se uma BONECA DE PANO É GENTE, TIA NASTÁCIA É o quê?

Transcrição

se uma BONECA DE PANO É GENTE, TIA NASTÁCIA É o quê?
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS
22 a 26 de Setembro de 2014
Salvador – BA
SE UMA BONECA DE PANO É GENTE, TIA NASTÁCIA É O QUÊ?
Shirlene Almeida dos Santos 1
Jober Pascoal Souza Brito2
Cortejando o debate
A modificação das práticas de leituras, a variação no perfil do leitor adensam não só o
sentido dos textos escritos no passado, mas, principalmente, a forma como se lê o passado, cujo
valor se entrega às tramas que o constituíram. As inclusões, exclusões, notas de rodapé, alertas ao
leitor, o controle do simbólico, as legislações de proteção à grupos minoritários excluídos da
literatura e cultura tornaram-se um sitoma de uma sociedade preocupada com o imaginário, ao
mesmo tempo que, controversamente, é uma grande oportunidade de discutir literatura em um país
que está sempre se queixando, não se sabe se com toda razão, de que há poucos leitores e de que as
pessoas leem mal.
A expectativa gerada pelo texto define sua diferença e valor. Assim, a tensão entre os
acontecimentos e as leituras que movem a história é um dado fundamental para pensarmos a
contemporaneidade, que, como diz Giorgio Agamben (2012), busca encontrar não as luzes, mas as
escuridões em meio a elas.
Nesta perspectiva, somos impulsionado ao passado em meio aos lampanários da História e
aos registros da literatura, intuindo que buscar as escuridões significa igualmente ficar preso a elas.
Deste esforço, tomamos duas obras emblemáticas, Memórias da Emília (1936) e Histórias de Tia
Nastácia (1937), ambos de Monteiro Lobato, as quais nos permitem imaginar os elementos
constitutivos da prática literária deste período, bem como o contexto sociocultural desta literatura
infantil que toma Emília e Tia Nastácia como imagens de um mundo dividido entre uma cultura
letrada e erudita e uma cultura iletrada e popular.
1
Bacharela em Marketing pela Faculdade Estácio- FIB, licenciada em Pedagogia com Habilitação em séries
inicias do ensino fundamental pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB e mestranda em Estudo de Linguagens
pelo
Programa
de
pós-graduação
em
Estudo
de
Linguagens
-
PPGEL,
UNEB.
Correio
eletrônico:
[email protected]
2
Licenciado e bacharel em Letras Vernáculas pela Universidade Federal da Bahia, mestrando pela Universidade
Estadual da Bahia – UNEB (Campus I), através do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens, PPGEL.
Correio eletrônico: [email protected]
1
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS
22 a 26 de Setembro de 2014
Salvador – BA
Será necessário, portanto, remeter ao contexto para o qual refere Terry Eagleton (2002) na
reconceituação da palavra “cultura”, cujo transcurso chega à contemporaneidade, ao retomar um
dos mais perspicazes pensadores do século XX, Raymond Williams ([1953] 1976), elenca os três
principais sentidos modernos atribuídos a este verbete, exibindo os argumentos dos sujeitos em seus
momentos históricos com vistas a impor diferentes significações, valores, prescrições e regras.
O primeiro significado, iluminista, equivale à noção de civilização, ou civilidade,
assinalando o reconhecimento intelectual, espiritual e material da humanidade. A cultura neste
contexto, diz respeito à vida urbana, à tecnologia e ao progresso científico e ao receituário das boas
maneiras, tomando a Europa como miragem. Em contrapartida, empreende-se como o paradoxo
dessa relação a noção de “barbárie”, relativo ao “outro”, aos não europeus, que deverão ou
deveriam ser colonizados.
Caracterizada dessa forma, diz Eneida Leal Cunha (2009), essa compreensão setessentista de
cultura parece muito distante de nós na contemporaneidade, quando persiste em várias dimensões
da vida social até o presente, como ilustração, cita a forma como o nosso sistema de educação, ou
de formação, organizam seus “valores”, como um aperfeiçoamento espiritual, “através do
compartilhamento de um estoque de conhecimentos”, como um ápice da condição humana e do que
melhor tem produzido a humanidade. Desta concepção derivam inúmeras expressões que
caracterizam o indivíduo como um ser “inculto”, ou contemplando as palavras da personagem
Emília, “burro”.
Um segundo momento, quase simultâneo ao primeiro, emerge a partir de uma compreensão
diferente de cultura que privilegiará não a universalidade dos atributos “civilizacionais”, mas a
singularidade resultante dos costumes de cada povo. Advindo da Alemanha, esse ponto de vista
apela um lugar de origem, recorre à narrativas clássicas, inventa tradições, elege mitologias como
demandas de segmentos internos do próprio estado nacional. Desta perspectiva, somos projetados a
ver a cultura no plural.
Como último arremate, também do século XIX, a cultura passou a ser entendida como
confinada a uma pequena e privilegiada fração de pessoas, reduzida gradualmente ao domínio das
artes e significando um fator de distinção social, inclusive promovendo um distanciamento entre a
Cultura e a experiência cotidiana, bem como a dissenção desta em relação com a política e às
disputas sociais.
