Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica

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Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica
XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E
NORDESTE e PRÉ-ALAS BRASIL.
Teresina – PI / 2012
Grupo de Trabalho: GT08 - Patrimônio cultural, comunidades tradicionais e
sustentabilidade.
Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade
étnica, memória e preservação”.
Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e
preservação”
Igor Luiz Rodrigues da Silva - UFS1
[email protected]
Com o processo de redemocratização do Estado brasileiro no final
dos anos 80, e com a formulação e aprovação da Constituição Federal de
1988, as comunidades quilombolas passam a ter mais visibilidade e a buscar
mecanismos que contribuam para assegurar os direitos garantidos no Art.68º
do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), como também a
garantia e preservação das manifestações culturais dos afro-brasileiros através
dos artigos 215º e 216°. Este trabalho buscou compreender quais os limites
étnicos são impostos pelo grupo, para o reavivamento, manutenção de sua
identidade e fronteiras étnicas. E como e em que contextos esses mecanismos
são usados e conduzidos no processo de constituição da comunidade
quilombola Chifre do Bode e sua preservação. Foi usada a observação
participante, história oral e imagens fílmicas.
Palavras - Chave: Identidade, memória e preservação.
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Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL),
atualmente mestrando do curso de Antropologia Social da Universidade Federal de
Sergipe (UFS).
Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação”
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1 - Introdução
O presente trabalho teve como prioridade, analisar a comunidade
quilombola “Chifre do Bode”, relevando três aspectos que consideramos
importante no cotidiano da comunidade, tais como a identidade étnica,
territorialidade, e juntos, memória e preservação.
As Comunidades Quilombolas são fontes de riqueza e valores
culturais muito significativos para a construção da sociedade brasileira, sua
organização social, política e econômica, são desafiadoras para a ordem social
moderna, sua conjuntura permite com clareza estabelecer o ressurgimento ou
até mesmo o aparecimento de um modelo diferenciado de sociedade.
A configuração do mundo atual, com todos os aparatos tecnológicos
proporcionados pela globalização e o uso cada vez mais frequente da internet,
estão fazendo com que haja uma certa homogeneização das culturas, de
tradições. Mais frente a tais processos se pode verificar certas reconfigurações
e até mesmo uma maior restruturação de valores e das identidades que
andavam meio esquecidas, entre elas, a identidade étnica e cultural das
comunidades tradicionais quilombolas.
A história brasileira conta como se deu a formação dos primeiros
núcleos habitacionais dos escravos fugidos das grandes fazendas, que na
segunda metade do século XVI adotavam como mão-de-obra, como força de
trabalho, os escravos capturados no continente africano, para serem utilizados
como forma de ganho e acumulo de riqueza dos grandes barões de açúcar do
no nordeste do país, de café no sudeste, e etc. Os primeiros escravos trazidos
para o Brasil foram encaminhados para as províncias de Pernambuco e Bahia,
se localizando nesses portos os principais mercados de trafico de material
humano.
Passando por todo um processo de atrocidades e descaracterização
das suas identidades culturais e étnicas, os escravos eram tratados como
seres inferiores pelos seus “donos”, que ao precisarem dos seus serviços,
tratavam os escravos como simples mercadorias e um produto de compra e
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venda, sem que eles tenham a menor possibilidade de defesa e de condições
humanas de sobrevivência.
É através desses processos de exclusão, de castigos, de viverem na
miséria absoluta e extrema, que se tem a obtenção da vontade pela liberdade e
a possibilidade de estratégia de fuga, e são essas fugas, que serão essenciais
para a formação dos primeiros quilombos. Muitos foram os núcleos quilombolas
existentes no país nesse período áureo da escravidão, o principal deles, o
Quilombo dos Palmares, dentro dessa ideia de quilombo como lugar de
resistência, caracterizando por certa configuração politica, econômica, social e
religiosa, aparece como maior símbolo, tanto pela sua grandiosidade territorial
e habitacional, como também pela sua longa duração.
Hoje as comunidades quilombolas são grupos sociais que detém
uma identidade étnica que os diferenciam dos outros grupos sociais:
As comunidades quilombolas se caracterizam
pela pratica do sistema de uso comum de suas
terras, concebidos por elas como um espaço
coletivo e indivisível que é ocupado e explorado
por meio de regras consensuais aos diversos
grupos familiares que compõem as comunidades,
cujas relações são orientadas pela solidariedade e
ajuda mutua. (PBQ, 2008: 11)
A partir da década de 80, em meio ao processo de redemocratização
do Estado Brasileiro, houve intensos movimentos que lutavam pela liberdade
de expressão, pelo fim da censura, pelos direitos das mulheres e tantos outros,
até que em 1988, foi promulgada a Constituição Federal do Brasil, uma
constituição baseada em direitos e deveres individuais e coletivos.
Entre esse direitos coletivos, está posto os direitos das comunidade
quilombolas a partir do Artigo 68º do Ato Disposições Constitucionais
Transitórias (ADCT) que garante a posse definitiva da propriedade aos grupos
que estejam ocupando devidamente suas terras. Como também a preservação
e a conservação cultural dos afro-brasileiros, tanto bens materiais e imateriais,
regulamentados nos Artigos 215º e 216º da Constituição Federal de 1988.
O Artigo 68º prescreve que: “[...] remanescentes das comunidades
dos quilombos, os grupos, os grupos étnicos-raciais, segundo critérios de auto-
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atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais
especificas, com presunção de ancestralidade negra e relacionada com a
resistência à pressão sofrida”.
O quadro atual dos remanescentes quilombolas é uma resposta as
situações de conflito que ainda persistem contra grupos sociais e econômicos
que tentam impor novas formas de controle politico. Várias são as
comunidades quilombolas existentes nos estados de Alagoas e Sergipe,
entretanto para ilustrar como exemplo de resistência, de quilombos como
comunidades baseadas nos laços familiares, construídos a partir de um padrão
de vida determinado pelo espaço geográfico e pelo momento histórico, há a
comunidade quilombola “Chifre do Bode”.
