O BOM CRIOULO - Gaia Ciência - arte, literatuda, cultura e maneira

Transcrição

O BOM CRIOULO - Gaia Ciência - arte, literatuda, cultura e maneira
Nº 2 - outubro, 2015
O BOM CRIOULO- MICHELANGELO
OS MARES DO TIO SAM - NOEL ROSA
e muito mais
A gente vai
levando...
E
is aqui nossa segunda revista, o que
não deixa de ser uma vitória, visto
que a maioria das publicações culturais em nossa terra não ultrapassa o famigerado Ano 1, Número 1. Por enquanto não
nos preocupamos com o ano, conseguir fazer
o número seguinte é toda nossa pretensão.
SUMÁRIO - Nº 2 out/2015
Literatura
03 - Bom Crioulo: uma tragédia tropical
Geral
06 - Variedades
História
08 - Navegando em águas
revoltas
12 - Quando a coragem prevalece
Artes Plásticas
14 - Michelangelo: a beleza
angustiada
GAIA CULTURA
Revista de Arte e Cultura
Editor: Júlio Bóreas
Arte e Diagramação: Jojo
Composição e edição: Editora Brava
Florianópolis - SC
Neste número apresentamos um artigo
sobre literatura brasileira. Nossa intenção é,
de agora em diante, em todos os números,
abordar pelo meno um assunto brasileiro,
seja na literatura, na música, nas artes plásticas, ou em outro campo que nos interesse.
O livro de Adolfo Caminha, sobre o relacionamento de dois marinheiros, ousou contar o que outras literaturas mais sofisticadas
(ou pelo menos mais pretensiosas) não contavam, além de mostrar o negro como parte
integrante e indispensável de nosso povo.
Graças a subliteratura best-seller, Leonardo da Vinci foi taxativamente rotulado
de homossexual, uma ideia, no mínimo,
anacrônica. Esquecem-se de Michelangelo, cuja obsessão pela beleza masculina, de
preferência desnuda, só se comparáva a seu
inexcedível talento ao retratá-la.
Descendo à Terra, encontramos um
samba de Noel Rosa cantando a verve e a
valentia de um rapaz do morro do Salgueiro
que tinha uma particularidade: não gostava de mulher. O que não o impedia de ser
um sambista de primeira e gozar de grande
prestígio entre as meninas do lugar.
Espero que gostem deste nosso segundo
número. O terceiro será ainda melhor... espero!
Júlio Bóreas
BOM CRIOULO: UMA TRAGÉDIA TROPICAL
Júlio Bóreas
N
os fins do século XIX, passagem para o XX,
a ciência, que desde o
Iluminismo do século
XVII vinha enfrentando
galhardamente religiões
e superstições, parecia
ter vencido a batalha.
Mas vencera também
um cientifismo, tanto no
sentido positivo, quanto no negativo, este o de
aplicar mecanicamente
conceitos científicos à
vida prática, intelectual
ou artística. Deste vezo
da época, nasceu uma
corrente literária que se
tornou conhecida como
Naturalismo, que, como
outras invenções francesas, foi copiada aqui em
nosso patropi.
O nome que logo vem à
memória quando falamos do
Naturalismo brasilerio é o deAluízio Azevedo (1857-1913),
autor de vários romances, entre os quais destacam-se pela
qualidade e pela temática e
construção afinadas com a escola literária adotada, O mulato, Casa de pensão e O cortiço,
este útimo frequentador das
famigeradas “listas” de livros
para os exames vestibulares de
nossas universidades.
Mas vamos falar aqui de um
autor menos conhecido, embora não menos empenhado em
desenvolver uma literatura na3
turalista brasileira: Adolfo Caminha (18671897). Nascido no Ceará, na cidadezinha
praiana de Aracati, ele passou a infância
em sua provícia natal, onde a família sofreu
as agruras da grande seca de 1877 e o jovem Adolfo teve a infelicidade de ficar órfão. Mudou-se então, ainda criança, para o
Rio de Janeiro, onde morou com parentes.
Em 1883, com 16 anos, Caminha entra para a marinha de Guerra. Ingressar
no oficialato da Forças Armadas era uma
opção para jovens de famílias empobrecidas da classe média. Ele alcança o posto de
Segundo Tenente. Tanto sua experiência
na Marinha, quanto uma viagem que fez
aos Estados Unidos, em 1886, ainda como
Guarda-Marinha, repercutirão em sua
obra.
Transferido para Fortaleza em 1888,
envolve-se com uma mulher casada, esposa de militar, Isabel de Paula Barros. Os
dois vão morar juntos. Mas o escândalo
Adolfo Ferreira Caminha
4
O navio Amazonas, misto de vela e vapor,
construído em 1851 na Inglaterra e incorporado à Marinha Brasileira em 1852, dá
uma ideia dos navios da época de O Bom
Crioulo.
força Caminha a dar baixa na Marinha e
a abandonar Fortaleza, onde já participava da vida intelectual da cidade, principalmente do grêmio Padaria Espiritual,
que difundia o Naturalismo na província.
O casal teve duas filhas, batizadas com os
curiosos nomes de Belkiss e Aglaís.
Voltando ao Rio de Janeiro, arruma um
emprego como funcionário público e dá
continuidade a sua carreira literária. Sua
primeira publicação, como era comum na
época, foi um livro de poemas, seguido de
dois livros de contos. Em 1893 publica A
normalista, ambientado em Fortaleza, sua
estreia no Naturalismo. Em 1894 surge No
país dos ianques, um livro sobre sua sua visita aos Estados Unidos. Em 1895 surge o
romance de que nos ocuparemos aqui, O
Bom Crioulo, a história de dois marinhieros, ambientado ora em um navio da nossa
Marinha de Guerra, ora na cidade do Rio
de Janeiro, Certamente a experiência de
Caminha como marinheiro serviu para dar
autenticidade à narrativa.