No mundo contemporâneo, a noção de cultura já não encontra seu posto de segurança
resguardado pelo empreendimento civilizacional iluminista, pela preservação de um Estado
2
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS
22 a 26 de Setembro de 2014
Salvador – BA
Nacional ou pelas elites letradas. Tornou-se sintomático o uso da palavra cultura para designar o
território da instabilidade, do conflito e da disputa, conforme afirma Cunha (2009), que reconhece
igualmente a dificuldade na diluição das fronteiras entre a “alta cultura” e a “baixa cultura”. Do
ponto de vista do valor, diz, do valor cultural, principalmente, a hierarquia prevalece e se manifesta
em diversos planos da vida social.
Conseguimos ver esse “rebaixamento” na figuração do imaginário da “casa grande” e da
“senzala”, o qual toma as personagens do Sítio do Picapau Amarelo em suas diferentes ocupações e
atividades. Enquanto na casa de Dona Benta, Emília, Pedrinho, Narizinho ocupam um lugar de
prestígio na sala, Tia Nastácia cozinha.
Emília, Emília, Emília...
Emilia, personagem criada por Lobato em 1920 é uma boneca de pano que tomou uma
pílula falante dada pelo Doutor Caramujo e desatou a falar. Fala que nem gente, fala como criança,
como adulto e também como sinhá. A personagem metaforiza o ato criativo no anseio vocal, bem
como o desejo de pertencer a uma sociedade sem nenhum moralismo em que seja possível falar sem
pudores, sem as chamadas “papas na língua”.
Ao acobertar-se de crenças, muitas vezes de forma parcial, ora apela à imaginação do leitor
em considerá-la uma criança “sem tino”, ora nos convida a percebê-la como um fluxo de
consciência do próprio Monteiro Lobato. Afinal, tudo que é um interdito para os bons hábitos, uma
criança pode subverter e recebe igualmente a tutela do leitor para dizer todas as “asneiras” e ser
facilmente perdoada e/ou assimilada pelo humor da leitura.
Emília nasce no livro Reinações de Narizinho (1920), apelido que recebera de sua amiga e
companheira, Narizinho (Lúcia), neta de Dona Benta. Matriarca da família, Benta Encerrabodes de
Oliveira é uma senhora de cor branca, sexagenária, que usa óculos na ponta do nariz, ela é a dona
do Sítio do Picapau Amarelo, local onde seus netos Narizinho e Pedrinho vão passar as férias e
onde a história acontece.
Emília fora confeccionada a partir de uma saia velha, com trapos e retalhos, e foi recheada
de pétalas cor de ouro de uma flor campestre chamada macela, seus olhos foram produzidos com
linha preta, seus pés eram para fora e assemelhava-se a uma bruxa. A boneca foi fabricada e
costurada por Tia Nastácia, personagem descrita na narração do livro como “preta e muito feiosa”.
Era a cozinheira e empregada de Dona Benta.
3
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS
22 a 26 de Setembro de 2014
Salvador – BA
A Tia Nastácia ilustrada nos livros infantis de Monteiro Lobato evoca a lembrança do
estereótipo bastante conhecido nos Estados Unidos como Mammy, hoje em dia considerado racista,
representado por uma mulher obesa de pele negra, a qual enfarda um avental e um lenço sobre a
cabeça, e é uma empregada doméstica, quituteira e costureira. Este imaginário é esboçado em
alguns desenhos animados antigos da Disney, bem como Os Três Gatinhos Orfãos (1935) e nos
clássicos desenhos de Tom e Jerry da década de 1940 e peças publicitárias da época. (PILGRIM,
2000)
Embora deva a Tia Nastácia à vida, Emília sempre deixou claro no enredo das histórias de forma
bem escancarada suas concepções acerca da sua mãe-fabricante. Quando começa a falar após lançar
mão da pílula falante, a boneca “destrambelhou” a falar tudo que lhe vinha na cabeça. Não falava
pelos cotovelos como as mulheres em geral falavam, falava pela boca, diz ela. Dizia coisas
engraçadas e filosóficas, apresentava sua superioridade intelectual em relação às mulheres uma vez
que não dialogava sobre coisas vãs.
Em 1936, Monteiro Lobato lança o livro Memórias da Emília. Neste volume, a boneca
falante resolve registrar suas memórias através do Visconde de Sabugosa. De acordo com ela,
“memórias” é a história de vida de um indivíduo desde o seu nascimento até sua morte. É algo que
vai sendo escrito aos poucos até o dia em que se morre sem escrever o final, mas ela alerta: não
pretende morrer, apenas finge que morre. “As últimas palavras têm de ser estas: e então morri...com
reticências” (Lobato, 1966, pág 03).
Apesar de se considerar esperta, Emília teve alguma dificuldade para escrever suas histórias
iniciando-as com seis interrogações, afinal estava interrogando a si mesma. Em seguida, disse que
nasceu no ano de “três estrelinhas”, na cidade de “três estrelinhas”, filha de gente desarranjada... E
toda essa indefinição fora uma forma de não satisfazer os historiadores a quem ela chamava de
“gente mexeriqueira”.
