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IDENTIDADES AMERÍNDIAS Sepé Tiaraju Lendas Missioneiras Salamanca do Jarau COLEÇÃO AMERÍNDIOS Aldeia Nossa Senhora dos Anjos Protásio P. Langer Escravidão de índios e negros no Brasil Décio Freitas Índio Kaingang do Paraná Ítala I. B. Becker Índio Kaingang do Rio Grande do Sul Ítala I. B. Becker Índios da Aldeia dos Anjos (Gravataí, RS) Arquivo Histórico do RS Sepé Tiaraju e a identidade gaúcha Luiz Carlos Susin Identidades Ameríndias – Sepé Tiaraju, Lendas Missioneiras, Salamanca do Jarau – Agemir Bavaresco e Luis Borges (orgs.) Sepé Tiaraju – história e mito Moacyr Flores Sepé Tiaraju a São Sepé César Pires Machado 2 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias Agemir Bavaresco e Luís Borges (orgs.) IDENTIDADES AMERÍNDIAS Sepé Tiaraju Lendas Missioneiras Salamanca do Jarau Edição comemorativa dos 250 anos da morte de Sepé Tiaraju 1756-2006 Com a colaboração de CARLOS F. SICA DINIZ MÁRIO MATOS MATEUS WEIZENMANN Porto Alegre, 2006 A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 3 © Agemir Bavaresco e Luís Borges 1ª edição: 2006 Esta edição é propriedade dos Autores. Capa: Valder Valeirão Ilustração da capa: Mário Mattos Editoração e composição: Suliani Editografia Ltda. Rua Veríssimo Rosa, 311 90610-280 – Porto Alegre, RS E-mail: [email protected] Fone/fax: (51) 3384 8579 ISBN: 85-7517-142-9 EDIÇÕES EST R. Veríssimo Rosa, 311 90610-280 Porto Alegre, RS Fone/fax: (51) 3336.1166 E-mail: [email protected] www.via-rs.com.br/esteditora 4 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias Sumário Carlos F. Sica Diniz A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 7 Luís Borges O folclore e a ficção como artifício didático-pedagógico em Simões Lopes Neto 12 Agemir Bavaresco, Luís Borges, Mateus Weizenmann Recepção da tradição indígena na literatura de Simões Lopes Neto A mãe do ouro Cerros bravos A casa de M’bororé Zaoris Angüera: a metamorfose do índio Mãe mulita São Sepé / Lunar de Sepé A Teiniaguá na Salamanca do Jarau 19 19 20 21 22 25 26 37 51 Luís Borges Uma conclusão inconclusa De Getúlio a Machado: uma história pelo avesso Que país é este? Que é o Brasil e quem é o brasileiro? Identidade gaúcha versus identidade brasileira Tupi or not Tupi? That is the question Concluindo uma conclusão inconclusa 58 58 60 61 65 69 71 Mário Matos Décima de Sepé Tiaraju 79 Apêndice Bibliografia e glossário de termos regionais ou históricos A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 113 113 5 A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto Carlos F. Sica Diniz* João Simões Lopes Neto legou-nos um livro de publicação póstuma, denominado Terra Gaúcha. Uma história elementar do Rio Grande do Sul, como lhe atribuía o escritor. Este livro já estava sendo escrito por volta de 1910 e, ao que se sabe, o projeto englobava dois volumes: um que se estendia de 1500 a 1737, data da chegada do comandante Silva Pais ao lugar onde hoje se situa a cidade do Rio Grande, para fundar o fortim Jesus-Maria-José. O segundo volume espraiava-se daqueles primórdios da ocupação portuguesa no forte do Rio Grande aos primeiros anos do século XX. Destes dois volumes escritos, somente o primeiro foi encontrado e publicado. Começa com demorada nota preliminar pelo trato das civilizações americanas extintas, prolongando-se na análise de fatores étnicos que contribuíram para a formação do Brasil, até chegar à gênese da história rio-grandense e encerrar, como não poderia faltar, no resumo geográfico do território gaúcho. Ultrapassada a nota preliminar, o primeiro capítulo recebeu o título de Tempos d’antanho, cujo conteúdo versa sobre os indígenas, seus costumes, crenças e tribos, que habitavam o vasto território sulino. É neste capítulo que se pode constatar a simpatia do escritor pelos indígenas, como registrou a professora Lígia Chiappini: Ao descrever a organização da vida indígena, o arranchamento comum, a escolha do chefe entre o mais valente e forte, que não podia mandar nem castigar em tempo de paz, e que governava com a assistência da assembléia dos guerreiros, nota-se, apesar da rapidez e superficialidade da descrição, a profunda simpatia do historiador pelos índios e seu modo de vida (Chiappini, 1988, p. 111). * Advogado, professor e escritor. Autor de João Simões Lopes Neto: uma biografia (Porto Alegre: AGE, 2003). A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 7 Simpatia que se depara na observação sensorialista, sempre presente na prosa de Simões Lopes, ao falar dos sentidos apurados dos guaranis, olfateando de longe a fumaça do fogo, a catinga do jacaré e ouvindo a cascavel e o tigre, muito antes de ver estes animais. Simpatia que exacerba, ao expressar má vontade com o colonizador português, que deixou o Rio Grande ao léu, mas que não se furta de reconhecer o trabalho missioneiro dos Jesuítas, os únicos brancos, segundo o historiador, que protestaram sempre contra a dominação dos bandeirantes que só queriam os índios como mão-de-obra para trabalhos forçados. Simões Lopes anotou, ao introduzir as Lendas do sul, que “o primeiro povoamento branco do Rio Grande do Sul foi espanhol; seu poder e influência estenderam-se até depois da conquista das Missões; provém disso que as velhas lendas rio-grandenses acham-se tramadas no acervo platino de antanho” (Lopes Neto, 1913, p. 5). Ao tratar das missões jesuíticas, da criação da Província dos Tapes e das lutas entre portugueses e espanhóis, que redundaram na destruição das reduções e hostilidades em relação aos sacerdotes e indígenas, Simões Lopes toma o partido dos vencidos. Mais tarde, ao compor as versões literárias das Lendas do sul, estes temas voltariam a ocupar a força criativa do escritor, como se verá de pronto. Não se pode dizer que a obra de Simões Lopes Neto, nos argumentos escolhidos, tenha sofrido influência da questão indígena. Simões não era um indianista, mas, nas páginas escritas sobre este tema, em textos históricos e ficcionais, deixou forjada a sua censura ao trato do colonizador português que, no seu entendimento, contribuiu para a destruição do povo indígena, que habitava a nossa terra gaúcha. É nas Lendas do sul, contudo, que a referência indígena pode ser notada na obra literária, propriamente dita, do escritor regionalista e pré-moderno que foi. A lenda Mboitatá, a Boiguassu dos índios, tem origem na “ingênua e confusa tradição guaranítica”, como disse o seu criador na nota introdutória (idem, p. 5). No livro histórico Terra gaúcha, ao tratar dos índios guaranis, o escritor arriscou dizer que das suas lendas primitivas uma delas nos chegou, caracterizada, que é a do Boitatá, cobra de fogo, da qual se depreende tradição vaga de um dilúvio, tal como narravam os índios: A Mboitatá era uma grande serpente, que dormia havia já imenso tempo, quando houve uma longa noite durante a qual choveu tanto, tanto, que as águas cresceram e subiram até sobre as altas coxilhas; os homens viveram tristemente durante este tempo; a mortalidade dos bichos foi espantosa. A serpente, então, expulsa de sua toca, deu em comer os olhos das carniças, somente os olhos, e por isso seu corpo foi ficando transparente e luminoso, até que morreu e desmanchou-se em pedaços que ficaram esparsos pelos 8 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias campos, procurando, porém, juntar-se durante a estação dos calores. Quem topa com um deles pode ficar cego; mas também protegem os campos contra aqueles que os incendeiam (Lopes Neto, 1955, p. 45). No tratamento dessa pobre lenda indígena, que Simões transmudou em beleza criativa e literária, é que se insere o ensaio de Mozart Pereira Soares (Cf. Soares, 1974), que aqui invoco para chegar aonde quero. Na escuridão fechada, através da qual o nosso rapsodo ambientou aquela noite apocalíptica, propícia à narrativa introdutória da cobra de fogo, Simões disse que “nenhum flete crioulo teria faro nem ouvido nem vista para bater na querência; até nem sorro daria no seu próprio rastro”. Conquanto a lenda esteja povoada dessas explosões telúricas e sensorialistas, vamos ficar com este exemplo, pelo qual Simões descreveu a noite escura que tudo confundiu. Todos sabemos que o cavalo é um animal bem dotado de olfato. Fareja os rastros, de longe percebe as ressonâncias dos tropéis, como disse Pereira Soares. E o sorro conhece, ao longe, no seu olfato de longo alcance. Tudo isso aquela noite infernal desgovernou. Na descrição feita no livro Terra gaúcha, na parte dedicada aos guaranis, Simões também introduziu descrição didático-sensorialista dos índios, como utilizara com os bichos, louvando seus apurados sentidos, “olfateando desde muito longe a fumaça do fogo, a catinga do jacaré, e ouvindo a cascavel e o pisar do tigre, muito antes de ver estes animais” (Lopes Neto, 1955, p. 46). Também na peça histórica, não se furtou Simões Lopes, admirador sempre das artes das cavalgadas, de louvar os charruas e minuanos, dominadores das coxilhas e dos cavalos: De tal modo identificaram-se à montaria, que sabiam combater alinhados, e fazer cargas de lanças. Os seus cavalos eram primorosamente amansados; uma das astúcias de guerra, que empregavam, era a de aproximar-se deitados sobre o dorso do cavalo ou sobre um dos lados, segurando-se às crinas, e cair, de improviso, sobre o inimigo despercebido (Lopes Neto, 1955, p. 47). Homem e cavalo num só corpo, um extensão do outro, como na unidade física do centauro. Na Salamanca do Jarau, sua mais complexa criação literária, Simões misturou por gosto a origem ibérica da lenda com muitos passos de influência indígena. Na nota introdutória, ele mesmo justifica que nasceram “idealizações novas e típicas, adaptadas ou decorrentes do meio físico e das gentes ainda na crassa infância das concepções” (Lendas do sul, 1ª edição, p. 5). A história resumida da lenda, no texto simoniano, foi revelada a Blau Nunes, que aqui é personagem em vez de narrador, pelo santão da salamanca do cerro, que aprendera a lenda com sua avó charrua. A avó índia do A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 9 sacristão recitava a lenda que já tinha ouvido contar por outros, como coisa muito velha. Na misturança dos índios charruas, portanto, a princesa moura virou a teiniaguá encantada, a lagartixa mágica que tinha a cabeça luminosa e transparente, que o sacristão aprisionou numa guampa bem fechada por distração do demônio índio Anhangá-Pitã, que nas suas maldades havia corrido junto com ela pelas correntezas do Uruguai, por léguas, tudo lhe ensinando sobre as furnas, encantamentos e outras coisas do diabo que ele era. E assim o santão das furnas da salamanca apoderou-se de todas as riquezas, do amor proibido da teiniaguá transmudada em mulher e das futuras desgraças que sobre ele se abateram. E despertou a curiosidade do ingênuo tapejara Blau Nunes, que atravessou as sete provas da Salamanca do Jarau e ganhou as mágicas onças de ouro que apareciam, uma a cada vez, no fundo da sua guaiaca. Entre as chamadas lendas missioneiras, resumidamente tratadas por Simões Lopes, fora da trilogia composta por Mboitatá, Salamanca do Jarau e Negrinho do Pastoreio, destaco três de notável presença indígena. A casa de M´Bororé situava-se dentro de um mato velho e crescido. Construção de pedra e sem portas nem janelas. Lá dentro as barras de ouro e tantas pilhas de riquezas, guardadas pelo rondador da casa branca, dia e noite em seu redor: [...] um índio velho, cacique que foi, M’Bororé, de nome, amigo dos santos padres das Sete Missões da serra que dá vertentes para o Uruguai. Os padres foram tocados pra longe, levando só a roupa do corpo... mas a casa branca já estava feita, sem portas nem janelas... e M’Bororé, que sabia tudo e era cacique, de noite, e precatado, com os seus guerreiros, carregou de todos os lugares para aquele as arrobas amarelas e as arrobas brancas, que não valiam a caça e a fruta do mato e a água fresca, e pelas quais os brancos de longe matavam os nascidos aqui, e matavam-se uns aos outros (Lopes Neto, 1913, p. 74). O velho índio despreza aqueles tesouros, mas segue cumprindo o seu fadário de guardador do ouro dos jesuítas. Rondando por eles, ainda espera. Espera pelos que não vão voltar, na sucessão dos dias e das noites. O Angoera era “um índio grande, forçudo e valente; mas era triste, carrancudo e calado”. Foi padrinho de M’Bororé. Quando deixou de ser pagão, trocou seu nome para Generoso. Ajudou muito e por anos, com sua força descomunal, os jesuítas na construção das sete missões. Sempre risonho e cantador, morreu contente. Sua alma até hoje assombra os viventes. Faz brincadeiras nas casas. No tempo dos “farrapos, quando se dançava o fandango nas estâncias ricas ou a chimarrita nos ranchos do pobrerio, o Generoso intrometia-se e sapateava também, sem ser visto; mas sentiam-lhe as pisadas, bem compassadas ao rufo das violas” (Lopes Neto, 1913, p. 78). 10 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias Por fim, no Lunar do Sepé, o escriba maior do Rio Grande louva o herói índio Sepé-Tiaraju, vencido e morto na batalha de 7 de fevereiro de 1756, que se travou no sopé da coxilha de Santa Tecla, perto de Bagé, homenageado pelos padres jesuítas, por quem combateu e morreu, e foi canonizado pelo povo. A lenda é o lunar e daí o seu nome, por causa da mancha estrelada de nascença na testa do índio, seu signo misterioso que luzia ao pôr-do-sol e que, com sua morte, adquiriu perene luminosidade e se transformou no luzeiro que brilha no firmamento, assim como recitou Simões Lopes, pela voz da velha Maria Genoína, moradora na picada que atravessa o Camaquã, entre Canguçu e Encruzilhada, por volta de 1902: “E, subindo para as nuvens, / Mandou aos povos – bênção! / Que mandava o Deus – Senhor / Por meio do seu clarão... / E o – lunar – da sua testa / Tomou no céu posição...” (Lopes Neto, 1913, p. 88). Referências CHIAPPINI, Lígia. No entretanto dos tempos. São Paulo: Martins Fontes, 1988. LOPES NETO, João Simões. Lendas do sul. 1. ed. Pelotas: Echenique, 1913. LOPES NETO, João Simões. Terra gaúcha. Porto Alegre: Sulina, 1955. SOARES, Mozart Pereira. O elemento sensorial nas Lendas do Sul. In: LOPES NETO, Simões. Lendas do sul. Edição ilustrada. Porto Alegre: Globo/Aplub, 1974. A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 11 O folclore e a ficção como artifício didáticopedagógico em Simões Lopes Neto Luís Borges* Consideramos que Simões Lopes Neto intentava originalmente um projeto didático-pedagógico. Ao virem a lume os textos de Terra gaúcha,1 através da divulgação de Carlos Diniz (2003, p. 124-137), foi possível a comprovação da hipótese lançada por Lígia Chiappini em No entretanto dos tempos (1988), mas já intuída na pequena biografia escrita, em 1985, por Antônio Hohlfeldt. O exame do “verdadeiro Terra gaúcha”, para utilizarmos uma expressão de Carlos Diniz, permite concluir que o projeto simoniano, no que tange a sua missão como escritor, se esboçara na conferência de 1904, Educação cívica, e prosseguiu nesse livro infanto-juvenil, calcado em princípios pedagógicos e nacionalistas, cuja finalidade era inculcar ideais patrióticos nas crianças brasileiras, segundo o modelo de De Amicis (Chiappini, 2003, p. 12). Profundamente influenciado pelo positivismo e pelo evolucionismo, eivado pela concepção iluminista, Simões Lopes Neto entendia que, no Brasil, o progresso estava identificado com a disseminação da educação. Sua percepção do problema não era apenas de modo a definir uma noção de progresso restrita ao desenvolvimento econômico, mas também, e principalmente, vinculava-o à idéia de emancipação política e social do homem brasileiro, * Coordenador adjunto do Grupo de Pesquisa em Filosofia Intercultural – Universidade Católica de Pelotas (UCPel), Instituto Superior de Filosofia (ISF). 1 Não se trata da obra homônima, que versa sobre a história do Rio Grande do Sul, editada postumamente, em 1955, pela Sulina, mas de outra, de feitio didático, inspirada no Cuore, de Amicis, e que permanece inédita. 12 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias ultrapassando a restrição entre educação formal e não-formal, eis que ele mesmo era um autodidata. A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 13 Como vimos, seu projeto de “divulgador cultural”, ação imediata decorrente de sua vocação de educador/escritor, é anterior à publicação das Lendas do sul. Conforme já afirmamos, seu projeto nasce por volta do ciclo das conferências cívicas (1904-1906), tendo sua feição perfeitamente delineada, quando da publicação do Cancioneiro guasca, em 1910. A obra Lendas do sul foi publicada no ano seguinte à publicação de Contos gauchescos; apesar disso, todo o livro já era conhecido do público, com exceção da Salamanca do Jarau. Em verdade, as Lendas do sul nada mais são que o Cancioneiro guasca expurgado da parte do popularium de trovas e quadrinhas compiladas do folclore rio-grandense, acrescentada à lenda da Salamanca. A primeira edição do Cancioneiro guasca, de 1910, trazia, pois, todas as lendas que comporiam o livro Lendas do sul, de 1913, com a exceção citada. A partir da segunda edição, o Cancioneiro, aparecido também pela editora Echenique, de Pelotas, em 1917, não mais trará as lendas, sendo este o perfil editorial adotado até hoje. Tratava-se de um elemento de marketing. Até 1928 – lembremos que um dos grandes fatores que desencadearam a inserção do autor pelotense no sistema literário do Rio Grande do Sul, foi o surgimento da chamada “edição acolherada”, da Globo, em 1926 – o maior sucesso editorial de Simões Lopes Neto era o Cancioneiro guasca. Como então lançar no mercado uma obra (Lendas do sul) que praticamente repetia outra aparecida três anos antes (Cancioneiro guasca)? O editor Guilherme da Cunha Echenique separou do Cancioneiro a parte relativa às lendas, dando feitio diferente a cada uma das obras. A estratégia funcionou tão bem, que o leitor hodierno, sem acesso às raras primeiras edições dessas obras, sequer desconfia que as Lendas do sul, quase inteirinhas, já se encontravam no Cancioneiro guasca. Situando a composição e publicação dos textos que apareceram em Lendas do sul no período compreendido entre os anos de 1906-1913, vale ressaltar também o contexto precário da realidade educacional que mobilizava intensamente a inteligência positivista do País, uma vez que o número de escolas (desconsiderando a inadequação dos currículos e da formação dos professores) era insuficiente para a demanda e as necessidades da nação. Grandes pensadores e educadores, tais como José Veríssimo (18571916) e Alberto Torres (1865-1917), dedicavam-se a examinar as mazelas sociais do Brasil, através do diagnóstico de suas políticas e metodologias educacionais. Nas primeiras décadas do século XX, as principais preocupações da novel república brasileira eram a fragmentação do território nacional e a modernização econômica do país. 14 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias Para sanar ou, pelo menos, minorar esses dois problemas, propunha-se o fortalecimento do sentimento cívico, tipicamente encarnado por intelectuais como Olavo Bilac (1865-1918) e Coelho Neto (1864-1934), e a rápida formação de mão-de-obra qualificada para o implemento da industrialização do Brasil. Lembremos que a República foi o resultado de um golpe militar e que Simões, embora democrata convicto e republicano desde a juventude, conforme o atestam seus trabalhos no A pátria, de 1888, possuía um imenso orgulho de ter sido capitão da Guarda Nacional do Império. Nesse sentido, o escritor era um homem profundamente sintonizado com o espírito de seu tempo, que confundia progresso com pensamento positivista, e civismo com militarismo. Sua vida e sua obra foram uma tentativa de resposta àquelas duas grandes preocupações dos anos iniciais da República Velha, naqueles tempos, então novíssima. Simões Lopes Neto buscou obsessivamente ser capitão de indústria e educador, chegando mesmo a ser professor na Escola de Comércio, em Pelotas/RS. Antes de tudo, porém, havia nele uma ânsia, um afã patriótico que o levava a uma ação cidadã, expressa em seus inúmeros e malogrados empreendimentos, nos seus compêndios de história e psicultura, nos seus projetos de reforma ortográfica, na “Coleção Brasiliana” de cartões postais, para a “divulgação dos fastos da história nacional”, e dos seus livros didáticos, como o caso do “verdadeiro Terra gaúcha”, para o ensino de crianças. À medida que o capital ia escasseando, o crédito sumindo e as falências se iam sucedendo, o Velho Capitão foi, cada vez mais, direcionando seus projetos para a área literária, sem perder o fito no objetivo didáticopedagógico. A literatura de Simões Lopes Neto, dotada de alto nível artístico, uma vez esboroados seus sonhos de “vulgarizador cultural” através da publicação de livros propriamente didáticos, foi utilizada por ele de maneira restrita, embora com fins elevados, consoante a concepção pragmáticopositivista da atividade do intelectual – definida por uma palavra hoje fora de moda: “publicista”. Para tanto, Simões pretendia que sua ficção desse a conhecer ao Brasil e aos próprios rio-grandenses sua fala, sua gente, sua história e seus costumes. A própria recepção crítica da obra simoniana padeceu desse mal. Desde os primeiros textos críticos, tais como os de Coelho da Costa (1912) e Antônio de Mariz (1913), até os atuais, como o de Everton Pereira da Silva (1998), considerou-se a escritura simoniana como um repositório fiel da história sul-rio-grandense. A esse respeito afirma Arendt: A ficção simoniana é entendida pela crítica como um arquivo em que se encontra depositada a história sul-rio-grandense, desde os seus primórdios até o começo do século XX, sendo esse o motivo pelo qual o escritor não A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 15 obteve o reconhecimento literário dos seus livros na época da publicação. O próprio trabalho de recolhimento do material folclórico assume, assim, um ar de pesquisa historiográfica (Arendt, 2004, p. 93). E adiante: Somente nos anos 40 e 50, os estudiosos passam a questionar a originalidade da matéria folclórica e a comprovar que Simões Lopes estilizou os textos orais, o que acaba, de certo modo, dispersando o caráter historiográfico da ficção. A obra começa a ser lida e afirmada do ponto de vista da sua literariedade, ainda instável nos anos 20 e 30, cujo período enfatiza principalmente os aspectos historiográficos e folclóricos da produção simoniana (Idem, ibidem). Carlos Reverbel, ao realizar uma enquete, em 1955, procurou estabelecer as dez obras fundamentais da bibliografia sul-rio-grandense. A primeira colocada foi Viagem ao Rio Grande do Sul (1820), de Saint-Hilaire, a segunda colocação foi obtida por Contos gauchescos e Lendas do sul (1949), de Simões Lopes Neto. Ao todo, entre as dez obras escolhidas, quatro são literárias, sendo as demais do campo da história, da sociologia, da geografia e da etnografia. Por que uma obra historiográfica e uma obra literária encabeçaram a lista? Segundo Arendt (Idem, p. 90) a resposta pode ser encontrada em três direções diferentes: (1) nos depoimentos dos próprios participantes da enquete e na sua relação com a crítica simoniana anterior; (2) na situação editorial e crítica de Contos gauchescos e Lendas do sul, nos anos 50; (3) na presença de Carlos Reverbel como realizador da enquete. Nesse sentido, é interessante, para efeito de exemplificação, o depoimento do historiador Sérgio da Costa Franco, um dos participantes da enquete realizada por Reverbel, através do Correio do Povo, de Porto Alegre, entre os meses de setembro e dezembro de 1955: Apesar de obras de ficção, os contos e lendas, especialmente as Lendas do sul, de J. Simões Lopes Neto, não podem fugir a esta relação. Tal a sua força telúrica, de tal modo autêntica a sua elaboração literária, que escapam ao padrão comum da ficção regionalista, para se transformarem em legítimas manifestações folclóricas. E não se conheceria a cultura gaúcha, sem as ter estudado (apud Arendt, 2004, p. 90). Essa visão que reduz o literato Simões Lopes Neto ao folclorista, ou ao escritor naturalista, quase sociólogo, prejudica o entendimento do escritor propriamente dito. Dessa maneira, o estudo das lendas, neste caso, daquelas denominadas “missioneiras”, possibilita o alargamento da compreensão do lugar ocupado pelo elemento de cunho folclórico e/ou histórico na literatura 16 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias simoniana, eliminando a falsa dicotomia entre o Simões Lopes Neto artista e o Simões Lopes Neto folclorista/historiador. Para o autor de Contos gauchescos (1912), o material recolhido na tradição oral é matéria-prima para sua arte. Arte, porém, que, dentro do ideário da “ilustração tupiniquim” e do “positivismo moreno”, deve atender a uma função social: a educação popular. Numa época em que educação/instrução eram quase sinônimos e tinham por modelos expressivos a prosa e a poesia parnasiana (sem falar na oratória bacharelesca), com sua inerente verborragia e rebuscamento, e no qual a crítica literária (e até os debates jurídico-políticos, vide debate Rui Barbosa e Carneiro Ribeiro), praticamente, se restringia a querelas gramaticais e filológicas, a literatura de Simões Lopes Neto faz um profundo corte, por assim dizer, na metodologia e no pensamento que embasava a ideologia republicana de “educar o povo”. Ao invés de forçar as pessoas a aprenderem o latim ou a macaquear o vocabulário de Rui Barbosa ou Coelho Neto, Simões Lopes buscava compreender e preservar a alma popular, e, a partir desse processo, com seus contos/parábolas, desenvolver o sentimento telúrico, o qual proveria a sede de conhecer a história e desenvolver a pátria. Sabemos, todavia, o quanto o “decênio farroupilha” ficou encravado no imaginário social e histórico do Rio Grande do Sul. Parte desse imaginário, no ambiente da recém-inaugurada República, dava a impressão negativa de separatismo. Simões Lopes Neto, cioso desse receio, e ávido de preservar e divulgar a história e as tradições do Rio Grande do Sul, intentava, no cumprimento de seu programa cívico, integrar e fortalecer tanto o telurismo gaúcho, quanto o sentimento de brasilidade. Assim como Euclides da Cunha e Lima Barreto, Simões Lopes Neto compreendia que ao escritor cabia a missão de colocar seus livros a serviço do país. O autor de Lendas do sul (1913) foi buscar no pensamento do século XIX as raízes para construir o necessário “instinto de nacionalidade”, para utilizarmos a tão célebre expressão de Machado de Assis. Poder-se-ia resumir o Brasil literário (e assim podemos dizer o Brasil cultural e filosófico) até o tempo de Simões Lopes Neto em dois grandes blocos, a saber: o romantismo e o real-parnaso-naturalismo. O primeiro bloco, didaticamente, vai de 1836 a 1870; e o segundo, de 1881 até 1902, estendendo-se difusamente, mesclando tendências diversas, até as vésperas do Modernismo. Historicamente, o Romantismo brasileiro, sobretudo sintetizado em figuras como José de Alencar e Bernardo Guimarães, na prosa, e Gonçalves Dias e Castro Alves, na poesia, responderam literariamente às questões relativas à criação de uma língua e consciência nacionais – emancipação A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 17 cultural – e à luta pela abolição da escravatura, que representava a modernização econômica e o desenvolvimento das instituições jurídico-políticas, procurava colocar o Brasil no rol das nações civilizadas. Os países do Novo Mundo, sobretudo os da América do Sul, buscavam fabricar uma tradição política, filosófica e artística que justificasse suas aspirações emancipatórias. Desse modo, as nações européias não-ibéricas, seduziam, em especial a França, essas jovens nações, oferecendo, no plano econômico, o liberalismo, e no filosófico-cultural, a ilustração. O indianismo está, intimamente, ligado à cultura do Romantismo, não só brasileiro, mas também europeu, que lhe é anterior. De qualquer modo, encontrou solo fértil em terras brasileiras, devido não só a fatores históricos, bem como à necessidade de forjar uma mitologia que auxiliasse a criação de uma identidade nacional. O pai espiritual do Romantismo brasileiro foi o francês Ferdinand Denis, autor de um Resumo de história literária do Brasil. Tal como nossos indianistas literários – José de Alencar, principalmente – Denis leu várias obras etnográficas de viajantes europeus que vieram aos trópicos, inclusive ao Brasil, e descreveram as sociedades indígenas. Antes mesmo de Ferdinand Denis, o arcadismo brasileiro já mostrava pendão indianista, adotando um padrão de comportamento típico do “bom selvagem”, tal como aparece no Caramuru (1781), de José de Santa Rita Durão. A heroicização do índio possui, na literatura brasileira, uma dupla função: cultural e política. De uma só vez, o índio-herói representa o espírito puro e saudável, inclusive moralmente, do brasileiro, e, ao mesmo tempo, é pretexto para, conforme a tese de Gonçalves de Magalhães, introdutor do Romantismo no Brasil, entender que a “Independência do Brasil foi apenas rebelião triunfante dos antigos donos da terra contra os seus opressores de três séculos” (Holanda, 1986, p. 17). José de Alencar, o mais típico dos indianistas, faz uma crítica ao etnocentrismo dos viajantes europeus que escreveram sobre o Brasil. Baseandose no pressuposto de que o índio era um análogo nativo do cavaleiro medieval europeu, o autor de O Guarani (1857), observa que o caráter do selvagem brasileiro foi “deprimido por cronistas e noveleiros ávidos de inventarem monstruosidades para impingi-las ao leitor” (Alencar, 1958, p. 353). Nosso enunciado problemático é: Dentro desse contexto socioliterário e dos debates em torno dos problemas e da identidade nacional, em que Simões Lopes Neto contribuiu para inserir-lhe algo da identidade e da cultura gaúcha sul-rio-grandense? Diante disso, podemos propor a seguinte hipótese: O índio, pois, era o Brasil, assim como para Simões Lopes Neto, o gaúcho era o pampa. Ao tratar das “lendas missioneiras”, o autor procura in18 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias corporar um fator comum entre a tradição brasileira e a identidade riograndense, fazendo com que o personagem indígena assuma, dentro da cultura regional do Rio Grande do Sul, o papel de elo integrador da nacionalidade. Simões Lopes Neto escreveu sete breves textos em prosa, denominados Argumento de outras lendas – missioneiras, em que encontramos, de modo mais explícito, a recepção em sua literatura da tradição indígena. As lendas são as seguintes: A mãe do ouro, Cerros Bravos, A casa de M’Bororé, Zaoris, O Angüera, Mãe mulita e São Sepé/Lunar de Sepé. É possível encontrar em outros textos, ao longo de sua obra, também, a referência à tradição indígena. No entender de Sica Diniz (2004), os melhores textos sobre a recepção indígena em Simões Lopes Neto são: Salamanca do Jarau, A casa de M’Bororé e São Sepé/Lunar de Sepé. Levando em conta esta posição, sobre estes textos fundamentais, bem como os acima mencionados, faremos uma breve análise dos mesmos. Nosso objetivo é apresentar a recepção da tradição indígena na literatura simoniana, mostrando como o autor recriou tradições escritas e orais anteriores. Referências ALENCAR, José de. Ubirajara. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1958. Obra completa, v. 8. ARENDT, João Cláudio. Histórias de um Bruxo Velho. Caxias do Sul: UCS, 2004. CHIAPPINI, Lígia. No entretanto dos tempos. Literatura e história em João Simões Lopes Neto. São Paulo: Martins Fontes, 1988. DINIZ, Carlos Francisco Sica. João Simões Lopes Neto, uma biografia. Porto Alegre: AGE, 2003. . Recepção da herança indígena na literatura simoniana. Palestra proferida no dia 14/10/2004, na Jornada Cultura Gaúcha e Olhar Simoniano, promovida pelo Grupo de Pesquisa Simoniano da UCPel/Instituto Superior de Filosofia. HOLANDA, Sérgio Buarque de. LOPES NETO, João Simões. Lendas do sul. 1. ed. Pelotas: Echenique, 1913. . Terra gaúcha. Porto Alegre: Sulina, 1955. . Contos gauchescos, Lendas do sul, Casos do Romualdo. Edição crítica por Lígia Chiappini. Rio Janeiro: Presença, 1988. . In: MAGALHÃES, Gonçalves de. Suspiros poéticos e saudades. 5. ed. Brasília: ILN/UnB, 1986. VERÍSSIMO, José. A educação nacional. Crítica. Rio de Janeiro: Agir, 1958. A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 19 Recepção da tradição indígena na literatura de Simões Lopes Neto Agemir Bavaresco Luís Borges Mateus Weizenmann* A Mãe do Ouro Segundo Câmara Cascudo, o verbete “mãe do ouro” refere-se a “um mito, inicialmente, meteorológico, ligado aos protomitos ígneos, posteriormente, ao ciclo do ouro. No Rio Grande do Sul, é informe, agindo com trovões, fogo, vento, dando o rumo da mudança” (Câmara Cascudo, 1993, p. 455). Temos três sentidos nesta definição: (a) um ligado ao fogo; (b) outro relacionado ao metal ouro; (c) e uma referência específica ao Rio Grande do Sul. Aqui, o verbete está ligado à tempestade, entendo-se que o fogo é associado aos raios. O importante a ressaltar é que ele dá o rumo da mudança. Vejamos a estrutura do texto: Primeira parte – Há uma metamorfose do corpo humano em serra de pedra: os ossos viram pura pedra; a carne, em terra negra; os cabelos, em mato; o sangue, em cascatinhas e vertentes; os buracos do corpo (boca e olhos, nariz e ouvidos), em lugares ocados; as veias em ferro; os nervos em ouro e “são os veeiros amarelos que se entranham por aí abaixo, adentro da * Membros do Grupo de Filosofia Intercultural da Universidade Católica de Pelotas (UCPel) / Instituto Superior de Filosofia (ISF). 20 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias crosta, tal e qual como os nervos estão entranhados na carnadura da gente” (S, 177, 15).2 2 Para as citações dos textos de Simões Lopes Neto utilizaremos a edição crítica estabelecida por Lígia Chiappini (1988), conforme referência bibliográfica. A abreviação será a seguinte: “S”, número da página e linha. A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 21 Segunda parte – A alma que governa tudo é a “Mãe do Ouro”. Ela tem três funções: (a) é imortal e defende “os nervos dos castigados, os veeiros da fortuna”. O termo veeiro tem dois significados: Trata-se de uma fenda ou filão e também pode ser o imposto que se pagava à coroa portuguesa na exploração de uma mina. Aqui, o veio da fortuna é o ouro entranhado no interior do cerro; (b) a “Mãe do Ouro” é uma entidade protetora que no “dia do perdão” auxilia para que “cada um ache o que seu é”; (c) ela é mãe “que chama socorro”, ou seja, é uma intercessora diante dos castigos advindos dos temporais (S, 177, 20). Terceira parte – A “Mãe do Ouro” muda de lugar, quando “rebenta um cerro”: De noite, diante do fogo dos raios, ela muda para outro lugar; ao meio-dia, em pleno sol, não se sabe qual o lugar que ela toma, apenas vislumbra-se o rumo (S, 177, 25). O texto faz remontar ao contexto histórico na região missioneira em que os portugueses e espanhóis destruíram aquelas reduções na busca de ouro. Há, também, uma procura de explicação do fenômeno natural, buscando a causa dos cerros, raios, trovões. A originalidade simoniana, na “Mãe do Ouro”, é ir além da etiologia, para dar-lhe uma dimensão histórica, ou seja, mostrar a resistência indígena face ao invasor. A tradição indígena permanece no texto, no que diz respeito à simbiose corpo-natureza. O grande símbolo é a “Mãe do Ouro”, “que governa tudo, que não se sabe o que é, que é a Alma, que não morreu” (S, 177, 17). Ela é a alma que mantém a fusão do corpo-natureza, a proximidade com a natureza, a simbiose com o mundo. Pode-se estabelecer uma aproximação entre a “Mãe do Ouro” e Maria, pois ambas são femininas e têm uma função de prestar socorro aos castigados. O tema do castigo está vinculado ao do pecado e perdão. Trata-se da influência cristã jesuítica, que organizou os povos indígenas em reduções. Temos o tema do castigo e castigados que perpassa o texto. Inicialmente, a explicação da serra de pedra encontra-se num “castigo do céu” que endureceu de repente o cerro (S, 177, 5). Depois, a “Mãe do Ouro” é isenta do castigo, por isso pode defender os castigados (os nervos, os veios de ouro) (S, 17, 20). E a explicação final afirma que a causa dos raios, trovões e ventos são o castigo. Porém, a “Mãe do Ouro”, como a alma imortal está junto à serra de pedra, sempre clamando por socorro. Cerros bravos Este texto continua a desenvolver o mesmo tema do anterior, ou seja, a união entre natureza e corpo, os saqueadores de ouro, os cerros revoltados e 22 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias o castigo. O pequeno texto que é o mais breve dentre todas as “missioneiras”, é composto de um parágrafo, uma frase inicial e uma final. A primeira frase enuncia os mortos pelo castigo e aqueles que estão semivivos, ainda cambaleantes, resistem em meio às dores. Mesmo assim, alguns destes insistem em cobiçar o ouro. Então, os cerros enfurecem-se e resistem face aos saqueadores, pois o ouro é como os seus nervos que, ao serem tirados, provocam dor (S, 177, 30). Aqui, fica explícita a referência aos cobiçadores de ouro que arrancam à força o ouro dos cerros. Interessante perceber que a revolta dos cerros é devida à dor causada neles. É como se, ao tirarem o ouro, estivessem matando o corpo-natureza. A revolta dos cerros é tamanha contra os saqueadores que, se estes teimam, acabam morrendo. Os cerros aqui, de fato, se tornam bravos, pois reagem diante do inimigo como podem: “por força do encantamento somem-se”, ou “atiram temporais de uns para outros tão medonhos, que eriçam o cabelo e prendem o passo dos homens, mesmo os mais desabusados” (S, 177, 35). Na constatação de Granada (1896, p. 150), raro é o cerro, penhasco e escarpado, desde a Cordilheira dos Andes até às Comarcas do Uruguai, Paraná e Paraguai, que não tenha sua salamanca ou cova encantada, que não contenha considerável riqueza de ouro e prata em suas entranhas, que não se embraveça e dê bramidos estrepitosos. A casa de M’bororé Segundo Granada (1896), M’bororé é um nome guarani que significa casa encantada das antigas missões jesuíticas. A origem desta lenda estaria ligada à violenta expulsão dos jesuítas decretada por Carlos III, a qual provocou a idéia de um provável achado de tesouros. Então, começou a supor-se, erradamente, que os jesuítas esconderam, no tempo da expulsão, grandes riquezas. Porém, segundo Granada (idem), os padres da Companhia de Jesus foram surpreendidos, de tal forma que não foi possível tomar nenhuma riqueza, nem falar com ninguém, nem sequer despedir-se de seus neófitos; foram conduzidos até Montevidéu e Buenos Aires, onde foram embarcados para a Europa. De modo que, ainda que tivessem tido riquezas, não teriam podido escondê-las. Porém, o fato é que nos destruídos povos das antigas missões havia, por todas as partes, junto às árvores e os muros, poços escavados com a esperança de tirar alguma porção de ouro ou de prata maciços. “Por isso mesmo, em meio aos imensos bosques que existem no território das Missões, acha-se, segundo as imaginações tradicionais de seus habitantes, a casa branca sem portas nem janelas de M’bororé, onde os jesuítas expulsos esconderam os riquíssimos tesouros que possuíam” (Granada, 1896, p. 155-156). A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 23 Para Granada (1896, p. 157), “as riquezas dos jesuítas que se supõem escondidas na casa branca de M’bororé, nunca existiram”. Parte delas foi usada nos seus templos, e outras partes foram enviadas à Europa para as finalidades de sua Ordem. “A mãe do ouro e da prata, acrescenta o autor, era a força de trabalho aplicado com método e esmero” (idem, ibidem). Esta lenda, na versão simoniana, pode ser dividida em duas partes: a. A primeira descreve um mato grosso e no interior do mesmo há uma “casa de pedra branca, branca como se encaliçada, e sem porta em nenhum lado nem janela em nenhuma altura” (S, 178, 10). Dentro desta casa estão as barras de ouro e prata, sendo que em cima das mesmas estão objetos religiosos em ouro e nos corredores da casa estão sacos de moedas de ouro. b. A segunda fala daquele que faz, dia e noite, a ronda da casa branca. Trata-se de “um índio velho, cacique que foi, M’bororé de nome, amigo dos santos padres das Sete Missões da serra que dá vertente para o Uruguai” (S, 178, 20). Nesta segunda parte, há uma nova interpretação em relação a Granada (1896), pois Simões Lopes atribui o nome de M’bororé a um índio. Ora, este, diante da expulsão dos padres jesuítas, imediatamente, junto com os seus guerreiros, carregou, de todos os lugares, o ouro e a prata para a casa branca. De fato, os índios não tinham interesse nos metais preciosos, altamente cobiçados pelos brancos, a tal ponto que estes “matavam os nascidos aqui, e matavam-se uns aos outros” (S, 178, 25), para apoderarem-se do ouro e da prata. Qual era, então, o interesse de M’bororé em guardar essas arrobas? Porque “era amigo dos santos padres das Sete Missões, guardou tudo e espera por eles, rondando a casa branca [...] ronda e espera...” (S, 178, 30). Zaoris Simões Lopes Neto, no final desta lenda, coloca uma nota explicativa que diz o seguinte: “Em relação ao argumento destas lendas – 1.4 – reportamo-nos ao raciocinado estudo do Sr. Pe. C. Teschauer, sob o título – Lenda do Ouro – (Rev. do Instituto Histórico do Ceará, tomo 25, 1911)” (S, 179, 40). Aqui, encontramos a fonte em que o autor se baseou para elaborar essas primeiras quatro lendas. Aliás, há de se notar que Simões Lopes Neto, como se verá adiante, fará referência à fonte pesquisada para elaborar essas lendas e o próprio poema Lunar de Sepé. 24 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias Encontramos em Granada (1896) a definição do termo “zaoris”. Este seria um termo herdado dos mouros, pois o termo “zaori” parece ser arábico.3 “Zaori” equivale ao que pratica a geomancia, sendo esta uma magia e adivinhação supersticiosa através dos corpos terrestres, ou com linhas, círculos ou pontos feitos no chão. Esta definição reporta-se ao Diccionario de la Lengua Castellana da Real Academia Española (Granada, 1896, p. 164, nota 1). O Dicionário Houaiss, complementa: Geomancia é a “adivinhação através das figuras formadas por um punhado de terra que se atira ao acaso sobre o chão ou qualquer outra superfície”. Na Península Ibérica, existiam estes zaoris, espécie de bruxos, que foram levados ao novo mundo. São pessoas dotadas da faculdade de ver através de corpos opacos, de descobrir o que está oculto, mesmo que esteja debaixo da terra. São os olhos que lhes permitem a proeza da adivinhação, a tal ponto que penetram paredes e a profundidade da terra. Sua principal função é descobrir minas e tesouros. A tradição popular afirma que Deus dá esta graça aos que nascem na Sexta-Feira Santa. No entanto, isto deve ser, antes, obra do gênio do mal. Prossegue, Granada (1896, p. 165), dizendo que os arquivos da Inquisição são a prova de que o zaori recebe do diabo a faculdade de ver na obscuridade através dos corpos opacos. “O fogo e a luz emanados do sol que o índio adora, os quais também devem ser uma das formas e disfarces infinitos com que o diabo oculta sua figura para assombrar e enlouquecer o mundo com invenções estupendas, formou seus zahoris”. O autor descreve casos de mulatas escravas de Santiago do Chile e Lima que se tornaram zaoris através do influxo do sol ou de um raio. Enfim, na América do Sul, os zaoris tiveram um espaço de ação muito grande, pois deveriam se ocupar em descobrir os tesouros enterrados pelos vassalos dos Incas, quando da invasão dos espanhóis, ou então, por ocasião da expulsão dos jesuítas em 1768 (Granada, 1896, p. 167). Simões Lopes Neto conta esta lenda na ótica do cristianismo, dando uma reinterpretação com personagens, tais como São Miguel, a Virgem Maria e os Anjos da Guarda. O texto pode ser dividido em três partes: a. O julgamento – Na Sexta-Feira Santa, ocorreu o julgamento dos carrascos que mataram Jesus Cristo. O arcanjo Miguel recebe a ordem de executar a sentença através dos anjos que guardavam a cruz. Da couraça de ouro de Miguel emana um brilho luzente. b. As crianças assinaladas – As pessoas, já nascidas, estavam todas condenadas pelo pecado de ter maltratado Jesus Cristo, exceto as crianças 3 Daniel Granada escreve zahoris com “h”, porém, nós o usaremos sem, para seguir a versão simoniana. A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 25 ainda não nascidas, pois não tinham culpa do ocorrido. Porém, o arcanjo Miguel esqueceu de avisar os anjos da guarda de não castigarem as crianças inocentes. Então, a Virgem Maria fez um milagre. Fez com que o “vento das asas de prata do arcanjo ventasse sobre os olhos dos que fossem nascendo nesse dia santo” (S, 179, 20). Assim, todos os olhos das crianças, nascidas na Sexta-Feira Santa, ficaram marcados, sendo dotados, deste modo, de uma faculdade especial: “Podiam ver através da água até o seu fundo, e através das muralhas e montanhas até o outro lado delas, porque tudo ficou transparente para eles” (S, 179, 24). c. Os zaoris – Ora, como o arcanjo permaneceu na terra, o dom da faculdade de ver no interior de materiais físicos, ficou aqui, e, em todas as sextas-feiras santas, esse mesmo fenômeno se repete. Então, “para esses, nada existe escondido ou enterrado que os seus olhos não vejam, como os dos outros homens, de dia claro; e isso porque nasceram em Sexta-Feira Santa: são os zaoris” (S, 179, 30). Assim, todos aqueles que nascem em uma Sexta-Feira da Paixão são zaoris. Há uma cristianização deste mito de origem árabe, que, na sua versão espanhola, apresenta a contradição entre Deus e o diabo, pois, ao mesmo tempo, atribui-se a eles o dom de conceder aos zaoris a faculdade de ver no interior do físico. Na versão simoniana, ocorre uma inversão: Não é mais o demônio que forma os zaoris, senão que o arcanjo Miguel. Portanto, o zaori, que era um adivinho pagão, torna-se uma criança inocente: “Em todas as Sextas-Feiras Santas procuram os olhos das crianças recém-nascidas, que então ficam com o dom de ver no escuro e através de qualquer tapamento de pedra, madeira, ou ferro” (S, 179, 27). Os seus olhos, com brilho mágico e misterioso, possuem o poder de ver através de corpos opacos, localizando tesouros escondidos, tais como barras de ouro ou prata, jóias, pedras preciosas etc. Simões Lopes Neto opera uma dupla metamorfose na lenda original: a) De um lado, cristianiza e vincula a lenda à figura do arcanjo Miguel, muito venerado nas Missões, por influência, obviamente, dos padres jesuítas; b) de outro, também esta lenda que se encontra na região do Rio da Prata, Chile, Paraguai e Rio Grande do Sul, diz respeito à localização das riquezas e tesouros enterrados pelos índios, com a finalidade de salvaguardar seu ouro dos ibéricos. Portanto, a lenda é relida a partir do contexto sul-americano e, especificamente, situado na região missioneira, de onde vem a tradição indígena. 26 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias Angüera: a metamorfose do índio Angüera é, segundo Granada (1896, p. 485), um termo guarani que significa fantasma. Os guaranis temiam muito os angüeras, almas saídas dos corpos dos defuntos. Os líderes guaranis para fazerem-se temer pelos índios, ameaçavam os mesmos com fantasmas que sairiam das cavernas com enormes espadas para vingarem-se, caso não os obedecessem. Simões Lopes Neto conta esta lenda assim: a. A cristianização do índio: Segunda a versão de Granada (1896), Angüera é um fantasma, anônimo. Simões Lopes Neto, porém, personifica num índio o nome de Angüera, dando-lhe as características físicas de “grande, forçudo e valente”, porém, é “triste, carrancudo e calado” (S, 179, 35). É interessante observar que o autor afirma que Angüera, “enquanto foi pagão” tinha esse estado de espírito tristonho. De fato, Simões Lopes Neto deixa veicular o preconceito cultural da época: O índio é um pagão em relação ao europeu cristão. Ser pagão era um conceito depreciativo. Depois, ao encontrar-se com os padres jesuítas, foi por eles batizado. E, como era costume, na época, trocava-se o nome ao receber o sacramento do Batismo. Ele foi chamado de Generoso. Ora, ao tornar-se cristão, acontece uma mudança: “Angüera, que era triste, deixou a casca da tristura, e como Generoso, de nome bento ficou prazenteiro” (S, 180, 5). Percebe-se que há uma diferenciação entre o estágio de índio-pagão e índio-cristão, dando a entender que o último é melhor que o anterior. Ele segue todo o itinerário de um neófito, recebendo todos os sacramentos até à morte. b. Alma errante: Depois de morto, “sua alma saiu-lhe do corpo”, começa, então, uma grande “aventura entre os vivos”, pois, entra nas casas e provoca ruídos; toca viola, assobia, sopra a chama do fogo etc. A alma do Generoso é divertida e brincalhona e continua a vagar no cotidiano das pessoas. c. A historização da lenda: Generoso entrava nos salões de dança, “intrometia-se e sapateava também, sem ser visto”. Aqui, Simões Lopes Neto faz uma referência explícita à história do Rio Grande do Sul ao escrever que o índio Generoso participava das danças no tempo dos Farrapos (S, 180, 25). Vê-se que Angüera passa por várias metamorfoses: religiosa (pagãocristão), existencial (triste-alegre), histórica (Sete Povos-Guerra dos Farrapos) e metafísica (corpo-alma). Pode-se dizer que a tradição indígena permanece viva em todo o tempo, tecendo a formação do gaúcho, dando-lhe alma para estar em constante mutação, sem perder a sua identidade. A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 27 Mãe mulita4 Mito e literatura Costuma-se chamar “mito” a um relato fabuloso, que abriga a noção de narrativa tradicional, geralmente, de conteúdo religioso ou a ele relacionado. Os mitos, com freqüência, referem-se a grandes feitos heróicos, que são considerados o fundamento ou o começo de uma comunidade ou mesmo de todo o gênero humano. É comum apresentarem também como motivo os fenômenos da natureza, explicando-os de maneira alegórica, como é o caso das ninhadas do tatu-mulita. A narração mitológica envolve, basicamente, pretensos acontecimentos relativos a épocas primordiais, antes do surgimento dos homens, como o caso dos mitos de origem (cosmogônicos), ou dos “primeiros” homens, como o de Adão e Eva. Uma das características do mito é que o acontecimento fabuloso narrado ocorreu em um tempo passado impreciso ou muito remoto, como os tempos bíblicos. O mito aparece e funciona como mediação entre o sagrado e o profano, condição necessária à ordem do mundo e às relações entre os seres e os fenômenos naturais. Sendo o homem um ser de profunda relação com o sagrado, logo pensadores e estudiosos manifestaram interesse por exame mais acurado dos mitos. Dois autores deram especial atenção ao problema do mito: Vico e Schelling. Giovani Battista Vico (1668-1744), em sua obra Principi di una scienza nuova intorno alla comuna natura delle nazioni (1744), geralmente citada apenas como Scienza nuova, fala em “conhecimento fantástico” ou “formas fantásticas de conhecimento”, que são, respectivamente, a língua e a poesia. Pretende, a fim de construir sua teoria epistemológica, deduzir da etimologia das palavras um saber sobre a história primitiva em que as línguas se formaram. Para ele, a poesia teria sido a primeira forma de comunicação da humanidade, uma vez que os povos antigos eram essencialmente poéticos. Daí provém seu interesse pelos mitos. Vico rejeita a idéia, dominante nos séculos XVII e XVIII, de que as narrativas mitológicas seriam alegorias filosóficas, reconhecendo, entretanto, que nelas há resquícios de verdades históricas (Cf. Abrão, 1999b, p. 264-266). Friedrich Schelling (1775-1854), durante toda a sua vida se interessou por temas relativos à metafísica, teologia, religião e mitologia. Teve seus cursos sobre Filosofia da Revelação e Filosofia da Mitologia proferidos em 4 O título original deste ensaio é A mãe mulita, de Simões Lopes Neto, através de uma hermenêutica simbólica da prosopopéia. 28 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias Berlim, publicados, postumamente, por seu filho. Nesses cursos e noutras obras, expôs uma preocupação teístico-metafísica, em que busca integrar espírito e natureza. Seu sistema filosófico se constitui numa mediação entre o idealismo subjetivo de Kant e Fichte e o idealismo objetivo de Hegel. O sistema de identidade do “Eu” e o “Não-Eu”, proposto por Schelling, apresentase de modo que o Absoluto seja a um só tempo sujeito e objeto. Em seu pensamento, há um vivo senso de arte. Sua concepção do Absoluto é a unidade entre espírito e natureza, que se revela na história, na arte, na religião e na mitologia. Em relação a este último ponto, Schelling estimou que os mitos são uma forma de pensamento que representa um dos modos como se revela o Absoluto, através do processo histórico (Cf. Abrão, 1999a, p. 341-344). A análise científica dos mitos começou com o antropólogo Friedrich Max Müller. Sua explicação a respeito dos mitos era que eles representavam a descrição poética de fatos da natureza. Mais tarde, James Frazer, em sua obra monumental, em 12 volumes, The golden bough (1890-1915), considerou os mitos explicações narrativas de ritos, cujo sentido já não era compreendido pelos que o celebravam. Na antropologia moderna, entretanto, a essas hermenêuticas prevaleceram as teorias estruturalistas de Levi-Strauss, que identificam, nos relatos mitológicos, o reflexo de determinadas estruturas sociais, e a psicanálise de Freud, que entende os mitos como racionalizações da mente primitiva em face dos conflitos do indivíduo e deste com a família e a sociedade. Será com a Renascença que a mitologia, sobretudo grega, começa a ser importante para a literatura propriamente dita, fornecendo motivos, personagens e enredos. Será, todavia, com o advento da Ilustração que as narrativas mitológicas servirão a diferentes fins no uso do texto literário. Os mitos se constituíram então num vasto sistema de referências que é familiar a todos os homens cultos daquele período. As metáforas míticas oferecem um sentido imediatamente reconhecível para os leitores e que, portanto, se torna um recurso amplamente utilizado pelos escritores dos séculos XVI a XVIII. Foi, conforme já nos referimos, durante o Iluminismo que mito e literatura se imbricaram definitivamente para diferentes finalidades. Voltaire, por exemplo, escreveu seu Édipo (1718) para denunciar o poder do clero na França. Goethe, retomando um anônimo do século XVI, escreve Fausto (1808), uma metáfora de recriação prometéica. Lançando um breve olhar sobre importantes escritores do século XX, observa-se a permanência e a estilização literária das narrativas míticas. O mito de Electra (1903) pode ser identificado na obra de Hugo von Hoffmannsthal, o de Orestes em As moscas (1943), de Sartre; o de Medéia em alguns argumentos das peças de Robinson Jeffers; e Antígona, obra de Sófocles, em sua força de crítica política, encontra um sentido redivivo no teatro de Jean Cocteau e Brecht. A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 29 Fábula, mito, lenda, superstição e estilização literária A fábula, como forma literária específica, é uma narração breve, em prosa ou verso, cujos personagens são, geralmente, animais e, sob uma ação alegórica, encerra uma instrução, um princípio geral ético, político ou literário, que se depreende naturalmente do caso narrado. A fábula comporta assim duas partes, a que La Fontaine chamou corpo e alma: a narrativa e a moralidade. Aquela trabalha as imagens, que constituem a forma sensível, o corpo dinâmico e figurativo da ação; esta opera com conceitos, que são “a verdade falando aos homens”. Deve-se salientar, porém, que para o leitor moderno a literariedade possui precedência sobre o ensinamento moral. Enfatize-se que, para o gosto moderno, a narrativa deve ser o elemento dominante. A moralidade ou significação alegórica anima o corpo narrativo, mas de maneira velada, ficando nas entrelinhas. Os antigos tinham um ponto de vista diferente. Para eles, a parte filosófica era o drama, a vivacidade das imagens para chegar mais diretamente ao alvo moral. Quanto mais se avança na história da fábula, mais se vê decrescer o tom didático em proveito do entrecho. A fábula acabou por tornar-se um gênero popular no século XVIII. La Fontaine teve muitos seguidores: Jean-Pierre de Florian (França); Tomás Iriarte (Espanha); George Bertolá (Itália); Bocage (Portugal), que traduziu La Fontaine em versos; John Gay (Inglaterra). Estes autores elevam a fábula, originalmente um gênero popular, baseado em fontes folclóricas, a uma literatura sofisticada, geralmente, de cunho filosófico-moral ou de crítica política. Na Alemanha, Lessing reagiu contra a hiperliteralização da fábula, apresentando em Fabeln (1759) uma introdução em que expõe essa excessiva literalização como perversão do gênero e uma traição de suas raízes. Apesar disso, foi Christian Gellert, contemporâneo de Lessing, o fabulista mais popular entre os germânicos, com suas histórias engraçadas, conforme os prejuízos da época, motejando mulheres, pobres e burgueses. Contudo, o melhor escritor de fábulas do século XIX foi o russo Ivan Krilov. Este escritor russo foi também jornalista satírico e dramaturgo. Após traduzir La Fontaine, em 1805, escreveu, sob sua influência, Basni (1809). Sua prosa realista é viva e saborosa, recheada de provérbios populares, o que fornece a seu texto uma grande força epigramática. Retirando a fábula dos salões luxuosos, devolveu-a ao povo, no vigor telúrico do pitoresco campônio russo. Todas essas qualidades lhe possibilitam êxito imediato. Tendo, pois, a fábula uma tradição que atravessou os tempos, vinda do Oriente e da Antigüidade Clássica, chegou até a Europa moderna e contem30 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias porânea. Também a língua portuguesa e, inclusive, o Brasil sofreram sua influência, embora neste último caso, esta só se fez sentir tardiamente. A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 31 Indo buscar as esporádicas contribuições dos fabulistas em língua portuguesa, encontramos, no século XVI, Sá de Miranda, que compôs O rato do campo e o rato da cidade e O cavalo e o cervo. Em Portugal, depois de Bocage, o poeta Almeida Garrett publicou Fábulas e contos (1853). Em terras lusas, todavia, o melhor fabulista é Cabral do Nascimento, também poeta, cuja obra Fábulas apareceu somente uma centúria após. No Brasil, destarte a longa vigência do cânone lingüístico e temático dos clássicos portugueses e a posterior influência francesa no Romantismo, já em 1860, a fábula fez-se gênero de destaque com a obra Fábulas, de Luiz de Vasconcelos, que introduziu a fauna e a flora no contexto da estrutura narrativa da fábula, buscando nacionalizá-la. No campo do estudo, registro e adaptação de fábulas, lendas e superstições brasileiras, estilizadas literariamente, ninguém superou os esforços de Monteiro Lobato, ainda que tenha tido predecessores e pósteros ilustres, tais como J. Simões Lopes Neto, com suas Lendas do sul (1913), e Catulo da Paixão Cearense, com Fábulas e alegorias (1945). Lígia Chiappini afirma que a tradição oral, fonte dos mitos, lendas, fábulas e superstições, transformou-se em conto culto em J. Simões Lopes Neto (Chiappini, 1988, p. 150). Para ela: “Lendas do sul é um livro que reúne narrativas diversas e o material folclórico que o sustenta, não pode ser, em bloco, chamado de lendas, pelo contrário, estas se mesclam com mitos e superstições, no mínimo” (Idem, ibidem). A pesquisadora, ao tentar definir o tipo de material com que J. Simões Lopes Neto trabalha nas Lendas do sul, depara-se com distinções pouco claras entre a fábula, o mito, a lenda e a superstição. Chiappini não está interessada nessas classificações em si mesmas, senão naquilo em que elas podem auxiliar na compreensão de sua poética (Idem, p. 151). Ainda, para a pesquisadora, lenda é uma história vinculada à hagiografia, aplicando-se a classificação de lenda a uma história fabulosa dotada de fundo religioso. Seguindo Afonso Arinos, em suas Lendas e tradições brasileiras (1917), Chiappini entende que, para distinguir lenda e mito, deve-se fixar no caráter religioso da primeira, enquanto, embora o segundo também transite por aí, se prenda mais à narrativa sobre deuses e heróis epopéicos. Outro aspecto importante é que ela considera mito aquelas histórias que indagam pelas origens dos fenômenos naturais (Idem, p. 153). A autora de No entretanto dos tempos (1988), referindo-se ao folclorista Câmara Cascudo, em Literatura oral no Brasil, endossa sua própria constatação, quanto à confusão terminológica. A fim de propiciar uma solução operativa a essa questão, recorre à autoridade de Mircea Eliade: 32 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias [...] o mito é uma história sagrada que conta as origens remotas de um povo. Uma história do illo tempore, sempre repetida, retoma pelo rito, enquanto a crença subsista. A mesma história se transforma em ficção, “história falsa”, quando morre a crença que sustentava a sua verdade. O mito passa a sobreviver, então, pela literatura, como os mitos gregos, imortalizados por Homero, numa época em que começavam a morrer enquanto histórias sagradas (Idem, p. 153). Chiappini continua sua exposição, afirmando a distinção entre os vários tipos de narrativas que se alimentam em sua fonte das raízes da tradição folclórica (narrativas míticas, lendárias ou fabulísticas) e a superstição, conforme Câmara Cascudo: O que Câmara Cascudo considera mito (por exemplo, os “demônios infernais”, espalhados pela selva brasileira, “deuses da floresta tropical”, que o missionário classificou como forças demoníacas, tais como o Curupira, o Mboitatá, o Igupiara de que fala Anchieta, já em 1560), um autor como Ambrozetti, em Supersticiones y Leyendas del Rio de la Plata, dá como supertição (Idem, p. 154). E adiante: Assim, mito, lenda e superstição se aparentam, mas se distinguem. Mas essas distinções, no fundo, se complicam em traços comuns e recorrentes. Se insisto em aproveitar o conceito de superstição para introduzir traços distintivos entre fenômenos que Câmara Cascudo chama genericamente de mitos, no folclore brasileiro, é porque em Simões Lopes, essa distinção vai ser útil [...] (Idem, p. 154-155). De fato, também julgamos de muita utilidade essas distinções e classificações, pois, através delas, podemos averiguar a natureza do texto, suas fontes e o estilo do registro lingüístico usado por J. Simões Lopes Neto. Sinopse de Mãe mulita Desde a epígrafe, retirada do Cancioneiro guasca (1910), a história se constrói na tentativa de explicar o nascimento das ninhadas do tatu-mulita, isto é, porque, a cada vez, nascem somente machos ou somente fêmeas e nunca ninhadas mistas. Isto nos é dito na reveladora expressão do narrador: “Este bicho foi mandado ficar assim [...]”