Hegemonia, representação e populismo: reflexões a
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Hegemonia, representação e populismo: reflexões a
Hegemonia, representação e populismo: reflexões a partir da teoria de Laclau e Mouffe Diane Southier1 RESUMO: O objetivo do artigo é trabalhar com a teoria da hegemonia de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, apontando o percurso de sua construção, suas principais bases teóricas e conceitos, privilegiando sua referência em Gramsci. Essa parte é necessária para analisar a concepção de representação aí colocada e entender a lógica do populismo apresentada por Laclau, ambas ancoradas num duplo movimento de constituição de identidades, entre representante e representados(as). Num segundo momento, pretende-se apresentar a teoria do subeleitorado, desenvolvida por Benjamin Bishin, a partir da qual é possível estabelecer uma interessante analogia com a noção de representação de Laclau. Bishin explica que políticos recorrem a grupos – com identidades já ativadas ou ainda latentes – para obterem benefícios, de maneira que respondem a demandas ao mesmo tempo em que são partícipes na elaboração dessas demandas, ou seja, é o duplo movimento da representação, que Bishin apresenta com sua teoria, complementando e dando validade à noção laclauniana. A partir disso, e articulando o que já tenha sido discutido, a intenção é introduzir a relação entre Laclau e Hannah F. Pitkin, abordando, primeiramente, o conceito de representação substantiva desenvolvido por essa autora. Pitkin também sistematiza diversas visões sobre representação, entre as quais, num segundo momento, abordaremos a de representação simbólica, importante para a discussão sobre o populismo. Com todos esses elementos teóricos em mãos, podemos analisar e entender a lógica política do populismo exposta por Laclau e, por último, apresentar o debate dele com Pitkin. Esta autora considera que a representação simbólica – algo que faz parte do populismo, segundo Laclau – corresponde a um processo de manipulação por parte do líder sobre seus seguidores, mas Laclau pondera que a prevalência do líder não é necessariamente uma regra e que é necessário distinguir entre o que seria uma relação manipulativa e o que seria um processo de constituição de vontades. Isto é algo que diz respeito aos processos de participação política e de atuação das vontades dos representados sobre os representantes, sendo que estes não podem desligar-se inteiramente dos primeiros sem que se rompa o próprio processo de representação. Dessa forma, podemos entender como o conceito de representação como constituição de identidades se relaciona à análise sobre o populismo e como o populismo também diz algo sobre a lógica da representação. Laclau utiliza o termo populismo como uma lógica de construção política, afastando-se das valorações pejorativas sobre esse essa construção, pois o populismo é, em última instância, o momento da cristalização de um símbolo e da nomeação de um líder, mas é também o resultado da articulação de demandas políticas com profundas raízes sociais. Palavras-chave: Hegemonia, Representação Política, Política do Subeleitorado, Representação Simbólica, Populismo. Hegemonía, Representación y Populismo: reflexiones desde la teoría de Laclau Y Mouffe RESUMEN: El propósito del artículo es trabajar con la teoría de la hegemonía de Ernesto Laclau y Chantal Mouffe, mirando el curso de su construcción, sus principales bases y conceptos, sobretodo lo que toca a Gramsci. Eso se hace necesario para entender la concepción de representación y para 1 Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil, Santa Catarina, Florianópolis, 2013. Cursando mestrado em Sociologia Política na mesma instituição. E-mail: [email protected]. Congresso Latinoamericano de Teoría Social. MESA 6 | La teoría de la Hegemonía: Planteos y desafíos contemporáneos. 1 mejor comprensión de la lógica del populismo presentada por Laclau, ambas fijadas en un doble movimiento de constitución de identidades, entre los representantes y representados. En otro momento la intención es presentar la teoría del sub electorado, desarrollada por Benjamin Bishin, de la cual es posible conectar una analogía interesante con la idea de representación de Laclau. Bishin habla que los políticos buscan grupos con identidades ya activadas o pulsantes para tener beneficios, del modo que se le produzcan respuestas a las demandas al mismo tiempo en que los políticos hacen parte de la elaboración de esas demandas, o sea, este es el doble movimiento de la representación que se lo presenta Bishin con su teoría, así a complementar y dar validez a la noción laclauniana. A partir de eso se introduce la relación entre Laclau e Hannah F. Pitkin, trayendo el concepto de representación substantiva desarrollado por ella. Pitkin además sintetiza muchas visiones a respecto de las representaciones, entre ellas, la representación simbólica, con su importancia para el debate de lo populismo. Con todos estos elementos teóricos en las manos, es posible analizar y comprender la lógica política del populismo expuesta por Laclau y, después, presentar el debate con Pitkin. La autora cree que la representación simbólica – algo que forma parte del populismo, según Laclau – es como un proceso de manipulación del líder político hecho sobre los que le siguen, pero Laclau pesa que el predominio del líder no necesita ser sobretodo una regla: es preciso hacer la diferenciación entre una relación manipulativa y un proceso donde voluntades son constituidas. Esto nos cuenta algo sobre los procesos de participación política y el desempeño de las voluntades de los representados en los representantes, que no se pueden alejarse por completo de los primeros sin que se lo rompa el proceso mismo de la representación. Así por tanto, podemos tener idea de cómo el concepto de representación como construcción de identidades está relacionado con el análisis del populismo y cómo el populismo también dice algo acerca de la lógica de la representación. Laclau utiliza el termo “populismo” como una lógica de la construcción política, alejando las valoraciones peyorativas a respecto de esa construcción, pues el populismo es, en su última instancia, el tiempo de cristalización de un símbolo y el nombramiento de un líder, pero también es el resultado de la articulación de demandas políticas con profundas raíces sociales. Palabras claves: Hegemonía, Representación Política, Política del Sub Electorado, Representación Simbólica, Populismo. Introdução O objetivo do artigo é trabalhar com a teoria da hegemonia de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, apontando o percurso de sua construção, suas principais bases teóricas e conceitos, privilegiando sua referência em Gramsci. Essa parte é necessária para analisar a concepção de representação aí colocada e entender a lógica do populismo apresentada por Laclau, ambas ancoradas num duplo movimento de constituição de identidades, entre representante e representados(as). Num segundo momento, pretende-se apresentar a teoria do subeleitorado, desenvolvida por Benjamin Bishin, a partir da qual é possível estabelecer uma interessante analogia com a noção de representação de Laclau. Bishin explica que representantes políticos recorrem a grupos – com identidades já ativadas ou ainda latentes – para obterem benefícios, de maneira que respondem a demandas ao mesmo tempo em que são partícipes na elaboração das demandas, nos termos 2 laclaunianos, ou seja, é o duplo movimento da representação. A partir disso, e articulando o que já tenha sido discutido, a intenção é introduzir a relação entre Laclau e Hannah F. Pitkin, abordando, primeiramente, o conceito de representação substantiva desenvolvido por essa autora. Pitkin também sistematiza diversas visões sobre representação, entre as quais, num segundo momento, abordaremos a de representação simbólica, importante para a discussão sobre o populismo. Com todos esses elementos teóricos em mãos, podemos analisar e entender a lógica política do populismo exposta por Laclau e, por último, apresentar o debate dele com Pitkin, e apreender como o conceito de representação como constituição de identidades se relaciona à análise sobre o populismo e como o populismo também diz algo sobre a lógica da representação. Construção teórica de Laclau e Mouffe em torno do conceito de hegemonia Para começar, é importante localizar o surgimento da teorização de Laclau e Mouffe no seio da crise do marxismo a partir da década de 1970. Havia uma crescente dificuldade de adequar as categorias teóricas marxistas às transformações do capitalismo, frente, por exemplo, à fragmentação das classes sociais e à consequente dificuldade de articulação política entre os agentes. Diferente das visões ortodoxas de parte dos teóricos marxistas naquela época, Laclau e Mouffe (2001[1985]), conforme explicam no prefácio à segunda edição de Hegemony and Socialist Strategy2, procederam em direção a uma reativação que mostrasse “a contingência original da síntese que as categorias marxianas tentaram estabelecer” (LACLAU; MOUFFE, 2001, p.viii). Nesse sentido, no lugar de lidar com noções como classe, por exemplo, eles questionaram sua continuidade ou descontinuidade no capitalismo contemporâneo; as categorias centrais da teoria marxista teriam que ser desconstruídas à luz de novos problemas. Muitas questões e antagonismos sociais contemporâneos pertencem a campos de discursividade que são externos ao marxismo, não podendo ser conceituados nos termos de suas categorias, além de que a própria presença desses antagonismos questiona o marxismo como um sistema teórico fechado e postula novas diretrizes para a análise social. Dessa forma, o pósmarxismo de Laclau e Mouffe (2001, p.ix) é “o processo de reapropriação de uma tradição intelectual, bem como o processo de ir além dela”. Veremos minimamente como se dá essa “reapropriação” e o que define “ir além”, dois movimentos conectados, no sentido das possibilidades abertas pelo campo original em articulação com orientações teóricas externas a ele. 2 Todas as citações diretas de textos em inglês ou em espanhol são traduções minhas. 