Ainda no livro citado, a boneca solicita ao Visconde de Sabugosa que escreva suas
Memórias e ele narra a viagem dos personagens do sítio ao céu e a retirada de um anjo de asa
quebrada dos átrios celestes para o sítio. O livro narra em (O anjinho de asa quebrada) a forma
degradante como a boneca trata Tia Nastácia ante à recusa da cozinheira em cortar as asas do anjo
que Emília houvera confinado. Aborrecida, a “menina” culpa Nastácia, e chama-a de “Burrona!
Negra beiçuda!” e diz que Deus a marcou com a cor. “Quando ele preteja uma criatura é por
castigo. (...) Esta burrona teve medo de cortar a ponta da asa do anjinho. Eu bem que avisei. Eu
4
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS
22 a 26 de Setembro de 2014
Salvador – BA
vivia insistindo. Hoje mesmo insisti. E ela, com esse beição todo: Não tenho coragem... É
sacrilégio... Sacrilégio é esse nariz chato. (Lobato, 1966, p. 103- 104).
Este trecho demonstra não somente uma chateação de Emília mediante a partida do amigo,
mas, a sua concepção sobre Nastácia, a quem ela expõe seus traços fenotípicos associando-os a
questões de baixa intelectualidade, do desprovimento de beleza e do castigo da cor produzido pelas
esferas do sagrado. Essa ideologia em muito se assemelham às críticas realizadas por Gregório de
Matos Guerra (1969) “à negra Margarida, que acariciava um mulato com demasiada permissão
dele”. O poema reedita o mito bíblico de Can ao ver o pai, Noé, nu. O filho é condenado a ser o
menor de todos os irmãos, restando-lhe o lugar de escravo da família do patriarca. Esta mitologia
serve de arcabouço do racismo que teve também o poeta Gregório de Matos como um dos
principais precursores:
(...) Longe vá o mau agouro;
tirai-vos desse furor,
que o negro não toma cor,
e menos tomará ouro:
quem nasceu de negro couro,
sempre a pintura o respeita
tanto, que nunca o enfeita
de outra cor, pois fora aborto,
é, como quem nasceu torto,
que tarde, ou nunca endireita.
A nenhum cão chamais tal,
Senhor ao cão? isso não:
que o Senhor é perfeição,
e o cão é perro neutral:
do dilúvio universal
a esta parte, que é
desde o tempo de Noé,
gerou Cão filho maldito
negros de Guiné, e Egito,
que os brancos gerou Jafé.
Gerou o maldito Cão
não só negros negregados,
mas como amaldiçoados
sujeitos à escravidão:
ficou todo o canzarrão
sujeito a ser nosso servo
por maldito, e por protervo;
e o forro, que inchar se quer,
não pode deixar de ser
dos nossos cativos nervo (...)
(MATOS, 1969)
5
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS
22 a 26 de Setembro de 2014
Salvador – BA
Versos como estes encontram eco nas falas de Emília, redimensiona o recrudescimento do
racismo, em século XIX, em que os teóricos do darwinismo racial fizeram dos atributos externos
elementos essenciais, definidores de moralidades e do devir dos povos. Lilia Schwarcz (2012)
salienta que a Biologia que foi a grande ciência do referido século, com seu modelo darwinista
social foi um instrumento usado para julgar povos e culturas, através do seu laboratório racial.
É possível deduzir que Monteiro Lobato, como um homem de seu tempo, também
comungou desta crença e usou Emília como um recurso estratégico na montagem sub-reptícia da
personagem Tia Nastácia. Isso se expõe em outros personagens e situações narrativas, no entanto
Lobato usa de uma certa economia para definir a quituteira, mas Emília não poupa nas palavras.
Inferimos que essa bagagem de preconceitos que se expõe no texto lobatiano é uma caricatura da
sociedade brasileira no pós-escravagismo.
Emília diz que era feliz quando não sabia ler, pois, agora que lê jornais vê o quanto de
sofrimento existe no mundo. Só no sítio ela enxerga felicidade, tal como Lobato afirmava que
queria transformar o mundo no sítio. E por fim, ela revela suas impressões acerca de cada morador
do sítio dizendo que Tia Nastácia é a própria ignorância em pessoa que ignora ciências e conteúdos
livrescos, mas é completamente sábia na cozinha, na manipulação e preparo dos alimentos, é uma
sábia nos afazeres domésticos e para remendar seu corpo quando seu recheio está fugindo de si.
Eu vivo brigando com ela e tenho-lhe dito muitos desaforos - mas não é de coração. Lá
por dentro gosto ainda mais dela do que dos seus afamados bolinhos. Só não
compreendo por que Deus faz uma criatura tão boba e prestimosa nascer preta como
carvão. É verdade que as jabuticabas, as amoras, os maracujás também são pretos. Isso
me leva a crer que tal cor preta é uma coisa que só desmerece as pessoas aqui neste
mundo. Lá em cima não há essas diferenças de cor. Se houvesse, como havia de ser
preta a jabuticaba, que para mim é a rainha das frutas? (Lobato, 1966, pág.145).