A obra de Adolfo Caminha inclui mais
apenas quatro romances, dois deles inacabado. Isto porque o autor morreu muito jovem de tuberculose, aos 29 anos, no Rio de
Janeiro. O Bom Crioulo foi seu livro que sobreviveu, figurando entre os poucos exemplos da breve experiência naturalista de
nossa literatura que ainda são lidos e que
recebem a aprovação dos críticos. Segundo
Alfredo Bosi, o livro “... resiste ainda hoje a
uma leitura crítica que descarte os vezos da
escola e saiba apreciar a construção de um
tipo, o mulato Amaro...”.
Mas quando de seu lançamento, o romance causou escândalo, tanto pelo tema
ousado, um relacionamento homossexual
entre dois marinheiros, como pela franqueza e imparcialidade com que tratou o
tema - afinal, um romance naturalista era
um “estudo”, não um panfleto moralista. A
crítica literária dos jornais aborreceu Caminha, que chegou a publicar uma réplica
em A Nova Revista, suplemento literário da
época, reclamando da hipocrisia dos críticos, que elogiavam realistas ou naturalistas
europeus como Flaubert, Zola, Maupassant, Eça de Queiroz, que relatavam várias
baixezas morais em suas histórias, mas
condenavam o brasileiro. Disse ele: “Qual
o mais pernicioso: o Bom Crioulo em que
se estuda e condena o homossexualismo,
ou essas páginas que ahi andam pregando,
em tom philosóphico, a dissolução da família, o comcubinato, o amor livre e toda a
espécie de imoralidade social?” (citado por
John Green, em seu livro Além do carnaval:
a homossexualidade masculina no Brasil do
século XX).
Pelo visto, exageros de ambas as partes.
Inclusive porque Caminha não condena o
homossexualismo, pelos menos não com
a veemência panfletária, e provavelmente
hipócrita, da moral, da religião e dos inevitáveis “bons costumes”. Ele o analisa como
resultado de circunstâncias, biológicas e
ambientais. E, curiosamente, apesar de seu
protagonista ser um negro, o mulato Amaro, o livro não é particularmente racista,
numa época em que o o racismo era a regra
e tinha bases “científicas”.
Amaro, o protagonsta, era um negro
escravo que, no fim da adolescência, não
suportou mais as agruras da escravidão
e fugiu da fazenda para o Rio de Janeiro, onde foi “recrutado” à revelia para ser
marinheiro. Ora, as agruras da escravidão
eram bem piores do que a rígida disciplina e o trabalho pesado na Marinha, onde
ele tinha alojamento, comida farta, soldo
e, mais importante do que tudo, liberdade.
Amaro, dono de um físico esplêndido
e de uma inteligência arguta, logo se torna
um bom marinheiro e recebe o apelido de
Bom-Crioulo. Tudo vai bem, até que numa
viagem de seu navio a Santa Catarina ele
se encontra com o recém-embarcado grumete Aleixo, um menino de quinze anos,
alourado e de olhos azuis. A atração pelo
rapaz é imediata e o autor não deixa dúvidas quanto à natureza sexual da mesma:
“Esse movimento indefinível que acomente
ao mesmo tempo duas naturezas de sexos
contrários, determinando o desejo fisiológico da posse mútua, essa atração animal
que faz o homem escravo da mulher e que
em todas as espécies impulsiona o macho
para a fêmea, sentiu-a Bom-Crioulo irresistivelmente ao cruzar a vista pela primeira vez com o grumetezinho”. Pouco depois,
ainda a bordo, o desejo se cumpre e os dois
se tornam amantes.
Chegados ao Rio de Janeiro e desembarcados, Amaro aluga um quarto na cidade onde se instala com o rapaz, sonhando uma vida inteira de união. Mas, claro,
o destino - e o romancista - conspiram
contra ele. Uma série de peripécias levam
a história a um desfecho trágico, que não
vou revelar aqui; leiam o livro. O relevante
é que tal desfecho não cai sobre a cabeça
dois dois personagens como um castigo divino merecidamente imposto a um pecado
nefando, trata-se apenas da evolução dos
acontecimentos determinados pelas circunstâncias biológicas e sociais.
Há várias edições disponíveis de O Bom
Crioulo. Como se trata de obra já de domínio público, seu texto pode ser encontrado,
gratuitamente, na internet.
5
Noel Rosa e o bamba
diferente
dade e, o que é muito importante, sem tom
pejorativo, sem falso moralismo e sem drama. Noel, um mulherengo de primeira, capaz de paixões avassaladoras, como aquela
por Ceci (Juraci Correia de Araújo), musa
de muitas de suas canções, era também
suficientemente lúcido para aceitar quem
tivesse gostos diferentes, sem julgar nem
condenar. Aqui vai a letra de seu samba
Mulato bamba:
Mulato bamba
Noel Rosa
N
oel Rosa nasceu em 1910,
no bairro de Vila Isabel,
Rio de Janeiro. Morreu
em 1937, com apenas 27 anos de
idade. Por isso, e pela importância
que teve para a música brasileira,
é dessas pessoas que os articulistas comparam à imagem mais do
que batida de uma estrela cadente.
Noel brilhou em vida por um breve tempo, mas sua luz continua até
hoje iluminando nossa arte musical.