. Tendo Maria e José fugido para o Egito, a fim de escaparem da crueldade de Herodes, a certa altura do caminho, foram alcançados pela tropa do rei, que pretendia matar o Menino Jesus e aprisionar seus santos pais. A Virgem, entretanto, entre rogos e choro, consegue demover o centurião A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 33 de mau intento e deu-lhe como paga um burro petiço. Vendo-se sem o animal, Maria e José prosseguiram a viagem, a custo, empurrando o carrinho em que ia dormindo, muito sossegado, o Menino Jesus. A tropa do rei ia voltar, porém, o burro empacou. Depois de ser sovado pelo centurião e de apanhar de todos os soldados, continuou imóvel. Sentindo-se enganado, o centurião, furioso, resolveu voltar e persistir na empreitada malévola. A Virgem e São José não viam o que estava acontecendo, mas ouviam os cascos dos cavalos e as blasfêmias, assim, apuravam forças, empurrando o carrinho. Então, o Menino Jesus acordou e teve fome, mas devido ao cansaço e à aflição, o seio de Maria não teve leite. Ela chorava de pesar e o Menino, de fome. Nisto, por ali passava uma mulita e Nossa Senhora lhe disse: – Mulita, se tens filhos, dá-me uma gota do teu leite para o meu filho!... A mulita deu a gota de leite, mas era pouco e o Menino continuou a chorar. Chorou de pesar também a Virgem, e disse: – Mulita, chama as tuas filhas, para cada uma dar uma gota de leite para o meu filho!... A ninhada era grande, mas as filhas da mulita, eram poucas. Todavia, cada uma deu gotas de leite para alimentar o Menino, que se calou farto. Vendo que o centurião e sua tropa se aproximavam, Maria, muito aflita, rogou: – Mulita, dá-me tua força, para puxar o carro do meu filho!... E a mulita puxou, mas era tão pouca sua força, que de nada adiantou. E os soldados cada vez mais perto... Nossa Senhora chorou de medo e tornou a dizer: – Mulita, chama os teus filhos, para darem a sua força e correrem, puxando o carro do meu filho!... – Senhora Virgem, respondeu a mulita, a minha ninhada é grande, porém nela os filhos são poucos... Mesmo assim, o carrinho puxado pelos filhos da mulita ia andando depressa. Porquanto sejam os cavalos maiores que as mulitas, estes iam vencendo terreno e se aproximando. Nesse momento, levantou-se tremendo temporal de areia, que obrigou a tropa perseguidora a dispersar-se e desistir. Quando já estava salvo o Menino, Nossa Senhora tornou a dizer: – Mulita, em memória das gotas de leite das tuas filhas, em memória da força dos teus filhos, deste dia em diante, de cada vez que deres ninhadas, será sempre ou só de fêmeas ou só de machos!... Nisso, de bom grado, concordou a mulita, solicitando que a sua comadre, a tatua, tivesse também ninhadas como as suas, com o que a Virgem prontamente anuiu. 34 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias Estrutura de Mãe mulita e breve hermenêutica A Mãe mulita é um texto de natureza híbrida. Conforme vimos, as classificações que se referem a mito, fábula e superstições são bastante imprecisas e, de modo geral, são aplicadas indiscriminadamente. Mãe mulita possui algo do mito, se pensarmos que é uma explicação alegórica dos fenômenos naturais. Não deixa de ser fábula pela presença de animais antropomorfizados e também é superstição, se a esse termo concebermos o sentido de crendice popular. Deste modo, verificamos que, no caso de Mãe mulita, especificamente, o autor quis guardar o mais intocado possível o registro do argumento contra sua estilização literária, o que nos é revelado pela seguinte declaração: “O argumento destas duas lendas [Angüera e Mãe mulita] está desenvolvido baseado na tradição longínqua e é de notar a acomodação bizarra dos elementos do seu entrecho” (Lopes Neto, 1988, p. 182). A estrutura do texto, dado o arranjo ingênuo dos elementos do entrecho, é bem simples: (1) intróito, (2) desenvolvimento, (3) clímax e (4) desenlace. (1) No intróito, dá-se o motivo da história, isto é, explicam-se as ninhadas do tatu-mulita. (2) O desenvolvimento ou trama é aquela parte em que a harmonia é quebrada. A Sagrada Família está em fuga para o Egito, até aqui há equilíbrio. A fome do menino Jesus e os soldados em seu encalço são os fatores que complicam a trama. (3) O clímax ocorre quando aparece a mulita – é o auge da ação. (4) O desenlace ou desfecho acontece quando, passado o perigo através da providencial tempestade de areia, todos estão em segurança e contentes. O intróito propõe um sentido para a história, o desenvolvimento é a história propriamente dita, que necessita de um clímax e de uma conclusão. Mãe mulita é mito no intróito, é lenda no desenvolvimento, é superstição na conclusão e é narrativa fabulística no contexto geral de sua literariedade. Examinemos mais acuradamente este último ponto. Pelo exposto, a fábula compõe-se de duas partes: a forma exterior (a literariedade) e a interna (o ensinamento moral). Mãe mulita pode ser também analisada sob esta hipótese, uma vez que em sua estrutura híbrida prevalece a personificação de animais. O esquema simbólico deste texto se reflete na própria estrutura narrativa, funcionando não apenas como fio condutor do entrecho, mas também servindo para a construção de uma chave hermenêutica. Vejamos o paralelismo entre estrutura narrativa (1) e estrutura metafórica (2): o intróito (1) vai desde a abertura do texto até o empacar do burro petiço (2), que desencadeia a desarmonia; o desenvolvimento da ação (1) se passa todo em função das sucessivas súplicas da Virgem à Mãe mulita e seus respectivos ajutórios (2); daí em diante, temos o clímax (1), representado pela aproximação dos cavalos dos perseguidores (2) e o desfecho (1), em que aparece a A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 35 providencial tempestade (2), que dispersou a tropa, pôs em segurança a Sagrada Família e, alegoricamente, explica o nascimento das ninhadas de tatu. Além disso, cada um desses símbolos (burro, tatu e tempestade), respeitando a predominância fabulística da narrativa, encerra um ensinamento moral. O burro O burro é um dos animais que mais contraditoriamente são interpretados entre as diversas culturas e mesmo dentro delas. A tradição judaicocristã é, em geral, favorável à imagem do burro, do asno ou jumento, fazendo-os representar a humildade e a humilhação. Assim é que José leva Jesus e Maria no lombo de um burro. Essa representação da humildade nos é confirmada em Provérbios 16, 18-19: “A arrogância precede a ruína, e o espírito altivo a queda. É melhor ser humilde com os pobres, do que repartir o despojo com os soberbos”. Outros exemplos favoráveis são: a jumenta de Balaão (Números, 22, 22-35) e também o entrada triunfal de Jesus em Jerusalém (Marcos, 11, 1-11). Além destes, podem-se citar, pelo menos, mais dez passagens bíblicas que se referem a asno, burro ou jumento. Todavia, pela estrutura narrativa de Mãe mulita, percebemos que o burro é um ponto de desarmonia. Foi sua teimosia que enraiveceu o centurião e desencadeou, novamente, a perseguição. Uma tradição cristã não ortodoxa vê o burro como uma representação de divindades funestas. Mais próxima das interpretações da tradição egípcia (onde o burro é associado ao assassino de Osíris), indiana (deus Nairrita, guardião da região dos mortos), grega (associada a Dionísio) e romana (associada a Príapo) é a conhecida imagem da noite de Natal, no presépio, em que aparecem ao lado da manjedoura o burro e o boi. Essa imagem foi retirada do evangelho apócrifo do falso Mateus, em que o primeiro simboliza os pagãos e o segundo, os cristãos (Biederman, 1994, p. 41). Com base nessas interpretações é que o burro petiço de Simões Lopes Neto aparece, ao contrário da tradição bíblica canônica, como um ponto de desequilíbrio e desarmonia. O burro representa forças maléficas ou mesmo demoníacas. A essa imagem da tradição bíblica apócrifa, associam-se os conceitos dos alquimistas que vêem no burro um demônio de três cabeças: uma representando o mercúrio (a guerra), a outra, o sal (o dinheiro) e a terceira, o enxofre (o mal). Todos eles representam os princípios materiais da natureza: o ser obstinado. Do mesmo modo, a arte renascentista pintou diversos estados de alma com os traços de um asno: o desencorajamento espiritual do monge, a depressão moral, a preguiça, a luxúria, a estupidez, a teimosia (Chevalier e Gheerbrant, 1994, p. 94). 36 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias A lição do burro: em qualquer ponto de sua vida, aquilo que em dado momento serviu para ajudá-lo (lembremos que, na narrativa simoniana, o burro petiço puxava o carro na fuga da Sagrada Família para o Egito), pode se transformar em grande problema. O tatu O xamanismo é um sistema religioso primitivo de algumas sociedades da Ásia, da África e de outras tribos da América que possuem como figura central o xamã, feiticeiro ou pajé, cujas práticas incluem o estado de transe, o poder de curar doenças e a comunicação com espíritos da natureza (Holanda Ferreira, 1986, p. 1796). Nesse último ponto, é que encontramos os “animais de poder”, são os espíritos que, no mundo natural, representam as diversas personalidades humanas, em suas virtudes e defeitos. Ao observarmos as características dos tatus, encontramos similaridades de posturas psíquicas e comportamentais com os seres humanos. O tatumulita, cujo nome científico é Dasypus septemcintus, é um animal de pequeno porte, que possui uma carapaça convexa com sete cintas móveis. As orelhas são grandes e pontiagudas, sua cauda é relativamente curta com ponta fina e revestida de anéis, sendo as unhas estreitas e fortes. Seus hábitos são crepusculares e noturnos. Alimenta-se de raízes e pequenos invertebrados, que encontra revolvendo a terra com o focinho. Foi descrito e classificado, em 1758, por Linnaeus, que o colocou na classe dos Mammalias, na ordem dos Xenarthras e na família dos Dasypodidae (Cf. Grande Enciclopédia dos Animais). Não é de espantar que o tatu-mulita seja personagem da mitologia popular, uma vez que sua ocorrência no Brasil é muito comum, estando a espécie distribuída desde o Pará até o Rio Grande do Sul, indo até o interior do Mato Grosso (Idem). O tatu-mulita possui, conforme já se disse, uma forte carapaça com sete cintas móveis. Tal condição dota-o de uma perfeita armadura. Referindo-se simbolicamente ao tatu, afirmam Sams e Carson (2000, p. 163): “Sua carapaça protetora é parte de seu ser, de tal forma que ele pode, facilmente, se enrolar em torno de si mesmo, transformando-se numa bola resistente que não pode ser penetrada por seus inimigos”. Quantas vezes necessitamos nos esconder ou nos proteger daqueles que são uma ameaça para nossa segurança ou querem invadir nosso espaço? Na história relatada por João Simões Lopes Neto, é Maria quem está mais oprimida; o papel de José é totalmente secundário, e o menino Jesus é indefeso. Haverá maior invasão ao universo de uma mulher do que o iminente assassínio de um filho? Num caso desses, é preciso fugir e erguer uma carapaça protetora; se necessário, resistir e confrontar o perigo. A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 37 O tatu não representa apenas a defesa contra o mundo hostil. Ao contrário de sua carapaça, o seu ventre é macio e extremamente vulnerável. Metaforicamente essa imagem nos diz que é necessário reconhecer e vivenciar, sem medo, a condição humana, também repleta de vulnerabilidade. O próprio filho de Maria, sendo Filho de Deus, se fez homem, isto é, encarnou-se, voluntariamente, por amor à humanidade. Ele, sendo divino, fez-se vulnerável, todavia, essa vulnerabilidade não é fraqueza, é a capacidade de estar aberto ao sofrimento como caminho de elevação e solidariedade espiritual, na certeza da vitória, através da demarcação de um território que impede a ação predatória do perigo e do mal. A lição do tatu é esta: “Esse território é protegido pela carapaça, não se pode deixar, entretanto, que a armadura se transforme numa prisão e nem que seus medos sejam seus carcereiros” (Sams e Carson, 2000, p. 165). Ou ainda: “O casco da integridade, a segurança de propósitos e metas o protegerão dos desequilíbrios que o cercam” (Wagner, 2003). A tempestade A tempestade é, por excelência, um tema romântico, sendo o Sturm und Drang, na década de 1770, um significativo exemplo disso. No fundo, o amor à tempestade ou à tormenta é representativo das aspirações do homem para com uma vida intensa, cheia de perigo e emoção. Chateaubriand (1768-1848), um dos mais típicos autores do Romantismo europeu, assim se expressou: Levantai-vos, depressa, tormentas desejadas, que deveis arrebatar René para os espaços de uma outra vida que faz eco ao de Ossian: “Levantaivos, ó ventos tormentosos de Erin; brami, furacões dos urzais; que eu morra no meio da tempestade, raptado numa nuvem pelos fantasmas irritados dos mortos” (Capell, 1946, p. 41-42). A metáfora da tempestade não está presente apenas na moderna tradição do Ocidente, embora esta – sobretudo no Romantismo – se alimente de fontes folclóricas e populares mais antigas e de variegadas origens. Na mitologia africana, encontramos Iansã ou Oyá como o orixá feminino ligado ao vento, ao trovão, ao relâmpago e à tempestade. Conta a lenda que Oyá recebeu de Olorum a missão de transformar a natureza através do movimento (o vento) que ela provoca com sua dança. Às vezes, o vento se transmuta em tormenta, o que, ao provocar destruição, também dá ensejo à renovação do ciclo natural. Mas, geralmente, Oyá se mostra gentil, soprando apenas uma brisa que, espalhando sementes, renova a criação e semeia vida. Além disso, esse vento manso é responsável pelo processo de evaporação de todas as águas da terra, provocando as chuvas tão necessárias à fertilização do solo e ao equilíbrio natural (Verger, 1997). 38 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias Na Nigéria, Oyá é a deusa ligada ao rio Níger. Ela é a principal esposa de Xangô. Impetuosa, de forte personalidade, ela é também rainha dos espíritos dos mortos. Oyá foi a única mulher de Xangô que o acompanhou em sua fuga à terra de Tapa, mas se desencorajou em Ira, sua cidade natal. Aí, desenganada do amor, suicidou-se ao receber a notícia da morte de Xangô. Os tornados, furacões e tempestades são o resultado de sua tristeza e descontentamento. Oyá ou Iansã é puro movimento. Não pode ficar parada, para não restringir a constante renovação do mundo natural. A lenda também nos relata que, embora tenha sido esposa de Xangô, Oyá ou Iansã percorreu vários reinos e seduziu diversos reis. Foi paixão de Ogum, Osogiyan e de Exu. Conviveu e seduziu Osossi, Logum-Edé, tentando, em vão, conquistar Obaluaê. Depois de muitas peripécias e amores, ao chegar ao reino de Obaluaê, este, desconfiado, perguntou o que Oyá queria. Ela respondeu: “Quero ser sua amiga”. Dito isso, fez para ele a dança dos ventos. Dessa dança vem a tempestade que representa a paixão indômita e frustrada de Iansã (Idem, ibidem, 1997). Conforme se pode observar na mitologia dos orixás, há uma intervenção sobrenatural no mundo natural – na verdade, uma representação alegórica (poética) dos fenômenos da natureza. A tempestade é explicada através da imagem do descontentamento ou da paixão de Oyá (Idem, 1997). Embora de tradições culturais distintas, a tormenta ou a tempestade na Bíblia não difere no sentido, basicamente, da simbologia africana: o fenômeno é uma manifestação ou intervenção divina de cólera, socorro ou manifestação de sua glória. Pode-se dar como exemplo de cada um desses casos, respectivamente, a destruição de Sodoma e Gomorra (Gênesis 19, 24), a passagem do Mar Vermelho por Moisés (Êxodo 14, 21) e o Salmo 29, em que se exalta o poder de Deus (Salmos 29, 4-8). É nesses três sentidos que João Simões Lopes Neto, em seu texto Mãe mulita, coloca a tempestade de areia. É manifestação da divina cólera, porque os soldados são punidos por perseguirem a Sagrada Família. É socorro porque, quando tudo já parecia perdido, posto que os cavalos são mais rápidos que as mulitas, a tempestade vem e dispersa o centurião e o restante da tropa. Finalmente, é também manifestação da glória e do poder divino, pois só Deus em sua infinita ação providencial poderia gerar um fenômeno natural forte, a ponto de vencer a determinação do ódio e da injustiça. A lição da tempestade: Deus está no controle de tudo, para punir ou socorrer. A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 39 São Sepé / Lunar de Sepé5 Por volta do século XII, a Europa Ocidental vive o Renascimento comercial e urbano. Com a expansão dos domínios muçulmanos e a conseqüente tomada de Jerusalém pelos seguidores de Maomé, emerge, entre os europeus, o desejo de empreender as cruzadas. Cabe ressaltar que esta intervenção militar representava, além do questionável interesse religioso, um novo horizonte para a expansão econômica do continente, na qual a burguesia fora a principal beneficiada. “Para as cidades comerciais italianas, por exemplo, era muito vantajoso que as cruzadas utilizassem suas embarcações para atingirem terras orientais. Desejavam aumentar seus lucros mediante a expansão das transações comerciais” (Aquino, 1982, p. 14). As expedições ao Oriente Médio lançaram um novo alento à economia. As rotas marítimas propiciaram, aos venezianos e genoveses, a possibilidade de um grande acúmulo de riquezas, por intermediarem a entrada de produtos do oriente para os consumidores europeus, cobrando altos impostos sobre as mercadorias. No despontar do século XV, as principais rotas comerciais mediterrânicas mantinham-se sob o monopólio das cidades italianas que, em aliança com os muçulmanos do Oriente, dificultavam as atividades comerciais na Europa. Com a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, em 1453, o estrangulamento comercial tornou-se mais acentuado, porquanto estes taxaram as especiarias de modo a encarecer muito o preço de revenda. Estes fatores impulsionaram os países ibéricos a empreender expedições pelo Atlântico, no intento de encontrar caminhos alternativos para a Ásia. Tais empreendimentos contaram com o financiamento da burguesia, classe, então, melhor provida em recursos móveis, ou seja, dinheiro. Os portugueses foram os primeiros que, desbravando a costa africana, atingiram o Índico, chegando à Índia e ao extremo oriente. Ainda envolvida na retomada de seu território em poder dos mouros, a Espanha retarda suas expedições pelo Atlântico, concorrendo para isso sua falta de unidade política e territorial, pois estava dividida em reinos independentes em constantes conflitos. A união espanhola efetuou-se com o casamento de Isabel e Fernando, herdeiros, respectivamente, dos tronos de Castela e Aragão. No processo de formação do Estado Nacional, incorporou-se o reino de Navarra e efetuou-se a conquista de Granada. Enquanto os aragoneses estavam mais interessados em competir com o monopólio italiano do que investir em uma expedição incerta pelo Atlântico, a burguesia castelhana mantinha o 5 Este texto de Mateus Weizenmann foi o resultado das atividades de pesquisa como bolsista BIC/UCPel, em 2004, no GPS/ISF, sob o título de Roteiro de leitura da história das Missões Jesuíticas por meio do Lunar de Sepé, de João Simões Lopes Neto. 40 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias propósito de chegar às Índias pelo mesmo caminho traçado pelos navios lusitanos; porém, “impossibilitados de costear a África, devido à precedência portuguesa que impedia a ação de concorrentes, viram-se (os espanhóis) obrigados a navegar pelo Ocidente, para chegar ao Oriente” (Aquino, 1982, p. 20-21). Chegando ao Novo Mundo, que, inicialmente, se pensara ser a Ásia, visavam estabelecer relações mercantis, o que logo se transformou em intento colonizador. A economia da época moderna direcionava o olhar para a extração de metais preciosos, especialmente ouro e prata, pela praticidade que ofereciam como bens móveis. Para garantir a riqueza de um país, acreditava-se que o acúmulo de moeda devia ser efetivado, tornando-se necessário reduzir as importações e buscar mercados consumidores para expandir o volume de produtos exportados. As colônias apresentaram-se como cenário perfeito para a execução do projeto econômico europeu, pois, além de garantir abundância de matériasprimas, extraídas por um preço mínimo, devido ao uso que se fazia da mão de obra escrava, estavam condenadas a negociar sua produção somente com a metrópole. A população local passou a ser vista como mero instrumento de trabalho a serviço da Coroa. Esporadicamente, os invasores brancos se aliavam a algumas tribos, para alimentar ódios existentes entre os nativos da terra, a fim de enfraquecer a ambos, valendo-se de falsas promessas a determinados grupos indígenas. A legitimação das atrocidades cometidas pelos colonizadores assentavase no falso uso da doutrina cristã, com o chamado Estado de Cristandade. Igreja e cristianismo eram instâncias distantes, porquanto a religião, ao ser institucionalizada, foi posta a serviço de ambições pessoais e de Estados despóticos. Alegando-se levar aos nativos a verdade revelada, os invasores europeus se lhes faziam guerra em caso de não-subordinação, seus crimes tornavam-se assim facilmente perdoados e até mesmo ovacionados, em nome de uma cruz estupidamente carregada. Antes de cada entrada militar, os capitães de conquista deviam ler para os índios, sem intérprete, mas diante de um escrivão público, um extenso e retórico Requerimiento que os exortava a se converterem à santa fé católica: “Se não o fizerdes, ou nisso puserdes maliciosamente dilação, certifico-vos que com a ajuda de Deus eu entrarei poderosamente contra vós e vos farei guerra por todas as partes e maneira que puder, e vos sujeitarei ao jugo e obediência da Igreja e de Sua Majestade e tomarei vossas mulheres e filhos e vos farei escravos, e como tais vos venderei, e disporei de vós como Sua Majestade mandar, e tomarei vossos bens e vos farei todos os males que puder...” (Galeano, 1985, p. 25). A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 41 Inicialmente aclamados como deuses, logo os espanhóis mostraram a que vieram, quando, na busca por riquezas, promoveram matanças, mesmo em lugares onde eram bem recebidos, a exemplo do que ocorreu em México-Tenochtitlan, antiga capital do Império Asteca. A dúvida a respeito da identidade dos homens de Castela subsistiu até o momento em que, já hóspedes dos astecas em Tenochtitlan, perpetraram a matança do templo maior. O povo em geral acreditava que os estrangeiros eram deuses. Mas quando viram seu modo de comportar-se, sua cobiça e sua fúria, forçados por esta realidade, mudaram sua maneira de pensar: os estrangeiros não eram deuses, mas popolocas, ou bárbaros, que tinham vindo destruir sua cidade e seu modo de vida” (Portilla, 1985, p. 17). Para os castelhanos, a corrida pelo ouro e pela prata estava acima de qualquer interesse evangelizador. Aproveitando-se da autoridade de “seu Deus”, instituíram a exploração da força de trabalho dos nativos, criando as chamadas “encomiendas”, forma mascarada de escravizar o povo. “Para poder seguir aprovechandose de los indios sin tenerlos formalmente como esclavos fue creada la encomienda, mediante la cual el encomendero, a quien era entregados todos los indios de una región para que los protegiera y procurar su adoctrinamiento, lo que hacia era explotarlos hasta la muerte” (Guadarrama, 1993, p. 50-52). A respeito da legitimidade da escravidão, diferentes correntes de pensamento surgem na etapa da conquista, destacando-se as seguintes: indigenista, em favor dos direitos dos nativos, tendo como principal representante o Frei Bartolomé de Las Casas; centrista, interessada em assegurar os interesses do Estado, sendo Francisco de Vitória o principal expoente e a escravista, liderada por Juan Ginés de Sepúlveda, que, a serviço da classe colonialista, em busca da riqueza e do poder, justifica a exploração do oprimido e defende a supremacia natural européia, inspirada na concepção de Aristóteles de que uns nascem para serem livres enquanto outros, por natureza, são escravos. Frei Bartolomé de Las Casas denunciou os abusos ocorridos com as comunidades indígenas, posicionando-se a favor da liberdade de culto, o que significou o respeito à pluralidade cultural naquele momento. Manifestou-se contra as torturas, abusos sexuais e assassinatos que sofreram os indígenas no processo de colonização. Na obra O paraíso destruído, afirma que seus conterrâneos “Ensinavam os cães a fazer em pedaços um índio à primeira vista. Estes cães faziam grandes matanças e como por vezes os índios matavam algum, os espanhóis fizeram uma lei entre eles, segundo a qual por um espanhol morto faziam morrer cem índios” (Las Casas, 1996, p. 31). 