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EVANGELHO Q: UM “TURNING POINT” NA HISTÓRIA DO CRISTIANISMO PRIMITIVO Lair Amaro dos Santos Faria * Resumo: O Evangelho Q é um documento hipotético, postulado com o fim de fornecer uma solução satisfatória ao assim chamado Problema Sinótico. Sua reconstrução, porém, levanta questões intrigantes de modo a sugerir que as origens do cristianismo possam ter sido diferentes de tudo o que se pensa a respeito. Este trabalho acompanha o processo que conduziu à "descoberta" do documento e descreve as implicações que a existência do suposto evangelho trazem para a história do cristianismo. Abstract: Q is a hypothetical document, postulated with the intention to offer a satisfactory solution to the "Synoptic Problem". Its reconstruction, nevertheless, raises intriguing questions regarding the origins of Christianity, implying that History could be different than what it has been considered true so far. This paper focus on the process that led to the "discovery" of the referred document. It also considers the implications that its simple existence can bring to the History of Christianity. Palavras-chave: Problema Sinótico; Fonte Q; Hipótese de Griesbach; Hipótese dos Dois Documentos. A impressão de que o testemunho quádruplo acerca das palavras e feitos de Jesus (ou seja, os evangelhos intracanônicos de Marcos, Mateus, Lucas e João) oferece e se constitui em um conjunto unitário, harmônico e concordante é uma ilusão. Assim, por exemplo, de acordo com o autor do evangelho de Marcos, o primeiro sinal prodigalizado por Jesus em seu ministério público ocorreu em Cafarnaum, no interior de uma sinagoga, por meio da expulsão de um espírito impuro que atormentava um homem não nomeado pela narrativa (Mc 1:21-28), ao passo que, conforme o autor do evangelho de João, o “início dos sinais”, isto é, Jesus provando a autenticidade de sua missão, ocorreu em Caná da Galiléia, durante um casamento no qual Jesus teria transformado água em vinho (Jo 2:1-12), aliás, um fenômeno exclusivamente joanino. 1 E, ao contrário do que se pensa, não é uma percepção moderna a constatação de que as narrativas evangélicas intracanônicas apresentam pontos de convergência e de * Aluno de Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, associada ao Laboratório de História Antiga (LHIA/UFRJ) divergência. Neste sentido, já no século II E.C., autores cristãos buscavam produzir uma harmonização dos evangelhos. O primeiro a tentar resolver o problema das semelhanças e diferenças existentes entre os evangelhos intracanônicos foi um discípulo de Justino Mártir, o cristão sírio Taciano (c. 110-172), que redigiu uma harmonia dos quatro Evangelhos denominada Diatéssaron, por volta de 150 E.C. 2 , com o propósito de obter um texto único e compreensível. Em seguida, um cristão pouco conhecido, chamado Ammonius de Alexandria (c. 220), precursor das modernas sinopses dos evangelhos, embora usando o termo “harmonia”, buscou listar as passagens paralelas identificáveis nos evangelhos com fins de comparação (STEIN, 1989, p.17). Um outro trabalho importante que visava lidar com as similaridades e as discrepâncias entre os evangelhos intracanônicos foi escrito por Santo Agostinho, intitulado De Consensu Evangelistarum. Sua perspectiva era claramente harmonizadora, intentando demonstrar que os relatos evangélicos não conflitavam ou contradiziam-se entre si. Como, em seu ponto de vista, os evangelhos haviam sido escritos por homens através da ação do Espírito Santo, os relatos não podiam desdizer-se uns aos outros. No decorrer dos séculos seguintes, várias harmonias dos evangelhos surgiram, adotando invariavelmente a premissa de que os textos podiam ser postos lado a lado e que as divergências notadas não invalidavam a noção de que os textos formavam um todo coerente, único e concordante. Eis que, em 1776, negando toda relação harmônica entre os evangelhos, Johann Jacob Griesbach, publicou sua Synopsis Evangeliorum Matthaei, Marci et Lucae (STEIN, 1989, p. 23). Griesbach duvidava sinceramente da possibilidade de construir uma “harmonia” dos textos evangélicos, daí porque sua principal proposição, inédita para a época, foi empregar pela primeira vez o termo “sinopse”. A inovação trazida por Griesbach residiu no fato dele ignorar o evangelho de João e, conseqüentemente, evitar reconciliar as cronologias dos quatro evangelhos. Anos depois, em 1797, Griesbach publicou uma segunda edição de sua Synopsis, em que incluiu João 12,1-8 e 18,1-21,25. Enfim, o trabalho pioneiro de Griesbach tornou-se modelo para os estudos subseqüentes sobre as relações literárias entre os evangelhos intracanônicos. 