Universidade e Sociedade: três pequenas provocações

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Universidade e Sociedade: três pequenas provocações
Universidade e Sociedade: três pequenas provocações#
Prof. Cylon Gonçalves da Silva
Professor Emérito do IFGW
O tópico desta Mesa Redonda é vasto, multifacetado, e complexo,
especialmente em um país com os desafios que o Brasil tem a enfrentar. Vou
me limitar a três breves comentários. São menos comentários do que, de
fato, algumas pequenas provocações. Não são originais, nem serão
expressos com a mesma coerência, elegância e força com que já o foram por
outros melhores pensadores e expositores. Como são de domínio público,
poupo-me de um inventário de citações e referências acadêmicas.
Primeiro comentário: olhando para dentro ou a governança da
Universidade.
A Universidade tem várias funções na sociedade. As duas mais
importantes são de (1) transmissora e de (2) geradora de conhecimentos. Ela
garante, ao mesmo tempo, continuidade e renovação. Se pensarmos um
pouco, veremos que há um certo grau de conflito entre estas duas missões:
de um lado, a missão de guardar e transmitir os valores e conhecimentos
tradicionais da sociedade; de outro, a missão de subvertê-los por meio da
descoberta e invenção. Esta parece ser uma das razões que faz com que os
tempos característicos, ou como diríamos nós físicos, a dinâmica da
Universidade seja lenta, quase geológica. Irritantemente lenta para os jovens,
estudantes e professores recém chegados; confortavelmente lenta para
quem galgou os graus acadêmicos e pode descansar em paz em plena vida.
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Este texto é uma “quase-transcrição” de comentários feitos por ocasião do evento “A
UNICAMP ouve seus professores eméritos”, realizado em 10 de novembro de 2009.
Assim, não se trata de um texto trabalhado, à altura dos desafios do tema
“Universidade e Sociedade”.
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A Universidade é uma comunidade restrita, de alguns milhares de
pessoas, composta por três classes de habitantes: professores, funcionários
e alunos. O poder político está, em geral, nas mãos dos professores, que
passaram por todos os rituais de iniciação requeridos pelas tradições da
comunidade, antes de serem reconhecidos como iguais por seus pares. É
uma comunidade que não se sustenta a si própria (financeira, não
intelectualmente falando – “honi soit qui mal y pense”) , mas considera um de
seus direitos inalienáveis o de ser sustentada pela sociedade. Em troca, ela
se compromete a transmitir e gerar conhecimento, e formar as novas
gerações de profissionais, cujo trabalho futuro gerará as riquezas que
permitirão à Universidade continuar existindo, bem como assegurarão a
continuidade dos valores culturais da Sociedade. Sendo instituição de
ensino, a Universidade funciona, para a Sociedade, como uma corrente
transportadora de cultura, de uma geração para outra. A Universidade de
pesquisa, entretanto, tem uma dimensão adicional. Para que ela exista é
preciso que a sociedade, por ter internalizado esta atitude ou por mera
imitação de outras sociedades, atribua valor não ao conhecimento (isto todas
as sociedades, mesmo as mais primitivas fazem), mas à geração de novos
conhecimentos, por meio da subversão dos conhecimentos tradicionais. Ou
seja, em lugar da verdade eterna revelada, a Universidade de pesquisa
venera a verdade transitória, criada. Como que para compensar os riscos
envolvidos nesta empreitada em busca do conhecimento novo, a
Universidade, especialmente a Universidade pública, desenvolveu um
sistema de governança extremamente conservador, onde a regra principal
parece ser “não sacuda o barco”.
A própria comunidade escolhe os ocupantes das funções hierárquicas
principais: chefes de departamento, diretores, e reitores. O dirigente máximo,
o Magnífico Reitor, é escolhido a partir de uma lista de três nomes,
submetida, conforme o caso, ao Governador do Estado ou ao Ministro de
Educação. O professor, quando chega a Reitor, já percorreu longos anos de
carreira administrativa; forjou alianças políticas dentro da Universidade e,
talvez, até algumas fora; fez amigos e inimigos; absorveu, consciente e
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inconscientemente, os valores da comunidade que pretende reger; e,
finalmente, submeteu-se ao processo de escolha interno por seus pares.
O máximo que nos ocorre em termos de revolucionar este processo é
uma pífia proposta de eleições diretas para Reitor, sendo eleitores
qualificados todos os membros da comunidade interna. Penso que
deveríamos ser muito mais audaciosos. Mas, isto requer “sacudir o barco”,
portanto não tenho nenhuma ilusão quanto ao destino desta proposta...