A comunidade quilombola “Chifre do Bode”, está localizada no
município de Pão de Açúcar, situada na zona rural do município, distante do
centro da cidade aproximadamente uns 22km, fazendo divisa com o município
de Palestina, por onde é possível chegar até lá, como também pelo povoado
Machado, pertencente ao município de Pão de Açúcar. A população estimada é
de mais de 300 habitantes, distribuídos em 66 famílias. Esta comunidade é
uma das mais antigas do estado de Alagoas, sendo que seu reconhecimento
só foi possível pelos órgãos governamentais em 2006 através da Fundação
Palmares.
O nome da comunidade tem haver com a forte influência da criação
de bodes, desenvolvida durante o período de formação do lugar e que
perdurou por gerações. A presença de bodes era muito forte na comunidade, o
que permitia que esses animais fossem criados livremente pela população na
comunidade, todos os finais de semana havia uma reunião e ai comiam carne
de bode e os chifres eram juntados e em grande quantidade depois eram
queimados. A população sobrevive hoje da agricultura familiar, que não é bem
desenvolvida, e também através da criação de animais, de pequenos animais,
como galinha, umas poucas cabeças de gado, porco, peru, e etc. Ao longo do
tempo de formação e do crescimento da comunidade, os modos de conduzira a
vida, com gestos simples, em harmonia com a terra, de certo são
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características que os deixam mais ligados com as histórias vividas e contadas
pelos antepassados.
O interesse na pesquisa seu deu primeiramente por tentar contribuir
e aumentar o campo bibliográfico sobre comunidades quilombolas em, especial
em Alagoas e em Sergipe, tendo em vista do que foi produzido sobre
quilombos ficou basicamente restrito a comunidades que se localizam no
entorno da Serra da Barriga, em União dos Palmares, não se sabendo nada ou
quase nada sobre as comunidades espalhadas pelo sertão, zona da mata e
agreste do estado. Então se tornou viável a construção teórica sobre o
cotidiano, sobre a realidade, trazendo a tona novos aspectos situacionais
produzidos a partir das novas configurações impostas com o advento da
globalização e democratização do Brasil.
É nesse contexto complexo, habitualmente sem fronteiras, que hoje
vivem milhares de pessoas, que possuem uma certa identidade étnica, mas
que continuam passando por um processo de exclusão, de submissão, de
esquecimento. Por ficarem um longo período as margens da sociedade,
acreditamos que este trabalho possa contribuir de forma direta para que os
quilombolas possam contar de forma simples, mas ao mesmo tempo rica, os
relevantes traços e aspectos indenitários, culturais, políticos e econômicos, que
fazem deles um projeto singular de comunidade e de valorização do seu
passado histórico.
É deste modo que o trabalho visa abarcar os principais pontos que
denotam para as particularidades decorrentes e especificas da comunidade
tradicional “chifre do Bode”, e como essa sociedade vem enfrentando o
cotidiano e as lutas travadas perante os fatores do reconhecimento e
principalmente pelo reconhecimento da posse definitiva da terra e que em
outros tempos pertenceram aos seus antepassados, como também a
preservação da memória coletiva, concebida como patrimônio imaterial e fonte
de riqueza histórica.
No campo teórico, alguns autores serviram de base para a
construção deste artigo, bem como servem de aparato para outros trabalhos
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que seguem sendo elaborados nessa temática. A construção teórica se utiliza
de autores como Alfredo Wagner Berno de Almeida- 2002; José Mauricio
Andion Arruti- 1997; Eliane Cantarino O’Dwyer- 2002; Dirceu Lindoso-2007;
Maria Albenize Farias Malcher-2006; Ana Márcia de Farias-2007 e tantos
outros. Estes dão subsídios importantes para o entendimento do que hoje se
pode chamar de Comunidades Quilombolas e suas reorganizações social,
política e cultural, são literaturas atuais e que caminham sempre no sentindo da
nova ordem étnica dessas populações tradicionais.
Já como marco teórico para a discussão de identidade e identidade
étnica são utilizados: Stuart Hall-2005; Manuel Castells-2000; Fredrik Barth1998.
Além do mais utilizamos outros autores que fornecem contribuições
importantes tanto para a metodologia da pesquisa e também de dados
fornecidos pelo PBQ 2005 e 2010, pelo Programa de Patrimônio Imaterial
Brasileiro: Legislação e políticas estaduais de 2008.
Sendo assim, o presente artigo foi construído de forma a demonstrar
que, embora possuam um passado histórico amplamente rico, e não seja mais
um fator decisivo para serem “classificados” e identificados enquanto
detentores de uma identidade diferente, em algum momento esse passado
histórico volta e assume um caráter de “sinais ou signos manifestos”,
segundo a definição de Barth:“ Sinais ou signos manifestos- os traços
diacríticos que as pessoas procuram e exibem para demonstrar sua identidade,
tais como o vestuário, a moradia, ou o estilo geral de vida”. (BARTH; 1998,
p.194 ), agora na forma de narrativa coletiva, de um passado comum, da
recriação e reinvenção de tradições, e de uma memória histórica¹, assumindo
no entendimento cultural e antropológico, a forma de um patrimônio imaterial
do Brasil, e que no entanto não vem recebendo a devida atenção de órgãos
reesposáveis por emitir os títulos cabíveis.
A metodologia emprega no presente trabalho se dá através da
revisão bibliográfica de autores já citados anteriormente, como também através
da pesquisa de campo, que tem sua importância porque permite ao
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pesquisador a descoberta de ricos detalhes que não seriam possíveis fora do
contexto empírico. Para tanto, é necessário viver a experiência de esta lá e
identificar como objetivos primordial como os indivíduos se posicionam e se
definem em oposição ao outro, que esta fora do grupo. É através da pesquisa
de campo que o pesquisador coloca em pratica toda preparação feita na etapa
inicial da pesquisa, como a construção teórica, através de uma boa analise
bibliográfica. Ir a campo é está preparado para se deparar com as novas
possibilidades e fatos que serão oferecidos pelo próprio campo.
