente,
Começa a cuidar do ambiente,
Pra a cena que planejou.
105
Décima de Sepé Tiaraju
259
Num descampado da margem,
Onde vai longe a visão,
Põe-se um tapete no chão,
Estendido como esteira;
E no centro, uma cadeira,
Pra o general ter função.
264
Na distância já medida
De quatro quadras tapadas,
Se apartam daquela indiada,
Dez cavaleiros valentes;
E o Tiaraju bem na frente,
Vem pronto pra a campereada...
260
De pé, nos cantos do quarto,
Cabos lusos bem armados,
Ficam de guarda, estaqueados;
E, à distância do tapete,
Montam dragões, num piquete,
De bigodões bem criados.
265
Não tem luxo a vestimenta
Do cacique missioneiro:
É igual à do companheiro;
Mas nessa simplicidade,
Transparece a majestade
Do seu porte sobranceiro.
261
Pra completar o cenário,
Por detrás dos tais dragões,
Enfileiram-se uns canhões
E dois soldados no meio,
Como pra fazer receio
Da comédia e dos bufões.
266
Olhando de seu tapete,
Gomes Freire está receoso,
Daquele grupo animoso;
E vendo o brilho das lanças,
Teme pela segurança
De seu trono tão pomposo.
262
Vestido com imponência,
Toma assento o general,
Como se fosse o Cabral,
A chegar nestes Brasis –
E aguardando os guaranis,
Adota um ar imperial.
267
Manda o intérprete correndo,
No encontro do visitante,
Com a ordem terminante
De largarem o armamento:
Não conta co’o atrevimento
Daquele índio arrogante:
263
Eis que os índios aparecem,
Lá de longe, entropilhados:
São muitos e bem montados;
Com suas lanças rebrilhando,
Eles vêm se aproximando,
Até que ficam parados.
268
– Por que largar nossas armas,
Se o que eu vejo lá na frente
É o general e a sua gente,
Com armas de toda a laia? –
E atropelando na raia,
Eles chegam juntamente.
Mário Matos

Identidades Ameríndias
106
269
Esbarram frente ao tapete;
E apenas um cumprimento:
– Viva o Santo Sacramento!
Parte do Índio cristão,
Que com jeito secarrão,
Na prosa não faz aumento.
274
Conservando a majestade,
Gomes Freire inda faz pouco:
– Pode dizer a esse louco,
Que ele é um bárbaro total.
– Mais bárbaro é o general,
Retruca o índio de soco.
270
Gomes Freire ouvindo isso,
Já respira aliviado,
Mas inda está contrariado,
Tendo à frente esse caudilho,
Que não desce do lombilho,
Enquanto ele está sentado.
275
Depois dessa introdução,
Que não foi nada cortês,
Fala o índio ao português,
No assunto que o traz ali,
Mostrando que o guarani
Joga limpo na altivez:
271
O intérprete, já cancheiro,
No ofício de cortejar,
Convida o índio a apear,
A fim de beijar a mão
Do general sentadão;
E a resposta é de renguear:
276
– General, vim te dizer,
Que o Espanhol voltou em paz;
Se a tua tropa volta atrás,
Terá mesmo tratamento,
Levanta esse acampamento,
Que isso é o melhor que tu faz!...
272
– A mão do teu general,
Beijar a troco de quê?...
Acaso o teu chefe crê,
Que eu estou na terra dele?
Na minha terra está ele –
E ele é cego se não vê!...
277
Mas Freire não acredita,
Que Adonaegui voltou:
Acha que o Índio enganou;
A paz não quer negociar,
Por isso volta a ameaçar:
– Pra os Sete Povos eu vou!...
273
E diz ao teu general,
Que não apeio pro chão,
Nem vou lhe beijar a mão!...
Prá o vice-rei habituado
A ser em tudo acatado.
Aquilo era um bofetão...
278
E queima campo em grandeza:
– Tenho soldados mui bravos,
Canhões, cavalos e escravos;
Nada pode me deter!
Quem teima em me combater,
Vai sentir meu desagravo!
107
Décima de Sepé Tiaraju
279
– Se tu tens bravos soldados,
Tenho valentes também;
Mas então me explica bem,
Por que é que aqui me chamaste
E tanto tempo gastaste,
Esperando a quem não vem?...