Os principais executivos da Universidade deveriam vir de fora dela,
escolhidos por uma comissão de seleção que incluiria representantes da
Sociedade e, em menor número, da própria Universidade. Seria ótimo se,
além de uma experiência acadêmica importante, estas pessoas tivessem tido
a oportunidade de viver a vida não acadêmica, no setor privado, ou em
outros setores do serviço público. Elas trariam outras percepções, outras
vozes e outras agendas para dentro da comunidade universitária,
contribuindo para renovar periodicamente a Universidade no topo e não
apenas na base. Mas, sobretudo seria ótimo se elas entrassem na
Universidade sem nenhum compromisso prévio com os grupos de poder
internos, e com poder suficiente para abrir novos caminhos. É claro que esta
proposta implica em um redesenho radical da universidade pública brasileira.
Pouco provável. Mas, seria divertido...
Segundo comentário: olhando para fora ou a inserção da Universidade
no mundo.
O segundo comentário parte do pressuposto que um dos desafios
para a Universidade pública brasileira é o de preparar melhor nosso país
para um novo papel no mundo. Isto é, nesta segunda provocação sugiro
olharmos o mundo do século 21 como a Sociedade do tema desta mesa.
Como todo país grande, o Brasil tende a ser voltado para si mesmo.
As fronteiras são poucas e distantes dos grandes centros populacionais e, de
qualquer modo, temos quase cinco séculos de história voltada para o mar.
Em último caso, podemos nos fechar para o mundo e viver felizes para todo
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o sempre. Afinal, se não temos aqui tudo o que gostaríamos de ter, temos
tudo o que precisaríamos para viver adequadamente: terra, água, sol,
recursos naturais e uma grande população, sem falar em samba, futebol e
violência, nossas marcas registradas lá fora. Para que vamos nos preocupar
com o mundo? A meu ver, por várias razões.
1. A Natureza não reconhece fronteiras políticas artificiais, nem o conceito de
soberania nacional. Mais cedo ou mais tarde, o CO2 emitido na China vai ter
um impacto sobre a batida da asa da borboleta na Serra do Mar. Este fato
nos traz, enquanto país, obrigações e deveres dentro de nossas fronteiras e
para muito além delas.
2. O mundo é um lugar muito perigoso. Podemos esperar de tudo, até conflitos
nucleares neste novo século. Mesmo que estes conflitos sejam longínquos,
eles terão impactos estratégicos e ambientais sobre nós. É preciso ter líderes
no Brasil que conheçam profundamente outros países e outras culturas, para
que o Brasil possa ter um papel mais influente no cenário político mundial. E
quem irá formá-los, se não a Universidade?
3. É lugar comum que a economia mundial está cada vez mais integrada e que
o papel de países como o Brasil está mudando com esta integração. Lugar
comum ou não, vimos recentemente como as falcatruas americanas que
culminaram na crise financeira de 2008 fizeram o IPI baixar no Brasil! Quem
diria? Mas, meu comentário é mais positivo do que isto. O Brasil pode e deve
se posicionar como um grande fornecedor mundial de biocombustíveis – para
humanos (alimentos), animais (rações) e máquinas (combustíveis líquidos). A
liderança mundial do Brasil nesta área é reconhecida e precisa ser
aproveitada. Isto tem rebatimentos diretos sobre pesquisa, desenvolvimento
e inovação. A bioenergia representa para o Brasil uma oportunidade muito
mais relevante de desenvolvimento social e econômico do que o
ridiculamente badalado pré-sal. O que nossa Universidade está fazendo para
trazer estudantes do resto do mundo para estudarem este tema aqui?
Precisamos treinar os futuros líderes que decidirão amanhã sobre as
questões energéticas nacionais de seus respectivos países. E, para nós, é
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melhor que tenham vínculos profissionais e de amizade no Brasil do que na
Suécia, não?
4. Regiões do mundo que, por razões distintas, quase sempre ignoramos, como
Ásia e África, serão cada vez mais importantes. Alguém aqui poderia me
dizer quais são as cinco maiores cidades da China (Shanghai, Beijing,
Guangzhou, Shenzhen e Tianjin) ou a capital da Zâmbia (Lusaka)? Quem
fala mandarim aqui?