42 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias O relato de Las Casas aponta e critica a idéia de superioridade racial vigente entre os europeus. Através de suas denúncias, tentou minar a condição de estigmatizados que viviam os índios, promovendo o respeito ao seu modo de viver. Numa época em que a clássica dicotomia corpo x alma, herdeira da tradição grega, elevava a segunda à condição superior em relação ao primeiro, pela suposta ligação direta com a divindade, se pôs em discussão a existência de uma substância além da corpórea entre os índios. Estes teriam alma? A dúvida implicava pôr em prova se realmente eram humanos. Ginés de Sepúlveda, defendendo o direito de escravidão, declara: Lo perfecto deve imperar sobre lo imperfecto, lo fuerte sobre lo débil. Dado que los aborígenes son imperfectos y debiles frente a los españoles, estos deben dominarlos y ponerlos a su servicio, porque asi lo establece la ley natural. Esta es, además, un labor civilizatoria y de caridad para con los pobres indios, que son bárbaros, incultos, impíos, inhumanos (Guadarrama, 1993, p. 75). Após se travarem discussões entre as diferentes concepções vigentes neste período, as autoridades espanholas reconhecem a humanidade indígena, ainda que se suponha que o índio necessite de orientação constante, para não cair numa vida corruptível e se afastar da religião dos seus novos soberanos. Apesar de humanos, continuam à margem, carregando um estigma por pertencerem a uma cultura com outros valores. Este é o pano de fundo da organização colonial da América hispânica no século XVI, longe de ser pensada como verdadeiramente cristã. Se pensarmos nos Dez Mandamentos recebidos por Moisés no monte Sinai, percebemos as inumeráveis contradições éticas que perpassaram o modelo colonialista que, justamente, matava em prol do respeito às leis cristãs, princípios como não matar! e não roubar! foram relegados ao esquecimento diante do valor material que as minas do Novo Mundo podiam oferecer. E, assim, tem-se repetido a crise de valores na história das sociedades. Uma única bolsa de pimenta valia, na Idade Média, mais do que a vida de um homem, mas o ouro e a prata eram as chaves que o Renascimento empregava para abrir as portas do paraíso no céu e as portas do mercantilismo capitalista na terra. A epopéia dos espanhóis e portugueses na América combinou a propagação da fé cristã com a usurpação e o saqueio das riquezas nativas. O poder europeu estendia-se para abarcar o mundo (Galeano, 1985, p. 26). O Tratado de Tordesilhas, com o qual Portugal e Espanha dividiram o mundo com uma linha imaginária a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde, concedeu à Coroa Espanhola a maior parte do território americano, incluindo o atual estado do Rio Grande do Sul. Com o despontar da extraA presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 43 ção de metais preciosos, a Espanha tornou-se a maior potência colonial européia; contudo, a grande extensão de terras a tornava vulnerável às expedições portuguesas em seu território e a pirataria de outras nações do Velho Mundo, em especial, Inglaterra, Holanda e França. Diante da necessidade de conter o perigo lusitano que se dirigia do Brasil em direção à porção ocidental do continente sul-americano, a Coroa Espanhola encontrava-se em frágil posição de defesa, não possuindo exército capaz de conter a fúria de seus concorrentes pelo ouro e a prata abundante em suas colônias. A descoberta das minas de Potosi, no atual território do Peru, dera aos espanhóis a sensação de ter encontrado a fonte inesgotável de riquezas, o que fizera com que o Imperador Carlos V lhe outorgasse o título de Vila Imperial e uma placa contendo a seguinte inscrição: “Sou o rico Potosi, do mundo sou o tesouro, sou o rei das montanhas e sou a inveja dos reis” (Galeano, 1985, p. 33). O esplendor desta cidade encravada nos Andes alimentava o desejo de poder e a ostentação sem limites. Dizem que até as ferraduras dos cavalos eram de prata, no auge da cidade de Potosi. De prata eram os altares das igrejas e as asas dos querubins nas procissões: em 1658, para a celebração do Corpus Christi, as ruas da cidade foram desempedradas, da matriz até a igreja de Recoletos, e totalmente cobertas com barras de prata. Em Potosi a prata levantou templos e palácios, mosteiros e cassinos, foi motivo de tragédia e de festa, derramou sangue e vinho, incendiou a cobiça e gerou desperdício e aventura. A espada e a cruz marchavam juntas na conquista e na espoliação colonial. Para arrancar a prata da América, encontravam-se em Potosi os capitães e ascetas, toureiros e apóstolos, soldados e frades. Convertidas em bolas e lingotes, as vísceras da rica montanha alimentaram substancialmente o desenvolvimento da Europa (Galeano, 1985, p. 32). Contrariamente à abundância do lado hispânico, não foram encontradas significativas minas metálicas no território brasileiro, o que acarretou no avanço português em direção ao oeste, com as entradas dos bandeirantes paulistas. Para conter as investidas destes, a Espanha precisava ocupar as terras sobre as quais julgava ter direitos, formando um escudo às suas minas, assim, enviou padres jesuítas a fim de conquistar súditos à Coroa por meio do Evangelho. Além dos fins defensivos, também visava uma saída pelo Atlântico para escoar seus produtos, visto esta medida facilitar o transporte dos mesmos da colônia à metrópole, constituindo-se num modo mais rápido e econômico. As primeiras missões, onde hoje se compõe o território brasileiro, foram edificadas na região dos rios Paraná e Paraguai. As missões de Guaíra, contudo, foram arrasadas pelos bandeirantes paulistas. Estes, além de saquear a produção da redução, capturavam um grande número de indígenas, 44 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias a fim de vendê-los como escravos em São Paulo, no Rio de Janeiro e na Bahia. Migrando para o sul, índios e jesuítas atingiram o rio Uruguai, fundando novas reduções e ampliando o contato com a povoação guarani que habitava estas terras. Os índios guaranis, além da caça e da pesca, praticavam a agricultura, o que foi um aspecto que facilitou a aceitação destes aos padres que na região se fixavam. Os jesuítas trouxeram um aparato tecnológico capaz de expandir a produção agrícola, carente diante dos parcos recursos à disposição destes nativos. Cabe ressaltar que a produção de alimentos consistia em grave problema enfrentado pela população guaranítica – a terra se esgotava –, o que os obrigava a empreender migrações constantes, caracterizandose como nômades. A fome se abatia sobre a população, que enfrentava ainda outro grave problema: as lutas contra tribos inimigas da Campanha e do Planalto mantinham-se como uma ameaça constante às suas vidas e liberdades. O sistema produtivo preconizado pelos padres configurava um extraordinário salto tecnológico – enxada, arado, adubação, irrigação, rotação de culturas, produção de sementes, etc. e, em geral, uma economia planificada. Ao se tornarem súditos da Coroa, subtraíam-se à encomienda e recebiam proteção contra os paulistas. Os guaranis negociavam estas duas condições com a Coroa através dos jesuítas (Freitas, 1982, p. 30). Assim, o projeto missioneiro representava vantagens tanto para o rei de Castela quanto para os guaranis, e também para os jesuítas, em seu intento catequizador. A primeira redução em terras rio-grandenses foi a de São Nicolau do Piratini, estabelecida pelo jesuíta Roque Gonzales de Santa Cruz, em três de maio de 1626. Composta inicialmente por 280 famílias, transcorrido um ano já contava com uma população de 2.500 habitantes. Entre os anos 1626 e 1637, outros padres da Companhia de Jesus fundaram mais quinze reduções no atual território do Rio Grande do Sul, estendendo-se da bacia do Uruguai até a do Jacuí. O processo de colonização européia, na Província de São Pedro, teve as missões jesuíticas como marco inicial, embora comumente tenha-se atribuído à chegada do brigadeiro português Silva Paes, onde foi erigida a cidade de Rio Grande, como primeiro foco da dita “civilização”. Esta deturpação dos fatos se deu com o fim de resguardar os interesses de Portugal sobre o território, visto que o reconhecimento da ocupação espanhola, representada pela Companhia de Jesus, implicava “uti posidetis”, ou direito de posse aos castelhanos. Por esse motivo, os manuais de história nos chegaram falseando a realidade com um escopo já definido pelos interesses lusitanos em tempos passados. Cabe ressaltar que após a chegada da Companhia de JeA presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 45 sus, por mais de um século, os portugueses se limitaram a cruzar o território apenas praticando uma economia predatória, não empreendendo qualquer atividade que caracterizasse um processo civilizatório. Enquanto os portugueses apenas trafegavam pela região, os jesuítas se estabeleciam com o intuito de criar comunidades auto-suficientes e que professassem a fé cristã, mantendo relativa autonomia política. Aos colonizadores jesuítas se deve o conhecimento da geografia, da zoologia e da botânica do território [...]. Introduziram e propagaram o gado vacum, cavalar e ovino – base futura da economia rio-grandense e, mais que isso, desenvolveram junto com os índios a técnica de pastoreio que havia de ser adotada depois pelos portugueses e seus descendentes. A própria invocação de Rio Grande de São Pedro, que o território teve até a proclamação da República, foi dada pelos colonizadores jesuítas (Freitas, 1982, p. 15). O período anterior a 1641 foi caracterizado por intensas invasões bandeirantes, entre elas a de Raposo Tavares (1639) e a de Fernão Dias Paes Leme (1639), ambas ocorridas em reduções próximas ao Jacuí. Em 12 de março de 1641, porém, os paulistas comandados por Jerônimo Pedroso, na margem oriental do rio Uruguai, foram derrotados pelo exército guarani, na chamada Batalha de M’bororé, o que abriu as portas para um novo período na região missioneira. Com a defesa guaranítica, os bandeirantes cessaram o tráfico de escravos nos domínios jesuíticos. Inicia-se uma época de relativa paz nas reduções, o que possibilitou um grande desenvolvimento no plano econômico. Segundo Décio Freitas, a locação das reduções exigia alguns requisitos, assim descritos por ele: Cada redução constituía uma unidade urbano-rural rigorosamente planejada. Compreendia uma área de trinta ou quarenta léguas, mais ou menos, segundo o número de habitantes e a qualidade das terras. Estipulou-se que o local da povoação devia medir no mínimo cem hectares de terreno plano, algo elevado e aberto para o sul, de onde sopravam os ventos refrescantes; devia possuir abundância de águas e de matas, bem como ficar longe dos pântanos. A distância entre uma redução e outra não podia normalmente ultrapassar de três léguas espanholas (15 km); excepcionalmente, a distância podia chegar a dez léguas. Esta proximidade visava facilitar as comunicações e a defesa (Freitas, 1982, p. 44). Os jesuítas dinamizaram o processo de urbanização do território, implantaram nas reduções o traçado retangular espanhol, com ruas cortadas em ângulos retos. A população se concentrava quase exclusivamente dentro do perímetro urbano. 46 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias Cada redução formava, pois, uma unidade mais ou menos auto-suficiente. Salvo no caso das estâncias, não havia separação entre cidade e campo. Os que trabalhavam na terra moravam no centro urbano; tinham uma existência coletiva, não ficando submetidos ao isolamento a que está condenado o camponês (Freitas, 1986, p. 45). Enfocando o cotidiano agrário da população missioneira, assim se refere Simões Lopes Neto: Cheiravam as brancas flores Sobre os verdes laranjais; Trabalhava-se na folha Que vem dos altos ervais; Comia-se das lavouras Da mandioca e milharais. (Lopes Neto, 1988, p. 184). A economia das missões mantinha o caráter de subsistência, o que não impedia que se efetuassem exportações. Predominavam as tradicionais lavouras de mandioca, milho e tabaco, bem como outros produtos agrícolas incorporados pelos padres, tais como algodão, açúcar, cânhamo e trigo. A extração da erva-mate era intensa e bem aceita no mercado. Era o principal produto de exportação das reduções. O lucro era direcionado à compra de manufaturas não disponíveis naquelas comunidades. De qualidade superior à erva produzida pelos espanhóis, dos ervais guaraníticos dirigia-se a mercadoria a Buenos Aires, Santa Fé, Chile e Peru. Convém destacar que, devido à distância das missões aos locais de extração, os jesuítas desenvolveram um modo de produção artificial da erva-mate. Calcados em técnicas de engenharia, efetuavam projetos de irrigação das lavouras, o que somava para a construção de uma economia planificada e sólida. A indústria contava com olarias, fornos de fundição de ferro, curtumes, matadouros, moinhos d’água e vento, fábricas de carros e carroças, armas, pólvora, secadores de erva-mate e construção de embarcações de pequeno calado às margens dos rios. Havia também indústria tipográfica, editorial e manufatureira. “Havia em cada redução trinta ou quarenta oficinas manufatureiras, em que trabalhavam ferreiros, tecelões, chapeleiros, curtidores, carpinteiros, oleiros, escultores, pintores etc.” (Freitas, 1982, p. 47). Diante do salto no desenvolvimento de uma produção primitiva a um modelo planificado pelos jesuítas, pode-se afirmar que “o sistema configurou uma revolução econômica, à medida que os índios passaram de uma economia neolítica itinerante para uma economia sedentária de alto nível técnico” (Freitas, 1982, p. 46). A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 47 O texto Lunar de Sepé, escrito por Simões Lopes Neto com base em um relato indígena, apresenta uma sociedade harmoniosa e de acordo com as leis de Deus, a qual: Ninguém a vida roubava Do semelhante cristão, Nem pobreza existia Que chorasse pelo pão Jesus Cristo era contente E dava sua bênção. (Lopes Neto, 1988, p. 184). Os padres implantaram um coletivismo que não se apresentava tão estranho aos guaranis. Estas comunidades, antes da presença da Companhia de Jesus, mantinham uma existência conjunta. Embora cada família tivesse sua plantação, o trabalho era executado em grupo. O produto da caça era repartido pelo caçador a todos os cidadãos. Os jesuítas implantaram um “comunismo cristão” que, institucionalizado nas reduções, pode ser considerado, conforme Décio Freitas, “o primeiro experimento socialista em terras brasileiras” (Freitas, 1982, p. 16). As reduções representaram a erradicação da fome e a proteção dos guaranis diante das guerras contra seus vizinhos, o que não afastara eventuais conflitos com os bandeirantes. “Formavam comunidades prósperas e pacíficas, dedicadas à produção agrícola, pastoril, extrativista e artesanal. Em quase todas, floresciam a arquitetura, a pintura, a escultura, a decoração e a música. Os índios se alfabetizavam rapidamente na sua própria língua” (Freitas, 1982, p. 15). Também é mérito dos jesuítas a criação das primeiras gramáticas guaranis. A produção efetuava-se nas terras denominadas Abambaé e Tupambaé, enquanto a primeira existia individualmente para cada família, a segunda servia a toda comunidade e todos trabalhavam no seu cultivo. O Abambaé, inexistente como propriedade privada voltada para a produção na tribo guarani, foi institucionalizado a partir da legislação espanhola colonial, e passou a funcionar como propriedade das famílias que estavam reunidas em torno dos caciques. Era controlada pelos alcaides e o produto guardado em sacos nos depósitos, com a identificação do proprietário que deles retirava o que necessitava. Era com os frutos do Tupambaé, entretanto, que se mantinham as viúvas e os órfãos, se atendiam aos necessitados, quando o produto do Abambaé terminava, alimentavam as expedições que partiam em busca da erva-mate ou em direção das estâncias de gado, para fornecer víveres para o deslocamento das tropas indígenas das Missões, quando em campanha militar ou em marchas de reconhecimento, para manutenção da igreja e dos padres (o Cura e seu companheiro) e finalmente para garantir as reservas para a próxima semeadura (Kern, 1982, p. 74). 48 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias Desse modo, o Tupambaé simbolizava o espírito comunitário no processo de produção, estando cada indivíduo comprometido com o suprimento de bens necessários a todos. Nesta terra, a fome de um era problema coletivo, logo se pode pensar que “nem pobreza existia que chorasse pelo pão” (Lopes Neto, 1988, p. 184). A solidariedade não estava fechada dentro de cada redução, cada um dos povos era responsável pelo abastecimento dos vizinhos. “Se a safra de uma redução fracassava, por inundação, seca ou qualquer outro motivo, as demais estavam obrigadas a provê-la do que faltava, em alimentos, manufaturas etc.” (Freitas, 1982, p. 52). O Tupambaé mantinha uma função social; dele retirava-se a quantia necessária de alimentos para o consumo diário das famílias. A organização política previa que todos os meios de produção pertenciam à redução, de materiais empregados para a produção agrícola, como arados e enxadas, a bois e sementes. Cada trabalhador utilizava os equipamentos e devia se comprometer em entregá-los em bom estado. As casas constituíam propriedade da redução, que as entregava em usufruto aos casais. Entendia-se que não havia necessidade de herança, dado que, ao casar, os filhos recebiam sua própria casa [...]. Somente havia propriedade privada dos objetos de uso pessoal: redes de dormir, panelas de cerâmica, arcos e flechas, animais de estimação, bem como tudo o que fosse por eles fabricado e legitimamente adquirido (Freitas, 1982, p. 51). Diferente do modo econômico vigente na Europa e mesmo no restante das colônias, a circulação da moeda não se efetivava nas missões. Como as necessidades eram suprimidas por uma economia voltada para a subsistência e o bem-estar de todos, não se fazia necessária a troca de valores. Por ser exaltado o aspecto religioso, a humildade cristã e o trabalho eram assinalados como virtudes fundamentais. A sociedade guarani, em plena fase de transição cultural e integrando-se, paulatinamente, na sociedade espanhola, não foi obrigada pela força à atividade econômica. A sustentação do esforço foi dada pela própria fé difundida pelos jesuítas, pela mística e pelo solidarismo da religião cristã (Kern, 1982, p. 80). O “comunismo cristão” dos missioneiros não estava fundamentado em razões econômicas, mas sim, no igualitarismo religioso. Segundo Clóvis Lugon, em sua obra A República comunista cristã dos guaranis: O comunismo aplicado pelos jesuítas não era moderado. Um comunismo alicerçado em razões essencialmente econômicas poderia ser mais facilmente moderado, na acepção burguesa, por exemplo, admitindo substanciais desigualdades de renda. Na República Guarani, as condições de vida correspondiam, em princípio, ao gênero de atividade, nada mais. Do ponto A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 49 de vista fraternal que dominava, uma mais-valia teria parecido um abuso, ao passo que, com as concepções sobretudo econômicas, poder-se-ia pensar na possibilidade de atribuir rendas privilegiadas, excedendo as possibilidades razoáveis de consumo, e pretender-se-ia justificar tal forma de exploração pela necessidade de estimular a produção ou acelerar a formação de uma elite vinculada ao regime (Lugon, 1977, p. 342). O modelo de sociedade descrito por Lugon parece estar de acordo com o projeto cristão de fraternidade e solidariedade. Obedecendo à hierarquia dos caciques, as diferenças de tratamento efetuavam-se por uma questão de respeito à autoridade, longe de representar a formação de uma casta separada dos demais membros da sociedade, embora os governantes e suas famílias mantivessem status diferenciado. “O Cabildo e seus Corregedores gozavam de situação especial, na Missão, pois era aos magistrados e funcionários índios que se destinavam lugares na Igreja e seus filhos tinham o privilégio de ir à escola. Eram igualmente isentos de tributação. Recebiam rações duplas de carne, boas vestimentas e outros suplementos” (Kern, 1982, p. 49). Embora seguindo, internamente, um modelo de política econômica, diverso da organização da metrópole, o sistema das reduções mantinha-se alinhado à Espanha, prestando-lhe contas sobre suas decisões. Por longo tempo, as missões representaram os interesses de Castela, mas com seu desenvolvimento tornara-se um aliado perigoso. Na sua fundação, cada índio se apresentou a fim de livrar-se dos abusos que os espanhóis cometiam naquelas terras, solicitando tornarem-se súditos do rei. “O tributo se pagava se o viso-rei o pedia” (Lopes Neto, 1988, p. 184) e as prestações militares eram aos guaranis solicitadas com freqüência, a fim de defender Assunção, Santa Fé e Buenos Aires e lutando contra os portugueses da Colônia do Sacramento que, fundada em 1680, servia de entreposto para o contrabando. Era impossível a instalação de estabelecimentos militares ao longo de toda fronteira do Império Colonial Americano. Não havia meios humanos disponíveis, nem mesmo pecuniários, pois o tesouro estava sendo sangrado pelas guerras européias. Nem mesmo as cidades espanholas do Prata, nesta época, tinham recursos para a sua defesa e o contingente demográfico era muito restrito (Kern, 1982, p. 157). Assim, torna-se claro o significado da afirmação de Simões Lopes Neto que “até sangue se mandava na gente moça que ia...” (Lopes Neto, 1988, p. 184), pois somente com a defesa a cargo dos índios reduzidos, as cidades sob o jugo espanhol estavam seguras. E para responder à pergunta “Por que havia aquele mal, se o pecado não havia?” (Lopes Neto, 1988, p. 184), expressão que se refere ao horror da Guerra Guaranítica, devemos nos reportar aos interesses que dominavam as potências coloniais da época, expressos 50 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias pelo Tratado de Madri. O pacto que acabara com as Missões, selado em 1750 entre Portugal e Espanha, previa que esta cedesse os Sete Povos, o oeste de Santa Catarina e Paraná, o Mato Grosso e o Amazonas em troca de territórios no Pacífico e a Colônia do Sacramento. Na ocasião, os portugueses lançavam vistas às reduções pela abundância de gado bovino na região. Seu interesse era aguçado pela valorização do couro no mercado europeu. A transação correspondia a interesses bem nítidos das duas potências coloniais. Portugal deixara de ter interesse na Colônia do Sacramento, dada a evidência de que só proporcionava vantagens aos ingleses, que a usavam para fazer contrabando no Prata. Não havia motivo, pois, para que aquela inútil posição comercial continuasse a constituir um pomo de discórdia entre as duas potências. A troca desta posição pelo vasto território dos Sete Povos era largamente compensadora e foi na verdade um dos lances mais hábeis da diplomacia portuguesa no Prata. Na ótica da coroa espanhola, as missões já não tinham a mesma importância do começo do século XVII. Primeiro: o desenvolvimento da tecnologia militar anulava sua utilidade para este fim, a menos que os missioneiros fossem bem armados, coisa que a Coroa, sempre temerosa de uma rebelião, não estava disposta a fazer. Segundo: o crescimento econômico e demográfico da colônia platina já permitia dispensar o concurso dos missioneiros. Terceiro: era motivo crescente de apreensão para a Coroa a crescente autonomia dos missioneiros, traduzida na recusa de pagar o dízimo e a prestação de serviços militares estranhos aos interesses dos índios. Quarto: a prosseguir o desenvolvimento missioneiro, surgiria um Estado independente, não sendo casual que por este tempo começasse a circular na Europa e em particular na Espanha, rumores de que os jesuítas tencionavam criar um Reino ou Império (Freitas, 1982, p. 68). Expulsos da terra de seus ancestrais, era natural que os guaranis resistissem, e o fizeram. O derramamento de sangue era certo, por este motivo os jesuítas tentaram inutilmente persuadi-los a abandonar suas casas. Ao deixarem as reduções, estava prevista sua locação em outras regiões da colônia espanhola. Era intento dos portugueses estabelecer casais açorianos na região. Com a resistência guaranítica, as coroas ibéricas se aliaram para empreender sua expulsão. A insurreição começou em São Nicolau do Piratini, alastrando-se pelas demais reduções. Os rebeldes alegavam que “não era necessário mais que a doutrina cristã para saber que o que tratavam os reis em sua linha divisória era injusto” (Freitas, 1982, p. 70). Em palavras indignadas, questionava-se a população guaranítica, que sempre esteve a serviço da Coroa Espanhola, prestando-lhe serviços militares e pagando-lhe o devido tributo: Por que seu rei rejeitaria seus vassalos, fazendo-os morrer e passar por miséria em outras terras? A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 51 Eram armas de Castela Que vinham do mar de além; De Portugal também vinham, Dizendo por nosso bem: Mas quem faz gemer a terra... Em nome da paz não vem! (Lopes Neto, 1988, p. 184). O episódio da guerra nas missões é narrado no texto simoniano com um posicionamento marcadamente favorável aos vencidos. Interrogando que motivos aquela sociedade teria dado ao seu rei, para que então se tornasse inimiga, encontra-se o elogio de um povo que obedecia às decisões políticas da Coroa e se consagrava ao culto do Deus que se lhes apresentaram. Agora a terra geme tão somente pela ganância de seus soberanos, que agiam, conforme o preceito de Maquiavel de que “os fins justificam os meios”, pois contrariavam o que uma autêntica moral cristã haveria de exigir, em virtude de um pacto que visava beneficiar mais uma vez somente seus cofres. Em abril de 1753, os jesuítas finalmente entregaram as terras e a autoridade que lhes foi investida sobre os índios ao clero oficial e aos governantes espanhóis, mediante escritura pública, o que foi considerada uma traição pelos guaranis. Em seguida, a Companhia de Jesus foi expulsa do território, bem como das demais colônias espanholas e portuguesas. Muitos confrontos marcaram o decurso da guerra pela posse das Missões. De São Miguel surge Sepé Tiaraju, guerreiro guarani que comandou tropas para defender o leste, de onde marchava o exército lusitano. Sua atuação provocou o atraso da incorporação do território a Portugal. Obrigados a abandonarem suas expedições, os exércitos dos países ibéricos, que inicialmente planejaram atacar por duas frentes de batalha, unem forças, formando um único grupo de combate. Sua chegada à redução de São Miguel vitima o chefe indígena em 7 de fevereiro de 1756. Três dias após sua morte, com o resultado da batalha de Caiboaté, é definida a guerra, favorecendo Portugal e Espanha, o que deu início à marcação dos territórios. Lançaram-se cavaleiros E infantes, com partazanas, Contra os Tapes defensores Do seu pomar e cabanas; A mortandade batia, Como ceifa de espanadas... 52 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias Couraças duras, de ferro, Davam abrigo à vida Dos muitos, que, assim fiados, Cercavam um só na lida!... Um só que de flecha e arco, Entra na luta perdida... (Lopes Neto, 1988, p. 185). As cenas de batalha, reconstituídas pela literatura, apresentam a agressão que rapidamente exterminou a resistência devido ao desequilíbrio bélico entre índios e brancos. O Lunar de Sepé, narrado sob a óptica guaranítica, denuncia a falta de justificativas aceitáveis às conseqüências da assinatura do Tratado de Madri, expresso nos seguintes versos: Dócil gente, não receia, As iras de Portugal: Porque nunca houve lembrança De haver-lhe feito algum mal: Nunca manchara seu teto...; Nunca comera seu sal!... E de Castela, tampouco Esperava tal furor; Pois sendo seu soberano, Respeitara seu senhor; Já lhe dera ouro e sangue, E primazia e honor!... (Lopes Neto, 1988, p. 185). A terra fora tomada, e vendidas as estâncias a particulares. Houve saques às igrejas, restando pouco da iconografia jesuítica que as adornavam. A população entrou em decadência, sendo condenada à fome e doenças oriundas do contato com os novos habitantes que chegavam. Passou a ser cada vez mais comum a embriaguez e a prostituição entre os índios. Estariam eles interessados nas liberdades de seu novo sistema? No que se agarrar mediante o destino que lhes fora designado? Sepé Tiaraju tornou-se símbolo de resistência e foi considerado santo, ao menos no imaginário popular. Eram armas de Castela Que vinham do mar de além; De Portugal também vinham: Dizendo, por nosso bem... Sepé-Tiaraju ficou santo Amém! Amém! Amém!... (Lopes Neto, 1988, p. 187). A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 53 A Teiniaguá na Salamanca do Jarau 6 Na lenda Salamanca do Jarau, Simões Lopes Neto coloca em Teiniaguá o símbolo indígena, por excelência, que faz a síntese das religiões, culturas e etnias. O discurso de Blau introduz a origem da lenda na cidade de Salamanca, na Espanha, e nomeia duas etnias – “os tais mouros e mais outros espanhóis”. a) A guerra de religiões ou de duas culturas – oriente x ocidente. Há uma luta, na Espanha, entre o Catolicismo e o Islamismo. Estes últimos são vencidos pelos católicos, daí serem obrigados a “ajoelharem-se ao pé da Cruz Bendita”. Os mouros, “fingidos de cristãos, passaram o mar e vieram dar nessas terras sossegadas, procurando riquezas, ouro, prata, pedras finas” (S, 143, 2). b) A gente pampeana, Anhangá-pitã e Tupã. Como era essa “gente nativa”? “Era gente sem cobiça de riquezas, que só comia a caça, o peixe, a fruta e as raízes que Tupã despejava sem conta, para todos, das suas mãos sempre abertas e fazedoras” (S, 143, 19-22). A gente pampeana da campanha e da serra é sem cobiça, ao inverso dos europeus que cobiçam riquezas. Aparecem duas entidades metafísicas: Anhangá-pitã, “do tupi-guarani: diabo vermelho” (S, nota 5, 165) e Tupã, que para os tupis é o trovão, que os missionários jesuítas designaram de Deus. O primeiro é identificado com o diabo, enquanto o segundo é o doador generoso de bens. c) A metamorfose da fada moura. Teiniaguá surge do sopro de Anhangá-pitã que, através do condão mágico, tira-lhe a cabeça e implanta em seu lugar uma pedra transparente, “vermelha como brasa”. Então, Anhangá-pitã carrega Teiniaguá “sobre a correnteza do Uruguai, até as suas nascentes”. Porém, ele “só não tomou tenência que a Teiniaguá era mulher”, porque se trata de um personagem híbrido que assume muitas figurações no desenrolar da lenda. Daí, a dificuldade de reconhecer uma única identidade, pois ela carrega em si o ser híbrido – mulher e lagartixa; a pluralidade étnica – moura e índia; a diferença etária – velha e jovem. Ela compreende o máximo de contradições e a capacidade de metamorfosear-se, permanentemente, por isso Anhangá-pitã não foi capaz de reconhecer sua identidade. Neste segundo capítulo, apresentam-se algumas etnias fundadoras da identidade do gaúcho – os europeus e os índios. Além destes, somam-se, sabemos pela história, os portugueses, negros e outros. O gaúcho é o resul6 Remetemos ao estudo amplo desta lenda em: BAVARESCO, Agemir. Aprender a ser gaúcho. A Salamanca do Jarau de J. Simões Lopes Neto. Porto Alegre: WS Editor, 2003. Esta parte segue de perto o referido texto. 