Outro método de pesquisa empregado é a observação participante,
que nada mais é do que, a participação do pesquisador na realidade do objeto
a ser investigado. Esse método permite observar fisicamente o conglomerado
de situações e símbolos que circundam o cotidiano do grupo, permitindo assim
a compreensão da vida particular, através do processo de se colocar no lugar
do outro. Para tanto o pesquisador deve neste espaço social aparentemente
desconhecido, ficar livre de qualquer forma de prejulgamentos, pois da mesma
maneira que inferimos na vida social dos pesquisadores, há também certa
modificação pessoal.
Também foram utilizados recursos audiovisuais, tais como imagens
fílmicas e fotográficas, que corresponde a uma contribuição importante à
pesquisa em ciências sociais, pois ela permite e obriga a uma percepção
diferente do que se costuma presenciar em outros métodos de pesquisa.
2. A Constituição de 1988 e as Comunidades Quilombolas
A partir da década de 80, em meio ao processo de redemocratização
do Estado brasileiro, houveram intensos movimentos que lutavam pela
liberdade de expressão, pelo fim da censura, pelos direitos iguais de negros,
mulheres, de culto. Com ênfase no direitos garantidos as Comunidades
Quilombolas, a Constituição Brasileira reservou o Artigo 68º do Ato Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT) que garante a posse definitiva da
propriedade aos remanescentes que estejam ocupando devidamente suas
terras.
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Como também a preservação cultural dos afro-brasileiros, tanto de
bens materiais e imateriais, regulamentados nos Artigos 215º e 216º da CF.
Como também na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), no Decreto nº 4.887/2003, na Instrução Normativa n°49 do Instituto
Nacional
de
Colonização
e
Reforma
Agrária
(INCRA/
Ministério
do
Desenvolvimento Agrário), nas Portarias nº 127 e nº 342 de 2008, e na Portaria
da Fundação Cultural Palmares nº98 de 2007.
O conceito de remanescentes das comunidades de
quilombo, à luz do Art. 68º do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, da Constituição
Federal, refere-se “aos indivíduos, agrupados em
maior ou menor número, que pertençam ou
pertenciam a comunidades, que portanto, viveram,
vivam ou pretendam ter vivido na condição de
integrantes delas como repositório das suas
tradições, cultura, língua e valores, historicamente
relacionados ou culturamente ligados ao fenômeno
sócio-cultural quilombola. (PBQ, 2010; p.1)
Neste processo de reconhecimento garantido pela Constituição de
1988, dois órgãos governamentais são responsáveis por certificar e atestar
quem são as populações que podem ser inseridas no quadro conceitual
quilombola, um é o INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária e a Fundação Palmares. O primeiro responsável por dar a titularidade
da terra através de uma intervenção e um mapeamento territorial. O segundo,
responsável por certificar as comunidades como de descendentes quilombolas.
A certificação das comunidades remanescentes de
quilombos está diretamente ligada ao resgate
territorial
das
comunidades
tradicionais
quilombolas, como também o seu reconhecimento
pela
ordem
jurídico-institucional
vigente,
permitindo sua inserção nos planos públicos de
ordenação e fomento para o desenvolvimento
regional. [...] (FARIAS, 2007; p.86)
Como forma de garantir o efetivo cumprimento das leis postuladas
em 1988, recentemente o Governo Federal sancionou o Decreto 4.887 de 20
de novembro de 2003, que regulamenta o Artigo 68º da C.F., onde o Artigo 2º
da resolução considera: “remanescentes das comunidades dos quilombos, os
grupos étnicos raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória
histórica própria, dotados de relações territoriais especificas, com presunção de
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ancestralidade negra e relacionada com a resistência à opressão histórica
sofrida”. (C.F; 1988)
O Decreto concebe as comunidades quilombolas
como núcleos de resistência cultural dos quais são
remanescentes os grupos étnicos raciais que
assim se identificam. Com trajetória própria,
dotados de relações territoriais especificas, com
presunção de ancestralidade negra relacionada
com a luta contra a opressão histórica sofrida,
esses grupos se auto-determinam comunidades
de quilombos, dados os costumes, as tradições e
as condições sociais, culturais e econômicas
especificas que os distinguem os outros setores da
coletividade nacional. O Decreto apresenta,
portanto, uma dimensão de existência atual
dessas comunidades. (PBQ,2010; p. 17)
Com essas regulamentações fica a cargo do poder público seguir
quatro pontos para agir em conjunto com as comunidades quilombolas. O
primeiro, através da regularização fundiária por competência do INCRA; o
segundo ponto está relacionado à infra-estrutura, com a construção de obras
que atendam as demandas dos remanescentes; o terceiro tem como ponto
central o desenvolvimento social e econômico, através do modelo sustentável
de produção de acordo com a especificidade de cada comunidade; e o quarto
ponto é mais de caráter politico e pontua o controle e participação social dos
quilombolas nos processos deliberativos e de tomadas de decisão.
O quadro atual dos remanescentes quilombolas é uma resposta as
situações de conflito que ainda persiste contra grupos sociais e econômicos
que tentam impor novas formas de dominação e controle politico, acreditando
assim que, hoje as comunidades devem ser também entendidas mais como um
lugar de posicionamento político determinado, e não tanto como um lugar
exótico.
Acontece, porém, que o texto constitucional não
evoca apenas uma “identidade histórica” que pode
ser assumida e acionada na forma da lei. Segundo
o texto, é preciso, sobretudo, que esses sujeitos
históricos presumíveis existam no presente e
tenham como condição básica o fato de ocupar
uma terra, que, por direito, deverá ser em seu
nome titulada (como reza o artigo 68º do ADCT).