Noel Rosa, homem da classe média,
foi o primeiro a levar para a música que se
ouvia nas rádios, principal meio de comunicação da época, o falar simples do povo,
desafiando as viúvas do parnasianismo.
Prestigiou o samba que surgia no bairro do
Estácio, com seu ritmo menos amaxixado
e letras mais urbanas. Também trouxe para
nossa música temas do dia a dia que não
fossem amores torturados, além da ironia e
do humor amalandrado. Por isso, não é de
estranhar que tenha sido provavelmente o
primeiro sambista a falar da homossexuali-
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Este mulato forte é do Salgueiro,
Passear no tintureiro
é o seu esporte,
Já nasceu com sorte
e desde pirralho
vive às custas do baralho.
E quando tira um samba
é novidade,
Quer no morro ou na cidade,
ele sempre foi o bamba.
As morenas do lugar
vivem a se lamentar
por saber que ele não quer
se apaixonar por mulher.
O mulato é de fato
e sabe fazer frente
a qualquer valente,
Mas não quer saber de fita
nem com mulher bonita.
Sei que ele anda agora aborrecido
porque vive perseguido
sempre, a toda hora.
Ele vai-se embora
para se livrar
do feitiço e do azar
das morenas de lá.
Eu sei que o morro inteiro
vai sentir
quando o mulato partir,
dando adeus para o Salgueiro.
As morenas vão chorar,
Vão pedir pra ele voltar
E ele então diz com desdém:
- Quem tudo quer, nada tem.
Das preferências do mulato não restam
dúvidas, como afirma o discreto verso: O
mulato é de fato. Mas fica claro, também,
que ele é muito prestigiado no morro do
Salgueiro, é bonito, esperto e valente, não
tem medo de nada e de ninguém, nem
mesmo dos passeios no tintureiro - o apelido da época para o carro da polícia que
transportava os presos.
O cenário pintado por Noel é atraente
e divertido. Mas, claro, poucos homossexuais da época gozavam dessa tranquilidade.
Havia preconceito no morro e, principalmente, no “asfalto”, a classe média aferrada
à hipocrisia judaico-cristã. Alguns caíam
na marginalidade violenta, como o famoso
Madame Satã (João Francisco dos Santos),
ou se entregavam ao desespero, como o
grande sambista Assis Valente, que tirou a
própria vida. Pena que nem todo mundo
seja como Noel...
O samba Mulato bamba foi gravado
por Mário Reis - outro inovador da música brasileira. Na página anterior, a foto
do belo monumento em homenagem a
Noel Rosa, em Vila Isabel, Rio de Janeiro,
que além do compositor em seu ambiente
natural (a mesa de um bar), homenageia
outro personagem muito importante para
a música popular, o garçom de botequim,
como no samba Conversa de botequim.
Nossos avós, hein?
Quem diria?...
Q
uem acha que a disponibilidade de imagens pornográficas é um fenômeno
dos nossos dias de internet está
muito enganado. O historiador
estadunidense James Naylor Green, que morou oito anos no Brasil, realizando vários estudos, e é
professor universitário (Brown
University, University of Miami),
conta uma história diferente.
Em seu livro Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século
XX (Editora Unesp), um alentado estudo
sobre o tema, ele descreve o que talvez seja
“a primeira pornografia homoerótica brasileira para homens”. Trata-se de um dos
pequenos volumes com contos eróticos
editados pela revista Rio Nu (fundada em
1898), uma publicação que trazia notícias,
historietas e ilustrações eróticas da Belle
Époque carioca.
O conto, publicado em 1914 e vendido nas bancas de jornais a preço módico,
intulava-se O menino do Gouveia, contava
as aventuras (ou desventuras) de um rapaz
que se oferecia sexualmente a homens mais
velhos e incluía uma ilustração bastante
explícita (acima) do garoto exercitando
suas preferências. Segundo Green, a partir
da presença desta histórias entre as outras
histórias heterossexuais da série, podemos
deduzir que situações semelhantes não
eram incomuns nem surpreeendentes na
época. A história cita o Largo do Rossio
(Praça Tiradentes), ponto de encontro de
homossexuais, e a gíria da “fauna” local.
7
NAVEGANDO EM ÁGUAS REVOLTAS
A
nchors aweigh, ou âncoras
para cima, é uma marcha
composta em 1906 que se
tornou hino da marinha de guerra estadunidense. Mais ou menos
pela mesma época, outras coisas
subiam e desciam na marinha ianque, causando grande alarde, e o
motivo era apenas um: sexo homoerótico. Um dos autores que
fazem menção a tais acontecimentos é o inglês Colins Spencer, em
seu livro Homossexualidade: uma
história (Editora Record, 1996).
Deste livro, que em breve pretendemos abordar em nossa seção de
Literatura, tiramos as informações
iniciais deste artigo.
Aqueles que procuram caracterizar
o atraso econômico dos países da nossa
América, frente à América inglesa, através
de uma teoria baseada na colonização pelos países ibéricos, desconhecem um campo em que o Brasil esteve muito à frente
dos puritanos anglo-saxões: a descriminalização da homossexualidade. Desde que
as velhas Ordenações portuguesas, de raízes medievais, foram substituídas pela legislação do novo país independente, que a
homossexualidade deixou de ser crime por
estas bandas. Ou seja, no Brasil a homossexualidade nunca foi crime. Nosso primeiro
Código Penal, promulgado em 1830, ignorou a homossexualidade.