284
– Sai daqui, escravo tonto,
Leva a caixa a teu patrão,
Que eu não tenho precisão
Do seu tabaco encardido;
Tenho melhor e sortido
Lá na minha Redução!...
280
Ante a agachada do índio,
O general se amoitou
E logo de tom mudou,
Falando em promessas quentes
E oferecendo presentes,
Que o cacique recusou.
285
– “Ya há” – diz aos companheiros,
Ou seja – Vamos daqui!
E o piquete guarani,
Cerrando espora às montadas,
Deixa atrás suas pegadas,
Sem mais que fazer ali...
281
E o fidalgo português,
Se vendo sem argumento,
Pega naquele momento
Uma caixa bem lavrada;
Tira dali uma pitada
E leva ao nariz sedento.
286
Dias depois desse encontro,
Desce a várzea um cavaleiro
É um chasque muito ligeiro,
Que chega no acampamento,
Pra entregar um documento
E se escapar do aguaceiro...
282
É rapé, coisa mui fina,
Da nobreza colonial,
Que o educado general,
Pelo intérprete, oferece,
Pra ver se Índio agradece
Aquela honra especial.
287
O general abre a carta,
Que Adonaegui lhe manda,
Avisando da outra banda,
Que a Buenos Aires voltou,
Porque o índio não deixou
Ele entrar na sarabanda...
283
Mas sai-lhe pela culatra
Esse tiro macanudo,
Pois o Índio topetudo,
Já desconfiado daquilo,
Não liga a nenhum estilo
E responde carrancudo:
288
A carta ainda aconselha
A Gomes Freire recuar
E ao Rio Pardo regressar:
A idéia do castelhano,
É fazerem novo plano,
Já que este vai fracassar...
Mário Matos

Identidades Ameríndias
108
289
E agora em terceira vez,
Se maldiz o comandante:
– A um índio tão petulante,
Errei em não ter matado;
E esse Espanhol, meu aliado,
Não passa de um vacilante!...
294
Tiaraju ficou visado,
Pra aqueles donos da vida,
Com a lição aprendida:
– É preciso ser cortada
A cabeça dessa indiada,
Pra se ganhar a partida...
290
Isolado e sem recursos,
No alagado acampamento,
Tem o exército em tormento,
Pois já avança o guarani
E ataca, daqui e dali,
Cada vez mais violento.
295
Gomes Freire e os espanhóis,
Como contei no começo,
Pagaram todo esse preço,
Mas mataram o Sepé;
E logo, no Caiboaté,
Massacraram, sem tropeço.
291
É assim que o Gomes Freire,
O imponente português,
Chega na hora e na vez
De ir ao índio em sacrifício
E lhe pedir armistício,
Com toda a desfaçatez.
296
Depois, a grande coluna,
Invade em triunfo as Missões,
Mas ardem as Reduções:
Ao perder as liberdades,
O índio queima as suas cidades,
Pra receber os ladrões.
292
Da aventura no Jacuí,
O general sai perfeito,
Embora de água no peito;
Tira partido, o sagaz:
Recolhe sua tropa em paz,
Que o índio só quer respeito...
297
Gomes Freire, em Portugal,
Recebe muita honraria
E o próprio Rei o agracia,
Com a comenda mui bela,
De conde de Bobadela,
Pela sua valentia.
293
O nativo não percebe,
Que essa luta é sem quartel
E que o estrangeiro cruel,
Às terras não renuncia –
Prepara com teimosia,
O bote da cascavel...
298
Até um valente se achica,
Quando sente um povo em luta
E Freire ao fim da disputa,
Temeu do índio a vingança
E perdeu até a confiança,
De saborear a sua fruta.
109
Décima de Sepé Tiaraju
299
Alegando não ter paz,
Para povoar as Missões,
Não ocupa as Reduções –
Entrega tudo pra Espanha,
Leva a pior na barganha,
Joga fora as condições.
304
Um gaúcho lá do campo,
Que desertou do Rio Pardo,
Pra os portugueses, um fardo,
É quem comanda a campanha;
E nessa luta o acompanha,
O miliciano bastardo.
300
Quando a sede do Rio Grande
Cai, na mão do castelhano,
Freire vê perdido plano,
Que montara, no seu posto:
E morre, só de desgosto,
O militar lusitano...
