O BOM CRIOULO - Gaia Ciência - arte, literatuda, cultura e maneira
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O BOM CRIOULO - Gaia Ciência - arte, literatuda, cultura e maneira
Nº 2 - outubro, 2015 O BOM CRIOULO- MICHELANGELO OS MARES DO TIO SAM - NOEL ROSA e muito mais A gente vai levando... E is aqui nossa segunda revista, o que não deixa de ser uma vitória, visto que a maioria das publicações culturais em nossa terra não ultrapassa o famigerado Ano 1, Número 1. Por enquanto não nos preocupamos com o ano, conseguir fazer o número seguinte é toda nossa pretensão. SUMÁRIO - Nº 2 out/2015 Literatura 03 - Bom Crioulo: uma tragédia tropical Geral 06 - Variedades História 08 - Navegando em águas revoltas 12 - Quando a coragem prevalece Artes Plásticas 14 - Michelangelo: a beleza angustiada GAIA CULTURA Revista de Arte e Cultura Editor: Júlio Bóreas Arte e Diagramação: Jojo Composição e edição: Editora Brava Florianópolis - SC Neste número apresentamos um artigo sobre literatura brasileira. Nossa intenção é, de agora em diante, em todos os números, abordar pelo meno um assunto brasileiro, seja na literatura, na música, nas artes plásticas, ou em outro campo que nos interesse. O livro de Adolfo Caminha, sobre o relacionamento de dois marinheiros, ousou contar o que outras literaturas mais sofisticadas (ou pelo menos mais pretensiosas) não contavam, além de mostrar o negro como parte integrante e indispensável de nosso povo. Graças a subliteratura best-seller, Leonardo da Vinci foi taxativamente rotulado de homossexual, uma ideia, no mínimo, anacrônica. Esquecem-se de Michelangelo, cuja obsessão pela beleza masculina, de preferência desnuda, só se comparáva a seu inexcedível talento ao retratá-la. Descendo à Terra, encontramos um samba de Noel Rosa cantando a verve e a valentia de um rapaz do morro do Salgueiro que tinha uma particularidade: não gostava de mulher. O que não o impedia de ser um sambista de primeira e gozar de grande prestígio entre as meninas do lugar. Espero que gostem deste nosso segundo número. O terceiro será ainda melhor... espero! Júlio Bóreas BOM CRIOULO: UMA TRAGÉDIA TROPICAL Júlio Bóreas N os fins do século XIX, passagem para o XX, a ciência, que desde o Iluminismo do século XVII vinha enfrentando galhardamente religiões e superstições, parecia ter vencido a batalha. Mas vencera também um cientifismo, tanto no sentido positivo, quanto no negativo, este o de aplicar mecanicamente conceitos científicos à vida prática, intelectual ou artística. Deste vezo da época, nasceu uma corrente literária que se tornou conhecida como Naturalismo, que, como outras invenções francesas, foi copiada aqui em nosso patropi. O nome que logo vem à memória quando falamos do Naturalismo brasilerio é o deAluízio Azevedo (1857-1913), autor de vários romances, entre os quais destacam-se pela qualidade e pela temática e construção afinadas com a escola literária adotada, O mulato, Casa de pensão e O cortiço, este útimo frequentador das famigeradas “listas” de livros para os exames vestibulares de nossas universidades. Mas vamos falar aqui de um autor menos conhecido, embora não menos empenhado em desenvolver uma literatura na3 turalista brasileira: Adolfo Caminha (18671897). Nascido no Ceará, na cidadezinha praiana de Aracati, ele passou a infância em sua provícia natal, onde a família sofreu as agruras da grande seca de 1877 e o jovem Adolfo teve a infelicidade de ficar órfão. Mudou-se então, ainda criança, para o Rio de Janeiro, onde morou com parentes. Em 1883, com 16 anos, Caminha entra para a marinha de Guerra. Ingressar no oficialato da Forças Armadas era uma opção para jovens de famílias empobrecidas da classe média. Ele alcança o posto de Segundo Tenente. Tanto sua experiência na Marinha, quanto uma viagem que fez aos Estados Unidos, em 1886, ainda como Guarda-Marinha, repercutirão em sua obra. Transferido para Fortaleza em 1888, envolve-se com uma mulher casada, esposa de militar, Isabel de Paula Barros. Os dois vão morar juntos. Mas o escândalo Adolfo Ferreira Caminha 4 O navio Amazonas, misto de vela e vapor, construído em 1851 na Inglaterra e incorporado à Marinha Brasileira em 1852, dá uma ideia dos navios da época de O Bom Crioulo. força Caminha a dar baixa na Marinha e a abandonar Fortaleza, onde já participava da vida intelectual da cidade, principalmente do grêmio Padaria Espiritual, que difundia o Naturalismo na província. O casal teve duas filhas, batizadas com os curiosos nomes de Belkiss e Aglaís. Voltando ao Rio de Janeiro, arruma um emprego como funcionário público e dá continuidade a sua carreira literária. Sua primeira publicação, como era comum na época, foi um livro de poemas, seguido de dois livros de contos. Em 1893 publica A normalista, ambientado em Fortaleza, sua estreia no Naturalismo. Em 1894 surge No país dos ianques, um livro sobre sua sua visita aos Estados Unidos. Em 1895 surge o romance de que nos ocuparemos aqui, O Bom Crioulo, a história de dois marinhieros, ambientado ora em um navio da nossa Marinha de Guerra, ora na cidade do Rio de Janeiro, Certamente a experiência de Caminha como marinheiro serviu para dar autenticidade à narrativa. A obra de Adolfo Caminha inclui mais apenas quatro romances, dois deles inacabado. Isto porque o autor morreu muito jovem de tuberculose, aos 29 anos, no Rio de Janeiro. O Bom Crioulo foi seu livro que sobreviveu, figurando entre os poucos exemplos da breve experiência naturalista de nossa literatura que ainda são lidos e que recebem a aprovação dos críticos. Segundo Alfredo Bosi, o livro “... resiste ainda hoje a uma leitura crítica que descarte os vezos da escola e saiba apreciar a construção de um tipo, o mulato Amaro...”