dadi sopro

Transcrição

dadi sopro
UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS - MESTRADO
WELLINGTON BARBOSA DOS SANTOS
A festa de São Benedito em Anajatuba como elemento de identidade étnica
São Luís
2014
WELLINGTON BARBOSA DOS SANTOS
A festa de São Benedito em Anajatuba como elemento de identidade étnica
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciências Sociais, como requisito para
obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.
Orientadora: Mundicarmo Maria Rocha Ferretti
São Luís
2014
Santos, Wellington Barbosa dos
A festa de São Benedito em Anajatuba como elemento de identidade étnica/
Wellington Barbosa dos Santos. – São Luís, 2014.
112 f.
Impresso por computador (Fotocópia).
Orientadora: Mundicarmo Maria Rocha Ferretti.
Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do
Maranhão, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2014.
1. Identidade 2. Etnia 3. Festa 4. São Benedito 5. Comunidade I. Título
CDU 394.3(812.1)
WELLINGTON BARBOSA DOS SANTOS
A Festa de São Benedito em Anajatuba como elemento de identidade étnica
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciências Sociais, como requisito para
obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.
Aprovada em: ______/______/2014
BANCA EXAMINADORA:
__________________________________________________
Mundicarmo Maria Rocha Ferretti (Orientadora)
Doutora em Ciências Sociais
Universidade Federal do Maranhão
_________________________________________________
Sérgio Figueiredo Ferretti
Doutor em Ciências Sociais
Universidade Federal do Maranhão
________________________________________________
Marivânia Leonor Souza Furtado
Doutora em Geografia
Universidade Estadual do Maranhão
AGRADECIMENTOS
Agradecemos em primeiro lugar a São Bendito que nos deu licença para entrar em sua
comunidade e realizar o nosso trabalho, em seguida aos nossos familiares principalmente do
lado paterno, de quem atualmente estamos tão próximos quanto do lado materno. Aos amigos
e amigas, seria difícil citar todos os nomes já que para a nossa sorte são muitos.
De todos os amigos e amigas damos destaque a três, todos são importantes, mas sem
estes não seria possível ter continuado a vida acadêmica: Socorro Aires companheira de várias
angústias durante o curso e os queridíssimos Bartolomeu Mendonça e Desni Lopes, que não
nos deixaram desistir, quando as limitações físicas e emocionais foram fortes. A amizade de
vocês é mais que um privilégio, é uma bênção.
Agradecemos também a Flávia Leite Gomes, que esteve conosco durante todo o
percurso, primeiro como namorada e depois como noiva, e como não poderia deixar de ser a
Raimundo Nonato Dutra dos Santos e Maria de Lourdes Barbosa, que criaram o sujeito que
escreveu este trabalho, com muito esmero e sacrifício.
Caminhos de alta festa
Adão e Eva eram negros? Na África começou a viagem humana pelo mundo. Dali nossos
avós se lançaram à conquista do planeta; e os que mais se afastaram da África, os que mais
se afastaram do sol, receberam os tons mais pálidos na divisão das cores. Agora nós todos,
as mulheres e os homens, arco-íris da terra, temos mais cores que o arco-íris do céu e somos
todos africanos imigrados. Talvez nos neguemos a recordar nossa origem comum porque o
racismo produz amnésia, ou porque acaba sendo impossível, para nós, acreditarmos que
naqueles tempos remotos o mundo inteiro era nosso reino, imenso mapa sem fronteiras, e
nossas pernas eram o único passaporte necessário.
Eduardo Galeano (2008)
RESUMO
Estudo da festa de São Benedito em Anajatuba MA, como elemento de identidade étnica e
sociação das famílias mais antigas da comunidade também conhecido como São Benedito,
além disso trata-se dos conflitos internos entre os organizadores da festa e da relação da
comunidade com a Igreja Católica e com a sociedade Anajatubense alusivo a assuntos como a
hanseníase e as festas de cunho sócio - religioso.
Palavras – chave: Identidade. Etnia. Festa. São Benedito. Comunidade.
ABSTRACT
Study of the feast of St. Benedict in Anajatuba MA, as an element of ethnic identity and
sociation of the oldest families in the neighborhood also known as St. Benedict, moreover it is
the internal conflicts among the organizers of the party and the relationship between the
community and the Church Catholic and society Anajatubense alluding to matters such as
leprosy and parties of a socio - religious.
Keywords: Identity. Ethnicity. Party. St. Benedict. Community.
LISTA DE FIGURAS, MAPAS E TABELA
MAPA 1: Localização Anajatuba em Relação a São Luís.................................................12
MAPA 2: Localização Anajatuba em Relação ao MA.......................................................12
TABELA 1: População do Maranhão – 1821/1887...........................................................16
FIGURA 1: Cartaz das Comunidades de Quilombo de Anajatuba.....................................13
FIGURA 2 e 3: Faixas anunciando festejos de santo em Anajatuba...................................17
FIGURA 4 : Reminiscências do banquete dos cachorros na festa de São Benedito..........32
FIGURA 5: Os juízes com seus familiares..........................................................................33
FIGURA 6 a 9: Tribuna, igreja e locais da festa.................................................................57
FIGURA 10: Cerimonial do tronco do mastro....................................................................75
FIGURA 11: Jovens de abadá.............................................................................................76
FIGURA 12: Devota pagando promessa.............................................................................77
FIGURA 13:Ladainha do primeiro dia...............................................................................81
FIGURA 14:Idosas acompanhando a ladainha...................................................................83
FIGURA 15: Rezadeiras na ladainha..................................................................................84
FIGURA 16 e 17: Símbolos da procissão...........................................................................87
FIGURA 18: Devotos carregando o andor.........................................................................88
FIGURA 19 e 20: Preparo da comida da festa ..................................................................89
FIGURA 21: Banquete dos cachorros................................................................................90
LISTA DE SIGLAS
APEM (Arquivo público do Estado do Maranhão)
ASSUMA (Associação dos Servidores da Universidade da Universidade Federal do
Maranhão)
CONISB (Conselho Nacional das Irmandades de São Benedito)
FCP (Fundação Cultural Palmares)
FETAEMA (Federação dos Trabalhadores e trabalhadoras na Agricultura do Estado do
Maranhão)
GPMINA (Grupo de pesquisa religião e cultura popular)
PRONERA (Programa Nacional de Educação e Reforma Agrária)
UEMA (Universidade Estadual do Maranhão)
UFMA (Universidade Federal do Maranhão)
SUMÁRIO
Lista de Figuras.............................................................................................................
10
Lista de Siglas.................................................................................................................
11
12
INTRODUÇÃO ............................................................................................................
22
CAPÍTULO 1 METODOLOGIA/CONSTRUÇÃO DO OBJETO .........................
22
1.1 A construção do objeto: trajetória acadêmica e profissional ............................
25
1.2 Metodologia ............................................................................................................
1.2.1 Posicionamento teórico-metodológico ..................................................................
25
1.2.2 Trabalho de campo ................................................................................................
28
1.2.3 Entrevistas ...........................................................................................................
32
37
CAPÍTULO 2 A FESTA DE SÃO BENEDITO: O MITO FUNDADOR ...............
38
2.1 Origens e descontinuidades: breves considerações .............................................
40
2.2 Contextualização: a hanseníase no Maranhão e em Anajatuba ........................
45
2.3 As festas de São Lázaro em Anajatuba e a inserção na festa de São Benedito .
2.3.1 O banquete dos cachorros em Anajatuba ..............................................................
46
2.3.2 Desfazendo a confusão: a “ceia” de São Lázaro na comunidade de São Benedito
50
CAPÍTULO 3 A PROGRAMAÇÃO DA FESTA NOS DIAS ATUAIS:
57
TRABALHO DE CAMPO ..........................................................................................
60
3.1 Breve histórico dos votos da festa de São Benedito .............................................
3.1.1 Os votos de D. Dativa ............................................................................................
60
3.1.2 Primeiro dia: o voto de D. Eugênia, o mastro .......................................................
63
3.1.3 O segundo voto agregado feito por D. Joana, e as relações de colaboração e
conflito com a igreja e o poder local ..............................................................................
67
70
3.2 A etnografia da festa de São Benedito em 2014 ...................................................
3.2.1Cerimonia do mastro ..............................................................................................
74
3.2.2 A fartura da festa: as joias, as ladainhas, a missa ..................................................
78
3.2.3 Ladainha: primeiro de janeiro de 2014 ..................................................................
80
3.2.4 Ladainha: dia dois de janeiro de 2014 ...................................................................
81
3.2.5 Ladainha: dia três de janeiro de 2014 ....................................................................
83
3.2.6 Ladainha: dia quatro de janeiro de 2014 ...............................................................
84
3.2.7 O culto, a procissão, a ladainha e a valsa: dia cinco de janeiro de 2014 ...............
85
3.2.8 O churrasco, a mesa dos juízes e a derrubada do mastro: dia seis de janeiro de
2014 ................................................................................................................................
89
3.2.9 O último dia: sete de janeiro de 2014 ....................................................................
92
CONSIDERAÇÕES FINAIS E CONCLUSÃO: O ELEMENTO ÉTNICO NA
FESTA DE SÃO BENEDITO EM ANAJATUBA........................................................
94
REFERÊNCIAS............................................................................................................... 101
ANEXOS........................................................................................................................... 104
12
INTRODUÇÃO
O presente trabalho é um estudo da festa 1 de São Benedito, como elemento de
identidade étnica e sociação das famílias mais antigas da comunidade também conhecida
como São Benedito, em Anajatuba MA.
Anajatuba está situado a 140 quilômetros de São Luís, no fim da Rodovia MA-324,
que dá acesso à BR-135. A Estrada de Ferro Carajás tem 23,9 quilômetros de trilhos no
município, passando a 20 quilômetros do centro urbano. A MA-324 é vital para o transporte
de gado e produtos agrícolas. No inverno, os barcos são indispensáveis na zona rural, onde
algumas comunidades são ilhadas pela cheia.
Mapa 1 - Localização Anajatuba em Relação a São Luís
Mapa 2 - Localização Anajatuba em
Relação ao MA
Situado próximo à sede do município, a comunidade de São Benedito encontra-se
listada na Fundação Cultural Palmares como remanescente de quilombo, isso se deve ao
reconhecimento histórico, interno e externo de que a localidade é formada na sua grande
maioria por famílias negras.
1
Em Anajatuba/MA, acontecem duas grandes festas de São Benedito. Uma no povoado Bacabal, também
centenária; e a que nos dedicamos estudar, na comunidade São Benedito. Sempre que nos referirmos a “Festa de
São Benedito”, o trabalho, refere-se a esta última.
13
Figura 01: Cartaz de encontro das Comunidades Remanescentes de Quilombo de
Anajatuba, Jan/2014, na Comunidade de São Benedito (Fonte: Trabalho de campo).
A festa de São Benedito não é anterior a comunidade onde ocorre, mas ganhou
visibilidade primeiro uma vez que, segundo nos informaram os moradores mais antigos, até a
década de 1960, viviam num local sem nome, reconhecido pelas atividades culturais e
religiosas que realizavam, principalmente a referida festa. Sabendo disso, a Igreja Católica
cuidou de oficializar o culto e a comunidade, agregando - os a sua alçada, ou seja, ligando-os
a uma de suas paróquias o sacerdote da época, o muito querido Padre Chiquinho2, se reuniu
com as lideranças para decidir um nome para a comunidade. Inicialmente o escolhido foi Alto
Bonito, mas não teve sucesso, porque as pessoas tinham como referencia daquele povoado as
festividades que ali ocorriam, em devoção ao santo negro, e referiam-se a localidade sempre
como São Benedito, fato que posteriormente levou o padre a reunir-se mais uma vez com a
comunidade e oficializar o nome usual.
A festa, portanto, dá nome a comunidade e é bem mais que uma mera alternativa de
lazer. Rica em símbolos e significados, constitui-se em fator de identidade para as famílias
que se envolvem na sua realização, o que não significa ausência de conflitos, pois a forma
como cada pessoa, em cada época, vai compreender e se relacionar com a festa varia muito,
gerando discordâncias, aborrecimentos e até desentendimentos, que estremecem, mas não
desfazem o sentimento de pertença que mantém a festa viva.
2
Monsenhor Francisco de Paula Dourado e Silva, mais conhecido como Pe. Chiquinho, foi pároco de Santa
Maria de Anajatuba, na segunda metade do século XX, marcando sua passagem como sacerdote pelas diversas
obras sociais que realizou em favor dos mais pobres.
14
Tal como Stuart Hall (2002), rejeitamos a compreensão de identidade caracterizada
como fixa, essencial e permanente, ao invés disso nos guiamos numa perspectiva mais
dinâmica defendida por este autor, como na citação abaixo.
Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de
processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do
nascimento. Existe sempre algo” imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela
permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo
formada”... Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada,
deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento. A
identidade surge não tanto na plenitude da identidade que já está dentro de nós como
indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso
exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros
(HALL, 2002, p. 38-39).
Até a década de 1970 as festas em Anajatuba apresentavam um perfil extremamente
segregacionista, onde os brancos não admitiam (com raras exceções) a presença de negros em
suas festas e vice versa, sendo assim, a festa de São Benedito tornava-se representativa, sendo
um dos eventos mais importantes que marcavam o sentimento de pertença dos negros de
Anajatuba, precisamente na comunidade onde ocorria, nesse caso podemos ainda ressaltar o
reforço da identidade negra em contraposição ao outro grupo étnico envolvido, o dos brancos.
No que refere à segregação étnica, as festas em Anajatuba refletiam o preconceito que
marcava as relações sociais de Anajatuba, não sendo apanágio apenas do referido município,
mas antes, representavam todo um passado escravocrata, que legou aos negros péssimas
condições econômicas e sociais em todo o Brasil.
Rejeitamos assim, o estatuto de democracia racial, que foi atribuído a nossa nação,
tendo por base o sociólogo Gilberto Freyre (1998). Compreendemos que o preconceito étnico
ainda é forte no Brasil, malgrado alguns avanços que permitiram, por exemplo, que a festa de
São Benedito atualmente seja frequentada por negros e brancos.
A consolidação da festa de São Benedito, ocorreu em contraposição a um contexto
social racista e opressor que vigorava em Anajatuba, contudo não devemos ignorar a
importância do conflito interno, também presente na dinâmica que envolve a trajetória da
festa e os seus elementos constitutivos (votos, o mastro, coordenação do evento...). Nem por
isso “conflito social” conforme defende Georg Simmel é algo negativo, longe disso constituise numa ação importante de interação que conforme Alcântara:
Os conflitos sociais são destacados como socialmente importantes. São formas
prevalecentes nas interações de convivência social. Simmel aponta uma das virtudes
do conflito. Este atributo positivo residiria no fato de que ele, - o conflito – cria um
15
patamar, um tablado social, à semelhança de um palco teatral, espaço onde as partes
podem encontrar-se em um mesmo plano situacional e, desta maneira, impõe-se um
nivelamento. Uma condição necessária para que as partes, às vezes, ásperas e
díspares possam de fato, efetuar a trama que ela encerra. É um ato estipulador que,
em outros instantes, permitirá a própria superação das dissimilitudes dos litigantes.
(ALCÂNTARA, 2005, p. 8-9)
O conflito é fruto da interação social e, conforme Alcântara (2005), não é
necessariamente nocivo, pois dentre outras possibilidades renova as perspectivas e os rumos
das estruturas sociais, favorecendo a sociação outro conceito de Simmel com quem
dialogamos definido por Lea Freitas como:
sociação- vergesllsschaftung- é, para ele, “o processo permanente do vir-a-ser da
vida social, processo sempre in fieri, que está acontecendo sem poder dizer que já
aconteceu”. Significa dizer que “não há sociedade feita, mas, antes o fazer-se
sociedade”. A sociação como processo social básico, que denota o dinamismo
constitutivo da vida social, não se confunde nem com a socialização nem com a
associação, uma vez que dá conta, não de conteúdos, mas da “forma (realizada de
incontáveis maneiras diferentes) pela qual os indivíduos se agrupam em unidades
que satisfaçam seus interesses.
(FREITAS, 2002, p.18).
O conceito de sociação, não engessa a interpretação do contexto social (a festa de São
Benedito em nosso caso), mas tanto quanto a visão de identidade de Hall esboça o caráter
dinâmico que as relações sociais são capazes de gerar, a partir das ações e reações dos sujeitos
que as compõe.
Sabemos que a categoria festa está entre os assuntos fartamente estudados pelas
ciências humanas e sociais, principalmente a antropologia, nesse caso nossa referência maior
é o livro “Todo ano tem”, de Regina Prado, que traça um perfil das festas na estrutura social
camponesa, servindo de base da bibliografia até os termos mais específicos como festeiro e
promesseiro3.
As festas de cunho religioso acontecem em todo o Brasil, desde o período colonial
como bem nos informa Priore (1994). No Maranhão as festas feitas a santos como forma de
pagamento de promessas se sobressaem até os dias atuais, com destaque para as de São
Benedito, o que não devemos estranhar, uma vez que desde o século XIX temos no referido
estado uma imensa população negra, a ponto de num determinado momento do período
oitocentista o número de escravos de origem africana ser maior que o de livres, como
podemos constatar na tabela abaixo.
3
Conforme Regina Prado (2007), promesseiro é o individuo ou o grupo social que tem a iniciativa da festa, já o
festeiro é uma escolha anuída para a realização da festa num determinado ano.
16
Tabela 1 – População do Maranhão – 1821/1887
ANO
LIVRES
ESCRAVOS
TOTAL
1821
63.359
84.534
152.892
(44,7%)
(55,3%)
(100%)
105.147
111.905
217.054
(48,4%)
(51,6%)
(100%)
284.102
74.939
217.054
(69,2%)
(20,8%)
(100%)
1841
1872
33.446
1887
Fonte: FARIA, Regina Helena Martins de 2012.
Foi justamente nessa população majoritariamente negra, que São Benedito tornou-se
uma referência de fé e devoção, gerando não só ativ http://www.dicio.com.br/ex-voto/ idades
religiosas, mas também diversas manifestações da cultura popular (hoje patrimônio imaterial)
como o tambor de crioula, que inegavelmente buscam a bênção desse santo protetor.
Acontecem tantos festejos de São Benedito no Maranhão, que seria até difícil
catalogar todos eles sem deixar escapar algum. Sabemos que além de Anajatuba (onde
existem dois grandes festejos de São Benedito), também em Rosário, Itapecuru, Santa Rita, na
capital São Luís e em diversos outros municípios, fato que não é novo, já que Astolfo
Marques, no século XIX, deixou o seguinte registro.
Por todos esses recantos da terra maranhense encontra-se, sob a invocação
beneditina uma capela, com a silhoutte de sua esguia torre a apontar para o céu o
símbolo da devoção dos habitantes locais pelo milagroso Santo. A festa de São
Benedito permanece, pois cada vez mais ruidosa e cheia de ponpa, a ressaltar aos
olhos dos crentes e descrentes o poder vigoroso imensurável e indestrutível antes das
coizas tradicionais do que dum povo fanatizado. (MARQUES, Astolfo. APUD
JESUS, Mateus Gato de. 2013, p. 360)
São Benedito até parece ser brasileiro, de tão entranhado à nossa cultura popular, mas
é Italiano da Sicília. No Brasil a fama dele é tão grande que existe o Conselho Nacional das
Irmandades de São Benedito – CONISB, e também instituições como a Imperial irmandade
de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos de quem copiamos a
biografia do referido Santo Negro, que está no anexo do nosso trabalho.
Anajatuba é uma cidade festeira, a um observador do assunto, basta frequentar a Praça
da Vitória que fica na sede do Município em pelo menos um mês em dias alternados para
ouvir anúncio dos “festejos”, com um perfil similar ao que estamos estudando, caracterizados
17
dentre outras coisas por ser fruto de promessas realizadas por famílias e não pela Igreja, não
podendo haver a quebra do contrato com o santo, reza de ladainhas antigas reproduzidas numa
tentativa de latim e as festas dançantes, geralmente animadas por grandes radiolas de regue da
região, numa mistura de sagrado e profano.
Foto: Wellington Barbosa dos Santos
Foto: Wellington Barbosa dos Santos
Figuras 02 e 03: Faixas anunciando festejos de santo em Anajatuba, na Praça da Vitória e na estrada
Colombo/sede respectivamente. (Fonte: Trabalho de campo).
Além de alternativa de lazer essas festas acolhem a concretização do pagamento de
promessas que são feitas ao longo do ano, cujo benefício vai desde a cura de uma enfermidade
até a aprovação em um concurso. O beneficiado temendo perder a graça alcançada, prioriza
ficar de bem com o santo entregando o que se comprometeu, que pode ser uma “joia” para
leiloar (porco, bolo, galinha caipira e etc.) ou a participação em algum momento religioso,
novena, procissão e etc. Em alguns casos é também possível que se fabriquem ex- votos.
A festa de São Benedito que nos propomos estudar tem mais de cem anos, (segundo
seus próprios organizadores, cento e vinte, em 2014), e, conforme já verificamos, tem um
perfil muito parecido com as demais festas do município, diferenciando-se somente por ser
maior e mais antiga.
Conforme já mencionamos, a festa de São Benedito, constitui-se num fator de
identidade para as famílias mais antigas da comunidade onde ocorre, mas além disso, o
próprio “mito fundador” conta também como elemento importante para reforçar o sentimento
de pertença ao grupo social que organiza a festa.
A narrativa sobre o inicio do evento é conhecida não só pelos moradores da
comunidade de São Benedito, mas estendeu-se por toda a cidade, sendo contada
principalmente pelos mais idosos. De acordo com a tradição popular, uma senhora negra
conhecida como dona Dativa recebeu dos seus senhores a responsabilidade de cuidar de uma
18
família de leprosos, na segunda metade do século XIX, quando não havia cura para a
hanseníase. Sem meios de recusar o trabalho e temendo contrair a doença, ela prometeu a São
Benedito, que se a sua família não fosse afetada pelo mal, faria uma festa todo ano em
agradecimento ao santo negro, enquanto vida tivesse. Dativa trabalhava no povoado Bacabal
4
e morava na localidade onde hoje é a comunidade de São Benedito.
É com essa narrativa que se inicia a festa que estudamos, numa comunidade urbana
que vive da pesca no campo e do serviço público prestado a prefeitura, onde são
principalmente vigias e agentes de serviços gerais. Os moradores mais antigos se reconhecem
como negros e se organizam politicamente em torno da associação de moradores da
comunidade, que desde o início do ano de 2014 mudou a diretoria tornando-se mais ativa,
reunindo-se pelo menos uma vez por mês e também quando é solicitado por órgãos da
prefeitura, como a Secretaria de Assistência Social, ou de Igualdade Racial. A nova direção,
recém empossada, comprometeu-se em retomar o diálogo com a comunidade, para participar
na organização da festa de São Benedito, que atualmente tem como coordenadores somente
três pessoas, os senhores José Maria Verde(único coordenador que não entrevistamos
formalmente) e Benedito de Eustáquio da Guia, e a senhora Prisca Isaias Verde.
Não há igreja evangélica e nem casa de culto de matriz africana na comunidade São
Benedito, embora alguns moradores sejam evangélicos e, em menor número participantes de
terreiros, os católicos são a maioria, e os mais antigos sustentam a Festa de São Benedito,
envolvendo os mais jovens, quando conveniente, principalmente nas atividades em que
precisam pagar promessas, feitas para aprovação em concurso ou para recuperação da saúde,
ou outros motivos que desconhecemos.
O diálogo com as mais variadas gerações de moradores na comunidade São Benedito,
faz parte da nossa metodologia que privilegia o trabalho de campo e as entrevistas.
Levando em consideração que estudamos um evento, que ocorre anualmente entre os
dias primeiro e sete de janeiro, priorizamos nos últimos três anos acompanhar na íntegra a
festa de São Benedito em Anajatuba, observando, anotando, gravando e filmando tudo o que,
4
BACABAL Povoado de Anajatuba, onde trabalhava dona Dativa, não confundir com o Município de Bacabal
MA localizado no médio Mearim a 250 km da capital São Luís.
19
com base na teoria considerávamos importante para a elaboração do nosso trabalho. Esses
dados foram analisados simultâneos ao exercício da escrita, pois conforme Oliveira.
Assim sendo, seria um equívoco imaginar que, primeiro, chegamos a conclusões
relativas a esses mesmos dados, para, em seguida, podermos inscrever essas
conclusões no texto. Portanto dissociando-se o pensar do escrever. Pelo menos
minha experiência indica que o ato de escrever e o de pensar são de tal forma
solidários entre si que, juntos, formam praticamente um mesmo ato cognitivo
(OLIVEIRA, 2006, p. 32).
Contudo somente o acompanhamento sistemático dos dias de festa não foi suficiente
para a construção do nosso trabalho. Ao longo do ano, de acordo com a disponibilidade dos
atores sociais envolvidos na festa, realizamos entrevistas com os mais velhos da comunidade
São Benedito, membros da família que organizam o evento. Foram eles: Benedito de
Eustáquio da Guia e Prisca Isaías Verde e a já falecida Dona Domingas.
Além deles, fez-se necessário que ouvíssemos idosos também de fora da comunidade,
que pudessem contribuir com a nossa investigação, nos informando dentre outras situações,
como participavam e interpretavam a divisão étnica das festas em Anajatuba. Registramos
com gravador a fala de idosos de fora da comunidade, como a do escritor Mauro Rêgo e do
Senhor Manoel Dutra.
E, por fim, gravamos depoimentos de pessoas que, direta ou indiretamente,
contribuíram ou contribuem com a festa, como a rezadeira D.Mocinha.
Todas essas entrevistas foram gravadas sem que houvessem maiores resistências. Os
coordenadores do evento também nos foram sempre muito solícitos. Mesmo idosos e já
cansados, eles se dedicam a festa de São Benedito e se esmeram bastante para dar
continuidade a tradição da “família”, como costumam dizer.
Na comunidade São Benedito, as misturas étnicas ocorreram com frequência, pela via
de casamentos e compadrio, representados por vários sobrenomes como Dutra, Verde, Dos
Santos, Guia e etc.
Optamos por estudar a festa a partir de 1954, por ser o período em que os
organizadores atuais assumiram o compromisso de estar a frente das atividades, mas em
alguns trechos do texto, foi necessário buscar referências anteriores a esse período,
preenchendo lacunas como as da origem do mastro, que originalmente não estava na
promessa, ou da intervenção de elementos próprios da festa de São Lázaro na festa de São
Benedito, privilegiamos nesse sentido ouvir os coordenadores da festa, mas também outros
idosos
20
Para analisar as relações de identidade e sociação dessas famílias com a festa de São
Benedito, dividimos nosso trabalho em três capítulos.
No primeiro capítulo tratamos da nossa trajetória acadêmica, relacionando com as
dificuldades e aprendizados, que nos permitiram produzir a presente dissertação,
privilegiando como metodologia, o trabalho de campo e as entrevistas.
No segundo capítulo nos dedicamos em discutir a importância do “mito fundador” da
festa, também como fator de identidade, explicando dentre outros, a influência da hanseníase
e da menção ao banquete dos cachorros, normalmente atribuídos a São Lázaro, estarem
fortemente vinculados a festa de São Benedito em Anajatuba. A prática de recorrer aos santos
para se livrar de algum mal, segue com muita força em Anajatuba até os dias atuais, mas
como no passado, quem recorre aos seus superiores tem que retribuir, e é daí que ocorre a
realização de muitas festas em Anajatuba, tanto na sede como nos povoados, num movimento
constante de retribuir. Sabemos que a dádiva conforme a teoria de Marcel Mauss (2003)
consiste num sistema de trocas, que não é desinteressado e que não pode se resumir a troca de
mercado, o dar e receber aqui, é um exercício de poder, no caso do “potlatch” como analisa
Mauss (2003) os produtos são inclusive destruídos por quem recebe. Há também um tipo de
troca muito especial entre homens e deuses com a natureza, cujo os objetivos são variados e
as formas de agradar as divindades também, privilegiando o sacrifício dos homens, e as
graças auferidas juntos aos deuses, principalmente a saúde e a paz. Essa relação de dar e
retribuir, entre homens e deuses é um dos fundamentos do segundo capítulo do nosso
trabalho, uma vez que, a festa de São Benedito que estudamos em Anajatuba, ocorre como
forma de pagamento de promessa feita pela graça recebida de não contrair a hanseníase,
estendendo-se a família de Dona Dativa que manteve “o acordo”, mediante a continuidade do
benefício, agregando novos votos, e ampliando o sacrifício em atividades como carregar o
mastro.