3 No que se refere, em parte, ao “ir além” da tradição marxista, é muito importante ao menos mencionar que o trabalho de Laclau e Mouffe se articula às três principais correntes intelectuais do século XX: a filosofia analítica, com o trabalho do último Wittgenstein; a fenomenologia, com a analítica existencial de Heidegger e alguns conceitos de Husserl; e a crítica pós-estruturalista do signo. O pós-estruturalismo é onde encontram a principal fonte para sua reflexão teórica, por exemplo, com as noções de desconstrução e indecidibilidade e a ênfase antiessencialista em Derrida. Também trabalham com as contribuições da psicanálise lacaniana, utilizando a categoria “point de capiton” que, em Laclau e Mouffe, vira “ponto nodal”. Hegemony and Socialist Strategy mostra como a categoria de hegemonia foi, originalmente, elaborada pelos socialdemocratas russos como uma tentativa de abordar a intervenção política contingente exigida pela “crise” num suposto desenvolvimento histórico normal, intervenção esta que era possível no deslocamento estrutural entre tarefas democráticas e sujeitos de classe, resultante do desenvolvimento tardio do capitalismo na Rússia, ou seja, diante de um suposto desenvolvimento insuficiente da burguesia russa, a classe operária tinha que assumir tarefas que não eram suas. Essa situação anômala foi chamada “hegemonia”. Entre os socialdemocratas russos, Trotski avança, em relação a Plekhanov e Axelrod, com a noção de “desenvolvimento combinado e desigual”. Com Lênin, essa noção estende o conceito de hegemonia às condições gerais da política no contexto da era imperialista e a hegemonia passa a ser entendida como “aliança de classes”, entre diversos grupos sociais liderados pela classe operária. Essa aliança, no entendimento de Lênin, não modificava as identidades das partes envolvidas. Com Gramsci, finalmente, os sujeitos históricos deixam de ser apenas atores de classes, mas “vontades coletivas”, uma vez que a dimensão hegemônica passa a ser considerada constitutiva da subjetividade dos sujeitos históricos. Gramsci é o ponto mais alto nessa trajetória de expansão da lógica da contingência, que subverte a categoria de necessidade histórica (pedra angular do marxismo clássico), e o conceito de hegemonia emerge para compreender a unidade numa formação social concreta, ou seja, como os atores políticos chegam a se unir politicamente em torno de uma liderança “intelectual e moral”. Portanto, no que se refere à “reapropriação” da tradição marxista, esta se dá, principalmente, através do conceito gramsciano de hegemonia. Para o filósofo italiano, a plenitude da identidade de classe do marxismo deveria ser substituída por identidades hegemônicas constituídas através de práticas políticas, econômicas e ideológicas específicas. Nada haveria de automático na “unidade de classe”, portanto uma categoria complexa e que deveria ser criada politicamente. 4 Na exposição de Gramsci (2000 [1932-1934], p.40-42) sobre as “relações de força”, distinguem-se analiticamente três momentos da formação das consciências coletivas. O primeiro é o estágio “econômico-corporativo”, no qual grupos profissionais reconhecem interesses em comum: uma pessoa fabricante sente que deve ser solidária com outra fabricante, por exemplo, uma comerciante com outra comerciante, etc., mas ainda não desenvolvem uma solidariedade de classe mais ampla. O segundo momento é o do “corporativismo de classe”, do desenvolvimento da solidariedade dos interesses de classe, mas apenas no campo econômico. Nesse momento, a pessoa comerciante, por exemplo, entende que faz parte de uma classe com a fabricante; a operária da metalurgia se solidariza com a operária da construção, mas permanecem na fase sindical, sem seguir para a fase política, pois ainda não se projetam à esfera estatal para a condução política da sociedade. Entretanto, já há um corte antagônico para a instauração de identidades. O terceiro momento é o da “hegemonia” de um grupo social fundamental, em que se constrói um projeto societário que congrega uma “vontade coletiva”, supera-se o limite corporativo da solidariedade puramente econômica, e o grupo dominante é coordenado com os interesses gerais dos grupos subordinados. Esse estágio é o da “passagem da estrutura para a esfera das superestruturas”, onde as lutas passam a ocorrer. A hegemonia, aí, é uma relação complexa entre coerção, direção moral, política e cultural, de maneira a gerar um consentimento ativo por parte dos grupos subordinados. Seriam períodos históricos de relativa estabilidade, de “equilíbrios instáveis”. Essa elaboração gramsciana pretendia dar conta das necessidades de articulações políticas entre os grupos subalternos para que o proletariado se tornasse a classe “dirigente”. Nesse ponto, é interessante ao menos mencionar a importância do papel do partido e dos intelectuais na passagem da “classe em si” à “classe para si”, o que indica a articulação classista como uma construção política, diferente do mecanicismo e do economicismo das análises vulgares dominantes no tempo de Gramsci, contra as quais ele direciona suas reflexões. Na visão gramsciana, portanto, a classe se constrói no processo mesmo de constituição da vontade coletiva. Entretanto, Gramsci não supera totalmente o essencialismo marxista, porque mantém a ideia do caráter determinante da economia em última instância, dizem Laclau e Mouffe, baseados, possivelmente, em passagens como a seguinte: O fato da hegemonia pressupõe indubitavelmente que sejam levados em conta os interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida, que se forme um certo equilíbrio de compromisso, isto é, que o grupo dirigente faça sacrifícios de ordem econômico-corporativa; mas também é indubitável que tais sacrifícios e tal compromisso não podem envolver o essencial, dado que, se a hegemonia é ético-política, não pode deixar de ser também econômica, não pode deixar de ter seu fundamento na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade econômica (GRAMSCI, 2000, p.4849). Nesse sentido, Gramsci afirma a posição privilegiada das classes sociais fundamentais 5 (burguesia e proletariado) na articulação de projetos hegemônicos. Segundo Laclau e Mouffe (2001, p.69), A base econômica pode não assegurar a vitória final da classe operária, uma vez que depende da capacidade de liderança hegemônica dessa classe. No entanto, uma falha na hegemonia da classe operária só pode ser seguida por uma reconstituição da hegemonia burguesa, de modo que, no final, a luta política ainda é um jogo de soma zero entre as classes. Este é o núcleo essencialista que continua a estar presente no pensamento de Gramsci, estabelecendo um limite à lógica desconstrutiva da hegemonia. Afirmar, no entanto, que a hegemonia deve sempre corresponder a uma classe econômica fundamental não é apenas reafirmar a determinação em última instância pela economia; também é predicar que, na medida em que a economia constitui um limite intransponível para as potencialidades da sociedade para recomposição hegemônica, a lógica constitutiva do espaço econômico não é, em si, hegemônica. Desta maneira, Laclau e Mouffe ressalvam que o pensamento de Gramsci constitui apenas um momento na desconstrução do essencialismo marxista. O objetivo dos autores em Hegemony é preencher as lacunas do marxismo clássico, partindo de uma reflexão que tem como princípio as ideias de Gramsci e indo além delas. A abordagem de Laclau e Mouffe privilegia o momento da articulação política e uma das categorias centrais de sua análise é a de hegemonia. A condição de uma relação hegemônica é a de “uma força social particular que assume a representação de uma totalidade que é radicalmente incomensurável a ela. Tal forma de ‘universalidade hegemônica’ é a única universalidade que uma comunidade política pode alcançar” (LACLAU; MOUFFE, 2001, p.x). Além disso, para se ter hegemonia, deve-se considerar elementos que não estão predeterminados a participar