. Mas quando de seu lançamento, o romance causou escândalo, tanto pelo tema ousado, um relacionamento homossexual entre dois marinheiros, como pela franqueza e imparcialidade com que tratou o tema - afinal, um romance naturalista era um “estudo”, não um panfleto moralista. A crítica literária dos jornais aborreceu Caminha, que chegou a publicar uma réplica em A Nova Revista, suplemento literário da época, reclamando da hipocrisia dos críticos, que elogiavam realistas ou naturalistas europeus como Flaubert, Zola, Maupassant, Eça de Queiroz, que relatavam várias baixezas morais em suas histórias, mas condenavam o brasileiro. Disse ele: “Qual o mais pernicioso: o Bom Crioulo em que se estuda e condena o homossexualismo, ou essas páginas que ahi andam pregando, em tom philosóphico, a dissolução da família, o comcubinato, o amor livre e toda a espécie de imoralidade social?” (citado por John Green, em seu livro Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX). Pelo visto, exageros de ambas as partes. Inclusive porque Caminha não condena o homossexualismo, pelos menos não com a veemência panfletária, e provavelmente hipócrita, da moral, da religião e dos inevitáveis “bons costumes”. Ele o analisa como resultado de circunstâncias, biológicas e ambientais. E, curiosamente, apesar de seu protagonista ser um negro, o mulato Amaro, o livro não é particularmente racista, numa época em que o o racismo era a regra e tinha bases “científicas”. Amaro, o protagonsta, era um negro escravo que, no fim da adolescência, não suportou mais as agruras da escravidão e fugiu da fazenda para o Rio de Janeiro, onde foi “recrutado” à revelia para ser marinheiro. Ora, as agruras da escravidão eram bem piores do que a rígida disciplina e o trabalho pesado na Marinha, onde ele tinha alojamento, comida farta, soldo e, mais importante do que tudo, liberdade. Amaro, dono de um físico esplêndido e de uma inteligência arguta, logo se torna um bom marinheiro e recebe o apelido de Bom-Crioulo. Tudo vai bem, até que numa viagem de seu navio a Santa Catarina ele se encontra com o recém-embarcado grumete Aleixo, um menino de quinze anos, alourado e de olhos azuis. A atração pelo rapaz é imediata e o autor não deixa dúvidas quanto à natureza sexual da mesma: “Esse movimento indefinível que acomente ao mesmo tempo duas naturezas de sexos contrários, determinando o desejo fisiológico da posse mútua, essa atração animal que faz o homem escravo da mulher e que em todas as espécies impulsiona o macho para a fêmea, sentiu-a Bom-Crioulo irresistivelmente ao cruzar a vista pela primeira vez com o grumetezinho”. Pouco depois, ainda a bordo, o desejo se cumpre e os dois se tornam amantes. Chegados ao Rio de Janeiro e desembarcados, Amaro aluga um quarto na cidade onde se instala com o rapaz, sonhando uma vida inteira de união. Mas, claro, o destino - e o romancista - conspiram contra ele. Uma série de peripécias levam a história a um desfecho trágico, que não vou revelar aqui; leiam o livro. O relevante é que tal desfecho não cai sobre a cabeça dois dois personagens como um castigo divino merecidamente imposto a um pecado nefando, trata-se apenas da evolução dos acontecimentos determinados pelas circunstâncias biológicas e sociais. Há várias edições disponíveis de O Bom Crioulo. Como se trata de obra já de domínio público, seu texto pode ser encontrado, gratuitamente, na internet. 5 Noel Rosa e o bamba diferente dade e, o que é muito importante, sem tom pejorativo, sem falso moralismo e sem drama. Noel, um mulherengo de primeira, capaz de paixões avassaladoras, como aquela por Ceci (Juraci Correia de Araújo), musa de muitas de suas canções, era também suficientemente lúcido para aceitar quem tivesse gostos diferentes, sem julgar nem condenar. Aqui vai a letra de seu samba Mulato bamba: Mulato bamba Noel Rosa N oel Rosa nasceu em 1910, no bairro de Vila Isabel, Rio de Janeiro. Morreu em 1937, com apenas 27 anos de idade. Por isso, e pela importância que teve para a música brasileira, é dessas pessoas que os articulistas comparam à imagem mais do que batida de uma estrela cadente. Noel brilhou em vida por um breve tempo, mas sua luz continua até hoje iluminando nossa arte musical. Noel Rosa, homem da classe média, foi o primeiro a levar para a música que se ouvia nas rádios, principal meio de comunicação da época, o falar simples do povo, desafiando as viúvas do parnasianismo. Prestigiou o samba que surgia no bairro do Estácio, com seu