Se houve descriminação, a discriminação, entretanto, persistiu e sempre havia um meio de enquadrar o homossexual
- principalmente se fosse pobre ou negro
- num outro delito qualquer.. Aqui, como
na maioria dos países do mundo, houve e
há preconceito, agressão, perseguição, mas
pelo menos não existe base legal para condenar a homossexualidade por si só. Ao
contrário dos EUA e da Inglaterra, que, em
plena segunda metade do século XX, baseados em sua legislação, ainda condenavam
criminalmente pessoas homossexuais, pelo
simples fato de serem homossexuais. Um
ordenamento jurídico que a Inglaterra levou para suas colônias e que hoje vem sendo exacerbado em alguns países africanos,
embora nada tenha de africano em suas
origens.
Quando se pensa no genocídio promovido pelo nazismo, nas décadas de 1930 e
1940, costuma-se esquecer que os homossexuais foram um dos grupos visados. Os
documentos oficiais foram destruídos, mas
O Colégio de Guerra Naval, em Newport, estado de Rhode Island, EUA
8
calcula-se que mais de 50 mil homossexuais perderam a vida nos campos de extermínio. Finda a II Guerra Mundial, os
EUA e a Inglaterra iniciaram uma espécie
de caça às bruxas contra os homossexuais, uma cruzada de “moralidade” contra
a “ameaça” gay, que já tinha sido ensaiada
em suas tropas durante o conflito. Mas as
raízes do problema alcançam o início do
século passado e a I Guerra Mundial. E um
dos teatros da caça aos gays foi o complexo da marinha de guerra estadunidense
em Newport, estado de Rhode Island, cidade antiga, aristocrática, repleta de ricas
mansões separadas por campos de golfe de
clubes exclusivos. Só que as reviravoltas do
caso ganharam ar de comédia pastelão.
Em 1919, dois marinheiros internados
no hospital do complexo educacional da
marinha de guerra dos EUA em Newport,
Thomas Brunelle e Mate Ervin Arnold,
conversavam sobre uma subcultura gay
da cidade, a que o primeiro pertencia, na
qual civis e marinheiros encontravam-se
para ter contatos eróticos. Um tal Dr. E.
M. Hudson, médico do hospital, sabendo
disso, e preocupado com o “ar efeminado”
de muitos de seus pacientes, sugeriu aos
superiores que se fizesse uma investigação
sobre o assunto; afinal, homossexualidade
era crime, tanto pelos regulamentos militares quanto pelas leis gerais.
Dentro da subcultura, os marinheiros homossexuais se autodenominavam
queers(diferentes, estranhos) e eram classificados em três grupos: fairies ou suckers
(praticavam a felação), pogues (gostavam
de ser penetrados) e two-way artists (faziam as duas coisas). Havia um outro
grupo, que sempre desempenhava papel
masculino, conhecido como os “maridos”
- alguns eram mesmo “casados” com um
queer. Para fazer parte da “gangue”, o candidato tinha de se enquadrar numa dessas
quatro categorias e não ter vergonha de desempenhar o papel que lhe cabia em público. Tanto o novo pessoal da gangue quanto
Prédio da ACM de Newport e, no detalhe, o Rev. Samuel Kent.
os “clientes” (geralmente civis de outras
cidades) eram atraídos por “chamarizes”
com um papel igualmente definido.
Quanto mais se investigava, mais as
dimensões do caso aumentavam. Entre os
clientes costumeiros, apontado por vários
chamarizes, estavam o clérigo episcopal
Samuel Neal Kent e seu capelão e voluntário na ACM, Arthur Leslier Greene. Curiosamente, a investigação serviu-se de um
pelotão de jovens alistados, que receberam
a ordem de fazer sexo com os “pervertidos” para a produção de provas - jovens estes que, embora tendo cometido o mesmo
“delito” sexual, estavam livres de qualquer
culpa. Já em 1920, vinte e dois marinheiros
foram presos e condenados. O reverendo
Kent fugiu de Newport, mas a Marinha o
achou e julgou-o por sodomia. Foi a vez de
a Igreja Episcopal entrar na briga, em defesa de seu pastor. O caso cheirava cada vez
pior e gente importante passou a se intrometer, inclusive o Secretário da Marinha e
seu Secretário-Assistente, o futuro presidente Franklin Roosevelt. Ao final, conseguiram abafar quase tudo e a maioria dos
marinheiros escapou apenas com a dispensa desonrosa.
A base de Newport, entretanto, voltaria
às manchetes. Qualquer guerra, não importam as justificativas criadas, é um evento monstruoso que deixa sequelas permanentes. Uma dessas sequelas é uma enorme
desilusão de suas vítimas com os “valores”
sociais e políticos invocados pelos líderes
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Da esquerda para a direita: o senador McCarthy falando a seu assessor Roy
Conh e o chefão do FBI, J. Edgar Hoover - três caçadores de “pervertidos” que
o tempo revelou serem homossexuais enrustidos e fora do alcance das leis.
belicosos, valores pelos quais (afirmam os
mesmos líderes, sem sair de seus confortáveis e seguros gabinetes) vale a pena morrer nos campos de batalha. Os poucos jovens que conseguem voltar mais ou menos
vivos da carnificina transformam sua desilusão numa enorme vontade de mudança,
de liberação, no que são acompanhados
pelos que, mesmo em casa, sofreram perdas contundentes, como pais, esposas, namoradas. Por isso os períodos de ebulição
libertadora que o Ocidente atravessou nas
décadas de 1920 e 1950/60.
Contra esse desejo de liberação levantam-se de imediato as forças do poder, da
economia, da moral e dos bons costumes
- ou seja, a mesma camarilha que costuma
fabricar as guerras e que, na paz, teme acima de tudo a mudança do statu quo. Derrotado o nazismo (foi mesmo?), cumpria
agora derrotar a nova e terribilíssima ameaça contra a “América” e o “mundo livre”:
o comunismo ateu. E todos sabem que comunistas e homossexuais, quando não são
uma coisa só, são aliados perversos em seu
objetivo de destruir o American way of life.