59 Foi, portanto, a partir do momento em que se reconheceu a existência de algum tipo de interdependência entre as narrativas evangélicas de Marcos, Mateus, Lucas e João, abandonando-se, por outro lado, qualquer tentativa de produzir-se harmonizações entre elas, que se criaram condições para o surgimento do assim chamado “problema sinótico”. Afinal, como explicar satisfatoriamente o fato de que Marcos, Mateus e Lucas narram aproximadamente a mesma história em, mais ou menos, a mesma ordem, enquanto João utiliza um procedimento completamente diferente? (ROBINSON; HOFFMANN; KLOPPENBORG, 2004, p.19). A fim de solucionar este problema, uma série de hipóteses foi elaborada. Muitas delas têm poucos seguidores nos dias de hoje, enquanto outras continuam sendo as mais plausíveis para equacionar a inter-relação entre os evangelhos sinóticos. Atualmente, já não cabem argumentos do tipo que associam uma dependência oral entre os manuscritos, assim como são improcedentes as tentativas de recorrer à memória ou a técnicas de memorização para justificar ou explicar como Marcos, Mateus e Lucas apresentam significativo material literário em comum. Antes de prosseguir, porém, são necessárias algumas considerações preliminares conforme sugeridas por John Kloppenborg (2000, p. 15). Admitindo-se que entre três documentos quaisquer (A, B e C) haja algum padrão de concordâncias e discrepâncias, tal que se suspeite que entre eles há, de alguma maneira, uma inter-relação literária, aceitando-se que os três documentos literários compartilham diversos elementos em comum (por exemplo, wxy), mas que B e C compartilham um elemento (z) que não se encontra em A e que B e C concordam, em palavras e na localização de z, por exemplo, entre x e y, é provável a existência de uma relação literária entre B e C. Conforme estes dados preliminares, diversas relações literárias poderiam ser sugeridas, como, por exemplo: (1) A(w-x-y) → B(w-x-z-y) → C (w-x-z-y) (2) B(w-x-z-y) → C (w-x-z-y) → A(w-x-y) Nestas duas situações, percebe-se claramente que C copiou de B na íntegra, todavia, em (1), B adicionou o elemento z aos elementos que copiou de A; em (2), A reproduziu apenas wxy, omitindo o z que estava em sua fonte C. 60 Há que se ressaltar, contudo, que um outro tipo de relação literária não é possível de forma a permitir uma explicação que dê conta do que ocorre. É ela: (3) B(w-x-z-y) → A(w-x-y) → C (w-x-z-y) Uma vez que não exista uma relação literária direta entre B e C, verifica-se a impossibilidade lógica de explicar a aparição de z exatamente da mesma forma e no mesmo lugar que se encontra em B. Muito embora não se possa descartar absolutamente a coincidência, ela é, de fato, uma possibilidade bem remota. Conseqüentemente, percebendo que a terceira situação é pouco provável, as duas primeiras mostram-se, por outro lado, plausíveis, ainda que não se possa afirmar qual delas é mais preferível. Transferindo este quadro de situações hipotéticas acima para a análise literária comparada entre os evangelhos sinóticos, pode-se afirmar que o mesmo se repete. Ou seja, existem diversas formas de posicionar os três evangelhos de modo a inferir relações literárias diretas ou indiretas entre eles. Entretanto, os dados sinópticos apresentam características específicas que excluem ou não permitem algumas das disposições imaginadas por serem estas altamente improváveis. Uma segunda ordem de convenções preliminares aponta para uma percepção aceitável do que venha a ser uma perspectiva lógica ou historicamente plausível. Caso se diga que, na relação A(w-x-y) → B(w-x-z-y), o procedimento de B (a inclusão de z entre x e y) é explicável a partir do que se sabe a respeito do estilo editorial ou da história conhecida de B, mas se não se obtém na relação C (w-x-z-y) → A(w-x-y) alguma forma de explanação análoga