54 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias tado da miscigenação étnica. Aprende-se que a identidade do gaúcho não se forma pela exclusão. A “gente pampeana” forma-se pela inclusão de um conjunto étnico. A Teiniaguá é como o Santão, uma personagem que passa por muitas metamorfoses. O que a diferencia, porém, do Santão é que ela é uma personagem híbrida, porque é, ao mesmo tempo, animal e mulher. Ela conhece todas “as riquezas”, “sabe dos tesouros”, e mantém a memória das origens: As riquezas da Teiniaguá espalhadas aos quatro ventos são a própria história que se repetirá, pela força da palavra, de boca em boca, para que a memória não deixe morrer esse rastro das origens sagradas do gaúcho. O vento, espécie de intermediário do céu e da terra, é como a palavra poética, que tenta refazer a unidade, perdida com a fragmentação dos mitos no correr da história (Chiappini, 1988, p. 212). Convivem nela o máximo de contradições. Ela é a síntese de etnias, pois é moura e índia, ou seja, reúne em si o oriental, o europeu e o povo autóctone. Ela é, também, a jovem e a velha, isto é, a “princesa moura” (cap. IV) e a “velha carquincha” (cap. X). Ela é uma “fada velha” (cap. II), algo mitológico e uma mulher: “Só não tomou tenência que teiniaguá era mulher” (cap. II). Uma outra contradição central em Teiniaguá é ser “bicho imundo” e causa do pecado e, ao mesmo tempo, aquela que liberta o sacristão e, de certa forma, é a salvadora do mesmo (cap. V). Ela é a causa da condenação (“por ter tido amores com mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira” – cap. V) e de salvação do sacristão (“Mas um milagre se fez, fiquei sozinho, abandonado, mas também ouvindo o chamado carinhoso da teiniaguá” – cap. V). Há como que uma aproximação ambígua entre a Teiniaguá/Eva (causa do pecado) e Teiniaguá/Maria (causa da salvação: “Os olhos do meu rosto viam a consolação da graça de Maria Puríssima que se alonjava... mas os olhos do pensamento viam a tentação do riso mimoso da teiniaguá” – S, 151, 30). A oposição entre o mal e o bem é enunciado no cap. II, quando aparece Anhangá-pitã, que é a figuração indígena do diabo na cristandade européia. Frente a ele, está Tupã que é o bondoso. O mal faz parte da condição humana, porém, ele toma feições socioculturais que, no caso da comunidade indígena, é amenizado ou superado através das estruturas coletivas: “Anhangá-pitã folgou muito; folgou, porque a gente nativa daquelas campanhas e a destas serras era gente sem cobiça de riquezas, que só comia a caça, o peixe, a fruta e as raízes que Tupã despejava sem conta” (S, 143, 20). Ora, a Teiniaguá passa a ser identificada como a única causadora do pecado/mal. A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 55 Teiniaguá parece combinar em si, ao mesmo tempo, o bem (o divino) e o mal (o diabólico), pois é “parente do diabo, [...] dos zaoris, aqueles que, segundo alguns por pacto divino e, segundo outros, por pacto diabólico, enxergam “através dos corpos opacos”, capazes de “descobrir o que está oculto, embora seja debaixo de sete palmos de terra” (Chiappini, 1988, p. 188). Ela não só é parente do diabo, mas é “filha de Anhangá-Pitã” (Idem, p. 188). Essa ambigüidade de forças divino-diabólicas que Teiniaguá encarna prolonga-se do começo ao fim da lenda. Logo no capítulo II, Blau, fazendo memória do que a sua avó lhe contara, afirma que Anhangá-pitã, “cansado, pegou no cochilo pesado [...], só não tomou tenência que a Teiniaguá era mulher” (S, 144, 10). Ora, enquanto o diabo dorme Teiniaguá age de tal forma, que não é reconhecida como uma mulher. Ela não revela a sua verdadeira identidade, mas permanece um ser híbrido. A cristandade colonial não a reconhece; enquanto isso, Teiniaguá vai passando por uma evolução identitária até que ao final é reconhecida como uma nova mulher – a “tapuia formosa”. Essa contradição permeia “o conto todo, implícita, tornando a explicitar-se no final, como uma espécie de chave ou moral da história: a teiniaguá era mulher” (Chiappini, 1988, p. 193). No capítulo X, Teiniaguá é reconhecida por Blau Nunes, enquanto personagem coletivo representante do gaúcho. Ela não foi reconhecida por Anhangá-pitã, daí porque ele ficou desgostoso e se escondeu, pois não foi capaz de tomar consciência que ela era uma mulher. O projeto da cristandade colonial a identificou sempre como algo estranho e causador do mal. Há uma incapacidade de reconhecer a identidade da mulher. De um lado, ela não seria identificada com o pecado, enquanto índia, e de outro, pode ser entendido que, enquanto moura e mulher jovem, é enquadrada dentro da cristandade colonial como a origem do pecado. Nela está a culpa/castigo e também o prazer. Para a moral institucional, há o dilema entre o que prescreve a religião oficial e as práticas não prescritas entre os nativos. O drama do sacristão e da Teiniaguá parece estar se encaminhando para uma tragédia pampeana, pois o sacristão é condenado à morte. No entanto, a Teiniaguá aparece como promessa de reconciliação: do sangue de nós ambos nascerá uma nova gente (Cf. S, 148, 20). E, de fato, no cap. X, acontece a realização desta utopia: os dois formam um par novo. No capítulo final, acontece uma última metamorfose em três momentos – “a velha carquincha transformou-se na teiniaguá”, “a teiniaguá, na princesa moura” e a “moura, numa tapuia formosa”. O que temos, aqui, é uma síntese de opostos superados no diálogo intercultural de diferentes experiências históricas: a velha carquincha e a jovem moura; de etnias autóctones e estrangeiras: a moura e a índia; de éticas tradicionais e locais: a ética cristã, a islâmica e a indígena. O resultado desta interculturalidade é a “tapuia formosa”. 56 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias Teiniaguá (termo de origem indígena: teiú = lagarto + aguaíca = manceba) é um personagem que faz parte da cultura popular nas regiões das Missões e da Campanha do Rio Grande do Sul. A tese de Cícero Galeno Lopes é que Teiniaguá é um personagem híbrido.7 A interpretação lendaconto de Flávio L. Chaves já mostra a relação híbrido-dialógica entre o texto ou as tradições originais e o texto do autor. A interpretação corrente é que a Teiniaguá está marcada pelo mal, porém, Cícero G. Lopes entende, a partir da hibridação, que é necessário compreender este personagem, enquanto contraditório. O próprio nome Teiniaguá é híbrido, porque é resultado da composição de um réptil e uma moça. O par teiniaguá e santão aparece no texto com as iniciais minúsculas, denotando a função ou categorias. No caso do Santão, parece apontar uma certa transgressão. O nome identificaria o seu batismo cristão, no entanto, o suposto nome nunca é mencionado. O nome teria sido importante, porque ele exercia a função de sacristão. Porém, a ausência do nome poderia significar a perda de sua identidade cristã-católica, expressa na linha da doutrina da cristandade colonial. Ele desempenhara a função de sacristão, perdendo essa atividade, depois que fora flagrado mantendo relações amorosas com Teiniaguá. A condição posterior, após sua expulsão da comunidade de Santo Tomé, acontece junto ao Cerro do Jarau. Aqui, ele é denominado de Santão. Este encontrara o amor junto à Teiniaguá-mulher. Ora, isto é uma contradição, porque se une com ela fora do casamento, o que constitui para a Igreja Católica um ato ilícito, portanto, pecaminoso. Além disso, une-se a uma “princesa moura”, de outra religião. A contradição está no conflito entre “a cruz bendita” dos católicos e o “crescente dos infiéis” muçulmanos. Há um processo de assimilação-hibridação em que se misturam tradições religiosas e valores diferentes (Cf. Galeno Lopes, 1999). Teiniaguá é mulher-lagartixa graças a um pacto com Anhagá-pitã. Ora, este pacto tem um caráter híbrido, porque ela recebe, de um lado, o carbúnculo deste último, que lhe dá luz, ou seja, símbolo do pensamento e do poder além do animal. De outro lado, ela herda, ao mesmo tempo, do pacto com o demônio, o estigma do mal. Esta caracterização do mal, presente em Teiniaguá, é devida à versão religiosa que constrói as forças opostas no mundo como sendo a luta entre o bem e o mal. Esta luta de opostos acontece historicamente, no caso, Teiniaguá, em conseqüência de sua origem árabe, oposta aos espanhóis, é identificada como a que encarna o mal. 7 García Canclini, estudando as culturas híbridas, afirma que a hibridação é uma noção fundamental para compreender a história latino-americana. A tese da hibridação defende que a modernidade européia não eliminou as tradições autóctones, mas “deu lugar a formas sincréticas onde as matrizes indígenas, espanholas e portuguesas foram reelaboradas para constituir uma mistura” (Bernd e Lopes, 1999, p. 22). A presença indígena na obra de Simões Lopes Neto 57 Prosseguindo na análise do processo de hibridação religiosa em Santão, e a hibridação antropomórfica de Teiniaguá, podem-se constatar, ainda no texto, outros indícios relacionados à teoria do personagem híbrido. A miscigenação entre árabes e cristãos ocorrida na península ibérica e seus desdobramentos religiosos; a prática da magia atribuída aos árabes opõe-se e relaciona-se com o culto religioso; Teiniaguá é identificada com uma bruxa, por isso é perseguida pelos tribunais da Inquisição espanhola; Teiniaguá toma diversas figurações e, ao mesmo tempo, carrega em si diversas contradições que constituem um personagem com multiidentidades: ela é moura e convive com cristãos; é mulher e réptil, ou seja, humana e não-humana; gera felicidade e causa infelicidade, provoca prazer ao Santão e leva-o ao pecado/castigo; é muçulmana e jovem e vem para a América no ventre de uma fada velha, num navio cheio de cristãos e padres; ela é a causa da condenação do sacristão (por luxúria, apostasia e sacrilégio) e da salvação, pois ela faz romper a terra, assusta os verdugos e liberta-o de suas amarras. Percebe-se que a Teiniaguá encarna em si o máximo de contradição, sobretudo na oposição entre o símbolo do mal (mulher/bicho imundo) e, ao mesmo tempo, o símbolo do amor e da felicidade (“saudade do seu cativo e soberano amor”, S, 149, 37; “de teiniaguá, que me enfeitiçou de amor”, S, 152, 6). Uma leitura unidimensional atribui a ela somente o mal, visão própria da herança da cultura ocidental dualista que separa bem/mal. No entanto, segundo a tese do personagem híbrido, Teiniaguá apresenta-se como a síntese da oposição, pois ela nasce da voz múltipla do povo, do embate de muitas consciências entre negativo-positivo. “Esses sinais apareceriam ao longo da literatura gaúcha, como marca da necessidade do amor e, simultaneamente, como marca do aprisionamento masculino exercido pela mulher (humana e não-humana)” (Bernd e Lopes, 1999, p. 35). Segundo Bernd e Lopes (1999, p. 35), “a hibridez é já marca da transgressão. A transgressão só é possível na desobediência e na paixão, i. e, na ação, na mobilidade, na modificação (porque a pureza perece de imobilidade). Essas marcas, como se pode perceber, estão nas ações do casal Teiniaguá-Santão, especialmente nela, porque por dupla natureza, designada na nominação”. Teiniaguá desestabiliza o sacristão, pois o leva a sair do estado de vida em que estava submisso na redução de São Tomé. Ora, a ação dela pode ser compreendida como o símbolo de superação da dependência colonial. “Talvez esse tenha sido o maior pecado encontrado nas ações da Teiniaguá, que só pode ser concebido sob a visão colonialista” (Idem, p. 35). Há rebeldia nas palavras e ações do casal que se voltam contra o sistema de cristandade colonial e anunciam a formação de um novo mundo, assim expresso por Teiniaguá: 58 Carlos F. Sica Diniz Identidades Ameríndias Serás o meu par.... si a cruz do teu rosário me não esconjurar... Si não, serás ligado ao meu flanco, para, quando quebrado o encantamento, do sangue de nós ambos nascer uma nova gente, guapa e sábia, que nunca mais será vencida, porque terá todas as riquezas que eu sei e as que tu lhe carreará por via dessas (S, 148, 17-21). Na Salamanca do Jarau, podem-se encontrar referências cronológicas tais como a fundação de São Tomé pelos padres jesuítas em 1632. Aqui, o sacristão ajuda no serviço litúrgico. Após ter sido condenado pelo pecado cometido com Teiniaguá, consegue fugir com ela para o Cerro do Jarau. Neste local, encontra-se com Blau que descreve, então, as suas andanças. Referências ABRÃO, Bernadete Siqueira. Schelling e a filosofia da identidade. In: DURANT, Will. História da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999a. ABRÃO, Bernadete Siqueira. Vico e as idades do homem. In: DURANT, Will. História da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999b. AQUINO, Rubim Santos Leão de. História das sociedades: das sociedades modernas às atuais. 4. reimpr. 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Sou verso Sou maior que a história grega Eu sou gaúcho e me chega Pra ser feliz no universo. (Eis o homem, Marco Aurélio Campos) De Getúlio a Machado: uma história pelo avesso O jornalista Diogo Mainardi, com o timbre polêmico que lhe é peculiar, publicou na revista Veja, um artigo (2004, 183) em que retoma um tema recorrente na história do pensamento nacional: a identidade do brasileiro. Mainardi faz uma afirmação categórica e provocativa: “O brasileiro não existe”. É uma declaração ambígua e, digamos, guarda algo de sub-reptícia verdade. * O presente texto, modificado, foi apresentado por Luís Borges como palestra no Instituto de Ciências Humanas/UFPel, em 20 de maio de 2005, sob o título de A dialética de Peri e Blau Nunes: o Brasil descarado, o Rio Grande encarando. Reproduzida, resumidamente, como conferência radiofônica, em 18 de junho do mesmo ano, na Comunidade FM, de Pelotas. ** Membro do Grupo de Filosofia Intercultural – Universidade Católica de Pelotas (UCPel), Instituto Superior de Filosofia (ISF). Décima de Sepé Tiaraju 61 A assertiva do referido jornalista leva-nos a perquirir: Não existe o brasileiro porque existem brasileiros que habitam diferentes brasis, os quais formam “ilhas culturais”, conforme teorizou Viana Moog (1943)? Nessa direção, tateando caminhos, tartamudeando respostas, devemos fazer uma ressalva, quando o jornalista da revista Veja entende que “Quem inventou a figura do brasileiro foi a ditadura getulista. Inventou uma língua, inventou mitos, inventou o Carnaval, inventou a música popular. A ditadura getulista inventou o brasileiro para melhor dominá-lo”. Se examinarmos a história da Era Getulista, de fato, podemos verificar que houve um grande investimento político na manipulação ideológica, conforme demonstra a importância do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) ou o papel da Rádio Nacional, fundada em 1936, às vésperas do Estado Novo. Quando examinamos as fontes do pensamento de Vargas, de 1906 até 1928, ano em que assume a presidência do Rio Grande do Sul, notamos a nítida influência positivista, e sabemos, o Positivismo brasileiro, sempre teve o nacionalismo e o militarismo como um dos pontos principais de seu ideário político. Sabe-se que Getúlio, num primeiro momento, optou pela carreira militar ingressando, em 1900, na Escola Preparatória e de Tática de Rio Pardo (RS), após ter passado pelo 6º Batalhão de Infantaria de São Borja. Mais tarde, voltou-se para as chamadas Ciências Jurídicas e Sociais, ingressando na Faculdade de Direito de Porto Alegre, em 1903. Nessa academia polarizavam, basicamente, duas correntes: o jus naturalismo e o positivismo jurídico (Cf. Fonseca, 2001, p. 103-124). Sem entrarmos em maiores detalhes, que fogem ao objeto de nosso estudo, pode-se observar em Vargas a influência política de Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros e Pinheiro Machado, ao lado da influência filosófica de Comte, Stuart Mill e Spencer (id., ibid.). Por aí podemos concluir que o “brasileiro inventado” na Era Getulista foi fruto de um projeto muito anterior, inclusive ao ideário e à retórica positivista. Getúlio respondia, a seu modo, a uma exigência de formulação política e cultural vinda desde a Independência. É claro que construiu um brasileiro a sua imagem e semelhança, a fim de justificar e consolidar suas políticas e interesses. Getúlio, diferente do que afirmava categoricamente Mainardi, não inventou o brasileiro, apenas o atualizou, aplicando um novo discurso e novas tecnologias para disseminá-lo. De qualquer forma, o mais importante é investigarmos de que modo esse discurso sobre o que era o Brasil ou quem eram ou deveriam ser os brasileiros conseguiu ser tão eficaz, acabando, enfim, praticamente por convencer a todos nós. 62 Mário Matos Identidades Ameríndias A ressalva a ser feita à afirmação de Mainardi é que a preocupação com a busca de uma identidade para o Brasil e de uma cara para os brasileiros já estava colocada desde há muito. Desde a mais tenra idade do país, dir-se-ia mesmo antes da independência política da nação, já se intuía aquilo que Machado de Assis chamou de “instinto de nacionalidade”, em 1873. Que país é este?8 Para traçarmos uma cara para o Brasil, é necessário antes que nos coloquemos como “descarados”, isto é, sem rosto. Quem sempre disse quem somos foi o estrangeiro. Somos, pois, exóticos e típicos para nós mesmos. Uma tese instigante que corrobora essa idéia de que o Brasil é estranho aos brasileiros é a do historiador Luiz Felipe de Alencastro (2000), para quem a sociedade brasileira se estruturou num espaço sem território nas águas do Atlântico Sul, oceano-ponte, colocado entre a economia de monocultura açucareira no Nordeste, de base escravocrata, Angola, lugar de onde provinha a mão-de-obra, e Lisboa, capital metropolitana do império colonial lusitano. Aquilo que mais tarde se denominou “Brasil” foi uma estrutura montada sobre esse tripé, a fim de beneficiar uma minoria estrangeira contra a terra e as gentes aqui encontradas ou trazidas à força. Naqueles tempos, “brasileiro” significava o traficante de madeira (Cf. Sousa, 1978). Ser brasileiro era um negócio, um empreendimento comercial, uma função a ser exercida em proveito próprio. Dessa ambição, talvez, nasceu o desejo de ser uma nação: “Eles quiseram que o lugar prosperasse e o lugar prosperou”.9 Dessa visão de mundo mercantilista, dão-nos sobejo testemunho muitos missionários e viajantes, tais como José de Anchieta, em Província do Brasil (1585), Pero Magalhães Gandavo, em História da província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil (1576), Frei Vicente do Salvador, em História do Brasil (1627), Gabriel Soares de Souza, com Tratado descritivo do Brasil (1587), Ambrósio Fernandes Brandão, com Diálogo das grandezas do Brasil (1618), Antonil, em Grandeza e opulência do Brasil por suas drogas e minas (1711), Rocha Pita, em História da América portuguesa (1730), entre tantos outros.10 8 9 10 Titulo de uma obra de Afonso Romano de Santana, publicada em 1980. Afirmação relativa ao desenvolvimento de Pelotas, feita pelo viajante Nicolau Dreys, em Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul (1839). Para maiores detalhes, vide Holanda, 1977. Encontra-se uma boa síntese em Zilberman, 1994, p. 12-34. Décima de Sepé Tiaraju 63 A febre de lucro vasto, além da sede de aventuras, diante da natureza exuberante do Brasil, transitou facilmente da “prosa comercial” para a poesia, como em A ilha da Maré, de Botelho de Oliveira, em cujos versos se louva a paisagem circundante, destacando a lucratividade da economia pesqueira: Aqui se cria o peixe regalado Com tal sustância e gosto preparado Que sem tempero algum para apetite Faz gostoso convite E se pode dizer em graça rara Que a mesma natureza os temperara. (Oliveira, 1994, p. 23). E segue, agora louvaminhando a agricultura: E vamos aos legumes, que plantados São do Brasil sustentos duplicados; Os mangarás, que brancos ou vermelhos, São da abundância espelho; Os cândidos inhames, se não minto Podem tirar a fome ao mais faminto. As batatas, que assadas ou cozidas São muito apetecidas; Delas se faz rica batatada Das bélgicas nações solicitadas. (Oliveira, 1967, p. 333). Esses fragmentos, que nos soam até engraçados, poderiam figurar ainda hoje em qualquer prospecto turístico. Que é o Brasil e quem é o brasileiro? Advinda de nosso passado com características peculiares, talvez venha nossa angústia e obsessão pela pergunta a respeito da identidade do país e de seus habitantes, diferentemente do processo, por exemplo, que constituiu a nacionalidade estadunidense. Sobre a situação de quem somos nós, o historiador Sérgio Buarque de Holanda (1982, p. 3), em seu clássico estudo de 1936, às vésperas do Estado Novo, faz uma abertura emblemática, dizendo: “[...] somos ainda hoje uns desterrados em nossa própria terra”. 64 Mário Matos Identidades Ameríndias O Brasil, já como Estado-Nação, ainda que em descompasso com a Europa, nasceu sob a égide do Romantismo, que se constitui, por excelência, na estética e na filosofia política do Estado nacional moderno. Nesse contexto, é que se intensificam as perguntas: Que é o Brasil?/Quem é o brasileiro? As duas interrogações não são redundantes, como possa parecer. Pode-se pensar que brasileiro é o que desfruta da condição de cidadão do Brasil, e que Brasil é o Estado que lhe confere esta condição. Nada mais exato, nem mais enganoso. Tais definições nada revelam a respeito do que seja o Brasil ou os brasileiros, pois eles podem existir um sem o outro. Pelo menos, é o que parece sugerir o texto do jornalista Diogo Mainardi (2004). Para ele, há uma dicotomia entre a versão oficial do Brasil, inculcada pelo Estado, e outra, oficiosa, quiçá, a verdadeira, descomprometida com uma imagem “ilha da maré”, ou “politicamente correta” do Brasil, mas que, no entanto, não sabemos com precisão a que corresponde. Tem-se, todavia, uma certeza: o Brasil existe e os brasileiros estão lá. Mas, afinal, que país é este? Onde mora este povo estranho e intangível? Essa “coisa-em-si” que constitui o ontos do Brasil e dos brasileiros é uma interrogação que nos persegue e assombra. As fantasmagorias a que chamamos “Brasil” e “brasileiros” marcam profundamente a trajetória da história das idéias no país. O pensamento socioeconômico, filosófico e político nacional atravessa o discurso dos chamados “intérpretes do Brasil”, que vão desde escritores e pensadores, passando por sociólogos e historiadores, até políticos e educadores. Numa brevíssima revisão acerca deste vasto campo que representa o pensamento sobre o Brasil e os brasileiros, podemos citar algumas obras para a compreensão desse processo, como por exemplo: História da literatura brasileira (1888), de Sílvio Romero; A educação nacional (1890), de José Veríssimo e Por que me ufano do meu país (1900), do conde Afonso Celso. Ora, no curto período de pouco mais de uma década, entre o fim do Império e o início da República, está concentrada praticamente toda a essencial problemática da cultura e da civilização brasileira. O conjunto de hermenêuticas advindas das teses de Romero, Veríssimo e Celso, basicamente, se corroboram nas premissas fundamentais, além do que, se cruzam e completam. É interessante notarmos que alguns dos critérios de Ferdinand Denis, o “pai do Romantismo brasileiro”,11 sobre o papel de uma literatura nacional no Novo Mundo, mas alterados já sob o influxo tainetiano, estão retomados em Sílvio Romero. O primeiro historiador da literatura brasileira (ele mesmo se conferiu esse título) trilhou a picada aberta pelos críticos românticos Gonçalves de Magalhães, Pereira da Silva, Joaquim Norberto e Varnhagen, que 11 Para maiores detalhes, vide Rouanet, 2003, p. 103-108. Décima de Sepé Tiaraju 65 trouxeram dados cronológicos e outras informações de natureza objetiva. Sem esse esforço historiográfico, necessário à sistematização do passado, não apenas ordenando elementos conhecidos, mas trazendo a lume novos dados, Sílvio Romero reconhece que seu trabalho não teria sido possível. O autor enfatiza a raça (e não a natureza exuberante, nisso distancia-se de Denis e dos românticos, em geral) como fator de formação da literatura brasileira. Romero observa os elementos postos em relevo pela metodologia de Taine. Mas só de modo parcial, porque tem em mente as distintas etnias que participaram da constituição da nacionalidade, o negro, o índio e o branco, enquanto o francês lida apenas com a arte européia, diferenciada conforme os povos, que considera raças. Ao enfatizar a miscigenação, aborda a história nacional, inclusive a história literária, como a luta por uma fisionomia e identidade próprias: o mestiço consiste na “genuína formação histórica brasileira” (Romero, 1888, p. 54). Ou ainda: “Todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas idéias” (id., p. 4). Para ele, o “mestiço constitui-se no produto fisiológico, étnico e histórico do Brasil: é a forma nova de nossa diferenciação nacional” (id., p. 75). Em Sílvio Romero, o mestiço (o brasileiro) para obter definitivamente sua autonomia política e cultural, no que a literatura ocupa um papel de relevo, deve conhecer-se e expressar seu “gênio próprio”. Em Afonso Celso, a grandeza do território, as riquezas naturais inesgotáveis, a ausência de calamidades, os nobres predicados do caráter nacional, com seu povo ordeiro e pacífico, um único ponto negativo é a “acessibilidade que degenera, às vezes, em imitação do estrangeiro” (Celso, 1905, p. 86), nisso concorda com Romero, e outros tantos aspectos são discorridos com o objetivo de demonstrar a superioridade do Brasil. Assim diz o conde em seu prefácio: Ousa afirmar muita gente que ser brasileiro importa condição de inferioridade. Ignorância, ou má fé! Ser brasileiro significa distinção e vantagem. Assiste-vos o direito de proclamar, cheios de desvanecimento, a vossa origem, sem receio de confrontar o Brasil com os primeiros países do mundo. Vários existem mais prósperos, mais poderosos, mais brilhantes que o nosso. Nenhum mais digno, mais rico de honradas promessas, mais invejável (Celso, 1905, p. 2). Com todo esse potencial, para que o “gigante adormecido” concretize suas promessas, é necessária uma grande reforma educacional e moral. “Sem orgulho patriótico – que não merece ser assim chamada nossa parvoinha vaidade nativista – sem educação cívica, sem concorrência de espécie alguma, o caráter brasileiro, já de si indolente e mole, como que se deprimiu [...]”, assevera José Veríssimo em A educação nacional, escrita em 1890 (Veríssimo, 1958, p. 9-31). 