Pelo menos era o que afirmava o tristemente famoso senador Josef Raymond McCar10
thy, o grande caçador de bruxas nos EUA
da década de 1950.
MaCarthy jogou então toda a força do
Congresso na pressão sobre outros órgãos
do Estado, exigindo que se descobrissem e
punissem os “pervertidos”. Foi criado um
subcomitê para investigar “os pervertidos
sexuais que influenciaram nosso governo
nos últimos anos, tão perigosos quanto os
verdadeiros comunistas” - nas palavras do
senador republicano Guy Gabrielson, que
não queria deixar todos os holofotes para o
colega democrata McCarthy. No Departamento de Estado, 91 funcionários homossexuais foram obrigados a se aposentar. J.
Edgar Hoover, o notório chefão do FBI,
não ficou atrás e declarou haver identificado “406 desviados sexuais nos quadros
do governo” - mas não incluiu o próprio
mome na lista, claro. Roy Cohn, assessor
de McCarthy, foi o encarregado do contato
com as forças armadas, tendo recebido dos
militares do Exército, da Marinha e da Força Aérea, informações específicas, inclusive com mapas e gráficos (!), das bases onde
havia grande número de homossexuais.
A perseguição se espalhou por todo o
país. Como sempre, nesses casos, os ricos
e os poderosos foram poupados, os simples sofreram os castigos. Na base naval de
Newport, um oficial e 24 recrutas foram
expulsos com desonra. E também como
sempre, nenhum dos grupos liberais ou
religiosos protestou contra semelhante
injustiça, que pode ser tudo, menos uma
característica aceitável num “mundo livre”,
numa democracia. Para os gays, os EUA (e
também a Inglaterra da época) eram um
estado policial. Só a esquerda americana
protestou, mas sua voz, ainda uma vez e
como sempre, não foi ouvida. E o passar
do tempo revelou uma faceta tristemente
curiosa do drama: Joseph McCarthy, Roy
Cohn e J. Edgar Hoover, três dos mais empenhados arquitetos de toda essa opressão,
eram eles mesmos homossexuais, que tentaram e conseguiram esconder do grande
público, mesmo após suas mortes, a verdadeira natureza de seus desejos eróticos, que
só muito depois vieram a público. (JB)
Passeata pelo direito dos gays em San Diego, Califórnia, década de 1970. Na
cidade em que existe o maior complexo naval militar estadunidense da costa do
Pacífico, os marinheiros ianques ainda lutavam pelo reconhecimento da diversidade sexual.
11
QUANDO A CORAGEM PREVALECE
W
illem Johan Cornelis
Arondeus nasceu em
Naarden, uma cidadezinha holandesa próxima a Amsterdan e às margens do Gooimeer,
um braço de mar que banha uma
região bela e verdejante. Famosa
por sua fortaleza em forma de estrela, cercada por um fosso igualmente geométrico, a cidade também costuma ser citada quando se
fala de cultura, por ter sido berço
um dos maiores pintores da época
de ouro da arte holandesa, Salomon van Ruysdael.
Willem, nascido em 1894, tam-
12
Júlio Bóreas
bém era um artista. Ele trabalhava como ilustrador de livros, desenhista de cartazes e tapeçarias,
pintor (na ilustração ao lado, vemos um projeto de selo postal de
sua autoria). Chegou a receber
uma encomenda, em 1923, de um
mural para a prefeitura de Amsterdã. Nunca teve, entretanto, um
sucesso que lhe permitisse viver
apenas de sua arte. Por volta de
1935, deu início a uma carreira
paralela de escritor e poeta. Só
em 1938 teve os primeiros livros
publicados, dois romances, com
ilustrações feitas por ele. Seu melhor livro foi Matthijs Maris: de
tragiek van den droom (Matthijs
Maris: a tragédia do sonho), uma
biografia deste pintor. Willem era
homossexual e vivia abertamente
suas preferências. Mas não foi por
este detalhe, nem por sua arte, infelizmente, que ele entrou para a
História.
Willem cresceu em Amsterdã,
onde seus país eram desenhistas
de figurinos para o teatro, o que
mal dava para o sustento dos seis
filhos do casal. Além disso, não
aceitavam a homossexualidade de
Willem, que aos 17 anos teve de
deixar a casa e distanciar-se da família. Ele se mudou para o campo,
próximo à vila de Apeldoorn.
A Alemanha nazista invadiu a
Holanda em maio de 1940. Willem
logo entrou para a resitência. Em
1941, ele começou a publicar um
jornal underground em que incitava o povo holandês a resitir aos
invasores. Em 1942 ele começou a
editar o Brandarisbrief, mais um
jornal ilegal, em que se opunha às
diretrizes artísticas impostas pela
Reichskulturcammer, o comitê
cultural nazista. Mais tarde uniu
seu jornal ao De Vrije Kunstenaar
(O Artista Livre), do escultor Gerrit van der Veen e do compositor
Jan van Gilse, entre outros.
Não foi apenas no campo daliberdade artística que Willem
atuou. Ele foi um dos primeiros
a compreender que a exigência
nazista de que todos os judeus da
Holanda fossem cadastrados não
era, como alegado, uma “medida
de proteção”, mas sim um passo
para deportação aos campos de
concentração. O Raad van Verzet (Conselho da Resistência), de
que Willem era membro, e outras
organizações, passaram a atuar
escondendo judeu e fornecendo-lhes documentos falsos, para
ocultar sua condição.