ou equivalente, isto é, se faltam elementos, lógicos e/ou editoriais e/ou históricos, que justifiquem a omissão de z na cópia feita por A de C, deduz-se então que A → B → C é a melhor hipótese explicativa, em outras palavras, C copiou de B que copiou de A, muito embora B → C → A também seja logicamente possível. Neste sentido, caso se explique a adição de z por B, mas não sua omissão por A, então B → C → A, ainda que possível, torna-se menos provável. Todas estas premissas mostram-se pertinentes e necessárias enquanto regras metodológicas, quando se observam argumentos do tipo “o evangelho A mudou ou eliminou z (uma palavra, uma perícope ou uma unidade inteira) do evangelho B (sua fonte) pela simples razão que o autor de A não ‘gostava’ de z” (KLOPPENBORG, 2000, p. 16). 61 Tal é uma das argumentações oferecidas por M. D. Goulder (apud TUCKETT, 1996:26), que assevera ter o autor de Lucas preferências por pequenos discursos, “cortando” de suas fontes literárias (na opinião de Goulder, os evangelhos de Marcos e de Mateus) as prédicas de Jesus que, por uma razão ou outra, pareciam, para Lucas, muito longas e indigestas. Ainda de acordo com Goulder, Lucas sempre optava por perícopes contendo de doze a vinte versículos que, por alguma razão, estavam de acordo com o que uma congregação podia assimilar em única vez (apud TUCKETT, 1996, p.26). Diante, porém, do longo discurso em Mc 13, reproduzido na íntegra em Lc 21, Goulder considera que, neste caso, assim se deu pela impossibilidade de o discurso em Marcos ser quebrado. Ao fim e ao cabo, toda esta discussão referente às inter-relações entre os evangelhos sinóticos converge para: (a) elaboração de diferentes hipóteses que satisfaçam regras metodológicas definidas e (b) estabelecimento de uma ordem cronológica da escrita dos evangelhos sinóticos. Não podendo ser negada a interdependência literária entre Marcos, Mateus e Lucas, os estudiosos pensaram em diversas hipóteses alternativas que lograssem solucionar as várias questões que emergiam, uma após outra, à medida que mais passagens eram examinadas em paralelo. Hipótese do fragmento. Em 1817, Friedrich Schleiermacher afirmava que a forma mais antiga dos escritos evangélicos consistira de várias coleções fragmentárias dos materiais sobre Jesus, colecionadas de acordo com os interesses de quem as conservava, uns guardando fragmentos com ditos de Jesus, outros retendo fragmentos com os milagres de Jesus e assim por diante (KÖESTER, 2005, p.49). Ainda conforme Schleiermacher, estes fragmentos haviam sido escritos pelos apóstolos como uma espécie de breves recordações das atividades e ditos de Jesus (memorabilia). À medida que os apóstolos foram morrendo, estas recordações passaram a ser ordenadas consoante tópicos específicos, tais como histórias de milagres, narrativa da paixão, diversos discursos e outros tópicos. Segundo esta hipótese, os fragmentos seriam incontáveis e vieram a ser utilizados pelos autores dos evangelhos em suas versões finais. 62 Embora a hipótese de Schleiermacher conseguisse explicar, até certo ponto, o ordenamento que se observa em uma coleção de parábolas (Mc 4,1-32) ou em uma coleção de histórias de milagres (Mc 2,1-3,6), ela era incapaz de explicar como, através de fragmentos individuais colecionados à parte pelos autores dos evangelhos, pôde obter-se a concordância na ordem em que foram dispostos diversos versículos nos sinóticos. Hipótese do proto-evangelho. Proposta por G. E. Lessing (1776) e J. G. Eichhorn (1796), advoga a existência de um evangelho primitivo em aramaico que, posteriormente teria sido traduzido para o grego, e assim servido como fonte para os autores de Marcos, Mateus e Lucas (STEIN, 1989, p. 45). Diante das semelhanças e dessemelhanças encontráveis entre os sinóticos, os defensores desta hipótese sugerem que as semelhanças devem-se ao uso do mesmo proto-evangelho hipotético e que as divergências resultariam da utilização de versões revisadas e modificadas deste protoevangelho comum. O principal problema a enfraquecer de tal maneira esta hipótese surge na tentativa de reconstrução do proto-evangelho hipotético. Pondo em separado os elementos que fossem comuns a Marcos, Mateus e Lucas, poder-se-ia “descobrir” a fonte primitiva