Assim, qualquer invocação do passado, deve
corresponder a uma forma atual de existência, que
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pode realizar-se a partir de outros sistemas de
relações que marcam seu lugar em um universo
social determinado. (O’DWYER, 2002; p. 14)
3. A Terra como Fonte de Reconhecimento Quilombola
Os Quilombos devem ser entendidos como uma comunidade
baseada nos laços familiares, construídas a partir de um padrão de vida
determinados pelo espaço geográfico e pelo momento histórico. Quando se
fala em espaço geográfico e momento histórico para caracterizar a nova
realidade quilombola, estamos postulando que diferente do que ocorria nos
tempos da escravidão, hoje a população afro-brasileira existente no país vive
em liberdade, os descendentes ainda sofrem com as injustiças, através do
sistema de dominação, marginalizando e mantendo o poder.
É através dessas praticas que embora se tenham um contexto
histórico diferenciado, com o processo capitalista e a globalização, não há uma
mobilidade social grande para os remanescentes de quilombos no mercado de
trabalho. Para uma definição de comunidade quilombola no atual contexto
social, adotaremos uma explicação usada pela Associação Brasileira de
Antropologia (ABA), para de delimitar tais comunidades.
Para a Associação Brasileira de Antropologia a
categoria quilombo deve compreender todos os
grupos que desenvolveram praticas de resistência
na manutenção e reprodução dos deus modos de
vida característicos num determinado lugar cuja
identidade se define por uma referencia histórica
comum, construída a partir de vivências e valores
partilhados. Nesse sentido, eles se constituem em
“grupos étnicos”, isto é configuram um tipo
organizacional que confere pertencimento através
de normas e meios empregados para indicar
aflições ou exclusão, cuja territorialidade é
caracterizada
pelo
“uso
comum”,
pela
“sazonalidade
das
atividades
agrícolas,
extrativistas e outras e por ocupação do espaço
que teria por base os laços de parentesco e
vizinhança
acentuados
em
relação
de
solidariedade e reciprocidade. (ASSUNÇÃO,
2009; p. 15)
Essa definição se assenta sob uma realidade em que não se pode
aplicar uma denominação histórica. O que de certa forma é justificável
compreender, é a relação que se tem entre identidade e as reminiscências do
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passado para explicar as relações sociais construídas, que determinam um
posicionamento situacional dos remanescentes quilombolas em uma esfera
permanente de conflito com o outro. Neste processo de demarcação de
fronteira, a terra e sua devida ocupação tem sua contribuição para também
afirmar a identidade da comunidade. O uso da terra pelas comunidades
quilombolas não se faz de modo individual, mas de uso comum de todo o
grupo.
O território é o elemento de construção da
identidade étnica, que é o ponto mais importante
da estrutura social. A permanência na terra não se
faz regulado por categorias formais de propriedade
e sim, pelo próprio grupo que determina, através
do “direito Costumeiro”, as regras que orientam
todos os planos da vida social. As formas de
acesso a terra, incluem as dimensões simbólicas e
as relações sociais. A estreita relação do grupo
com a terra representa uma relação do grupo com
a terra representa uma relação social bastante
complexa e aponta para a existência da terra
como território. (MALCHER, 2006; p. 08)
Esse uso comum da terra é o que dá uma primeira diferenciação em
relação a outros agentes sociais, posto que fornece uma construção do sujeito
coletivo e prioriza a recriação histórica de lutas para o reconhecimento pela sua
auto- identificação.
A terra é o elemento fundamental e que singulariza o modo de viver
e produzir das comunidades quilombolas. “Ancestralidade, resistência,
memória, presente e futuro sintetizam o significado das terras para essa
comunidade, fortemente marcadas pela tradição e respeito aos bens naturais
como fonte garantidora de sua reprodução física, social e econômica.” (PBQ,
2010; p.06).
A terra em si para os remanescentes quilombolas demarca um lugar
sagrado e de auto- afirmação como coloca Malcher:
Assim o território quilombola é entendido como
resultante de elementos étnicos que se
externalizam nas relações construída com e no
território. Trata-se da reinvenção de elementos
étnicos-culturais que conduzem a vida e dão
sentido de pertencimento do lugar. Dessa forma, a
terra na condição de território étnico, tem
assegurando, ao longo do tempo, o sentimento de
pertença, de identidade, a um lugar e a um grupo,
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a posse coletiva da terra e o desenvolvimento
coletivo. (MALCHER, 2006; p. 09)
Assim a luta pela terra é fundamental para a manutenção e
valorização da identidade étnica quilombola atuando diretamente na esfera
politica e organizacional que define estratégias para o resgate histórico da
cidadania. “No processo de construção da identidade no território, as
identidades são construções de caráter simbólico e domínio de luta politica,
buscando afirmar a diferença do grupo, a fim de garantir a continuidade dos
seus valores e modos de vida”. (MALCHER, 2006; p.10).
Para tanto a terra se torna um elemento essencial, dotada de
sentido, de significados, com um espaço comum e não meramente um local
físico e demarcado, mais antes de tudo é a partir dela que se vivem as relações
de vida, das memórias do passado e do presente, do cotidiano.
Portanto, terra e quilombo são troncos
entrelaçados de uma mesma árvore cujas raízes
encontram-se no âmago da contraditória e
complexa formação histórica e social do Brasil. A
concentração fundiária alimenta todas as barreiras
levantadas contra a promoção da cidadania para
as
comunidades
quilombolas.
Barreiras
ideológicas, políticas, jurídicas e administrativas
cujos os resultados são conflitos de interesse
fomentados a fim de procrastinar toda e qualquer
ação com vistas à regularização fundiárias dos
quilombos. (PBQ, 2010; p.07)
É importante destacar que a questão de conflitos relacionados a
terra no país, vai além de encontrar soluções para o reconhecimento e
regularização dos limites das áreas das terras de preto. É uma situação ainda
maior, em decorrência dos vários problemas sociais instalados no Brasil nos
períodos remotos, não ficando assim restritos aos elementos étnicos e culturais
apenas e sim, pensar a questão agraria propiciando uma analise em que esteja
relacionados esses dois fatores.