Rara foto de Willem J. C. Arondeus
Os nazistas logo passaram a
identificar os documentos falsificados ao confrontá-los com os
registros de nascimento no Registro Público de Amsterdã. Para
impossibilitar este recurso, Willem comandou um grupo que, em
27 de março de 1943, explodiu o
prédio do arquivo. Milhares de
registros foram destruídos, mas
uma semana depois Willem e vários outros do grupo foram presos
pelos alemães. Em julho, Willem e
outros onze companheiros foram
fuzilados. Antes da execução, ele
pediu a um amigo que desse um
testemunho, após a guerra: “Que
saibam que os homossexuais não
são covardes”.
Mais que isso, ele foi lúcido o
bastante para defender um povo
do qual nossa civilização “ocidental” herdou os preceitos religiosos
contra o homossexuais. Os povos
são sempre vítimas, nunca algozes.
Estes são sempre os líderes, políticos ou religiosos, que, dizendo-se
veículos da vontade divina ou da
segurança da pátria, espalham intolerância, violência e morte.
Placa em homenagem à Resistência,
em Amsterdã; o nome de Willem
Arondeus é o primeiro.
13
MICHELANGELO
A beleza
angustiada
Júlio Bóreas
a foto acima, vemos uma
das estátuas criadas por
Michelangelo para a tumba
de Juliano de Médici, em Florença.
Detalhe de uma bela ilustração do
livro Michelangelo, da editora ita-
N
14
liana Skira, ela serve como metáfora visual da vida do artista: um
homem dedicado a cultivar sua
espiritualidade, mas sempre espreitado pela fervorosa admiração
da beleza masculina.
Michelangelo era homossexual? Esta pergunta, antes de mais
nada, encontra-se deslocada. Homossexualidade é um conceito
pseudocientífico criado no século
XIX. Uma das ideias tolas que a
literatura popular de má qualidade (leia-se Código DaVinci) disseminou foi a de que Leonardo da
Vinci era homossexual. Sabendo
de sua fome de experimentação e
conhecimento, é mais do que provável que Leonardo tenha se divertido com jovens aprendizes de
seu estúdio. Mas, que artista, na
época, não fazia isto? Ou melhor,
que mestre artesão da época não
fazia, ou pelo menos era tentado a
fazer, isto? É também provável que
Leonardo apreciasse o relacionamento sexual com rapazes, talvez
de forma exclusiva, mas isso não
teve nenhuma influência em sua
arte, então, aplicar-lhe um rótulo
moderno serve apenas para dar
margem a interpretações ridiculamente absurdas de sua obra.
Deixemos a vida de Leonardo
para outro artigo. Apenas devemos lembrar que a pintura de Leonardo é a menos “homossexual”
que se pode encontrar. Os poucos
quadros que ele terminou retratam belas mulheres, não rapazes
másculos. Já no caso de Michelangelo, o nu masculino é uma
constante em sua obra. O que isto
significa em termos de orientação
sexual do mestre não tem a mínima impotância para nós. Mas
este leit motiv de sua arte nos leva
a falar dele aqui, pois a perfeição
de suas esculturas e suas pinturas foram raramente igualadas e
talvez nunca superadas. Por isso
ele criou algumas das mais belas
figurações do corpo masculino já
vistas.
Michelangelo nasceu numa fa-
culturas da antiguidade e as obras
de florentinos inovadores, como
Giotto, Masaccio e Donatello. Dois
anos depois, Michelangelo deixa
o estúdio e frequenta, de 1490 a
1492, os jardins da residência San
Marco, dos Médici, onde Bertoldo
di Giovanni ensinava escultura.
Foi onde Michelangelo descobriu
seu pendor para o que passou a
considerar a expressão máxima
Davi, 1504, Galleria della Academia,
Florença.
Baco embriagado, 1497,inspirado em
um bronze perdido de Praxísteles,
descrito por Plínio, o Velho. Muzeo
Nazionale del Bargello, Florença.
mília da pequena nobreza florentina, em 1475 (morre em 1564).
Seu pai, Lodovico di Lionardo di
Buonarroto Simoni era um notário, que chegou a governar como
podestà algumas pequenas cidades
subordinadas a Florença, por isso
não via com bons olhos a precoce
capacidade de desenhar do menino. Quando Michelangelo tinha
12 anos, o pai cedeu e o colocou
como aprendiz no estúdio dos
Ghirlandaio, onde ele aprendeu
desenho e a arte do afresco, ao
mesmo tempo que estudava as es15
das artes plásticas, a escultura em
mármore. Mais importante, ele
conquistou a amizade de Lorenzo de Médici, o Magnífico, dono
da casa e senhor de Florença. Ele
passou a receber aulas, junto com
os filhos de Lorenzo, do humanista Poliziano e conviveu com os
filósofos neoplatônicos Marsilio
Ficino, Cristoforo Landino e Pico
della Mirandola.
Não vamos contar aqui a biografia de Michelangelo. Mas esses
anos de formação viriam a determinar não apenas a vida futura do
artista, como também o espírito
de sua arte. Seus estudos de filosofia o levaram a recusar cada vez
mais o mundo imperfeito e injusto, mas seu amor pelo belo o fazia
cada vez mais obcecado pelo corpo masculino.
Leonardo, seu eterno rival,
também conquistou uma cultura refinada, embora partindo de
origens bem mais humildes. Mas
é difícil imaginar um Leonardo
abatido por questões morais e filosóficas. Já Michelangelo viveu
atormentado por não conseguir
desligar-se do mundo e sua arte
tornou-se cada vez mais ideal.