305
Esse punhado de guascas,
Que não passa de uns oitenta,
Com os índios logo aumenta,
Contra o espanhol nas Missões;
E, em bravas operações,
O seu domínio arrebenta.
301
Mas já sopram novos ventos,
Neste império colonial;
E o gaúcho nacional
Já cavalga à luz do sol,
Derrotando ao espanhol,
Sem esperar Portugal.
306
Do finado Gomes Freire,
Anos depois da matança,
Teve o índio sua vingança:
Sem render-se ao estrangeiro,
Só se une ao brasileiro,
Sendo o fiel da balança!...
302
Vão vencer cinqüenta anos
Do massacre em Caiboaté
E da morte do Sepé:
Nas missões, o castelhano,
Aquartelado, é um tirano
Em que o índio não tem fé.
307
Foi essa aliança firme,
Entre o índio primitivo
E o branco, já bem nativo,
Que plantou, neste Rio Grande,
A Tradição, que se expande,
Tendo a raiz por motivo.
303
Já sentem os brasileiros
Seu destino de Nação:
Tomam as rédeas na mão,
Pra ocupar o território;
E fazem preparatório,
Vendo chegada a ocasião.
308
E é por isso que este povo
Jamais esquece o Sepé:
O índio está na sua fé;
E o Rio Grande comovido,
Cantará sempre atrevido,
Aos bravos de Caiboaté!...
Mário Matos

Identidades Ameríndias
110
O DESTINO DO PRÊMIO
309
O calor da aclamação
Esquentou a noite fria,
Do fogão, em Vacaria:
– Viva Sepé Tiaraju!...
Esse Blau tem caracu!...
Eram brados que se ouvia.
314
– Eu lhes tinha prometido
Revelar, depois da trova,
Do meu pensar, uma prova;
E é deste lindo presente,
Se o Missioneiro consente,
Que eu abro, em proposta nova:
310
O carinho da gauchada
Cercava o Blau trovador,
Que, com alma e com vigor,
Na sua simplicidade,
Semeava claridade,
Na história, com tanto amor.
315
Este pingo que aqui está,
Pra quem tenha criação,
É um valioso garanhão:
É só um grito a gente dar,
Pra um dinheirão alcançar,
Na primeira exposição...
311
Insistia a mocidade,
Que no pingo ele montasse:
E o velho deu-lhe um repasse,
Mostrando, com galhardia,
Que o gateado obedecia,
Em tudo o que convidasse.
316
A proposta do Vaqueano
Era fora do comum;
E até correu um zum-zum:
– Que será que ele pretende?
Um pingo assim não se vende,
Por prata ou ouro nenhum!...
312
Descendo, Blau confirmou,
Que o potro era macanudo:
– É de lei, este colhudo;
De patas, tem movimento;
E de rédea é um pensamento,
Quem o domou já fez tudo!...
317
Mas velho Blau insistiu,
Que ouvissem seu argumento:
– O uso que eu apresento,
Pra o valor que se alcançar,
É pra a gente colocar,
Em favor de um monumento...
313
Sem conter seu entusiasmo,
O velho, conhecedor,
Desfilava, com amor,
As qualidades do flete;
Mas ele estava num brete,
Co’o coração em penhor!...
318
É esse o fim que eu proponho:
Um monumento a Sepé
E aos índios de Caiboaté,
Que tem sido tão falado,
Mas nunca foi realizado
E é tempo de pôr em pé!
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Décima de Sepé Tiaraju
319
Vamos gravar nossa História
Sem cartilhas de encomenda,
Que ninguém vai botar venda
No povo, pra que não pense;
Não é cego o rio-grandense,
Tem Sepé na sua legenda!
321
Do rodeio já encerrado,
Com sol alto, no outro dia,
De mala e cuia eu saía;
Vi, abanando pro meu lado,
Um piquete entropilhado,
Que alegre se despedia.
320
Com a mais pura amizade,
Eu te peço, Missioneiro:
Perdoa, se fui grosseiro,
Em dispor do teu presente;
É pra dar a um Presidente:
Sepé, Gaúcho Primeiro!...
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Poucos trabalhos vendi
E isso pouco me rendeu;
Mas por pouco, até que deu
Pra viajar de volta ao pago;
E, das lembranças que eu trago,
Minha vida se aqueceu...