Quando Monteiro Lobato iniciou seus escritos na década de 20, há pouco o Brasil havia
extirpado a escravidão, seus escritos não eram voltados para os negros que em sua maioria não eram
alfabetizados e ainda não se entendia o porquê de alguém nascer negro, dessa grande
incompreensão a maior barbárie mundial se configurou que é a escravidão. Até hoje no século XXI
as histórias procuram responder a querela sobre a negritude. Emília ao ver Nastácia como
empregada, com seu local socialmente marcado enxergava nitidamente que sua cor determinava sua
intelectualmente, posição e valor, logo sua cor era um defeito, embora bondade não lhe faltasse.
Emília não poderia compreender como sua fruta preferida pode ser preta e torna-se preterida.
Emília embora admita de uma forma pitoresca gostar de Nastácia não pode deixar isso nítido
nos seus discursos, pois, a raça e a etnia demarca uma fronteira entre os povos. Stuart Hall (2006)
6
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS
22 a 26 de Setembro de 2014
Salvador – BA
aborda que se trata de um conjunto frouxo pautado em questões físicas como cor da pele, textura
dos cabelos etc.; que se configura como marcas simbólicas usadas para diferenciar socialmente um
grupo do outro. E o termo frouxo é usado de forma proposital por Hall para definir que elementos
físicos, assim como a forma de falar daqueles sistemas de representação e práticas sociais
(discursos) não são substanciais para definir um grupo de indivíduos e suas posições.
E assim, Emília encerra suas memórias alegando ter contado tudo que sabia, afirmando que
disse asneiras e suas opiniões filosóficas sobre o mundo e os moradores do sítio. Deixou um até
logo para o respeitável público e findou dizendo que se eles gostaram das suas memórias está ótimo
e se não gostaram nos deseja pílulas e assim tem dito.
O livro Memórias da Emília é dividido em uma segunda parte que narra o momento em que
Dona Benta reúne seus netos para contar-lhes a história de Peter Pan, no momento que todos estão
reunidos para ouvir a história Tia Nastácia da cozinha pede que Dona Benta aguarde que ela
termine de lavar a louça uma vez que também almeja ouvir a história, Dona Benta aguardou, mas,
não sem antes ouvir a indignação de Emília que afirmava não saber para que uma cozinheira queira
saber a história de Peter Pan.
No decorrer da história tia Nastácia interrompe Dona Benta informando que só ouviu falar
de fadas em histórias que não são reais, mas Emília ordena que ela se cale, pois, só entende de
cebola, alho, vinagre e toucinho que uma fada jamais apareceria para ela, uma vez que fada não
aparece para gente preta. “Eu se fosse Peter Pan, enganava Wendy dizendo que uma fada morre
sempre que vê uma negra beiçuda...”. (Lobato, 1966, pág.166).
Esta fala de Emília impulsiona posteriormente a partir da década de 1970 uma busca
exacerbada por novas representações, afinal a contemporaneidade irá reivindicar elementos
mágicos, a imaginativos e fantásticos que nunca estão associados ao negro. Por que para o negro
não há magia? A contemporaneidade irá reivindicar, revogar esses lugares socialmente demarcados
de casa grande e senzala que mesmo após a abolição permaneceram.
Embora Dona Benta sempre interpele a boneca exigindo respeito aos mais velhos neste caso
ela vai além da exigência e explica a boneca que no sítio todos sabem que Nastácia só é preta por
fora, pois ela possui muito pigmento preto. Reforçando o estereótipo de preto de alma branca,
mostrando que é possível apesar do seu confinamento de cor, ter bons sentimentos.
Todos os dias durante a contação de história Tia Nastácia notava que sua sombra estava
diminuindo, como se um rato a estivesse roendo e embora Narizinho dissesse que sombra era algo
sem valor, Nastácia explicava que se ela não tivesse sombra poderia ser queimada viva, como se ela
7
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS
22 a 26 de Setembro de 2014
Salvador – BA
fosse uma feiticeira tal como fizeram com Joana D’ Arc (chamada de Joana do Arco por Nastácia).
Emília intrometeu-se no diálogo informando que o mundo persegue os que são mais que os outros,
mas que Nastácia não seria perseguida por era menos, menos até na sombra.
Um fato interessante das interpelações de Emília é a não atitude de Nastácia que jamais
questiona, aceita sua condição, a personagem é como a sua sombra, sem projeção. Nastácia nunca
se defende ou ainda não se vê atacada, Kabengele Munanga (1988) explicita que somente quando o
indivíduo estuda sua própria história pode tirar dela o benefício moral e necessário para
reconquistar seu lugar no mundo moderno.
Durante toda a narrativa de Dona Benta os comentários de Tia Nastácia eram preteridos e
Emília a todo tempo estava à espreita tentando ridicularizar a empregada sem projeção, como na
vez que Dona Benta contou sobre o capitão gancho Emília tentou construir um gancho para ganchar
“o beição” de Nastácia. Outra situação usada para ridicularizar Nastácia foi quando dona Benta
ensinou a seus netos uma palavra nova, informando que é necessário aprender linguagem de gente
simples e das pessoas pedantes para não passar por bobo e sim rir como um sábio, Pedrinho por sua
vez utiliza a nova palavra em um diálogo com Tia Nastácia e todos riem diante do desconhecimento
do significado e Dona Benta reafirma aos seus netos a vantagem do saber.