ritmo menos amaxixado e letras mais urbanas. Também trouxe para nossa música temas do dia a dia que não fossem amores torturados, além da ironia e do humor amalandrado. Por isso, não é de estranhar que tenha sido provavelmente o primeiro sambista a falar da homossexuali- 6 Este mulato forte é do Salgueiro, Passear no tintureiro é o seu esporte, Já nasceu com sorte e desde pirralho vive às custas do baralho. E quando tira um samba é novidade, Quer no morro ou na cidade, ele sempre foi o bamba. As morenas do lugar vivem a se lamentar por saber que ele não quer se apaixonar por mulher. O mulato é de fato e sabe fazer frente a qualquer valente, Mas não quer saber de fita nem com mulher bonita. Sei que ele anda agora aborrecido porque vive perseguido sempre, a toda hora. Ele vai-se embora para se livrar do feitiço e do azar das morenas de lá. Eu sei que o morro inteiro vai sentir quando o mulato partir, dando adeus para o Salgueiro. As morenas vão chorar, Vão pedir pra ele voltar E ele então diz com desdém: - Quem tudo quer, nada tem. Das preferências do mulato não restam dúvidas, como afirma o discreto verso: O mulato é de fato. Mas fica claro, também, que ele é muito prestigiado no morro do Salgueiro, é bonito, esperto e valente, não tem medo de nada e de ninguém, nem mesmo dos passeios no tintureiro - o apelido da época para o carro da polícia que transportava os presos. O cenário pintado por Noel é atraente e divertido. Mas, claro, poucos homossexuais da época gozavam dessa tranquilidade. Havia preconceito no morro e, principalmente, no “asfalto”, a classe média aferrada à hipocrisia judaico-cristã. Alguns caíam na marginalidade violenta, como o famoso Madame Satã (João Francisco dos Santos), ou se entregavam ao desespero, como o grande sambista Assis Valente, que tirou a própria vida. Pena que nem todo mundo seja como Noel... O samba Mulato bamba foi gravado por Mário Reis - outro inovador da música brasileira. Na página anterior, a foto do belo monumento em homenagem a Noel Rosa, em Vila Isabel, Rio de Janeiro, que além do compositor em seu ambiente natural (a mesa de um bar), homenageia outro personagem muito importante para a música popular, o garçom de botequim, como no samba Conversa de botequim. Nossos avós, hein? Quem diria?... Q uem acha que a disponibilidade de imagens pornográficas é um fenômeno dos nossos dias de internet está muito enganado. O historiador estadunidense James Naylor Green, que morou oito anos no Brasil, realizando vários estudos, e é professor universitário (Brown University, University of Miami), conta uma história diferente. Em seu livro Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX (Editora Unesp), um alentado estudo sobre o tema, ele descreve o que talvez seja “a primeira pornografia homoerótica brasileira para homens”. Trata-se de um dos pequenos volumes com contos eróticos editados pela revista Rio Nu (fundada em 1898), uma publicação que trazia notícias, historietas e ilustrações eróticas da Belle Époque carioca. O conto, publicado em 1914 e vendido nas bancas de jornais a preço módico, intulava-se O menino do Gouveia, contava as aventuras (ou desventuras) de um rapaz que se oferecia sexualmente a homens mais velhos e incluía uma ilustração bastante explícita (acima) do garoto exercitando suas preferências. Segundo Green, a partir da presença desta histórias entre as outras histórias heterossexuais da série, podemos deduzir que situações semelhantes não eram incomuns nem surpreeendentes na época. A história cita o Largo do Rossio (Praça Tiradentes), ponto de encontro de homossexuais, e a gíria da “fauna” local. 7 NAVEGANDO EM ÁGUAS REVOLTAS A nchors aweigh, ou âncoras para cima, é uma marcha composta em 1906 que se tornou hino da marinha de guerra estadunidense. Mais ou menos pela mesma época, outras coisas subiam e desciam na marinha ianque, causando grande alarde, e o motivo era apenas um: sexo homoerótico. Um dos autores que fazem menção a tais acontecimentos é o inglês Colins Spencer, em seu livro Homossexualidade: uma história (Editora Record, 1996). Deste livro, que em breve pretendemos abordar em nossa seção de Literatura, tiramos as informações iniciais deste artigo. Aqueles que procuram caracterizar o atraso econômico dos países da nossa América, frente à América inglesa, através de uma teoria baseada na colonização pelos países ibéricos, desconhecem um campo em que o Brasil esteve muito à frente dos puritanos anglo-saxões: a descriminalização da homossexualidade. Desde que as velhas Ordenações portuguesas, de raízes medievais, foram substituídas pela legislação do novo país independente, que a homossexualidade deixou de ser crime por estas bandas. Ou seja, no Brasil a homossexualidade nunca foi crime. Nosso primeiro Código Penal, promulgado em 1830, ignorou a homossexualidade. Se houve descriminação, a discriminação, entretanto, persistiu e sempre havia um meio de enquadrar o homossexual - principalmente se fosse pobre ou negro - num outro delito qualquer.. Aqui, como na maioria dos países do mundo, houve e há preconceito, agressão, perseguição, mas