dos sinóticos. Contudo, à proporção que este procedimento era levado a efeito, mais e mais o proto-evangelho se assemelhava a uma espécie de proto-Marcos, existindo, com efeito, fortes razões para suspeitar que o proto-evangelho e Marcos fossem a mesma entidade. Em suma, a hipótese veio a reforçar a noção da interdependência entre os evangelhos. Hipótese da interdependência. É a hipótese com mais aceitação entre os pesquisadores. Muito embora seja possível encontrar dezoito tipos de combinações entre os três evangelhos sinóticos, que apontam sua interdependência literária, destes dezoito tipos, apenas três soluções há que têm recebido maiores atenções no decorrer dos anos. A primeira solução aventada, e que remonta a Santo Agostinho, sublinha que Mateus foi o primeiro evangelho escrito, e que, em seguida, veio a ser usado por Marcos, e, por último, Lucas utilizou Marcos (Figura 1): 63 Figura 1 Mateus Marcos Lucas A segunda solução é comumente denominada de Hipótese de Griesbach, uma vez que foi proposta por Griesbach em 1776. De acordo com esta hipótese, Mateus redigiu o primeiro evangelho e serviu de fonte para o autor de Lucas. Marcos, por sua vez, escreveu por último, servindo-se de Mateus e Lucas como suas fontes primárias (Figura 2): Figura 2 Mateus Lucas Marcos A terceira solução firmou-se como a mais aceitável entre a maioria dos estudiosos e tem sido associada a H. J. Holtzmann (1863) e B. H. Streeter (1924). Segundo estes autores, Marcos seria o primeiro evangelho escrito e teria sido usado, independentemente, por Mateus e Lucas. Uma extensa quantidade de argumentos favorece esta hipótese em detrimento das anteriores, sendo conhecida como a hipótese da prioridade marcana 3 (Figura 3): 64 Figura 3 Marcos Mateus Lucas A hipótese da prioridade marcana decididamente resolve mais problemas do que as outras teorias, oferecendo a melhor explicação para o fato de Mateus e Lucas concordarem tão freqüentemente com Marcos na seqüência e na fraseologia (BROWN, 2005, p.191). Entretanto, ao mesmo tempo em que se observa uma considerável quantidade de material comum aos três evangelhos, também é de ressaltar-se uma significativa quantidade de material comum a Mateus e Lucas que não se encontram em Marcos. Ao constatar a ocorrência de cerca de 220 a 235 versículos (no todo ou em parte) compartilhados por Mateus e Lucas e não pertencentes ao material marcano, os estudiosos postularam a existência de uma segunda fonte por trás de Mateus e Lucas. É evidente, contudo, que as concordâncias em palavras entre os dois evangelhos, sustentando a hipótese de uma outra fonte, somente validam esta fonte se for possível demonstrar o desconhecimento de Lucas por Mateus e vice-versa. Não obstante, inúmeros pesquisadores aderiram à hipótese da existência de uma outra fonte comum a Mateus e Lucas e vêm buscando reconstruir o hipotético documento, através do cotejamento dos versículos paralelos nos dois evangelhos. Importa assinalar que, ao olhar-se para o resultado final deste cotejamento, os versículos comuns resumem-se em pronunciamentos de Jesus, algumas parábolas e o mínimo absoluto de um contexto narrativo, com exceção da narrativa da tentação no deserto, a cura do servo enfermo do centurião e a ida dos discípulos de João, cognominado Batista, até Jesus. Surpreende igualmente a ausência de outros relatos envolvendo milagres, a não-constituição de um corpo apostólico e a falta dos dramáticos eventos concernentes à prisão, crucificação e ressurreição de Jesus. Enfim, a 65 suposta outra fonte de Mateus e Lucas apresentava um Jesus com tons fortemente sapienciais. No entanto, era preciso nomear esta fonte hipotética. Após receber diversas designações (Logia, Logoi, Λ), em 1880 o documento hipotético utilizado por Mateus e Lucas foi, pela primeira vez, chamado de Q. Tratava-se da abreviação da palavra Quelle, “fonte” em alemão, e foi proposta por E. Simons, aluno de H. J. Holtzmann (ROBINSON; HOFFMANN; KLOPPENBORG, 2004, p. 34, nota 30). 