de um tipo de arranjo ou outro e que, ainda assim, se aglutinam em decorrência de uma prática articulatória. Para falar em articulação, recusam o modelo de sociedade como totalidade fundante dos processos parciais – leis internas ou um princípio subjacente. Em contraposição, consideram o caráter aberto e incompleto do social como condição para toda prática hegemônica. Definem a articulação como “toda prática que estabelece uma relação tal entre elementos que a identidade destes resulta modificada como resultado dessa prática”. “A totalidade estruturada resultante da prática articulatória” é o que chamam de discurso (LACLAU; MOUFFE, 2001, p.105). Dentro de um discurso, as posições diferenciais que aparecem articuladas são chamadas momentos. Já os elementos são as diferenças que não aparecem discursivamente articuladas. Importante enfatizar que, numa formação discursiva, a transformação de elementos em momentos jamais é completa, o que sugere uma tensão permanente e nunca resolvida, de maneira que as diferenças articuladas permanecem num espaço intermediário entre momentos e elementos. Nesse sentido, nenhuma identidade que se pretenda plena e fixada está protegida de um exterior discurso que venha a deformá-la, impedindo-a de tornar-se totalmente fechada. As identidades são puramente relacionais, de maneira que sua constituição plena é impossível (LACLAU; MOUFFE, 2001). A categoria de discurso diz respeito ao fato de que toda configuração social é uma 6 configuração significativa; discurso é um sistema de relações que dá sentido a um objeto. Todo acontecimento ou objeto físico só tem significado dentro de um sistema de relações. Nesse sentido, o discurso é uma totalidade que inclui tanto o linguístico quanto o extralinguístico e esta noção, portanto, não relaciona-se exclusiva ou primariamente à fala ou à escrita, pois envolve a produção social de significados (LACLAU; MOUFFE, 1993; 2001; BURITY, 1997; LACLAU, 2011a). “Não há possibilidade de qualquer separação estrita entre significação e ação. Mesmo a mais puramente constatativa das afirmações tem uma dimensão performática, e, no sentido contrário, não há ação que não esteja imbuída na significação” (LACLAU, 2011a, p.199). Laclau e Mouffe utilizam aí uma concepção de formação discursiva que é muito próxima à elaborada por Foucault (de regularidade na dispersão), mas se distanciam dele frente à distinção entre práticas discursivas e não discursivas, ao considerarem que todo objeto se constitui como um objeto de discurso, pois que nenhum se dá à margem das superfícies discursivas de emergência. Apesar da impossibilidade de uma fixação última de sentido aos elementos, deve haver pelo menos fixações parciais, caso contrário o fluxo de diferenças seria impossível. O social só existe como esforço para produzir esse objeto impossível, de fixação plena, através de fixações parciais de sentido. Desse modo, “todo discurso se constitui com o intuito de dominar o campo da discursividade, de deter o fluxo das diferenças e constituir um centro” (LACLAU; MOUFFE, 2001, p.112). Os pontos discursivos privilegiados desta fixação parcial de sentido são chamados pontos nodais. A prática da articulação consiste, portanto, no caráter parcial dessa fixação e os discursos vão lutar para tentar estabelecer “verdades”, sempre precárias e contingentes. Na nova abordagem do conceito de hegemonia, a noção de antagonismo também desempenha um papel central, pois a especificidade de uma prática articulatória hegemônica é dada em seu confronto com outra prática articulatória de caráter antagônico. Em Hegemony, o antagonismo é visto como o limite da significação de um determinado discurso ou identidade, limitados pela existência de um corte antagônico. “A relação antagônica não surge de totalidades plenas, mas da impossibilidade de sua constituição” (LACLAU; MOUFFE, 2001, p.125), isto é, onde há antagonismo, um dos seus polos não consegue alcançar uma presença plena para si mesmo, ou seja, não consegue constituir plenamente sua identidade, e o mesmo acontece com a força antagônica do outro polo. Dessa forma, o antagonismo é o “limite de toda objetividade”, a impossibilidade de constituição plena de uma identidade, discurso, ou até mesmo da “sociedade” como um objeto fechado, transparente e sem conflitos. Esse status do antagonismo foi complementado em trabalhos posteriores de Laclau, a começar pelo New Reflections on the Revolution of our Time (1990), com a noção de deslocamento. 7 Passou-se a considerar uma relação entre os termos do antagonismo que não é de simples oposição, mas uma relação em que há troca de sentidos entre eles: “toda identidade é deslocada na medida em que depende de um exterior que a nega, mas que, ao mesmo tempo, fornece sua condição de possibilidade” (LACLAU, 1990, p.39). Ou seja, [... existe] uma ambiguidade inerente a todas as formas de oposição radical: a oposição, para ser radical, tem de colocar no mesmo terreno tanto o que ela afirma quanto o que exclui, de modo que a exclusão se torna uma forma particular de afirmação. [...] a rejeição do outro não é eliminação radical, mas uma renegociação constante das formas de sua presença (LACLAU, 2011b, p.59-60). O deslocamento, nesse sentido, é o rompimento de uma estrutura – relativamente estável, num primeiro momento – por forças que operam fora dela. “B” é o exterior constitutivo de “A”, a presença de um nega a presença do outro, donde surge o antagonismo. Se o antagonismo constitui uma ameaça à existência de algo, isso quer dizer que ele revela a contingência radical daquilo que está sendo ameaçado. Assim, a contingência à qual Laclau se refere diz respeito não a um conjunto de relações aleatórias entre identidades, mas à impossibilidade de fixar com precisão tanto as identidades quanto as relações entre elas em termos de um fundamento necessário, de uma lei histórica, ou de posições eternas num sistema fechado. Mas, para que o antagonismo seja capaz de mostrar a natureza contingente de uma identidade, essa identidade deve já existir, pois a ameaça se dá a partir do questionamento sobre essa identidade e, por outro lado, não é possível ameaçar a existência de algo sem, ao mesmo tempo, afirmá-la. Dessa forma, “o que sempre encontramos é uma situação limitada na qual a objetividade é parcialmente constituída e parcialmente ameaçada, na qual as fronteiras entre o contingente e o necessário são constantemente deslocadas” (LACLAU, 1990, p.27). Diante disso, toda forma de “consenso” é resultante de uma articulação hegemônica que se desenvolve a partir do enfrentamento com práticas articulatórias antagônicas, condição para se falar de hegemonia, um campo cercado por antagonismos e que supõe fenômenos de equivalência e efeitos de fronteira entre grupos sociais. Toda articulação hegemônica pressupõe, portanto, forças antagônicas e a instabilidade das fronteiras que as separam (LACLAU; MOUFFE, 2001). Estas forças antagônicas e a instabilidade entre elas são discursivamente construídas através das lógicas da diferença e da equivalência. A primeira refere-se a uma expansão, a um aumento da complexidade do espaço político e a segunda é uma simplificação desse mesmo espaço. Obviamente, não existe a possibilidade de que uma ou outra dominem completamente os espaços sociais. Existe uma ambiguidade em toda relação de equivalência, pois para dois termos serem considerados equivalentes, eles devem ser também diferentes, caso contrário estaríamos falando apenas de uma simples identidade entre os termos. Por outro lado, “a equivalência só existe através de um ato de subversão do caráter diferencial dos termos” (LACLAU; MOUFFE, 2001, p.128). E toda 8 posição num sistema de diferenças, à medida que seja negada por algo exterior a ela, pode se tornar locus de um antagonismo. Em um contexto de relações sociais muito instáveis, as tentativas de constituição de sistemas de diferenças definitivos terão pouco sucesso, de maneira que os antagonismos podem se proliferar, o que torna ainda mais difícil a construção de qualquer centralidade e o estabelecimento de cadeias de equivalências unificadas, algo parecido com a “crise orgânica” descrita por Gramsci. A hegemonia aí é uma operação discursiva que busca articular demandas diferenciadas em uma rede de equivalências, ou seja, busca constituir a universalização de um discurso procurando fixar sentidos (LACLAU, 1998 apud PEREIRA, 2010). A categoria está, portanto, “imersa num contexto em que a noção de discurso é central” (MENDONÇA, 2007, p.250). Um elemento decisivo para entendermos a idéia de hegemonia no contexto discursivo é que, não há como necessariamente estabelecermos previsões de quais identidades políticas assumirão papéis de representação social, não há aqui a ‘segurança’ do projeto político marxista que previa que a identidade proletária assumiria as lideranças moral, intelectual e política da sociedade industrial. [...] Consensos sociais são possíveis, mas nunca eternos: podem futuramente ser desprezados e desrespeitados mesmo pelos próprios sujeitos políticos que outrora os celebraram (MENDONÇA, 2007, p. 250). Nesse sentido, a relação hegemônica é uma tentativa de constituição de uma relação de ordem e o discurso hegemônico é essencialmente um discurso que aglutina, que sistematiza diferentes elementos, é uma unidade de diferenças (MENDONÇA, 2007). A hegemonia, nesse sentido, é um tipo de relação política, não um lugar determinado na topografia do social (LACLAU; MOUFFE, 2001). Numa formação social podem haver vários pontos nodais hegemônicos, alguns altamente sobredeterminados3, mas como o social é uma infinitude que não pode ser reduzida a um princípio unitário subjacente, a ideia de um centro do social não tem qualquer sentido. As relações hegemônicas são dependentes de “articulações políticas e não de entidades constituídas fora do campo político – tal como ‘interesses de classe’. De fato, são as articulações hegemônicas que criam os interesses que as entidades dizem representar” (LACLAU; MOUFFE, 2001, p.xi). O sucesso de qualquer projeto hegemônico se manifesta na capacidade de articular em uma cadeia de equivalências várias lutas dispersas. Podemos utilizar a noção de hegemonia nesse contexto “para descrever um determinado momento político hegemônico” (MENDONÇA, 2010, p.483). Uma ordem hegemônica parte sempre de um discurso particular que consegue [...] representar discursos ou identidades até então dispersas. Esta organização ocorre a partir desse discurso centralizador, de um ponto nodal que consegue fixar seu sentido e, a partir 3 O conceito de sobredeterminação, de Freud a Althusser (1967), foi uma tentativa de construção teórica contra o conceito de determinação simples da dialética hegeliana. O caráter sobredeterminado das relações sociais implica que elas carecem de uma literalidade última que as reduziria a momentos necessários de uma lei imanente. Em Laclau e Mouffe, a dimensão sobredeterminada das identidades sociais se estabelece através de uma polissemia que desarticula as estruturas discursivas. “O campo das identidades que nunca conseguem ser plenamente fixadas é o campo da sobredeterminação” (LACLAU; MOUFFE, 2001, p.111). 9 deste, articular elementos que previamente não estavam articulados entre si (MENDONÇA, 2010, p.484). Como dito anteriormente, temos hegemonia quando uma força social particular assume a representação de uma “totalidade”, em termos de uma universalidade relativa, uma universalidade hegemônica. O universal aparece como um lugar vazio, como uma plenitude ausente que, ao mesmo tempo, remete à possibilidade de preenchimento, embora jamais alcançável. Este lugar vazio diz respeito ao fato de que sua ocupação não está predeterminada por nenhum conteúdo em específico, de maneira que qualquer demanda política, que chegue a desempenhar um papel hegemônico, pode constituir-se como uma representação de outras demandas que estejam articuladas em uma cadeia de equivalências. Nada há que predetermine a participação de um ou outro elemento num arranjo hegemônico. São as práticas articulatórias que constituem o arranjo. Estamos diante, portanto, de uma construção puramente política. Numa operação hegemônica, as identidades das demandas articuladas e a da demanda que exerce o papel de representação são constantemente modificadas. Tais identidades/elementos chegam a participar de uma cadeia de equivalências articulando-se em torno de um ponto nodal, um sentido discursivo privilegiado, tudo isso constituindo um discurso. A articulação entre as identidades acontece por meio da negatividade proveniente de um exterior constitutivo que ameaça a existência de tais identidades previamente desarticuladas. É o corte antagônico, portanto, um “discurso inimigo”, que constitui a possibilidade da formação discursiva e da representação do universal por um particular. A identidade que se torna a representante da cadeia equivalencial, ao articular diversas identidades, passa a se despir de seu conteúdo original, embora sem deixar de ser uma particularidade, e torna-se um significante vazio (LACLAU, 2011c; 2001), um ponto nodal que retém o deslizamento dos significados da formação discursiva e trabalha como um ponto de atração das identidades até então dispersas. Essa lógica política de construção de uma cadeia equivalencial culminando num significante vazio é importante para entendermos a lógica do populismo, que será abordada mais para frente. Por enquanto, nos concentraremos na abordagem de Laclau sobre a relação de representação aí presente, algo do que já tivemos alguma pista até aqui. Representação como constituição de identidades A representação política, segundo define Laclau (e Mouffe), é uma “fictio iuris”, uma ficção jurídica, que pressupõe a presença de uma pessoa em um lugar do qual ela está, na verdade, materialmente ausente (LACLAU, 1993; 2011d; LACLAU; MOUFFE, 2001). “A representação é o processo pelo qual outrem – o representante (ou a representante) – “substitui” e ao mesmo tempo 10 “encarna” o representado (ou a representada)” (LACLAU, 2011d, p.147). Uma das características da concepção de ação política da idade moderna, diz Laclau (2011d), é a ideia de uma representabilidade radical, derivada da noção de que tal ação deveria responder a um fundamento racional do social e que, por isso, uma representabilidade ilimitada seria possível. Apenas um ator histórico ilimitado, uma “classe universal” (como o proletariado, por exemplo) seria capaz de abolir toda “alienação” das formas de representação. As condições de uma representação radical seriam atingidas quando esta fosse um processo de transferência direta da vontade da pessoa representada a quem representa. Tal noção pressupõe que a função da representante seja apenas de intermediação, uma vez que a vontade da pessoa representada seria já previamente constituída. O inverso desta ideia de representação é a negação pós-moderna de todo fundamento de sentido aos conteúdos do social, o questionamento de todo e qualquer tipo de universalidade dos agentes históricos e a ideia de que à opacidade do processo representativo corresponderia a impossibilidade de qualquer representação. A conclusão de Laclau, entretanto, é a de que não pode existir qualquer relação pura de representação, porque faz parte do processo representativo que o(a) representante contribua para a identidade do que é representado, as identidades de um(a) e de outro não são autossuficientes e isto é devido à lógica própria do processo de representação, o qual ocorre num espaço de decisões que é diferente de onde a identidade básica da pessoa representada se constitui. Essa identidade recebe um suplemento característico ao funcionamento da relação de representação e, assim, é construída e transformada4. Nesse sentido, a representação não pode ser simplesmente a correia de transmissão de uma vontade já constituída, pois deve ser a construção de algo novo. Há, assim, um duplo processo: por um lado, a representação, como tal, não pode operar inteiramente independente do representado; por outro, para ser realmente uma representação, requer-se a articulação de algo novo que não está simplesmente dado pela identidade do representado. [...] a representação absoluta, a transparência total entre representante e representado, é equivalente à extinção da relação de representação. Se representante e representado constituem uma mesma e única vontade, o re- da representação desaparece, já que a mesma vontade está presente em dois lugares distintos. A representação, portanto, só pode existir na medida em que a transparência que o conceito de representação implica não seja definitiva; na medida em que há um deslocamento permanente entre representante e 4 Para explicar essa relação, Laclau fornece um exemplo muito simples, no qual “[...] a contribuição do representante para a constituição do ‘interesse’ a ser representado é aparentemente mínima: um deputado federal que representa um grupo de agricultores cujo interesse mais importante é a defesa dos preços dos produtos agrícolas. Mesmo aqui o papel do representante excede em muito a simples transferência de um interesse pré-constituído. Pois o terreno em que esse interesse tem de ser representado é o da política nacional [o lugar B], onde muitas outras coisas estão acontecendo, e mesmo algo aparentemente tão simples como a proteção dos preços agrícolas exige processos de negociação e articulação com um conjunto de forças e problemas que excedem em muito o que é pensável e dedutível a parti do lugar A [o lugar dos agricultores]. Assim, o representante inscreve um interesse numa realidade complexa, diferente daquela na qual esse interesse foi originalmente formulado, e, assim fazendo, ele o constrói e o transforma. Mas, desse modo, o representante também está transformando a identidade do representado” (LACLAU, 2011d, p.147-8). 