66 Mário Matos Identidades Ameríndias Ainda hoje não estamos muito distantes desses eixos e discursos. Investigar e descobrir a identidade do Brasil e do brasileiro são ainda tarefas pertinentes e pertinazes. Assumindo, em várias ocasiões, os olhares de outros sobre nós – lembrando a abertura de Raízes do Brasil – podemos dizer que fabricamos a nós mesmos como produto de importação, visando a um processo de modernização, tantas vezes apenas paródico, eis que descontextualizado de nossa realidade. Eduardo Prado, um monarquista crônico e um dos clássicos intérpretes do Brasil, já alertava para isso em A ilusão americana (1893).12 Prado associou-se, para uma visão crítica à República, a outros intérpretes das instituições brasileiras, entre os quais estão o Conde Afonso Celso, o Visconde de Taunay, Oliveira Lima, Joaquim Nabuco, o Visconde de Ouro Preto, o Barão de Loreto, Carlos de Laet, Cunha Mattos, o Barão de Paranapiacaba e outros, reunidos no libelo político monarquista, publicado entre 1889 e 1902, intitulado Década republicana. Os debates, em geral, giravam em torno de questões específicas, como o sistema eleitoral, por exemplo, uma vez que, derrotada a Revolução Farroupilha, o Império havia enfraquecido uma teorização mais consistente sobre o regime republicano e sua aplicação no Brasil. Tal discussão, contudo, voltou com força total com o Manifesto republicano no final do Segundo Reinado. De qualquer modo, o pensamento monarquista militante só se organizou depois do 15 de Novembro, uma vez que antes não havia uma necessidade concreta de defesa do sistema monárquico. Na época, o impacto de Os sertões, de Euclides da Cunha, foi multiplicado, em função de que a Guerra de Canudos parecera aos contemporâneos uma síntese do conflito entre o atraso e o progresso, associando o exército ao regime republicano e o Conselheiro e seus seguidores às hostes da restauração monárquica. O impasse estava colocado de maneira dramática e paradoxal. Certos setores do Rio Grande do Sul, estado de forte tradição republicana, também aderiram ao movimento restaurador, conforme nos demonstra a obra Os crimes da ditadura, publicada em 1902, organizada por Rafael Cabeda e Rodolfo Costa. Nesses tempos, a identidade da nação estava associada aos diferentes regimes: monarquia e república. Nesse sentido, mais uma vez acontece o choque entre identidade política e cultural gaúcha e poder central. Afinal, que país é este? 12 A segunda edição, em português, saiu em 1895. A 15ª edição apareceu pela editora Ibrasa, São Paulo, em 1980. Décima de Sepé Tiaraju 67 Identidade gaúcha versus identidade brasileira Na ânsia de libertarem-se das influências escravizadoras, os intérpretes do Brasil, do passado (como vimos) e do presente (neste ainda mais torturante), buscam caminhos e soluções frente a um mundo globalizado e pósmoderno, em que as diferenças culturais se diluem e se uniformizam, enquanto o abismo econômico entre os países ricos e pobres se aprofunda. Nessa direção, talvez, devamos fugir à tautologia dicotômica que nos sugere o texto do jornalista Diogo Mainardi, ou seja, não somos quem o Estado diz que somos, porém, também não podemos enunciarmo-nos plenamente, uma vez que nossa potencialidade e grandeza nos impede de nos sabermos tais como somos. Mainardi indica que o “verdadeiro Brasil” não pode ser reduzido à sua versão oficial. Com isso, entretanto, caímos num velho clichê, em sua formulação esquizofrênica e paranóica: de um lado, não somos nada que preste e nunca o seremos, porque há forças estrangeiras que impedem nosso desenvolvimento, pois bem sabem das nossas riquezas e da bravura do povo (até o nosso pessimismo é otimista!). De outro, somos os maiorais desde sempre, eternos Afonsos Celsos. Deste modo, a busca de uma identidade nacional se tornou uma entidade metafísica. O Brasil é tão exuberante, tão grande, “o gigante adormecido”, que não se pode desvendá-lo, somente o coração (verde-amarelo?) seria capaz de senti-lo, vivê-lo, pois em face da plenitude do objeto, o pensamento e a linguagem seriam impotentes. Nada mais ufanista, nada mais de acordo com a tese mainardiana. E nada mais oficialista. Para o poder, quanto mais impalpável for um país ou uma nação, mais maleável aos constructos ideológicos. Mas uma identidade não é uma realidade fixa, é fruto de uma rede complexa de relações socioculturais, econômicas e axiológicas. Ao lado do mito de que a identidade do brasileiro é difusa ou pejorativa (lembramo-nos das concepções de, por exemplo, Mário de Andrade, em Macunaíma, e Paulo Prado, em Retrato do Brasil, ambos de 1928), está o de que, diferentemente, a identidade cultural do Rio Grande do Sul, tida mais precisamente como a dos gaúchos, é clara e distinta. A imagem dos sul-riograndenses, desenhada para si mesmos, é representada pelo gaúcho no mito do “centauro dos pampas” ou do “monarca das coxilhas”. Temos aí um paradoxo aparente. Se, de uma parte, há o “herói sem nenhum caráter”, de timbre macunaímico, de outra, aparece o “herói farroupilha”, dotado das virtudes mais nobres. A discussão a respeito desse suposto paradoxo se estendeu pelas mais diferentes esferas culturais, da história à música. Um dos debates mais acirrados aconteceu nos idos de 1983, quando da publicação de Ideologia do gauchismo, de Tau Golin. Esse ensaio, descartado o tom raivoso, pela primeira 68 Mário Matos Identidades Ameríndias vez questionava a identidade étnica e cultural do Rio Grande do Sul e a imagem petrificada do gaúcho. Em resposta a essa obra, sem que os ânimos se tivessem acalmado, apareceu o Manifesto gaúcho (2000), livro em que Evaldo Braz pretendia demonstrar quem são os gaúchos (refere-se ao tipo sóciohistórico, que se confunde com o tipo literário) através dos depoimentos de viajantes: Os epítetos atuais do gaúcho são, por este tipo de historiadores (adeptos da Nova História), considerados fantasiosos, tais como liberdade, orgulho, guerreiro, coragem e rude ética. Quem lá esteve parece ter outra opinião. Isto salta aos olhos em seus livros de viagem. Nossos nouveaux historiadores preferem recriar uma nova história supondo estarem utilizando critérios científicos, critérios esses já de antemão definidos pelos nouveuax orientadores de tese. Com aquele maravilhoso estoque de frases e pressupostos a requintadas teses, tais como imaginário, ontológico, etc. (Braz, 2000, p. 10). Esses debates em torno da identidade do Rio Grande do Sul e, via de conseqüência, do gaúcho, sob certos aspectos, movidos pelo combustível da paixão, contaminaram o discurso em torno da literatura. Os escritores e críticos, também intérpretes do Brasil e do Rio Grande do Sul, muitas vezes, lançaram mão do arsenal utilizado para o estudo sociológico, histórico e folclórico, aplicando-o à análise literária, colocando outros elementos, de marcante feição ideológica, acima da investigação propriamente estética. Novamente encontramos a dicotomia entre o gaúcho desenhado pelo centro (1870), quase um “pisa-flores”, como Manoel Canho, de José de Alencar, e o “verdadeiro gaúcho”, ainda que tão idealizado quanto o outro, o Avençal, no Vaqueano (escrito em 1869 e publicado em 1872), de Apolinário Porto Alegre. É nesse antagonismo que podemos encontrar a confluência entre a formação da imagem do brasileiro e do gaúcho, aparentemente tão díspares em sua capacidade de identificação. Um é uma figura intangível, fruto de uma retórica romântica, e o outro, acoitado sob uma paisagem reconhecível e valores elevados, transformou-se num personagem estereotipado. É verdade que sempre houve uma necessidade de afirmação da identidade dos sul-rio-grandenses, a partir das Guerras Cisplatinas (1811-1828) (Cf. Torronteguy, 1994, p. 42-48) e, principalmente, da luta contra o Império do Brasil, corporificada pela Revolução Farroupilha (1835-1845), inclusive com lances separatistas. Terminada a Guerra dos Farrapos (1835-1845), os latifundiários e as camadas comerciais da província receberam benesses do Império e escolheram Caxias como governador. Ele estava afinado com a política imperialista do governo brasileiro no Prata (Cf. Bandeira, 1985). O Brasil intervinha no Décima de Sepé Tiaraju 69 Uruguai e na Argentina, para expandir o domínio sobre o mercado da carne e seus derivados. Para tanto, necessitava do auxílio das elites estancieiras sulinas. Eram, contudo, os peões-soldados que constituíam a massa militar que realizavam as intervenções armadas na bacia platina, comandados pelos oficiais-proprietários (id., ibid.). Os changadores ou gaudérios, que em tempos de antanho recolhiam o gado xucro que vivia nas vacarias, acabaram por perder sua fonte de trabalho. O gado passou a ter dono e as terras agora possuíam aramado. Esse processo encontra em Jayme Caetano Braun a sua expressão profunda no poema Alambrado: Estendidos na paisagem Com o dantesco esqueleto Os teus fios de arame preto Causaram constrangimento E até o assobio do vento Entre os buracos de pua Encheu o pampa Charrua Dum som triste e agourento! (Braun, 1982, p. 97). Os gaúchos, mesmo sofrendo esse processo de expropriação, continuaram a fazer invernadas e a se alimentarem do gado, e cruzavam as fronteiras, ignorando os limites territoriais do Brasil, da Cisplatina e da Argentina. Eram errantes e poucos constituíam famílias estáveis. A sociedade sulina estava se modificando, não apenas em termos de organização econômica, mas essa mudança implicava profundas alterações na ordem social e valorativa. Não mais se aceitava o tipo social andarengo, “sem lei, nem rei”. Aos poucos os chamados gaúchos caíram na marginalidade. Foram considerados vagabundos e desordeiros pelos proprietários de terras e perseguidos pela polícia. Seu mundo de liberdade e aventura havia desaparecido. Os estancieiros queriam aproveitar suas habilidades guerreiras e de trabalho para cuidar de suas propriedades, evitando o roubo e as contendas. Com o passar do tempo, muitos dos antigos gaúchos foram cedendo, a fim de poderem sobreviver. Outros, porém, resistiram e persistiram em seu anterior modo de vida. Para estes a solução foi o banditismo. José Hernández, em seu Martin Fierro (1872), escreveu: “El anda siempre juyendo, siempre pobre y perseguido; no tiene cueva ni nido, como se fuera maldito; por que el ser gaucho... ! barajo! El ser gaucho es um delito” (Hernandez, 1987, p. 57). Nasce aí o conceito de “nação pampeana”. Noutro viés, ao longo do tempo, podemos pensar que houve uma deliberada construção identitária. Nesse sentido, a fundação do Partenon Literário, em 1868, possui um papel determinante. 70 Mário Matos Identidades Ameríndias Embora se possa dizer que Caldre e Fião seja, cronologicamente, o fundador do gaúcho literário (e um dos criadores do romance brasileiro) com A divina pastora (1847) e O corsário (1851), foi José de Alencar que, em 1870, fixou nacionalmente a figura do gaúcho-herói. É interessante observar que o sentido pejorativo da palavra irá alterar-se, a partir do final da Guerra do Paraguai, na qual os soldados sulistas tiveram participação indispensável. Assim mesmo persistirá em alguma medida, pois o herói de Apolinário Porto Alegre (1872) é um vaqueano e não um gaúcho. Ao escrever O gaúcho (1870), José de Alencar procurava construir um vasto panorama em que pudesse inserir os contextos regionais, objetivando dar uma unidade ao brasileiro, melhor dizendo, ao Brasil. O gaúcho alencariano não era menos fantasioso que a figura descrita em seu Sertanejo (1875), tipo social, a respeito do quem tinha ele conhecimento. Portanto, o Manuel Canho, o gaúcho, era um estereótipo romântico transplantado para um locus, mais ou menos, regional. Ao cotejarmos O gaúcho (1870), de Alencar, e O vaqueano, escrito em 1869, mas publicado em 1872, de Apolinário Porto Alegre, encontramos um dado interessante. O personagem do primeiro escritor, embora tenha aderido à Revolução Farroupilha, ele o faz por motivos pessoais, mero compromisso a seu padrinho Bento Gonçalves. As causas da luta lhe são alheias. José de Alencar, ao enfocar aspectos da Revolta dos Farrapos, elogia Bento Gonçalves por sua honra, por seu comedimento, seu espírito patriótico avesso à anarquia revolucionária. Os soldados são retratados como uma corja de ladrões, desordeiros e bêbados. Não é de admirar, sabedores como somos, de seus laços governistas. Embora O vaqueano (1872), de Apolinário Porto Alegre, seja considerada uma obra de resposta a de Alencar, ela é também uma transposição dos pressupostos da prosa romântica aplicados com mais cor local. Há, porém, uma sensível diferença: aparece na obra porto-alegriana o traço liberalrepublicano e abolicionista. José de Avençal, personagem de O vaqueano, ao contrário do que descrevia Alencar sobre os soldados farroupilhas, era quieto, pouco dado ao fumo, ao álcool, ao jogo ou a uma vida amorosa imoral ou desregrada. Este herói representa um olhar pró-farrapo. O clímax da ação se realiza, quando Avençal se suicida numa explosão. Nessa explosão morrem vários soldados legalistas e, neste momento, ele grita: “Viva a República!” O projeto republicano, liderado pelas elites latifundiárias, será, em farta medida, celebrado em prosa e verso pelos componentes da Sociedade do Partenon Literário em sua Revista Mensal (1869-1879), dando respaldo ideológico ao antimonarquismo e incentivando o liberalismo político e a federação. Além disso, será apenas depois da Revolução Federalista (1893-1895) que surgem os chamados Grêmios Gaúchos. O primeiro deles, aliás, foi funDécima de Sepé Tiaraju 71 dado em Porto Alegre por João Cezimbra Jacques, em 1898. Posteriormente, surgirá a União Gaúcha de Pelotas, em 1899, que seria vista como uma invenção bizarra dos habitantes urbanos. Ainda na primeira década do século XX, ser chamado “gaúcho” equivale a um qualificativo que representa um desvalor: a brutalidade de costumes, a ignorância, o barbarismo moral. Até 1912, ser chamado de “gaúcho” causava profundo mal-estar ao cidadão da elite urbana. Tanto assim, que o escritor Arthur Toscano, nas páginas do Almanaque do Rio Grande do Sul, editado por Alfredo Ferreira Rodrigues, escreveu um indignado artigo intitulado Gaúcho por quê? Apesar da oposição que Apolinário fez à ditadura castilhista, seu romance auxiliou a consolidar um dos pilares ideológicos de Júlio de Castilhos: a exaltação da memória farrapa, como ideal patriótico. O tipo idealizado por Porto Alegre, ainda que não assumisse a alcunha de “gaúcho”, tomava um princípio que, mais tarde, o caracterizaria como tipo social: era um elemento fundamental na democracia da estância, ali todos eram “gaúchos”, peões e proprietários, que, na roda de chimarrão, anulavam todas as distâncias sociais e políticas. Esta é a vertente político-literária que produziu a teoria da “democracia racial e social da estância rio-grandense”, cujo maior representante é o sociólogo Jorge Salis Goulart, autor da clássica A formação do Rio Grande do Sul (1927), obra que, certamente, se constituiu numa das fontes do pensamento varguista. A “fabricação do gaúcho” só se consolidou após o Estado Novo, com o movimento dos Centros de Tradições Gaúchas (CTG), cuja fundação se deve a Barbosa Lessa e Paixão Cortes, em Porto Alegre, em 1947. Nesse período, a cultura brasileira já havia passado pela orgia modernista. A fase construtiva do Modernismo começara juntamente com a Revolução de 1930. Levará, porém, o Rio Grande do Sul mais tempo para descobrir-se ou fabricar-se, que Getúlio para inventar o brasileiro, conforme a expressão de Mainardi. Tupi or not Tupi? That is the question13 O Brasil (carente de uma tradição histórica, nos moldes europeus, de que se pudesse orgulhar) e as novas elites (agora nacionais) buscaram um “mitofundador”, com o qual ou sob o qual pudessem erigir uma identidade para o país, o que significava e, principalmente, um projeto político. O colonizador português estava associado à dominação colonial, o negro jazia no desprezo de ser considerado um ser inferior e bestial. Restava o índio, o “nobre selvagem rousseauniano”.14 13 14 72 Mário de Andrade em Manifesto antropofágico. Revista de Antropofagia, maio de 1928. Para maiores detalhes, vide: Franco, 1976. Mário Matos Identidades Ameríndias O indianismo, como corrente literária, possui fundas raízes fincadas no solo da busca de identidade. Melhor exemplo não há que O Guarani (1857) e Iracema (1865), de José de Alencar, com os quais houve a tupinização do europeu, segundo a expressão de Ivo Barbieri (2003, p. 513-526). Também no romance O vaqueano (1872), de Apolinário Porto Alegre, a figura do indígena aparece idealizada através de Moisés, pertencente à tribo dos quase extintos guaiacanãs. Moisés era mestiço e meio-irmão de Avençal, mas afastou-se do mundo dos brancos, pois sabia que era considerado inferior. Apesar disso, Moisés e seus guerreiros aderiam à guerra dos brancos e seguiram Davi Canabarro, pois como alguns deles, abominavam a escravidão e a ganância. Vale fazer menção a uma faceta praticamente desconhecida não somente dos estudos antropo-literários em nossa terra, mas também da obra de Manoel Antônio de Almeida, o autor de Memórias de um sargento de milícias, publicado como folhetim na secção “A pacotilha”, do jornal carioca Correio Mercantil, em 1853. Pois bem, o nosso conhecido e festejado “Maneco, um brasileiro”, foi um dos autores primeiros a reclamar e reconhecer a autonomia cultural e o caráter artístico da civilização de nossos indígenas, a ponto de criticar severamente o historiador Francisco Adolfo Varnhagen, que pretendia, no Memorial orgânico, elaborar um projeto para o Brasil, consistindo na colonização de todo o território nacional e na mudança da capital do país – com a construção de uma nova cidade especialmente para este fim – na abertura de grandes vias de comunicação entre as regiões e, por fim, na reordenação da força-de-trabalho, com o fim do tráfico negreiro, a substituição da mão-de-obra escrava pelos imigrantes europeus, e incorporação compulsória dos índios à sociedade imperial. Foi este último ponto que proporcionou a reação indignada de Manoel Antônio de Almeida, com seu artigo A civilização dos indígenas, publicado no jornal Correio Mercantil, do Rio de Janeiro, em 13 de dezembro de 1851. Posteriormente, em 12 de fevereiro de 1852, foi reproduzido no Jornal do Comércio, na secção de “Apedidos”, por iniciativa da Sociedade, contra o tráfico de africanos e promotora da colonização e da civilização dos indígenas. Daí em diante, apesar de antropólogos, historiadores e escritores antes dele terem pesquisado e/ou defendido o índio, estabeleceu-se uma linhagem indianista paralela àquela tão conhecida, estrelada por Gonçalves Dias, na poesia, e Alencar na prosa, da qual podemos citar Couto de Magalhães, com O selvagem (1876), Capistrano de Abreu, em Ra-txa-hunikui (gramática, textos e vocabulário Kaniauá), de 1911. Mais recentemente, podemos citar Sepé Tiaraju, romance das Missões Orientais do Rio Uruguay (1975), de Alci Cheyuche; Maíra (1976) e Utopia selvagem (1982), de Darcy Ribeiro; Cem noites tapuias (1978), de Ofélia e Narbal Fontes; Moronguêtá, um Décima de Sepé Tiaraju 73 Decameron indígena (1980), de Manuel Nunes Pereira; Quarup (1967), de Antônio Calado, e ainda, os poemas A grande fala do índio Guarany perdido na História e outras derrotas (1978) e Índios meninos, este último contido em Que país é este? (1980). Concluindo uma conclusão inconclusa Termos ido tão longe para discutir a inserção da tradição indígena na literatura gauchesca, considerada emblematicamente em Simões Lopes Neto, talvez pareça um subterfúgio ou a abertura de um leque inútil e dispersivo. Cremos, porém, que não é possível compreendermos a localização do papel dessa tradição na literatura do Rio Grande do Sul, sem compreendê-la em seu grande contexto, em suas raízes históricas e estéticas. Do que apresentamos até aqui, é possível relacionar com o autor de Contos gauchescos (1912) muitos aspectos que, ao mesmo tempo, são esclarecidos e auxiliam a clarear no confronto com um panorama mais geral que a questão comporta. Verifiquemos alguns: a. De Getúlio a Machado: uma história pelo avesso A inegável influência positivista, muitas vezes expressa em termos de cientificismo ou laicismo em Simões Lopes Neto,15 cuja tradição política chega até Getúlio Vargas, o qual, segundo o jornalista Diogo Mainardi, é o responsável pela “invenção do brasileiro”, a partir do Estado Novo (19371945). As posições políticas e filosóficas de Simões Lopes Neto, dada a sua repercussão como escritor gaúcho por excelência, sobretudo após a “edição acolherada”, da Globo, em 1926, pode nos auxiliar a compreender as fontes extrapolíticas de Vargas, desde seu período estudantil (1903) até quando assumiu a presidência do Rio Grande do Sul, em 1928. b. Que país é este? Quem é o Brasil e quem é o brasileiro? Simões Lopes Neto dedicou-se também ao ofício da história, cuja maior realização foi a Revista do Centenário de Pelotas, que circulou entre 1911 e 1912. Além disso, escreveu A forca em Pelotas (póstumo, 1917) e outros. O autor de Contos gauchescos levava muito a sério seu ofício de historia15 74 Vide “Uma trindade científica”, série de cinco artigos publicados em janeiro de 1913, por Simões Lopes Neto sob o pseudônimo de João do Sul, no jornal A Opinião Pública, de Pelotas, em que discute as idéias de Darwin, Lamarck e Haeckel. In: Moreira, 1983, p. 82-99. Quanto ao laicismo de Simões Lopes Neto, inspirado por seus brios patrióticos e rio-grandenses e instigado talvez por sua fidelidade a Antônio Gomes da Silva, maçom, seu amigo e patrão no Opinião Pública, Simões manteve uma dura polêmica, em defesa de Anita e Garibaldi, contra o jornal católico A Palavra, em novembro de 1913. In: Moreira, 1983, p. 68-69. Mário Matos Identidades Ameríndias dor, tanto assim que consumiu mais de oito anos de sua vida, produzindo um texto didático, que o biógrafo Carlos Diniz chamou de “o verdadeiro Terra gaúcha”,16 que permanece inédito. Livro de título homônimo apareceu publicado postumamente, em 1955, pela Editora Sulina. Seu objetivo era justamente inserir-se nas campanhas de educação cívica, tarefa que já se impusera em 1904-1906, através de suas conferências. Em Terra gaúcha, cujo segundo volume não chegou até nós, há trechos em que é possível depreender seus objetivos de realçar a terra gaúcha dentro da formação da nacionalidade: Alfim soou o toque da victória! – a mesma língua cantou o mesmo hymno...; a mesma bandeira cobriu e beijou túmulos e berços... E des ahi as cicatrizes da lide sellaram o direito histórico do último e tão lavorado florão da coroa portuguesa, no Brazil. Terra gaúcha, raia traçada pelo Destino, foste a última encorporada à nacionalidade; foi-te água lustral o próprio sangue, hóstia consagrada ao coração, litania às juras de fiel e valoroza... Eis porque remembrança do marco final na consolidação do território pátrio, eis por que este livro se chamou assim. Porém elle é nacional; aos brazilenzes é consagrado (Lopes Neto, 1955, p. 14). c. Identidade gaúcha versus identidade brasileira Depois de mapearmos a trilha dessa relação tensa entre a identidade gaúcha e a identidade brasileira, desde seus primórdios, podemos observar a persistência dessa pergunta obsessiva no pensamento nacional e de que modo ela se intensificou durante a Primeira República (1889-1930). Se, de um lado, a estética, nascida com o Romantismo e perpetuada nos pressupostos naturalistas de Romero e outros, visava à invenção ideológicoliterária do Brasil-Nação, por outro, houve a necessidade de representar e acolher as diversas regiões culturais do país, no que o regionalismo foi o veículo fundamental. O indianismo de José de Alencar foi uma vertente romântica, teve uma vida breve, sendo substituído pelo regionalismo, ao qual o romancista também aderiu. Lúcia Miguel Pereira (1973, p. 181) entende que caberia ao regionalismo ser superado por expressões literárias mais universais, não deixando de assinalar, porém, a relação de sucessão entre as duas tendências, apontando, com isso, que a tendência regionalista representa um certo avanço no conhecimento do Brasil. O propósito alencariano, exemplificado no Gaúcho (1870) ou no Sertanejo (1875), será prosseguido e, por assim dizer, na tentativa de autentificação, mesmo dentro da idealização românti16 Para maiores detalhes, vide: Diniz, 2003, p. 124-137. Décima de Sepé Tiaraju 75 ca, perderá grande parte de sua literariedade, até o advento da obra de Simões Lopes Neto, na ânsia da captação do registro folclórico-lingüístico ou antropológico. Será apenas após a proclamação da República que, ainda na trilha da fixação de um passado mítico, mas já com a necessidade de apagar os rastros monárquicos desse passado, que novamente caberá aos artistas, sobretudo aos escritores, a reinvenção do Brasil e do brasileiro, agora em direção ao dístico “ordem e progresso”. Mas o passado, a ordem latifundiária e a herança escravocrata continuariam – como continuam até hoje – nos atordoando com seus vivos fantasmas. Entre os anos de turbulência e repressão da primeira metade da República Velha, começa o Brasil a se olhar como uma nação que precisa industrializar-se e urbanizar-se, ou como então se dizia, civilizar-se. O Brasil, contudo, não é o Rio de Janeiro, a Capital Federal. Existe o Brasil rústico e interiorano. É desse passado incivilizado, mas ainda tão presente, que o real-naturalismo, em sua vertente regionalista, retirará tantas vezes sua força contestatória frente a um Brasil cartão-postal. Porém, o regionalismo, de norte a sul, sobrevive também da estandardização e da idealização de seus tipos locais. Não é à toa que, em seus extremos, o país esteja representado emblematicamente pelos Farrapos (1896), de Oliveira Belo, e Pelo sertão (1898), de Afonso Arinos, e, mais tarde, pelo Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, e Contos gauchescos (1912), de João Simões Lopes Neto. Uma pergunta nos soa imprescindível: De que maneira o regionalismo, alimentado por uma estética esgotada, pode sobreviver, espalhar e modificar-se, posteriormente, constituindo-se em importante elemento na revolução artística de 1922 com todas as suas conseqüências? Para esboçarmos uma resposta a essa questão, carece entendermos o lugar de João Simões Lopes Neto, sua ideologia (que era a dominante em sua época) e sua concepção estética, aliada à compreensão da maneira como o trinômio “bacharelismo, regionalismo e nacionalismo” se articulou, gerando na política nossos liberais conservantistas; na filosofia, nossos positivistas de segunda mão, e, na literatura, os matizes intelectuais que encontraram seu palco de luta e expressão nas escaramuças entre os escritores parnasianos (chamados de “passadistas”) e os modernistas, que iniciavam a redescoberta do Brasil. d. Tupi or not Tupi? De tudo isso, restam-nos perguntas, inúmeras, novas e velhas. De tudo isso, restam-nos poucas certezas. A única, remanescente, representa um vasto caminho a ser trilhado, descobrindo que nenhum Brasil existe, porque todos são possíveis. 76 Mário Matos Identidades Ameríndias Ao decidirmos estudar as identidades indígenas, utilizando para tanto os textos simonianos do Lunar de Sepé, Lendas missioneiras e A Salamanca do Jarau, importou-nos, fundamentalmente, tratar da noção de “nova gente”,17 isto é, a constituição étnica e cultural dos povos do Novo Mundo. A compreensão do papel do índio na cultura gaúcha em muito pode ajudar a desatar os nós entre nós. Nós quem, cara-pálida? Esses nós são as relações de continuidade e ruptura estabelecidas entre a Província e o restante do Brasil, estabelecidas desde Caldre e Fião, do Grupo do Partenon Literário, passando por Simões Lopes Neto e Alcides Maya, até Cyro Martins. É na complexa dialética ente Peri e Blau Nunes que abrimos caminho para examinar o problema da identidade cultural gaúcha e brasileira. De qualquer modo, encontramos na arte simoniana, inclusive naquilo que ele mesmo considerava “arte menor”, uma atividade que ele supunha apenas de folclorista, uma chave para a investigação dos diversos projetos de nação e, conseqüentemente, de identidades múltiplas, ora em conflito, ora concorrendo para uma visão de integração nacional. A escritura gauchesca de Simões Lopes Neto, diferentemente da idealização romântica ou parnasiana, embora existam interpretações em contrário, põe em crise a imagem do gaúcho-herói, tão empobrecida porque estereotipada em intuitos ideológicos, para situá-lo no cerne de uma crise identitária, conforme explanou Franzkonviak Martins (2003, p. 93-104). Se não sabemos ainda quem somos nós, gaúchos, dentro da nação brasileira, e em que termos essas duas identidades culturais se cruzam e se repelem, vale saber que somos filhos não só do Brasil, mas também do Prata, o que nos serve para olharmos para o Brasil – até com olhos de estrangeiro, já que pertencemos à “nação pampeana” – com uma visão mais crítica, e para nós mesmos, como os que não ficaram congelados à beira de um fogo de chão. Como bem disse o escritor e músico Vitor Ramil, em sua conferência de Genebra, Estética do frio: “Somos a confluência dessas três culturas [a platina, a rio-grandense e a brasileira], o encontro de frialdade e tropicalidade. Qual é a base de nossa criação e da nossa identidade se não essa? Não estamos à margem de um centro, mas no centro de uma outra história” (Ramil, 2004, p. 28). 17 Para detalhar este conceito, vide: Bavaresco, 2003, p. 99-110. Décima de Sepé Tiaraju 77 Referências ABRÃO, Bernadete Siqueira. Schelling e a filosofia da identidade. 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O DESAFIO 1 Certa vez fui assistir Um rodeio em Vacaria; Palavra, que não sabia, O quanto eu ia aprender – Cheguei ali pra vender Uns trabalhos que eu fazia... 3 Antes de a festa iniciar, Os piquetes vão chegando E no fundo se acampando; Cravando no chão estacas E armando suas barracas As saudações vão trocando. 2 Na Porteira do Rio Grande, A gauchada atrevida, Desde cedo está reunida, Vinda de cada rincão – E revive em tradição, As raízes da sua vida. 4 Vai entrando gente em penca E o recinto fica cheio; Povo nosso, povo alheio; Muita cor, muita alegria; E, a tirar fotografia, Muito gringo pelo meio. * Esta “Décima de Sepé Tiaraju” foi publicada em primeira edição em 1985 por Martins Livreiro Editor, de Porto Alegre. Edição esgotada há vários anos. 82 Mário Matos Identidades Ameríndias 5 Depois de um grande desfile De todas as comitivas, Com belas flamas nativas, Nas mãos de guapos campeiros, Dispersam-se os cavaleiros, Para as provas decisivas. 10 Num bom cavalo crioulo, Vale da rédea a leveza, Pois pouco serve a beleza, Se a sua boca for dura – Por isso, a raça se apura Nos torneios de destreza. 6 No parque a gente se apinha, O palanque está lotado; A pista é um rincão cercado, Todo de grama nativa, Que é palco e que é cena viva, Do campeador afamado. 11 Enquanto reinam no parque, O gaúcho, o laço, a espora, A juventude, lá fora, Vai mostrando, nos tablados, Com suas vestes e bordados, Nosso fandango de outrora. 7 Baguais corcoveando feio, Com ginetes destemidos; Laços grandes em zunidos, Atrás do novilho forte; Provas de destreza e sorte, Nos lances mais aplaudidos. 12 Desfilam formosas danças, Desde o Anu, a Chimarrita, A Tirana, o Pau-de-Fita, Aos mais fortes sapateadores, A Chula, os Facões ousados, Cada qual a mais bonita. 8 Montar num potro de em pêlo E agüentar a velhaqueada, É a ciência da gineteada; Mas, se o bicho se planchar, O jeito é de pé saltar, Pra não ter perna quebrada. 13 Nem sei o que apreciar mais, Se a força dos dançadores, Com seus facões lutadores, Ou se a graça no voltear, Da linda prenda o seu par, Em movimentos e cores. 9 Pra se alcançar um novilho, Há que ter pingo ligeiro; Mas o laço é traiçoeiro... Pra a armada grande cerrar E o chifre não escapar, O índio tem que ser campeiro! 14 Enfim, quando chega a noite, Cria vida o acampamento, Pois é chegado o momento Dos poetas e cantadores Mostrarem os seus pendores, Sua cultura e sentimento. Mário Matos Identidades Ameríndias 80 15 Vestindo os trajes da terra, A mocidade desfia A alma gaúcha em poesia, Lado a lado co´os peões, E as cordeonas e os violões, Dão fundo à bela porfia. 20 O desafio do Açoriano Pegava no povo inteiro, Mas, das Missões o terreiro, Sentiu pisado o seu poncho: – Pra bater com esse troncho, Só trazendo o Missioneiro!... 16 Desta vez, um desafio Estava sendo esperado, Desde o Rodeio passado, Entre o Chiru Missioneiro E o Açoriano sobranceiro, Sobre um índio questionado. 21 Missioneiro era um chiru – Mestiço lá da fronteira – Conhecia a História inteira Dos Sete Povos Cristãos, E, pra atender seus irmãos, Não disparou da carreira. 17 Contou-me uma gauchinha, Que, no Rodeio anterior, Discursava um orador: Falava de Caiboaté – E um monumento a Sepé, Cobrou do Governador. 22 Estava chegando a hora Do desafio ter início: E, uns por gosto, outros por vício, Todo o mundo estava atento; O fato é que o acampamento Mais parecia um comício. 