4 Gradativamente, o que era uma fonte hipotética foi adquirindo contornos mais e mais nítidos até assumir o status de um evangelho “por seus próprios méritos, com integridade textual, genérica e teológica e não apenas fonte” de Mateus e Lucas (CROSSAN, 2004, p. 161). A ponto de James Robinson afirmar peremptoriamente: “Agora já não é necessário seguir considerando Q como uma pura hipótese, como uma entidade meramente postulada, escondida de forma inacessível por trás dos evangelhos de Mateus e Lucas” (ROBINSON; HOFFMANN; KLOPPENBORG, 2004, p. 20). Por conseguinte, a configuração da inter-relação literária dos evangelhos sinóticos passou a ser representada conforme abaixo (Figura 4): Figura 4 Marcos Mateus Q Lucas Conjeturada a existência de um evangelho, disponível através da comparação entre Mateus e Lucas, o passo seguinte (ou os passos seguintes) consistiu no refinamento da hipótese e na ampliação considerável dos estudos acerca de Q. Em certa medida, para historiadores mais otimistas, o Evangelho Q reconstruído passava a significar uma espécie de “turning point” em tudo o que se sabia a respeito dos primórdios do cristianismo. Nas palavras de Gerd Theissen, “sem sombra de 66 dúvida, Q é a fonte mais importante para a reconstrução do ensino de Jesus” (THEISSEN; MERZ, 2002, p.49). Em outras palavras, Theissen está sugerindo que, diante das fontes sinóticas e não-sinóticas, Q sobrepujaria a todas, exercendo provavelmente um papel da mais alta relevância, à proporção que remontaria a um grupo de seguidores de Jesus, caracterizados por ele como “peregrinos carismáticos do cristianismo primitivo”, que “continuaram o estilo de vida e a pregação de Jesus” (THEISSEN; MERZ, 2002, p. 48). Implica dizer, o movimento de Jesus, após a sua morte, no ponto de vista de Theissen, seria marcadamente constituído de grupos itinerantes e não por comunidades fixas. Estes primeiros seguidores teriam adotado um estilo de vida e um comportamento público radicalmente incomuns, à medida que adotavam a pobreza voluntária e a mendicância (apud MACK, 1994, p. 44). Um retrato dos primeiros cristãos, não se pode deixar de perceber, que contraria o imaginário cristão a respeito dos primórdios do movimento de Jesus. Nele, deixa de haver espaço para humildes pescadores e contritos coletores de impostos vindo a estabelecer-se em Jerusalém, para ser ocupado tão somente por homens e mulheres que, abandonando suas famílias e suas poucas posses, vagavam pelas estradas e cidades, trajando vestes rotas, esmolando pão e dinheiro e pregando a iminência do Reino de Deus. Historiadores há que foram mais além. Notaram uma identidade surpreendente entre a pregação e o estilo de vida de Jesus e seus primeiros seguidores com a tradição grega da filosofia cínica (MACK, 1994, p. 47). E radicalizaram ainda mais a representação das origens cristãs. Ou seja, o estilo de vida propugnado por Jesus em Q, estava muito mais próximo dos padrões comportamentais característicos dos cínicos da tradição helênica de filosofia popular do que da tradição judaica. Em oposição a estes estudiosos, outros pesquisadores propuseram, à luz do conteúdo de Q, um Jesus distante da filosofia popular cínica. Concluíram que o retrato de Jesus evidenciado por este documento, sublinhava um sábio meramente humano, expondo seus ensinamentos de sabedoria com notáveis paralelos no livro do Deuteronômio, e esboçando um manifesto ético de compaixão pelos oprimidos e amor por seus inimigos que, em certa medida, continua a ser um “desafio oportuno num mundo atual preenchido de racismo, sexismo e tribalismo” (BLOMBERG, 2001, p. 25). 67 Esta pequena amostra das diferentes concepções acadêmicas acerca da figura de Jesus e de que maneira se portavam os seus primeiros seguidores, obtidas mediante a análise crítica de Q, indica o desafio que representa para os estudiosos do cristianismo primitivo a simples existência de um documento como Q. Sabendo-se que Mateus e Lucas tinham diante de si, independentes um do outro, tal documento e verificando de que forma aqueles autores alteraram a sua fonte, igualmente é possível acompanhar o desenvolvimento das teologias particulares de cada uma destas comunidades que produziram os evangelhos de Mateus e Lucas. Em suma, é dado aferir como, cada comunidade em cada contexto próprio, interagiu com suas realidades, interna e externa, e buscou encontrar respostas para o momento em que viviam, articulando o texto de suas fontes (Marcos e Q) com o propósito de preservar