pelo menos não existe base legal para condenar a homossexualidade por si só. Ao contrário dos EUA e da Inglaterra, que, em plena segunda metade do século XX, baseados em sua legislação, ainda condenavam criminalmente pessoas homossexuais, pelo simples fato de serem homossexuais. Um ordenamento jurídico que a Inglaterra levou para suas colônias e que hoje vem sendo exacerbado em alguns países africanos, embora nada tenha de africano em suas origens. Quando se pensa no genocídio promovido pelo nazismo, nas décadas de 1930 e 1940, costuma-se esquecer que os homossexuais foram um dos grupos visados. Os documentos oficiais foram destruídos, mas O Colégio de Guerra Naval, em Newport, estado de Rhode Island, EUA 8 calcula-se que mais de 50 mil homossexuais perderam a vida nos campos de extermínio. Finda a II Guerra Mundial, os EUA e a Inglaterra iniciaram uma espécie de caça às bruxas contra os homossexuais, uma cruzada de “moralidade” contra a “ameaça” gay, que já tinha sido ensaiada em suas tropas durante o conflito. Mas as raízes do problema alcançam o início do século passado e a I Guerra Mundial. E um dos teatros da caça aos gays foi o complexo da marinha de guerra estadunidense em Newport, estado de Rhode Island, cidade antiga, aristocrática, repleta de ricas mansões separadas por campos de golfe de clubes exclusivos. Só que as reviravoltas do caso ganharam ar de comédia pastelão. Em 1919, dois marinheiros internados no hospital do complexo educacional da marinha de guerra dos EUA em Newport, Thomas Brunelle e Mate Ervin Arnold, conversavam sobre uma subcultura gay da cidade, a que o primeiro pertencia, na qual civis e marinheiros encontravam-se para ter contatos eróticos. Um tal Dr. E. M. Hudson, médico do hospital, sabendo disso, e preocupado com o “ar efeminado” de muitos de seus pacientes, sugeriu aos superiores que se fizesse uma investigação sobre o assunto; afinal, homossexualidade era crime, tanto pelos regulamentos militares quanto pelas leis gerais. Dentro da subcultura, os marinheiros homossexuais se autodenominavam queers(diferentes, estranhos) e eram classificados em três grupos: fairies ou suckers (praticavam a felação), pogues (gostavam de ser penetrados) e two-way artists (faziam as duas coisas). Havia um outro grupo, que sempre desempenhava papel masculino, conhecido como os “maridos” - alguns eram mesmo “casados” com um queer. Para fazer parte da “gangue”, o candidato tinha de se enquadrar numa dessas quatro categorias e não ter vergonha de desempenhar o papel que lhe cabia em público. Tanto o novo pessoal da gangue quanto Prédio da ACM de Newport e, no detalhe, o Rev. Samuel Kent. os “clientes” (geralmente civis de outras cidades) eram atraídos por “chamarizes” com um papel igualmente definido. Quanto mais se investigava, mais as dimensões do caso aumentavam. Entre os clientes costumeiros, apontado por vários chamarizes, estavam o clérigo episcopal Samuel Neal Kent e seu capelão e voluntário na ACM, Arthur Leslier Greene. Curiosamente, a investigação serviu-se de um pelotão de jovens alistados, que receberam a ordem de fazer sexo com os “pervertidos” para a produção de provas - jovens estes que, embora tendo cometido o mesmo “delito” sexual, estavam livres de qualquer culpa. Já em 1920, vinte e dois marinheiros foram presos e condenados. O reverendo Kent fugiu de Newport, mas a Marinha o achou e julgou-o por sodomia. Foi a vez de a Igreja Episcopal entrar na briga, em defesa de seu pastor. O caso cheirava cada vez pior e gente importante passou a se intrometer, inclusive o Secretário da Marinha e seu Secretário-Assistente, o futuro presidente Franklin Roosevelt. Ao final, conseguiram abafar quase tudo e a maioria dos marinheiros escapou apenas com a dispensa desonrosa. A base de Newport, entretanto, voltaria às manchetes. Qualquer guerra, não importam as justificativas criadas, é um evento monstruoso que deixa sequelas permanentes. Uma dessas sequelas é uma enorme desilusão de suas vítimas com os “valores” sociais e políticos invocados pelos líderes 9 Da esquerda para a direita: o senador McCarthy falando a seu assessor Roy Conh e o chefão do FBI, J. Edgar Hoover - três caçadores de “pervertidos” que o tempo revelou serem homossexuais enrustidos e fora do alcance das leis. belicosos, valores pelos quais (afirmam os mesmos líderes, sem sair de seus confortáveis e seguros gabinetes) vale a pena morrer nos campos de batalha. Os poucos jovens que conseguem voltar mais ou menos vivos da carnificina transformam sua desilusão numa enorme vontade de mudança, de liberação, no que são acompanhados pelos que, mesmo em casa, sofreram perdas contundentes, como pais, esposas, namoradas. Por isso os períodos de ebulição libertadora que o Ocidente atravessou nas décadas de 1920 e 1950/60. Contra esse desejo de liberação levantam-se de imediato as forças do poder, da economia, da moral e dos bons costumes - ou seja, a mesma camarilha que costuma fabricar as guerras e que, na paz, teme acima de tudo a mudança do statu quo. Derrotado o nazismo (foi mesmo?), cumpria agora derrotar a