Ao final da história, Visconde descobre que Emília é que vinha furtando a sombra de Tia
Nastácia a quem o escritor informava que a cada sumiço tinha seu beiço ainda mais caído. Emília
devolve sua sombra devidamente costurada, remendada.
Tia Nástácia é o quê?
Na hora que o sol se esconde
E o sono chega
O sinhozinho vai procurar
Hum...Hum...Hum...
A velha de colo quente
Que canta quadras
Que conta história para ninar
Hum...Hum...Hum...
Sinhá Nastácia que conta estória
Sinhá Nastácia sabe agradar
Sinhá Nastaciá que quando nina
Acaba por cochilar
Sinhá Nastácia vai murmurando
Estórias para ninar
(Zeca Pagodinho/Domínio Público)
8
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS
22 a 26 de Setembro de 2014
Salvador – BA
Em 1937, Monteiro Lobato publica o livro Histórias de Tia Nastácia, outra obra onde fica
nítida a impressão de Emília sobre Nastácia, bem como a leitura das outras personagens sobre a
cozinheira.
A trama inicia-se com um incômodo de Pedrinho ao ler um jornal e se deparar com a palavra
folclore. Ao descobrir com Dona Benta que se trata das “histórias do povo”, percebe que Tia
Nastácia é este “povo”, tratado como “o outro” na narrativa. Resolve conhecer suas histórias. Este
livro é uma coletânea de histórias contadas por ela.
De inicio, é interessante analisar como os suportes são colocados com distinção, o suporte
do conhecimento de Pedrinho é o jornal, pois, pertence a uma cultura letrada e erudita e Nastácia é
o “povo” que usa como suporte elementos da tradição oral.
O “nós” e o “outro” ficam impressos na narrativa de tal forma que nos direciona ao contexto
inicial a que nos reportamos as significados de “cultura”.
Embora o livro tenha começado demarcando diferenciação entre cultura letrada e popular,
percebe-se um empenho, ainda que mal executado, em se debruçar sobre as histórias deste “outro”,
tratado como “folclórico” e alegórico, que também traduz na sua bagagem impressões de gênero,
etnia e a violência sofrida no apagamento da própria história e assimilação da história do
colonizador, mas a forma de contar preserva memória dos griôs africanos.
Através de Nastácia, somos reportados ao contexto das culturas negras que, conforme
apresenta Kabengele Munanga (2005), enraíza uma educação envenenada pelos preconceitos, em
cujas estruturas psíquicas foram acidentadas e afetadas pela escravidão. Essa memória negra
cumpre ritos, aciona mitologias, contribui para o adensamento da formação das culturas populares,
tomadas a posteriori como fragmentos de uma identidade nacional.
A primeira história intitulada O bicho Manjaléu, trata de um irmão que sai em busca de suas
três irmãs vendidas à contragosto do pai, levando consigo três elementos mágicos, uma bota “que o
bota em qualquer lugar”, uma carapuça que “o encarapuça” e uma chave que “abre qualquer porta”.
Nesta procura, o irmão encontra suas três irmãs, agora princesas e casadas com os reis de Peixes, de
Carneiro e de Pombo e, por fim, ele mesmo acaba casando-se com a rainha de Castela que lança
mão da sua chave para libertar uma fera, o Manjaléu, que vivia aprisionado na masmorra do castelo.
Para matá-lo e salvar a rainha, o irmão, agora também príncipe, precisa encontrar a vida do
Manjaléu que jazia no fundo do mar, onde estava um caixão e dentro dele uma pedra, dentro dela
um pombo retentor de um ovo, em cuja vela se apagada mataria o Manjaléu. A história finaliza com
a morte da fera mediante intermédio dos presentes mágicos.
9
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS
22 a 26 de Setembro de 2014
Salvador – BA
Emília relutando em acolher e ser convencida pela história contada pela cozinheira, disse
que o folclore é bobo e que “o povo é idiota” e se sente avançada intelectualmente para sua idade,
“uma isca por fora e filósofa por dentro”. Melhor mesmo, diz a boneca, seria conversar com
Sócrates ao invés de ouvir as histórias de Tia Nastácia.
Narizinho concorda dizendo que após ouvir histórias como Peter Pan de J. M Barrie tornouse mais exigente e não era qualquer história que a satisfaria. Pedrinho, por sua vez, alega ter gostado
da história, pois, ela é um referente da “mentalidade do povo”.
O que podemos observar nesta primeira história é o uso de elementos mágicos, que remetem
às histórias clássicas com reis, princesas e castelos. O uso da repetição, como recurso metodológico,
em muito se relaciona à forma como as tradições orais adequaram o modelo de contação de
histórias. Em Mitologia dos Orixás, Reginaldo Prandi (2001), diz que optou por um padrão
inspirado na forma dos poemas dos babalaôs africanos, com o uso de versos livres e linguagem
sincrética, procurando sempre manter um conteúdo original de como foi ouvido. Por isso, os mitos
recorrem ao aspecto mais mnemônico da sonoridade e da repetição.
A falta de maiores elementos na história contada por Nastácia e a forma oral como é contada
em muito se relacionam à descrição de Prandi. No entanto, esta característica opera de forma
contaminada para os personagens do Sítio, embora se verifique que as narrativas remetem mais ao
contexto europeu do que propriamente à África, o que é bastante sintomático para as condições as
quais foram submetidos os povos advindos deste continente.