11 representado. Esta opacidade da relação de representação pode ser maior ou menor, mas deve estar sempre presente onde a representação tiver lugar (LACLAU, 1993, p.55). Portanto, segundo Laclau (2013 [2005]), a ambição de parte da teoria democrática, desde Rousseau, de que a representação deveria transmitir o mais fielmente possível a vontade de quem se representa – uma vez que a representação é um mal menor frente à impossibilidade de democracia direta em grandes comunidades – não é um descrição correta do que está implicado em um processo representativo. Pois, novamente, nesse processo, a(o) representante acrescenta algo às vontades ou aos interesses das(os) representadas(os). A representação, então, de acordo com Laclau, envolve dois movimentos correlatos: o primeiro é o que vai do(a) representado(a) ao(à) representante, e o segundo do(a) representante ao(à) representado(a). Nesse sentido, a pessoa representada depende de quem representa para a constituição de sua identidade (LACLAU, 2013), e o inverso também é verdadeiro5. Mas essa ideia de que o representante constitui identidades foi várias vezes considerada, na teoria democrática, como expressão da representação em ditaduras fascistas, com seguidores representando a vontade de um líder, num movimento de cima para baixo, ao invés do processo democrático que supostamente envolveria um líder representando a vontade dos seguidores. Laclau argumenta que essa opção não envolve alternativas exatamente excludentes uma à outra, pois, num caso extremo de setores marginais com dificuldades em articular-se, o papel da pessoa que representa seria o de constituir essa vontade através do processo representativo, diferente do outro extremo de uma vontade supostamente já constituída – a de um grupo corporativo, por exemplo, que limitaria o espaço de manobra da pessoa representante. Um trabalho que envolva a análise da noção de representação para Laclau deve, pois, diferenciar a representação política institucional, a que acabamos de ver, e a que se dá na construção populista, que é anti-institucional. As implicações do conceito são as mesmas, os movimentos correlatos de constituição de identidades são inerentes a qualquer processo de representação, o que muda é o âmbito e a extensão dessas implicações. Sobre essa questão da identificação com uma liderança e a dupla face do processo de representação que estão implicadas na produção de significantes vazios, discutiremos em maiores detalhes na parte sobre o populismo. No momento em que nos encontramos, é possível analisar a relação entre a teoria laclauniana da representação e a teoria do subeleitorado, de Bishin, uma complementando a outra. 5 Como bem lembrado por Silva (2014), esta concepção da representação exposta por Laclau não é estrita às suas reflexões. Iris Marion Young, por exemplo, cuja base epistemológica também é derridiana, considera que a representação política não é uma relação de substituição, mas “um processo que envolve uma relação mediada dos eleitores entre si e com um representante” (YOUNG, 2006, p.148). 12 A Política do Subeleitorado The Subconstituency Politics Theory, que poderíamos traduzir como a teoria da política do subeleitorado, foi desenvolvida por Benjamin G. Bishin no livro Tyranny of the Minority: The Subconstituency Politics Theory of Representation (2009). A teoria fornece uma explicação do comportamento político em relação às capacidades e atributos das pessoas cidadãs, o desempenho de candidatas nas campanhas ao traduzir a visão das pessoas em posições políticas, e o comportamento no congresso de quem ganha a eleição. É uma análise do processo democrático nas eleições distritais dos Estados Unidos. Bishin considera que, por ser uma teoria baseada na psicologia social, suas implicações poderiam ser generalizáveis a outros países e níveis de governo. Testes empíricos no Brasil, por exemplo, mesmo com um sistema eleitoral diferente, poderiam gerar conclusões parecidas. Isso é algo a vermos em outra oportunidade. Nesse momento, nos interessam as teses principais de Bishin, muito pertinentes no âmbito das teorias da representação, e em relação ao que queremos discutir aqui. Bishin (2009) explica como grupos “intensos e ativos”, ao invés de pessoas cidadãs como um todo, é que condicionam o comportamento de candidatas à eleição e de parlamentares. A política do subeleitorado acontece quando representantes ou candidatas defendem a preferência de grupos específicos ao invés da preferência da maioria, quando a defesa da posição de minorias ativas e interessadas supera os custos de não defender a posição da maioria desinteressada. Tais grupos variam de acordo com o distrito e com os temas políticos em discussão. A teoria política do subeleitorado baseia-se fortemente em noções da teoria das identidades sociais (TURNER et al, 1987 apud BISHIN, 2009) para explicar como e por quê grupos de indivíduos promovem os interesses de políticos. Antes de qualquer outra coisa, é importante considerar a definição de grupos exposta por Bishin. Segundo o cientista político, “um grupo é uma constelação de pessoas, organizadas ou não, que compartilham uma identidade social devido a uma experiência comum que leva a preocupações e preferências compartilhadas” (BISHIN, 2009, p.21). “As fronteiras de um grupo são delineadas pela ausência de autoidentificação ou autopercepção compartilhada” (BISHIN, 2009, p.24-5). Não se exclui da definição quem participa de grupos organizados, o essencial é que exista uma identidade social compartilhada. Por exemplo, pessoas negras de diferentes lugares podem ter preferências muito parecidas em relação a temas de direitos civis, devido a uma experiência comum de racismo. Obviamente, nem sempre tal identidade resulta em visões politicamente úteis, de maneira que o grau em que grupos compartilham visões sobre o tema é uma questão sempre empírica. Segundo a psicologia social a qual Bishin se reporta, um aspecto importante da identidade social é que indivíduos têm múltiplas e sobrepostas identidades de 13 grupo que provêm de suas diversas experiências de vida e papéis sociais. Pessoas representantes ou candidatas recorrem às preferências de grupos do eleitorado por meio de diversos temas para construir coalizões de apoiadores intensos, mais propensos à participação política. Ganhar votos de pessoas politicamente desinteressadas é um desafio custoso às candidatas, mas seu sucesso depende da capacidade de transformar indivíduos passivos em apoiadores ativos. Por isso, recorrer a grupos específicos ajuda a resolver esse problema. Representantes ou candidatas procuram “ativar” identidades de grupos com base em posições políticas relativas a temas que podem interessar às pessoas, ou aspectos simbólicos, tais como experiências de vida comum com o eleitorado, como raça, gênero, religião, e outras características pessoais ou estereótipos. O interessante, nesse sentido, é notar como candidatas visando a eleição, ou parlamentares com interesse na reeleição, podem muitas vezes ativar identidades latentes ao levantar determinados temas para discussão política, ou enfatizar características simbólicas, e gerar grupos apoiadores. Pessoas pertencentes a grupos geralmente são mais interessadas e têm mais conhecimento sobre os temas pertinentes às suas crenças e atitudes compartilhadas e, por isso, têm maior informação e interesse político em torno de temas pertinentes àquela identidade, uma vez que ela esteja ativa. Membros desses grupos não apenas são mais propensos a votar em determinado(a) candidato(a), por exemplo, como também podem fornecer outros importantes recursos, como dinheiro, contatos, tempo, prestígio, etc. Através de redes sociais, por exemplo, informações podem ser transmitidas mais facilmente e com mais credibilidade. Declarações feitas por pessoas com uma identidade de grupo em comum estão mais propensas a serem percebidas como válidas. Resumindo, portanto, Candidatos(as) levantam temas com a intenção de ativar identidades de grupo, o que ajuda a transformar em participantes animados indivíduos que, de outra forma, permaneceriam apáticos. Uma vez ativos, os(as) cidadãos(ãs) passam a ter mais conhecimento sobre os temas relacionados a sua identidade de grupo e, assim, estão mais preparados(as) para manter responsivos(as) os(as) políticos(as) eleitos(as) nos temas relativos à associação de grupo. Candidatos(as) trabalham para tirar proveito e ativar identidades que são benéficas a eles(as) em campanha, geralmente por meio das posições que defendem e enfatizam. Uma vez eleitos(as), parlamentares não apenas apoiam as posições, expostas na campanha, por meio das votações nominais, como também trabalham ativamente para promover as preferências dos grupos por trás das cenas (BISHIN, 2009, p.38). Bishin, então, fornece uma série de testes empíricos6 em variados temas que sustentam 6 Bishin desenvolve sua teoria em contraposição ao modelo da demanda (“demand model”). Esse modelo sustenta que pessoas mais expostas às informações midiáticas deveriam ter mais conhecimento político e que a responsividade de representantes depende da visibilidade dos temas políticos. Já a teoria da política do subeleitorado defende que as pessoas conhecem e se importam mais intensamente com temas relacionados a sua identidade de grupo, de maneira que os representantes são responsivos mesmo com uma maioria