nova e terribilíssima ameaça contra a “América” e o “mundo livre”: o comunismo ateu. E todos sabem que comunistas e homossexuais, quando não são uma coisa só, são aliados perversos em seu objetivo de destruir o American way of life. Pelo menos era o que afirmava o tristemente famoso senador Josef Raymond McCar10 thy, o grande caçador de bruxas nos EUA da década de 1950. MaCarthy jogou então toda a força do Congresso na pressão sobre outros órgãos do Estado, exigindo que se descobrissem e punissem os “pervertidos”. Foi criado um subcomitê para investigar “os pervertidos sexuais que influenciaram nosso governo nos últimos anos, tão perigosos quanto os verdadeiros comunistas” - nas palavras do senador republicano Guy Gabrielson, que não queria deixar todos os holofotes para o colega democrata McCarthy. No Departamento de Estado, 91 funcionários homossexuais foram obrigados a se aposentar. J. Edgar Hoover, o notório chefão do FBI, não ficou atrás e declarou haver identificado “406 desviados sexuais nos quadros do governo” - mas não incluiu o próprio mome na lista, claro. Roy Cohn, assessor de McCarthy, foi o encarregado do contato com as forças armadas, tendo recebido dos militares do Exército, da Marinha e da Força Aérea, informações específicas, inclusive com mapas e gráficos (!), das bases onde havia grande número de homossexuais. A perseguição se espalhou por todo o país. Como sempre, nesses casos, os ricos e os poderosos foram poupados, os simples sofreram os castigos. Na base naval de Newport, um oficial e 24 recrutas foram expulsos com desonra. E também como sempre, nenhum dos grupos liberais ou religiosos protestou contra semelhante injustiça, que pode ser tudo, menos uma característica aceitável num “mundo livre”, numa democracia. Para os gays, os EUA (e também a Inglaterra da época) eram um estado policial. Só a esquerda americana protestou, mas sua voz, ainda uma vez e como sempre, não foi ouvida. E o passar do tempo revelou uma faceta tristemente curiosa do drama: Joseph McCarthy, Roy Cohn e J. Edgar Hoover, três dos mais empenhados arquitetos de toda essa opressão, eram eles mesmos homossexuais, que tentaram e conseguiram esconder do grande público, mesmo após suas mortes, a verdadeira natureza de seus desejos eróticos, que só muito depois vieram a público. (JB) Passeata pelo direito dos gays em San Diego, Califórnia, década de 1970. Na cidade em que existe o maior complexo naval militar estadunidense da costa do Pacífico, os marinheiros ianques ainda lutavam pelo reconhecimento da diversidade sexual. 11 QUANDO A CORAGEM PREVALECE W illem Johan Cornelis Arondeus nasceu em Naarden, uma cidadezinha holandesa próxima a Amsterdan e às margens do Gooimeer, um braço de mar que banha uma região bela e verdejante. Famosa por sua fortaleza em forma de estrela, cercada por um fosso igualmente geométrico, a cidade também costuma ser citada quando se fala de cultura, por ter sido berço um dos maiores pintores da época de ouro da arte holandesa, Salomon van Ruysdael. Willem, nascido em 1894, tam- 12 Júlio Bóreas bém era um artista. Ele trabalhava como ilustrador de livros, desenhista de cartazes e tapeçarias, pintor (na ilustração ao lado, vemos um projeto de selo postal de sua autoria). Chegou a receber uma encomenda, em 1923, de um mural para a prefeitura de Amsterdã. Nunca teve, entretanto, um sucesso que lhe permitisse viver apenas de sua arte. Por volta de 1935, deu início a uma carreira paralela de escritor e poeta. Só em 1938 teve os primeiros livros publicados, dois romances, com ilustrações feitas por ele. Seu melhor livro foi Matthijs Maris: de tragiek van den droom (Matthijs Maris: a tragédia do sonho), uma biografia deste pintor. Willem era homossexual e vivia abertamente suas preferências. Mas não foi por este detalhe, nem por sua arte, infelizmente, que ele entrou para a História. Willem cresceu em Amsterdã, onde seus país eram desenhistas de figurinos para o teatro, o que mal dava para o sustento dos seis filhos do casal. Além disso, não aceitavam a homossexualidade de Willem, que aos 17 anos teve de deixar a casa e distanciar-se da família. Ele se mudou para o campo, próximo à vila de Apeldoorn. A Alemanha nazista invadiu a Holanda em maio de 1940. Willem logo entrou para a resitência. Em 1941, ele começou a publicar um jornal underground em que incitava o povo holandês a resitir aos invasores. Em 1942 ele começou a editar o Brandarisbrief, mais um jornal ilegal, em que se opunha às diretrizes artísticas impostas pela Reichskulturcammer, o comitê cultural nazista. Mais tarde uniu seu jornal ao De Vrije Kunstenaar (O Artista Livre), do escultor Gerrit van der Veen e do compositor Jan van Gilse, entre outros. Não foi apenas no campo daliberdade artística que Willem atuou. Ele foi um dos primeiros a compreender que a exigência nazista de que todos os judeus da Holanda fossem cadastrados não era, como alegado, uma “medida de proteção”, mas sim um passo para deportação aos campos de concentração. O Raad van Verzet (Conselho da Resistência), de que Willem era membro, e outras organizações, passaram