01/03/1982
Mário Matos

Identidades Ameríndias
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Apêndices

I – Bibliografia
ALBUQUERQUE, Manuel Maurício de. Conde de Bobadela. In: Enciclopédia
Mirador Internacional, São Paulo, 1974, p. 1432.
BERNARDI, Mansueto. O primeiro caudilho rio-grandense. Fisionomia do
herói missioneiro Sepé Tiaraju. Porto Alegre: Globo, 1957. Reedição Sulina,
Porto Alegre, 1981.
FORTES, General Borges. Cristóvão Pereira de Abreu. In: Revista do Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1951, p. 131-161.
LUGON, Clovis. A república comunista cristã dos guaranis. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977.
PINHEIRO, José Feliciano Fernandes. Anais da Província de São Pedro. Petrópolis: Vozes, 1978.
PORTO, Aurélio. História das Missões Orientais do Uruguai. Porto Alegre:
Livraria Selbach, 1954.
SILVEIRA, Hemetério José Velloso da. As Missões Orientais e seus antigos
domínios. Porto Alegre: Livraria Universal, 1909. Cf. fac-similar, Porto Alegre:
ERUS, 1979.
VELLINHO, Moisés. Capitania Del Rey. Porto Alegre: Globo, 1970.
II – Glossário de termos regionais ou históricos
Observação – A bibliografia consultada para os termos gaúchos deste glossário
consta no Vocabulário sul-riograndense. Porto Alegre: Globo, 1964; a abreviação s.f., empregada em vários verbetes, quer dizer sentido figurado.
A la cria – ao Deus dará, à aventura.
Achicar-se – intimidar-se, encolher-se, apequenar-se.
Açoriano – personagem que encarna a descendência da corrente migratória dos
casais açorianos, uma das que povoaram o Rio Grande do Sul.
Agachada – s.f. – façanha, proeza, dito chistoso ou extravagante.
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Apotrar-se – tomar manhas e jeito de potro – s.f. – engrossar.
Aragano – irrequieto, afoito, indisciplinado.
Armada – roda quase sempre grande que se faz com o laço quando se vai atirálo, ou dar o “tiro de laço”.
Bagual – animal cavalar xucro ou recém-pegado.
Bolas, boleadeiras – arma ou instrumento de apreensão, formado de três esferas de pedras ou ferro, envolvidas em couro cru e que se ligam entre si por
correias do mesmo material, trançado.
Bragado – pelagem de cavalo, vermelho com manchas brancas bastante desenvolvidas, pela barriga. Geralmente tem a frente da cabeça, mãos e patas
brancas.
Brete – corredor estreito de contenção de animais. Tronco.
Caborteiro – cavalo arisco, que é capaz de velhaquear, corcovear – s.f. – desconfiado, propenso a dar bronca.
Campereada – o mesmo que campeireada. Trabalho de campo com o gado –
s.f. – desafio à coragem, habilidade ou destreza.
Cancheiro – s.f. – experiente, acostumado com a cancha.
Canha – o mesmo que cachaça, aguardente de cana.
Chasque – antigo mensageiro, correio, estafeta.
Chimarrão – mate-amargo, bebida das áreas gauchescas sul-americanas.
Chiripá – veste rústica, antecessora da bombacha, espécie de fralda que fazia as
vezes de calça, vestido sobre a ceroula. O pesquisador uruguaio Fernando O.
Assunção (Pilchas Criollas, Ed. Comissão Sesquicentenário de 1825-1976)
atribui e fundamenta a origem do chiripá, às Missões Jesuíticas dos Sete Povos.
Chiru – tipo índio ou indiático. É vocábulo de origem guarani, que significa
“meu companheiro” (cheyru). O diminutivo é chiruzinho ou piá.
Clinudo – diz-se do cavalo, geralmente bagual, que tem crinas longas, sugerindo ser agreste e bravo.
Dragão – soldado da antiga cavalaria colonial.
Entono – arrogância, atitude de desafio.
Entrevero – luta corpo a corpo – s.f. – mistura, confronto de resultado imprevisível.
Estância – área ou estabelecimento de criação de gado. As estâncias missioneiras tinham como sede, rancho, curral e capela, abrangendo áreas que hoje
são vários municípios gaúchos.
Estropiado – diz-se do animal que está sentido dos cascos, devido à aspereza
do terreno ou longa marcha.