Podemos ver esta evolução em
algumas de suas obras. Seu Baco
embriagado, uma obra da juventu16
de, possui o corpo atlético, mas sua
pose é lânguida, sensual, seu olhar
é extático, insinuante (ver detalhe acima). Já o grandioso Davi,
terminado sete anos depois, tem
o corpo ainda mais perfeito, mas
uma pose altaneira, desafiante, e o
semblante é carregado, o olhar se
fixa preocupado na distância, seus
lábios não sorriem.
A estátua de Baco, baseada
num modelo antigo, representa
o prazer da vida terrena, é a celebração do corpo jovem e nu. Já a
estátua de Davi, ainda que mostre
também um corpo jovem, atlético
e nu, é a celebração antes da alma
do que do corpo. Reunir a plenitude dos dois princípios, corpo e
alma, é o desafio insuperável que
tolda o semblante do jovem e atormenta os dias de seu criador.
Na pintura também podemos
vislumbrar essa evolução. No Tondo Doni, 1504 (tondo é uma pintura circular, os Doni eram uma
poderosa família florentina), Michelangelo pinta em primeiro plano uma das mais belas figurações
da Sagrada Família, traduzindo
a feliz intimidade entre mãe e filho, sob o olhar protetor de José.
Ao fundo, entretanto, um grupo
de jovens rapazes nus encostam-se uns nos outros, apoiando-se
numa mureta. Não existe uma
explicação para a presença de tais
rapazes, nem o pintor a deu. Interpretações posteriores afirmam
que os eles representam os tempos
“anteriores à lei Mosaica”. Mera
justificativa conciliadora. Os rapazes representam o que mostram,
a intimidade erótica entre jovens
cheios de energia, bem diferente
da intimidade protetora do seio
familiar. Mais estranha é a pequena figura que parece atravessar os
dois planos, semelhante em tudo
a um pequeno fauno. A mesma
interpretação citada afirma que é
o pequeno S. João Batista e a passagem dos tempos anteriores para
o tempo cristão. Bem, se for, ele
trouxe ecos de Dioniso, não de
Moisés. O pequeno relevo Batalha dos Lápitas contra os Centauros, 1492 (acima), um estudo do
adolescente Michelangelo, mostra
também um entrelaçado de corpos nus, deixando a dúvida se é
Tondo Doni, 1504.
Uffizi, Florença.
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uma batalha belicosa ou amorosa. Já na Madonna de Manchester,
pintada provavelmente entre 1495
e 1497 (a autoria da obra já suscitou acaloradas discussões), os
dois rapazes ao fundo, um apoiado no outro, possuem a beleza
etérea e andrógina dos anjos, mas
sua fisionomia é triste, como se
estivessem lendo graves profecias
no papel que um deles segura. O
pequeno João Batista não lembra
mais um sátiro, como no Tondo
Doni, é uma criança com um olhar
profundamente triste. Se a obra
inacabada é mesmo de Michelangelo - e a mestria com que foi
executada autoriza a interpretação
- vemos o artista, no momento em
que entra na idade adulta, já bem
distante dos entusiasmos juvenis e
já atormentado por um sentimento indefinível de culpa.
Madonna de Manchester, circa 1495 /
1497 (detalhe), National Gallery, Londres.
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Juízo Final. 1541 (detalhe de Cristo e
a Virgem), Capela Sistina, Roma.
A partir do ponto de transição, Michelangelo parece querer
compensar a dúvida existencial
com a concretude dos corpos. Sua
pintura é cada vez mais escultural, os homens mais musculosos,
as mulheres também - a ponto de
parecerem deformadas, com exceção de Maria, sempre feminina e
serenamente bela. O Cristo do Juízo final tem a solidez de uma rocha, única certeza no mundo que
se desfaz.
Vale a pena confrontar os dois
afrescos monumentais da Capela
Sistina, no Vaticano, que o mestre terminou com um intervalo
de trinta anos. O Adão do teto é
juvenil e inocente - a Queda ainda estava por vir - e Deus paira
suspenso por um aglormerado de
anjos nus, juvenis, cujo sexo masculino dispensa discussões teológicas, pois está definido em seus
corpos. Os diversos ignudi (nus
decorativos, que preenchem os
espaços vazios) do teto são também jovens e cheios de vida. Já no
grande Juízo atrás do altar, os corpos dos condenados se contorcem
em desepero, fisionomias exasperadas, medo no olhar. Mesmo os
bem-aventurados se mostram temerosos, desconfiados, temendo
que ainda haja uma armadilha no
caminho da salvação.
No afresco do teto da Capela
Sistina há vários pequenos detalhes que permitem certos voos
Juízo Final, 1541, Capela Sistina,
Roma - detalhe de um condenado ao
ser arrastado para as profundezas pelos demônios.
Criação do homem, 1510, um dos painéis do teto da Capela Sistina, Roma.
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Ignudi, detalhes do teto da Capela Sistina (1510), com ramos de carvalho.
da imaginação. Não teorias conspiratórias que “mudarão a história da humanidade”. Nada de tão
grande ou tolo. Apenas pequenas
ilações sobre os gostos e a ironia
de Michelangelo, então no auge da
idade adulta. Mais de um ignudo
do teto está segurando ramos de
carvalho, com as glandes (bolotas)
bem destacadas. Não é preciso
dizer que as glandes do carvalho,
por semelhança, emprestaram seu
nome à cabeça do pênis. Isto não
passou despercebido aos maledicentes da época, aos quais Michelangelo explicou, irônico, que era
uma referência à família della Rovere (uma variedade de carvalho)
do Papa Júlio II, que encomendou
a obra. O já citado grupo de meninos e rapazes nus entrelaçados
(teoricamente anjos) que sustenta
Deus na criação de Adão é outro
detalhe curioso. Assim como o
traseiro desnudo de Deus pai no
painel da criação do sol, da lua e
dos planetas. Junte isso e mais alguns detalhes à enorme quantidade meninos, rapazes e homens nus
a preencher todos os espaços va20
zios do teto - algo que não se espera ver numa igreja - e fica evidente
que a preferência, admiração, veneração de Michelangelo pela perfeição do corpo masculino ainda o
dominava naquele momento de
sua vida.