No terceiro capítulo, descrevemos a festa em dois mil e quatorze, sem deixar de
registrar como ela foi ganhando amplitude ao longo dos anos com várias promessas
agregadas. Além disso, enfatizamos a trajetória dos que organizam e organizaram a festa, em
suas relações internas e externas de colaboração e conflito, com a Igreja Católica e o poder
público municipal. Para traçar um perfil da festa de São Benedito em Anajatuba, tivemos
como referencia o livro de Regina Prado “Todo ano tem”, e “As culturas populares no
21
capitalismo” do antropólogo argentino Nestor Garcia Canclini, que enfocam a relação da festa
com a sociedade que a realiza, e o que ela representa para aquele determinado grupo social.
Na conclusão e considerações finais, exploramos a festa de São Benedito como
elemento de identidade étnica, enfatizando as mudanças que ocorrem na festa, como resposta
as transformações sociais. Era muito comum em Anajatuba, até meados da década de 1970,
que os negros não frequentassem festas de branco e vice versa. Ressaltamos dentre outros, o
caráter de resistência que as atividades lúdicas dos negros assumiam, uma vez que rejeitados
nos espaços de lazer dos brancos buscavam construir alternativas, engendrando uma riqueza
cultural que permanece viva atualmente, mesmo com as mudanças no contexto, ensejando
novas respostas identitárias.
22
CAPÍTULO 1
METODOLOGIA / CONSTRUÇÃO DO OBJETO
1.1 A construção do objeto: trajetória acadêmica e profissional
Nossa graduação em História deu-se por influência da vida de militante exercida no
grêmio estudantil do Colégio Universitário, na Pastoral da Juventude Católica, no movimento
negro e alguns anos no Partido dos Trabalhadores. Naquela época (início dos anos 2000)
pesou na escolha do curso, a intenção de compreender como funciona nossa sociedade, para
avaliar como seria possível contribuir.
Via de regra quem entra na universidade influenciado pelos movimentos sociais, busca
um curso da área de humanas e previamente um aprofundamento na teoria marxista e foi isso
que aconteceu, embora muito cedo fosse possível perceber que a História tinha outros
paradigmas além do marxista e outras preocupações, sendo o funcionamento da sociedade um
deles, mas que no momento não estava em voga. Novas descobertas também despertaram o
nosso interesse. Logo no segundo ano de curso, um estágio no APEM (Arquivo público do
Estado do Maranhão), se constituiu numa experiência rica de trabalho com documentos
oficiais.
Malgrado as críticas feitas ao apego à documentação escrita e todo um movimento
historiográfico de ampliação das fontes, os historiadores ainda produzem, na sua grande
maioria, com base no que foi registrado em papel. Portanto, o arquivo se mostrou o lugar ideal
para iniciar uma pesquisa, o que se comprovou na produção do nosso trabalho de conclusão
de curso de graduação5.
Logo após a experiência do APEM, mas antes do trabalho de conclusão de curso, um
novo estágio ainda mais marcante na trajetória acadêmica foi a experiência de dois anos como
monitor no PRONERA (Programa Nacional de Educação e Reforma Agrária), organizado
pela UEMA (Universidade estadual do Maranhão) e a FETAEMA (Federação dos
Trabalhadores e trabalhadoras na Agricultura do Estado do Maranhão). O PRONERA é um
programa em parceria dos movimentos sociais do campo, com as universidades públicas e
subsidiado pelo governo federal, que atua nos mais variados graus de ensino, da alfabetização
ao terceiro grau, o que participamos oferecia as séries iniciais do ensino fundamental, nos
5
Trabalho de conclusão de curso apresentado na Universidade Estadual do Maranhão em 2008. Título:
Confederações abolicionistas no Maranhão na segunda metade do século XIX (1870- 1888).
23
seguintes municípios: Pedro do Rosário, Turiaçú, Turilândia, Pindaré, Centro Novo, Centro
do Guilherme, Governador Nunes Freire e algumas localidades adjacentes.
Cada monitor do programa se responsabilizava por um ou dois municípios,
dependendo da quantidade de salas de aula para atender, ficamos com Turiaçú e Pedro do
Rosário. Nossa função era viajar uma semana a cada mês, para acompanhar o trabalho dos
professores nas comunidades, que deveriam ministrar suas aulas na metodologia Freireana6,
se houvesse algum problema era nossa responsabilidade administrar e depois informar à
coordenação por via de relatório.
Trimestralmente participávamos da monitoria na escolarização que acontecia a cada
dez dias, em São Luís, mais precisamente na sede da ASSUMA (Associação dos Servidores
da Universidade Federal do Maranhão), no bairro Olho D’água, nesses dias os professores
vinham dos municípios citados e completavam sua formação, bem como aprofundavam o
método Paulo Freire, trocavam experiências e aprendiam atividades que deveriam ser
aplicadas quando voltassem para suas comunidades.
O trabalho do PRONERA nos realizava por se assemelhar ao do Antropólogo, uma
vez que o monitor, deveria ir a campo se inteirar da cultura local, para a partir daí elaborar as
ações pedagógicas como é próprio do método Paulo Freire, no fim ainda era preciso entregar
um relatório, que tinha forte viés etnográfico.
Permanecemos por dois anos como bolsista do PRONERA, sendo que o término do
contrato coincidiu com o período de conclusão do curso de História, no ano de 2007, quando
já havia o interesse em fazer um projeto de pesquisa para concorrer ao mestrado em Ciências
Sociais, mas não foi possível naquele momento porque fui aprovado em concurso para
professor do ensino médio no Estado do Pará, assumindo no ano seguinte. O retorno para o
Maranhão ocorreu em 2010, para trabalhar também como professor do ensino básico, mais
precisamente no município de São José de Ribamar.
Os anos em que estivemos fora do estado foram de poucos avanços acadêmicos, mas
conseguimos definir o que estudar para concorrer ao mestrado de Ciências Sociais, o trabalho
seria sobre a festa de São Benedito, em Anajatuba, Maranhão.
“O Método Paulo Freire consiste numa proposta para a alfabetização de adultos, desenvolvida pelo educador
Paulo
Freire
e
escrita
por
ele
em
Pedagogia
da
Autonomia”
(Disponível
em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A9todo_Paulo_Freire. Acesso em 17/03/2014).
6
24
Em 2012, assumimos como professor do Estado em Anajatuba, mesmo ano em que
iniciamos o mestrado. Feliz coincidência, pois nossa opção de local refletiu o desejo de estar
próximo aos parentes paternos e do “objeto de pesquisa”, mas não sabíamos quando seria
nossa convocação.
Foi difícil conciliar o trabalho com as disciplinas, mas conseguimos tirar proveito, pois
muitos professores “nascidos e criados” em Anajatuba nos deram dicas de quem entrevistar
para nos esclarecer sobre os assuntos solicitados e também tiravam dúvidas próprias de quem
não mora na localidade onde pesquisa, revelando histórias e personagens que nos foram muito
úteis.
O contato com os alunos também ajudou bastante, pois em julho de 2012
entrevistamos 10 pessoas idosas sobre assuntos relacionados ao festejo de São Benedito com
o auxílio dos educandos Iago e Irivaldo, o resultado dessas entrevistas foi apresentado em
novembro de 2012 no encontro humanístico da UFMA, por nós e pelos referidos alunos com
o título “Com muito respeito: A festa de São Benedito em Anajatuba, memória tradição e
identidade”. Essas mesmas entrevistas nos valeram bastante nos artigos para obtenção de
notas nas disciplinas do mestrado e no texto da dissertação.
A festa de São Benedito ocorre sempre entre o dia primeiro e o dia sete de janeiro,
coincidindo com o período de férias, o que nos permitiu, ainda em 2010, um primeiro contato
com o evento sem precisar interromper o trabalho em outro Estado.
Encontrar um objeto de estudo em Anajatuba era unir “o útil ao agradável”, pois nos
permitia um contato mais próximo com nossa ancestralidade, já que nossa família paterna é
originária de lá, e o encontro com eles, principalmente com os que não vieram para São Luís,
era raro.
A festa de São Benedito ocorre na comunidade que também é chamado de São
Benedito, e é organizada pelos moradores mais antigos, direta ou indiretamente nossos
familiares. Trata-se de uma relação onde “o familiar, não é assim tão familiar”, uma vez que
já sabíamos da existência da festa, mas ainda não havíamos tido nenhum contato antes de
nosso interesse de pesquisa.
25
1.2 Metodologia
1.2.1 Posicionamento teórico-metodológico
Não saberíamos precisar quando iniciou esse diálogo entre a História e a
Antropologia, mas certamente podemos afirmar que, do lado da História, a Escola dos
Annales constitui-se numa grande referência da relação entre as duas disciplinas, pois desde a
sua fundação em 1929, se propôs em ampliar as fontes de pesquisa, superando a exclusividade
dada aos documentos oficiais e buscando outras áreas do saber como parceiras, dentre elas a
Antropologia que tem um papel de destaque como podemos constatar na citação abaixo.
A viragem antropológica pode ser descrita, com mais exatidão, como uma mudança
em direção à antropologia cultural ou “simbólica”. Afinal de contas, Bloch e Febvre
leram o seu Frazer e seu Lévy-Bruhl e usaram essas leituras em suas obras sobre a
mentalidade medieval e seiscentista. Braudel era familiarizado com a obra de Marcel
Mauss, que fundamenta sua discussão sobre fronteiras e intercâmbios culturais. Na
década de 60, Duby utilizara os trabalhos de Mauss e Malinowski sobre a função
dos presentes. (BURKE 1991, p. 94)
O fascínio por história e antropologia é sobejamente compartilhado em todo o mundo,
mas não como mero robe e sim como possibilidade de explorar os objetos de pesquisa por
ângulos diferentes, enriquecendo a prática antropológica e historiográfica, encerrando
fronteiras, como as especificidades metodológicas, por exemplo, levando os historiadores ao
trabalho de campo e os antropólogos a pesquisar nos arquivos, soma-se a isso um mergulho
compartilhado na tradição teórica entre as disciplinas, como nos confessa o Peter Burke
O historiador da Europa pré-industrial pode aprender muito com os antropólogos
sociais. Em primeiro lugar, os antropólogos dedicam-se a entender o conjunto de
uma sociedade estranha a partir de seus próprios termos, ao passo que os
historiadores, até recentemente, tendiam a restringir seu interesse às classes
superiores. Em segundo lugar os antropólogos não param quando descobrem a visão
do agente sobre o significado de sua ação, mas avançam para estudar as funções
sociais dos mitos, imagens e rituais (BURKE, 2010, p.12).
Para não ficarmos somente na Europa, com os franceses dos Annales e o britânico
Peter Burke, podemos lembrar o diálogo esclarecedor e produtivo, que ocorreu entre o
antropólogo Clifford Geertz e o historiador Robert Darnton, nos Estados Unidos, citado por
este último.
Foi nos Estados Unidos que tomei conhecimento das questões que a antropologia
simbólica perseguia. Comecei a lecionar em 1968, e logo conheci Clifford Geertz.
Desde o começo desenvolveu-se entre nós uma grande amizade. Falávamos como
irmãos e éramos muito ligados. Em 1970, Geertz perguntou-me o que eu fazia em
história. Contei a ele sobre minha ligação com história das mentalidades e ele me
26
disse: “Isso parece Antropologia! Nós dois fazemos a mesma coisa”. Eu disse ainda
que queria estudar a vida intelectual dos não intelectuais, e ele disse que isso
também era antropologia. Foi então que resolvemos oferecer para alunos de
graduação um seminário coordenado por nós dois, e essa prática continuou por mais
de 25 anos. (DARNTON, 2007, p. 98).
Também é alvo de discussão, tanto na História como na Antropologia, o termo
“cultura popular”. Vários autores dessas duas disciplinas se dedicaram a estudar as produções
e expressões elaboradas pelas classes menos abastadas, ou que lhes foram atribuídas, mesmo
assim é difícil chegar num consenso sobre o que é afinal “cultura popular”, para muitos o
conceito poderia ser abolido, como podemos observar em diálogo de Abreu (2009) com o
historiador Roger Chartier.
Para alguns historiadores atuais como Roger Chartier, sempre foi impossível saber
(ou mesmo não interessa descobrir), o que é genuinamente do povo, pela dificuldade
ou mesmo impossibilidade de se precisar a origem social das manifestações
culturais, em função da histórica relação e do intercâmbio cultural entre os mundos
sociais, em qualquer período da história. De qualquer forma, Chartier está coberto
de razão em alertar, com uma boa dose de denúncia ser o conceito de cultura popular
uma categoria erudita, que pretende “delimitar, caracterizar e nomear práticas que
nunca são designadas pelos seus atores como pertencendo a cultura popular”.
Sempre há o risco continua o historiador francês, de se ficar incessantemente
procurando uma suposta idade de ouro da cultura popular, período em que ela teria
existido “matriarcal e independente”, em face de épocas posteriores, em que a dita
cultura popular teria começado a ser perseguida por autoridades eruditas ou
desmantelada pelos irresistíveis impulsos da modernidade” (ABREU, 2009, p. 8384).
Para não nos estendermos em demasia no assunto, adotamos as perspectivas de Peter
Burke, porque malgrado as recomendações em contrário, esse autor manteve o termo “cultura
popular” em seus trabalhos, sem se esquivar das inúmeras polêmicas, debatidas de forma
reflexiva, tais como no livro “Cultura popular na Idade Moderna, Europa 1500 – 1800”.
Lançado 1978, a obra tornou-se referência mundial sobre o tema, mas também sofreu várias
críticas, no afã de respondê-las, Burke indica alguns cuidados que o pesquisador deve ter ao
escrever sobre cultura popular. Um dos primeiros desafios, é que a cultura popular passa uma
ideia de homogeneidade, por isso historiadores preferem que a expressão esteja no plural.
Outro problema recorrente, é o da fronteira com uma suposta cultura de elite, que
reforça uma perspectiva binária e empobrecedora. Referindo-se a Bakhtin, Burke faz alusão a
ênfase dada por esse autor russo, às interações e não as fronteiras, que são impossíveis de se
definir. Dessa forma a cultura popular, em muitos momentos assumiu um caráter transgressor,
contrapondo-se a oficial e não a que supostamente seria da elite.
Ainda sobre as fronteiras, Burke aponta para a amplitude das dinâmicas culturais que
leva membros da elite a circular pelos dois mundos tanto o “erudito” como o “popular”,
apropriando-se de suas manifestações como lhes convém em tempos e perspectivas diferentes,
27
para esses casos Burke indica o uso do termo “bilíngue”, contemplando principalmente
intelectuais que conhecem tanto os códigos culturais próprio do seu meio social como também
o das classes menos abastadas.
Dois historiadores mais avessos ao termo “cultura popular” são ainda citados por
Burke, o primeiro deles é William Christian, que ao estudar votos, relíquias e santuários no
século XVI na Espanha percebeu que tanto a família real como analfabetos mantinham
práticas religiosas similares no que concerne a esses objetos, por isso substituiu o “popular”,
pelo “local”, trocando a polarização elite e povo, por centro e periferia, também reducionista e
complicada uma vez que de acordo com o tempo e a localidade, o centro de poder nem
sempre coincide com o econômico ou religioso.
Outro severo crítico do termo popular apontado por Burke, foi Roger Chartier, que
também não vê sentido na oposição popular erudito a partir de objetos como literatura de
cordel e ex-votos 7 , que são próprios de vários grupos sociais diferentes de acordo com o
contexto, melhor seria, segundo ele estudar o modo como os objetos são apropriados.
Burke admira a visão de Chartier, mas adverte que a perspectiva que adotou em suas
pesquisas é complementar e não antagônica a do colega francês, que estudou dos objetos para
os grupos, enquanto Burke fez o caminho inverso, muito bem manifesto no termo bilíngue.
Concordamos que a expressão cultura popular é controversa e problemática, mas a
partir dos cuidados levantados por Burke, reconhecemos também sua legitimidade, afinal,
ainda que seja uma categoria acadêmica é amplamente utilizada por agentes de manifestações
culturais das classes menos abastadas e secretarias de cultura e turismo.
Além disso, compreendemos que não polarizando as classes, podemos ter um outro
olhar sobre o popular, que está entranhado na sociedade composta de grupos sociais não
homogêneos e muito complexos, não devendo ser reduzidos a uma perspectiva dicotômica.
Também nos valemos do termo “popular”, no que se refere ao catolicismo, pois
estudamos uma festa católica devotada a São Benedito, contudo não convém nos desviarmos
do caráter complexo de como compreendemos as manifestações culturais em questão, opondo
um catolicismo popular a outro chamado de oficial, é por isso que compartilhamos da visão
de Mauro Passos quando afirma:
7
s.m. Quadro, imagem ou inscrição que se oferece numa igreja ou numa capela para comemorar um voto ou
desejo atendido. É um agradecimento por qualquer intervenção miraculosa ou grande graça recebidas. A oferta é
prometida ao santo de especial devoção.Os ex-votos podem ser classificados como antropomorfos, zoomorfos,
especiais ou representativos de valor, e simples. Antropomorfos são os que representam o corpo humano, no
todo ou em parte. Zoomorfos são as representações de animais. Ex-votos especiais ou representativos de valor
são as promessas pagas em espécie milho, feijão, ovos, até jóias que, convertidas em dinheiro irão beneficiar a
manutenção do culto. Simples são os que não podem ser encaixados em nenhuma das outras classificações. Os
ex-votos são obras de arte popular. (dicionionário on line. Disponível em http://www.dicio.com.br/ex-voto/)
28
O catolicismo popular brasileiro conserva seus códigos próprios, suas metáforas e
sua linguagem. Nem sempre é fácil decifrar seu significado, pois seu caráter
metafórico e performativo sobrepõe um processo de produção de sentidos
silenciados. (PASSOS, 2002, p. 165)
1.2.2 Trabalho de campo
O trabalho de campo se completa em três fases, olhar ouvir e escrever, como bem nos
ensina Roberto Cardoso de Oliveira (2006) e é justamente nessa terceira etapa, que se
encontra nossa maior dificuldade, sobretudo pela falta de treino que o desafio de redigir um
texto acadêmico exige, pois geralmente quem chega num mestrado carrega na bagagem, uma
língua estrangeira, várias apresentações em simpósios, seminários e congressos, dedicou-se
alguns anos no que conhecemos como iniciação científica, ligando-se a um grupo de estudos
universitário, comandado por professores pesquisadores experientes, para auxiliar e preparar o
jovem, que naquele momento é estudante, mas depois torna-se um colega.
Nossa trajetória não segue esse itinerário, o mais próximo de texto acadêmico que
produzimos foram os relatórios do PRONERA, entregues a coordenadora do programa, a
professora Zélia Varela, do Departamento de Química da UEMA, cuja maior preocupação era
com o funcionamento regular das salas de aula.
No mais estivemos voltados para o ensino básico em escolas públicas, onde mesmo os
recursos mais elementares como pincel e quadro branco são escassos, a pesquisa então tornase quase que um sonho, tendo o professor de tirar do seu próprio salário para bancar
atividades extra classe, que ousar se submeter, essa dura realidade sim nós conhecemos bem.
Produzir um texto acadêmico que expresse a contento o que colhemos no trabalho de
campo, esse é o objetivo almejado pelos estudantes que visam concluir um curso universitário
em seus variados níveis, para depois tornar-se rotina na vida do pesquisador. Buscamos
superar esse desafio, mas nem por isso o olhar e o escrever foram fáceis.
Acompanhamos a festa de São Benedito parcialmente em 2011, e na íntegra nos anos
de 2012, 2013 e 2014, anotando, filmando e fotografando tudo o que foi possível. Não
conseguimos inserção entre os principais organizadores do festejo, relativamente fechados a
palpites e participações externas na programação da festa. Contudo não nos vetaram em nada
no que se refere à observação e registro dos acontecimentos, estendendo esse consentimento a
qualquer pessoa, pois ao longo desses quatro anos, vimos muitos estranhos a nós e aos
coordenadores da festa, filmando e fotografando por interesses diversos o evento, sem
29
qualquer restrição. Entendemos que isso se deve ao orgulho e satisfação que os organizadores
têm em reunir muita gente, numa atividade centenária, que eles dão continuidade com amplo
reconhecimento público.
Em quatro anos de observação mudou muito o comportamento e o sentido de “ir a
campo”. Nos dois primeiros anos a leitura em teoria antropológica era muito incipiente, o que
prejudicou bastante, principalmente “o olhar”. Havia a intenção de estudar o festejo de São
Benedito em Anajatuba, mas era muito difícil fazer um recorte, e mais ainda não tinha a
menor ideia do que observar, olhava para tudo e não captava quase nada.
O desnorteamento era tão grande, que não levamos se quer o famoso “caderno de
campo”, achando que fotografar era uma maneira mais segura de obter registro das atividades
e escrever viria só depois. Esse equívoco nos tirou ainda mais o foco, perdemos muito das
impressões e informações que só poderiam ser retidas naquele momento e foram
lamentavelmente esquecidas, não estavam nas fotos.
A perspectiva de anotar só em casa, de posse da imagem, também não funcionou,
pois, em meio à euforia e o calor do momento, o máximo que conseguimos era retornar no dia
seguinte, fotografar aleatoriamente para escrever em casa, mas o cansaço e a falta de
direcionamento levavam o sono a vencer, entrando num ciclo vicioso e de pouco proveito
para a pesquisa.
Por tudo isso é que as dicas de um treinado pesquisador, e o conhecimento da
literatura antropológica, são fundamentais, conforme nos ensina Evans- Pritchard:
a primeira exigência para que se possa realizar uma pesquisa de campo é um
treinamento rigoroso em teoria antropológica, que dê condições de saber o que e
como observar, e o que é teoricamente significativo. É essencial percebermos que os
fatos em si não têm significado. Para que possuam devem ter certo grau de
generalidade. É inútil partir para o campo às cegas. É preciso saber exatamente o
que se quer saber, e isso só pode ser conseguido graças a um treinamento
sistemático em antropologia social e acadêmica (PRITCHARD, 2005, p. 243-244).
Nos dois últimos anos de pesquisa, após a conclusão das disciplinas e das leituras e
debates no Grupo de estudo GPMINA, a ida a campo foi mais proveitosa. Ainda assim nos
ressentimos muito do pouco tempo de contato com a literatura antropológica. A despeito disso
é bom ressaltar que compreendemos que a apropriação do arcabouço teórico e prático é
constante na vida do pesquisador e, em nosso caso, além dos professores que ouvimos e dos
livros que lemos, foi muito importante a colaboração dos colegas de classe, a maioria deles
graduados em Ciências Sociais e por conseguinte melhor treinados.
30
Conhecendo um pouco melhor a teoria, foi possível observar com mais propriedade
alguns aspectos constantemente abordados pela antropologia e que estão presentes na festa,
como os rituais, os conflitos internos, o sincretismo, e as relações de identidade.
Dentre as leituras que fizemos, destacamos a de Clifford Geertz, fundador da chamada
“Antropologia interpretativa”, que influencia ainda hoje o fazer antropológico, defendendo
que as culturas dentre outras definições, constitui-se num conjunto de códigos e significados
construídos e compartilhados socialmente, sendo a etnografia o trabalho de interpretar esses
códigos, transmitindo-os aos pares através dos textos acadêmicos.
A interpretação desses códigos realizados pelo antropólogo, segundo Geertz é de
“segunda mão”, pois a visão privilegiada é a do “nativo”, que desde cedo tem os costumes e
valores de sua própria cultura inculcados no convívio cotidiano.
Outra grande referência foi Regina Prado, antropóloga cujo trabalho “Todo ano tem:
As Festas na Estrutura Social Camponesa” (2007) ainda é uma grande inspiração para quem
se dedica ao estudo das festas populares no Maranhão, a pesquisa de Prado refere-se a uma
festa que constitui-se numa representação social da vida camponesa dos municípios de
Bequimão e Alcântara (MA), na Baixada Ocidental Maranhense, os conceitos elaborados e a
estrutura do evento registrado por ela, seguem sendo muito importantes para o nosso trabalho.
Outro autor que direcionou nosso olhar foi Nestor Garcia Canclini (1983), que estudou
as festas populares numa perspectiva complexa, questionando as interpretações que colocam
as festas como válvula de escape da ordem social.
a festa sintetiza a totalidade da vida de cada comunidade, sua organização
econômica e suas estruturas culturais, as suas relações políticas e as propostas de
mudanças. Num sentido fenomênico é verdade que a festa apresenta uma certa
descontinuidade e excepcionalidade: os índios interrompem o trabalho habitual
(ainda que para realizar outros, às vezes mais intenso e prolongados), vestem roupas
especiais, preparam comidas e adornos incomuns. Mas não pensamos que a soma
desses fatos seja determinante para situarmos a festa num tempo e lugar opostos ao
cotidiano [...] A partir desta compreensão da festa como uma estrutura, homóloga ou
invertida da estrutura social, podemos tornar inteligível o que nela existe de
acontecimento, de transgressão, de reinvenção do cotidiano, do que transcende o
controle social e se abre para o florescimento do desejo (CANCLINI, 1983, p. 54 e
56).
Adotamos essa perspectiva de Canclini, para complementar o que havíamos absorvido
de Prado, já que para ele A festa não se distancia da estrutura social , sendo uma síntese dos
que a realizam, independente do espaço físico em que a festa acontece, campo, cidade,
quilombola ou indígena.
31
Além das atividades da festa, nos propomos a observar as pessoas que se dedicam em
fazer a festa acontecer, percebemos que são poucos os coordenadores e todos eles idosos. As
atividades religiosas são encargo de dona Prisca, sobrecarregada ainda mais depois do
falecimento de dona Domingas, que a acompanhava na tarefa de reunir organizar e executar
os rituais religiosos. Atualmente as rezas são comandadas Dona Mocinha, que vem da
comunidade São Roque, já que dona Prisca teve um AVC e ficou com a fala comprometida.
Já entre os homens os principais coordenadores são os senhores José Maria Verde e
Benedito Guia, responsáveis em acompanhar o transporte do mastro, as tarefas referentes à
festa dançante, a estrutura física do local, o manejo dos gastos e o bom andamento das
atividades. Os demais seguem as orientações dos coordenadores.
Numa festa de grande proporção, como é a de São Benedito, que atrai multidões,
somente um número considerável de “trabalhadores”, voluntariamente dispostos, pode dar
conta de manter o evento, e realmente muitos se envolvem, mas são todos subordinados aos
de nomes citados e aos coordenadores. Essa forma de organização e a postura dos
coordenadores desagrada muita gente, que mora na comunidade São Benedito, participam da
festa mas não gostam de como ela é conduzida. A desunião é tão evidente, que o espaço onde
ocorre a festa é dividido, a capela está sob os comandos de dona Prisca e dos católicos
praticantes, a escola é da prefeitura, não abre nos dias de festa e as pessoas da comunidade
não tem aceso a chave, como também não possuem da tribuna, local da festa dançante,
comandada pelo senhor Benedito Guia.
A associação de moradores da comunidade São Benedito é composta por pessoas que
são da família que organiza o festejo, mas não tem sequer onde se reunir. Como são todos
católicos, geralmente se encontram na capela, mas a tribuna depende do consentimento do Sr.