18 Em aparte, o Açoriano Gritou, que um tal monumento, Não teria fundamento Em nossa História oficial. E um desafio, afinal, Lançou, com atrevimento: 23 Já chegavam os dois tauras, Para a frente do fogão, Quando, pegando o violão, Levantou-se um vacariano E gritou – Falta um vaqueano, Pra fazer a evocação! 19 – Dou prazo e não peço luz, Pra quem saiba cantar bem; Vamos ver quem é que tem Violão pra me encostar, E a História pra cotejar, Até o Rodeio que vem!... 24 Foi então que do piquete, Vindo de São Nicolau, Trouxeram o velho Blau E lhe disseram: – Tropeiro! Na tradição és cancheiro; Vai na frente deste vau! 81 Décima de Sepé Tiaraju 25 O velho Blau pigarreou, Fumaceou bem seu palheiro, Deu uma pensada primeiro E disse: – Me dêem o pinho; Vou ver se marco o caminho, Pra o começo do entrevero! SE BATEM COM FORÇA E FÉ, CANTA A MEMÓRIA DE SEPÉ BLAU EVOCA A MORTE DE SEPÉ 33 Silenciou o velho Blau, Pra dar vez ao desafio E um novo violão se ouviu – Era o Chiru Missioneiro, Que disse: – Bravo, tropeiro, Por isso é que te aprecio!... 26 Um triste acontecimento, Há mais de duzentos anos, Nos traz o vento minuano; Eu lhes conto, neste pinho, Quem foi o grande e o mesquinho, Neste pago americano. 34 Faz mais de duzentos anos, Que Sepé tombou ao chão, Mas eu tive a sensação, Que estava ali do seu lado E o seu sangue derramado, Senti no meu coração!... 27 O sangue tingia o pasto No Cerro do Batovi, A vanguarda guarani, Numa lomba era atacada, Pela força conjugada Do Tratado de Madri. 35 Daquele sangue no pasto, Brotaram miles de flores, Formosas como os amores, Que os nossos ranchos guardaram E que os fogões avivaram, Na boca dos cantadores. 28 Já peleavam os valentes, Há dois anos, por seu chão; E, naquela situação, Se batem com força e fé, Pois seu cacique, Sepé, É mais guapo que um leão!... 36 Inda hoje, pampa afora, Se conserva a sua memória; Tiaraju ficou na história Da tradição missioneira; E logo a América inteira Há de cantar sua glória!... Mário Matos Identidades Ameríndias 82 AÇORIANO CONTESTA A BRASILIDADE DE SEPÉ 37 Chegou a vez do Açoriano, Moço bonito e elegante, Sabido, mas arrogante, Tinha ficado afamado, Por ganhar, em todo o Estado, Um concurso de estudante. 38 A idéia que apresentou, Sobre a Guerra das Missões, Foi baseada nas lições Da História oficializada, De uma turma bem montada Do arraial dos sabichões. 39 Ele ergueu seu violão, Num bordoneio seguro E o acorde saiu tão puro, Que a gente toda gostava; Mas ninguém desconfiava, Que o Açoriano ia ser duro... 42 O território que temos, Do Rio Grande quase inteiro, Seria hoje estrangeiro, Se vencesse a rebelião; Não seria mais um chão Neste solo brasileiro. 43 Glória eu vejo nos heróis Da tradição nacional! Mas, ai do sentimental, Que ao índio segue no engano E esquece do lusitano, Nosso tronco principal. 44 E me responde, se podes, Mas não fujas, Missioneiro: Era Sepé brasileiro, Ou um súdito da Espanha? Eu pago um trago de canha A quem responder primeiro!... MISSIONEIRO DEFENDE EM SEPÉ O GAÚCHO PRIMITIVO 40 – Senhores, peço licença, Pra lhes clarear a memória; Não vejo nenhuma glória, Na morte do tal Sepé; Por mim esse índio até Nem entrava em nossa História!... 45 Depois daquela agachada, O Açoriano se calou, Mas inda repinicou O violão por desacato; A trova dele, de fato, A muitos impressionou. 41 Que herói é esse afinal? Pra mim é um pobre coitado, Pois, combater um Tratado E enfrentar duas potências, Sem pesar as conseqüências, É querer ser derrotado! 46 Não faltaram os aplausos Pra a cantiga do rapaz: Era um pessoal lá de trás, Que estava ali de gaiato, Sem entender bem do fato E achando o moço sagaz. 83 Décima de Sepé Tiaraju 47 Bufavam velhos campeiros, De marca quente co’aquilo, Enredados com o estilo, Sem encontrar argumento, Mas em meio a tudo atento, Missioneiro está tranqüilo. 52 Com cidades e lavouras, Oficinas, gado e estâncias, Tinham tudo em abundância, Pois se uniam no trabalho; O seu único atrapalho Era do branco a ganância. 48 Ele retoma seu pinho, E recomeça a trovar: – Açoriano, ao teu cantar, Estou pronto a responder; Não te apotres que vais ter Muita canha que tomar. 53 Por ironia da História, Os índios eram cristãos, Desejavam dar as mãos Aos brancos da mesma crença, Mas só levavam ofensa Dos desalmados irmãos. 49 O que Sepé combatia No Tratado de Madri, Não era o tratado em si, Do qual nem tinha noção; Era sim, contra a expulsão Do seu povo guarani. 54 Quem escravizava o índio Por todo este continente, Não podia estar contente Vendo florir as Missões, Pois elas davam lições, Mostravam que o índio é gente. 50 Foi a ordem desumana Resolvida no além-mar, Sem nada considerar, Mandando os índios embora, Das suas terras pra fora, Pra delas se apoderar! 55 Isso explica o tal Tratado Entre as potências rivais; Nele, as Cortes coloniais Aplainavam suas questões, Pra dar um fim nas Missões, Que já lhes eram demais... 51 Golpe baixo nas Missões, Onde o índio progredia E a riqueza produzia, Mostrando ao resto do mundo Um viver novo e fecundo, Que ao seu redor não se via! 56 A insurreição guarani Foi legítima defesa, Teve heroísmo e beleza; Só interessa aos potentados Chamar heróis de coitados E ignorar sua grandeza! Mário Matos Identidades Ameríndias 84 57 Quem pode entender teu gesto De ao índio negar direito E de achar que foi perfeito O invasor que o massacrou? “Se foi luso, não errou” – É esse o teu preconceito! 62 Entendo enfim que Sepé Foi súdito de sua gente; E que esse índio valente, Nascido na nossa terra; Contra a injustiça fez guerra, Dando a vida heroicamente. 58 Nosso tronco é lusitano, Mas a raiz é mestiça, Pois se criou na injustiça, Como raça marginal, E do patrão colonial Só vinha o mando e cobiça. 63 Querer negar a importância De Tiaraju e das Missões, É ignorar tradições Da nossa faina campeira, Que tem marca missioneira Do focinho até os garrões. 59 É falso querer cobrar De Sepé “brasilidade”, Pois nesse tempo, em verdade, Brasil ainda não havia – Brasileiro não podia Ter pátria e nem liberdade! 64 Quem o gado introduziu E o laço já manejou; Quem o chiripá criou E as primeiras campereadas, Nas coxilhas orvalhadas De um rodeio praticou? 60 Já te esqueceste, Açoriano, Da morte do Tiradentes E o fim dos Inconfidentes, Como traidores julgados, Pelas Cortes condenados, Por se acharem diferentes? 65 Quem já domava baguais Crioulos de pura raça, Montando com garbo e graça, De laço e bolas nos tentos, De poncho ondulando aos ventos, Nesta campanha lindaça? 61 Pretender marcar Sepé Como súdito espanhol, É como tapar o sol – Só falta que me sustentes Que era luso o Tiradentes, Pra completar o teu rol!... 66 Um primitivo gaúcho, Foi o índio missioneiro E hoje seu sangue altaneiro, Também faz parte do nosso. É por isso que eu não posso Negar que ele é brasileiro... 85 Décima de Sepé Tiaraju 67 Mesmo o povo deste pago, Negar isso poderia, Se o seu nome, Vacaria, Vem dos gados iniciais? Vacaria dos Pinhais – Estância índia de cria!... 70 Um grande aplauso acolheu A trova do missioneiro, Que o Chiru não foi tambeiro, Respondendo a tudo esperto, Cantando de peito aberto, Sem disparar do terreiro!... 68 Ao teu cantar, Açoriano, Eu respondi com o meu; Vamos ver quem foi que deu, A esta gente da campanha, Não o teu trago de canha, Mas algo que a convenceu! 71 Mas a noite era avançada E o pessoal da comissão Interrompeu a função, Pra descanso da peonada, Que, naquela madrugada, Tinha muita obrigação. 69 Se tens os olhos fechados, Ou se pensas com preguiça, Andas longe da justiça. Sepé sempre vivo está. O mesmo já não se dá Com tua verdade postiça! 72 Ficou pra noite seguinte O desafio continuar; E a turma foi se encostar; Cada um no seu achego; Eu fui dormir num pelego, Que puderam me arrumar. SEGUNDA PARTE Recomeça o desafio; Blau evoca a batalha de Caiboaté; Açoriano nega a liderança dos índios; Missioneiro reafirma a liderança dos índios. RECOMEÇA O DESAFIO 73 O sol levantou bonito No pago de Vacaria E o rodeio já seguia, Agora em nova atração: O mouro contra o cristão, Nas cavalhadas corria. Mário Matos Identidades Ameríndias 74 Grupos rivais de ginetes Formam de um oito a laçada; E ao cruzar em disparada, Cotejam com altivez, Uma arma em cada vez: A lança, a pistola e a espada! 86 75 Muitas cenas são corridas, Sem parar pra desafogo: Castelos de cruz e fogo, Esc’ramuças pelo meio, Alcancilhos e torneio, Das argolinhas, o jogo. 80 E o dia correu pesado, Com rodadas de mau jeito, Dessas que põem um sujeito A depender de um irmão, Que lhe dê respiração, Boca a boca e peito a peito! 76 No final tem um assalto, Onde o castelo é tomado; E o rei mouro, derrotado, Já liberto da maldade, Ingressa na cristandade Co’o rei cristão do seu lado... 81 Mesmo assim, a gauchada, O cansaço não sentiu E, quando o dia sumiu, Todo o mundo achou alento, Pra voltar no acampamento E assistir o desafio. 77 Apesar da ingenuidade Desse enredo milenar, A cavalhada é sem par, Quando em ação se apresenta; Delicada ou violenta, Mas bonita de se olhar. 82 Antes da hora marcada, Viu-se chegar o Açoriano, Num poncho de belo pano, Já pronto pra começar; Mas alguém mandou parar E falou para o aragano: 78 No passado, essa peleja, Era um treino ao lutador; E ali muito campeador Deu prova da sua destreza, Antes de usar, na dureza, As armas do peleador. 83 – Açoriano, és preparado E pode correr de alcance; Por isso, aguarda um relance, Pois o leme desta nau Vai voltar ao velho Blau, Pra nos contar outro lance! 79 Nela, o gaúcho e o cavalo Mostram artes e proezas Unindo suas naturezas; Cada prova é um risco quente, Com perigo de acidente, Nos ataques e defesas. 84 A deixa do vacariano Teve logo aprovação: E, ao correr do chimarrão, Todo o fogão se animava, Enquanto o Blau retornava, Pra fazer a evocação. 87 Décima de Sepé Tiaraju BLAU EVOCA A BATALHA DE CAIBOATÉ 85 Amigos – disse o tropeiro – Está bonito este pleito, Mas já que me dão direito De atalhar esta moçada, Eu não refugo a parada. Pego o pinho e abro o peito: 90 Ao chegar em Caiboaté, Avistam na sua frente, A formação imponente Do exército coligado, Que logo forma em quadrado, Para o combate iminente. 86 Geme o sopro do minuano, Geme a corda do violão; Meu cantar brota do chão, Dos campos de Caiboaté; De uma tosca cruz ao pé, A História surge em visão. 91 E as duas forças opostas, Estacam, fazendo praça; Os índios, em ameaça, Cortam inteira a passagem, Com tanta audácia e coragem, Que o inimigo se embaraça. 87 Dia dez de fevereiro, Rumo à batalha final, Vem a força colonial, De duas nações formada E em dois anos preparada, Por Espanha e Portugal. 92 Ficam assim por uns tempos, Fingindo parlamentar; E os índios, ao negacear, Querem ver se o tempo corre, Que a hora em que o dia morre, Será melhor pra atacar. 88 São quase quatro mil homens, Marchando com desafogo; Armas brancas e de fogo, Muitas peças de canhão, Cavalos e munição, Como quem domina o jogo. 93 A tarde já está no meio E Gomes Freire, impaciente, Ante o bloqueio insolente, Manda um próprio lhes dizer, Que, se não querem morrer, Tratem de se abrir urgente. 89 Os guaranis, galopando, Em bons fletes vêm montados, Lanças e arcos nos costados, Na cintura as boleadeiras, E bem na frente, as bandeiras Dos Sete Povos amados! 94 Na frente dos guaranis, Lhes responde Languiru, Firme como um velho Umbu: – É melhor morrer peleando Do que viver rastejando – Nos ensinou Tiaraju! Mário Matos Identidades Ameríndias 88 95 Partiu do lado espanhol, Um tiro, naquele instante; Caramba! No soflagrante, Rebenta o clamor de guerra, E os cascos soam na terra, Como num tambor gigante!... 100 Depois de todo esse estrago, Por fazer mui pouco havia; Quanto corpo ali jazia, Espalhado na coxilha! E o que sobrou da guerrilha, Nem tinha mais montaria... 96 São dois mil a galopear Contra as fortes legiões; Têm fúria seus corações Já lhes mataram Sepé. Mas inda empunham com fé, As lanças contra os canhões!... 101 Nessa hora, os coloniais, Montados e bem armados, Atacam, pelos dois lados; Não dão prova de coragem, Mas de simples bandidagem, Contra os índios derrotados. 97 O céu quase escurecia, Com as flechas que voavam, Mas pouco dano causavam Aos homens encouraçados; Somente a alguns descuidados, Que com a vida pagavam. 102 Parecendo caçadores, Contra os bichos sem defesa, Fazem seu alvo na presa, Por trás de seus mosquetões; Não são valentes dragões – São covardes sem nobreza. 98 Ao romper da artilharia, Começa a carnificina; Não é combate, é chacina, Pois o invasor nem se bate: Aos cavaleiros abate Com sua metralha assassina. 103 Mil e quinhentos morreram Do lado dos guaranis, Num massacre dos mais vis, Por culpa dos potentados, Donos do mundo arvorados, Dentro dos nossos Brasis. 99 Cada obus cai como um raio, Sobre as fileiras cerradas; São relinchos, são rodadas, São bravos rolando a terra, Morrendo o grito de guerra Na garganta destroçada!... 89 Décima de Sepé Tiaraju AÇORIANO NEGA A LIDERANÇA DOS ÍNDIOS 104 A trova do velho Blau, Com emoção foi ouvida E de pé muito aplaudida, Por toda a aquela gauchada; Mas stava sendo esperada Uma resposta atrevida. 108 Nessa guerra das Missões, Aos índios eu dou desconto, Pois quem age como tonto, É porque não tem cabeça, E basta que se conheça, Pra ver quem caiu no conto. 105 A resposta ia ser dada, Pelo açoriano a trovar; Ele estava para estourar Por ser passado pra trás; A verdade é que o rapaz Não gostava de esperar. 109 A Companhia dos padres Moveu campanha ao Tratado, Desde que fora assinado, Entre Espanha e Portugal; E fez de tudo, afinal, Pra que não fosse aplicado. 106 – Aqui stou eu novamente, Caros Senhores da festa, Levando coice na testa, Por não crer em ilusão; Mas rasgo com meu violão, Picada em qualquer floresta! 110 Esses padres jesuítas, Tinham aqui sua potência E abusaram da inocência Dos índios catequizados, Já por eles educados, Na paz ou na violência. 107 Afinal, quem não lamenta, Dos índios a triste sorte, De encontrar assim a morte, Como um rebanho aloucado, Que, cego e desembestado, Investe contra o mais forte?... 111 Por cartas e documentos, Em que a História se respalda, Sabemos que um padre Balda Fica lá na Redução, Dando ordens e instrução, Enquanto o índio se escalda. Mário Matos Identidades Ameríndias 90 112 É triste a gente saber, Que os índios foram usados E à guerra fanatizados, Pelos padres, seus tutores, Que estavam nos bastidores, Ao seu império agarrados. 116 Assim é o nosso gaúcho: Jovial e despretensioso, Esquece o gesto acintoso E até gosta da ironia, Se alguém lhe deu a alegria De se mostrar valoroso. 113 Me dá pena quando vejo Gente que se acha sabida, Fazendo trova comprida E explorando sentimentos, Sem pôr a razão nos tentos, Querer ganhar a corrida. 117 Até o Chiru Missioneiro, Sem perder o bom humor, Foi saudar seu contendor: – Gostei da tua agachada; Monto a petiça suada E vou para o partidor 114 Para esses fracos ginetes, Minha verdade é postiça E o meu pensar tem preguiça, Mas não preciso esporear: Não pode a um puro alcançar, Quem vem montado em petiça! 118 Minha petiça, Açoriano, É sã de pata e de lombo E não é de levar tombo; Se tu não tomas cuidado, Com esse puro estropiado, A petiça te abre um rombo!... MISSIONEIRO REAFIRMA A LIDERANÇA DOS ÍNDIOS 115 As tiradas do Açoriano Tiveram lá o seu efeito; Mas não tinha o mesmo jeito, O eco que ele encontrava; Ninguém mais se impressionava Com o moço tão perfeito. 91 119 Não tiro tua razão, Em achar que me alonguei, Na resposta que te dei; Porém não vou te enganar. Pois pretendo continuar A dizer tudo o que eu sei. 120 Não se afinam as cantigas Dos nossos dois violões, Sobre a História das Missões: Afinal quem fez a guerra? Os nativos desta terra, Ou os padres das Reduções?... Décima de Sepé Tiaraju 121 Tu lamentas o massacre, Dos índios em Caiboaté E ao te ouvir, eu creio até, Que tenhas sinceridade, Mas toda a História, em verdade, Não olhas com boa fé. 126 Por várias cartas e audiências, Pediram ao rei de Espanha Para desfazer a barganha; Pois as Missões, até então, Estavam na proteção Dessa Coroa piranha. 122 Eu digo que essa chacina Só teve um grande culpado – Que a causa foi o Tratado E a guerra a sua conseqüência; Tu dizes que sem consciência, O índio foi sacrificado. 127 Vale a pena recordar, Que foi dessa proteção, Dada em segunda intenção, Que os padres aproveitaram E sua obra iniciaram, Com puro zelo cristão. 123 Vou mostrar, contando os fatos, E clarear que o teu mistério, Da lenda de um tal império, Dominado pelos padres, É história só de comadres, Que não tem base ou critério. 128 Nascidos na velha Europa, Eram de muitas nações, Aqueles guapos varões, Na Companhia irmanados, E nos Colégios treinados, Para a faina das Missões. 124 Essa velha acusação Vem do Marquês de Pombal, Ministro de Portugal, Que da Ordem de Jesus, Mais do que o Diabo da Cruz, Era inimigo mortal. 129 Com sua coragem e fé, Penetrando no sertão, Viram no Índio seu irmão; E foi seu primeiro plano, Fazer dele um ser humano, Antes de o fazer cristão. 125 Dizes bem, que os jesuítas, Desde o começo, buscaram E muito esforço tentaram, Para evitar que o Tratado Viesse a ser aplicado, Pelos reis que o assinaram. 130 Esses homens de Jesus Fizeram obra de paz, Dando mensagem capaz E enfrentando o sacrifício, Morrendo até no suplício, Sempre à frente e nunca atrás. Mário Matos Identidades Ameríndias 92 131 Havia no meio deles Variados profissionais, Dos ofícios principais: Arquitetos e engenheiros, Tecelões e carpinteiros, Artistas e muito mais. 136 República foi chamada; Não era império, afinal, Mas conquista espiritual; E essa conquista tamanha Era escondida da Espanha, No relatório anual. 132 Partindo da estaca zero, Cheios de amor e paciência, Passo a passo, a sua ciência, Foram trocando em miúdos; E o índio aprendeu de tudo, Brilhando na inteligência. 137 Por quase século e meio, Brilhara a luz proibida Dessa alegria escondida; Mas quando a opressão é moda, A liberdade incomoda E tem de ser destruída! 133 Os índios foram artistas, Na música e na escultura, Nas danças e na pintura; Desse tempo luminoso, Há um cabedal precioso, De expressão ingênua e pura. 138 Teve fim a longa farsa Da proteção espanhola E chega a hora da esfola – O lobo diz ao cordeiro, Que saia do seu terreiro, Que a proteção... era esmola! 134 Por ocasião das colheitas, Grandes festas se faziam; Cavalhadas se corriam; E até os atos religiosos Davam sinais grandiosos De um povo com alegria!... 139 O Tratado de Madri. Por três anos retardado, Agora ia ser aplicado; E até um padre desumano, Um tal Luís Altamirano, De cima foi enviado. 135 Foi assim que construíram, Por quase século e meio, Com grande e sólido esteio, A vida das Reduções E o sucesso das Missões, Que o índio apoiava em cheio. 140 Esse padre comissário Do Superior Jesuíta, Tinha uma carta esquisita, Dando-lhe posto eminente, Pra todo este continente, Onde a Ordem tem guarita. 93 Décima de Sepé Tiaraju 141 Os guaranis esperavam, Que os seus mestres veteranos Assumissem de vaqueanos, Com sua ciência batuta, Entrando firmes na luta, Pra dar vitória a seus planos. 146 Foi quando a voz dos caciques, Mais alta se fez ouvir: – Não temos para onde ir! A deixar a nossa terra, Preferimos ir à guerra – Daqui não vamos sair! 142 Se os padres participassem, Com toda sua liderança, Talvez virasse a balança, Pois, unindo as Reduções, Seriam grandes legiões, Equipadas, com pujança. 147 Os padres não convenciam Os índios em reboldosa E, nessa hora custosa, Todo padre é um ser humano; Só o padre Altamirano Teve fuga desonrosa; 143 Eles teriam mostrado, Como outrora em M’bororé, Quando o índio pôde até Resistir ao Bandeirante, E, com tática arrasante, O obrigou a arredar pé!... 148 Quase todos sacerdotes, Na hora da decisão, Seguiram seu coração: Ficaram nas suas capelas, Dando provas das mais belas Do sentimento cristão. 144 Mas os padres das Missões, Pensando na disciplina, Que aceitaram na doutrina, Não entraram nesse plano; É que o tal de Altamirano Já mandava atrás da esquina... 149 Padre Balda, Tadeu Henis, Foram homens de respeito – Diminuí-los não tem jeito; Açoriano, estuda a sério, E não me vem com mistério De documento suspeito!... 145 Contra os próprios sentimentos, Pregando à população, Tentaram a emigração, Começando a procurar, Na outra banda, um lugar, Para a nova instalação. 150 Se não te basta, contudo, O que acabei de contar, Lembrança deves guardar De outro fato conhecido: O inquérito promovido, Após a guerra findar. Mário Matos Identidades Ameríndias 94 151 Foi Don Pedro de Ceballos, Vice-rei do Rio da Prata, Quem fez a devassa exata, Por ordem da sua coroa; E, mesmo que isso te doa, Eu conto o que ela relata. 156 Achas que o índio lutou, Só por ser catequizado E viver fanatizado, Nas rédeas de “agitadores”, Os jesuítas, seus tutores, Que o teriam dominado... 152 A acusação aos jesuítas, O inquérito investigou E as tais “provas” estudou – Mas, por mais que procurasse O que aos padres implicasse, Nada de culpa encontrou! 157 Que me dizes, entretanto, Do guerreiro não cristão, Que lutou na mesma ação, Como o Guênoa e o Minuano, Por sentir o mesmo dano, Que o guarani, seu irmão? 153 Ora, quem senão a Espanha, Estaria interessado Em condenar o acusado Da mais alta traição, Se o julgasse em rebelião Contra o seu trono sagrado?... 158 Esses índios cavaleiros, Não eram catequizados, Não podiam ser levados Por cabeça de terceiros – Eram os mais altaneiros, Dos guerreiros indomados. 154 Mesmo assim, o tal Pombal, Mandando nas duas coroas, Inda fez poucas e boas, Contra os padres das Missões: Deportados em grilhões, Foram judiados, à toa. 159 Sem a ajuda de ninguém, Por dois anos nas guerrilhas, Os centauros das coxilhas Já sabiam sua lição, Pois o amor ao pátrio chão, Descobre suas próprias trilhas!... 155 Tu garantes que o nativo Nada resolveu por si; Tu negas ao guarani, Qualquer personalidade; Sua cabeça e sua vontade, Não têm valor para ti. 160 Com isso eu dou por provado, Que a luta – o duro caminho – O índio escolheu sozinho, Preferindo a resistência, Contra o abuso e a prepotência, Por sentir na carne o espinho! 95 Décima de Sepé Tiaraju 161 Entre todos os caciques, Tiaraju se agigantou, Pois foi ele que ponteou, Naquele primeiro instante, Dos guaranis o levante E que à luta os comandou. 164 Ficou na História gaúcha, Aquele brado altaneiro Do caudilho missioneiro; - Alto! Esta terra tem dono! E o nativo com entono, Fez recuar o estrangeiro. 162 Foi ele quem pôs em fuga E derrubou todo o plano, Do tal padre Altamirano, Esse que era o pau mandado, Para aplicar o Tratado, Contra o índio americano. 165 Foi enfim o Tiaraju, O incansável lutador, Que em dois anos, por amor Da sua gente e da sua terra, Pôs o pampa em pé de guerra, Sem dobrar-se ao invasor. 163 Foi Sepé que, logo após, Noventa léguas andou E com sua Força embargou Os primeiros invasores, Soldados e agrimensores, Que em Santa Tecla encontrou. 166 Sua morte não foi em vão, Foi salto de qualidade, Pois nunca morre em verdade, Quem nos dá tão grande exemplo: Montado ele está, no templo, Dos Heróis da Liberdade!... TERCEIRA PARTE A entrega do prêmio; Blau evoca o encontro de Sepé e Gomes Freire; O destino do prêmio. A ENTREGA DO PRÊMIO 167 Vibra o Parque do Rodeio, No dia da despedida; A gineteada é renhida; E, lá nas arquibancadas, As vistas estão voltadas, Pra uma cena sacudida. Mário Matos Identidades Ameríndias 168 Urrando como um demônio E corcoveando volteado, Este bagual colorado Já derrubou muita gente, Mas parece que o valente, Agora, está bem montado. 96 169 Co´a mão esquerda na crina E a outra mão reboleando, O ginete rodopiando, Não perde aprumo no espaço E as pernas são como um aço, No costilhar se fechando. 174 No matungo de sua rédea, O velho é um quebra largado, Que corta reto ou quebrado E, ao voltear cada baliza, Nem deixa rastro onde pisa, Num galope costurado!... 170 Quando o bicho, que é maleva, Por refugar a parada, Se atira noutra negada E vai à terra de plancha, O gaúcho em pé deslancha, Folheiro, de rédea alçada! 175 Velho Blau não tem cavalo – É de um amigo o rosilho, Que adestrou desde potrilho; Tropeiro de profissão, Ele é a própria tradição, Sempre em cima de um lombilho. 171 Levantam-se aclamações, Para aquele topetudo, Que dominara o clinudo, Com fibra de um veterano; E foi a vez do Açoriano Sair da cancha com tudo!... 176 Chega ao seu fim o rodeio: A tarde morre na pista; Quem stava ali de turista, Vai logo se retirando, Mas o povo, ali ficando, Tem outro programa em vista. 172 Quem também tirou sua lasca, Foi o Chiru Missioneiro, Que, num bragado ligeiro, Cerrou mui lindo o seu laço, Nas aspas de um boi picaço, Depois de um tiro certeiro. 177 Em volta do acampamento, Chega gente de montão, Pra esperar a comissão, Que vai dar o resultado Do desafio encerrado, Outra noite, no fogão. 173 Mas o encanto da platéia Foi nas provas de destreza, Presenciar a ligeireza Do velho Blau vaqueano, Num rosilho rabicano, Estribando com firmeza. 178 No fundo de uma barraca, Há um prêmio que ninguém viu, Guardado pra o desafio; Uns dizem que é coisa fina, Mas o peão lá da cortina, Não conta a ninguém um pio. 97 Décima de Sepé Tiaraju 179 A lua no firmamento, Sua claridade estendia, Sobre o pampa, em Vacaria; E nas nuvens que passavam, Os gaúchos enxergavam, Mil e uma fantasias... 184 – Eu e estes quatro parceiros Tivemos, desde o começo, De avaliar com muito apreço, Este debate tão raro E a todos nós muito caro, Que em verdade não tem preço. 180 – Ali vai, no Pastoreio, O Negrinho e sua Tropilha!... Vejam só que maravilha!... – E aquele gigante nu? É o Sepé Tiaraju, Em combate, na coxilha!... 185 O julgamento foi feito, Pensando em toda a nação; Por isso, nenhum senão Pudemos acrescentar, Ao que já soube julgar O povo deste fogão. 181 Proseando e tomando mate, Rodeando o grande fogão, Esse pessoal folgazão, Fica sério por encanto, E faz um silêncio e tanto, Quando chega a comissão. 186 O Açoriano trovou bem E mostrou ter valentia, Teve até categoria; Mas faltou na sua rima, Aquela força que anima, Chamada democracia. 182 Vem na frente o Vacariano, Que logo passa a anunciar: – Tenho a honra de saudar, Nossos guapos trovadores E peço aos dois contendores Que venham se apresentar! 187 O Missioneiro foi claro, Nos dando todo elemento, Pra entender seu argumento – E sua visão da História, Na trova teve a vitória, Merecendo acatamento!... 183 E diante dos dois torenas, Que se haviam cotejado, Ele apontou ao seu lado Os jurados do fogão, Gaúchos de tradição, Dos quatro cantos do Estado: 188 No meio do barulhão, Da alegria que estourou, Vacariano autorizou, No ouvido do capataz, Pra trazerem lá de trás O prêmio pra quem ganhou. Mário Matos Identidades Ameríndias 98 189 Perceberam no fogão, Alguém, que a pua sentia E lá pra fora saía: Não sabendo levar cano, O orgulhoso do Açoriano Se foi embora à lá cria... 194 Se surpresa teve o povo, Maior teve o Missioneiro, Que até ficou caborteiro, De um prêmio assim cobiçado, Pra quem stava calejado De trovar o tempo inteiro. 190 Ninguém vaiou nem se riu Da atitude do rapaz, Que afinal, sabe o que faz, E o pessoal agora olhava O prêmio que já chegava, Da barraca lá de trás. 195 Mas se o chiru duvidava, Teve ali confirmação, Por parte da comissão, Que tudo no acampamento Constou do regulamento Do centro de tradição. 191 O pingo que ali surgia, Não se tinha visto igual; Que pintura de animal! Gateado de frente aberta, Olho vivo e orelha esperta, Crioulo puro e especial! 196 Missioneiro se acalmou; E, enquanto o povo aplaudiu, Beijou o potro e sorriu, Respirou fundo um pedaço E então, levantando o braço, Que lhe escutassem pediu: 192 Com pilchas de qualidade, Já vinha o flete encilhado: Coberturas de veado E as tranças de couro cru, Do feitio de Canguçu – Tudo forte e delicado!... 197 – Um pingo deste quilate, Parece até, minha gente, Regalo pra Presidente; Mas tenho a satisfação De saber da Comissão, Que é prêmio, não é presente! 193 Num clarão onde ficou Pra o povo poder olhar, O gateado a relinchar, Parece até que sabia, Que tinha a categoria Da sua raça pra mostrar! 198 Se o presente é compromisso, O prêmio dá liberdade; E eu tenho a felicidade De dispor desse direito, Que me deram neste pleito, Para um ato de vontade. 99 Décima de Sepé Tiaraju 199 Amo um cavalo de lei, Por Deus e um patacão! Com este pingo e um violão, Qualquer gaúcho é Monarca; Mas deixo o bicho orelhano E aqui chamo o Blau Vaqueano, Pra que lhe ponha sua marca! 204 Velho Blau stava parado, Vendo tudo acontecer, Pensando no que dizer; E notaram que o tropeiro Tinha na vista um argueiro, Que não dava para esconder... 200 Tendo à frente o velho Blau, Que veio quase empurrado Pelo povo entusiasmado, O chiru, com forte abraço, Fez a entrega do pingaço Para o amigo admirado: 205 Talvez ele recordasse, Maneado pela saudade, Os tempos da mocidade; Ou talvez fosse surpresa Com tanto valor e alteza, Pra um pobre da sua idade... 201 – Aqui está, tropeiro velho, Vê se este pingo te agrada; Eu não sou nenhuma fada: Só agradeço à comissão, Por ter me dado ocasião De fazer esta gauchada. 206 Mas sem se dar por achado Disse sorrindo o tropeiro: – Este Chiru Missioneiro, Me dando assim num pialo Esse mimo de cavalo, Foi mais que um cavalheiro! 202 Tu com o teu guapo cantar Já provaste merecer; Mas terei grande prazer, Se esta noite em despedida, Deres outra sacudida Na História, com teu poder!... 207 Não me abro por enquanto E agradeço o seu presente – Também não sou presidente; Por isso, findando a trova, Pretendo lhes dar a prova, Do que eu penso realmente. 203 Conta pra nós, índio velho, Com teu violão que não erra, Mais passagens dessa guerra, No tal passo do Jacu, Que mostrem o Tiaraju Em ação, por esta terra!... 