Esse procedimento de pensar a estrutura agrária
relacionalmente revela que ela não pode ser mais
dissociada de fatores étnicos [...]. Um território
quilombola não corresponde necessariamente a
extensão de um ou vários imóveis rurais ou a um
numero estimado de estabelecimentos, mesmo
que as situações a ele referidas aparentemente
assim sugiram. (ALMEIDA, 2002; p. 71)
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Por mais que se tenha avançado em direção ao reconhecimento das
terras de quilombos, e embora já existam aparatos jurídicos, antropológicos,
através de laudos, há uma predominância muito forte da defesa da propriedade
privada, deixando de lado uma visão mais social e cooperativa da terra, do seu
uso comum e em grupo.
4. Aspectos Identitários: de Stuart Hall a Fredrik Barth
Em seu livro: “A Identidade Cultural na Pós-modernidade” (2005),
Hall coloca abertamente que as discussões acerca do conceito de identidade
na comunidade cientifica de ciências sociais, em especial a sociedade
sociológica, não chegou a um consenso. Para Hall o argumento principal a ser
defendido, é de que no mundo globalizado as identidades estão passando por
um processo de deslocamento e fragmentação e isto tem, segundo ele, levado
alguns teóricos a afirmarem que as identidades estão em um estado de
esgotamento, de crise.
Um tipo de mudança estrutural está transformando
as sociedades modernas no final do século XX.
Isto esta fragmentando as paisagens culturais de
classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e
nacionalidade, que no passado, nos tinham
fornecido sólidas localizações como indivíduos
sociais. Estas transformações estão também
mudando nossas identidades pessoais, abalando
a ideia que temos de nós próprios como sujeitos
integrados [...]. Esse duplo deslocamento descentração dos indivíduos tanto do seu lugar no
mundo social e cultural quanto de si mesmos constitui uma “crise de identidade” para o
individuo. (HALL, 2005; p. 09)
O que se procura argumentar é a ideia de que se está vivenciando
uma mudança comportamental e social dos indivíduos nas chamadas
“sociedades modernas”, uma mudança que se observa rearranjos dentro dos
sistemas econômicos, culturais e políticos, proporcionados pela globalização,
acarretando também um arranjo sobre as identidades. Assim nos dias atuais,
temos um complexo jogo de transformações, sobre as quais recai
principalmente ao poder da autonomia do individuo sobre si mesmo e sobre
suas praticas no cotidiano.
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Outro ponto fundamental dessa analise proporcionada por Stuart
Hall, é de que, segundo ele, nas sociedades modernas embora haja uma
tendência para que as identidades nacionais passem por cima das identidades
culturais mais particulares nesse processo intenso da globalização, ao
contrario,
as
identidades
mais
particulares
mecanismos de defesa na sua própria história.
sempre
tem
encontrado
Hall assinala para uma
dualidade entre o poder da estrutura global e uma forte tendência para os
rearranjos locais, em que segundo o próprio autor, se pode encontrar uma
maior valorização e uma maior aproximação em relação aos aspectos
peculiares do campo “local”, como um dos aspectos, alicerces para a
formulação de novos produtos de mercado.
Ou seja, ao mesmo tempo em que se tenta avançar para um
complexo jogo de homogeneização de identidades étnicas e seus campos de
significados, é possível também usar sua rica produção cultural, como mais um
elemento para o enriquecimento de produtos de mercado. “A globalização (na
forma da especialização flexível e da estratégia de criação de “nichos” de
mercado), na verdade, explora a diferenciação local. Assim ao invés de pensar
no global como “substituindo” o local, seria mais acurado pensar numa nova
articulação entre “o global” e “o local””. (HALL, 2005; p. 77)
Já Castells, em seu livro: “ O Poder da Identidade”, (2000), o autor
focaliza suas argumentação centrando-se
em fatores que delimitam o
processo construtor do pertencimento do individuo a certa identidade. Esses
fatores são, como bem coloca Castells, desde fatores históricos, biológicos e
geográficos a fatores de cunho religioso e de memória coletiva.
A construção de identidade vale-se de matériaprima fornecida pela história, geografia, biologia,
instituições produtivas e reprodutivas, pela
memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos
aparatos de poder e revelações de cunho
religioso. Porém, todos esses materiais são
processados pelos indivíduos, grupos sociais e
sociedades, que reorganizam seus significados em
função de tendências sociais e projetos culturais
enraizados em sua estrutura social, bem como em
sua visão de tempo e espaço. (CASTELLS, 2000;
p. 23)
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É importante ressaltar que para afirmar a validade da identidade não
é necessária a combinação de todos os elementos citados, mais antes de tudo,
o domínio que se terá sobre alguns deles, de como eles serviriam para passar
a ser um mecanismo eficaz na defesa dos ideais de pertença, a certa
particularidade que vá de encontro a posturas mais universalistas de agir e
pensar. “Neste caso, a construção da identidade consiste em um projeto de
vida diferente, talvez com base em uma identidade oprimida, porém
expandindo-se no sentido de transformação da sociedade como prolongamento
desse projeto de identidade”. (CASTELLS, 2000; p. 26)
O que na verdade está em jogo em todo esse processo, tem haver
com a forma pela qual as estruturas sociais convencionais dominantes, agem
em relação aos setores ditos e classificados como “marginalizados”, ou as
chamadas “minorias”. Sendo assim esses setores reagem em oposição,
através da construção e reinvenção de significados que em outro momento
foram eficazes para a manutenção de identidade própria, de sua autonomia
social e cultural, estabelecendo os limites de suas fronteiras com os outros.