Fandango – baile antigo, compreendendo um elenco de danças, hoje do folclore gauchesco, inclusive das áreas do tropeirismo.
Flete – cavalo em geral, ou cavalo bonito e bom.
Fogão – grande fogo que se ateia ao chão e onde se reúnem os tropeiros e gaúchos para se aquecer e assar os seus churrascos. É o centro da reunião dos
campeiros e gaúchos.
Folheiro – elegante, airoso, garboso.
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Gateado – pelagem típica do cavalo crioulo (bege).
Gaúcho do Campo – índio do campo sem domicílio certo. Muitos aventureiros
paulistas e desertores do Regimento de Dragões de Rio Pardo aderiram a esse tipo, devido à preia do gado alçado, tornando-se gaúchos do campo (Século XVIII).
Ginete – cavaleiro. Qualidade de montar bem.
Gineteada – ato de montar animal corcoveando.
Graxaim – o mesmo que guaraxaim. Variedade de raposa ou lobo dos pampas,
daninho roedor de cordas de couro cru e predador de aves domésticas. Simboliza a astúcia. Também conhecido como sorro.
Gringo – o estrangeiro, menos o português e o hispano-americano.
Guapo – animoso, firme e otimista. Disposto.
Guasca – cordas ou tranças de couro cru – s.f. – gaúcho, forte.
Índio – no Rio Grande este termo não se limita ao aborígine em particular, mas
também ao peão gaúcho em geral.
Laço – conhecido instrumento de apreensão do gado, feito de trança de couro
cru e uma argola de metal.
Lombilho – peça principal dos arreios ou apeiros sul-americanos.
Luz – espaço de terreno que um dos parelheiros, numa corrida, leva de dianteira
ao outro. Tirar luz, é tomar a dianteira ao competidor – s.f. – pedir luz, é pedir vantagem inicial.
Macanudo – bom, superior, excelente, de primeira.
Maleva – mau, perverso. Diz-se do cavalo de mau instinto ou dado a corcovear
de mau jeito.
Marca quente – o novilho recém-marcado investe às cegas – s.f. – estar de
marca quente é estar bravo.
Matungo – embora designando inicialmente o cavalo velho, gasto, imprestável,
o termo tendeu a estender-se a todo o cavalo manso e de bom préstimo.
Miles – milhares.
Monarca – é sinônimo do gaúcho em sua mais alta significação, pois refere-se
exclusivamente ao que monta com garbo e elegância em montaria à altura do
montador.
Orelhano – diz-se do animal que ainda não foi assinalado e tampouco marcado
– s.f. – deixar orelhano um animal é não tomar posse do mesmo.
Pago – o mesmo que lar, lugar onde a gente mora.
Pampa – designação dada às campinas do Rio Grande do Sul. É também usado
em designação de pelagem do gado.
Partidor – ponto de partida de uma raia de carreiras. Em sentido figurado é
começo ou recomeço.
Peleador – diz-se daquele que participa de peleias, ou combates, ou brigas.
Pelejador.
Pelear – lutar, combater.
Pelego – pele de carneiro, quadrada, com lã. Peça dos arreios – s.f. – arriscar o
pelego significa correr perigo de vida, arriscar a pele.
Petiça – fêmea do petiço, cavalo de pernas curtas e retaco.
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Pialo – o mesmo que pealo. Ato de arremessar o laço e assim prender o animal
pelas patas anteriores – s.f. – “num pialo” significa de um modo que prende,
que não dá chance de reagir.
Picaço – cavalo escuro com patas e testa brancas.
Pilchas – arreios ou vestimentas típicas do gaúcho, bem como os seus utensílios e armas.
Pingo – diz-se de um cavalo bom, vistoso, bonito.
Piquete – grupo de cavaleiros nas guerras e revoluções gaúchas, também usado,
atualmente, para os centros de tradição, situados em zonas rurais. Mais comumente, o termo é empregado no sentido de pequeno potreiro de serviço
ou animal preso para serviço.
Pisar o poncho – o poncho é o tradicional manto dos gaúchos, também usado
em quase toda a América Latina – s.f. – pisar o poncho é desafiar.
Planchar-se – cair de lado. Escorregar o cavalo com as quatro patas, caindo de
lado.
Prenda – jóia, relíquia – s.f. – aplicado à moça bonita.
Puro – cavalo de puro sangue, corredor.