de cidadãos “apáticos e ignorantes”, porque tais representantes buscam apoio e são responsivos aos grupos “intensos”. Os testes feitos por Bishin, nesse sentido, levam em consideração temas com diferentes graus de visibilidade e diferentes grupos identificados nos distritos de candidatos 14 sua teoria em um elevado grau de pertinência. Ao final, conclui que a política do subeleitorado é uma espécie de “tirania da minoria”, ou de minorias, algo que viola princípios da democracia liberal, tal como a ideia de que a maioria deveria prevalecer. Mas as pessoas têm poder quando elas intensamente se importam com o que ocorre na política, diz Bishin, de maneira que uma maioria intensa pode se opor a políticas voltadas a minorias e também fazer valer suas vontades. Mas como isso raramente acontece, minorias continuam tirando proveito da apatia da maioria. O fato de que tais minorias tenham acesso à política e sejam ouvidas dá uma maior estabilidade à democracia, mas um problema ocorre quando a posição minoritária afeta negativamente o resto das pessoas. Uma saída seria uma educação que enfatizasse a importância do ativismo civil, para além da instrução que enfatize apenas conhecimentos gerais. Nesse momento, entretanto, a ideia não é a de entrar numa consideração valorativa sobre o fato de que minorias superam maiorias. Para os propósitos desse artigo, nos basta, simplesmente, constatar esse fato e entender qual o funcionamento dessa situação no que concerne à relação de tais minorias com quem as representa. E mais importante do que os aspectos psicossociais da identificação de grupo aos quais Bishin se reporta (que demandariam uma análise em relação à teoria da formação das identidades para Laclau – como negatividade, por meio do exterior constitutivo) o que importa é a conclusão, baseada em testes empíricos que fornecem uma grande relevância à teoria, de que políticos recorrem a grupos – com identidades já ativadas ou ainda latentes – para obterem benefícios, de maneira que respondem a demandas ao mesmo tempo em que criam demandas, nos termos laclaunianos. Bishin demonstra teórica e empiricamente os dois movimentos da representação descritos por Laclau: da pessoa representada à representante e da representante à representada. Vemos que as identidades, aí, não são autossuficientes; representantes contribuem para a constituição das identidades de representadas ao, por exemplo, levantar temas e defender posições em campanhas ou no congresso, “ativando” a identidade de grupos, ou mobilizando algum já existente. Ao mesmo tempo, o apelo de políticos a temas que mobilizam grupos é um processo em que as pessoas representadas, por sua vez, contribuem para a identidade da que representa, inclusive porque depois de (re)eleitos, os políticos continuam defendendo as posições dos grupos que o apoiaram. Vemos que este é um processo contínuo, onde um suplementa a identidade do outro, e de parlamentares, analisando as posições de campanha e as votações no congresso para saber se os políticos respondem a tais grupos. Os casos analisados são os seguintes: embargo à Cuba – baixíssima visibilidade; extensão dos crimes de ódio para proteção de pessoas em relação à orientação sexual – baixa visibilidade; extensão da proibição de armas de fogo semiautomáticas (“assault weapons”) – alta visibilidade; e política de aborto – altíssima visibilidade. Em todos os casos, encontram-se resultados estatisticamente significativos em relação às teses de Bishin e que se contrapõem ao modelo da demanda. 15 tanto em casos de setores marginais com dificuldade em articular-se, porque os políticos recorrem a grupos não necessariamente organizados, quanto no extremo de grupos já organizados ou corporativos. A partir daqui, articulando o que já foi discutido, a intenção é introduzir o debate de Laclau com Hannah F. Pitkin, abordando, primeiramente, o conceito de representação substantiva desenvolvido por essa autora no livro The Concept of Representation (1967). Além disso, Pitkin sistematiza diversas visões sobre representação, entre as quais, num segundo momento, abordaremos a de representação simbólica para o debate com Laclau sobre o populismo. Hannah F. Pitkin e as visões sobre representação A definição ou o significado básico de representação, segundo Hannah Fenichel Pitkin, é tornar presente, de alguma forma, algo que apesar disso não está literalmente presente (PITKIN, 1972; 2006). Em torno dessa definição de algo ao mesmo tempo ausente e presente constrói-se um paradoxo que está no cerne das discordâncias, no âmbito da representação política, sobre o que deve ser ou fazer a pessoa representante. Esse significado básico, portanto, tem diferentes aplicações dependendo das circunstâncias do que está sendo feito presente ou do que é considerado presente. Um dos debates mais importantes, nesse sentido, é o que acontece em torno da polêmica sobre o mandato e a independência do(a) representante, sobre se quem representa deve fazer o que achar melhor ou o que o eleitorado quer. Edmund Burke, por exemplo, é um dos mais conhecidos teóricos entre os quais se defende a independência. Para ele, parlamentares são escolhidos localmente, mas, uma vez no parlamento, passam a ter uma relação com a nação como um todo. No famoso Discurso aos Eleitores de Bristol (2012 [1774], p.100-1), Burke argumenta que representantes devem sempre considerar as opiniões dos(as) representados(as), sempre trabalhar em benefício deles(as), mas não a ponto de sacrificar seu próprio julgamento e “consciência esclarecida”, não a ponto de ter que obedecer “instruções impositivas”: [...] o governo e a legislação são temas de razão e julgamento e não de inclinação; que tipo de razão é essa em que a determinação precede a discussão, em que um grupo de homens delibera e outro decide e em que aqueles que formam a conclusão talvez distem 300 milhas daqueles que ouvem os argumentos? (BURKE, 2012, p.100-1). O parlamento, portanto, é um lugar de deliberação nacional, que deve ter como guia o “bem geral” e não os “preconceitos locais”; os diversos interesses devem ser considerados e conciliados, se possível, levando em conta a maquinaria “intricada e delicada” que é uma Constituição nacional. A teoria burkeana tem grande impacto no pensamento de Pitkin e na sua formulação da representação substantiva, representação como “agir” ou “atuar” para outras pessoas (“acting for”). 16 Nesse modelo, representantes devem ter certo grau de liberdade para agir, desde que não estejam persistentemente em contradição com quem representam. [...] representar, aqui, significa agir pelo interesse dos representados, de uma maneira responsiva a eles. O representante deve agir de maneira independente; suas ações devem envolver discrição e julgamento sensatos; ele deve ser aquele que age. Os representados também devem ser (concebidos como) capazes de ação independente e julgamento sensatos [...]. O representante deve agir de um modo que não haja conflito [entre o que ele faz e o interesse e as reivindicações dos representados], mas caso haja, uma explicação se torna necessária. Ele não deve estar persistentemente em desacordo com os desejos dos representados sem uma boa razão em termos dos interesses dos próprios representados (PITKIN, 1972, p.209). Essas condições são o que Pitkin chama de os limites exteriores da representação substantiva. Dentro desse limites, existe uma ampla gama de possibilidades relacionadas às diferentes visões sobre as capacidades e habilidades de representantes e representados(as), a natureza dos interesses envolvidos e das questões com as quais representantes devem lidar. Em relação às capacidades e aos interesses, quanto mais a pessoa representante for concebida como dotada de uma sabedoria superior capaz de determinar objetivamente os interesses das representadas, mais possível será que sua ação seja defendida em termos de uma grande liberdade em relação aos desejos de quem se representa. Nesse sentido, a teoria de Burke é uma das mais extremas. “Mas se tal visão for longe demais, acaba-se deixando o domínio da representação totalmente e acaba-se com um especialista decidindo questões técnicas e tomando conta das massas ignorantes como os pais tomam conta de uma criança” (PITKIN, 1972, p.210). Do outro lado, quanto mais os interesses forem vistos como subjetivos e quanto mais representantes e representados(as) forem vistos(as) como relativamente iguais em suas capacidades e habilidades, mais provável será que a representação seja vista como devendo basear-se em consulta ao eleitorado e em atos em resposta ao que se pede ao(à) representante. Esta concepção levada ao extremo também torna impossível o agir substantivamente por outros, porque quem representa deve ter um mínimo de independência para discutir e decidir no parlamento junto a outras pessoas e visões. A representação substantiva, portanto, é um meio termo entre esses dois extremos. A argumentação de Laclau de que a transparência total entre representante e representados(as), uma representação absoluta, seria equivalente à extinção da