a atuar escondendo judeu e fornecendo-lhes documentos falsos, para ocultar sua condição. Rara foto de Willem J. C. Arondeus Os nazistas logo passaram a identificar os documentos falsificados ao confrontá-los com os registros de nascimento no Registro Público de Amsterdã. Para impossibilitar este recurso, Willem comandou um grupo que, em 27 de março de 1943, explodiu o prédio do arquivo. Milhares de registros foram destruídos, mas uma semana depois Willem e vários outros do grupo foram presos pelos alemães. Em julho, Willem e outros onze companheiros foram fuzilados. Antes da execução, ele pediu a um amigo que desse um testemunho, após a guerra: “Que saibam que os homossexuais não são covardes”. Mais que isso, ele foi lúcido o bastante para defender um povo do qual nossa civilização “ocidental” herdou os preceitos religiosos contra o homossexuais. Os povos são sempre vítimas, nunca algozes. Estes são sempre os líderes, políticos ou religiosos, que, dizendo-se veículos da vontade divina ou da segurança da pátria, espalham intolerância, violência e morte. Placa em homenagem à Resistência, em Amsterdã; o nome de Willem Arondeus é o primeiro. 13 MICHELANGELO A beleza angustiada Júlio Bóreas a foto acima, vemos uma das estátuas criadas por Michelangelo para a tumba de Juliano de Médici, em Florença. Detalhe de uma bela ilustração do livro Michelangelo, da editora ita- N 14 liana Skira, ela serve como metáfora visual da vida do artista: um homem dedicado a cultivar sua espiritualidade, mas sempre espreitado pela fervorosa admiração da beleza masculina. Michelangelo era homossexual? Esta pergunta, antes de mais nada, encontra-se deslocada. Homossexualidade é um conceito pseudocientífico criado no século XIX. Uma das ideias tolas que a literatura popular de má qualidade (leia-se Código DaVinci) disseminou foi a de que Leonardo da Vinci era homossexual. Sabendo de sua fome de experimentação e conhecimento, é mais do que provável que Leonardo tenha se divertido com jovens aprendizes de seu estúdio. Mas, que artista, na época, não fazia isto? Ou melhor, que mestre artesão da época não fazia, ou pelo menos era tentado a fazer, isto? É também provável que Leonardo apreciasse o relacionamento sexual com rapazes, talvez de forma exclusiva, mas isso não teve nenhuma influência em sua arte, então, aplicar-lhe um rótulo moderno serve apenas para dar margem a interpretações ridiculamente absurdas de sua obra. Deixemos a vida de Leonardo para outro artigo. Apenas devemos lembrar que a pintura de Leonardo é a menos “homossexual” que se pode encontrar. Os poucos quadros que ele terminou retratam belas mulheres, não rapazes másculos. Já no caso de Michelangelo, o nu masculino é uma constante em sua obra. O que isto significa em termos de orientação sexual do mestre não tem a mínima impotância para nós. Mas este leit motiv de sua arte nos leva a falar dele aqui, pois a perfeição de suas esculturas e suas pinturas foram raramente igualadas e talvez nunca superadas. Por isso ele criou algumas das mais belas figurações do corpo masculino já vistas. Michelangelo nasceu numa fa- culturas da antiguidade e as obras de florentinos inovadores, como Giotto, Masaccio e Donatello. Dois anos depois, Michelangelo deixa o estúdio e frequenta, de 1490 a 1492, os jardins da residência San Marco, dos Médici, onde Bertoldo di Giovanni ensinava escultura. Foi onde Michelangelo descobriu seu pendor para o que passou a considerar a expressão máxima Davi, 1504, Galleria della Academia, Florença. Baco embriagado, 1497,inspirado em um bronze perdido de Praxísteles, descrito por Plínio, o Velho. Muzeo Nazionale del Bargello, Florença. mília da pequena nobreza florentina, em 1475 (morre em 1564). Seu pai, Lodovico di Lionardo di Buonarroto Simoni era um notário, que chegou a governar como podestà algumas pequenas cidades subordinadas a Florença, por isso não via com bons olhos a precoce capacidade de desenhar do menino. Quando Michelangelo tinha 12 anos, o pai cedeu e o colocou como aprendiz no estúdio dos Ghirlandaio, onde ele aprendeu desenho e a arte do afresco, ao mesmo tempo que estudava as es15 das artes plásticas, a escultura em mármore. Mais importante, ele conquistou a amizade de Lorenzo de Médici, o Magnífico, dono da casa e senhor de Florença. Ele passou a receber aulas, junto com os filhos de Lorenzo, do humanista Poliziano e conviveu com os filósofos neoplatônicos Marsilio Ficino, Cristoforo Landino e Pico della Mirandola. Não vamos contar aqui a biografia de Michelangelo. Mas esses anos de formação viriam a determinar não apenas a vida futura do artista, como também o espírito de sua arte. Seus estudos de filosofia o levaram a recusar cada vez mais o mundo imperfeito e injusto, mas seu amor pelo belo o fazia cada vez mais obcecado pelo corpo masculino. Leonardo, seu eterno rival, também conquistou uma cultura refinada, embora partindo de origens bem mais humildes. Mas é difícil imaginar um Leonardo abatido por questões morais e filosóficas. Já Michelangelo viveu atormentado por não conseguir desligar-se do mundo e sua