Castells nos oferece um tipo de identidade, que seria uma identidade típica da
sociedade atual, a “Identidade de resistência” e a “Identidade de projeto”.
Identidade de resistência: criada por atores que se
encontram
em
posições
ou
condições
desvalorizadas e ou estigmatizadas pela lógica da
dominação, construindo assim, trincheiras de
resistência e sobrevivência com base em principio
diferentes dos que permeiam as instituições da
sociedade, ou mesmo opostas a estes últimos [...].
Identidade de projeto: quando os atores sociais,
utilizando-se de qualquer tipo de material cultural
ao seu alcance, constroem uma nova identidade
capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao
fazê-lo, de buscar a transformação de toda a
estrutura social. (CASTELLS, 2000; p. 24)
Essas duas categorias identitárias podem ser atreladas as
comunidades quilombolas, pois são comunidades que são excluídas pela
sociedade dominante e vivem uma vida diferente do modelo tradicional de
sociedade capitalista, um modelo baseado na competição de mercado, a
concorrência de produtos e entre pessoas e indivíduos, altamente centrada nos
processos de exclusão e compra e venda de produtos, como também, são
Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação”
16
comunidades que possuem certo aparato cultural enraizado nos hábitos
costumeiros e que ao longo do tempo vêm se transformando para acompanhar
o ciclo atual de desenvolvimento da nação.
De certo, as fronteiras parecem hoje serem difíceis de identificação,
ocasionadas pelo vários processos globais, mesmo assim, se aponta para o
alargamento da participação política em virtude de estarem reivindicando certo
tipo de identidade, antes marginalizada e tomada no esquecimento.
Para autores sociais excluídos ou que tenham
oferecido resistência à individualização da
identidade relacionada à vida nas redes globais de
riqueza e poder, as comunas culturais de cunho
religioso, nacional ou territorial parecem ser a
principal alternativa para a construção de
significados em nossa sociedade.
Aparecem
como reação a tendências sociais predominantes,
às quais opõem resistência em defesa de fontes
autônomas de significado. Desde o principio,
constituem identidades defensivas que servem de
refúgio e são fontes de solidariedade, como forma
de proteção contra um mundo externo hostil. São
construídas culturalmente, isto é, organizadas em
torno de um conjunto especifico de valores cujo
significado e usos compartilhados são marcados
por códigos específicos e auto-identificação.
(CASTELLS, 2000; p. 28)
5. A Identidade Étnica
No
Brasil,
quando
se
pretendia
discutir
o
processo
de
reconhecimento tanto dos remanescentes das comunidades indígenas, quanto
das comunidades remanescentes de quilombo, era recorrente a necessidade
de
caracteriza-las
por fatores
biológicos
ou
histórico-culturais.
Assim
acarretando um processo não condizente com a realidade investigada, pois se
tais características forem tomadas como as únicas possíveis para o
reconhecimento, é apontar para o desaparecimento de tais comunidades
tradicionais, especialmente no nordeste, onde os índios e os descendentes dos
povos quilombolas não possuem mais traços físicos e biológicos, que eram
fortemente encontradas nos seus antepassados, como cor do cabelo, formato
do rosto, tipo de cabelo e cor de pele.
O processo de reconhecimento das identidades quilombolas no
contexto atual vai além da identificação de certos traços culturais quem em
outro momento histórico foram mais acentuados e perceptíveis. O conceito
Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação”
17
estabelecido para classificar uma comunidade como quilombola nos tempos da
escravidão, não podem mais ser utilizados, pois se apresenta equivocado e
parado no tempo e frigorificado como diz, Alfredo Wagner Berno de Almeida:
O recurso de método mais essencial, que suponho
deva ser o fundamento da ruptura com a antiga
definição
de
quilombo,
refere-se
às
representações e praticas dos próprios agentes
sociais que vieram e constituíram tais situações
em meio a antagonismos e violências extremas. A
meu ver, o ponto de partida da analise critica é a
indagação de como os próprios agentes sociais se
definem e representam suas relações e praticas
em face dos grupos sociais e agências com que
integram. (ALMEIDA, 1999; p. 67)
Assim Alfredo Wagner propõe uma ruptura com tais definições
“frigorificadas”, para que se possa assegurar uma perspectiva jurídica e
antropológica, uma validação que condiz com as narrativas dos agentes sociais
quilombolas, e não validando apenas os escritos de fontes secundarias de
pesquisa. Atualmente é necessário entender não apenas os significados
culturais existentes e que permanecem com o passar do tempo, mas também,
é tentar compreender como são colocados os mecanismos que proporcione e
permanência e a sobrevivência dos remanescentes em suas comunidades,
numa relação constante entre identidade e memória, entre o “eu” e o “outro”.
Grande parte dos estudiosos que pretenderam analisar a questão da
identidade étnica, tiveram como uma de suas referencias teóricas a obra de
Barth. Este artigo também se utiliza das contribuições deste autor, afim de se
mapear a realidade investigada priorizando uma concepção de identidade que
se diferencie do modelo estático que se tinha ate os anos de 1969, ano da
publicação de sua obra. Barth prioriza uma concepção de identidade tendo
como foco motriz, o caráter mobilizatório dos indivíduos em decorrência das
mudanças ocorridas nos sistemas sociais.
Assim, o contato cultural e as mudanças ocorridas dentro dos grupos
étnicos como células identificadoras se dão pela defesa do seu campo de
atuação, ou fronteira étnica, o que vai diferenciar de outro grupo social, cultural
ou ate mesmo étnico. Para Barth, não se pode mais tomar como teor
classificatório da diversidade cultural, o isolamento geográfico e social de
Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação”
18
comunidades especificas, o que hoje em dia se torna evidente. É importante
afirmar que, com raras exceções, não existem sociedade que estejam em
completo isolamento.