Outra história do livro, O sargento verde conta a história de uma moça que é pedida em
casamento, no entanto a donzela era afilhada de Nossa Senhora e é avisada pela santa de que este
homem é o “cão” (o diabo) disfarçado e lhe ensina uma forma de, após o casamento, fazê-lo
explodir e retornar ao inferno de onde saiu. Assim a moça o fez. Em seguida ela cavalga para outro
reino onde resolve cortar seus cabelos, vestir-se de verde e fingir-se de homem, oferecendo-se se ao
exército deste novo reino como sargento. No decorrer da trama, o sargento ganha a simpatia do rei
por seus serviços e tornar-se alvo do desejo da rainha que, diante da sua recusa, impõe-lhe vários
feitos. O sargento conta com a ajuda do seu cavalo mágico que orienta como passar por cada prova,
sua última prova seria libertar uma princesa que, após liberta, revelar-lhe-á o segredo do sargento
verde (que na verdade trata-se de Lucinda). No final da narrativa Lucinda aparece usando trajes
femininos, o seu cavalo revela-se um príncipe e casa-se com a princesa que fora libertada. O rei por
sua vez, casa-se com Lucinda e castiga a rainha lançando-a nos campos amarrada a dois bravos
burros e a narrativa finda informando-nos que houve grande festa no reino.
10
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS
22 a 26 de Setembro de 2014
Salvador – BA
Emília, chateada, retruca informando que esta história é ainda mais boba que a primeira, não
possui sentindo algum e parece que a história era outra e quem foi contando ao longo do tempo foi
se atrapalhando e a história foi ficando “sem pé e a cabeça”. Esse argumento demonstra a total
inapetência da personagem, e poderíamos aqui também replicar para a vivência de Monteiro Lobato
para entender as histórias coletadas pelas tradições orais, que, conforme descreve Prandi (2001),
vale-se de seu aspecto sincrético, em vista da assimilação decorrente de várias mitologias que se
embargaram em uma única história.
Dona Benta explica que “a história do povo” não é igual às histórias deles, que são histórias
escritas e fixas, já as populares, por ser valerem da repetição, vão sendo adulteradas ao longo do
tempo. Mesmo diante da explicação de Dona Benta, Emília reafirma que essas mudanças na história
do povo só as deixam “idiotas”, de tal modo que se um sábio fosse estudá-las também se tornaria
“idiota”. Em vista disso, usa Hans Christian Andersen e Lewis Carroll como referências
elementares para um suposto modelo de narrativa.
Patrícia de Pinho (2004) afirma que os diversos elementos utilizados como seus mecanismos
de identificação, definem fronteiras que excluem os “outros” e incluem o “nós”. “Nós” são aqueles
que tem um passado comum e europeizado em sua fundamentação; os “outros” são aqueles que não
são reconhecidos nestes valores tradicionais. Os grupos étnicos marginais figuram, portanto, como
os limites e fronteiras que atesta processos de formação de identidades sociais que tomam a Europa
como modelo.
A princesa ladrona é outra história descrita no livro de Tia Nastácia, ela narra a história de
três irmãos que saem pelo mundo em busca de aventuras, os dois primeiros escolhem partir
recebendo do seu pai muito dinheiro e pouca benção e no caminho são enganados por uma princesa
que lhes rouba seu dinheiro e jogam-nos na masmorra comento alface e couve respectivamente, o
último irmão sai em busca dos dois primeiros escolhendo pouco dinheiro e muita benção sendo
assim, no caminho recebe de Nossa Senhora três presentes mágicos e embora ele também tenha
perdido seu dinheiro e sido jogado na masmorra para comer couve por toda vida como seus dois
irmãos, ele pôde fazer uso dos seus presentes mágicos e assim conseguiu engabelar a princesa,
casando-se com ela e convencendo-a a libertar seus cativos. Esta história também finda com grande
festa no reino e Nastácia remata a narrativa dizendo: “Entrou por uma porta, saiu por um canivete;
manda o rei meu senhor que me conte sete”. (Lobato, 1995, pag.23)
Emília ficou indignada com mais esta história queria compreender o que era “contar sete”,
mas, Nastácia não sabia e defendia-se apenas dizendo que repassava as histórias tal como sua mãe,
11
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS
22 a 26 de Setembro de 2014
Salvador – BA
Tiaga lhes contou. A boneca criticava os contadores de histórias populares que falavam sobre coisas
desconhecidas e idiotas. De modo, que até um sábio que se debruçasse sobre estas narrativas
também se tornaria débil, pois, para ela tais narrativas servem apenas como um estudo da
ignorância do povo, não são histórias engraçadas e sim, narrativas bárbaras das quais ela não
gostava.
Todo desconforto de Emília em relação à Tia Nastácia é convertido em questões raciais. A
escrita de Lobato ainda que remeta a um pensamento da sua época e seja fruto do seu meio, é de
cunho preconceituoso e estereotipado, onde Emília pode ser considerada a personificação do seu
racismo.