Benedito Guia, que geralmente libera, mas recolhe a chave e vem ele mesmo trancar quando
encerra a reunião ou algum evento.
Outro autor que nos serviu de referência no trabalho de campo, Stuart Hall que discute
a difícil questão da identidade no tempo presente, antes das leituras que fizemos desse
prolífico cientista social, ficamos presos a uma perspectiva identitária estática, que não
permitia avançar no trabalho, pois com tantos desentendimentos a festa de São Benedito nos
parecia longe de ensejar algum tipo coesão. Não há uma identidade fixa, e coerente nem na
vida de cada indivíduo e muito menos do grupo, o melhor seria falar de identidades, acionadas
de maneiras diferentes em circunstâncias diversas, essa dinâmica levou inclusive o conceito
32
de identidade a ser substituído pelo de identificação, esse aprendizado que colhemos de Hall
(2002), nos permitiu um diálogo melhor com os organizadores da festa e também com os
descontentes.
Na prática foram muitas as leituras que influenciaram nosso olhar para a pesquisa,
contudo citamos as principais que conscientemente nos permitiram captar informações
importantes no trabalho de campo, para depois sistematizar em nosso texto.
1.2.3 As entrevistas
Entrevistas realizadas com atores sociais envolvidos no universo da pesquisa, é mais
uma das atividades consideradas como trabalho de campo para a antropologia. Na história,
gravar o depoimento das pessoas, é também conhecido história oral. De todo modo, é
importante revelarmos que muitas informações que obtivemos, só foram possíveis de ser
coligidas ouvindo informantes fora do acontecimento da festa.
A programação do festejo, por exemplo, é cheia de atividades que costumeiramente
referem-se à festa de outros santos e não a São Benedito, tais como: pratos embaixo da mesa,
lembrando o banquete dos cachorros de São Lázaro e, na última edição em 2014, havia
inclusive um homem jogando balas para crianças na volta do mastro, o que imediatamente nos
remete a São Cosme e São Damião.
Foto: Wellington Barbosa dos Santos
Figura 04: Reminiscência do banquete dos cachorros na festa de São Benedito
33
Foto: Wellington Barbosa dos Santos
Figura 05: Os juízes com seus familiares.
Não seria possível captar o significado dessas e de diversas outras ações sem ouvir o
que elas representam para quem as realiza, por isso tivemos o cuidado de gravar o depoimento
dos envolvidos, para facilitar o entendimento.
Fazer registro das narrativas, no nosso caso foi muito importante, pois, quase não
dispomos de documentos escritos, acrescentamos a isso o fato de que há muitos conflitos
internos na comunidade São Benedito e só observando a festa, não teríamos como saber a
versão dos descontentes.
Precisamos no entanto da mediação teórica, da leitura antropológica ou historiográfica
ou as duas para treinar o pesquisador. Destituído de uma base teórica que lhe fundamente o
pesquisador ficará perdido em frente ao entrevistado, sem saber o que perguntar, como
direcionar suas questões e como aproveitar o material colhido na conversa com os
informantes.
No entendimento de muitos pesquisadores a história oral é compreendida como
metodologia, nosso trabalho de entrevistar as pessoas também tem esse viés. Por isso, as
pesquisadoras Marieta de Moraes Ferreira e Janaína Amado organizaram o livro “Usos e
abusos da História Oral”, onde reúnem texto compostos de diversas opiniões, mas defendem a
visão que aderimos como expressam na citação abaixo:
34
Entre os defensores da história oral como metodologia situam-se as autoras desta
apresentação e organizadoras do presente livro. [...] Em nosso entender a História
oral como todas as metodologias, apenas estabelece e ordena procedimentos de
trabalho – tais como os diversos tipos de entrevista e as implicações de cada um
deles para a pesquisa, as várias possibilidades de transcrição de documentos, suas
vantagens e desvantagens [...] Mas na área teórica, a história oral é capaz apenas de
suscitar , jamais solucionar, questões; formula as perguntas, porém não pode
oferecer as respostas (FERREIRA e AMADO, 2006, p. XV e XVI).
Os depoimentos dos envolvidos com a festa foram primordiais na construção do nosso
trabalho, as informações que obtivemos ouvindo principalmente os mais idosos esclareciam
pontos importantes da pesquisa, mas também geravam novas indagações, que nos motivavam
a buscar mais depoimentos, sofregamente sistematizados em nosso texto, tendo por base a
teoria antropológica, historiográfica, e a nossa imaginação.
Entrevistamos várias pessoas que compartilhavam sonhos e experiências, participando
ano após ano da festa de São Benedito, com opiniões que convergiam ou divergiam, mas com
pelo menos um ponto em comum, o uso da memória.
Contar com a memória como fonte de trabalhos acadêmicos, ainda é um assunto muito
polêmico, repleto de críticas, mas também de adeptos, como o sociólogo Michel Pollak
(1992).
Para Pollak (1992), a memória é individual e também coletiva e constitui-se de três
elementos principais, os acontecimentos, os lugares e as pessoas, que podem ser lembrados ou
vividos, concretamente ou projetados de outros eventos ou circunstâncias, além disso Pollack
(1992) aponta um outro fator muito importante para nós, a memória é seletiva. Não nos
lembramos de tudo, só guardamos o que é mais significativo.
Nesse sentido podemos ligar a memória a identidade, pois o que é mais significativo
para as pessoas ou grupos sociais é justamente o que elas se identificam. Um exemplo disso
em nossa pesquisa é a segregação étnica vivida nas festas. Quando gravamos as primeiras
entrevistas ainda na elaboração do projeto de mestrado, essa era uma informação ignorada por
nós, mas de quatro entrevistados, três referiam-se a esse assunto, mesmo sem ser perguntados,
um exemplo foi o escritor Mauro Rêgo que nos disse:
Anajatuba naquela época era racista, ainda hoje é, mas naquela época era mais
racista, tinha baile de branco e baile de preto, uma vez, eu estava num lugar, acho
que era em Codó, tinha um clube lá, acho que era Garapari, quando titia chegou foi
horrorizada.
-“Tinha um negro dançando”.
-E o que é que tem titia?
-Mas um preto, um preto.
-Deixa de bobagem titia, vou eu lhe apresentar um homem preto pra senhora ver
como é um homem fino. (RÊGO, 2010).
35
Na fala do escritor Mauro Rêgo, temos o testemunho de um homem branco, da
segregação que ocorria nas festas em Anajatuba, e que ia além da comunidade São Benedito,
citaremos outros exemplos ao longo do trabalho, enfatizando principalmente o caráter
relacional da identidade que aqui discutimos.
As festas refletem, os conflitos étnicos e sociais de Anajatuba, pois os negros sem
possibilidades de participar das festas dos brancos, criaram as suas próprias, reinventando dia
a dia, a cultura popular de matriz africana, tais como o Terecô 8 , a Mina e o Tambor de
Crioula, manifestações culturais por eles praticadas.
Essas danças, cantos e festas praticadas pelos negros quebrou o isolamento de muitas
comunidades, pois quem sabia tocar ou dançar um tambor era constantemente chamado para
participar das “brincadeiras”, realizadas, quase não existiam grupos organizados de
determinada atividade cultural, quem fazia uma promessa para pagar com um tambor
chamava todos que costumeiramente tocavam e dançavam virando a madrugada, quem sabia
ensinava praticando e os que aprendiam tornavam-se multiplicadores da mesma forma, numa
época em que as estradas e os transportes eram extremamente precários em Anajatuba, para
muitos não era incômodo caminhar vários quilômetros para participar das festas,
consolidando as práticas culturais vigentes e uma alternativa de lazer importante para um
povo sofrido que vivia basicamente de roça, da caça da pesca e do extrativismo.
A comunidade de São Benedito reforçou essa interação, sendo as suas festas, mais um
dos lugares comuns frequentados pelas diversas comunidades negras.
Atualmente essa comunicação cultural ainda ocorre, num contexto diferente em que as
próprias comunidades buscam uma organização política que catalise os anseios sociais e um
maior respeito as suas manifestações uma vez que o preconceito continua a existir.
Durante a elaboração do trabalho, estivemos em algumas reuniões dos quilombolas de
Anajatuba e aprendemos muito com eles. Seus testemunhos somam-se aos de seus
correligionários de outras partes do Maranhão e do Brasil. O Historiador Mathias Assunção
ouviu alguns desses depoimentos e manifestou sua opinião: “Essas manifestações, através das
quais as classes populares se divertem, aprendem e elaboram a sua visão do mundo,
funcionam também como associações de socorro mútuo, estruturando redes de solidariedade e
organizando comunidades” (ASSUNÇÃO, 2008).
8
Reinvenção de dança de matriz africana, que em Anajatuba não envolve transe, é tocado por caixas, similar ao
que conhecemos como dança do coco.
36
A festa de São Benedito em toda a sua riqueza, representa essa dinâmica social
descrita por Assunção. Nosso trabalho é apenas uma tentativa de explorar e registrar alguns
aspectos importantes dessa manifestação cultural centenária, que é parte da história de
Anajatuba.
37
CAPÍTULO 2
A FESTA DE SÃO BENEDITO: O MITO FUNDADOR
Neste capítulo discutiremos “o mito fundador” da festa de São Benedito em Anajatuba
com base no Ensaio Sobre a Dádiva de Marcel Mauss, contudo precisamos de início
esclarecer a sequência da construção do texto para evitar possíveis confusões, sobretudo no
que se refere à própria programação da festa que é realizada para São Benedito com
elementos que convencionalmente são feitos para outros santos como, por exemplo, o
“Banquete dos Cachorros”, de São Lázaro, que mais nos interessa no momento.
O mito de origem é uma narrativa que serve de referência para o surgimento de uma
comunidade ou evento, conta também como fator de identificação para um determinado grupo
social, nem por isso constituindo-se em ausência de conflito, tampouco numa verdade
absoluta, sendo na prática uma história construída coletivamente, com alguns elementos que
são comuns e outros interpretados conforme o contexto em que cada indivíduo vive no meio
social.
A discussão sobre a importância do mito de origem perpassa pelo nosso texto, não de
forma aprofundada, mas como breve contribuição teórica, para o entendimento a despeito do
que pretendemos explorar: a narrativa inicial da festa de São Benedito.
Para juntar as peças que compõe o capítulo é importante contextualizar o “mito
fundador”, que agrega em seu bojo uma promessa, que tem o seu desenrolar na festa que
estudamos.
Nessas festas, pelo menos as mais antigas, a narrativa de sustentação geralmente é
ligada a um ente comum a várias famílias que buscam uma graça em benefício de todos,
sendo prontamente atendido, nesse sentido não há nada que se diferencie do evento em que
nos ocupamos no momento, estudamos essa prática recorrente com base no Ensaio sobre a
Dádiva de Marcel Mauss.
O problema é que as promessas que envolvem a hanseníase geralmente são dirigidas a
São Lázaro, não a São Benedito, deste modo, pretendemos discutir a relação que envolve a
promessa e o mito fundador no que se refere a dois santos importantes tanto para o
catolicismo como para os cultos de matriz africana.
Para não perdermos o fio da meada alusivo ao contexto que dá início e continuidade à
festa, faremos breve esboço do impacto da hanseníase no Maranhão, mais precisamente em
38
Anajatuba, além das principais festas neste município, que tem como objetivo a prevenção e
cura da lepra, em seguida fecharemos discutindo essa mesma situação referente a festa de São
Benedito na comunidade de mesmo nome.
2.1 Origens e descontinuidades: breves considerações
A festa de São Benedito em Anajatuba MA perdura desde o século XIX, fato que se
deve principalmente pelo favorecimento de coesão social das pessoas que se empenham em
sua realização, e pela riqueza simbólica que é capaz de expressar, permitindo a identificação
de vários grupos sociais, principalmente das famílias mais antigas da comunidade, cujo nome
corresponde ao do santo, onde a festa ocorre.
Nesse contexto reconhecemos que uma das referências simbólicas mais importantes da
festa é o “mito fundador”, pois é a partir dessa história contada e recontada, pelos idosos da
comunidade São Benedito e até de outras localidades, que se justifica a “necessidade” de
continuar a tradição.
Segundo os relatos que ouvimos dos mais velhos da comunidade, a festa iniciou a
cento e dezenove anos, quando uma escrava conhecida como Dativa, foi designada pelo seu
senhor, para cuidar de um dos seus filhos, que havia contraído a hanseníase, na época sem
cura. Dativa cumpre zelosamente sua função até a morte do garoto, mas durante o trabalho,
promete a São Benedito, a realização de uma festa anual caso nem ela e nem os familiares
fossem atingidos pela temível e na época lepra.
Malgrado algumas variações é essa a história que inicia a festa que estudamos, alguns
moradores mais antigos como, por exemplo, D.Terezinha, discordam que Dativa tenha sido
escrava, o que faz sentido, já que a abolição oficialmente ocorreu em mil oitocentos e oitenta
e oito, e se a festa tem cento e dezenove anos, teria iniciado em mil oitocentos e noventa e
quatro, ou seja, seis anos após a libertação dos escravos no Brasil. Outras pessoas justificam
ainda que ela poderia ter sido escrava, mas após sua alforria trabalhava para o mesmo senhor.
De todo modo, não é uma coerência ou mesmo a “verdade” que estamos buscando
nessa história, nossa preocupação aqui é mostrar como essa narrativa inicial, constitui-se num
fator importante de identidade e interação social das famílias mais antigas da comunidade São
39
Benedito, embora a trajetória tenha sido extremamente dinâmica e cada membro da família
tenha se apropriado da narrativa de forma diferente “o mito fundador” permanece.
Para Foucault a história é importante dentre outras coisas para refutar a “origem”. No
método genealógico idealizado por ele com base em Nietzsche, cada evento tem algo de
único, que pode se encaixar em outros acontecimentos, mas não a partir de uma narrativa
linear sustentada pela “origem”, onde estaria a pureza e a verdade de tudo.
A história, genealogicamente dirigida, não tem por fim reencontrar as raízes de
nossa identidade, mas ao contrário, se obstinar em dissipá-la; ela não pretende
demarcar o território único de onde viemos, essa primeira pátria à qual os
metafísicos prometem que retornaremos; ela pretende fazer aparecer todas as
descontinuidades que nos atravessam (FOUCAULT, 2013, p. 82-83).
Sendo a história mais dinâmica e menos “coerente”, podemos desconfiar que o que a
unifica é uma construção social, a qual geralmente beneficia um pequeno grupo.
Não defendemos um retorno às origens e nem mesmo uma continuidade no desenrolar
da história, optamos por uma perspectiva, mais propícia ao movimento cultural que
pretendemos analisar. Entendemos que para auxiliar na leitura que fazemos de quaisquer
manifestações culturais de um grupo específico, devemos buscar os códigos que este mesmo
grupo criou e como eles os interpretam e reinventam cotidianamente, uma vez que podem
ocorrer várias transformações a cada eventualidade empírica, essas mudanças são objetos
históricos, assim como a própria história é ordenada e orientada culturalmente conforme nos
ensina Sahlins.
A história é ordenada de diferentes modos nas diversas sociedades, de acordo com o
sistema de classificação das coisas. O contrário também é verdadeiro: esquemas
culturais são ordenados historicamente porque, em maior ou menor grau, os
significados são reavaliados quando realizados na prática. A síntese desses
contrários desdobra-se nas ações criativas dos sujeitos históricos, ou seja, as pessoas
envolvidas (SAHLINS, 2011, p. 7).
Esse movimento dinâmico permite que uma determinada sociedade sofra mudanças,
sempre que o contexto no qual está inserida seja modificado estruturalmente, estimulando no
coletivo respostas diferentes tanto interna como externamente, favorecendo transformações
que nos dias atuais são constantes dada a velocidade vertiginosa de como as coisas se
desenvolvem num mundo cada vez mais interconectado.
A festa que estamos estudando, também é parte desse processo que é, de alguma
forma, percebido pelas pessoas envolvidas em sua realização, e as diferentes interpretações
geram posturas variadas e não raro conflituosas, perceptíveis também em outras famílias e
festas na cidade de Anajatuba, pródiga em eventos com esse perfil.
40
2.2 Contextualização: a hanseníase no maranhão e em Anajatuba
Antes de tratarmos diretamente das festas realizadas como pagamento aos santos, pela
prevenção e cura da lepra em Anajatuba, e do impacto disso na comunidade de São Benedito,
faremos uma breve abordagem da repercussão do mal de Hansen em nosso Estado.
Não é nosso objetivo fazer uma análise mais apurada sobre as ações de profilaxia da
lepra em terras maranhenses, buscamos apenas situar nossa curta reflexão no contexto social e
político, em que a doença se proliferou entre o final do século XIX e o século XX, gerando as
promessas que dão início as festas de São Lázaro em Anajatuba e influenciando a de São
Benedito, na comunidade de mesmo nome.
Nossas principais referências para essa rápida contextualização sobre a hanseníase em
nosso Estado e mais precisamente em Anajatuba, são os trabalhos: “A perspectiva dos
Adoecidos: Um olhar antropológico para compreender a hanseníase, de Jacklady Dutra
Nascimento (2010) e Santa Maria de Anajatuba do escritor Mauro Rêgo (2009).
A hanseníase é uma doença infecto - contagiosa causada pelo Micobacterium Leprae.
Os principais sintomas são as chagas na pele e o comprometimento dos nervos periféricos,
que incapacita o doente para muitos serviços principalmente os manuais e os estigmatiza
socialmente.
A doença é contagiosa e prolifera-se com relativa rapidez, contudo:
Estudos imunológicos indicam que cerca de 90% (noventa por cento) das pessoas
têm defesas naturais contra o M. Leprae (FIGUEIREDO, 2006).
O modo de transmissão da hanseníase é complexo, sendo necessária a interação de
dois fatores: o grau de contagiosidade do infectante e o grau de receptividade do
indivíduo exposto. Quando a contagiosidade do infectante é forte e a receptividade
da pessoas exposta é alta, é possível uma transmissão rápida da doença, não sendo
necessário nem uma exposição longa nem contatos íntimos. Por exemplo, não é
comum a manifestação da doença em médicos e enfermeiras que, geralmente, tratam
dos doentes (NASCIMENTO, 2010, p. 48).
Atualmente a doença tem cura, o tratamento é feito com o PQT 9 , que aplicado
corretamente, logo no inicio mata a bactéria eliminando o risco de contágio.
No Brasil o termo lepra foi substituído por hanseníase, tendo um impacto positivo,
pois a doença ultrapassa a perspectiva biológica, extrapolando para o social. Nesse sentido
9
A PQT (poliquimioterapia), cura a hanseníase, interrompe a transmissão e previne as deformidades.
41
lepra e hanseníase não são sinônimos, uma vez que o primeiro confunde-se desde a
antiguidade com uma série de doenças, como a varíola, por exemplo, carregando em seu bojo
ainda mais preconceito, estigma e rejeição social.
A hanseníase é uma doença, que aflige a humanidade há muito tempo, tanto que há
relatos da situação social de doentes nos livros bíblicos há mais de dois mil anos. No
Maranhão há registros de várias epidemias e endemias já no século XVII, mas só a partir do
final do século XIX há documentação farta, alusivo ao assunto.
O regime implantado de profilaxia da lepra no Maranhão seguiu o modelo nacional, só
se efetivando a partir do advento da República em 1889 a partir desse marco, mais
precisamente no começo do século XX, iniciaram as políticas de saúde, que tinham como
foco eliminar as epidemias e endemias, dentre elas a tuberculose, a varíola e a própria lepra.
Antes mesmo que o Estado brasileiro em qualquer de suas esferas, voltasse sua
atenção para tratar os infectados pela lepra e conter o seu avanço, haviam duas propostas
divergentes de profissionais da saúde no que se refere as condições de enfrentar o mal de
Hansen, uma era a dos humanitaristas que defendiam que o doente não deveria ser afastado da
sua família, já que a bactéria da lepra passa por um processo longo de incubação. Para eles, a
internação seria pouco eficaz, pois até que os sintomas se manifestassem os familiares
suscetíveis já estariam infectados. O ideal para os humanitaristas era que o Estado
acompanhasse as pessoas contaminadas, investisse em saneamento básico e na educação dos
familiares do doente.
A outra vertente era a dos sanitaristas, que ganhou relevo significativo com a ascensão
da República. Em harmonia com as ideias de civilização e eugenia da época, esses médicos
eram adeptos do que ficou conhecido como “limpeza social”, propondo a destruição de
cortiços e moradias mais pobres, responsabilizadas pela falta de higiene e pela proliferação de
doenças infectocontagiosas e, além disso, defendiam o isolamento dos “leprosos” do convívio
social, como forma de evitar o contágio.
A vertente sanitarista é quem prevalece, não só pelo convencimento puro e simples,
mas antes por que os médicos adeptos dessas ideias isolacionistas assumiram governos em
diversas ocasiões e esferas de poder no Brasil.
Um dos mais renomados defensores da perspectiva sanitarista na época era
maranhense e assumiu o governo do Estado entre os anos de 1935 e 1936, nos referimos aqui
42
a Aquiles Lisboa, que elaborou um “catecismo” de combate a lepra e defendia seu ponto de
vista argumentando da seguinte forma:
Prohibição rigorosa, imediata, pela polícia ou pela própria autoridade sanitária de se
misturarem à população os doentes de lepra declaradamente contagiantes; vedandose-lhe sobretudo a entrada nas igrejas, nas repartições públicas, nos bondes, nos
cafés, nas casas comerciais, nos mercados, em toda parte, afinal, onde haja
aglomeração de pessoas sã e se exponham gêneros comestíveis, deverá ser
severamente estabelecida (LISBOA, 1936, P.14 APUD NASCIMENTO, 2010, p.
61)
Em 1937 para coroar a vitória dos sanitaristas no Maranhão é concluído o hospital
Aquiles Lisboa, justamente em homenagem ao referido médico. Conhecido como Bonfim, o
leprosário seguia o padrão determinado pelo Plano Nacional de Combate a Lepra, que incluía
em suas ações, pesquisa, censo da população afetada pela doença, legislação específica e o
administrativo.
Guiando-se pelo modelo nacional o leprosário foi construído dentro da cidade de São
Luís, mas num setor menos movimentado do eixo urbano, atendendo aos critérios, era
estabelecido também que no local a circulação de vento seria da cidade para o leprosário e
nunca em ordem inversa.
Similar a uma cidade do ponto de vista administrativo, o Bonfim subdividia-se em três
partes:
A zona sã, situada a 800 metros da zona doente e ligada a esta por uma estrada de
rodagem. Possui cinco cais para embarcações de “pouco calado”, cinco residências
confortáveis para o médico, capelão e demais funcionários sadios.
A zona doente englobava o pavilhão das clínicas, hospital, capela, cozinha,
refeitório, oito pavilhões para acomodarem os doentes; casas distribuídas em duas
ruas, lavanderia casa das bombas, cadeia, escola mista, campos de agricultura e de
pecuária, granja e dispensário para o tratamento ambulatorial dos contagiantes.
Entre a zona sã e doente ficava a zona intermediária onde encontravam-se os
edifícios da administração com o gabinete do diretor, secretaria laboratórios,
farmácia almoxarifado, cozinha, refeitório de funcionários, residência das freiras,
parlatório e vestuário (NASCIMENTO, 2010, p. 68-69 – grifo do autor).
A rotina dos internos do Bonfim era extremamente regulada pelos seus diretores e pela
presença católica, os que desobedeciam eram duplamente penalizados, pois além das regras
rígidas a que estevam sujeitos ainda eram submetidos a reclusões internas e outras sanções.
Para se ter uma ideia, até quando queriam casar-se, o acúmulo de “faltas”, servia como fator
preponderante para que tivessem o pedido negado.
O Bonfim mesmo com todas as ressalvas, foi construído para atender aos doentes de
lepra do Estado, e mal dava conta dos infectados da capital, num universo onde a higiene e o
43
saneamento mesmo o básico, era “privilégio” de poucos, as epidemias espalhavam-se de
forma desenfreada. A ação do poder público era deficitária mesmo em São Luís, nas cidades
do interior o flagelo era ainda maior, quando muito pessoas ou sociedades filantrópicas
buscavam um meio de transferir alguns doentes para o centro administrativo do Estado.
Em resumo, podemos concluir que o contexto social em que viviam os leprosos era de
abandono absoluto ou de confinamento, no caso dos internos do Hospital Aquiles Lisboa, o
doente era marcado pelo estigma do corpo e por um legado religioso moralista, que atribuía
ao próprio leproso a culpa pela enfermidade, relegando-os ainda mais ao afastamento social e
a uma condição psicológica delicada e autopunitiva. A tardia ação do Estado ainda reforçou
essa perspectiva, uma vez que se baseava num aparato “científico” da época, que era
defendido pelos principais nomes da medicina, homens como o doutor Aquiles Lisboa,
altamente influenciados pelos ideais eugênicos e segregacionistas, adotados com muita
convicção no “combate” as epidemias.
O discurso do Estado reforçado pelos mais renomados sanitaristas do país, mostrou-se
ambíguo, pois apesar de toda defesa de uma nação “civilizada”, o que se viu foram tentativas
de limpeza étnica, que pouco contribuíram para amenizar a miséria, e efetivamente enfrentar
os problemas endêmicos, o êxodo rural ampliou a periferia em São Luís e cidades do interior
como Anajatuba, que ficaram desassistidas de politicas públicas de saúde agravando ainda
mais a situação das pessoas acometidas de doenças infecto contagiosas.
O escritor Mauro Rego, cita em sua obra “Santa Maria de Anajatuba”, três epidemias
que historicamente assolaram este município, a varíola, a tuberculose e a hanseníase, sendo
essa última a que mais nos interessa por estar diretamente ligada ao contexto da festa.
O clima e ambiente de Anajatuba propiciam a proliferação de doenças, atingindo em
cheio a população, desprovida de políticas de saúde e de uma educação formal competente,
temos um contexto desolador, muito bem descrito na citação abaixo:
O município de Anajatuba sempre conviveu com doenças, talvez por ser todo
situado nos campos da baixada ocidental maranhense, alagados no inverno e
extremamente secos no verão. Os habitantes convivem com esses alagamentos, com
a lama que se amontoa nos abaixamentos das águas e com muriçocas ou “pragas”
que afligem a população durante todo o ano.
A água consumida no interior é, muitas vezes, a própria água do campo,
contaminada com os ovos desses insetos e pelos excrementos humanos e dos
animais. No verão, é usada a água dos açudes ou de poços tipo cacimbas, cavados
dentro do próprio campo. Muitas vezes ouvi a recomendação do Padre Chiquinho,
em suas desobrigas pelo interior, para que não bebessem da água do campo, em
44
virtude das impurezas que contém e das doenças que pode transmitir (RÊGO, 1999,
p. 97).
É nessa condição social de desamparo que se encontravam os moradores de Anajatuba
durante o final do século XIX e o no século XX, os mais pobres ainda vivem assim, contudo
em boas condições de saúde. A pesca e as conhecidas linhas de roça, garantem o sustento e o
convívio social costumeiro, algumas doenças dentre elas a lepra rompem com esse processo,
relegando a pessoa acometida a situações constrangedoras que não estavam habituadas a
enfrentar.
Desprovidos da inserção social que foram acostumados desde pequenos, os indivíduos
que contraiam a hanseníase terminavam por se agrupar entre os pares, mas ainda assim eram
discriminados, as pessoas que se compadeciam dos infectados viam como solução o já
costumeiro hábito de tentar confinar em lugar seguro e no caso em questão a alternativa
encontrada era enviar para o Bonfim.
Aqui em Anajatuba era comum o trânsito de vários leprosos. Vinham em grupo.