É através da auto-definição e da auto-atribuição, que se tem a
constatação da identidade quilombola. Importante destacar que em outro
contexto, a identidade étnica de uma comunidade, seja ela quilombola, ou
indígena, era definida pelo outro, através de sinais externos como a
pigmentação da pele, e manifestações culturais produzidos pelos próprios
atores sociais. Assim para Barth, a auto- definição é a mola motriz que vai
orientar e organizar as interações dentro e fora do grupo. Segundo o autor, o
fator cultural deve ser levado em consideração não como um fator
determinante e classificatório da identidade étnica, mas sim como um resultado
da organização enquanto tal.
Pondo a ênfase no aspecto de “suporte cultural”,
a classificação de pessoas e grupos locais como
membros de grupos étnicos deve depender do
modo como demonstram os traços particulares da
cultura. Isto é algo que pode ser julgado
objetivamente pelo observador etnográfico, na
tradição cultural das áreas, indiferente a categorias
e preconceitos dos autores. As diferenças entre
grupos tornam-se diferenças nos inventários dos
traços; a atenção é dirigida a analise das culturas,
não a organização étnica. (BARTH, 1998; p. 191)
Barth coloca que não é o antropólogo ou o pesquisador que deve
estabelecer critérios, os traços culturais que devem ser utilizados para definir o
grupo étnico, é antes, o próprio grupo que definem quais serão os sinais
diacríticos que iram ser dados como atributivos e significativos na afirmação e
positivação da identidade.
“Nenhum desses tipos de “conteúdos” culturais deriva de uma lista
descritiva de traços ou de diferenças culturais; não podemos prever a partir de
princípios
evidentes
quais
traços
serão
realçados
e
tornados
organizacionalmente relevantes pelos atores”. (BARTH, 1998; p. 194).
Esse sinal de identificação criado pelos grupos permite sua
existência e cria mecanismo de interação com outros setores, acarretando
assim em uma identidade relacional ou situacional.
Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação”
19
As características que são levadas em
consideração não são a soma das diferenças
“objetivas”, mas somente aquelas que os próprios
atores consideram significantes [...]. O conteúdo
cultural das dicotomias étnicas parecem ser
analiticamente de duas ordens: 1. Sinais ou signos
os --- os traços diacríticos que as pessoas
procuram e exibem para demonstrar sua
identidade, tais como vestuário, a língua, a
moradia, ou o estilo de vida; 2. Orientações de
valores fundamentais --- os padrões de moralidade
e excelência pelos quais as ações são julgadas.
Desde que pertencer a uma categoria étnica
implica ser um certo tipo de pessoa que possui
aquela identidade básica, isso implica igualmente
que se reconheça o direito de ser julgado e de
julgar-se pelos padrões que são relevantes para
aquela identidade. (BARTH, 1998; p. 194)
Esses talvez tenham sido os principais pontos encontrados para
afirmar a contribuição da obra de Barth no que tange a questão da identidade
étnica, além é claro, do que ele define como fronteira étnica, que ele atribui
como o ponto central de sua pesquisa, como definidor do grupo étnico, e
devem ser entendidas como fronteiras sociais, e não fronteiras territoriais,
embora ele também não descarte esse recorte. “Além disso, a fronteira étnica
canaliza a vida social --- ela acarreta de um modo frequente uma organização
muito complexa das relações sociais e comportamentais”. (BARTH, 1998; p.
196).
As relações de reconhecimento tem por base o fortalecimento de
aspectos atributivos proporcionados pelos próprios agentes em um jogo de
exclusão e inclusão, que definem o dentro e fora, sem necessariamente atestar
para um isolamento de tempo e espaço, permitindo assim, esse contato com
outros grupos, e pessoas, a manutenção das fronteiras étnicas.
6- Memória e Preservação “Chifre do Bode”
Como já amplamente discutido, o que pode definir uma comunidade
como pertencente ou não a uma categoria étnica, não são mais, e apenas tão
somente, os seus traços culturais e sim as questões de auto-atribuição e autoidentificação dos próprios atores frente a outros grupos.
Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação”
20
Mais os fatores culturais constituem um fator importante para
salvaguardar todo um simbolismo e reminiscências africanas do passado,
neste sentido, é importante dar visibilidade a tais aspectos, mesmo que eles se
exprimam tão somente na memória da comunidade “Chifre do Bode”.
Hoje esses costumes e tradições encontram-se na memória coletiva
e particular do lugar. E ainda de forma mais tímida no jeito de comemorar,
rezar. É através da oralidade do grupo, principalmente da população mais
idosa, é que se tem a perpetuação dos saberes, dos causos e das danças,
danças tais como: o coco de roda, reisado, pastoril, samba de coco, também
através da produção artesanal.
Uma manifestação cultural muito importante dentro da comunidade,
era o samba de coco, dança praticada durante o levantamento das casas de
taipa da comunidade.
A dança servia para pisar, untar e amassar o barro que depois seria
jogado para a formação da paredes e acontecia sempre em regime de mutirão.
Ao longo do tempo essa manifestação deixou de acontecer, pois as
construções passaram a ser de alvenaria. Como relembra Marizeti, a líder da
comunidade em depoimento dado no ano de 2010:
[...] e o pior que tinha tudo isso, eu sou nova, mais
todo mundo dizia, os mais velhos sempre dizia que
existia, que me lembro, eu menina lembro que na
casa do meu pai, quando foram construir a casa lá
de taipa, uma parte lá da casa, eles combinavam,
todo mundo da comunidade e fazia um pagode,
um reisado, era essa valsa. Eu nunca cheguei a
dançar, mais eles contavam tudo que existia [...]
(MARIZETI, 2010)
.