arte tornou-se cada vez mais ideal. Podemos ver esta evolução em algumas de suas obras. Seu Baco embriagado, uma obra da juventu16 de, possui o corpo atlético, mas sua pose é lânguida, sensual, seu olhar é extático, insinuante (ver detalhe acima). Já o grandioso Davi, terminado sete anos depois, tem o corpo ainda mais perfeito, mas uma pose altaneira, desafiante, e o semblante é carregado, o olhar se fixa preocupado na distância, seus lábios não sorriem. A estátua de Baco, baseada num modelo antigo, representa o prazer da vida terrena, é a celebração do corpo jovem e nu. Já a estátua de Davi, ainda que mostre também um corpo jovem, atlético e nu, é a celebração antes da alma do que do corpo. Reunir a plenitude dos dois princípios, corpo e alma, é o desafio insuperável que tolda o semblante do jovem e atormenta os dias de seu criador. Na pintura também podemos vislumbrar essa evolução. No Tondo Doni, 1504 (tondo é uma pintura circular, os Doni eram uma poderosa família florentina), Michelangelo pinta em primeiro plano uma das mais belas figurações da Sagrada Família, traduzindo a feliz intimidade entre mãe e filho, sob o olhar protetor de José. Ao fundo, entretanto, um grupo de jovens rapazes nus encostam-se uns nos outros, apoiando-se numa mureta. Não existe uma explicação para a presença de tais rapazes, nem o pintor a deu. Interpretações posteriores afirmam que os eles representam os tempos “anteriores à lei Mosaica”. Mera justificativa conciliadora. Os rapazes representam o que mostram, a intimidade erótica entre jovens cheios de energia, bem diferente da intimidade protetora do seio familiar. Mais estranha é a pequena figura que parece atravessar os dois planos, semelhante em tudo a um pequeno fauno. A mesma interpretação citada afirma que é o pequeno S. João Batista e a passagem dos tempos anteriores para o tempo cristão. Bem, se for, ele trouxe ecos de Dioniso, não de Moisés. O pequeno relevo Batalha dos Lápitas contra os Centauros, 1492 (acima), um estudo do adolescente Michelangelo, mostra também um entrelaçado de corpos nus, deixando a dúvida se é Tondo Doni, 1504. Uffizi, Florença. 17 uma batalha belicosa ou amorosa. Já na Madonna de Manchester, pintada provavelmente entre 1495 e 1497 (a autoria da obra já suscitou acaloradas discussões), os dois rapazes ao fundo, um apoiado no outro, possuem a beleza etérea e andrógina dos anjos, mas sua fisionomia é triste, como se estivessem lendo graves profecias no papel que um deles segura. O pequeno João Batista não lembra mais um sátiro, como no Tondo Doni, é uma criança com um olhar profundamente triste. Se a obra inacabada é mesmo de Michelangelo - e a mestria com que foi executada autoriza a interpretação - vemos o artista, no momento em que entra na idade adulta, já bem distante dos entusiasmos juvenis e já atormentado por um sentimento indefinível de culpa. Madonna de Manchester, circa 1495 / 1497 (detalhe), National Gallery, Londres. 18 Juízo Final. 1541 (detalhe de Cristo e a Virgem), Capela Sistina, Roma. A partir do ponto de transição, Michelangelo parece querer compensar a dúvida existencial com a concretude dos corpos. Sua pintura é cada vez mais escultural, os homens mais musculosos, as mulheres também - a ponto de parecerem deformadas, com exceção de Maria, sempre feminina e serenamente bela. O Cristo do Juízo final tem a solidez de uma rocha, única certeza no mundo que se desfaz. Vale a pena confrontar os dois afrescos monumentais da Capela Sistina, no Vaticano, que o mestre terminou com um intervalo de trinta anos. O Adão do teto é juvenil e inocente - a Queda ainda estava por vir - e Deus paira suspenso por um aglormerado de anjos nus, juvenis, cujo sexo masculino dispensa discussões teológicas, pois está definido em seus corpos. Os diversos ignudi (nus decorativos, que preenchem os espaços vazios) do teto são também jovens e cheios de vida. Já no grande Juízo atrás do altar, os corpos dos condenados se contorcem em desepero, fisionomias exasperadas, medo no olhar. Mesmo os bem-aventurados se mostram temerosos, desconfiados, temendo que ainda haja uma armadilha no caminho da salvação. No afresco do teto da Capela Sistina há vários pequenos detalhes que permitem certos voos Juízo Final, 1541, Capela Sistina, Roma - detalhe de um condenado ao ser arrastado para as profundezas pelos demônios. Criação do homem, 1510, um dos painéis do teto da Capela Sistina, Roma. 19 Ignudi, detalhes do teto da Capela Sistina (1510), com ramos de carvalho. da imaginação. Não teorias conspiratórias que “mudarão a história da humanidade”. Nada de tão grande ou tolo. Apenas pequenas ilações sobre os gostos e a ironia de Michelangelo, então no auge da idade adulta. Mais de um ignudo do teto está segurando ramos de carvalho, com as glandes (bolotas) bem destacadas. Não é preciso dizer que as glandes do carvalho, por semelhança, emprestaram seu nome à cabeça do pênis. Isto não passou despercebido aos maledicentes da época, aos quais Michelangelo explicou, irônico, que era uma referência à família della Rovere (uma variedade de carvalho) do Papa Júlio