Alguns eram verdadeiros farrapos humanos, deformados, sem os dedos das mãos e
dos pés que eram apenas chagas envoltas em panos de onde corriam matérias
putrefatas. Chegavam montados nos seus cavalos com montarias de cangalhas, onde
penduravam cofos com seus pertences e onde aparavam os gêneros que lhes eram
dados como esmolas. Ficavam no meio das ruas e os objetos e a comida lhes eram
entregues através de galhos de árvores para evitar o contato (p 99)... Em 1948,
houve um movimento encabeçado pelos membros da igreja Católica, para conduzilos ao Leprosário da Ponta do Bonfim, em São Luís, e muitos foram embarcados em
uma igarité, no Porto Grande, levando-lhes a esperança de uma recuperação já
impossível (RÊGO, 1999, p. 102).
Não devemos estranhar por tanto, que Dona Dativa tenha recorrido a uma promessa
para livrar a si e aos seus familiares da hanseníase, pois além de ser incurável na época, a
enfermidade afastava bruscamente a pessoa contaminada do convívio social, mesmo parentes
e familiares mais próximos tinham medo do contato com o sujeito infectado.
A promessa foi feita a cento e dezenove anos, conforme os próprios praticantes da
festa afirmam, e decidiram dar continuidade, enfrentando as mudanças e os percalços que iam
ocorrendo no desenrolar do contexto social que estavam inseridos, mas essa prática por ser
comum a vários outros, que estão convivendo no mesmo espaço, permitiu que houvesse uma
troca significativa de experiências, e ainda mais, que muitas práticas fossem compartilhadas,
sobretudo entre os de mesma etnia, já que brancos não frequentavam festas de negros e vice
versa. Esse diálogo cultural, certamente ocorreu também favorecendo o sincretismo, pois há
elementos como o uso de imagens e iniciar as atividades das festas, com o levantamento de
45
um mastro, que são comuns a católicos e praticantes de religião de matriz africana, não só em
Anajatuba, mas em várias partes do Brasil.
2.3 As festas de São Lázaro em Anajatuba e a inserção na Festa de São
Benedito
O ato de pagar benefícios pessoais com a realização de atividades religiosas dentre
elas as festas, é ação muito comum no município de Anajatuba, onde “a brincadeira” como
costumam dizer é em homenagem a uma entidade ou santo, numa relação onde vigora um
contrato subjacente entre as partes. Destarte, a variedade de possibilidades que enseja esses
“contratos”, pretendemos com base em Mauss no ensaio sobre a dádiva, pensar esse vínculo
indivíduo(s) /entidade, dando ênfase a perspectiva identitária, que essa expectativa reforça,
uma vez que geralmente a promessa é feita por uma pessoa ou família e várias outras se
agregam com o mesmo fim.
O Ensaio sobre a dádiva é uma análise sobre a forma e os motivos em que ocorrem as
relações de troca, nas sociedades “arcaicas” (como Mauss as chamava). A pesquisa trata
principalmente da Polinésia, Melanésia e Noroeste americano, constituindo-se num exemplo
clássico do fato social total, uma vez que as trocas que se desenvolvem no interior de uma
sociedade, não podem ser reduzidas ao fator econômico, mas estendem-se a todos os setores
da organização social.
Para Marcel Mauss as trocas que acontecem no interior das sociedades estudadas não
ocorrem somente por generosidade e nem mesmo apenas por necessidade econômica, as
permutas regulam as relações sociais. Forçosamente quem recebe tem que retribuir, gerando o
que o próprio Mauss denominou “Sistema de prestações totais” ou quando mais complexas
“potlatch” quer dizer essencialmente “nutrir”, “consumir”.
Esse sistema descrito por Mauss, não é restrito as sociedades que ele analisou, mas se
estende a todas as outras em maior ou menor grau, mesmo as ocidentais.
Mesmo costumes recentes e engenhosos, como as caixas de assistência familiar que
os industriais franceses propuseram, livre e vigorosamente, em favor dos operários
encarregados de família, respondem espontaneamente a essa necessidade de vincular
os próprios indivíduos, de levar em conta seus encargos e os graus de interesse
material e moral que esses encargos representam (MAUSS, 2003, p. 296-2970).
46
O referido ensaio de Mauss apresenta uma dinâmica intensa no que se refere às razões
e formas de troca entre as sociedades estudadas, dando ênfase: “Aos bens uterinos contra os
bens masculinos (Samoa)”, “O Espirito da coisa dada (Maori)” “A obrigação de dar e a
obrigação de receber” e um quarto item que é o que mais nos interessa: “o presente dado aos
homens e o presente dado aos deuses”.
Tomando como referência o Ensaio sobre a dádiva, analisamos o impacto que a
hanseníase causou nas relações sociais do município de Anajatuba, tendo como uma de suas
respostas ao problema, a realização de festas religiosas dedicadas a São Lázaro (em nosso
caso São Benedito com elementos de São Lázaro) num movimento onde o dar e retribuir
extrapola a relação entre os homens, buscando o transcendente, e que manteve o mito de
origem como forma de identidade.
2.3.1 O banquete dos cachorros em Anajatuba
Banquete dos cachorros é o nome dado ao rito feito em favor de São Lázaro como
forma de pagamento de promessa para que o santo previna ou cure do mal de Hansen, em
Anajatuba é também conhecido como “ceia de São Lázaro”, ninguém soube nos explicar por
que, mas provavelmente é por causa da proximidade do natal, uma vez que geralmente a
referida ceia é feita geralmente no dia de São Lázaro, 17 de dezembro.
Outrora ocorriam mais banquetes dos cachorros em Anajatuba, contudo alguns fatores
contribuíram para que houvesse uma diminuição moderada da festa, dentre eles podemos citar
a descoberta da cura ainda no século XX e o deslocamento de muitas famílias para o setor
mais urbanizado da cidade. Na sede, as pessoas encontraram mais recursos para prevenir a
doença, além disso, houve recentemente um aumento significativo no número de evangélicos
na cidade, que deixaram de fazer ou participar de festas populares como é o caso de dona
Inês, que nos confessou:
Nessa época que eu fiz essa promessa, eu não tinha muito conhecimento da Bíblia,
mas depois que eu me aprofundei um pouco na Bíblia eu descobri que, não é certo
não, por que essa história de Lázaro com cachorro, foi uma parábola, uma história
que Jesus contou eu acho que não é certo, se a gente tiver que fazer um voto, faça
assim para um idoso, para alguém que não tenha condição de oferecer alguma coisa
de volta pra gente. É a minha opinião né, invés de arrumar quatorze cachorro,
arranja quatorze pessoas que não tem condição de devolver aquilo que a gente está
oferecendo pra ele, se eu fosse fazer agora eu faria assim, faria diferente (INÊS,
ENTREVISTA, 20/01/2014)
47
A diminuição, no entanto, não significou até o momento uma extinção da ceia de São
Lázaro, que mantem-se firme, muitas famílias que tradicionalmente faziam a festa, não
quiseram interromper o voto, mesmo sabendo que hoje a doença tem cura, temendo sofrer
represálias do santo caso houvesse uma ruptura do “contrato” e não obstante a isso, aonde
alguém se predispõe a realizar o “banquete dos cachorros”, muitas pessoas aproveitam para
pagar promessas.
Não conseguimos mapear todos os devotos de São Lázaro que realizam o banquete
dos cachorros no município, sempre que conversamos com algum idoso para nos informar
sobre o assunto, aparecia uma nova casa que privilegiava as festas de São Lázaro, nenhuma de
matriz africana e todas em casa de particulares, sabemos, no entanto, que as festas a São
Lázaro no Maranhão, são comuns também em terreiros de Umbanda e de Mina, sendo
sincretizado geralmente com a entidade Acossi, como nos informa Ferretti.
O banquete dos Cachorros no Maranhão, é realizado periodicamente em alguns
terreiros de tambor de mina e, segundo temos notícias em casas de particulares.
Assistimos a esta festa em terreiros, umas sete ou oito vezes, nos dias de São Lázaro,
São Sebastião ou São Roque. Vamos acompanhar sua realização na casa das minas
no dia de São Sebastião, dentro da festa de Acossi Sapatá, o Rei da Terra, que
protege contra doenças e contra a peste, equivalendo a Obaluaiê, Omulu ou Shapanã
entre os nagôs (FERRETTI, 2013, p. 162).
Provavelmente havia ou ainda há em Anajatuba o culto a Acossi ou a alguma entidade
semelhante, mas não conseguimos encontrar nenhuma referência contemporânea, dado o forte
preconceito com religiões de matriz africana, também na comunidade de São Benedito como
veremos adiante, ainda no presente capítulo.
Sem condições de entrevistar a todos que fizeram ou fazem a “ceia de São Lázaro” no
município, optei em gravar as conversas que tive com uma família que faz o banquete dos
cachorros até os dias atuais (Família Lima, Povoado Morcego) e outra que participava no
extinto povoado Umbaúba, da D. Conceição de Maria, de já podemos dizer, que em comum,
há uma certa timidez, em revelar o motivo da promessa, pois a hanseníase deixa marcas no
corpo, mas também na representação que a pessoa faz dela mesma, ou de um ente querido,
após uma experiência de rejeição social explicita. Excetuando o motivo que gerou o voto feito
a São Lázaro para o banquete dos cachorros, não tivemos problemas em nossas entrevistas,
em ambos os casos as respostas as nossas perguntas, fluíram normalmente, mesmo na
presença consentida do gravador.
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A ceia de São Lázaro no povoado Umbaúba era bem antiga, pois D. Conceição de
Maria, uma senhora de mais de 65 anos, só soube nos informar que os mais velhos já
realizavam a festa antes do nascimento dela, e que se referia à lepra, reforçando que na época
dela já era mais ameno o contágio, pois somente em duas famílias da comunidade haviam
pessoas acometidas pela doença.
O povoado Umbaúba foi gradativamente sendo abandonado pelos moradores, devido
ao isolamento e a pouca atenção do Estado, sem escola, rede de esgoto, postos de saúde e
demais políticas públicas, as pessoas que viviam de roça foram em busca de melhor qualidade
de vida para suas famílias nas décadas de 1960 e 1970, quando o Brasil passava pelo processo
que chamamos de “modernização conservadora”, que priorizou o eixo urbano causando o
êxodo rural e inchaço populacional nos grandes centros.
D. Conceição de Maria citou como maior estimulo para a saída dos moradores de
Umbaúba, a busca por escola, para que as crianças não tivessem que viver de roça como os
pais, contudo ela viveu a infância e adolescência, casou e teve filhos no referido povoado.
Migrar para próximo do eixo mais urbanizado de Anajatuba não foi uma escolha para
D. Conceição, a família dela foi a última a sair de Umbaúba e seguraram o isolamento por lá
durante 15 anos, mandaram primeiro os filhos para estudar e viviam de roça, quando não foi
mais possível saíram levando saudosamente a memória do lugar em que se criaram, dentre
essas lembranças estão as festas, como nos relatou a própria D. Conceição.
Lá era um povoado muito grande, lá dava pra fazer só dos jovens que escolhia, dava
pra tirar dois bloco, tinha festejo, vinha orquestra de fora, só que era, sabe como é
essas festa que nós faz lá pra dentro do interior, muito bom, hoje não tem mais
ninguém, e também era quase tudo só de uma família, “Os Pinto”.
Além das lembranças da extinta comunidade, D. conceição ressaltou também, a
integração que havia entre os povoados, pois malgrado as longas distâncias e a dificuldade de
transporte, havia uma intensa interação entre as comunidades afro –descendentes, sobretudo
nas festas, onde tocavam tambor de crioula, terecô e quando podiam contratavam bandas de
sopro.
A festa de São Lázaro no povoado Umbaúba ocorria no dia 11 de fevereiro, cedo as
famílias matavam os animais que doavam para a festa (porco, galinha, pato) e durante o dia
faziam um “sarrabulho”. Aproximadamente às 18 horas iniciava a ladainha na casa escolhida
naquele ano.
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Assim que terminava a reza, os membros da família “Pinto” que organizavam a festa,
dividiam o centro do salão em dois espaços, num deles uma mesa com sete pratos, para servir
a um número igual de crianças (anjos) menores de sete anos, e no outro um tapete, também
com sete pratos para sete cães.
Encerradas as refeições que caracterizam o banquete dos cachorros, os convidados
eram muito bem servidos, enquanto se decidia em qual casa do povoado aconteceria a festa no
ano seguinte. Não havia festa dançante no fim.
Lima é o sobrenome da família de entrevistados que realiza o banquete dos cachorros
até os dias atuais, parte deles (os que ouvimos) mora na sede de Anajatuba, os demais moram
no povoado “Morcego”, onde ocorre efetivamente a festa.
Ouvimos diretamente o Sr. Antônio Lima, mas estavam presentes mais três irmãos do
entrevistado, que ajudaram a responder as perguntas. A festa deles ocorre há 22 anos, quando
o esposo da irmã mais velha contraiu a hanseníase. A promessa foi feita pela matriarca e
desde então a família, espalhou-se por vários municípios do Maranhão e até de outros
Estados.
A ceia de São Lázaro dos “Lima” ocorre no dia 17 de dezembro, e reúne o máximo
possível de membros da família, favorecendo a integração, além disso agrega promessas de
muitas pessoas do povoado Morcego. No encerramento não ocorre festa dançante.
As atividades iniciam com a Ladainha, realizada pelas rezadeiras do povoado
“Rosarinho”, é nesse momento que as pessoas começam a chegar, por volta das 18 horas.
Cada convidado recebe uma vela do Sr. Antônio Lima.
Quando a ladainha encerra, é colocado um tapete no centro do salão, com sete pratos e
os cães se aproximam segurados em uma corrente por seus donos. São exatamente seis
machos e uma fêmea. Antes dos cachorros iniciarem a refeição preparada para eles, um
homem vestido de farrapos simulando o próprio São Lázaro, aproxima-se dos pratos e
andando como um quadrupede, cheira a comida e pode se quiser, servir-se de uma porção de
cada prato, comendo como um canino, depois vai a até uma cadeira mais a frente, próximo as
imagens e se senta.
O ato de encenar São Lázaro é fruto de promessa, o homem que realiza essa tarefa é
escolhido, via de regra, no fim da festa, devendo preparar-se durante o ano.
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De sua cadeira o suposto “Lázaro”, acompanhado de uma imagem do mesmo santo,
observa os cães em alvoroço aproximarem-se da comida e após acalmar os ânimos devorar o
banquete preparado para eles, acompanhados por um “servidor” que carrega uma bacia de
comida, para reabastecer os pratos, até que os cães estejam satisfeitos.
Quando os cachorros terminam o pai do Sr. Antônio Lima lava a boca dos caninos que
são levados por seus donos.
Encerrada essa etapa, os tapetes são trocados, o ambiente limpo e novos tapetes são
estendidos no chão, com nove pratos de comida, para serem servidos a 18 crianças, menores
de sete anos, acompanhado de suco de fruta e goiabada este último item, também servido
como sobremesa aos cães.
Quando as crianças terminam, os demais presentes são servidos de um bom jantar e
convidados a retornar no ano seguinte. Nem sempre a família consegue um “São Lázaro de
imediato”, tendo que procurar alguém que se comprometa ao longo do ano, quando também
engordam um porco para servir no banquete próximo.
2.3.2 Desfazendo a confusão: a “ceia” de São Lázaro na comunidade de São
Benedito
A dádiva no que concerne aos benefícios de “combate” a lepra estendeu-se à festa de
São Benedito. Sabemos que geralmente, quando se trata do mal de Hansen é a São Lázaro que
as pessoas recorrem, e em Anajatuba não foi diferente, conforme já descrevemos, mas por
algum motivo a festa que estudamos, apresenta a seguinte singularidade: o dom e contra dom,
representado na cura/intervenção do santo, teve São Benedito como alvo, sem negligenciar
São Lázaro.
Que circunstâncias levaram Dona Dativa a optar pela referida configuração da festa?
Dos idosos que entrevistamos, muitos disseram que se quer se lembravam, de quaisquer
elementos da festa de São Lázaro, inseridos na de São Benedito, o que nos leva a crer que
havia uma certa discrição por parte de quem organizava. Além disso, a festa sofreu diversas
mudanças ao longo de sua trajetória, possivelmente em alguns anos ela foi realizada com
muitas dificuldades, suprimindo ou incluindo alguns ritos. Outro fator interessante: é difícil
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negligenciar completamente o santo de devoção, por isso a festa é dedicada a São Benedito,
mas para manter a tradição, São Lázaro não podia ser esquecido.
De todos os idosos e idosas que entrevistamos, somente uma lembrou-se de ter visto
um rito de alusão a São Lázaro ainda na adolescência, foi a parteira aposentada Prisca Isaías
Verde, ela nos afirmou que os organizadores da festa, colocavam pratos de comida em baixo
da mesa, na cerimônia da juíza, como acontece até os dias atuais, numa clara simulação do
conhecido “banquete dos cachorros”.
Para nós, era muito estranho depois disso, não ouvir se quer nas conversas informais
que tivemos com os demais idosos, qualquer alusão a São Lázaro na festa, contudo uma de
nossas ultimas entrevistadas nos deu uma dica: “Essa de São Lázaro, essa aí eu não sei por
que minha vó não fazia, essa aí já é quase que invocação desse negócio de pajé, essas coisas
assim, essa aí quem sabe explicar é Prisca, essa aí é com ela” (Terezinha, entrevista).
Compreendemos então, que a inserção das pessoas e dos gestos ligados aos cultos de
matriz africana, entram na festa que estamos estudando pela intervenção de São Lázaro,
gerando um certo desconforto para os organizadores da festa de São Benedito, que se
reivindicam católicos, embora atualmente vivam uma relação de conflito com o pároco local.
Não entrevistamos novamente a D. Prisca, pois a mesma sobreviveu a um “derrame”,
que não tirou dela a lucidez e muito menos a alegria de viver, mas lhe afetou a fala,
dificultando a comunicação dela com pessoas que não estão no seu convívio cotidiano mais
próximo. De todo modo, a conversa que gravamos com ela em 2010, ganhou outra
interpretação, sobretudo no que concerne a relação de São Lázaro, na festa de São Benedito.
Conforme já informamos a festa inicia com D. Dativa no final do século XIX, a
geração de idosos que entrevistamos assume a festa em 1954 e certamente não a conheceram,
mas a maioria deles são netos ou bisnetos de D. Botinha, herdeira imediata da festa após o
falecimento de sua mãe D. Dativa, algumas pessoas inclusive, se referem ao festejo como
“festa dos Botinhos”.
Entre a morte de D. Botinha, (que não sabemos em que ano ocorreu) e 1954, quando
nossos entrevistados assumiram a promessa, a festa ocorria em várias casas, e é
principalmente nesse período, que os parentes envolvidos com os cultos de matriz africana
puderam acolher a imagem de São Benedito em suas residências.
Manifestações culturais de matriz africana são alvos de preconceito a muitos anos no
Brasil, fruto de nosso passado escravista, aliado a um paradigma eurocêntrico, que dominou o
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nosso meio intelectual por muito tempo e se predispôs a hierarquizar as etnias que formaram o
nosso país. Esse pensamento outrora vigente, proliferou em nossa população e ainda não
desapareceu.
No caso da festa de São Benedito em Anajatuba, percebemos que a ampliação de um
evento que era restrito a uma comunidade, ocorreu fortalecendo algumas práticas e
enfraquecendo outras, dessa forma a presença dos que eram ligados aos cultos de matriz
africana subjaz a um fortalecimento ainda maior do catolicismo, no aspecto religioso.
Ao que parece, o ato de colocar os pratos em baixo da mesa da juíza acompanha a
festa de São Benedito desde o início, ou pelo menos desde a infância de D. Prisca, que ainda
muito jovem, testemunhou uma importante mudança nos rumos da festa.
Num determinado ano (D. Prisca não lembrou exatamente) o Sr. Domingos, filho de
dona Botinha, revelou durante as novenas que havia tido um sonho e que queria fazer com a
família a festa de São Lázaro, mas antes de informar o conteúdo do sonho, a esposa do Sr.
Domingos entrou em transe e foi a entidade quem completou o pedido inconcluso, solicitando
aos familiares ali presentes as devidas contribuições para a realização do que ela chamou de
ceia de São Lázaro.
Num outro momento da entrevista pedi a D. Prisca para falar mais um pouco sobre a
festa de São Lázaro, ela explicou detalhadamente o que tinha visto na noite de novena que
inseriu mais um evento na comunidade de São Benedito.
A de São Lázaro foi meu tio Domingo, que a mulher dele era média, aí ela caiu e
aqui a capelinha ainda era pequenininha, aí veio outra mulher inclusive a do velho
João, elas vieram pra cá para o altar, e chega a velhinha enrolou todinha, ficou
enrolada todinha, mas mamãe ainda era viva, ela tinha dendê essas coisas, aí passou
na velha tudinho, aí ela falou, que tava faltando a ceia de São Lázaro e ela queria de
preferência (dizendo que era vovó Dativa) que ela queria que continuasse a ceia de
São Lázaro, mas só com o povo da família, aí meu tio Domingos que via acreditava
(eu era descrente), aí ele se comprometeu de fazer a de São Lázaro, mas não, podia
ser 17, por que já tinha quem fizesse, ela disse véspera, e antes disso que era a mesa
de São Lázaro, eles botavam o prato de baixo da mesa, para os cachorros virem
comer debaixo e comiam, e depois dessa ceia de São Lázaro, não parece cachorro,
não sei se é de dois ou de três em três anos, parece um mendigo, sempre parece, ano
passado pareceu um, aí não sei quantos anos vem, depois que eu estou aqui, já
pareceu dois.
Naquele momento, a ainda muito jovem, Prisca não tinha contato com a religiosidade
de matriz africana e se quer acreditava, mas muitas pessoas inclusive a mãe dela já tinham
algum conhecimento, uma vez que no momento em que a entidade se manifestou souberam
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exatamente como agir, buscando imediatamente dendê. Além disso, não foi qualquer entidade
que se manifestou, pelas características citadas, ficou nítido o sincretismo com Acossi.
O pedido foi atendido só por uma parte dos familiares, os demais desconfiados deram
sequência somente a que já participavam de São Benedito. Segundo D. Prisca o Sr. Berto, já
realizava uma festa para São Lázaro e deixou de fazer para “unir-se com a da família”, a
entidade indicou que a atividade deveria ser no dia 17 de dezembro, mas nesse dia já
acontecia a de Dica de Vaniquinha então resolveram fazer no dia 16 de dezembro, o
costumeiro “banquete dos cachorros”, que perdurou até 2011, daí em diante D. prisca enferma
não conseguiu mais dar prosseguimento.
De início coube ao Sr. Domingos a responsabilidade pela festa de São Lázaro, afinal a
esposa dele foi uma das que “deram passagem” para as entidades se manifestarem, o que não
ocorrera só naquele momento, já que ela era médium conforme nos informou D. Prisca.
Contudo essa relação que a referida senhora nutria com as entidades espirituais, era
alvo de críticas inclusive dos filhos e por esses e outros motivos que não sabemos, a esposa do
Sr. Domingos o abandonou e ele se dispôs a ir atrás dela, mas temendo os prejuízos que o
encerramento da festa poderia causar, chamou a incansável sobrinha fazendo-lhe a seguinte
proposta.
Aí ele disse assim (Que ele estava doente) me chamou. Ê Prisca. De toda sobrinha,
eu não tenho fé nas minhas sobrinhas... Aí ele disse minha filha não posso fazer
mais aqui, minha mulher foi embora, Aí eu disse, ah meu tio Domingos... Eu não
queria ficar na frente por que eu já estava com a reza, ele disse “não minha filha, só
você”, eu disse é meu tio domingos, pode o senhor ir sua viagem que eu assumo, eu
faço a comida lá em casa, e trago pra cá (D. Prisca).
Assumir os votos de outras pessoas e ainda arcar com os seus foi e segue sendo, uma
constante na vida de D. Prisca, embora ela já esteja idosa e doente, mas naquele momento
tratava-se de dar conta de uma despesa um tanto mais difícil, já que a família não tinha o
mesmo esmero e dedicação que manifestavam, na festa de São Benedito, no entanto surgiu
um aliado.
por mistério caiu um moço doente e ele, muito ruim, e eu disse assim Oh Glorioso
São Lázaro... (mas eu via ele assim esquiado), cure esse moço intercede (na minha
vista eu parece que via até mancha nele) que eu falo com ele pra ele nos ajudar, no
que for possível, trazendo já os pratos feitos pra cá e ele é genro de Zé Rego... Aí eu
fiz uma promessa, fizemos uma reza e tudo (mais essa Dominga que é a rezadeira,
que o senhor foi lá) aí quando eu fui encostei lá eu disse cumpade o senhor vai
melhorar (dando aquela palavra de conforto) o senhor vai ficar bom. Será que eu
fico bom? Vai o senhor vai ficar bom, o senhor vai criar seus filhos, aí ele disse faça
um voto por mim, eu disse” eu já fiz”, se o senhor melhorar o senhor vai nos ajudar.
(...)quando ele recomperô, mas não deu declaração por que ele ia para o médico,
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fazia os exames, quando o médico passava, aí ele ficou bom, quando foi no outro
ano ele disse cumade... mandou um capadinho, pra ajudar, aí ele disse estou
recomperando voltei a trabalhar com meus animal (que ele é criador de porco) todo
ano eu lhe dou 12 kg de carne (D. Prisca).
É interessante ressaltar que embora na festa de São Benedito algumas pessoas façam
votos ocultos e pagando sem contar a ninguém, no caso de São Lázaro essa prática é mais
forte, a ponto do principal colaborador não querer ter seu nome vinculado à festa, alvo de
maior preconceito por estar associada desde o seu início, a pessoas costumeiramente
conhecidas como médiuns.
Diante de tanta responsabilidade religiosa assumida, desconfiamos que D. Prisca fosse
participante de alguma casa de culto de matriz africana e procuramos investigar, mas não
encontramos nenhum indicio disso, ela é somente uma católica muito devota, que no entanto
diferente dos outros, no início não acreditava mas depois passou inclusive a ter uma visão
positiva. “Às vezes a gente não quer acreditar, mas acredita, porque eles dizem que curador é
da parte do demônio, pode ser, mas também pode vim um bem né” (D. Prisca).
Foi realmente no intervalo entre a morte de dona Botinha e o ano 1954, que ocorreram
o maior número de transes em meio às novenas, houveram ocasiões inclusive, em que as
entidades se quer conseguiram manifestar o que queriam, terminando de forma trágica para a
pessoa que lhe servia de intermediária entre os presentes na reza.
Ficamos fazendo um ano na casa de minha tia Ana, outro na casa de Raimundo
Lima até que teve um filho de Raimundo Lima que tomou um choque na mesa e
enlouqueceu, que ele diz que era radiação, e saiu correndo... ele morreu doido” (...)
No ano de Izidio diz que pegado de radiação, que eles eram invocados nesse povo de
cantoria também, aí deu em minha tia Eugênia (D. Prisca).
Embora houvessem várias manifestações de entidades ao longo dos anos, como
informa a fala de D. Prisca, a festa de São Lázaro, ficou com a fama de ser ligada a
“Invocação de pajé”, sendo relegada por uma parte da família, outro fator no mínimo curioso,
são os termos, “choque”, “radiação”, todos eufemismos para não referir-se diretamente aos
transes, que embora de forma mais discretas seguem ocorrendo na comunidade, um exemplo
claro disso é a festa do Divino, organizada pela já citada D. Terezinha, a mesma que evitou
falar sobre a festa de São Lázaro, apontado para D. Prisca qualquer informação sobre o
assunto.
Acompanhamos a festa de dona Terezinha no ano de 2012, e no último dia da mesa do
Imperador, um dos mordomos (adolescente) manifestou uma entidade, que apenas chorou
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bastante, cumprimentou uma jovem senhora, e depois encerrou o transe voltando tudo ao
roteiro previsto, a dona da festa desconversou imediatamente quando nos referimos ao
assunto, mas percebemos que muitas pessoas ali presentes não estranharam a manifestação da
entidade.