Quadras tapadas – a quadra é medida antiga, medindo 132 metros. Quatro
quadras tapadas, quer dizer, em números redondos, sem frações. Equivale a
528 metros lineares, no exemplo dado.
Quebra-Largado – homem valente, pronto para tudo, atirado, audaz. Antigamente era sinônimo de brigador, turbulento.
Queimar campo – em sentido figurado, significa exagerar, mentir.
Quero-Quero – pequena ave pernalta, cujo nome vem do som que emite ao
cantar. O gaúcho denomina o quero-quero de sentinela dos pampas, pois
costuma denunciar a chegada de visitantes, com seu vôo, e com seus gritos.
Rabicano – cavalo que “tem cãs no rabo”: os pêlos brancos da cauda são entremeados com pêlos da cor base do corpo.
Reboldosa – alvoroço, desordem.
Refugar – esquivar, fugir. Refugar parada é, depois de feita a aposta, numa
carreira, recuar da mesma. Em sentido figurado, é esquivar-se de um desafio,
intimidar-se.
Regalo – o mesmo que presente. Regalar é dar de presente, oferecer.
Renguear – claudicar, coxear, tornar-se rengo. Geada “de renguear cusco” é
aquela que, num exagero de expressão, torna o cusco, ou cão, “rengo”, ou
coxo, pelo frio cortante. Em sentido figurado, significa acachapar.
Rincão – porção de campo cercada de mato. Local protegido. Também é sinônimo de Pago.
Rodada – queda para a frente, acidental, quando o cavalo galopa, ou mesmo
quando trota, montado ou não.
Rodeio – lugar de uma estância onde se reúne periodicamente o gado para lidar
com ele. Ali ocorrem as façanhas diversas da lida. Em sentido figurado, “dar
rodeio, se ver num rodeio” – é provocar ou ver-se às voltas com problemas
inesperados ou espetaculares.
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Identidades Ameríndias
Rosilho – diz-se do cavalo em que a cor-base avermelhada, amarelada ou parda,
etc., aparece mesclada de pêlos de cor branca.
Salamanca – furna lendária onde vive a Teiniaguá, misto de lagartixa e princesa moura com dons de sereia enganadora. Vide J. Simões Lopes Neto.
A Salamanca do Jarau. In: Lendas do sul.
Sinuelo – um ou mais animais costeados ou mansos que servem para atrair os
que são xucros, ou ariscos, por ocasião do seu aparte, ou para encaminhá-lo
na sua condução.
Tambeiro – diz-se do gado manso, de tambo, leiteria. Em sentido figurado,
tambeiro é sinônimo de submisso e sem reação.
Taura – valente, arrojado, destemido, pronto pra tudo. Torena.
Tentos – tiras estreitas de couro cru, com inúmeras utilidades, entre as quais a
de trazer o laço preso à parte traseira do lombilho. Em sentido figurado,
“trazer a razão nos tentos” é vir equipado de razão, de fundamento.
Topetudo – audacioso, arrogante.
Tratado de Madri – o pesquisador uruguaio, Fernando O. Asunção, em sua
obra mais recente, “El Gaucho”, Montevidéu, 1978, Tomo I, p. 228-229, assim se refere a esse documento: “O tratado de 1750, conhecido também como Tratado de Madri, refere-se às possessões e limites de ambas as potências na América e na Ásia. Seu inspirador e teórico foi o já mencionado Alexandre de Gusmão, e foi firmado no dia 13 de janeiro naquela cidade, de
forma quase secreta, entre o Ministro de Estado Espanhol, José de Carvajal y
Lancaster, e o Embaixador Extraordinário de Portugal, Tomás da Silva Teles, com intervenção da Inglaterra” (grifo de Mário Mattos).
Troncho – cavalo que tem uma ou duas orelhas atrofiadas ou defeituosas – s.f.
– designação depreciativa a quem se salienta indevidamente.
Umbu – árvore de grande tamanho, muito copada. “Pircunia Dioica”, existente
no Rio Grande do Sul, Paraguai e países do Prata. Não confundir com o umbuzeiro do Norte do Brasil.
Vaqueano – o que serve de guia em alguma viagem por ser conhecedor de caminhos.
Vau – lugar mais raso de um rio, onde, sem nadar, se atravessa.
Velhaqueada – corcovos do cavalo.
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