Na história A Moura Torta, Nastácia conta a história de três irmãos pobres que o pai lhe
presenteia com melancia e lhes orienta como deve partí-la os dois primeiros não obedecem e o
último parte a fruta conforme orientação do pai encontrando dentro dela uma bela moça, esta moça
é alvo da inveja da Moura torta que a transforma em um pombo. A Moura valendo-se de suas
mentiras casa-se com o rapaz e vai morar com ele em um castelo, ao final da trama o feitiço é
descoberto e desfeito e a Moura é castigada, A história finaliza com a descrição de uma festa no
reino. Diante desta narrativa a boneca afirma: “Essa história — disse Emília — começa bastante
bem e vai bem até certo ponto. Depois derrapa como automóvel na lama. O tal moço era um coitado
que só possuía uma melancia. De repente está num palácio, e sem mais aquela vira rei....”(Lobato,
1995, pág 39)
Nas histórias seguintes, Emilia afirmava que o povo não tinha fineza no trato com as
narrativas, não tinha delicadeza como Oscar Wilde. Na história de João e Maria indignou-se com as
mudanças das histórias, pois, julgava que o conto era de Andersen e o povo o encheu de
personagens pretos.
A história O bom diabo conta sobre um príncipe que ao descobrir que sua sina é morrer
enforcado viaja para conhecer o mundo no caminho depara-se com uma capela destruída e resolve
consertá-la, restaurando inclusive a imagem de São Miguel com o diabo, pintando o diabo mesmo a
contra gosto do operário que fez a reforma. Trabalho concluído o príncipe segue viagem e vítima de
um engano e condenado a morte pela forca. São Miguel na capela avisa ao diabo que se ele está
restaurado foi devido ao rapaz e o diabo então vai salvá-lo por gratidão. Esta foi uma das poucas
histórias que Emília gostou devido à camaradagem do santo com o diabo, Pedrinho por sua vez
associou a narrativa aos estudos darwinistas, pois o diabo foi bom devido a influência do meio.
12
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS
22 a 26 de Setembro de 2014
Salvador – BA
Nastácia não gostou das crianças ter olhado o cão com bons olhos para ela cão é cão, sua
maldade é fixa. Emília no final das contas gostou do diabo ter sido comparado ao cão, ela viu nisso
um elogio.
Emília ao longo das narrativas fora afirmando que o povo não tinha criatividade,
imaginação, e parecia que só possuía uma história a qual ia contando de mil formas possíveis,
dando a entender que o povo narrava às histórias em ciclo, onde escolhia um tema que poderia ser
raposa, pássaro, príncipes e princesas e tentava esgotá-lo. Pedrinho lamentava que as histórias do
povo fossem assim e alegava cansaço diante de tanto ciclismo.
A cada história que Tia Nastácia ia contando Emília ia avaliando, em uma das histórias ela
deu nota 05 para a narrativa e zero para o final. Ela dizia que a nota zero é por que não há perdão
para burrice.
No decorrer do livro Dona Benta conta suas histórias, narrativas de vários países como a
Pérsia, Rússia dentre outros, e estas narrativas foram bem recebidas por todos que enxergavam
nelas beleza, cultura e tons poéticos.
As histórias contadas por Nastácia não são narrativas do material folclórico, conforme
ilustra Regina Zilberman e Marisa Lajolo (1999) estas histórias nem sempre são brasileiras por
vezes são narrativas que utilizam como recurso o acervo europeu, ou provém do folclore ibérico
tendo sido transmitidas desde a colonização. Lobato procura através dessas narrativas recuperar o
estatuto oral da literatura, através da adoção de um estilo coloquial, de que estão ausentes a erudição
e a preocupação com a norma gramatical. As narrativas contadas por Nastácia é, portanto,
contrafações do conto de fadas europeu, que não absorvem peculiaridades locais, nem incorporam
elementos das demais culturais, como a negra ou a indígena.
O caráter oral das narrativas lobatianas também pode ser justificado pelo fato de a formação
escolar infantil no Brasil ter se tornado obrigatória após a década de 1930, até então prevalecia os
relatos dos escravos e amas de leite que cuidavam das crianças, logo não é por acaso que em 1937
Lobato lança o livro História de Tia Nastácia.
Conforme Regina Zilberman e Marisa Lajolo (1999), Lobato estrutura tais narrativas com
ingenuidade, falta de inventividade dos textos, inverossimilhança, pobreza de enredo e expõem as
características do narrador de forma deveras pejorativa para alcançar o que ele chama de narrativa
de procedência oral do povo.
Nas duas obras apresentadas Memórias da Emília (1936) e História da Tia Nastácia (1937),
Lobato apresenta o povo como um grupo sem cultura, sem leitura que conta a história de gente
13
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS
22 a 26 de Setembro de 2014
Salvador – BA
ignorante e vão as adulterando. Nastácia por sua vez embora conte as suas histórias não se
posiciona diante das criticas recebidas, pois, como Regina Zilberman e Marisa Lajolo (1999)
explicitam: “Tia Nastácia, é a doméstica sem qualquer autoridade no reino de Dona Benta”.
(Zilberman e Lajolo, 1999, pág. 73).