Não é por tanto nenhuma novidade a manifestação de entidades nas festas que
ocorrem na tribuna da comunidade São Benedito, contudo os que estão envolvidos mais
diretamente tratam de minimizar a importância desse fato evitando inclusive falar no assunto,
no caso da festa de São Lázaro o diferencial é que iniciou com pessoas que assumidamente
participavam de culto de matriz africana, colando no evento uma fama que é alvo de
preconceito e discriminação numa comunidade que evita assumir publicamente sua relação
com outro tipo de religiosidade que não seja a cristã, sobretudo a católica.
É interessante ressaltar que o ensaio sobre a dádiva descrito por Mauss, permeia várias
relações, seja na festa de São Lázaro ou a de São Benedito, a fé e a devoção aos santos, muito
forte no catolicismo popular garante que as pessoas creditem às entidades as curas dos seus
males ou as vitórias alcançadas, mas não sem uma retribuição que as pessoas se dedicam em
financiar, o que remete ao dar e retribuir numa troca que extrapola a relação entre os homens
e busca um contato com os deuses, que no entender de quem se submete é ainda mais justa já
que: “acredita-se que é dos deuses que se deve comprar, e que os deuses sabem dar o preço
das coisas” (MAUSS, 2003, p. 206).
Além disso, a quebra de contrato entre os homens gera vexame por parte de quem
rompe um ciclo de dar e retribuir, sem arcar com o que se comprometeu, mas ruptura com os
deuses é ainda mais danosa:
As oferendas aos homens e aos deuses têm por objetivo obter a paz uns com os
outros. Afastam-se assim os maus espíritos e, de maneira mais geral, as más
influências, mesmo não sendo personalizadas: pois uma maldição de homem
permite que os espíritos ciumentos penetrem em nós e nos matem, que influencias
más atuem, e as faltas contra os homens, tornem o culpado diante dos espíritos e das
coisas sinistras (MAUSS, 2003, p. 204)
É por esse motivo que o Sr. Domingos que descrevemos, ao deixar “a ceia de São
Lázaro”, procura imediatamente uma substituta, temendo que algo de ruim possa acontecer à
família. Seguindo esse exemplo, sejam católicos ou adeptos de culto afro, as pessoas da
comunidade se apressam em dar conta do que prometem a São Lázaro, ao Divino, ou a São
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Benedito para não retroceder no que conquistaram, ou mesmo para não atrair situações
conflituosas com forças consideradas superiores.
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CAPÍTULO 3
A PROGRAMAÇÃO DA FESTA NOS DIAS ATUAIS: TRABALHO DE CAMPO
Segundo nossos informantes, a festa de São Benedito em Anajatuba completou cento e
vinte anos em dois mil e quatorze. Tendo iniciado no final do século XIX, mantém-se até os
dias atuais interagindo com o meio social e transformando-se constantemente.
Em meio a tantas modificações, fizemos um breve esboço de como a festa se
desenrola do dia primeiro até o dia sete de janeiro na contemporaneidade e depois elegemos
alguns aspectos históricos para a compreensão do valor simbólico e identitário, que o festejo é
capaz de reunir, seguido da etnografia de dois mil e quatorze.
O local onde ocorre a festa de São Benedito é um prédio assim dividido: uma pequena
escola municipal (fechada durante o evento e desativada no inicio de dois mil e quatorze), a
tribuna, que se constitui no setor entre a escola e a capela, cuja a frente é coberta, e o fundo
(semelhante a um grande quintal) de chão batido é aberto, exceto a cantina, onde vendem as
bebidas, e por fim a pequena igreja.
Foto: Wellington Barbosa dos Santos
Foto: Wellington Barbosa dos Santos
Figuras 06, 07, 08 e 09: Tribuna e Igreja de São Benedito, locais onde ocorre a festa (Fonte: Trabalho de
Campo).
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De frente para o prédio tem a praça, que no período das atividades, enche de barracas,
vendendo de doces a “churrasquinhos”, bem como artigos religiosos, é também na praça que
ocorre o levantamento do mastro no primeiro dia de festa e o derrubamento no sexto dia.
Nos arredores da praça, ficam várias residências e dois bares. Nos fins de semana é
costumeiro que clientes desses bares abram o porta malas do automóvel e exibam as caixas de
som num volume bem alto, promovendo uma disputa que incomoda muitos vizinhos.
Entretanto, há o costume de respeitar os eventos que envolvem a festa e no momento da
ladainha ou da procissão a euforia ao redor é contida.
Atualmente a festa de São Benedito em Anajatuba tem duração de sete dias, sem
intervalo, com forte envolvimento de várias pessoas da comunidade e de fora, que são
parentes próximos dos moradores mais antigos. Outrora muitos deles residiam na mesma
localidade, também denominada de São Benedito. Os principais coordenadores são três, o Sr.
Benedito Guia, o Sr. José Maria e D. Prisca.
A festa obedece um calendário fixo, começa no dia primeiro de janeiro e encerra no
dia sete, independente do dia da semana em que estiverem distribuídos. Em dois mil e
quatorze, por exemplo, o dia seis de janeiro que é um dos mais movimentados do evento, foi
numa segunda feira, inviabilizando a presença de muitas pessoas de fora da cidade, que não
puderam ficar devido ao trabalho.
Logo no primeiro dia o festejo reúne uma verdadeira multidão, para acompanhar o
buscamento e a cerimônia do mastro, que vai do início ao fim da tarde quando o mastro é
erguido em frente à capela, Às vinte horas começa a ladainha, que reúne um contingente bem
menor de pessoas e depois tem uma festa dançante que vai até tarde, geralmente duas horas da
madrugada.
Nos dias, dois, três e quatro, tem a ladainha às vinte horas e em seguida o leilão, que
termina cedo, no máximo às vinte e duas horas.
No dia cinco de janeiro, pela manhã teria a missa, mas devido às discordâncias com a
Igreja Católica, atualmente tem só um culto. Encerrando a atividade religiosa começa o leilão.
No fim da tarde tem uma procissão animada pela banda de sopro do Sr. José Santana, que
perpassa pelas principais ruas do centro da cidade de Anajatuba e retorna à capela já no inicio
da noite. Às vinte horas tem a ladainha e mais um leilão, enquanto a banda de sopro passa o
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som, para em seguida executar uma valsa, que tem duração em média de uma hora. Para
encerrar, a radiola dá continuidade à animação até às duas horas da madrugada.
O sexto dia de festa é dedicado à mesa dos juízes e ao derrubamento do mastro. Desde
oito horas da manhã, já tem gente na tribuna à espera do churrasco, que é servido nesse dia no
turno matutino. No final da manhã as cozinheiras se revezam entre servir a carne assada e
preparar a mesa dos juízes, enquanto a banda do Sr. José Santana vai busca-los em suas casas,
num cortejo que tem ainda o acompanhamento das famílias.
Ao meio dia, geralmente com um pouco de atraso, juízes e seus familiares sentam-se
na mesa preparada pelas cozinheiras para almoçar. Enquanto a banda executa uma valsa, os
parentes que não puderam servir-se naquele momento dançam, até chegar a sua vez.
Depois desse momento festivo, uma pequena procissão desloca-se até a capela
contigua, onde os juízes do ano anterior, repassam a imagem maior de São Benedito aos
juízes do ano corrente. O encerramento é novamente no pátio da tribuna onde todos dançam a
valsa.
À tarde é a cerimônia do derrubamento do mastro, que é circundado várias vezes,
pelas famílias de festeiros e promesseiros, depois as pessoas que deram as voltas, desferem
um golpe de machado no tronco, que em seguida é cortado definitivamente, e as frutas
amarradas no cume, são disputadas.
Nesse dia não há ladainha à noite, após a cerimônia do mastro a praça apinhada de
gente, continua assim até às nove horas, quando começa a festa dançante, onde a porta é
cobrada.
No dia sete a tribuna fica aberta o dia inteiro, às doze horas é oferecido um almoço
gratuito, onde os organizadores servem mocotó e carne cozida, nesse dia as atividades
encerram por volta das nove da noite, o lucro é expressivo em decorrência da venda de
cerveja.
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3.1 Breve histórico dos votos da festa de são benedito
Quando nos referimos à palavra voto em nosso trabalho, estamos aludindo
simplesmente às promessas feitas aos santos, no nosso caso São Benedito. É comum em
Anajatuba o uso do termo voto, que vale tanto para a família que organiza a festa, como
também para o indivíduo que busca uma graça e se compromete com o santo no seu íntimo,
temos o voto caracterizado desde que haja essa relação de troca, em que o santo, ou entidade,
atende a um pedido mediante uma “joia”, ou um sacrifício pessoal, de quem está à procura de
um auxílio.
A festa de São Benedito, segundo nossos informantes, iniciou tendo apenas dois dias
de programação, estendeu-se posteriormente para sete dias devido aos vários votos que foram
sendo feitos no decorrer dos anos e incorporados ao calendário fixo da festa.
Não seguiremos em nosso texto a ordem linear dos dias de festa, como fizemos na
programação atual, para melhor esclarecimento, optamos pela sequência em que os votos
foram se agregando aos que primeiro foram feitos por D. Dativa no início da festa, assim
começaremos com os dias cinco e seis, da promessa da matriarca, depois o mastro, na ordem
cronológica foi o voto agregado que veio primeiro, logo na comemoração de ano novo, em
seguida vem o de D. Joana no dia cinco, às ladainhas feitas dos dias dois ao dia quatro, para
não ficar um vazio de atividades e por fim o dia sete, que não chegou a ser um voto, mas um
pacto interno dos que fazem a festa, para que também se divertissem.
É justamente um breve histórico dessas promessas que iremos tratar nesta parte do
trabalho, complementando com nossa etnografia de dois mil e quatorze, onde registramos
nossa versão, da forma como a comunidade de São Benedito representa cada voto outrora
feito por seus ancestrais.
3.1.1 Os votos de D. Dativa, dias 05 e 06
O testemunho de nossos entrevistados vem de longe, já que todos eles tem mais de
oitenta anos, se considerarmos como correta a tradição oral que conta cento e vinte anos de
existência do festejo de São Benedito em Anajatuba, é fácil constatar, que para a elaboração
desse item do texto, tivemos contato com pessoas que estão envolvidas com a festa em que
organizam, em mais da metade do tempo de existência do evento.
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Para os idosos que ouvimos, somente as atividades dos dias cinco e seis fazem parte
do compromisso de D. Dativa, a matriarca que fez a promessa do festejo, os demais votos são
agregados, mesmo o do levantamento do mastro, que já existia na infância de todos eles, e que
explicaremos melhor a seguir, no próximo item deste trabalho.
A programação inicial começava no dia cinco de janeiro a noite, D. Dativa e depois a
filha D. Botinha faziam uma festa. O ritmo tocado era a valsa, pelo menos no início, depois
complementavam com músicas dançadas aos pares, parecido com o que atualmente
denominamos “seresta”, seguido das manifestações culturais de matriz africana, como tambor
de crioula e o terecô, que ia até o dia seis pela manhã, totalmente gratuita, se quer a bebida era
vendida, os organizadores disponibilizavam algumas garrafas de cachaça e quem assim o
desejasse podia se servir, algumas pessoas também levavam comida e bebida para
compartilhar, nessa época, conforme já informamos no capítulo dois, as casas eram distantes e
não haviam boas condições de transporte, a população, principalmente os negros, caminhava
grandes distâncias para se divertir nas festas, favorecendo a interação entre os povoados e
comunidades.
No dia seis ao meio dia, havia o almoço, com a mesa dos juízes, sempre com pessoas
da família de D. Dativa, um ano era um juiz quem coordenava a mesa e no ano seguinte era
uma pessoa do sexo feminino, por uma juíza, ninguém soube explicar por que. Decerto que
desde essa época, as testemunhas já davam conta que havia fartura. A controvérsia fica por
conta da comida em baixo da mesa, uma espécie de banquete dos cachorros. D Terezinha
afirma que sua avó D. Botinha não fazia esse singelo rito, já D. Prisca, também sobrinha da
mesma senhora, confirma que havia essa referência a São Lázaro.
É difícil escrever sobre essa primeira parte da programação, que constitui-se num dos
maiores pontos de discórdia da festa de São Benedito. O que causa celeuma, não são só as
discordâncias de como cada um se lembra do que via outrora na festa, o problema maior é que
alguns acham que houve um excesso de “modernização”, que descaracterizou a festa,
prevalecendo um pequeno grupo concentrador, que priorizou o lucro em detrimento da
integração da família.
“Eu digo e não tenho vergonha de dizer que ela não é mais como a promessa, ela já
não é mais, pra mim ela já é uma festa assim de binifício, não é mais como de
promessa por que a promessa é uma coisa, que no tempo da promessa São Benedito
era tão milagroso, que tudo pouquinho gerava muito, era uma festa calma e ela tem
muita tradição essa festa, só que hoje o povo leva mais é em negócio de vender
bebida, e aí não se sabe, quer saber é de tá fazendo bonito. Bonito é bonito mesmo,
por que cada vez mais ela tá crescendo, isso aí é” (D. Raimunda).
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Sem dúvida houveram muitas transformações na festa, sabemos disso pelo que
ouvimos dos nossos informantes e também pelo caráter dinâmico das relações sociais
presentes nas festas, nesse sentido compreendemos que as mudanças ocorreram num ritmo
similar ao que Canclini, observou entre os indígenas Mexicanos
Para as populações indígenas e camponesas, as festas são acontecimentos coletivos
enraizados na sua vida produtiva, celebrações fixadas de acordo com o ritmo do
ciclo agrícola ou o calendário religioso, onde a unidade doméstica de vida e de
trabalho se reproduz, através da participação coletiva da família.
Nas cidades, a divisão entre as classes sociais, de outras relações familiares, o maior
desenvolvimento técnico e mercantil voltado para o lazer, a organização da
comunicação social que apresenta um caráter massivo criam uma festividade que é
distinta. À maioria das festas as pessoas vão individualmente, são feitas em datas
arbitrárias, e, quando se adere ao calendário eclesiástico, a estrutura segue uma
lógica mercantil que transforma o motivo religioso num pretexto; ao invés da
participação comunitária, é proposto um espetáculo para ser admirado [...] As
indagações que nos parecem mais pertinentes são as que possam nos auxiliar na
compreensão de por que existe esse contraste, por que cada vez mais as festas rurais
vão cedendo terreno aos modelos mercantis urbanos e são parcialmente substituídas
por divertimentos e espetáculos (CANCLINI, 1982, p. 112 e 114).
A festa de São Benedito até onde sabemos, não era e não é, uma reprodução do ciclo
econômico, mas era a festa das famílias de um pequeno povoado, que acolhia poucas pessoas,
se comparada a multidão que recebe atualmente. Essa mudança de âmbito, permitiu que o
festejo se perpetuasse onde muitos sucumbiram, sobretudo por não conseguir se adaptar as
transformações socais que ocorreram nos últimos anos, mas para isso foi necessário que
houvessem concessões e negociações, que nem sempre agradaram a todos, como por exemplo
a mercantilização da cantina, que passou a vender a bebida consumida, a radiola substituindo
a banda de sopro na maior parte da festa dançante e muitas outras.
Analisar desavenças internas é sempre difícil, pois não sabemos ao certo quais os
efeitos e quais as consequências que essas clivagens podem causar, contudo aplicamos aqui o
conceito de conflito social de Simmel (2006), para quem o conflito é positivo, permitindo
que haja mudança a partir dos diversos interesses em confronto, evitando a acomodação e
prevalecendo um vir a ser constante.
No caso dos organizadores da festa de São Benedito não aconteceu à aniquilação do
grupo divergente e tão pouco a assimilação, as divergências estimularam uma resposta que
tem sido na direção de ampliar cada vez mais a participação do maior número possível de
pessoas. Para atrair a multidão que vimos no festejo, é preciso negociar algumas tradições,
ceder em algumas circunstâncias e isso desagrada e afasta alguns, mas até agora não causou
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uma ruptura mais radical, que não permita o diálogo ou até uma maior aproximação dos
descontentes em algum momento posterior.
3.1.2 Primeiro dia: o voto de D. Eugênia, o mastro
O mastro é um elemento muito comum nas festas populares em todo o Brasil, tanto no
catolicismo popular, como nas festas de culto afro, consiste geralmente na busca por um
tronco de árvore não muito grosso, de dez metros ou mais, que será cortado do quintal de
algum morador envolvido no festejo ou em alguma mata, ainda comum em algumas regiões
de interior, ou mesmo nas periferias dos grandes centros, em seguida um grupo de pessoas
acompanham o mastro do local onde foi retirado até onde será erguido, pode ser muita gente
se a festa for grande, ou só uma pequena procissão se não for o caso, além disso, pode ter o
acompanhamento de músicos ou carro de som dependendo da região, varia também se há ou
não um batismo do mastro antes de ser soerguido, no Maranhão é muito comum o uso de
folhas de murta no enfeite completando com frutas, bolos e outras guloseimas que ficam
pendurados no tronco, antes de erguido no primeiro dia de festa. O mastro fica num local
estratégico e bem amplo onde possa ser derrubado no final sem machucar ninguém e sem
causar prejuízos, e as frutas e demais guloseimas que serviam de enfeite são disputados pela
multidão.
Aproveitamos a literatura antropológica sobre festas no Maranhão, para fazer um
paralelo com outros festejos, que também tem nas atividades em torno do mastro, um
importante fator de interação já no início da festa, a começar pela comunidade de Bom
Sucesso.
O que marca o início da festa é o que denominam levantamento do mastro. Embora
esta etapa seja apontada como a que dá início à festa propriamente dita, ela é
antecedida de uma outra, marcada pelo corte do que denominam de pau do mastro,
que ocorre meses antes de novembro e se caracteriza pela escolha da árvore
destinada a este fim. Esta escolha obedece a algumas características: os troncos
devem ser de árvores que identificam como maçaranduba, pau pombo ou laranjinha
e devem medir, de acordo com a unidade de medida do grupo, entre 60 e 75 palmos
de comprimento (entre 15 e 17 metros). A escolha destes três tipos de árvores
justifica-se pelo fato de serem altas, retas e não apresentarem muitos dos chamados
nós, facilitando o transporte do mastro (FILHO, 2008, p. 150).
Retirar o mastro é só o começo, o tronco fincado na terra pode simbolizar muitas
coisas, dependendo da localidade e de quem organiza a festa, na prática há todo um
cerimonial em torno do mastro, que está descrito em nossa etnografia no que concerne ao
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festejo de São Benedito em Anajatuba, contudo a guisa de comparação, transcrevemos alguns
trechos da descrição feita da festa de Santa Teresa no povoado Itamatatiua redigida por João
Pacheco, publicada no livro “Todo ano tem”, de Regina Prado.
Ao avistarem o grupo de mulheres, os homens pararam, pousando o mastro no chão.
Continuaram cantando uma espécie de “grito para ajudar na força” (a chamada
cantiga de proa). As mulheres chegaram mais perto, destacando-se então as
caixeiras, as bandeiras e a juíza da festa com a imagem da Santa. Penetraram no
meio do cortejo parado dos homens e deram três voltas em torno do mastro. As
demais mulheres mantiveram-se afastadas. Após a benção do mastro pela santa,
caixeiras, bandeiras e juíza retornaram para junto das obras. O corredor de cachaça
distribuiu então um “grode” entre as mulheres. A explicação dada a esta parte do
cerimonial foi a seguinte: “é que a santa tinha vindo receber o mastro da festa e os
homens que tinham ido busca-lo” [...] Às 16 horas os homens já haviam retirado o
toco do mastro do ano anterior e cavado para aumentar o buraco. Iniciavam agora o
revestimento do tronco com ramos de murta amarrados por cipós, de maneira a
formar uma camada verde, ocultando o lenho [...] Às 17 horas o batuque sai da casa
da encarregada e vai até a igreja para apanhar a Santa que é carregada por quatro
meninas. Nova procissão circundando o sítio formada das caixeiras e bandeiras, do
grupo que carrega a bandeira da Santa mais a juíza que leva a imagem sob a
sombrinha [...] É hora da subida do mastro. O homem encarregado dos foguetes
aciona a “gironda”. O povo se afasta, ficando apenas os homens armados de cordas,
de ganchos formando um V, destinados a erguer um pouco o lenho – operação que
dura até as 19 horas [...] Terminado isso o juiz afasta-se um pouco. As caixeiras e
algumas mulheres, inclusive a juíza, ocupam os bancos atrás do mastro. O corredor
de cachaça começa a distribuir bebida (conhaque e pinga) para homens e mulheres,
bem como doces de coco e mamão, servidos numa colher. Por fim, distribui bolos e
bolachas, acabando por jogar os dois últimos cestos para o alto, criando uma correria
entre todos, que se apressam em pegá-los, e muita brincadeira (PACHECO, APUD
PRADO, 2007, p. 269,271 e 272).
Lendo etnografias de outras festas populares no Maranhão, compreendemos que o
mastro tem um valor simbólico, para as mais diversas comunidades que se ocupam em
realizar festejos como fator de integração social e fé, pois geralmente é com o mastro que se
inicia a parte pública da festa, precisando por tanto ser bem feita para manter a motivação
para os outros dias de atividades, em que o mastro também estará presente, até que seja
derrubado no fim.
A festa de São Benedito também tem no mastro todo um conjunto de significados
importantes, que fazem mais sentido quando conhecemos o modo como foi inserido na
programação regular do festejo.
O buscamento do mastro, foi o primeiro dos votos agregados a festa de São Benedito
que temos notícia. Não sabemos exatamente o ano em que iniciou, mas as entrevistas que
fizemos com os mais velhos, apontaram para um nome, D. Eugênia, tia e mãe de criação de
D. Prisca parteira aposentada e rezadeira, a quem muito nos referimos no segundo capítulo
deste trabalho.
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Conforme já explicamos, o festejo de São Benedito iniciou com apenas dois dias de
atividades, cinco e seis de janeiro, quando a cerimônia do mastro foi incluída no dia primeiro
de janeiro, causou um hiato nos dias dois, três e quatro, quando não ocorria nada.
A preocupação de Dona Eugênia quando fez o voto para o levantamento do mastro,
era livrar seus sobrinhos e principalmente o filho do “sorteio da guerra” como nos informou
dona Prisca:
minha tia Eugênia que me criou, ela que fez a promessa do mastro, foi o tempo que
teve a guerra que levavam os pessoal pra ir para a guerra e ela pediu a São Benedito
que se não saísse nenhum da família sorteado ela dava o mastro dele com comida
para quem fosse para o mato, ele atendeu, ele foi intercessor por todos, não foi
nenhum pro sorteio graças a Deus e ela ficou fazendo até quando morreu.
Não sabemos a que guerra Dona Prisca se refere, havia sorteio para recrutar a força
soldados para as Guerras do Paraguai e para a Balaiada, lembrados até recentemente pelos
idosos de várias regiões maranhenses, como bem registou Matthias Assunção, no que ficou
conhecido como “o tempo do pega” ou da “pegação”, termos que dependendo da região
estenderam-se para outras guerras.
Guerra do Conrado, do Bem – te – vi e do Balaio são designações para uma só: a
Balaiada. A Guerra do Paraguai aconteceu mais de vinte anos depois da Balaiada.
Em geral não se faz mais distinção clara entre as duas guerras. Esta confusão resulta
não das grande distância no tempo, mas também no fato de terem, do ponto de vista
do camponês, uma coisa essencial em comum: são guerras do “tempo da pegação de
gente”. O “Pega”, isto é, o recrutamento ao qual o camponês procurava se subtrair
fugindo para o mato, é uma categoria fundamental para a compreensão da visão
popular da guerra (ASSUNÇÃO, 2008, p. 140).
O termo “pega”, ou pegação, também não é estranho a população mais idosa de
Anajatuba, onde muitos jovens também passaram por esse sacrifício de forçosamente ter que
ir para alguma guerra, ou então esconder-se no mato para evitar ser partícipe de algum
confronto que se quer sabiam o motivo, desfalcando a mão-de-obra familiar e causando medo
e exasperação em seus entes queridos.
- E a festa de São Benedito, seu Domingos?
- Ah! Isso foi no tempo da pegação.
E seu Domingos contava que, para combater os balaios, as pessoas
eram caçadas como animais, algemadas e conduzidas para Itapecuru, de onde eram
mandados para frente de batalha. [...] Teria sido nessa ocasião que a mãe de Prisco
prometeu a São Benedito realizar uma festa só em sua homenagem, se os filhos
fossem libertados, repetindo a tradição dos negros nas senzalas. Assim a festa
tricentenária foi reformulada e se repete com a mesma singeleza antiga (RÊGO,
2009, p. 94).
A versão para a promessa do mastro com base no “pega” do senhor Domingos é um
tanto diferente da que D. Prisca narrou, referindo-se a sua tia e mãe de criação D. Eugênia,
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bem como, a trajetória da festa que redigimos não é exatamente a mesma que a do escritor
Mauro Rêgo, como pode ser conferido em anexo. Construímos nosso texto ouvindo
principalmente, as testemunhas que fazem a festa hoje, enquanto nosso proeminente escritor
teve o privilégio de escutar indivíduos outrora idosos, hoje já falecidos, que enriqueceram
ainda mais o seu livro, onde a festa de São Benedito em Anajatuba ocorre a pelo menos
trezentos anos, enquanto para nós no máximo cento e vinte. O que nos interessa ressaltar nas
citações, é que o termo “pegação”, também é conhecido em Anajatuba e no mesmo sentido
empregado por Assunção.
Quanto às versões do senhor Domingos e de D. Eugênia, aconteceram em momentos
diferentes, mas as circunstâncias são semelhantes, a fuga para o mato temendo o recrutamento
forçado, no primeiro caso na Balaiada e no segundo não sabemos em qual conflito, mas
levando em consideração que D. Eugênia criou D. Prisca provavelmente refere-se a Segunda
Guerra Mundial, pois Anajatuba também cedeu soldados para a tristeza de suas famílias.
Das pessoas que saíram de minha vila para participar da Força expedicionária
Brasileira, na Itália, pouco lembro; mas algumas vezes fui até o Porto do seu
Teodoro, como era conhecido o embarcadouro no final da rua Coelho Neto, ou ao
Porção das Crianças, em frente a Igreja Matriz, para assistir aos embarques, sempre
acompanhados de banda de música e muito choro (RÊGO, 2009, p. 155).
É a versão que ouvimos de D. Prisca que mais interessa para o nosso trabalho, uma
vez que a narrativa dessa devota senhora é similar a dos demais organizadores da festa e
idosos da comunidade, funciona como um mito fundador a parte, tão agregado quanto o voto,
que permite e justifica anualmente o erguimento do mastro não só como o início público da
festa, ou um carnaval fora de época, mas antes de tudo “manter a tradição da família” como
nos lembra constantemente o senhor Benedito Guia.
O “pega”, registrado no livro de Assunção e também conhecido em Anajatuba, é um
caso característico do que o sociólogo Michel Pollak (1992) chamou de “memória herdada”,
que se refere a lembranças de acontecimentos vivenciados por um grupo de indivíduos, que de
tão marcantes, ficam na memória dos envolvidos com muita força, passando para os seus
descendentes como se estes também tivessem vivenciado aquela situação geralmente
traumática.
D. Prisca, Mauro Rego e os demais idosos com quem conversamos, não foram vítimas
diretamente do “pega”, mas tem vívido em sua memória a aflição de familiares que se
referiam a esse acontecimento com pesar, por ver seus filhos serem recrutados a força para
servir o exército, o trauma gerou um eco que atravessou os tempos, e chegou até nós pela
lembrança dos mais velhos.
