O meu quarto

Transcrição

O meu quarto
narração e descrição • 1
Conto
>> Texto para as questões de 1 a 9.
O meu quarto
Li num livro que o quarto de uma pessoa mostra o que ela é, e quando entrei no meu
quarto fiquei pensando nisso, acho que é verdade, porque quando quero que alguém me
conheça eu convido esse alguém para subir até o meu quarto, o meu quarto fica no topo da
casa, a casa é um chalé de madeira perdido no meio de uma floresta, o que já quer dizer,
por exemplo, que eu vivo inventando estratagemas para que alguém me leve à cidade, ou
à casa de alguém da minha galera, ou à casa do meu namorado que era meu ficante e estamos namorando faz mais de um ano, mas eu estava falando sobre o meu quarto, no alto da
casa, subo uma escada em caracol para chegar ao meu quarto, e o meu quarto tem a forma
triangular, porque os telhados da casa formam as paredes do quarto, e isso já é outra coisa
engraçada, que pode dizer um pouco sobre mim, eu vivo mesmo perto dos telhados, das
nuvens e dos passarinhos, e quando eu entro no meu quarto e tranco a porta, e fico ali
dentro sozinha, horas e horas, sonhando acordada, voando na imaginação, pensando mil
fantasias, o meu quarto é cheio, cheio, cheio de coisas, tantas coisas que eu acho que a
pessoa fica confusa e não me entende, porque cada uma daquelas coisas tem uma história,
uma lembrança, então acho que só eu posso compreender o meu quarto, a maioria das
pessoas não olha os detalhes do meu quarto, olha uma coisa aqui e outra ali, mas eu vejo
tudo ao mesmo tempo, são tantas coisas, umas de quando eu era criança, um urso de pelúcia, um tigre que serve de travesseiro, um coelhão, em volta da cama ficam os meus bichos
de pelúcia grandes e os pequenos ficam numa prateleira, o gato de Wisconsin, o coelho que
eu ganhei dos filhos do Tom Waits, o boneco de neve que eu trouxe de Nova York, a bruxinha do Halloween que eu passei em San Francisco, o gato com rabo de arco-íris da Toys R
Us, o gatinho peludo da Califórnia, que foram os bichos de pelúcia que eu guardei, porque
são também lembranças de viagem, e eles falam sobre mim, eu fui uma criança viajante, a
minha mãe trabalhava nos Estados Unidos e eu sempre ia lá, quando eu era criança o meu
quarto era cheio de brinquedos e enfeites e ursos e gatos de pelúcia, mas conforme foi
passando o tempo eu fui mudando e o quarto também foi mudando, e hoje o quarto é lotado de fotos de esportes radicais, eu faço o possível para ele estar sempre agitado, ligo a
tevê, o computador, o rádio, para eu não ficar sozinha, para me sentir com companhia, a
porta do meu quarto já é um sinal de o que a gente vai encontrar lá dentro, que eu sou
verdadeira, a roupa que eu visto, os enfeites que eu uso, o meu cabelo dread locks, um look
do Bob Marley, que enrolava as mechas de cabelo com cera de abelha, mas o meu é feito
com gelatina, são para explicar o que eu sou de verdade, eu sou sempre a mesma, não é
difícil me descobrir, a porta, como eu ia dizendo, é coberta de fotos de skate e surfe que eu
tiro da internet ou de revistas, e adesivos que eu vou comprando ou ganhando ou trocando,
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uma mistura estranha, assim como eu sou uma mistura estranha, adesivos de um artista
plástico que faz arte pop para a MTV, etiquetas de roupas, adesivos de avião, uma placa
que eu comprei na Disney, um adesivo do Rotary Paz, Paz & Amor no Trânsito, Não Fume,
o Wolverine, e umas frases com que eu concordo, por exemplo, Planejar o futuro é uma
fuga, eu acho que planejar o futuro é mesmo uma fuga de viver o dia e olhar o que está
acontecendo agora, quando eu era criança eu nunca planejava o futuro e o tempo para mim
parece que não passava, nem existia, só o presente, e tudo era mais intenso, hoje às vezes
eu fico planejando o futuro, pensando no que eu vou ser, no que eu vou estudar, marketing,
ou comunicação, ou sei lá o quê, chega de pensar no futuro, ah pensar no futuro cansa
tanto! E quando vejo, o tempo passou e eu não percebi, Divirta-se, já que você não consegue mudar nada, essa é outra frase que fica na porta do meu quarto, a gente consegue
mudar alguma coisa no mundo, um pouco, pouquíssimo, quase nada, e acho que o mundo
muda mais a gente do que a gente muda o mundo, essa questão de mudar o mundo ou não
mudar o mundo e divertir-se ou não se divertir me toma um pouco do pensamento, e converso sobre isso com o meu namorado, já faz mais de um ano que estamos namorando,
acho que isso eu já disse, eu estava falando sobre o meu quarto, que é um retrato meu, a
boneca do tantofaz.net levantando a blusa e mostrando sutiã, minhas minifotos, uma prateleira com livros, enciclopédia que eu raramente abro, um monte de porta-retratos com
fotos, os cartazes do Pânico 2 e Pânico 3, uma reportagem de jornal sobre a turnê do Limp
Bizkit e do Eminem, pôster do Tom Cruise, adesivos de desenhos animados, pantufas de
todo tipo, especialmente uma Garfield que o meu namorado me deu, meus patins, uma
cesta de basquete que dá na cesta de lixo, a minha mesa de trabalho é a maior bagunça,
quer dizer, parece a maior bagunça, outra coisa que explica muito sobre mim, porque na
maior bagunça a mesa completamente ocupada de coisas é na verdade bem-arrumada, e
tudo fica organizado, uma lista das portas de computador e de todos os vírus que podem