relação de representação, deve muito à formulação de Pitkin. Também para ele, os extremos, aos quais Pitkin se refere, não constituem representação. Nos termos de Pitkin, representantes devem ter um mínimo de liberdade, mantendo-se responsivos(as), ou seja, não estar permanentemente em contradição com o desejo de quem está sendo representado(a). Nos termos de Laclau, é própria da lógica do processo representativo a constituição de vontades e identidades, por isso o representante não pode atuar inteiramente independente dos representados, porque ele não é simplesmente uma “correia de 17 transmissão de uma vontade já constituída”. A relação entre Laclau e Pitkin, entretanto, não é pacífica. Na análise de Laclau sobre o populismo e a representação simbólica veremos surgir contradições que marcam duas visões muito distintas do processo representativo. Em relação a Burke, a questão que se levanta sobre representantes locais serem representantes nacionais, e portanto, trabalharem em um lugar diferente do qual provêm, devendo deliberar frente a visões e pessoas diferentes, tem muita relação com o que Laclau fala do processo representativo ocorrer num espaço de decisões diferente de onde as identidades básicas das pessoas representadas se constituem. Não entra, nessa definição, entretanto, a problematização sobre quem é representado(a), que tipo de pessoas ou grupos, se mulheres ou pessoas negras são bem representadas, por exemplo. Fato é que alguém sempre está sendo representado(a). Para chegar ao conceito de representação substantiva, Pitkin (1972) sistematiza diversas outras visões sobre o conceito, entre as quais destaca-se, para os propósitos deste artigo, a representação como “pôr-se em lugar de outros(as)” (“standing for others”), que divide-se em descritiva e simbólica. A diferença básica entre acting for e standing for é que, no primeiro caso, importa o que o representante faz, ou o que constitui a atividade da representação. No segundo caso, importa o que o(a) representante é, ou como deve ser para poder representar. Nesse sentido, a visão da representação descritiva, ou microcósmica, segundo Pitkin, é a de que pessoas representantes não atuam por suas representadas, mas as substitui, de maneira que os espaços representativos seriam como microcosmos da população, no sentido de uma correspondência estreita entre as características de representantes e as das representadas. A visão da representação simbólica, por sua vez, diz respeito à representação como um tipo de simbolização. Segundo Pitkin, quando falamos de um símbolo qualquer como um representante estamos assimilando-o a um tipo de símbolo cuja função é apenas representar. Seu sentido pode ser rapidamente identificado, de maneira que ele é, a grosso modo, um substituto para o que simboliza. Esta é a diferença entre um símbolo que representa e um símbolo que simboliza, pois, no segundo caso, existe uma vagueza sobre o que está sendo simbolizado e, por isso, a impossibilidade de trocar o símbolo pelo referente. Pitkin identifica um elemento de arbitrariedade em quase todos os símbolos, pois a conexão com o que é representado não baseia-se em semelhanças ou características externas. Por esse motivo, o único critério do que constitui um símbolo é a atitude e a crença das pessoas. Devido a essa arbitrariedade na conexão entre o símbolo e o referente e pelo fato de que tal conexão só existe onde há crença, a representação simbólica parece basear-se em respostas afetivas, irracionais e psicológicas. Nesse sentido, “a produção de símbolos não é um processo de persuasão racional, mas de manipulação de respostas afetivas e formação de hábitos” (PITKIN, 1972, p.101). 18 Quando alguém adota a representação simbólica como definitiva, diz Pitkin, tentando conceber todas as outras formas de representação em termos de simbolismo, projetam-se para dentro da vida política os mesmos traços peculiares ao modo pelo qual um símbolo representa. Nesse sentido, “a representação política não será uma atividade, mas um estado de coisas, não um agir em favor de outros, mas pôr-se em lugar de outros. Desde que as pessoas aceitem ou acreditem, o líder político, por definição, as representa” (PITKIN, 1972, p.102). Pitkin explica que este processo é visto por teóricos(as) da representação simbólica como uma correspondência de mão dupla, um acordo estabelecido entre governante e governados(as). Para que a representação exista, dessa forma, [...] não importa realmente como o representado se mantém satisfeito, se por algo que o representante faz, por sua aparência, ou porque ele consegue fazer que o representado se identifique com ele. [...] Mas, neste caso, um monarca ou um ditador pode ser um líder mais exitoso e dramático e, portanto, um melhor representante do que um membro eleito do Parlamento. Um líder como esse requer lealdades emocionais e identificação de seus seguidores, os mesmos elementos irracionais e afetivos produzidos por bandeiras, hinos e bandas em marcha. E, é claro, a representação vista dessa forma pouco ou nada tem a ver com o reflexo fiel da vontade popular, ou com a promulgação de leis desejadas pelo povo. [...] A verdadeira representação é o carisma” (PITKIN, 1972, p.106-7). Nessa visão, o líder político não pode ser passivo como um símbolo, por isso, ele é, na verdade, um produtor de símbolos e é aceito, portanto, por meio de sua atividade. Para Laclau, esse é o movimento da representação que vai da pessoa representante à representada. Mas Pitkin não considera que essa seja uma atividade de representação, e muito menos representação como agir em favor das representadas (acting for). É, pois, uma atividade que alimenta crenças, lealdades e satisfação no povo em prol do líder, algo que, por não haver justificativa racional em torno do(a) representante simbólico, baseia-se nas características irracionais da crença e em técnicas de liderança que tiram proveito de tais características. No extremo, esse ponto de vista se torna a teoria fascista da representação (não a teoria do Estado corporativo, mas a da representação por um Füher). A abordagem da representação simbólica sugere que não faz diferença qual ponta da relação representativa é alterada para que se mantenha o acordo ou o contrato entre governante e governados. Mas na teoria fascista, o equilíbrio definitivamente pende para o outro lado: o líder deve forçar seu seguidores a se ajustar ao que ele faz (PITKIN, 1972, p.107). Pitkin considera que ajustar a pessoa representante para que ela se alinhe à representada pode fazer parte da atividade de representação, mas o ajuste contrário não faz parte dessa atividade. E conclui indagando sobre a diferença entre as causas e as razões que levam as pessoas a acreditarem em um símbolo ou aceitarem um líder, pois a representação diz respeito não ao simples fato de que as pessoas aceitam as decisões de governantes, mas às razões que elas têm para isso. É importante, pois, indagar sobre os motivos, as razões das representadas, diz Pitkin, e não sobre as causas, como fazem teóricos(as) da representação simbólica. Uma vez que tenhamos chegado até aqui, temos todos os elementos teóricos necessários para abordar a lógica política do populismo como exposta por Laclau (2013) e, por último, 19 apresentar o debate dele com Pitkin (apud LACLAU, 2013; PITKIN, 1972), para entendermos como o conceito de representação de Laclau se insere em sua análise sobre o populismo, e como ele desenvolve sua crítica ao entendimento de Pitkin de que a representação simbólica envolve sempre irracionalidade e manipulação. Representação e Populismo Para Laclau (2006a; 2006b; 2013), o populismo é uma lógica própria de construção política, não um tipo específico de ideologia. E não pode ser identificado apenas como a relação entre uma liderança e seus “seguidores”. Laclau enfatiza a importância do investimento afetivo nos símbolos da construção populista, de acordo com uma orientação psicanalítica, mas não identifica esse afeto a uma irracionalidade, nem simplesmente aos atributos carismáticos da liderança. O populismo, esse momento, em última instância, da cristalização de um símbolo (palavras, imagens) e da nomeação de um(a) líder, é, além disso, o resultado da articulação de demandas sociais, num processo com profundas raízes sociais. A análise que Laclau faz sobre o populismo é a de uma teoria geral da formação de identidades coletivas, “populares”, uma análise sobre a construção política dessas identidades, processo marcado pela centralidade da ideia de “povo”. O “povo” é uma construção discursiva e, como tal, não está atrelado a ideologias específicas, podendo ir do socialismo ao fascismo, de orientações ideológicas à esquerda bem como à direita. Vejamos como se dá esse processo. Segundo o argumento de Laclau, uma ruptura populista ocorre quando um corte antagônico passa a dividir o espaço social, quando diversas demandas sociais insatisfeitas articulam-se contra o bloco de poder institucional, uma vez que este tenha perdido sua legitimidade e sua eficácia em absorver tais demandas