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3.1.3 O segundo voto agregado feito por D. Joana, e as relações de colaboração e conflito com
a igreja e o poder local
É a rodovia 324, que liga Anajatuba a BR 135, mais precisamente em Colombo, que
pertence a cidade de Itapecuru Mirim. Ao todo são 140 km até a capital do Maranhão, São
Luís. Essa posição geográfica tem muita ligação com o segundo voto agregado, feito por D.
Joana, que com problemas na gravidez corria o risco de morrer e perder a criança. Ameaçada
de ficar sem o filho e a própria vida, a referida senhora buscou auxílio em São Benedito, já
que as condições objetivas estavam difíceis como nos explicou D. Domingas.
“Joana esposa de Niceflório, tava mal de parto e nessa época aqui não tinha médico,
não tinha transporte para São Luís, ia a pé ou de animal até Colombo para apanhar
um carro para ir para São Luís, então ela tava mais para morrer do que para viver,
sem recurso, eles fizeram o voto naquele momento, naquela situação que ela se
achava, com que São Benedito ajudasse, que ela tivesse a criança normal, não
morresse, aí deles fazerem dia quatro tirando joia das mães de família, fazendo a
reza quatro, a missa e a procissão no dia cinco, aí encerra esse voto feito por ela e
entrega o festejo para fazer como era”.
D. Joana atingiu seu objetivo com a promessa feita a São Benedito, mesmo sem
conseguir se deslocar para São Luís, teve a criança e os dois sobreviveram ao parto, restava
então cumprir com o que havia se comprometido, que incluía no festejo a reza no dia quatro à
noite, uma missa no dia cinco pela manhã, e no mesmo dia uma procissão à tarde, iniciando às
dezesseis horas, depois disso a festa tinha a continuidade com a programação que já existia.
Quando D. Joana faleceu passou a responsabilidade para D. Prisca, que é sempre
ajudada pela comunidade nessa importante função.
Os votos feitos por D. Joana permanecem sendo importantes na programação da festa
de São Benedito, há alguns anos a missa do voto, também se notabilizava pela quantidade de
batismos, a pequena igreja ficava lotada e a relação da comunidade com a Igreja Católica era
muito boa, principalmente na vigência do Pe. Chiquinho como pároco, mas após o
falecimento dele, a Igreja enviou o Pe. Mhaltus, formado na Alemanha, defensor de um
catolicismo tradicional.
Com a chegada do novo sacerdote católico, algumas coisas mudaram, o conselho
paroquial, passou a ser composto principalmente por pessoas da Renovação Carismática
Católica, um movimento de cunho pentecostal, que dentre outras características não são
simpáticos a boa parte do que conhecemos como catolicismo popular, principalmente as festas
dançantes e tudo o mais que eles chamam de lado “mundano”, pagar uma promessa com
bumba boi ou tambor de crioula, não é recomendável por eles e qualquer manifestação que
tiver bebida alcóolica, é altamente reprovável.
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As características do movimento acima descritas, valem também para o padre,
defensor de um catolicismo ortodoxo, que foi enviado pela a igreja, para um município onde o
catolicismo popular está entranhado no cotidiano das pessoas.
As festas do catolicismo popular, muito comuns em Anajatuba, geralmente tinham um
diálogo amigável com a Igreja Católica, o padre celebrava as missas solicitadas e se envolvia
com as famílias e comunidades que realizavam festas arrebanhando-os como fiéis, mas
atualmente, para que uma dessas manifestações da cultura popular seja atendida de uma missa
é preciso que não tenha festa dançante e nem bebida alcóolica, que são situações difíceis de
desvencilhar, da parte religiosa. Sagrado e profano caminham juntos, mas não para o conselho
paroquial e o padre de Anajatuba, essa intransigência enfraqueceu o diálogo.
A festa de São Benedito também sofreu com a decisão do conselho paroquial e do
padre, de não haver missa onde houver festa dançante e bebida alcóolica, e o principal voto
comprometido é o da missa de D. Joana, hoje substituído pela liturgia da palavra, ou culto,
ministrado por um leigo, foi a forma que encontraram de não deixar passar em branco a
promessa da referida senhora, mas não sem revolta, como desabafou o senhor Benedito Guia:
E se nós num botar um bar? E não cobrar a porta da festa dançante? Com que é que
nós faz? Já teve ano que quando terminou a festa o padre veio “ Seu Benedito eu
soube que o festejo de São Benedito deu dinheiro” e realmente sobrou “ e a paróquia
está em dificuldade” aí eu respondi pra ele, mas não foi o festejo de São Benedito
que botou a paróquia em dificuldade, foi os responsáveis de lá, aí eu disse, e mesmo
assim o que sobrou aqui do festejo de São Benedito, é de festejo mundano como a
carismática chama lá, que o festejo aqui é festejo mundano por que tem dança e
botequim é disso que sobrou, então acredito que a igreja lá, a paróquia não vai
aceitar uma doação que vai de um festejo mundano pra lá, ele saiu. Mas eu não tava
certo?
A comunidade ainda teve a oportunidade de conversar com o Bispo, para tentar
reverter a situação, mas o Bispo da época, Dom Reinaldo, não predispôs-se em desautorizar o
padre, deixou claro que isso seria uma ingerência arbitrária e que causaria mais problemas,
tornando portanto a decisão de não celebrar missa onde vigorar o aspecto “mundano”,
irreversível enquanto o Pe. Maltus estiver em Anajatuba.
Os conflitos sociais da comunidade São Benedito, extrapolaram o âmbito familiar e
atingiram a relação com a Igreja Católica, e o principal pomo de discórdia está em torno da
promessa de D. Joana, que dentre outras atividades previa que houvesse uma missa, como não
é mais possível a comunidade teve que se contentar com um culto, mas o gesto de se negar a
celebrar do Pe. Maltus causou revolta, que se mantém, pois não há nenhum aceno no sentido
de se renegociar.
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Já a relação da comunidade com o executivo municipal parece ter sido mais amigável
e em alguns momentos até de colaboração, se houveram fortes conflitos não nos relataram.
A partir de mil novecentos e cinquenta e quatro a comunidade consegue com o
prefeito da época “Eraclito Vieira Ewerton”, um local próprio para realizar o festejo de São
Benedito, que permanece até os dias atuais.
Segundo relatos dos idosos da comunidade esse mesmo ex-prefeito, que conheciam
como “Ewertinho”, frequentava a ladainha em algumas oportunidades, e além disso, muitos
dos organizadores do festejo são funcionários públicos na ativa como o senhor José Maria
Verde, ou aposentados como D. Prisca e o senhor Benedito Guia, todos sem ter se submetido
a concurso. Durante a gestão do prefeito anterior houveram também, doações para o festejo e
a posse do segundo mandato dele foi na tribuna onde ocorre o festejo, o referido chefe do
executivo municipal governou de dois mil e quatro a dois mil e doze.
Até o encerramento do presente trabalho, não houve nenhum diálogo oficial com o
prefeito atual de Anajatuba, no sentido de colaborar com qualquer doação para o festejo de
São Benedito, contudo não há também nenhum tipo de conflito ou perseguição por parte da
prefeitura, que prontamente liberou as vias públicas para a procissão do dia primeiro de
janeiro.
Diante das circunstâncias acima citadas, podemos afirmar que ao longo da trajetória
do festejo, houveram mais relações de colaboração do que de conflito, com o poder público
municipal, e mesmo as gestões que pouco contribuíram com a realização da festa, também
não atrapalharam e nem perseguiram a comunidade ou os organizadores, fato interessante
uma vez que em Anajatuba até meados da década de mil novecentos e setenta havia uma forte
segregação entre negros e brancos nas festas.
Quanto às ladainhas dos dias, dois e três de janeiro, iniciaram também em mil
novecentos e cinquenta e quatro, para cobrir o hiato que inicialmente ia do dia dois ao dia
quatro, mas que após a promessa de D. Joana passou a ser de dois dias, esse acréscimo além
de completar a festa, serve para que muitas pessoas façam votos individuais, levando velas
acesas e até ex-votos.
Mas a festa de São Benedito em Anajatuba, ainda tem um sétimo dia atualmente, que
foi incluído na década de mil novecentos e sessenta, quando os idosos na época reclamavam
que os seis dias de festa eram exaustivos, sem que eles, os organizadores, tivessem se quer um
momento para sua própria diversão, para solucionar esse problema, resolveram acrescentar
mais um dia na festa, mas só para eles. Com o passar dos anos o sétimo dia perdeu esse
caráter de comemoração interna e passou a ser aberto a todos, nesse dia os organizadores
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fazem um mocotó e um cozido de carne, com o intuito de vender mais cerveja e geralmente
têm muito sucesso.
Nesse breve histórico da festa de São Benedito, vale ressaltar o caráter dinâmico das
relações sociais. Internamente são vários os conflitos existentes, que afastaram algumas
pessoas, mas ampliaram a participação externa, conforme os organizadores do festejo foram
respondendo aos desafios impostos dia a dia, e as transformações que constantemente se
apresentam, esses conflitos conforme aprendemos de Simmel (2006), não necessariamente
são negativos, pois renovam as perspectivas e criam possibilidades. Externamente as relações
de negociação e conflito com a prefeitura e com a igreja mudam conforme o contexto,
testando constantemente a capacidade dos organizadores da festa de interagir com o meio
social onde a festa está entranhada.
Os confrontos internos geraram o distanciamento de alguns, que consideram que
houve um excesso de centralização, mas nem por isso os membros da “família”, como eles
costumam dizer, deixaram de se identificar com o festejo e com seu histórico de luta numa
sociedade que segregava negros e brancos, tendo nas festas um reflexo muito forte disso, para
além desse fator há uma identificação com o mito fundador, com a promessa feita por D.
Dativa para proteger os seus da hanseníase da morte, perspectiva protetora que foi
complementada por D. Eugênia, que aflita com o recrutamento forçado quis livrar o filho e os
sobrinhos da guerra e por fim de D. Joana que acreditando sobreviver ao parto fazendo um
voto, não só conseguiu ter o seu bebê com saúde, como também reforçou os laços de
identidade que de alguma forma une seus familiares em torno do festejo de São Benedito.
3.2 A etnografia da festa de São Benedito em 2014
Redigir uma etnografia, é ocupar-se de forma prioritária em desvendar os códigos emitidos
pelo grupo social pesquisado, observando com muito cuidado para registrar o que for mais
significativo conforme a interpretação dos próprios nativos, sabendo no entanto que o texto estará
inevitavelmente impregnado das próprias concepções de quem o escreve. Sobre isso nos ensina
Geertz:
Uma vez que o comportamento humano é visto como ação simbólica (na maioria das
vezes; há duas contrações) – uma ação que significa, como a fonação na fala, o pigmento
na pintura, a linha escrita ou a ressonância na música, - o problema se a cultura é uma
conduta padronizada ou um estado da mente ou mesmo as duas coisas juntas, de alguma
forma perde o sentido. O que se deve perguntar a respeito de uma piscadela burlesca ou de
uma incursão fracassada aos carneiros não é qual o seu status ontológico. Representa o
mesmo que pedras de um lado e sonhos do outro – são coisas deste mundo. O que
devemos indagar é a sua importância: o que está sendo transmitido com a sua ocorrência e
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através de sua agência, seja ela um ridículo ou um desafio, uma ironia ou uma zanga, um
deboche ou um orgulho (GEERTZ, 2012, p. 8)
Na festa de São Benedito fizemos esse esforço, de compreender as manifestações expressas
em cada símbolo ou atividade que se desenrolava ao longo da programação, mas nesse exercício
nem sempre tivemos a nossa curiosidade satisfeita, ou por que os envolvidos com a festa não
souberam nos explicar, atribuindo suas ações a responsabilidade de continuar a tradição, ou
simplesmente por que não podem esclarecer aos de fora, tudo que buscam saber, já que em muitas
manifestações religiosas da cultura popular, o segredo é um elemento importante.
Acompanhamos a festa de São Benedito na íntegra em dois mil e quatorze, paralelamente
ao exercício constante de ler trabalhos sobre festa, escrito por antropólogos e historiadores, para
assim acharmos o caminho de produzir o nosso próprio texto, esse exercício reflexivo nos levou a
uma perspectiva teórico que aponta a festa não como um espaço extra estrutural e situado num
espaço exterior ao cotidiano.
A festa constitui-se num importante elemento de representação social do povo que a
realiza, reunindo desde o que há de mais lúdico até os preconceitos e os conflitos gerados no
interior da sociedade que a constrói. Toda essa abrangência que a festa é capaz de alcançar
nos leva a compreendê-la como tendo uma dimensão do que conhecemos como fato social
total.
Nossa principal referência para pensar a festa de São Benedito foi Canclini, tanto para
ele como também para Rita Amaral, as manifestações festivas não estão num plano exterior
ao cotidiano mas antes disso constituem-se num reflexo criativo da estrutura social, levando
seus partícipes por meio da interação a refletir sobre os desafios do contexto circundante
ensejando respostas dinâmicas e interativas, já que se liga aos mais diversos setores sociais.
A festa sintetiza a totalidade da vida de cada comunidade, a sua organização
econômica e suas estruturas culturais, as usas relações políticas e propostas de
mudanças. Num sentido fenomênico é verdade que a festa apresenta uma certa
descontinuidade e excepcionalidade: os índios interrompem o trabalho habitual (
ainda que para realizar outros, às vezes mais intensos e prolongados), vestem roupa
especial, preparam comidas e adornos incomuns. Mas não pensamos que a soma
destes fatos seja determinante para situarmos a festa num tempo e lugar opostos ao
cotidiano (CANCLINI, 1983, p. 54).
“Minha tese é a de que, longe de ser um fenômeno de distanciamento da realidade,
fuga sociológica etc., cujo resultado seria negar ou reiterar ao modo pelo qual a
sociedade se encontra organizada, nossas festas são capazes de estabelecer a
mediação entre a utopia e a ação transformadora, pois através da vontade de
realização da festa muitos se organizam, em nível local, chegando até mesmo a
crescer politicamente e economicamente, mesmo que em modo local. A organização
para a festa tem visado, inclusive, muitas vezes, atingir finalidades específicas, de
ordem social, passando essa organização primária a existir como instituição oficial”
(AMARAL,1998, P. 8).
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Interagindo com a vida, a festa não é apenas um espelho puro e simples da sociedade
onde ela está inserida, mas em suas manifestações é capaz de também influenciar o meio
social, levando a refletir sobre seus aspectos identitários e suas contradições, mediando
conflitos e constituindo-se num importante objeto de análise das ciências humanas e sociais.
Partilhando dessa perspectiva, nos propomos a descrever a festa de São Benedito em
Anajatuba, buscando interpretar os seus códigos, mas admitindo todas as limitações próprias
de quem faz uma leitura, em diálogo constante com os de dentro, mas sem esquecermos que
nosso olhar vem de fora.
Logo cedo à equipe de organizadores se concentra no local onde a festa de São
Benedito acontece e como todo “anfitrião” se preocupam com os mínimos detalhes, para que
nos próximos sete dias não decepcionem “os convidados”, confirmando a fama de divertida,
de pacífica e de organizada do evento. São vários retoques, uma lâmpada que não acende, a
necessidade de comprar mais foguetes, um material que ainda não chegou, tudo é examinado
com antecedência.
Os homens cuidam de todo o espaço físico e das negociações externas e internas,
desde a radiola que vai tocar, até as pessoas que assumem no ano em curso parte da
programação da festa, como por exemplo o mastro e a mesa dos juízes. A cozinha é
responsabilidade das mulheres, que também respondem pela limpeza do local e pela parte
religiosa, as ladainhas a procissão e o culto do dia cinco de janeiro.
A radiola e a venda de cerveja são serviços terceirizados, que até dois mil e doze
contemplavam um sujeito conhecido como Bill, mas recentemente esse referido senhor,
agravou um problema no ombro direito e ficou impossibilitado de acompanhar a festa de São
Benedito na íntegra, por isso a partir de dois mil e treze, dois de seus funcionários herdaram
parte da responsabilidade do patrão, que aluga os congeladores, mas não trabalha mais
durante o evento.
A festa no que concerne às atividades externas inicia com o buscamento do mastro. O
responsável por esse “voto” muda anualmente. Para facilitar nossa descrição, adotamos a
nomenclatura de Prado (2007) no que se refere aos organizadores da festa. Ela denomina de
festeiros os que assumem alguma tarefa parcialmente, no geral por um ano, no nosso caso o
mastro no primeiro dia e os juízes no sexto. Já os organizadores fixos, segundo a mesma
convenção, denominam-se promesseiros.
Portanto, no primeiro caso festa é uma iniciativa que parte do próprio individuo, do
promesseiro. No segundo é consequência de uma escolha anuída em que o sujeito se
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compromete de ser o futuro festeiro. São estas também, as duas formas possíveis
que a categoria “dono da festa” pode tomar, atribuída indiscriminadamente tanto a
um quanto a outro, pois o que ela encerra não é a origem do papel mas os seus
direitos e deveres (PRADO, 2007, p. 57- grifo do autor).
No decorrer da festa os promesseiros ficam aguardando as propostas de quem se
interessa em ser festeiro no ano seguinte, tanto para assumir o mastro como também para se
responsabilizar pela mesa dos juízes, ambas atividades dos festeiros, que não necessariamente
precisam ser da mesma família.
Os critérios para assumir o mastro e a mesa dos juízes foram mudando ao longo dos
anos, antes só pessoas da comunidade São Benedito e seus familiares podiam assumir essas
funções.
Em relação ao mastro quem pegasse a bandeira depois do derrubamento, encarregavase de todo o cerimonial do ano seguinte, desde que fosse aprovado pelos organizadores.
Atualmente, entretanto, pelo aumento da procura e dispêndio financeiro para pagamento da
promessa há uma lista de espera. Muita gente faz o voto primeiro, recebe a graça e só depois
procura o promesseiro responsável, (no caso o Sr. Benedito Guia, desde mil novecentos e
cinquenta e quatro), para comprometer-se em ser festeiro.
Quanto aos juízes, era um por ano, num revezamento entre o sexo masculino e o
feminino, mas segundo D. Domingas, num determinado ano, que ela não lembrava, dois pais
apalavrados teimaram em ter seus filhos como protagonistas no fim da festa, para resolver o
problema, os organizadores tiveram de aceitar um menino e uma menina como juízes, e daí
em diante, em vez de um, passou a ser anualmente o casal, que também como no mastro
devem arcar com as despesas e por isso só assumem a responsabilidade após a concretização
da promessa.
À medida que os testemunhos de satisfação pelas graças alcançadas, foram se
multiplicando, mais indivíduos se comprometeram com a festa, já não são mais somente os
negros da comunidade São Benedito, mas de qualquer etnia, que buscam essa relação de
contribuir com o festejo e receber uma graça. Nos dias atuais, o poder aquisitivo conta muito,
pois os custos são altos, só para se ter uma ideia, a banda de sopro do Sr. José Santana cobrou
em dois mil e quatorze R$ 1.300, 00 para acompanhar a cerimônia do mastro, mas ainda tem
outras despesas, com foguetes, carros de som, bebida alcoólica e velas.
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3.2.1 Cerimonia do mastro
Chegamos na Tribuna aproximadamente as 14h20, do dia primeiro de janeiro de dois
mil e quatorze, várias pessoas já estavam se concentrando para a caminhada rumo ao bairro
Olho d’agua, 3km da sede do município e local da retirada do mastro. Nesse ano, ficamos por
10 minutos observando os grupos que se deslocavam para o lado esquerdo ou direito da
tribuna conforme haviam combinado com amigos que encontrariam minutos depois em meio
à trajetória.
Às 14h30 saímos da tribuna num calor escaldante acompanhando um grupo de jovens
muito animado, que consumia diversos tipos de bebidas alcóolicas principalmente vinho.
Ainda no centro do município de Anajatuba, nos deparamos com mais adolescentes também
carregando bebida alcóolica, mas possivelmente de menor poder aquisitivo, pois o que
bebiam era uma mistura de cachaça com refrigerante, certamente muito forte, pois alguns
garotos não suportavam o excesso, cuspindo logo após o primeiro gole.
Costumeiramente chove no primeiro dia de festa, mas nesse ano de dois mil e quatorze
se quer formaram nuvens, o que por sua vez foi motivo de estranhamento e reclamações
constantes das pessoas.
O caminho de ida do mastro geralmente reúne poucas pessoas, sobretudo por causa do
calor e da precariedade das estradas, diante desses problemas as pessoas se aglomeram em
grupos mais próximos as suas residências e esperam o mastro passar para acompanhar o
percurso na volta, mas nesse ano foi diferente, devido as condições do local escolhido. O
Olho d’agua é um bairro que fica em meio a estrada que liga Anajatuba a BR 135, mais
precisamente em Colombo que é parte da cidade de Itapecuru.
Recentemente, a estrada a que nos referimos passou por uma reforma, ganhando um
recapeamento asfáltico e sinalização, essas mudanças proporcionaram o aumento de carros
particulares acompanhando o buscamento do mastro, na ida e na volta e facilitou bastante o
trajeto mesmo dos pedestres, embora houvesse um risco maior de acidentes, que não
ocorreram em toda a caminhada.
Na ida a banda de sopro não percorreu o caminho junto à multidão, os músicos foram
antes de Van até o local onde o tronco escolhido seria retirado, contudo o aumento de
automóveis perfazendo a caminhada junto aos pedestres, garantiu que houvesse som bem alto
em vários pontos, e também consolidou-se como espaço estratégico de vários vendedores de
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água mineral, refrigerantes, cervejas em lata e vinho, os donos de carrinhos de picolé também
aproveitaram bastante a ocasião para lucrar.
O percurso da maioria dos grupos organizados sofreu uma pausa onde acabou o
asfalto, o íngreme mas curto, caminho que vai até o matagal onde a árvore do mastro foi
retirada, foi percorrido na totalidade, pela família do festeiro, pela banda e por uma parcela
não muito grande de pessoas, se compararmos a verdadeira multidão que daria
prosseguimento as atividades.
Como de costume, nessa cerimônia há sempre quem coloque velas na raiz e resto de
tronco de árvore que fica, geralmente é alguém da família responsável pelo mastro, como
deveras ocorreu esse ano, contudo dessa vez foram bem econômicos, colocaram apenas um
maço.
Nos anos anteriores como presenciamos, se colocava bem mais. Antes do corte há
sempre quem faça suas orações e que esteja pagando promessa, nesse ano ninguém escalou o
arvoredo e derramou cachaça no caule, como observamos nos anos anteriores.
O momento do corte gerou uma certa discórdia, para alguns a árvore foi mal escolhida,
por ser muito grossa, outros queriam mais urgência temendo que a indecisão causasse retardo
para a hora da chegada e tinham pessoas, que não eram da família do promesseiro e nem do
festeiro e queriam dar golpes de machado no tronco. Para evitar mais conflitos, o senhor José
Maria um dos coordenadores do festejo, chamou um homem de sua confiança para derrubar
logo o caule que serviria de mastro.
Foto:Wellington Barbosa dos Santos
Figura 10: Cerimonial do tronco do mastro, Jan/2014 (Fonte: Trabalho de campo)
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Após a queda do tronco, várias pessoas retiram as folhagens e seguiu o ritual de
realização das preces regando o mastro com muita bebida alcóolica. Não foi difícil perceber
que deveras exageram na espessura do madeiro escolhido, pois desde as primeiras tentativas
de erguer o mastro até a saída do terreno via-se no rosto dos homens o esforço cada vez maior
em deslocar-se com tamanho peso nos ombros.
Na volta um verdadeiro carnaval, bem no início da chegada do mastro no asfalto
houve um início de confusão, mas que foi logo encerrada pelos próprios familiares dos
envolvidos.
A banda de sopro do Sr. José Santana é reconhecida pelos moradores de Anajatuba
pela competência em animar eventos dessa natureza, embora sozinha ela não conseguisse,
pois a multidão é tão grande que vimos pelo menos dois carros de som contribuindo com a
animação em meio ao trajeto.
O carnaval a que nos referimos tem haver com as marchinhas muito bem executadas,
mas vai além, pois há um consumo elevado e sem restrição de bebidas alcóolicas, há também
a tradição do uso de maisena, sobretudo entre os adolescentes, numa verdadeira guerra, que
conta ainda com sprays de espuma, além de vinho e cerveja, lançados para o alto a fim de
molhar a multidão, a semelhança com o carnaval é tão grande que se formaram inclusive
alguns blocos com abadás.
Foto: Wellington Barbosa dos Santos
Figura 11: Jovens de abadá acompanhando o buscamento do mastro, Jan/2014. (Fonte: Trabalho de Campo).
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Em meio ao caminho o mastro pesou, obrigando pelo menos por três vezes os seus
carregadores a colocá-lo no chão para descansar, mas isso não conteve os ânimos, numa
procissão que expressa alegria mas também devoção, pois em meio às pessoas que se
divertiam haviam também os que oravam e carregavam velas de tamanho similar ou maior
que o seu, certamente pagando alguma promessa.
As piadas também são uma constante, geralmente de cunho libidinoso. Aos homens há
sempre uma referência a dúvida com relação à sexualidade por estarem carregando “o pau de
São Benedito”, e quanto as mulheres o questionamento mais comum é quanto a virilidade ou
fertilidade dos maridos, mas também podem se referir a busca por um companheiro, “em
falta”, no ano anterior.
Ao chegar à sede o mastro seguiu o roteiro programado, primeiro tem sempre que
entrar e sair três vezes na casa do promesseiro, ou de alguém da família, em seguida deve
passar pela Praça da Cruz e por fim pelas ruinas da recentemente demolida Igreja do Rosário,
para só então poder dirigir-se para a comunidade e Igreja de São Benedito.
Foto: Wellington Barbosa dos Santos
Figura 12: Devota pagando promessa no buscamento do mastro, Jan/2014. (Fonte: Trabalho de Campo).
A chegada é sempre acompanhada de muitos foguetes (anteriormente também por um
tambor de crioula que nesse ano não teve), logo após o pesado mastro entra e sai três vezes da
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capela, na última os homens que carregavam o mastro, o deitaram no chão, ajoelharam-se e
fizeram uma emocionada prece, de alguns vimos inclusive escorrer algumas lágrimas.
Passado esse momento os homens carregaram o mastro para fora aos gritos de Viva São
Benedito! E ao som das marchinhas de carnaval executada pelas bandas de sopro.
Após a saída definitiva da igreja, o tronco foi colocado em cadeiras, que são mais
conhecidas como mocho, e homens e mulheres capricharam no enfeite, feito de folhas de
murta e frutos que serão disputados no último dia, nesse ano constava no tronco, pencas de
banana, laranjas e jacas, tudo acompanhado de muita bebida alcóolica derramada e consumida
durante todo o processo.
Quando pronto, o mastro é colocado num buraco e erguido por vários homens, que
usam uma espécie de tesoura construída justamente para esse fim, e cordas amarradas
firmemente na ponta do mastro, sendo puxadas de baixo para cima, até que esteja em
condições de ser calçado com bastante terra para se segurar firmemente até o sexto dia.
Do momento que o mastro chega, passando pelo enfeite, até ser soerguido, a banda
toca uma valsa, formando vários pares espontâneos de dançarinos, além disso nesse ano, três
homens subiram nos bancos da praça e jogaram balas como costumeiramente se faz no dia de
São Cosme e São Damião, essa ação soma-se à de vários devotos que não conseguimos
mapear, mas fazem silenciosamente gestos para pagar suas promessas feitas e esperam o
momento oportuno do festejo para serem pagas.
Erguido o mastro, por volta das dezoito horas e trinta minutos, os principais
coordenadores do festejo e a família do responsável pelo mastro foram em casa para retornar
às vinte horas para a ladainha, mas a festa não parou, o aglomerado de gente permaneceu na
praça. Nos bares e na tribuna a venda de cerveja seguiu firme.