208 E o velho Blau Vaqueano, Depois do trago espumoso, De um mate quente e gostoso, Passa adiante o chimarrão E já dedilha o violão, No seu trinado harmonioso: Mário Matos Identidades Ameríndias 100 BLAU EVOCA O ENCONTRO DE SEPÉ E GOMES FREIRE 209 – A História de nosso pago, Torno a cantar neste pinho; Cantei a rosa e o espinho, Cantei a morte que dói; Canto agora, vivo, o Herói, Nas trilhas do seu caminho. 214 Perdendo vários soldados Flechados pelos nativos, Os coloniais vingativos Usavam a artilharia, Mas o índio já respondia Com seus canhões primitivos. 210 Subindo pelo Jacuí, Vem a força portuguesa, Que, vencendo a correnteza, Quer atingir as Missões; E, no Rio Pardo, os dragões Encravam sua fortaleza. 215 Inventados nas Missões, Pra enfrentar os bandeirantes, Eram trabucos gigantes, Feitos de grosso bambu, Forrados de couro cru E arcos de ferro abraçantes. 211 No comando lusitano, Vem um chefe de nomeada Da colônia encastelada Nas sedes do Litoral: – É o Vice-Rei, General, O Gomes Freire de Andrada. 216 Por meio dos oficiais, Gomes Freire toma ciência Da bravura e da insolência Dos guaranis em ação Tendo à frente um Capitão De invulgar inteligente. 212 Para lutar contra o Forte, Se agrupam os guaranis Do Povo de São Luís, Que vai à guerra com ânsia, Pois o Rio Pardo é estância E agora está por um triz. 217 Eles tomaram do Forte, Numa audaciosa sortida, A cavalhada reunida, Que pastava num rincão, Deixando ali pelo chão, A ronda toda estendida. 213 A luta fica parelha Quanto a maior Redução – São Miguel – entra em ação: O índio cresce em potência E ataca com mais freqüência A patrulha e o pelotão. 218 As buscas que foram feitas Não tiveram resultado; Mas vendo o esforço baldado, O comando português Jogou sujo dessa vez, Pra ter o índio enrascado. 101 Décima de Sepé Tiaraju 219 Propondo uma Conferência, É hasteada bandeira branca – Dos índios, lá na barranca, É chamado o Capitão – E o Forte abre seu portão De covil da Salamanca. 224 Queriam os portugueses Que o índio, dessa distância, Explicasse a extravagância, De gente valer cavalo; E o cacique, sem abalo, Zomba dessa ignorância 220 Pela honra militar, Que julgava ser sagrada E nunca desrespeitada, O chefe dos missioneiros, Com cinqüenta companheiros, Entra... e cai nessa cilada. 225 – Sem passar pra o outro lado E com eles conversar, Como posso negociar? O intérprete traduziu E o pelotão todo riu: – O que ele quer é escapar!... 221 Diante dos índios cativos Já destinados à morte Gomes Freire crê na sorte E resolve outra cartada: – Vamos trocar esta indiada, Pelos cavalos do Forte!... 226 Indiferente ao motejo, Sorriu o índio altaneiro E retruca em tom brejeiro – Se eu quiser com eles ir, Ninguém pode me impedir, Mesmo estando em cativeiro! 222 Um pelotão bem armado, De manhã cedo partiu; E, ao chegar um largo rio, Vai dali fazer uma proposta Aos índios da banda oposta, Que lá estão em desafio. 223 Pra fazer a mediação, Na barraca é colocado O cacique, nu, montado Sem esporas e de em pêlo, Para servir de sinuelo, Naquele aparte encrencado. Mário Matos Identidades Ameríndias 227 Ante a barranca do rio Vendo o leito largo e fundo, O lusitano jacundo Desata na gargalhada: – Só pode ser patacoada, Coisa de índio vagabundo! 228 – Diz então, seu fanfarrão, Fugir, como podes tu? – Assim! – diz o índio nu. E fincando o calcanhar, Com a rédea a fustigar, Já se escapa a Tiaraju!... 102 229 Vai pela beira do rio: E atrás dele, um alarido – Grito, galope, estampido, As balas passando perto, Mas chega a um mato coberto, Desmonta e corre escondido... 234 É que Sepé já voltou E, com seu tino e clareza, O índio luta com firmeza Emboscando aos espanhóis Que ficam em maus lençóis E recuam pra a defesa. 230 Pagam caro os portugueses Seu orgulhoso desdém, De achar que o índio é ninguém; Sepé lhes leva vantagem, Pois notara na viagem, Que o matungo andava bem! 235 Mas Gomes Freire tem pressa E não pode esperar mais: Já trouxe muitos casais, Dos Açores, pra ocupar As terras que quer tomar Desses índios infernais. 231 No mato não tem mais jeito De acharem o fugitivo; Ele sumiu nesse crivo E lá, num ponto afastado, Atravessa o rio a nado E volta aos seus, são e vivo!... 236 Ele corre ao litoral, Consegue reforço urgente E volta de ânimo quente: Mil e seiscentos soldados, No Rio pardo são treinados, Para a tal Segunda Frente. 232 Foi esta a primeira vez, Que o soberbo general E vice-rei colonial, Contra a sorte blasfemou; E contra o índio jurou Dar combate até o final. 237 É uma força bem armada – Muitos canhões e artilheiros, Esquadrão de fuzileiros, Dragões de Cavalaria, Escravos, Infantaria, E um corpo de Granadeiros. 233 Gomes Freire quer juntar As forças com seu aliado, O Espanhol lá do outro lado, Pra espatifar as Missões, Entre as duas legiões E esse plano está atrasado. 238 Já pela entrada do inverno, O exército deixa o Forte, Avançando em rumo Norte, Pelas margens do Jacuí: Quer levar o Guarani Pra uma cilada de morte... 103 Décima de Sepé Tiaraju 239 Muitas léguas são andadas E o índio não dá sossego: De noite, é como morcego Avança sem fazer bulha E vai sangrando a patrulha – Quem dorme, arrisca o pelego... 244 Tudo pronto pra o massacre E a conquista das Missões; Só falta que os batalhões, Que Adonaegui comanda, Surjam lá da outra banda, Pra falarem os canhões... 240 A chuvarada caindo, Torna mais dura a jornada, Pois só tem várzea alagada; E crescem as investidas Das indiadas destemidas, Sobre a tropa desgastada. 245 Mas o tal de Adonaegui – O general espanhol – Demora a vir como o Sol – Que os guaranis de Sepé Não afrouxam de seu pé: E ele anda num caracol... 241 Bem acima do Rio Pardo, O rio Jacuí forma um passo, Que dá vau sem embaraço. Chegando nesse lugar, Faz Gomes Freire parar Seu exército em rechaço. 246 Cá no Jacuí, Gomes Freire, Se vê de novo em rodeio, Com esse inverno tão feio: A enchente de São Miguel, Vem com chuvas de tropel E o Passo se torna cheio. 242 Examinando o remanso, Ele fica entusiasmado, Achando o Passo ajeitado, Pra a Tropa esperar o sol E a chegada do Espanhol, No encontro já combinado. 247 Acaba todo o conforto No acampamento inundado; Tudo ali fica encrencado, Desde as armas à comida; Muita pólvora perdida, Muito animal afogado. 243 Se acampam os portugueses, Dos dois lados do regato; Por ali tem muito mato E eles arranjam madeiras: Seus ranchos cobrem as beiras Do Passo, raso e pacato. 248 A disciplina da tropa No calcanhar vai caindo; Tem soldado até fugindo, Mas é morte a deserção: O índio não tem compaixão, Daquele que está invadindo. Mário Matos Identidades Ameríndias 104 249 Foi esta a segunda vez, Que o vice-rei orgulhoso, Mandou pra os ares raivoso, Maldições, ao índio e ao santo, Por terem furado tanto Seu plano tão ambicioso. 254 A resposta do cacique, Não se faz muito esperar: Sepé manda recusar, Pois ele tem a experiência De uma certa conferência, Que o luso não soube honrar. 250 Mas o nobre português, Ao se ver sitiado assim, Não desiste do seu fim E imagina outra manobra: Esconde a pele da cobra E veste a do graxaim. 255 Mas Gomes Freire, insistindo, Reforça suas garantias E encarece as regalias Que pretende oferecer, Buscando se engrandecer, Co’um montão de fidalguias. 251 Resolve jogar paciência, O ardiloso general; E escreve pra o litoral, A Adonaegui avisando, Que ele ainda está contando Com a ofensiva geral... 256 Esta nova conferência, Ele não pensa em trair; O que ele quer é iludir, Impressionar na aparência E ostentar uma potência, Pra mandar e não pedir. 252 A força do Tiaraju, Ele sente a cada dia; E ganhar tempo queria: – O Índio tem de ser dobrado, Antes de eu ser derrotado, No meio desta água fria... 257 A notícia se espalhando, Leva o nativo a sonhar: – Quem sabe ele vai mudar?... Pode ser que venha a paz, Se o invasor voltar atrás E as nossas terras deixar... 253 Por isso manda um convite, Por dois índios prisioneiros, Que solta de mensageiros, Pra que o chefe da guerrilha, Sem perigo de armadilha; Apareça em seu terreiro. 258 Por sua gente, o Tiaraju, Ao convite enfim topou: Marcado, o encontro ficou; E Gomes Freire contente, Começa a cuidar do ambiente, Pra a cena que planejou. 105 Décima de Sepé Tiaraju 259 Num descampado da margem, Onde vai longe a visão, Põe-se um tapete no chão, Estendido como esteira; E no centro, uma cadeira, Pra o general ter função. 264 Na distância já medida De quatro quadras tapadas, Se apartam daquela indiada, Dez cavaleiros valentes; E o Tiaraju bem na frente, Vem pronto pra a campereada... 260 De pé, nos cantos do quarto, Cabos lusos bem armados, Ficam de guarda, estaqueados; E, à distância do tapete, Montam dragões, num piquete, De bigodões bem criados. 265 Não tem luxo a vestimenta Do cacique missioneiro: É igual à do companheiro; Mas nessa simplicidade, Transparece a majestade Do seu porte sobranceiro. 261 Pra completar o cenário, Por detrás dos tais dragões, Enfileiram-se uns canhões E dois soldados no meio, Como pra fazer receio Da comédia e dos bufões. 266 Olhando de seu tapete, Gomes Freire está receoso, Daquele grupo animoso; E vendo o brilho das lanças, Teme pela segurança De seu trono tão pomposo. 262 Vestido com imponência, Toma assento o general, Como se fosse o Cabral, A chegar nestes Brasis – E aguardando os guaranis, Adota um ar imperial. 267 Manda o intérprete correndo, No encontro do visitante, Com a ordem terminante De largarem o armamento: Não conta co’o atrevimento Daquele índio arrogante: 263 Eis que os índios aparecem, Lá de longe, entropilhados: São muitos e bem montados; Com suas lanças rebrilhando, Eles vêm se aproximando, Até que ficam parados. 268 – Por que largar nossas armas, Se o que eu vejo lá na frente É o general e a sua gente, Com armas de toda a laia? – E atropelando na raia, Eles chegam juntamente. Mário Matos Identidades Ameríndias 106 269 Esbarram frente ao tapete; E apenas um cumprimento: – Viva o Santo Sacramento! Parte do Índio cristão, Que com jeito secarrão, Na prosa não faz aumento. 274 Conservando a majestade, Gomes Freire inda faz pouco: – Pode dizer a esse louco, Que ele é um bárbaro total. – Mais bárbaro é o general, Retruca o índio de soco. 270 Gomes Freire ouvindo isso, Já respira aliviado, Mas inda está contrariado, Tendo à frente esse caudilho, Que não desce do lombilho, Enquanto ele está sentado. 275 Depois dessa introdução, Que não foi nada cortês, Fala o índio ao português, No assunto que o traz ali, Mostrando que o guarani Joga limpo na altivez: 271 O intérprete, já cancheiro, No ofício de cortejar, Convida o índio a apear, A fim de beijar a mão Do general sentadão; E a resposta é de renguear: 276 – General, vim te dizer, Que o Espanhol voltou em paz; Se a tua tropa volta atrás, Terá mesmo tratamento, Levanta esse acampamento, Que isso é o melhor que tu faz!... 272 – A mão do teu general, Beijar a troco de quê?... Acaso o teu chefe crê, Que eu estou na terra dele? Na minha terra está ele – E ele é cego se não vê!... 277 Mas Freire não acredita, Que Adonaegui voltou: Acha que o Índio enganou; A paz não quer negociar, Por isso volta a ameaçar: – Pra os Sete Povos eu vou!... 273 E diz ao teu general, Que não apeio pro chão, Nem vou lhe beijar a mão!... Prá o vice-rei habituado A ser em tudo acatado. Aquilo era um bofetão... 278 E queima campo em grandeza: – Tenho soldados mui bravos, Canhões, cavalos e escravos; Nada pode me deter! Quem teima em me combater, Vai sentir meu desagravo! 107 Décima de Sepé Tiaraju 279 – Se tu tens bravos soldados, Tenho valentes também; Mas então me explica bem, Por que é que aqui me chamaste E tanto tempo gastaste, Esperando a quem não vem?... 284 – Sai daqui, escravo tonto, Leva a caixa a teu patrão, Que eu não tenho precisão Do seu tabaco encardido; Tenho melhor e sortido Lá na minha Redução!... 280 Ante a agachada do índio, O general se amoitou E logo de tom mudou, Falando em promessas quentes E oferecendo presentes, Que o cacique recusou. 285 – “Ya há” – diz aos companheiros, Ou seja – Vamos daqui! E o piquete guarani, Cerrando espora às montadas, Deixa atrás suas pegadas, Sem mais que fazer ali... 281 E o fidalgo português, Se vendo sem argumento, Pega naquele momento Uma caixa bem lavrada; Tira dali uma pitada E leva ao nariz sedento. 286 Dias depois desse encontro, Desce a várzea um cavaleiro É um chasque muito ligeiro, Que chega no acampamento, Pra entregar um documento E se escapar do aguaceiro... 282 É rapé, coisa mui fina, Da nobreza colonial, Que o educado general, Pelo intérprete, oferece, Pra ver se Índio agradece Aquela honra especial. 287 O general abre a carta, Que Adonaegui lhe manda, Avisando da outra banda, Que a Buenos Aires voltou, Porque o índio não deixou Ele entrar na sarabanda... 283 Mas sai-lhe pela culatra Esse tiro macanudo, Pois o Índio topetudo, Já desconfiado daquilo, Não liga a nenhum estilo E responde carrancudo: 288 A carta ainda aconselha A Gomes Freire recuar E ao Rio Pardo regressar: A idéia do castelhano, É fazerem novo plano, Já que este vai fracassar... Mário Matos Identidades Ameríndias 108 289 E agora em terceira vez, Se maldiz o comandante: – A um índio tão petulante, Errei em não ter matado; E esse Espanhol, meu aliado, Não passa de um vacilante!... 294 Tiaraju ficou visado, Pra aqueles donos da vida, Com a lição aprendida: – É preciso ser cortada A cabeça dessa indiada, Pra se ganhar a partida... 290 Isolado e sem recursos, No alagado acampamento, Tem o exército em tormento, Pois já avança o guarani E ataca, daqui e dali, Cada vez mais violento. 295 Gomes Freire e os espanhóis, Como contei no começo, Pagaram todo esse preço, Mas mataram o Sepé; E logo, no Caiboaté, Massacraram, sem tropeço. 291 É assim que o Gomes Freire, O imponente português, Chega na hora e na vez De ir ao índio em sacrifício E lhe pedir armistício, Com toda a desfaçatez. 296 Depois, a grande coluna, Invade em triunfo as Missões, Mas ardem as Reduções: Ao perder as liberdades, O índio queima as suas cidades, Pra receber os ladrões. 292 Da aventura no Jacuí, O general sai perfeito, Embora de água no peito; Tira partido, o sagaz: Recolhe sua tropa em paz, Que o índio só quer respeito... 297 Gomes Freire, em Portugal, Recebe muita honraria E o próprio Rei o agracia, Com a comenda mui bela, De conde de Bobadela, Pela sua valentia. 293 O nativo não percebe, Que essa luta é sem quartel E que o estrangeiro cruel, Às terras não renuncia – Prepara com teimosia, O bote da cascavel... 298 Até um valente se achica, Quando sente um povo em luta E Freire ao fim da disputa, Temeu do índio a vingança E perdeu até a confiança, De saborear a sua fruta. 109 Décima de Sepé Tiaraju 299 Alegando não ter paz, Para povoar as Missões, Não ocupa as Reduções – Entrega tudo pra Espanha, Leva a pior na barganha, Joga fora as condições. 304 Um gaúcho lá do campo, Que desertou do Rio Pardo, Pra os portugueses, um fardo, É quem comanda a campanha; E nessa luta o acompanha, O miliciano bastardo. 300 Quando a sede do Rio Grande Cai, na mão do castelhano, Freire vê perdido plano, Que montara, no seu posto: E morre, só de desgosto, O militar lusitano... 305 Esse punhado de guascas, Que não passa de uns oitenta, Com os índios logo aumenta, Contra o espanhol nas Missões; E, em bravas operações, O seu domínio arrebenta. 301 Mas já sopram novos ventos, Neste império colonial; E o gaúcho nacional Já cavalga à luz do sol, Derrotando ao espanhol, Sem esperar Portugal. 306 Do finado Gomes Freire, Anos depois da matança, Teve o índio sua vingança: Sem render-se ao estrangeiro, Só se une ao brasileiro, Sendo o fiel da balança!... 302 Vão vencer cinqüenta anos Do massacre em Caiboaté E da morte do Sepé: Nas missões, o castelhano, Aquartelado, é um tirano Em que o índio não tem fé. 307 Foi essa aliança firme, Entre o índio primitivo E o branco, já bem nativo, Que plantou, neste Rio Grande, A Tradição, que se expande, Tendo a raiz por motivo. 303 Já sentem os brasileiros Seu destino de Nação: Tomam as rédeas na mão, Pra ocupar o território; E fazem preparatório, Vendo chegada a ocasião. 308 E é por isso que este povo Jamais esquece o Sepé: O índio está na sua fé; E o Rio Grande comovido, Cantará sempre atrevido, Aos bravos de Caiboaté!... Mário Matos Identidades Ameríndias 110 O DESTINO DO PRÊMIO 309 O calor da aclamação Esquentou a noite fria, Do fogão, em Vacaria: – Viva Sepé Tiaraju!... Esse Blau tem caracu!... Eram brados que se ouvia. 314 – Eu lhes tinha prometido Revelar, depois da trova, Do meu pensar, uma prova; E é deste lindo presente, Se o Missioneiro consente, Que eu abro, em proposta nova: 310 O carinho da gauchada Cercava o Blau trovador, Que, com alma e com vigor, Na sua simplicidade, Semeava claridade, Na história, com tanto amor. 315 Este pingo que aqui está, Pra quem tenha criação, É um valioso garanhão: É só um grito a gente dar, Pra um dinheirão alcançar, Na primeira exposição... 311 Insistia a mocidade, Que no pingo ele montasse: E o velho deu-lhe um repasse, Mostrando, com galhardia, Que o gateado obedecia, Em tudo o que convidasse. 316 A proposta do Vaqueano Era fora do comum; E até correu um zum-zum: – Que será que ele pretende? Um pingo assim não se vende, Por prata ou ouro nenhum!... 312 Descendo, Blau confirmou, Que o potro era macanudo: – É de lei, este colhudo; De patas, tem movimento; E de rédea é um pensamento, Quem o domou já fez tudo!... 317 Mas velho Blau insistiu, Que ouvissem seu argumento: – O uso que eu apresento, Pra o valor que se alcançar, É pra a gente colocar, Em favor de um monumento... 313 Sem conter seu entusiasmo, O velho, conhecedor, Desfilava, com amor, As qualidades do flete; Mas ele estava num brete, Co’o coração em penhor!... 318 É esse o fim que eu proponho: Um monumento a Sepé E aos índios de Caiboaté, Que tem sido tão falado, Mas nunca foi realizado E é tempo de pôr em pé! 111 Décima de Sepé Tiaraju 319 Vamos gravar nossa História Sem cartilhas de encomenda, Que ninguém vai botar venda No povo, pra que não pense; Não é cego o rio-grandense, Tem Sepé na sua legenda! 321 Do rodeio já encerrado, Com sol alto, no outro dia, De mala e cuia eu saía; Vi, abanando pro meu lado, Um piquete entropilhado, Que alegre se despedia. 320 Com a mais pura amizade, Eu te peço, Missioneiro: Perdoa, se fui grosseiro, Em dispor do teu presente; É pra dar a um Presidente: Sepé, Gaúcho Primeiro!... 322 Poucos trabalhos vendi E isso pouco me rendeu; Mas por pouco, até que deu Pra viajar de volta ao pago; E, das lembranças que eu trago, Minha vida se aqueceu... 01/03/1982 Mário Matos Identidades Ameríndias 112 Apêndices I – Bibliografia ALBUQUERQUE, Manuel Maurício de. Conde de Bobadela. In: Enciclopédia Mirador Internacional, São Paulo, 1974, p. 1432. BERNARDI, Mansueto. O primeiro caudilho rio-grandense. Fisionomia do herói missioneiro Sepé Tiaraju. Porto Alegre: Globo, 1957. Reedição Sulina, Porto Alegre, 1981. FORTES, General Borges. Cristóvão Pereira de Abreu. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1951, p. 131-161. LUGON, Clovis. A república comunista cristã dos guaranis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. PINHEIRO, José Feliciano Fernandes. Anais da Província de São Pedro. Petrópolis: Vozes, 1978. PORTO, Aurélio. História das Missões Orientais do Uruguai. Porto Alegre: Livraria Selbach, 1954. SILVEIRA, Hemetério José Velloso da. As Missões Orientais e seus antigos domínios. Porto Alegre: Livraria Universal, 1909. Cf. fac-similar, Porto Alegre: ERUS, 1979. VELLINHO, Moisés. Capitania Del Rey. Porto Alegre: Globo, 1970. II – Glossário de termos regionais ou históricos Observação – A bibliografia consultada para os termos gaúchos deste glossário consta no Vocabulário sul-riograndense. Porto Alegre: Globo, 1964; a abreviação s.f., empregada em vários verbetes, quer dizer sentido figurado. A la cria – ao Deus dará, à aventura. Achicar-se – intimidar-se, encolher-se, apequenar-se. Açoriano – personagem que encarna a descendência da corrente migratória dos casais açorianos, uma das que povoaram o Rio Grande do Sul. Agachada – s.f. – façanha, proeza, dito chistoso ou extravagante. Décima de Sepé Tiaraju 113 Apotrar-se – tomar manhas e jeito de potro – s.f. – engrossar. Aragano – irrequieto, afoito, indisciplinado. Armada – roda quase sempre grande que se faz com o laço quando se vai atirálo, ou dar o “tiro de laço”. Bagual – animal cavalar xucro ou recém-pegado. Bolas, boleadeiras – arma ou instrumento de apreensão, formado de três esferas de pedras ou ferro, envolvidas em couro cru e que se ligam entre si por correias do mesmo material, trançado. Bragado – pelagem de cavalo, vermelho com manchas brancas bastante desenvolvidas, pela barriga. Geralmente tem a frente da cabeça, mãos e patas brancas. Brete – corredor estreito de contenção de animais. Tronco. Caborteiro – cavalo arisco, que é capaz de velhaquear, corcovear – s.f. – desconfiado, propenso a dar bronca. Campereada – o mesmo que campeireada. Trabalho de campo com o gado – s.f. – desafio à coragem, habilidade ou destreza. Cancheiro – s.f. – experiente, acostumado com a cancha. Canha – o mesmo que cachaça, aguardente de cana. Chasque – antigo mensageiro, correio, estafeta. Chimarrão – mate-amargo, bebida das áreas gauchescas sul-americanas. Chiripá – veste rústica, antecessora da bombacha, espécie de fralda que fazia as vezes de calça, vestido sobre a ceroula. O pesquisador uruguaio Fernando O. Assunção (Pilchas Criollas, Ed. Comissão Sesquicentenário de 1825-1976) atribui e fundamenta a origem do chiripá, às Missões Jesuíticas dos Sete Povos. Chiru – tipo índio ou indiático. É vocábulo de origem guarani, que significa “meu companheiro” (cheyru). O diminutivo é chiruzinho ou piá. Clinudo – diz-se do cavalo, geralmente bagual, que tem crinas longas, sugerindo ser agreste e bravo. Dragão – soldado da antiga cavalaria colonial. Entono – arrogância, atitude de desafio. Entrevero – luta corpo a corpo – s.f. – mistura, confronto de resultado imprevisível. Estância – área ou estabelecimento de criação de gado. As estâncias missioneiras tinham como sede, rancho, curral e capela, abrangendo áreas que hoje são vários municípios gaúchos. Estropiado – diz-se do animal que está sentido dos cascos, devido à aspereza do terreno ou longa marcha. Fandango – baile antigo, compreendendo um elenco de danças, hoje do folclore gauchesco, inclusive das áreas do tropeirismo. Flete – cavalo em geral, ou cavalo bonito e bom. Fogão – grande fogo que se ateia ao chão e onde se reúnem os tropeiros e gaúchos para se aquecer e assar os seus churrascos. É o centro da reunião dos campeiros e gaúchos. Folheiro – elegante, airoso, garboso. 114 Mário Matos Identidades Ameríndias Gateado – pelagem típica do cavalo crioulo (bege). Gaúcho do Campo – índio do campo sem domicílio certo. Muitos aventureiros paulistas e desertores do Regimento de Dragões de Rio Pardo aderiram a esse tipo, devido à preia do gado alçado, tornando-se gaúchos do campo (Século XVIII). Ginete – cavaleiro. Qualidade de montar bem. Gineteada – ato de montar animal corcoveando. Graxaim – o mesmo que guaraxaim. Variedade de raposa ou lobo dos pampas, daninho roedor de cordas de couro cru e predador de aves domésticas. Simboliza a astúcia. Também conhecido como sorro. Gringo – o estrangeiro, menos o português e o hispano-americano. Guapo – animoso, firme e otimista. Disposto. Guasca – cordas ou tranças de couro cru – s.f. – gaúcho, forte. Índio – no Rio Grande este termo não se limita ao aborígine em particular, mas também ao peão gaúcho em geral. Laço – conhecido instrumento de apreensão do gado, feito de trança de couro cru e uma argola de metal. Lombilho – peça principal dos arreios ou apeiros sul-americanos. Luz – espaço de terreno que um dos parelheiros, numa corrida, leva de dianteira ao outro. Tirar luz, é tomar a dianteira ao competidor – s.f. – pedir luz, é pedir vantagem inicial. Macanudo – bom, superior, excelente, de primeira. Maleva – mau, perverso. Diz-se do cavalo de mau instinto ou dado a corcovear de mau jeito. Marca quente – o novilho recém-marcado investe às cegas – s.f. – estar de marca quente é estar bravo. Matungo – embora designando inicialmente o cavalo velho, gasto, imprestável, o termo tendeu a estender-se a todo o cavalo manso e de bom préstimo. Miles – milhares. Monarca – é sinônimo do gaúcho em sua mais alta significação, pois refere-se exclusivamente ao que monta com garbo e elegância em montaria à altura do montador. Orelhano – diz-se do animal que ainda não foi assinalado e tampouco marcado – s.f. – deixar orelhano um animal é não tomar posse do mesmo. Pago – o mesmo que lar, lugar onde a gente mora. Pampa – designação dada às campinas do Rio Grande do Sul. É também usado em designação de pelagem do gado. Partidor – ponto de partida de uma raia de carreiras. Em sentido figurado é começo ou recomeço. Peleador – diz-se daquele que participa de peleias, ou combates, ou brigas. Pelejador. Pelear – lutar, combater. Pelego – pele de carneiro, quadrada, com lã. Peça dos arreios – s.f. – arriscar o pelego significa correr perigo de vida, arriscar a pele. Petiça – fêmea do petiço, cavalo de pernas curtas e retaco. Décima de Sepé Tiaraju 115 Pialo – o mesmo que pealo. Ato de arremessar o laço e assim prender o animal pelas patas anteriores – s.f. – “num pialo” significa de um modo que prende, que não dá chance de reagir. Picaço – cavalo escuro com patas e testa brancas. Pilchas – arreios ou vestimentas típicas do gaúcho, bem como os seus utensílios e armas. Pingo – diz-se de um cavalo bom, vistoso, bonito. Piquete – grupo de cavaleiros nas guerras e revoluções gaúchas, também usado, atualmente, para os centros de tradição, situados em zonas rurais. Mais comumente, o termo é empregado no sentido de pequeno potreiro de serviço ou animal preso para serviço. Pisar o poncho – o poncho é o tradicional manto dos gaúchos, também usado em quase toda a América Latina – s.f. – pisar o poncho é desafiar. Planchar-se – cair de lado. Escorregar o cavalo com as quatro patas, caindo de lado. Prenda – jóia, relíquia – s.f. – aplicado à moça bonita. Puro – cavalo de puro sangue, corredor. Quadras tapadas – a quadra é medida antiga, medindo 132 metros. Quatro quadras tapadas, quer dizer, em números redondos, sem frações. Equivale a 528 metros lineares, no exemplo dado. Quebra-Largado – homem valente, pronto para tudo, atirado, audaz. Antigamente era sinônimo de brigador, turbulento. Queimar campo – em sentido figurado, significa exagerar, mentir. Quero-Quero – pequena ave pernalta, cujo nome vem do som que emite ao cantar. O gaúcho denomina o quero-quero de sentinela dos pampas, pois costuma denunciar a chegada de visitantes, com seu vôo, e com seus gritos. Rabicano – cavalo que “tem cãs no rabo”: os pêlos brancos da cauda são entremeados com pêlos da cor base do corpo. Reboldosa – alvoroço, desordem. Refugar – esquivar, fugir. Refugar parada é, depois de feita a aposta, numa carreira, recuar da mesma. Em sentido figurado, é esquivar-se de um desafio, intimidar-se. Regalo – o mesmo que presente. Regalar é dar de presente, oferecer. Renguear – claudicar, coxear, tornar-se rengo. Geada “de renguear cusco” é aquela que, num exagero de expressão, torna o cusco, ou cão, “rengo”, ou coxo, pelo frio cortante. Em sentido figurado, significa acachapar. Rincão – porção de campo cercada de mato. Local protegido. Também é sinônimo de Pago. Rodada – queda para a frente, acidental, quando o cavalo galopa, ou mesmo quando trota, montado ou não. Rodeio – lugar de uma estância onde se reúne periodicamente o gado para lidar com ele. Ali ocorrem as façanhas diversas da lida. Em sentido figurado, “dar rodeio, se ver num rodeio” – é provocar ou ver-se às voltas com problemas inesperados ou espetaculares. 116 Mário Matos Identidades Ameríndias Rosilho – diz-se do cavalo em que a cor-base avermelhada, amarelada ou parda, etc., aparece mesclada de pêlos de cor branca. Salamanca – furna lendária onde vive a Teiniaguá, misto de lagartixa e princesa moura com dons de sereia enganadora. Vide J. Simões Lopes Neto. A Salamanca do Jarau. In: Lendas do sul. Sinuelo – um ou mais animais costeados ou mansos que servem para atrair os que são xucros, ou ariscos, por ocasião do seu aparte, ou para encaminhá-lo na sua condução. Tambeiro – diz-se do gado manso, de tambo, leiteria. Em sentido figurado, tambeiro é sinônimo de submisso e sem reação. Taura – valente, arrojado, destemido, pronto pra tudo. Torena. Tentos – tiras estreitas de couro cru, com inúmeras utilidades, entre as quais a de trazer o laço preso à parte traseira do lombilho. Em sentido figurado, “trazer a razão nos tentos” é vir equipado de razão, de fundamento. Topetudo – audacioso, arrogante. Tratado de Madri – o pesquisador uruguaio, Fernando O. Asunção, em sua obra mais recente, “El Gaucho”, Montevidéu, 1978, Tomo I, p. 228-229, assim se refere a esse documento: “O tratado de 1750, conhecido também como Tratado de Madri, refere-se às possessões e limites de ambas as potências na América e na Ásia. Seu inspirador e teórico foi o já mencionado Alexandre de Gusmão, e foi firmado no dia 13 de janeiro naquela cidade, de forma quase secreta, entre o Ministro de Estado Espanhol, José de Carvajal y Lancaster, e o Embaixador Extraordinário de Portugal, Tomás da Silva Teles, com intervenção da Inglaterra” (grifo de Mário Mattos). Troncho – cavalo que tem uma ou duas orelhas atrofiadas ou defeituosas – s.f. – designação depreciativa a quem se salienta indevidamente. Umbu – árvore de grande tamanho, muito copada. “Pircunia Dioica”, existente no Rio Grande do Sul, Paraguai e países do Prata. Não confundir com o umbuzeiro do Norte do Brasil. Vaqueano – o que serve de guia em alguma viagem por ser conhecedor de caminhos. Vau – lugar mais raso de um rio, onde, sem nadar, se atravessa. Velhaqueada – corcovos do cavalo. Décima de Sepé Tiaraju 117