infectar cada uma delas, não tenho medo de vírus mas não custa nada se cuidar, todas as
canetas ficam juntas, e os lápis de cor, e os bilhetes dos meus amigos e do meu namorado:
Te adoro PH e amo a Thaís, Li eu te amo muito e vc sabe que eu sou sua melhor amiga, né,
hi-hi, o meu número do CPF e ID, os telefones dos meus melhores amigos, porque eu não
decorei todos, parece uma bagunça, mas é tudo muito bem organizado, a questão é que só
eu conheço a minha organização, os disquetes juntos, os CDs, música eletrônica, Punk e
Rock, Punk melódico, trilha sonora de filmes de ação, CDs de rádios, Jovem Pan, 97, Metropolitana, 89, os meus prediletos na fila de cima, Blink 182, Green Day, X, um rapper,
que não é daqueles forçados de periferia, um rapper mais tranquilo, o DJ Marky, Bad Company, de música eletrônica, Gi Gi d’Agostino, Kosheen, o DJ Patife, muito bom, até meu pai
gostou, forró, Fala Mansa, Rastapé, Bicho de Pé, Nirvana, Metallica, Iron Maiden, importantíssimos para o mundo jovem, Legião Urbana, e o aviso Perigo: Morte Alta-Tensão, o
meu celular, o meu computador todo enfeitado, uma estrela-do-mar, de pelúcia, em cima
do monitor, a moldura da tela coberta de adesivos e frases, O amoroso é sincero até quando
mente, essa frase também diz muito sobre mim, acho que a mentira sempre esconde uma
verdade, o teclado todo rabiscado de grafite e palavras japonesas, a minha cama é de casal,
adoro dormir assim com bastante espaço, eu mexo muito de noite, acho que tenho sonhos
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agitados, mas nunca me lembro dos sonhos, só raramente, deito na cama e fico olhando os
milhões de estrelinhas que brilham no teto do quarto porque tenho um céu artificial e a
janela de vidro que fica no telhado mostra o céu verdadeiro, então os dois se misturam,
mas eu sei distinguir as estrelas verdadeiras das estrelas artificiais, eu fico às vezes pensando na minha galera, que deve estar nas baladas, nos lugares para sair à noite, barzinhos,
danceterias, festas, e eu sozinha, trancada no meu quarto sem dormir brinco com o raio de
lua no meu anel, tentando lembrar o que sonhei, olho as portas de vidro que dão para a
mata, elas têm os quadrados de vidro cobertos de adesivos colados um perto do outro,
porque eu prefiro ver as coisas coloridas do meu mundo e imagino que estou na cidade, e
não na mata, ouvindo Raimundos e não corujas, Entrada Proibida, fotos de meus amigos,
um ventilador sempre ligado no verão, maletas, caixas, caixinhas, saquinhos guardando
tudo o que eu tenho, um de colares e pulseiras, um de óculos, uma lata só para os brincos,
uma caixa só para esmaltes de unha coloridos, e umas tintas de cabelo, porque pintei o
meu de vermelho, depois azul, depois roxo, verde, rosa, e hoje está cor de laranja, tudo isso
significa que o meu quarto é a minha casa, porque por enquanto eu não tenho casa, no meu
quarto tenho tudo o que eu quero e de que eu gosto, do meu jeito, e como o mundo não é
como eu queria que fosse, e não é meu, eu faço o meu mundo dentro do meu quarto.
MIRANDA, Ana. Boa companhia (Vários autores). São Paulo: Companhia das Letras, 2003 p. 39-43.
Tom Waits: músico e ator norte-americano.
Halloween: dia das Bruxas, observado na noite de 31 de outubro.
Toys R Us: rede norte-americana de lojas de brinquedos.
Dread locks: rolos cilíndricos de cabelo que aparentam cordas que pendem do topo da cabeça.
Look: aparência, visual, em inglês.
Rotary Paz: programa de bolsas de estudo do Rotary, organização internacional voltada para compreensão e concórdia universal.
Wolverine: personagem de história em quadrinhos, componente dos X-Men.
tantofaz.net: site de entretenimento.
Pânico 2 e Pânico 3: filmes de terror.
Limp Bizkit, Eminem, Blink 182, Green Day, X, DJ Marky, Bad Company, Gi Gi d’Agostino, Kosheen, DJ
Patife, Fala Mansa, Rastapé, Bicho de Pé, Nirvana, Metallica, Iron Maiden, Legião Urbana, Raimundos:
diversos músicos e bandas.
Tom Cruise: ator norte-americano.
Garfield: gato personagem de uma das tirinhas mais famosas.
1. Qual é a situação retratada no texto?
2. O texto apresenta uma única personagem.
4Quem é ela?
4As informações do texto permitem fazer dela qual imagem?
3. Considere, agora, a “voz” que conta a história.
4Quem é esse narrador? Explique.
4Identifique, no texto, elementos que revelam que o foco narrativo está em 1a pessoa.
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4. De que modo a adoção de um narrador em 1a pessoa afeta a história que está sendo
contada?
5. O que diferencia esse texto de um simples relato? Explique.
6. Podemos afirmar que o texto apresenta um componente ficcional.
4De que modo a ficção se instala no texto?
4Por que a situação recriada, mesmo sendo ficcional, parece verdadeira?
7. Por que a técnica do fluxo de consciência favorece a construção ficcional pretendida
por Ana Miranda, no conto “Meu quarto”?
8. O fluxo de consciência é construído por meio de um monólogo interior, ou seja, uma
conversa que a personagem tem consigo mesma. Identifique, no texto, passagens que
exemplificam o monólogo interior da protagonista.
9. Outra característica do fluxo de consciência é o uso mais coloquial da linguagem. Por
que isso é importante para a construção ficcional?

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