3.2.2 A fartura da festa: as joias, as ladainhas e a missa
Conforme relatos dos idosos que entrevistamos, compreendemos que a comunidade
São Benedito há muitos anos é alvo de preconceito, por ser habitado majoritariamente por
negros. A segregação nas festas foi um reflexo dessa sociedade racista, mas também serviam
de intercâmbio social e cultural das comunidades negras, que não dispunham de luxo e
riqueza, mas nem por isso viviam em condições de miséria. A comunidade de São Benedito,
assim como as outras, conseguia extrair da natureza, da caça e da pesca, o suficiente para a
sua sobrevivência e ainda contava com excedentes que podiam trocar ou vender.
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As famílias que moravam a comunidade São Benedito tinham a seu dispor, laranja
lima, cupuaçu, caju, dentre outras frutas, além disso praticavam a pesca em rios próximos ou
em açudes e até meados da década de 1970, ainda encontravam nas matas ao redor, cotias,
tatus, jaçanãs e outros vários animais ou caças, como era comum chamarem.
O processo de modernização ainda que precário, mudou a paisagem, mas não
mergulhou a comunidade na penúria. Atualmente muitos ainda vivem ou complementam sua
renda com a pesca, mas há também um contingente razoável de funcionários públicos na
maioria de baixos salários, mas num local onde o custo dos produtos de primeira necessidade
não são elevados é possível ter qualidade de vida, além disso muitos são metalúrgicos,
aposentados, pensionistas e beneficiários de programas do governo federal de transferência de
renda, como o bolsa família.
Tendo as condições de sobrevivência assegurada e com possibilidade de sobra de
algum excedente, a comunidade de São Benedito organiza sua festa com relativa fartura, que
pode ser vista nos leilões após as ladainhas e no churrasco do dia seis de janeiro, distribuído
gratuitamente, fruto de doações.
Além da relativa abundância de recursos que a comunidade de São Benedito é capaz
de reunir para a realização da festa, muitas pessoas de fora também fazem doações, por causa
das promessas que se predispõem em pagar durante a realização do festejo, o acúmulo de
recursos hoje permite que não seja mais necessário recolher as “joias” nas casas dos
moradores da comunidade.
Vale ressaltar a influência do Concílio Vaticano II, de mil novecentos e sessenta e
dois realizado pela Igreja Católica, com o intuito de discutir uma nova inserção no mundo
moderno, a palavra italiana “aggiornamento” que que significa atualização estava na ordem
do momento e as decisões tomadas refletiam essa perspectiva. No que se refere à festa de São
Benedito, pelo menos dois ritos sofrem influência dessas decisões, a missa e as ladainhas.
Até mil novecentos e sessenta e dois, as missas eram celebradas em latim e o sacerdote
ficava de costas para os fiéis que pouco interagiam, mas o Concílio Vaticano II mexeu com
essa estrutura ritualística, refletindo na comunidade de São Benedito, as missas passaram a ser
rezadas nas línguas locais, (em português no nosso país), e o padre de frente para o povo
conduz uma linha litúrgica em que os fiéis participam bem mais, cantando, respondendo em
coro em diferentes momentos e fazendo leituras da bíblia, exceto a dos evangelhos.
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Assim também ocorreu com as ladainhas, onde uma pessoa preside o rito lendo parte
do que está no livro ou num folheto e os demais respondem, no caso de Anajatuba a ladainha
é entremeada por cânticos repetidos e rezas de ave maria, pai nosso e salve rainha.
Na comunidade de São Benedito a missa e depois o culto incorporaram as mudanças
do Concílio Vaticano II, mas a reza só parcialmente, a ladainha é rezada numa tentativa de
repetir em latim o que está escrito em cadernos que as senhoras mais idosas herdaram de suas
mães e avós.
3.2.3 Ladainha: primeiro de janeiro de dois mil e quatorze
A reza deveria iniciar às vinte horas, mas novamente foi difícil conter o som da radiola
de reggae na tribuna, e dos carros de som nos bares ao redor. A empolgação já começou cedo,
concomitante ao buscamento do mastro, um grupo de pessoas permaneceu na tribuna
consumindo cerveja ao som da radiola, quando o mastro chegou, uma parcela da multidão
mais interessada nos atrativos lúdicos, que vinha na caminhada soma-se aos que já estavam na
tribuna culminando numa efervescência difícil de conter, além disso é importante ressaltar,
que a cerveja é uma das maiores fontes de arrecadação do próprio festejo.
Com quinze minutos de atraso, o DJ anuncia a última música, para que inicie a
ladainha, mas encerrar a radiola da tribuna é só uma parte do trabalho, pois os carros de som
dos bares são ainda mais difíceis.
No momento em que o som da tribuna tem uma pausa, as rezadeiras e parte
significativa dos devotos já estavam na capela, com suas velas e demais símbolos religiosos, o
número de gente fora da igreja era muito maior, embora os de dentro preenchessem quase
todos os assentos.
Na praça em frente à capela, eram muitos os atrativos, os bares continuaram vendendo
bebida alcóolica durante a pausa, e havia também um parquinho e muitas barracas de
vendedores ambulantes que ofereciam desde artigos religiosos até os mais variados petiscos e
bebidas.
Os donos de carros ao redor apenas baixaram o volume do som, permitindo o inicio da
reza, aproximadamente às vinte horas e quinze minutos, mesmo assim algumas vezes o DJ da
tribuna anunciava algumas ações referentes ao retorno da festa dançante, que esperava a
ladainha encerrar, irritando bastante as rezadeiras.
81
A capela estava muito quente e abafada durante toda a reza, mas seguiu sua sequência
normal, sem acompanhamento de músicos, as mulheres entoavam os cânticos no latim escrito
à mão, em cadernos que herdaram das mães e “hinos” em português, dos quais o de São
Benedito (ver em anexo a letra) que encerra sempre a novena.
Mal a reza é concluída e a festa já recomeça, dessa vez com um bingo de uma radiola,
realizado pelos responsáveis da bebida, com autorização, mas sem ganho para a comunidade.
Nessa noite excepcionalmente não houve leilão.
Foto: Wellington Barbosa dos Santos
Figura 13: Ladainha, primeiro dia, Jan/2014. (Fonte: Trabalho de Campo).
3.2.4 Ladainha: dois de janeiro de dois mil e quatorze
Chegamos às dezenove horas e vinte minutos, e a igreja já estava aberta. O número de
pessoas na praça era bem inferior ao do primeiro dia, os atrativos ficavam por conta das
barracas ainda funcionando e do parquinho.
A capela encontrava-se vazia quando chegamos, mas dez minutos após, muitas
pessoas já tinham adentrado, o indivíduo responsável pelos fogos, apanhou os foguetes num
compartimento atrás do altar e posicionou-se ao lado da igreja para exercer sua função,
fazendo uma primeira chamada.
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Encontramos tudo limpo e arrumado, num ambiente acolhedor, voltado principalmente
para os devotos que chegavam cada vez mais, com suas velas e paramentos para pagar suas
promessas. As rezadeiras também foram chegando aos poucos, e até o horário marcado
estavam todas reunidas iniciando exatamente às vinte horas.
Novamente não choveu e o calor escaldante não impediu o andamento da reza, mas
atrapalhou bastante. Para nossa surpresa, havia mais gente na igreja, do que no dia anterior.
A reza alternava cânticos em latim e em português, alguns pai nosso e ave maria, que
duraram em torno de 45 minutos. Conforme ocorria antes do Concílio Vaticano II, o grupo
que comanda as orações, dirigem suas preces ao o altar e ao sacrário, ficando de costa para a
Assembleia que pouco interage.
Os jovens presentes na ladainha, ou estavam acompanhando os pais, ou envolvidos em
alguma promessa, na sua grande maioria quem ficava para as atividades expressivamente
religiosas eram as mulheres adultas, principalmente as idosas, mas alguns homens também
estavam presentes, a fé em São Benedito é muito grande, não é difícil encontrar alguém que
dê testemunho de ter alcançado alguma graça.
Ao que tudo indica as novas rezadeiras estão conseguindo assumir as tarefas
religiosas, há quatro anos, conversamos com D. Domingas, uma das responsáveis pela
ldainha, e ela nos disse que tinha medo das atividades religiosas malograrem após o
falecimento dela e de D. Prisca, contudo as duas já não estão mais a frente da reza, D.
Domingas morreu há dois anos e D. Prisca vítima de um derrame ainda está lúcida, mas fala
com muita dificuldade, não participou da festa no primeiro dia e no segundo dia chegou dez
minutos após o início e ficou fora do círculo das rezadeiras alegando dor de cabeça.
Após a ladainha, houve um leilão. Antes havia divisão de tarefas de acordo com a
categoria social dos organizadores da festa, o dia dois seria destinado “as moças”, mas
atualmente essa separação não está mais em vigor, as rezadeiras assumem todos os dias,
devido a dificuldade de agregar pessoas de mesma categoria social, que efetivamente
consigam assumir a reza.
No leilão os prêmios foram duas galinhas e um filhote de cabra, arrematados em
menos de trinta minutos, sem muitas disputas.
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Seguido disso, as pessoas ficaram nas barracas e bares ao redor até mais tarde, uma
vez que a cidade oferece poucos atrativos a estrutura montada em frente a tribuna durante a
festa de São Benedito, constitui-se numa alternativa muito apreciada de lazer e descontração.
3.2.5 Ladainha: dia três de janeiro de dois mil e quatorze
As ladainhas dos dias dois até o dia quatro tem um perfil muito parecido, foram
inseridas na programação da festa para evitar um intervalo muito grande de atividades, nem
por isso tem menos importância, já que muitas pessoas fazem promessas contando com esses
dias para pagar, principalmente a de segurar velas de tamanho similar ou maior que a própria
pessoa, que vão queimando a cada participação nas atividades religiosas da festa, ladainhas,
procissão e no buscamento do mastro.
Costumeiramente chove nos dias de reza e os insetos perturbam bastante o andamento
das atividades, mas em dois mil e quatorze isso não ocorreu, o incômodo ficou por conta do
forte calor. Ainda assim as mulheres que conduziram a reza não intimidaram-se e às vinte
horas em ponto já estavam iniciando a ladainha, sempre com um movimento de pessoas bem
menor na capela, se comparado aos que ficaram do lado de fora nas barracas.
A reza seguiu sem nada de novo, e logo após veio o leilão, com muitas galinhas e patos, dos
quais somente três foram arrematados além de um bolo, o movimento em torno do leiloeiro
rapidamente se desfez, tinham poucas pessoas, nesse dia a radiola não estava funcionando e
não havia venda de cerveja, que estava sendo toda estocada para os dias posteriores.
Foto: Wellington Barbosa dos Santos
Figura 14: Idosas acompanhando ladainha. D. Prisca é a segunda da direita para a esquerda,
Jan/2014. (Fonte: Trabalho de Campo).
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3.2.6 Ladainha: quatro de janeiro de dois mil e quatorze
A ladainha também iniciou no horário marcado nesse dia e sem muitas novidades,
repetiram a reza que alterna o latim do caderno e orações em português, e além disso várias
pessoas estavam acompanhando com grandes velas acesas, o movimento interno seguiu
menor que o externo, muito calor principalmente dentro da capela, os vendedores de água e
refrigerante das barracas arrecadaram bastante, lucro certo também para os donos de bares ao
redor.
Realizado do lado de fora e em frente à tribuna, o leilão novamente tinha mais aves do que as
pessoas que estavam participando podiam arrematar, terminou cedo, certamente por que o
som estava ligado no ambiente da festa, e a venda de cerveja retornou após a ladainha, o que
acabou sendo um atrativo maior que o leilão. As galinhas e patos não vendidos ficaram para o
dia seguinte, ou para um novo leilão, ou para alimentar os juízes e suas famílias no dia seis.
Foto: Wellington Barbosa dos Santos
Figura 15: Rezadeiras na ladainha, Jan/2014.
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3.2.7 O culto, a procissão, a ladainha e a valsa: cinco de janeiro de dois mil e quatorze
Conforme explicamos no histórico dos votos, a missa era um dos pontos fortes da
festa, devido à promessa de D. Joana para não morrer de parto, mas também por causa dos
diversos batizados que eram realizados nesse dia, muitos também fruto de promessas. Com o
veto do conselho paroquial houve uma supressão de tudo isso.
Para não ficar um vazio na manhã do dia cinco de janeiro, os organizadores da festa
passaram a fazer o que comumente é chamado culto dominical, quando ocorre aos domingos,
ou simplesmente culto, esse tipo de celebração é feita com frequência nas mais diversas
comunidades católicas em todo o Brasil, não substitui a missa, mas diante da escassez de
padres é uma alternativa viável por ser presidida pelos próprios leigos com os mesmos ritos
feitos por um sacerdote, inclusive com distribuição das hóstias, desde que tenha um agente
especializado, mais conhecido como ministro da eucaristia, que não pode consagrar a hóstia
como faz o presbítero, mas uma vez que esteja consagrada pode distribuir.
Aliás, essas são as principais diferenças entre a missa e o culto católico. A missa só
pode ser presidida por um padre e somente um sacerdote pode consagrar a hóstia, que a partir
de então é considerada pelos católicos o corpo e o sangue de Cristo.
O culto celebrado no dia cinco, na festa de São Benedito, funciona como um paliativo,
a comunidade tem a esperança de que o pároco atual em breve vá embora e um novo
sacerdote mais sensível ao catolicismo popular seja enviado pela diocese, até lá, celebrar com
os leigos inviabiliza os batismos, mas garante que pessoas paguem promessas com velas
acesas e até alguns ex-votos.
Quem preside o culto ou liturgia da palavra no dia cinco, é um leigo muito conhecido
da comunidade de São Benedito, o senhor José Antônio Sanches, ministro da eucaristia que
goza de boa confiança do Pe. Malthus, por isso tem apoio para presidir essa importante
celebração.
O culto começou pontualmente às nove da manhã, precedido por várias salvas de
fogos, forma antiga e ainda eficaz de chamar o povo para a Igreja, mesmo sem o atrativo da
missa e dos batismos a pequena capela ficou lotada.
Era de se esperar que a banda de sopro do Sr. José Santana animasse a celebração, mas
isso não ocorreu, toda a animação ficou por conta de pessoas da comunidade mesmo, que
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dispunham de uma caixa de som e três microfones, um para o celebrante e outros dois para
duas mulheres que entoavam os cânticos, quando alguém ia fazer alguma das leituras da
bíblia, um desses microfones era cedido.
Seguindo a mesma estrutura da missa, o culto teve o seu rito inicial sem muitas
novidades, após uma breve introdução o celebrante dá as boas vindas e interage com os fiéis
nos pedidos de perdão e glória cantados.
Depois veio o rito da palavra, com duas leituras da bíblia entremeados por um salmo e
a leitura do evangelho e os comentários do celebrante, também conhecido como homilia, que
nesse ano foi bem extensa, o Sr. José Antônio, leu trechos de uma biografia de São Benedito,
orientando os fiéis a serem caridosos e devotos como o santo, evitando principalmente as
farras e o excesso de bebida alcoólica, mas assim que terminou o culto, parte significativa das
pessoas que ali se encontravam, se dirigiram para a tribuna e ao som da banda de sopro
ignoraram as recomendações do celebrante.
O rito seguinte foi o eucarístico, com as ofertas e depois uma breve reflexão interior
no momento que seria a comunhão, que não aconteceu porque o celebrante não trouxe as
hóstias consagradas pelo padre.
O rito final foi bem curto, o celebrante convidou o povo para as atividades da igreja
matriz e depois encerrou com o hino a São Benedito.
Quando o culto terminou veio o leilão, com uma variedade bem grande de coisas e
animais, além das aves que sobraram da reza, tinham leitões, um cabrito, bolos e uma cesta de
fruta, a disputa mesmo foi somente pelos animais, principalmente pelo cabrito. Sobraram
muitos frangos que certamente serviram para o almoço do dia seis.
Enquanto o leilão acontecia à banda de sopro tocava um ritmo que habitualmente
chamamos seresta e o povo na tribuna dançava e consumia cerveja tranquilamente, mesmo
sem nenhum segurança não houveram brigas, tudo correu em paz.
Nesse os organizadores vendem muita cerveja, pois do término do culto às dez horas,
até a procissão que inicia as dezesseis horas a banda se reveza com a radiola para animar o
ambiente.
A procissão como a missa, referem-se à promessa de D. Joana para evitar a morte dela
e do seu bebê. Semelhante aos demais ritos religiosos, não está isenta de promessas pessoais e
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segue um roteiro fixo, que os organizadores não sabem explicar, mas esforçam-se em
conduzir o andamento das atividades de acordo com suas lembranças pessoais.
As mulheres chegam mais cedo para limpar, decorar a igreja e arrumar o andor. Os
principais enfeites são flores brancas artificiais e algumas fitas azuis.
Aproximadamente às dezesseis horas inicia a concentração das pessoas que vão
participar da procissão, prevista para às dezessete horas, mas saíram alguns minutos atrasados,
a partida é de frente da igreja e o som da tribuna não incomoda, uma vez que o tempo de
permanência no local da festa para essa atividade é rápido.
A banda de sopro do Sr. José Santana foi quem animou as pessoas concentradas em
frente à igreja e de lá partiram tendo à frente, as coordenadoras, duas crianças vestidas de
anjo, uma jovem que voluntariamente carregava uma cruz fina e leve de aproximadamente um
metro e outros quatro voluntários levaram o andor com a imagem maior de São Benedito.
Várias pessoas acompanhavam com velas acesas de tamanho normal e durante o percurso os
fiéis se revezavam para carregar os símbolos religiosos presentes na caminhada.
Foto: Wellington Barbosa dos Santos
Foto: Wellington Barbosa dos Santos
Figuras 16 e 17: Símbolos da procissão, a cruz e as crianças vestidas de anjos, Jan/2014 (Fonte: Trabalho de
Campo).
A procissão percorre as principais ruas do centro da cidade de Anajatuba. O
comportamento é diferente do buscamento do mastro, as músicas são todas religiosas, e as
pessoas que acompanhavam, na sua grande maioria, estavam compenetradas com os cânticos
e orações.
Comparando ao buscamento do mastro o número de pessoas que acompanha é
pequena, por onde passamos muita gente se concentrava na porta de casa esperando o andor
88
passar, para fazer uma prece ou simplesmente observar de forma curiosa, mas poucos se
aliavam ao movimento.
O ritmo da procissão é lento, sempre tendo o andor à frente, e animado pela banda de
música que conhece bem o repertório que agrada. Durante todo o caminho são estourados
foguetes, que chamam ainda mais atenção.
Foto: Wellington Barbosa dos Santos
Figura 18: Devotos carregando o andor, Jan/2014 (Fonte: Trabalho de Campo).
A chegada acontece um pouco depois do pôr do sol, a entrada na pequena igreja é ao
som do hino de São Benedito, as pessoas cantam alegremente enquanto o andor percorre o
pequeno espaço entre os bancos da igreja até ser colocado no altar, onde algumas pessoas
fazem reverência ao santo se aproximando com suas velas e fazendo o sinal da cruz.
Após o hino de São Benedito, a banda toca outras músicas religiosas, o povo
acompanha com palmas, o entusiasmo só é interrompido quando a música cessa e o Sr. José
Santana convida a todos para vir à ladainha às vinte horas como de costume.
A ladainha do dia cinco de janeiro foi a única que teve acompanhamento da banda de
sopro, por isso foi a mais animada, em dois mil e treze e dois mil e doze, os músicos
acompanhavam a ladainha alternando com as rezadeiras, mas em dois mil e quatorze, elas
começavam a cantar ou rezar e logo deixavam por conta dos músico a ladainha terminou
89
sendo mais uma apresentação da banda, que encerrou em quarenta e cinco minutos, dirigindose apressadamente para a tribuna.
Após a novena houve um rápido leilão, estavam todos apressados em acompanhar o
movimento na tribuna. Rapidamente os músicos afinaram os instrumentos para tocar a valsa,
mas antes, o coordenador Benedito Guia, fez um breve discurso em homenagem ao seu irmão
falecido no fim de dois mil e treze, o Sr. Doca Guia durante muitos anos também foi um
grande parceiro na organização do festejo, mas doente desde o início dos anos dois mil, havia
deixado de estar à frente, acompanhando de forma esporádica até o falecimento.
O discurso emocionado foi aplaudido e seguido da valsa, muitos casais já aguardavam
ansiosamente, a ninguém é vetado participar, os organizadores não cobram a porta, não houve
policiamento e nem seguranças, o ambiente é descontraído e pacífico. Quem não queria
dançar assistia o movimento dos casais ou simplesmente ficava nas mesas consumindo
cerveja.
A valsa dura em média uma hora, depois o som fica por conta da radiola de reggae que
também toca outros ritmos do momento, a tribuna fica lotada e a venda de cerveja é um
sucesso, interrompido às duas horas quando os organizadores encerram a festa para descansar
um pouco, já que no dia seis o movimento é ainda mais exaustivo.
3.2.8 O churrasco, a mesa dos juízes e a derrubada do mastro: dia seis de janeiro de dois mil e
quatorze
Às oito horas da manhã, já tinha gente na tribuna apreciando o som da radiola. Da
cozinha muito movimentada vinha o atrativo cheiro de carne assada pelos homens e
temperada pelas mulheres, que se ocupavam também em preparar os alimentos para o almoço
servido aos juízes e suas famílias.
Foto: Wellington Barbosa dos Santos
Foto: Wellington Barbosa dos Santos
Figuras 19 e 20: Preparo do alimento da festa, Jan/2014.
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A banda de sopro do Sr. José Santana passava o som e de nove às onze da manhã
animou o ambiente, cada vez mais cheio de pessoas que se deliciavam com o churrasco
servido gratuitamente em pratos de plástico, como tira gosto da cerveja.
Às onze horas os músicos foram buscar os juízes, enquanto as mulheres foram arrumar
as três mesas, que formaram uma só quando cobertas de tecido branco e enfeitadas com
castiçais.
Embaixo da mesa foram colocados os pratos, em alusão ao banquete dos cachorros de
São Lázaro, o cardápio era o mesmo servido aos juízes: arroz, feijão, macarrão, torta de
galinha e assado de panela e goiabada de sobremesa, ao lado dos pratos velas acesas.
Foto: Wellington Barbosa dos Santos
Figura 21: Banquete dos cachorros, Jan/2014 (Fonte: Trabalho de Campo).
Um pouco mais de doze horas os músicos chegaram À frente da pequena procissão
com os casais de juízes e seus familiares.
Ao som de uma marchinha específica para o momento, os juízes do ano anterior,
portando a imagem maior de São Benedito, sentaram-se na cabeceira À direita de quem entra
na tribuna e os juízes de dois mil e quatorze de posse da imagem menor do santo sentaram-se
do lado esquerdo.
91
Uma parte dos familiares dos juízes preenche as cadeiras do restante da mesa, a valsa
fez um intervalo para o breve discurso do Sr. Benedito Guia
Vocês estão aí representando, o lugar de Dativa Rosa Machado, aquela negra
escrava, que fez essa promessa em homenagem a São Benedito e fazendo a festa
oferecer essa mesa composta de componente pelo uma ação de graça, no meu
conhecimento que até hoje na família de Dativa Rosa Machado ainda não saiu
nenhum com a doença de hanseníase e nós agrade cemos nesse momento ao nosso
deus poderoso, nós agradecemos a São Benedito, que intercedeu por nós [...] é uma
hora solene que nós vamos receber essa graça mandada por Deus ( Sr Benedito Guia
06 de janeiro de 2006, fragmento do discurso gravado)
Após o discurso do Sr. Benedito Guia, a palavra é franqueada e somente D. Maria, a
mãe da juíza de dois mil e treze se dispôs falar, mas limitou-se em agradecer a oportunidade e
deixar claro que não estava preparada para assumir responsabilidades fixas no festejo.
Em seguida, os músicos retomaram a valsa, e os familiares dos juízes que não estavam
na mesa dançavam, aguardando os que já tinham almoçado desocuparem a mesa, para
gradativamente ir ocupando seus lugares.
Assim que os familiares dos juízes encerraram o almoço a banda dirigiu-se para a
porta da tribuna encabeçando uma pequena procissão que foi para a capela ao lado, seguido
das pessoas que estavam na tribuna participando da cerimônia, ao chegar na capela de frente
para o altar, os juízes de dois mil e treze entregam o santo maior para os de dois mil e
quatorze, que ficaram com a tarefa de repetir o gesto em dois mil e quinze.
As famílias se saúdam, tiram fotos e voltam à tribuna, para a valsa de encerramento.
Muita gente durante todo esse processo se quer saiu da tribuna, consumindo cerveja e
churrasco, que segue sendo distribuído até mais tarde.
A partir das dezesseis horas já tem gente na praça em frente à igreja aguardando a
cerimônia da derrubada do mastro, enquanto isso na tribuna a radiola continuava animando
aos que estavam interessados apenas em consumir cerveja e se divertir.
Os músicos chegaram na praça um pouco antes das dezessete horas, quando
efetivamente começou a cerimônia com os familiares dos promesseiros e dos festeiros. As
famílias dos juízes que pela manhã estavam na tribuna, encaminharam-se da igreja para a
praça acompanhados de alguns membros da organização da festa é o Sr. Benedito Guia quem
fica com o machado aguardando o ritual onde as pessoas circundavam o mastro, a pequena
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juíza é a portadora da imagem do santo e após concluir as voltas em torno mastro aguarda um
outro ritual, o do corte.
Cada membro tanto das famílias dos juízes, como dos organizadores da festa deve
desferir um golpe sobre o mastro, mas não há uma ordem estabelecida previamente, o que
gera conflitos, alguns temiam não ter a oportunidade, outros achavam injusto, que mesmo
nesse momento seja o Sr. Benedito Guia a dar as ordens, aos poucos todos vão sendo
contemplados, antes de desferir os golpes, se benzeram, fizeram uma prece e executaram o
gesto esperado, passando o machado adiante, até completar o efetivo de pessoas das famílias
envolvidas, para que um homem designado pelos promesseiros para o derrubamento,
desferisse golpes mais precisos no mastro, levando-o a cair, ajudado por fortes empurrões de
várias pessoas.
A multidão afastou-se da direção em que o mastro caiu, mas só temporariamente, logo
em seguida retornaram com o intuito de colher os frutos que se espalharam pelo chão, o
movimento de gente se empurrando é encarado com muita descontração, e a banda segue
tocando firme, até que o Sr Benedito Guia pegasse a bandeira, sem anunciar quem será o
responsável pelo mastro no ano seguinte.
Depois o Sr. Benedito Guia caminhou até a porta da Igreja exibiu mais uma vez a
bandeira e entrou, muitas pessoas que estavam na igreja fizeram suas orações, trinta minutos
depois poucas pessoas ainda estavam na igreja.
Após a cerimônia do mastro, caiu uma chuva torrencial e as pessoas se abrigaram na
igreja ou na tribuna, a tempestade não impediu a radiola de continuar tocando.
Assim que a chuva diminuiu as pessoas saíram para suas casas, pois as nove horas
iniciaria a festa na tribuna, dessa vez com cobrança de ingresso, que foi novamente debaixo
de chuva, mas estendeu-se até as três horas da madrugada.
3.2.9 O último dia: sete de janeiro de dois mil e quatorze
O dia sete não é mais reservado para a diversão dos que organizam a festa, na prática é
apenas mais um dia para vender cerveja, esse ano foi numa terça feira, o comércio e os
serviços públicos em Anajatuba estavam funcionando normalmente, mesmo assim os
organizadores mantiveram a atividade e tiveram sucesso.
93
Serviram ao meio dia mocotó e carne cozida, para estimular as pessoas a ficar na
tribuna consumindo cerveja. A radiola tocou das oito da manhã, às vinte e uma horas.
Estivemos na tribuna em vários momentos do dia e o movimento não era grande mesmo na
hora do almoço, mas sempre haviam pessoas ocupando as mesas ainda que poucas, se
comparado ao dia anterior, contudo ainda conseguiram vender vinte e duas grades de cerveja.