a si mesmas e à mensagem ou tradições que lhes perpassavam. E que, em última instância, atestam a noção de um cristianismo primitivo polissêmico, mais bem definido como composto por “cristianismos” num processo de auto-afirmação, na luta por fazer prevalecer, ainda que convivendo, a sua Verdade sobre as outras em constantes e agressivas reivindicações pessoais de autoridade. Ou seja, com Q pode-se inferir que carecem de bases os que enxergam algum tipo de linearidade na história cristã que começaria em Jesus e seguiria triunfante e unitária até Roma. Havia uma multiplicidade de vozes, uma ampla difusão de grupos cristãos, judaicos e gnósticos, com diferentes expectativas e experiências, interpretando cada uma a seu modo o significado da vida e morte de Jesus. É neste sentido que se pode asseverar que Q é um “turning point” no conhecimento da história do cristianismo primitivo. Por causa de uma série de fatores. Quando se isolam as passagens comuns a Mateus e a Lucas, não encontradas em Marcos, ou seja, quando se reconstrói Q, os versículos sempre principiam com pronunciamentos, discursos e falas de Jesus. Os estudiosos afirmavam que, na literatura evangélica, não havia nada parecido e, portanto, inexistiam elementos a atestar que um documento cristão pudesse ter sido redigido desta forma. Todavia, a descoberta, em 1945, de manuscritos guardados em cavernas do Alto Egito, datados pelos especialistas no século II E.C., mostrou que era factível um texto cristão produzido em forma de sentenças. Pois, entre os manuscritos, um chamava a atenção, entre outros motivos, pela sua forma: o Evangelho de Tomé, o Gêmeo 68 (PAGELS, 1989, p. xiii). Este evangelho, ao contrário dos evangelhos conhecidos, atém-se especificamente às sentenças de Jesus, podendo-se enumerá-las em 114 unidades, reconhecidas por começarem com uma declaração de Jesus ou com um comentário a Jesus (CROSSAN, 2004, p. 285; MEYER, 1993, p. 13). Um outro elemento refere-se ao fato de, à medida que, para seu(s) autor(es), não parecia tão importante registrar a ida de Jesus para Jerusalém de encontro ao seu destino fatal, pode-se questionar o quanto a crucificação e posterior ressurreição de Jesus eram, de fato, pontos centrais na fé cristã dos primeiros séculos. Uma última palavra sobre Q. Este trabalho pretendeu elucidar o processo de “descobrimento” de um documento, ao que tudo indica, escrito – um Evangelho – que foi manuseado pelos autores dos evangelhos de Mateus e Lucas. Passo a passo, tentou descrever os esforços para obter-se uma explicação plausível sobre as inter-relações literárias entre os evangelhos, no assim chamado problema sinótico. Assim, a busca por uma solução satisfatória ao problema sinótico conduziu à postulação de um segundo documento por trás dos textos de Mateus e Lucas, de modo a clarificar o processo de redação dos evangelhos intracanônicos e suas inter-relações. Portanto, o Evangelho Q é uma hipótese de trabalho. Em função deste seu caráter hipotético e especulativo, acadêmicos e religiosos há que recusam qualquer possibilidade de existência ao Evangelho Q. De fato, e é preciso ter claro isto, tal documento jamais foi encontrado. Por exemplo, John P. Meier, que se mostra reticente com os estudos a respeito de Q e sugere que os estudos bíblicos experimentariam um grande avanço se os exegetas “repetissem todas as manhãs, como um mantra: ‘Q é um documento hipotético, do qual o tamanho, a redação, a comunidade originária, os estratos e os estágios da escrita exatos não são conhecidos’” (MEIER, 1996, p. 244), poupando-se assim os estudiosos de vôos da imaginação fadados a acabar em ceticismo. É quase certo que Meier não está recusando por completo a possibilidade da existência de um documento como Q, porém, enquanto apenas uma hipótese, parece a ele serem exageradas as ilações acadêmicas no que diz respeito às diversas características imputadas ao documento “perdido”. Apesar destas ressalvas, mediante o que se sabe a respeito da metodologia da pesquisa científica, não existe uma teoria ou modelo explicativo que possa prescindir de 69 hipóteses de trabalho. É o que se dá, por exemplo, quando os astrofísicos buscam descobrir as origens de nosso universo. Segundo o que a maioria das pessoas