As manifestações culturais folclóricas não são os únicos traços da
comunidade em relação aos seus antepassados, aos seus ancestrais, pois não
são as danças são lembradas, como também há ainda a confecção de
artesanato em palha e bordado, que denotam um aspecto singular do lugar,
assim como o uso das plantas medicinais. Como fornece em seu relato Dona
Soledade em 2010:
Eu fazia, hoje não trabalho mais não, muito
cansada, já fiz muito bordado, fazia roupa, balaio,
fazia tudo [...] ponto cheio, ponto de marca, ponto
Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação”
21
corrente que existia, só nunca fiz labirinto, ponto
de fabrica [...], o balaio era feito de cipó, só faço
agora quando aparece cipó bom, eu faço,
semanada passada fiz dois balaios. [...] Eu aprendi
com minha mãe, minha mãe fazia, nós somos três
filhas “mulé”, e todas três faz essas coisas [...]
(D. SOLEDADE, 2010).
É através da simplicidade demonstrada no modo de falar, de agir,
que se codifica o pertencimento ao grupo. Os membros do “Chifre do Bode”,
diferente do que se imaginava, não possuem uma característica particular
rudimentar, embora as vezes foi possível observar o uso de instrumentos
característicos do tempo em que a produção agrícola era baseada e
sustentada pelos moldes artesanais, como o uso de carros-de-boi, a confecção
de cestos de palha, do cultivo de hortaliças em canteiros, a criação de animais
soltos pelos quintais e cercas da comunidade.
No campo da preservação das tradições da realidade do “Chifre do
Bode”, há uma certa dependência de esperar a formação de grupos que
priorizem uma certa atividade e manifestação cultural, como bem focaliza
Marizeti, em sua colocação:
Até porque nunca foi formado um grupo, porquê
essas coisas de repassar, é quando tem algum
apoio de uma entidade, de alguém que diz: não,
vamos formar um, ai nunca foi formado, nem pra
essas coisas ai dos cestos que elas sabem fazer,
nem pra cultura, quase nada, nunca foi formado
um grupo [...] (MARIZETI, 2010)
As tradições estão hoje apenas presentes nas lembranças dos
remanescentes mais antigos. Embora exista a penetração de outros aparelhos
culturais na comunidade, há de forma mais positiva a reinvenção e restauração
dos valores ancestrais, que aparecem em cada momento de forma sentimental
e constituem a memória histórica do grupo para fortalecer sua identidade
quilombola.
No entanto, para uma defesa ampla dos seus valores culturais e
históricos, é necessária uma comunicação e uma articulação entre os
componentes do grupo afim de que a identidade que sempre foi oprimida possa
expandir, como também a busca de mecanismos que garantam e assegurem,
que possam ainda sustentar ao menos a memória coletiva do grupo. Neste
sentido, O Artigo 215º da Constituição Federal, garante a través do Estado
Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação”
22
Brasileiro, a preservação das manifestações das culturas populares, dos
indígenas e dos afro-brasileiros e de outros povos tradicionais que fizeram
parte da constituição e da formação da civilização brasileira. Já o Artigo 216º
se configura como:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro
os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de
expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III
– as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e
demais espaços destinados às manifestações
artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios
de
valor
histórico,
paisagístico,
artístico,
arqueológico,
paleontológico,
ecológico
e
cientifico. Parágrafo 1. O poder público, com a
colaboração da comunidade, promoverá e
protegerá o patrimônio cultural brasileiro por meio
de
registros,
vigilâncias,
tombamento
e
desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação. (CASTRO, 2008;
p.14)
Como a Constituição Federal prevê, e a UNESCO define que é
assegurando a defesa e a guarda de toda e qualquer manifestação, seja ela
através de objetos e construções históricas, objetos e utensílios que são
produzidos como meio de representação do cotidiano dos diversos grupos
sociais.
O artigo 2° da Convenção para a Salvaguarda do
Patrimônio Cultural Imaterial (UNESCO, 2003)
entende por patrimônio cultural imaterial: [As]
práticas,
representações,
expressões,
conhecimentos e técnicas – junto com os
instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais
que lhes são associados – que as comunidades,
os grupos e, em alguns casos, os indivíduos
reconhecem como parte integrante de seu
patrimônio cultural. Este patrimônio cultural
imaterial, que se transmite de geração em
geração, é constantemente recriado pelas
comunidades e grupos em função de seu
ambiente, de sua interação com a natureza e de
sua história, gerando um sentimento de identidade
e continuidade e contribuindo assim para
promover o respeito à diversidade cultural e à
criatividade humana. (CASTRO, 2008; p. 11-12)
Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação”
23
Salvaguardar o patrimônio imaterial é importante porque estes
constituem, constituem e são caracterizados por serem mecanismos, saberes e
tradições orais, modos de fazer e ritos, que estão presentes tão fortemente na
“Comunidade Chifre do Bode”. Seguindo a ordem de vigências instaladas pelo
artigo acima citado, é importante então que o poder público possa vislumbrar
para a importância de preservar tais bem com não só um instrumento simbólico
importante para as comunidades, como também para a memória do passado
histórico do Brasil.
O ponto importante a ser considerado é de que, hoje as
comunidades quilombolas, devem ter seus materiais históricos, tanto materiais,
como imateriais preservados e garantidos na forma constitucional. Vimos que
eles são detentores de uma identidade que teve suas primeiras formas ainda
no período escravocrata e atravessaram todo o desenvolvimento e formação
do Brasil sustentando características culturais, históricas e coletivas de modo a
cultuar as origens africanas dos seus antepassados.
Neste sentido cabe ao poder público, aplicar o que diz a Carta
Magna do Brasil, desenvolver projetos que viabilizem meios seguros da
promoção e desenvolvimento das comunidades em todos os seus aspectos.
Identificamos uma falta de tais regulamentações e procedimentos técnicos e de
implementação na Comunidade “Chifre do Bode”, o que demonstra que ainda
falta muito para que, o que garante a UNESCO, o IPHAN, e CF seja algo
concreto. Como todos outros projetos voltados para as comunidades
tradicionais, esse é mais um que não entra verdadeiramente em sua
aplicabilidade.
Comunidade Quilombola “Chifre do Bode: identidade étnica, memória e preservação”
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