Os dois últimos dias da festa caíram em dias uteis de trabalho em dois mil e quatorze,
isso atrapalhou as vendas, no domingo muitos que não moram em Anajatuba tiveram que ir
embora e os do município precisavam levantar cedo na segunda para trabalhar, mesmo assim
os organizadores conseguiram vender quinhentas e oitenta e duas grades de cerveja, durante
todo o festejo, no ano anterior foram seiscentas e dez e o churrasco, naquele ano foi
distribuído um dia a mais, se levarmos em conta que ainda tiveram a concorrência dos dois
bares ao redor podemos afirmar que a venda de cerveja é altamente lucrativa.
Após o sétimo dia, acaba o festejo para as inúmeras pessoas que frequentam a capela
ou a tribuna de São Benedito, sem compromisso com a organização do evento, mas para os
seus coordenadores é o início da sequência de atividades cujo o festejo é só a culminância e
para a comunidade o compromisso de limpar o local, recolher seus pertences emprestados ao
longo da programação e reforçar a expectativa durante o ano corrente, fazendo promessas e
acumulando as joias e os donativos, que vão compor o “fundo cerimonial” (WOLF, 1970).
Esse envolvimento da comunidade de São Benedito com o seu festejo, é que nos
permite compreender como os laços de identidade se reforçam constantemente, a partir da
aceitação de uma narrativa comum, que se concretiza nos primeiros sete dias do ano, com a
realização da festa e no compromisso de cada um, que não se desfaz com as discordâncias e
nem com os conflitos, fatores importantes para as mudanças que inevitavelmente ocorrem.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS E CONCLUSÃO
O ELEMENTO ÉTNICO NA FESTA DE SÃO BENEDITO EM ANAJATUBA
Nossa perspectiva de conclusão é analisar a relação do histórico segregacionista das
festas em Anajatuba com a festa de São Benedito, para ser mais específicos queremos
compreender em que a separação entre as festas de branco e festa de negro em vigor pelo
menos até meados da década de 1970, contribuiu para o reforço da identidade étnica dos
moradores da conunidade de São Benedito e como o jogo das identidades muda com as
transformações no contexto social.
Sabemos que conforme Pollak (1992), memória e identidade social, tem uma relação
muito estreita, uma vez que as personagens/pessoas, lugares e acontecimentos que nos
lembramos, são construídos e selecionados principalmente de acordo com o que nos
identificamos a partir da memória social. Não nos lembramos de tudo que ocorreu conosco,
por maior que seja o esforço, nossa memória seleciona o que podemos acionar em nossa
mente quando somos exigidos e o que marca as escolhas é justamente a identidade.
Estamos destacando a festa como um elemento de identificação, e o que de mais
marcante podemos apontar na história da comunidade, alusivo a questão étnica, foi a
segregação entre negros e brancos, que era explícita nas festas, até meados da década de mil
novecentos e setenta.
No cotidiano é comum que as pessoas usem a expressão “puxar pela memória”,
referindo-se a possibilidade de alguém lembrar-se de algo que sabe ou presenciou, mas no
momento não consegue se lembrar. Buscamos nos discursos das pessoas mais idosas as
recordações alusivas às festas em Anajatuba, até a década de mil novecentos e setenta.
Tem mulatinha, pretinha muito bonitinha, que o branco se enche logo e vai lá, é esse
é que é o negócio [...] meu pai era preconceituoso agora eu não, eu gostava daquelas
bichinha do bairro São Benedito, tinha uma que eu andei me enrolando com ela
(risos) [...] Aí tinha um rapaz da cor bem clara, mas o pai dele negrito negrito, e a
mãe não era nem branca nem preta ela era amarela, cabelo pixaim, cor clara, mas ele
saiu bem descascado, queriam botar ele dentro, aí eu disse, se ele entrar tu entra, eu
vou entrar contigo, ela disse não eu não entro, eu disse entra! Ele não é melhor do
que você, aí ele não entrou, não deixaram ele entrar, ficamos todos do lado de fora
(Sr. Manoel, idoso branco que entrevistamos em 2013).
Os branco, só aqueles que eram acostumados, mas os mais novo, não, não, não,
tinha racismo ainda [...] esse racismo era só na festa, você podia conversar, mas
dançar nas festas não podia, tinha deles que se tinha uma pessoa mesmo um pouco
mais clara, ela já não dançava na de branco, ela já não dançava (D. Raimunda,
senhora negra do bairro São Benedito).
95
É difícil acreditar que o racismo em Anajatuba era restrito somente às festas,
sobretudo porque esse é um traço de quase toda a sociedade brasileira, um legado triste de
mais de trezentos anos de escravidão, que mesmo nos dias atuais persiste, malgrado as lutas
dos movimentos sociais e principalmente do movimento negro.
No entanto, a segregação étnica em Anajatuba apresentou características até certo
ponto diferentes da que se proliferou em todo o país, que sob o guarda-chuva da mestiçagem
buscava apagar as diferenças, mas subjacente a isso hierarquizava os grupos étnicos, como
explicou Munanga
A análise da produção discursiva da elite intelectual brasileira do fim do século XIX
ao meado deste deixa claro que se desenvolveu um modelo racista universalista.
Ele se caracteriza pela busca de assimilação dos membros dos grupos étnicos-raciais
diferentes na “raça” e na cultura do segmento étnico dominante da sociedade. Esse
modelo supõe a negação absoluta da diferença, ou seja, uma avaliação negativa de
qualquer diferença, e sugere no limite de um ideal implícito de homogeneidade que
deveria se realizar pela miscigenação e pela assimilação cultural” (MUNANGA
2008, p. 103, grifo nosso).
A segregação em Anajatuba tomou outra feição onde negros e brancos conviviam em
alguns espaços, mas dificilmente se misturavam, pois os casamentos entre pessoas de pele
clara e os de cor, eram muito raros e alguns bairros como o “Rosarinho” e “Picada” tem até
hoje predomínio de pessoas brancas e a união de pessoas desses dois grupos étnicos é
altamente reprovável em algumas famílias, esse tipo de racismo mais frontal se aproxima do
que Munanga chama de diferencialista.
Em outros países do mundo, em particular na antiga África do Sul e nos Estados
Unidos, desenvolveu-se um modelo de racismo oposto ao Brasil, o racismo
diferencialista. Este racismo, em vez de procurar a assimilação dos “diferentes”
pela miscigenação e pela mestiçagem cultural, propôs, ao contrário, a absolutização
das diferenças e, no caso extremo, o extermínio físico dos “outros” (por ex. o
nazismo). A dinâmica do racismo diferencialista levou ao desenvolvimento de
sociedades pluriculturais hierarquizadas, ou seja, sociedades desiguais e
antidemocráticas (por ex. o apartheid e o sistema Jim Crow). Se, por um lado, esse
tipo de racismo engendrou o segregacionismo, por outro, sua dinâmica permitiu a
construção de identidades raciais e étnicas fortes no campo dos oprimidos desses
sistemas (MUNANGA, 2008, p. 108, grifo nosso).
Não estamos afirmando que em Anajatuba houve um Apartheid nos moldes da África
do Sul ou nos Estados Unidos, há todo um conjunto de diferenças na ação do Estado e na
própria relação entre os indivíduos, que não chegou a gerar grupos extremistas como a Ku
Klux Klan 10 , contudo há diferenças também com o racismo a brasileira, denominado de
10
A Ku Klux Klan (KKK) foi uma organização racista secreta que nasceu no final do século 19 nos Estados
Unidos. Ela foi fundada em 1866, no Tennessee, como um clube social que reunia veteranos confederados, ou
96
universalista por Munanga, uma vez que em Anajatuba o racismo era mais radical e segregava
frontalmente os negros, principalmente nas festas e nos casamentos.
O que mais nos interessa não é saber em que tipo de racismo Anajatuba se enquadra,
esse breve esboço das relações étnicas e das formas de racismo em que nos ocupamos, fez-se
importante para que pudéssemos discutir, como esse contexto racista em que os negros
estavam inseridos no referido município fortaleceu o sentimento de identidade.
Conforme aprendemos de Hall (2005) a identidade fixa e coerente ao longo da
trajetória de um indivíduo ou grupo social não existe, ao invés disso é dinâmica e modifica-se
constantemente, outro fator importante é que ela é relacional e é esse último ponto que
podemos aludir ao contexto social de Anajatuba, pois se os negros não podiam participar das
festas dos brancos criaram as suas próprias, onde só eles frequentavam, fortalecendo ainda
mais a sua identidade como grupo étnico.
Atualmente, a Fundação Cultural Palmares (FCP) reconhece que em Anajatuba
existem dezoito comunidades remanescentes de quilombo, esse fator nos leva a crer que ao
longo do século vinte existiam muitas comunidades negras no referido município, que mesmo
com as condições precárias de transporte interagiam entre si, fortalecendo manifestações
culturais como o Terecô e o Tambor de Crioula, ainda hoje praticados em Anajatuba, mas sem
a constituição de grupos formados. Quem sabe ensina na prática e quem não sabe aprende da
mesma forma, quando uma pessoa faz uma promessa e como pagamento oferece ao santo ou
entidade um tambor de crioula, basta pagar algumas pessoas para tocar e dançar e
rapidamente aparecem outros para participar da brincadeira.
Era nessa atmosfera social que a comunidade de São Benedito realizava a sua festa até
a década de mil novecentos e setenta, reconhecendo-se como negros e por isso não permitindo
a entrada de brancos em suas atividades lúdicas.
A partir da década de mil novecentos e oitenta, o contexto social de Anajatuba mudou
significativamente, negros e brancos passaram a frequentar as mesmas festas, as condições de
seja, soldados que haviam lutado pelos estados do Sul, o lado derrotado, na Guerra Civil Americana (18611865). As duas palavras iniciais do nome da organização, "Ku Klux", aparentemente vêm da palavra grega
kyklos, que significa "círculo". Já o termo "Klan" teria sido acrescentado para dar melhor sonoridade à
expressão, além de fazer uma referência aos velhos clãs, grupos familiares tradicionais. Muito mais do que um
clube, a KKK se transformou numa entidade de resistência à política liberal imposta pelos estados do Norte após
a Guerra Civil, que assegurava, entre outras coisas, que a abolição da escravatura fosse mesmo cumprida. Na
defesa da manutenção da supremacia branca no país, o grupo promovia atos de violência e intimidação contra os
negros libertados. Disponível em http://mundoestranho.abril.com.br/materia/o-que-foi-a-ku-klux-klan-ela-aindaexiste último acesso em 01/08/2014
97
transporte também ficaram mais acessíveis para chegar a São Luís, aumentou bastante o
número de pessoas que possuíam carros, muitos fazendo linha para a Capital e circulando
dentro de Anajatuba.
Nesse ínterim, quem assumiu o festejo teve que dialogar com a nova realidade,
oscilando entre manter as tradições e negociar com os diversos padrões culturais, o que por
sua vez enseja outras interpretações do contexto social permitindo a transformação de
identidades.
O contexto das festas foi se aproximado do perfil de “espetáculo”, que Canclini faz
referência, e os organizadores tiveram que dar uma resposta, o que não é fácil quando as
mudanças são muito rápidas. É o próprio Canclini quem dá ênfase ao termo negociação,
referindo-se as adaptações que os agentes da cultura popular são desafiados a fazer.
Nesse jogo das relações não é fácil discernir o que é popular. Se o tomarmos como a
cultura tradicional própria e local, parecerá algo válido apenas para a vida familiar
privada ou para as festas. No entanto, a cultura moderna e hegemônica é assimilada
pelos habitantes em seu desempenho no mundo público. Mas essa cultura não é só,
nem principalmente, a da modernidade ilustrada, que costuma ser expressa em
regras objetivas e democráticas de representatividade política, mas também uma
complexa aglomeração de relações modernas e tradicionais de poder. Disso resulta
um dilema paradoxal: os animadores culturais com intenções democratizantes
descobriram que seria necessário pactuar com caciques internos do bairro para poder
reunir seus habitantes e inserir-se nas estruturas socioculturais locais [...] A
negociação está instalada na subjetividade coletiva, na cultura cotidiana e política
mais inconsciente (CANCLINI, 2010, p. 206-207).
Cada grupo social vai construindo o que lhe é possível, o que é negociável, o que pode
abrir mão e de como quer ser visto e reconhecido na sociedade, mas esse processo de
negociação é difícil e não raro gera conflitos e criticas internas, mas também externas, sobre
esse assunto argumenta Montes.
Claro que numa visão folclorística da cultura, ou numa visão reificadora da
identidade, muitos diriam que, quando uma festa deixa de ser tradicional, quando o
grupo que a produz começa a dialogar com os meios de comunicação de massa, já se
perdeu a autenticidade de ambos: essa é uma forma de aculturação , e se está
perdendo ao mesmo tempo a identidade que era própria do grupo. Eu ao contrário,
digo “Viva!” cada vez que os meios de comunicação de massa são obrigados a
valorizar os batuqueiros, os dançadores de jongo, os congos e os moçambiques, pois
isso lhes dá visibilidade. E a partir dessa visibilidade, esses grupos alcançam uma
outra posição de poder, a partir do qual negociam não apenas o reconhecimento de
sua condição de produtores de cultura, mas também de cidadãos brasileiros
discriminados, dos quais são tirados os direitos básicos de cidadania (MONTES,
1996, p. 62).
98
As mudanças são inevitáveis e o contato com outros grupos culturais e sociais reforça
isso, bem como a mídia e atualmente as redes sociais também influenciam. O rumo que cada
manifestação cultural vai trilhar varia muito, dependendo de vários fatores, como o espaço
geográfico em que ocorre, o contexto histórico e a criatividade de seus agentes.
Com um novo ambiente cultural em vigor o jogo das identidades mudou, permitindo a
entrada de brancos na festa de São Benedito e acrescentando um novo elemento, o de
remanescente quilombola.
Antes só os negros frequentavam a festa e somente membros das famílias da
comunidade São Benedito podiam assumir os votos públicos do festejo, em outras palavras
eram promesseiros e também festeiros. Atualmente a festa acolhe pessoas de qualquer etnia e
qualquer pessoa pode ser festeiro, basta ter recursos para arcar com a responsabilidade que
assumiu e respeitar a ordem da escala dos que desejam pagar sua promessa na festa de São
Benedito.
A comunidade e os organizadores do festejo, mantiveram sua identidade étnica,
continuam se reconhecendo como negros, contudo a dinâmica social incluiu uma nova
conjuntura política, exigindo uma luta maior que a de manter suas tradições culturais em
detrimento do racismo, o novo cenário ampliou as fronteiras com os pares de Anajatuba,
engajando-os numa nova luta nacional pela concretização dos direitos e no exercício da
cidadania e é por isso que atualmente a comunidade de São Benedito se reconhece como
remanescente de quilombo.
Regulamentada pela constituição de mil novecentos e oitenta e oito, a condição de
remanescente de quilombo atende a uma multiplicidade de situações sociais, como nos
explica Sousa Filho.
O que ocorre atualmente é que, diante dos graves problemas enfrentados e das lutas
travadas no sentido de garantir a permanência desses grupos em seus territórios, o
conceito de comunidade remanescente de quilombo, na nova perspectiva analítica ,
tem sido acionado como forma de aglutinar diferentes situações sociológicas que,
outrora, eram conceituadas separadamente, já que revestidas de especificidades em
termos organizacionais e históricos. Nessa nova tendência reflexiva, as identidades
individuais e coletivas como pretos ou caboclos, por exemplo, que regulam
pertencimentos e princípios de exclusão, são articuladas no sentido de definir
unidades étnicas que o entendimento corrente de remanescente de quilombo
sintetiza. (SOUSA FILHO, 2008, p. 24).
Tamanha abrangência atribuída aos termos remanescente de quilombo, desagrada a
muitos pesquisadores e agentes sociais, por considerarem de uma exterioridade forçosa,
suprimindo termos locais, ou pelo academicismo exagerado, ou até mesmo por considerar que
99
os mais variados agentes sociais deturpam completamente, o que seria remanescente de
quilombo em causa própria, forjando identidades que não existem.
Consideramos essa discussão importante, mas não nos ocuparemos dela aqui, por que
o que mais nos interessa é aludir ao auto reconhecimento que a comunidade de São Benedito,
tem como remanescente quilombola, que mesmo sendo exterior foi abraçado também por
outras dezessete comunidades negras de Anajatuba, nesse sentido concordamos com Almeida
quando ele afirma.
O importante aqui não é tanto como as agências definem, ou como uma ONG
define, ou como um partido político define, mas, sim, como os próprios sujeitos
sociais se autodefinem e quais critérios político-organizativos que norteiam as suas
práticas e mobilizações que forjam a coesão em torno de uma certa identidade.
(ALMEIDA, 2000, p. 178)
É a partir do auto reconhecimento que estamos analisando o alinhamento identitário
dos agentes sociais e culturais da comunidade de São Benedito em Anajatuba, com toda a
dinamicidade, que não é apanágio só deles, mas são peculiares a pluralidade de situações que
o mundo desafia cotidianamente os indivíduos e grupos sociais a responder.
Desta feita, a festa de São Benedito em Anajatuba tem se constituído também como
elemento de auto reconhecimento e de construção da identidade do grupo, que se pensa a
partir do contexto social e de sua dinâmica interna.
Chama a atenção também o valor simbólico que a festa de São Benedito acumulou ao
longo de sua trajetória, a começar pelo “mito fundador”. Os mais velhos da comunidade
entendem que a continuidade da festa se justifica pela responsabilidade de continuar o que D.
Dativa começou, que é a manutenção da saúde da família guardada por São Benedito, que
recebe a festa em troca, mas a devoção ao santo negro foi atualizada com novas necessidades,
manter os filhos e sobrinhos longe da guerra como é o caso de D. Eugênia, ou ter um bom
parto como aconteceu com D. Joana.
A relação dadivosa com São Benedito, extrapolou os anseios familiares e se
reproduziu em muita gente, que os organizadores se quer conhecem, mas que vão pagar suas
promessas de diversas maneiras ao longo da festa, seja com uma vela acesa, de tamanho igual
ao de quem recebeu a graça, para serem queimadas na ladainha, ou na confecção de ex-votos.
Juntam-se a esses desconhecidos, tantos outros que assumem o mastro no primeiro dia,
ou a mesa dos juízes no sexto, cada um desses, satisfeito com a realização do que buscavam,
alimenta ano após ano a “tradição”, iniciada segundo nossos informantes há pelo menos um
século.
100
A festa de São Benedito em Anajatuba mobiliza elementos identitários e de
autoreconhecimento, sendo assim, perceber a festa somente a partir do consumo ou como
espetáculo seria reducionista, visto que reúne anseios, expectativas, devoção, fé, identidade.
101
REFERÊNCIAS
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SOIHET, Rachel (Org.). Ensino de história: conceitos, temáticas e metodologia. 2ª. Ed. Rio
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Caderno Pós Ciências Sociais – São Luís, v.2, n.3, jan./jun., 2005.
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país que “não é sério”. São Paulo, 1998. (Tese de doutorado de Antropologia da Universidade
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Entrevistas:
Mauro Rêgo, D. Domingas, D. Prisca, Sr.Benedito Guia (jan/2010)
D. Terezinha, D. Raimunda , Sr. Manoel, Sr. Honorato, D. Isabel, D. Mocinha
(jul/2012)
D. Inês e Antônio (jan/2014)
104
ANEXOS
Bendito de São Benedito
Refrão
Meu São Benedito o vosso manto cheira o cravo e a rosa flor de laranjeira (bis)
I - Meu São Benedito fostes cozinheiro
Hoje vós é santo de Deus verdadeiro.
II - Meu São Benedito pelo mar vieste
Domingo chegaste milagre fizeste.
III - Meu São Benedito estrela do norte seja o nosso
Amparo na vida e na morte.
IV - Meu São Benedito quem vós encarnou
Foi um imaginário que no seu se achou.
V - Meu São Benedito não queira mais Crôa queira uma
Toalha que vem de Lisboa.
VI – Que Santo é aquele que vem acolá é São Benedito
Que vem pro altar.
VII – Que Santo é aquele que vem lá de dentro é
São Benedito que vai pro convento.
VIII – Que Santo é aquele que vem no andor
É São Benedito de Nosso Senhor.
IX – Que Santo é aquele que chegou agora
É São Benedito Nossa Senhora.
X – Que Santo é aquele que vem de mantel
É São Benedito que vai pro céu.
XI – Meu São Benedito queremos orar
Quando for a hora venha nos chamar.
XII – Meu São Benedito pedimos também
Que nos dê a glória para sempre, amém!
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São
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Benedito, o Santo Preto
H
umilde, a mais humilde possível, foi a origem do santo. Era filho de Cristóvão
Manasseri e Diana Larcan, descendentes de escravos trazidos da Etiópia para a Sicília, que
viviam como bons cristãos, fiéis à lei do Senhor e humildes numa vida de oração e trabalho.
Nada exerce maior influência na educação dos filhos como o exemplo dos pais. O bom
Cristóvão e Diana, repartindo o tempo entre a oração, o trabalho e a educação de Benedito,
viviam santamente.
A fidelidade à oração e a piedade dos pais causavam profunda impressão naquela alma
infantil. As mortificações e obras piedosas propostas pela Igreja eram rigorosamente
observadas pela família. Na Quaresma, praticavam a penitência. E Benedito, ainda menino,
na medida do possível, acompanhava a seus pais na vida de oração e austeridade.
Benedito, quando criança, ainda, recebeu a função de guardar os rebanhos de Manasseri.
Foi bem fiel ao dever. E enquanto as ovelhas pastavam, Benedito rezava o rosário, com o
pensamento voltado para Deus. Lição que aprendera de seu pai! E enquanto oferecia a seu
rebanho boa pastagem e boa água, encontrava tempo para a meditação, no contato direto
com a natureza.
Aos dezoito anos, Benedito sentiu o desejo de se consagrar totalmente a Deus. A vida no
mundo não o atraía. E a esse ideal se dedicou até a idade de vinte e um anos.
Benedito, certo dia, cansado, sentou-se à sombra para descansar com alguns
companheiros. Como sempre, os que passavam começaram a ridiculariza-lo pela cor. E
riam-se às gargalhadas do pobre negrinho. Benedito, humilde e paciente, calava-se pelo
amor a Deus. Frei Jerônimo, eremita cuja fama de santidade se espalhava por toda a Itália,
passou por perto e foi testemunha das humilhações sofridas pelo humilde, pobre e santo
pretinho. E depois de repreender severamente a todos, voltou-se para o patrão de Benedito
dizendo: "Eu lhe recomendo muito esse moço, pois logo virá para minha ordem e se tornará
um santo religioso".
Alguns dias depois, Frei Jerônimo voltou a se encontrar com Benedito que arava os campos
e
o
chamou
para
acompanha-lo.
A vontade de Deus se mostrava clara. Vendeu o que possuía e comovido deixou a casa
paterna e foi para a Vida Religiosa.
A alegria foi muito grande entre os Irmãos Eremitas de São Francisco, ao receberem em
seu meio o piedoso filho de escravos, já bem conhecido pelo seu fervor e grande virtude.
Mais feliz sentiu-se Benedito em poder entregar-se à oração e à penitência, sem que o
111
mundo
o
impedisse
ou
dificultasse
sua
vida.
A vida dos Irmãos Eremitas Franciscanos era bem austera.
E
uniam
a
extremasolidão
à
extrema
pobreza.
Sustentavam-se com um pouco de pão que mendigavam e
com algumas ervas, água e mais nada. Vestiam-se de
panos simples. As horas de oração eram longas, de dia e
de noite. E o silêncio, bastante rigoroso. Depois de cinco
anos em vida tão austera, com a aprovação do Papa Júlio
III, Benedito fez a profissão solene. A regra dos Eremitas
de São Francisco já era de um extremo rigor e exigia
heróica virtude. Benedito ia além da simples observância.
Benedito foi um imitador perfeito da vida de penitência do
glorioso São Francisco de Assis, seu pai espiritual.
A fama de santidade de Frei Benedito corria longe. E alguns
enfermos que eram levados até ele, voltavam curados.
Verdadeiras multidões iam ver o santo, tocar nele, beijarlhe as mãos. A solidão do santo estava perturbada! Com
isso, sentiu-se ofendido em sua humildade e desejou fugir. Frei Jerônimo resolveu levar
seus monges para, cada vez, mais longe. Mas não adiantava, pois o povo sempre os
descobria.
Com a morte de Frei Jerônimo, por ordem do Papa, os eremitas foram remanejados para
alguns mosteiros. Frei Benedito, por inspiração da Virgem Santíssima, escolheu um
mosteiro da Sicília, da Ordem dos Frades Menores Reformados, e Convento de Santa Maria
de Jesus, perto de Palermo. Ali, porém, ficou pouco tempo, tendo sido mandado para o
convento de Sant’Ana di Giuliana, onde ficou três anos, voltando novamente, por ordens
superiores, ao Convento de Santa Maria de Jesus, onde permaneceu até a morte. Naquele
convento, no mais humilde ofício, iam brilhar para o mundo o poder e a santidade de Frei
Benedito.
Lá começaram os prodígios. São conhecidos centenas de milagres, como o do aparecimento
de água onde não havia o líquido, o de multiplicação dos pães e peixes, o da cura de
enfermos e mais tarde, a ressurreição de mortos.
E
m 1578, foi eleito, por unanimidade, Superior do Convento de Santa Maria de Jesus. A
notícia se espalhou logo, trazendo a todos uma grande alegria. Só o pobre e humilde Frei
Benedito sentiu-se triste, humilhado e abatido. Correu para junto do Superior: "Pelo amor
de Deus, não permita que tal responsabilidade venha sobre mim, um pobre negro ignorante
e analfabeto! Veja minha condição humilde! Sou filho de escravos, de cor negra, ignorante.
Como dirigir e governar sacerdotes, homens sábios, mestres e diretores espirituais? Padre,
veja que vergonha será para o convento e para a ordem, um superior como eu!". Não
adiantou. Com isso, estava mais uma vez provada a sua humildade e sua virtude. Só
restava ao santo obedecer. Difícil e dura obediência para sua humildade.
O novo Superior do convento de Santa Maria quis governar mais pelo exemplo que por
qualquer outra virtude. Não se considerava dispensado de exercício algum que a Regra
prescrevia. Não admitia para si desculpa ou mitigação alguma. Edificava a todos com o seu
fervor na oração. Só a presença de Frei Benedito era um estímulo contínuo à prática da
virtude. Então, passados três anos, os Superiores elegeram Frei Benedito para um cargo
mais elevado, o de Vigário.
Analfabeto e filho de escravos, Frei Benedito iluminado pelo Espírito Santo, dava lições aos
mais ilustres teólogos e mestres do seu tempo e que a ele recorriam pedindo ajuda para
elucidarem textos das Escrituras e questões teológicas. Por um dom especial de Deus,
conheceu e profetizou muitas coisas, inclusive sua própria morte. São Benedito, como seu
irmão de hábito, Santo Antônio de Pádua, foi, no dizer de Pio XI "um prodígio de milagres e
um milagre de prodígios".
112
Realmente, o dom dos milagres em vida e após a morte foi estupendo no humilde
franciscano que Deus quis glorificar na terra para confundir os orgulhosos e mostrar os
prodígios da graça divina num pobre, ignorante e humilde preto. Faleceu no dia 4 de abril
de 1589, terça-feira de Páscoa, às 19 horas. São Benedito tinha 65 anos de idade, dos
quais passou 21 no mundo, 17 como eremita e 27 na Ordem Franciscana.
(Resumo do Livro "São Benedito, o Santo Preto." de Mons. Ascânio Brandão).
Disponível em: http://www.irmandadedoshomenspretos.org.br/irmandade_sao_benedito.htm

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