acredita, o universo é essencialmente estático e imutável e, portanto, sempre existiu. Quando, em 1929, Edwin Hubble fez a observação fundamental de que, para qualquer lugar onde lancemos o olhar, poder-se-á detectar que as galáxias distantes estão se afastando da nossa galáxia, os cientistas concluíram que o universo estaria se expandindo. Significando, igualmente, que em tempos remotos as galáxias estariam mais próximas umas das outras (HAWKING, 1994, p. 27). Estas observações sugeriam assim que teria havido um tempo, chamado instante do Big Bang, em que o universo fora infinitesimalmente pequeno e infinitamente denso. Quando toda a matéria que hoje compõe o universo, compactada numa espécie de átomo primordial, foi liberada numa Grande Explosão (daí o nome Big Bang), tudo, inclusive o tempo, teve início (HAWKING, 1994, p. 77; MORRIS, 2001, p. 73). Convém ressaltar que os astrofísicos desenvolveram a hipótese (de caráter provisório) a partir das evidências obtidas pela observação de Hubble e atualmente operam com um alto grau de verossimilhança para o evento originário (Big Bang), à proporção que várias provas são obtidas, conferindo à Grande Explosão o estatuto de uma Teoria (de caráter quase definitivo). Implica dizer, o conjunto de evidências favorecem, mais e mais, a hipótese do Big Bang em detrimento das hipóteses que advogam um universo estacionário e muitas pesquisas no campo da astrofísica só fazem sentido quando o modelo da Grande Explosão entra nos cálculos e fórmulas dos cientistas. De modo similar, embora a resistência de alguns, o problema sinótico exige um documento como Q. As evidências apontam a sua existência. A defesa em contrário, por seu lado, esbarra em dificuldades quase insolúveis. Resta aguardar que as areias do tempo um dia desenterrem o Evangelho “perdido”, dando um fim à querela. Documentação Textual: Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 7ª edição, 1980. Evangelho de Tomé. Rio de Janeiro: Imago, 1993. 70 ROBINSON, J. M., HOFFMANN, P. & KLOPPENBORG, J. S. El Documento Q en Griego y en Español: con paralelos del evangelio de Marcos y del evangelio de Tomás. Salamanca, Espanha: Sígueme, 2004. Bibliografia: BLOMBERG, C. L. The Synoptic Problem: Where We Stand at the Start of a New Century. In BLACK, D. A., BECK, D. R. (ed.) Rethinking the Synoptic Problem. Michigan: Baker Academic, 2001. BROWN, R. E. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004. CHEVITARESE, A. L.; CORNELLI, G.; SELVATICI, M.(Org.) Jesus de Nazaré: uma outra história. São Paulo: Annablume / Fapesp, 2006. CROSSAN, J. D. O nascimento do Cristianismo: o que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2004. HAWKING, S. W. Uma breve história do tempo: do Big Bang aos Buracos Negros. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. KLOPPENBORG, J. S. Excavating Q: the history and setting of the Sayings Gospel. Minneapolis: Fortress Press, 2000. KÖESTER, H. Introdução ao Novo Testamento, volume 2: história e literatura do cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus, volume 2, 2005. MACK, B. L. O Evangelho Perdido: o Livro de Q & as Origens Cristãs. Rio de Janeiro: Imago, 1994. MEIER, J. P. Um Judeu Marginal. Repensando o Jesus Histórico. Rio de Janeiro: Imago, 1996. MORRIS, R. O que sabemos sobre o Universo: realidade e imaginação científica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. PAGELS, E. The Gnostic Gospels. New York: Vintage Books, 1989. STEIN, R. H. The Synoptic Problem: an introduction. Michigan: Baker Book House, 1989. THEISSEN, G. e MERZ, A. O Jesus Histórico. Um Manual. São Paulo: Loyola, 2002. TUCKETT, C. M. Q and the history of Early Christianity: Studies on Q. Edinburgh: T & T Clark, 1996. 71 Notas: 1 Convém ressaltar que jamais, na narrativa joanina, Jesus é retratado realizando exorcismos. Helmut Köester aponta a data provável de Diatéssaron entre 165 e 180 E.C. (KÖESTER, 2005, p.35). 3 Na atualidade, o principal opositor à prioridade marcana é William Farmer (ver: BLACK, BECK, 2001, pp. 97-136). 4 Luigi Schiavo afirma, porém, que o primeiro estudioso a usar o nome Quelle para definir a hipotética fonte foi Johannes Weiss, no começo do século XX (CHEVITARESE et alli, 2006, p. 194, nota 2). 2 72