II, que encomendou a obra. O já citado grupo de meninos e rapazes nus entrelaçados (teoricamente anjos) que sustenta Deus na criação de Adão é outro detalhe curioso. Assim como o traseiro desnudo de Deus pai no painel da criação do sol, da lua e dos planetas. Junte isso e mais alguns detalhes à enorme quantidade meninos, rapazes e homens nus a preencher todos os espaços va20 zios do teto - algo que não se espera ver numa igreja - e fica evidente que a preferência, admiração, veneração de Michelangelo pela perfeição do corpo masculino ainda o dominava naquele momento de sua vida. As tendências homossexuais de Michelangelo eram conhecidas na época. Ele mesmo contou, em carta a seu amigo Niccolo Quaratesi a divertida história de um pai que, tentando convencê-lo a tomar o filho como aprendiz, declarou: “Quando você o vir, vai levá-lo para cama no momento em que chegar em casa.” O que também confirma o que já dissemos sobre o relacionamento entre mestres e aprendizes na época. Mas se o assunto se prestava a ironias entre amigos, aos inimigos dava munição para pesados ataques. Entre os inimigos, o grande escritor, poeta e dramaturgo Piero Aretino (1492-1556) - que, por acaso, também era homossexual - foi um dos que mais o criticaram. Entre os amantes do artista, Aretino apontou Gherardo Perini e Tommaso Cavalieri. Embora, tendo posto os dois prenomes no plural, deu a entender que havia muitos outros. Gerardo era um belo jovem que começou a trabalhar para Michelangelo por volta de 1520. O mestre se apaixonou por ele e o ardor durou até por volta de 1530. Se Gerardo não estava presente, Michelangelo ficava inquieto, passava noites insones, lamentava-se em poemas - o artista foi também um dos maiores poetas italianos. A paixão seguinte foi por um modelo bem jovem, Febo di Poggio, mas durou pouco, entre 1533 e 1534. Em seus poemas da época, Michelangelo faz várias alusões ao caso utilizando o sentido comum de poggio - pequeno monte - em italiano. Mas o menino era esperto e ambicioso, explorava o artista de todas as maneiras - a ponto de ser chamado por ele de “aquele pequeno chantagista” - e o caso acabou. Aos 66 anos, Michelangelo teve a mais breve dessas paixões, porém tão intensa quanto as demais, e que se iniciou quando Cecchino Bracci tinha 13 anos. Porém, em pouco mais de dois anos o rapaz morreu e o mestre ficou desolado. Desenhou-lhe uma sepultura e escreveu mais de 50 epitáfios poéticos em sua memória. Parece que tais epitáfios eram explícitos demais, não foram usados na sepultura. Mas serviram para o tio do menino fazer uma espécie de chantagem com o artista: por muito tempo trocou cada um deles por presentes de comida requintada. A mais consistente, porém menos física, paixão de Michelangelo por um rapaz foi a que o ligou a um jovem da nobreza romana, Tommaso Cavalieri. Ele tinha 23 anos quando o artista, então com 57, o conheceu, em 1532. O ardor e as maneiras do mestre o assustaram um pouco, pois ele já planejava casar, constituir família e progredir na vida, portanto rejeitou seus avanços. A relação entre os dois foi o que hoje se chama- Vitória, 1534, Palazzo Vecchio, Florença. ria, um tanto indevidamente, de platônica, mas rendeu alguns dos melhores poemas escritos por Michelangelo. Afirmam alguns que a estátua da Vitória, esculpida originalmente para o conjunto da tumba de Júlio II, é um retrato de Tommaso. O velho curvado, subjugado por um rapaz indiferente seria o próprio Michelangelo. Outros rapazes foram também amados por Michelangelo, que teve até um relacionamento de 21 amizade com uma mulher, talvez por ter ficado por demais perturbado pela retórica moralista da Contra-Reforma. Vittoria Colonna, marquesa de Pescara, uma viúva havia já 13 anos, passados em um convento, na mais absoluta castidade. Brincando com seu nobre sobrenome, um contemporâneo a chamou de “uma coluna sombria resistindo firme em meio a uma tempestade”. Não que Michelangelo tivesse qualquer intenção de desafiar tal castidade. Ele mesmo a descreveu como un uomo in una donna (um homen em uma mulher). Mas o comedimento, a cultura e as maneiras aristocráticas de Vittória - além de sua beleza - muito contribuíram para dar um pouco de segurança interior ao velho artista - quando a conheceu, ele já tinha 63 anos. Vitória morreu em 1547, dezessete anos antes de Michelangelo. Sua morte abalou sensivelmente o mestre. Além de escultor, pintor e poeta, Michelangelo, como convinha a um artista da Renascença, foi Pietà Rondanini, 1552-64, Museo d’Arte Antica del Castello Sforzesco, Milão. Ignudo, 1510, Capela Sistina, detalhe. 22 também arquiteto. Desde 1546 ele foi o superintendente das obras da Basílica de S. Pedro, em Roma. Seus últimos anos foram marcados por pensamentos sombrios e a preocupação com a morte. Suas últimas esculturas foram deixadas, propositadamente talvez, inacabadas. E a obra derradeira, a Pietà Rondanini, com a qual ele batalhou mais de uma década sem contudo concluí-la, é um bom exemplo de seus temores. O mestre inigualável ainda precisava docuidado materno para enfrentar a eternidade - que ele conquistou.