A religiosidade é outro fator marcante nas relações entre Nastácia e Emília, no livro
Memórias da Emília, Nastácia recusa-se a cortar as asas do anjo e no livro Histórias de Tia
Nastácia não lhe agrada o fato de Emília gostar de uma história que atribui bondade ao diabo. José
Roberto Penteado (1997) afirma que Nastácia foi escrava liberta de Dona Benta, tornando-se sua
empregada. Lobato foi criticado pelo Padre Sales, por criar uma personagem negra, pobre e
analfabeta católica ainda que de forma caricatural e supersticiosa. Penteado (1997) explicita que
Nastácia é religiosa enquanto o resto do grupo permanece como acredita o Padre Salles, ateu.
Embora na trama seja possível observar que Dona Benta também é católica, uma vez, que possui
um oratório em sua casa, todavia Dona Benta comunga da sua fé de forma diferente de Nastácia,
pois, enxerga no fanatismo religioso um grande mal.
Nastácia, nome da babá do filho de Lobato, de acordo com Penteado (1997), é apresentada
como pobre, analfabeta, sem possibilidade de ascensão social, sofrendo uma condição de racismo e
inferioridade e estas questões são tratadas com naturalidade, afinal, trata-se de fatos que aconteciam
em seu tempo. Se o debate racial não fazia parte do discurso lobatiano para Penteado (1997) Lobato
propôs ideias avançadas para o seu tempo uma vez que mostrou fatos que após a escravidão o Brasil
quis ocultar, questionou o casamento e posição da mulher, afinal a própria Emilia era uma boneca
divorciada, um avanço para seu tempo. Defendeu a possibilidade de o indivíduo ser agnóstico e
levou a sério os temas de espiritismo e espiritualismo, enxergando no candomblé uma manifestação
cultural e filosófica valiosa deixada pelos negros. E desta religião de matriz africana ele se vale dos
artifícios de contação de história.
Monteiro Lobato foi um homem do seu tempo e o quis retratá-lo, mostrando a cultura
popular e as representações do negro do jeito que podia e sabia e deu a Emília a liberdade de falar
tudo o que pensa, lhe deu o direito de ser a Independência ou Morte! E mesmo diante das acusações
de que a boneca era seu inconsciente em ação ele defendia-se afirmando: “Ela é tão inteligente que
nem eu seu pai, consigo domá-la. (...) Fez de mim um “aparelho”, como se diz em linguagem
espírita. (...) Emília que hoje me governa, em vez de ser por mim governada”. (Lobato, 1955, pág.
341)
14
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
SEMINÁRIO INTERNACIONAL ACOLHENDO AS LÍNGUAS AFRICANAS - SIALA
LÍNGUAS E CULTURAS AFROBRASILEIRAS E AS NOVAS TECNOLOGICAS
22 a 26 de Setembro de 2014
Salvador – BA
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinicius N. Honesko.
Chapecó: Argos, 2012.
MATTOS, Gregório de. Obras Completas. Edição de James Amado. Salvador: Ed. Janaína,
1969, p. 909
CUNHA. Eneida leal. A emergência da Cultura e a crítica cultural. Cadernos de Estudos
Culturais. Campo Grande, MS, v. 1, n. 2, p. 73-82, jul/dez. 2009.
EAGLETON, Terry. A cultura em crise. In: A ideia de Cultura. Lisboa: Temas e Debates, 2002. p.
49.
HALL, Stuart. . A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
LOBATO, Monteiro. A Barca de Gleyre. Tomo I e II. São Paulo: Editora Brasiliense, 1955
______________. Monteiro. Memórias da Emília. São Paulo: Editora Brasiliense, 1966.
______________. Monteiro. Histórias da Tia Nastácia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995.
MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. 2. ed São Paulo: Ática, 1988. (Princípios;
40)
___________. Kabengele (org). Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da
Educação, secretaria de Educação continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
PENTEADO, J. Roberto Whitaker. Os filhos de Lobato: o imaginário infantil na ideologia do
adulto. Rio de Janeiro: Dunya Editora, 1997.
PILGRIM, David. The Mammy Caricature. Ferris State University. Out. 2000. Disponível em <
http://www.ferris.edu/htmls/news/jimcrow/mammies/ > acesso em 11 de setembro de 2014.
PINHO, Patrícia de Santana. Reinvenções da África na Bahia. São Paulo: Annablume, 2004.
PRANDI, J. Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
SCWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto, nem branco, muito pelo contrário. São Paulo: Claro
Enigma, 2012.
WILLIAMS, Raymond. Keywords. Londres. 1976, p. 76-82. (1953)
ZILBERMAN, Regina; LAJOLO, Marisa. Literatura infantil brasileira: história e histórias. 6.
ed. São Paulo: Ática, 1999.
15

Documentos relacionados

Histórias de Tia Nastácia, de Monteiro Lobato:um olhar crítico

Histórias de Tia Nastácia, de Monteiro Lobato:um olhar crítico “Caracterizando os dois principais adultos de suas histórias – Dona Benta e tia Nastácia – como fontes do saber erudito e popular, ele quebra a hierarquia que separa a criança da gente grande.” (AZ...

Leia mais

santería cubana: simbolismo, produção e gestão - SIALA

santería cubana: simbolismo, produção e gestão - SIALA assistência social entre os seus membros que às vezes vinham até comprar a liberdade de alguns

Leia mais