5. Finalmente, por que é bom nos abrirmos para o mundo. “As viagens formam
a juventude”, diz o ditado. E a formação da juventude não é, precisamente,
uma das mais importantes funções da Universidade? Precisamos formar
dentro da Universidade pesquisadores e empreendedores que pensem e
ajam tendo o mundo como seu objetivo. Não é possível que um jovem pobre
da favela chute bola pensando em ser contratado para jogar no Exterior e
nossos jovens empreendedores universitários pensem suas empresas para
vender em Barão Geraldo. Precisamos, também, formar jovens com profundo
conhecimento das línguas e culturas de outros países, capazes de formular
as políticas brasileiras para as diversas regiões do mundo.
Em torno a temas de interesse comum de pesquisa, a Universidade
deveria se associar com universidades em outros países, afim de oferecer
cursos binacionais e bilíngües. Professores daqui ensinando lá, professores
de lá ensinando aqui, e a burocracia acadêmica sendo obrigada a
reconhecer que há inteligência para além do Tilli Center e conceder diplomas
válidos em dois ou mais países. Trocas de estudantes (de graduação e pós),
pesquisadores e professores seriam muito benéficas no sentido de preparar
nossos futuros líderes para os desafios de um Brasil mais integrado no
cenário mundial. É entre os jovens de hoje que se formarão os nexos sociais
dos líderes de amanhã. Que estes nexos sejam mais do que locais, que
sejam internacionais.
Um programa de abertura internacional pode tomar muitas direções,
seja no sentido de abrir nossas Universidades para o Norte, seja no sentido
de integrá-las mais fortemente ao Sul. (Norte e Sul usados aqui não como
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pontos cardeais, mas como indicadores de desenvolvimento...). Deixo à
imaginação do leitor todas as possibilidades.
Mas, precisamos mudar a burocracia acadêmica para facilitar a
mobilidade de estudantes e pesquisadores. Nem todas as restrições que
enfrentamos são internas. A proibição de contratação de um professor
estrangeiro é constitucional, por exemplo, um dos muitos obstáculos que
colocamos a nós mesmos, fruto de uma visão acanhada do mundo e,
sobretudo, de nosso papel nele. Ora nos sentimos inferiores, invadidos,
‘roubados”, ora nós sentimos tão superiores que um diploma de Harvard
precisa ser reconhecido pela Universidade de Santa Maria do Caça-Raposas
para ter validade no país. Assim não dá. É obrigação da Universidade formar
pessoas que tenham a dimensão correta de nosso potencial. E isto se faz,
abrindo a Universidade para o mundo.
Terceiro comentário: abrindo janelas para o mundo olhar para dentro da
Universidade.
Já me alonguei demais. Minha terceira provocação será breve. As
tecnologias estão aí, plenamente instaladas e disponíveis, para a
Universidade abrir, eletronicamente, suas janelas para que o mundo possa
olhar para dentro dela rotineiramente. Os cursos e seminários oferecidos
pela Universidade deveriam ser colocados, todos eles, paulatinamente, na
Internet, para quem quiser acompanhá-los. Notem que isto não é uma
proposta de educação à distância formal. Mas, uma proposta para que as
pessoas, inclusive os contribuintes que nos pagam, possam espiar o que
acontece aqui dentro e se beneficiar do conhecimento de nossos grandes
professores e pesquisadores.
Em resumo, estas são minhas três provocações. Olhando para dentro,
seria ótimo mudar o modelo de governança das Universidades públicas,
trazendo executivos acadêmicos de fora. Olhando para fora, é necessário
desenvolver uma visão mais ambiciosa de nosso papel no mundo e
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incorporá-la na formação de nossos futuros líderes (e dos de outros países).
E, na interface, é preciso abrir as janelas da Universidade para que todos os
curiosos possam olhar para dentro dela.
Agradecimentos – Em primeiro lugar, quero agradecer aos colegas
que me distinguiram com o título de Profesor Emérito. Em segundo lugar,
quero agradecer aos organizadores do evento e, em especial, ao Magnífico
Reitor, Prof. Fernando Costa, e ao Pró-Reitor de Pesquisa, Prof. Ronaldo Pilli
pelo convite. Finalmente, quero agradecer ao Prof. John L. Heilbron, amigo
dos tempos de estudante de pós-graduação, renomado professor e
historiador da Ciência, que galgou os degraus da carreira administrativa
acadêmica, Vice-Chanceler Emérito da Universidade da Califórnia em
Berkeley, por ter me apresentado, cedo na vida, a pequena jóia que se
chama “Microcosmographia Academica, Being a guide for the young
academic politician”, do eminente filósofo F. M. Cornford.
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