As tendências homossexuais de
Michelangelo eram conhecidas na
época. Ele mesmo contou, em carta a seu amigo Niccolo Quaratesi
a divertida história de um pai que,
tentando convencê-lo a tomar o
filho como aprendiz, declarou:
“Quando você o vir, vai levá-lo
para cama no momento em que
chegar em casa.” O que também
confirma o que já dissemos sobre
o relacionamento entre mestres e
aprendizes na época. Mas se o assunto se prestava a ironias entre
amigos, aos inimigos dava munição para pesados ataques.
Entre os inimigos, o grande
escritor, poeta e dramaturgo Piero Aretino (1492-1556) - que, por
acaso, também era homossexual
- foi um dos que mais o criticaram. Entre os amantes do artista,
Aretino apontou Gherardo Perini
e Tommaso Cavalieri. Embora,
tendo posto os dois prenomes no
plural, deu a entender que havia
muitos outros.
Gerardo era um belo jovem
que começou a trabalhar para Michelangelo por volta de 1520. O
mestre se apaixonou por ele e o
ardor durou até por volta de 1530.
Se Gerardo não estava presente,
Michelangelo ficava inquieto, passava noites insones, lamentava-se
em poemas - o artista foi também
um dos maiores poetas italianos.
A paixão seguinte foi por um
modelo bem jovem, Febo di Poggio, mas durou pouco, entre 1533
e 1534. Em seus poemas da época,
Michelangelo faz várias alusões ao
caso utilizando o sentido comum
de poggio - pequeno monte - em
italiano. Mas o menino era esperto e ambicioso, explorava o artista de todas as maneiras - a ponto
de ser chamado por ele de “aquele
pequeno chantagista” - e o caso
acabou.
Aos 66 anos, Michelangelo teve
a mais breve dessas paixões, porém tão intensa quanto as demais,
e que se iniciou quando Cecchino
Bracci tinha 13 anos. Porém, em
pouco mais de dois anos o rapaz
morreu e o mestre ficou desolado. Desenhou-lhe uma sepultura
e escreveu mais de 50 epitáfios
poéticos em sua memória. Parece que tais epitáfios eram explícitos demais, não foram usados
na sepultura. Mas serviram para
o tio do menino fazer uma espécie de chantagem com o artista:
por muito tempo trocou cada um
deles por presentes de comida requintada.
A mais consistente, porém menos física, paixão de Michelangelo por um rapaz foi a que o ligou
a um jovem da nobreza romana,
Tommaso Cavalieri. Ele tinha 23
anos quando o artista, então com
57, o conheceu, em 1532. O ardor
e as maneiras do mestre o assustaram um pouco, pois ele já planejava casar, constituir família e
progredir na vida, portanto rejeitou seus avanços. A relação entre
os dois foi o que hoje se chama-
Vitória, 1534, Palazzo Vecchio, Florença.
ria, um tanto indevidamente, de
platônica, mas rendeu alguns dos
melhores poemas escritos por Michelangelo. Afirmam alguns que a
estátua da Vitória, esculpida originalmente para o conjunto da
tumba de Júlio II, é um retrato de
Tommaso. O velho curvado, subjugado por um rapaz indiferente
seria o próprio Michelangelo.
Outros rapazes foram também
amados por Michelangelo, que
teve até um relacionamento de
21
amizade com uma mulher, talvez
por ter ficado por demais perturbado pela retórica moralista
da Contra-Reforma. Vittoria Colonna, marquesa de Pescara, uma
viúva havia já 13 anos, passados
em um convento, na mais absoluta castidade. Brincando com
seu nobre sobrenome, um contemporâneo a chamou de “uma
coluna sombria resistindo firme
em meio a uma tempestade”. Não
que Michelangelo tivesse qualquer
intenção de desafiar tal castidade.
Ele mesmo a descreveu como un
uomo in una donna (um homen
em uma mulher). Mas o comedimento, a cultura e as maneiras
aristocráticas de Vittória - além de
sua beleza - muito contribuíram
para dar um pouco de segurança
interior ao velho artista - quando
a conheceu, ele já tinha 63 anos.
Vitória morreu em 1547, dezessete anos antes de Michelangelo.
Sua morte abalou sensivelmente o
mestre.
Além de escultor, pintor e poeta, Michelangelo, como convinha
a um artista da Renascença, foi
Pietà Rondanini, 1552-64, Museo
d’Arte Antica del Castello Sforzesco,
Milão.
Ignudo, 1510, Capela Sistina, detalhe.
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também arquiteto. Desde 1546 ele
foi o superintendente das obras
da Basílica de S. Pedro, em Roma.
Seus últimos anos foram marcados por pensamentos sombrios e
a preocupação com a morte. Suas
últimas esculturas foram deixadas, propositadamente talvez,
inacabadas. E a obra derradeira,
a Pietà Rondanini, com a qual ele
batalhou mais de uma década sem
contudo concluí-la, é um bom
exemplo de seus temores. O mestre inigualável ainda precisava docuidado materno para enfrentar a
eternidade - que ele conquistou.