institucionalmente. Lembrando o que já dissemos sobre a lógica da diferença e a da equivalência, a primeira é uma lógica institucionalista, através da qual as demandas sociais são absorvidas e respondidas pelo sistema. Imaginemos, por outro lado, uma situação em que diversas demandas sociais locais, relacionadas à falta de uma escola, de um posto de saúde, de um transporte público eficiente, por exemplo, aglutinam-se em torno dessa falta de satisfação administrativa em comum. Começa a operar, aí, a lógica da equivalência, quando se estabelece uma relação de solidariedade entre diversas demandas insatisfeitas, tornando-as reivindicações. É possível, então, que essa pluralidade de demandas passe a ser traduzida por símbolos em comum e, num determinado momento, sejam interpeladas por líderes contra o sistema vigente, donde emerge o populismo. Com a divisão da sociedade em dois campos antagônicos, o “povo” é algo menor do que a totalidade dos membros da comunidade, é um componente parcial (a plebs, os 20 desprivilegiados), que, ainda assim, almeja ser concebido como a única totalidade legítima (o populus, o corpo de todos os cidadãos). Nesse cenário, uma das demandas assume um papel contingente de representação hegemônica das outras. Podemos falar em populismo quando o campo popular se consolida a partir de um processo hegemônico de representação, através da produção de significantes vazios. O significante vazio é aquela demanda particular que, num determinado momento, começa a representar o discurso popular como um todo, assume a forma de uma universalidade relativa. Como o populismo envolve a articulação de demandas muito heterogêneas, quanto mais vasta for a cadeia de equivalências, mais ocorrerá um esvaziamento de sentido do significante que, embora nunca completo, é a condição para que esse significante opere a hegemonização do discurso popular. É, portanto, um significante tendencialmente vazio, como explica Laclau. A esse esvaziamento corresponde uma vagueza e indeterminação dos símbolos populistas que não é equivalente a uma fraqueza ou a um subdesenvolvimento ideológico, pois é resultado do fato de que a unificação populista advém de um espaço que é, em si mesmo, muito heterogêneo e, por isso, o discurso populista precisa ser vago e impreciso, é sua condição de existência enquanto uma luta de uma identidade popular extensa contra seu inimigo. Por isso o nome7 do(a) líder é um significante vazio, pra que ele seja capaz de exercer essa tarefa simbólica, de síntese da experiência populista8. A centralidade do(a) líder, segundo Laclau, não se explica pelo comum argumento da “manipulação”, pois esse tipo de explicação não nos ajuda a entender o tipo de relação que se inclui sob esse rótulo. Assim, Laclau considera que existe algo na cadeia de equivalências que anuncia os aspectos fundamentais da função do(a) líder: Já sabemos que quanto mais extensa a cadeia, mais vazio será o significante que a unifica – isto é, o particularismo mais específico do símbolo ou da identidade popular será 7 Esta nomeação se dá no sentido antidescritivista de Saul Kripke (apud LACLAU, 2006b), de que os nomes não se referem às coisas através da mediação das características descritivas, pois, na verdade, toda nomeação implica um “batismo originário”, no sentido de que aplicamos um nome a um objeto sem que esse nome implique qualquer característica descritiva. Essa visão é complementada pela teoria psicanalítica lacaniana (apud LACLAU, 2013; 2006b), a qual sustenta que “a unidade do objeto é simplesmente uma unidade retroativa que resulta do processo de nomeá-lo, isto é, há uma série de características heterogêneas cuja unidade é somente garantida pelo nome” (LACLAU, 2006b, p.27). 8 Numa discussão mais aprofundada da análise de Laclau sobre o populismo, deveríamos lidar também com o conceito de significante flutuante (LACLAU, 2013; 2006b). O significante vazio diz respeito à construção de uma identidade popular e de uma fronteira estável entre os campos antagônicos e é isso que permite o estabelecimento das cadeias de equivalência populares. Mas não é razoável pressupor que essa fronteira se mantém sempre estável, sem qualquer mudança, pois os que estão do outro lado da fronteira, os “inimigos”, vão tentar desestabilizá-la, de maneira que as demandas articuladas do lado popular vão sofrer uma pressão entre projetos hegemônicos rivais, a partir do momento em que o lado inimigo tentar absorver alguma dessas demandas hegemonicamente. Daí surgem os significantes flutuantes, cujo sentido, diz Laclau, está suspenso. Essa categoria, portanto, tenta apreender a lógica dos deslocamentos da fronteira entre os dois campos, uma vez que construir um “povo” implica construir também a fronteira pressuposta por esse “povo”. 21 subordinado à função universal de dar um significado à cadeia enquanto uma totalidade. Sabemos também algo mais: que os símbolos ou as identidades populares, sendo uma superfície de inscrição, não expressam passivamente o que está inscrito na cadeia, mas na verdade constituem aquilo que eles expressam através do próprio processo de sua expressão. [...] se – dada a radical heterogeneidade dos elos que compõem a cadeia de equivalência – a única fonte de sua articulação coerente for a cadeia enquanto tal, e se a cadeia existe apenas na medida em que um dos elos desempenha o papel de condensar todos os demais, nesse caso, a unidade da cadeia discursiva é transferida da ordem conceitual (lógica da diferença) para a ordem nominal. [...] o nome torna-se o fundamento da coisa. [...] a lógica de equivalência conduz a uma singularidade e esta leva a uma identificação da unidade do grupo com o nome do líder (LACLAU, 2013, p.158-9). Nesse processo, a dimensão afetiva desempenha um importante papel, pois a identidade hegemônica se torna o objeto de um investimento afetivo, na medida em que representa uma possibilidade de satisfação das demandas populares. [...] é necessário o afeto para que a significação venha a ser possível. O afeto não é algo que existe por si próprio, independentemente da linguagem. Ele se constitui somente através da catexia diferencial de uma cadeia de significação. [...] os complexos que denominamos “formações discursivas ou hegemônicas”, que articulam a lógica diferencial e a lógica da equivalência, seriam ininteligíveis sem o componente afetivo (é uma prova a mais [...] do equívoco de descartar os aspectos emocionais do populismo em nome de uma racionalidade que não se deixa contaminar). [...] qualquer todo social resulta de uma indissociável articulação entre dimensões significantes e afetivas (LACLAU, 2013, p.173-4). Entretanto, na discussão sobre a constituição das identidades populares, Laclau explica que lidamos com um tipo de todo que não é composto apenas de partes, mas no qual uma parte funciona como o todo (a plebs que se reivindica idêntica ao populus). Por fim, [...] nada existe na materialidade das partes predeterminando que uma ou outra funcione como um todo. No entanto, uma vez que certa parte assumiu semelhante função, é sua própria materialidade enquanto parte que se tornará uma fonte de gozo. [...] [Nesse sentido], não existe populismo sem investimento afetivo num objeto parcial (LACLAU, 2013, p.1789, 180). Com tudo isso, o que Laclau está questionando é a suposição das identidades dos sujeitos políticos como algo fixo, pois ele considera que tais sujeitos decorrem de articulações de demandas, e estas demandas não são elementos preexistentes, pois dependem de sua articulação umas com as outras e com o outro ao qual se dirigem. Quando Pitkin (1972) se pergunta sobre a diferença entre as causas e as razões que as pessoas têm para aceitarem e acreditarem num(a) líder, conforme mencionamos anteriormente, ela quer dizer que tais razões operam fora da representação e independem de qualquer processo de identificação. Laclau (2013, p.235) diz que o problema não reside em distinguir entre causas e razões, mas “analisar se as fontes de validade das razões precedem a representação ou são constituídas através da representação”, pois o processo representativo incide sobre as identidades básicas, constituindo-as. Mas se as razões forem vistas como operando fora da representação, a conclusão será a de Pitkin, de que toda representação simbólica é irracional e manipulativa, mesmo em casos menos extremos do que o fascismo. Para Laclau (2013, p.236), Pitkin “não consegue distinguir de maneira apropriada entre o que seria manipulação e o desprezo pela vontade popular e o que seria a constituição daquela vontade através da identificação simbólica”, e também não leva em 22 consideração se a representação poderia ser o ponto de partida dessa constituição. O que constitui uma pergunta legítima é se existe uma tensão entre o momento da participação popular e o momento do líder, se a prevalência do segundo não pode levar à limitação do primeiro. É verdade que todo populismo está exposto a esse perigo, mas não há nenhuma lei de ferro que determine que sucumbir a ele é o destino manifesto do populismo (LACLAU, 2006a, p.60-1). Nesse ponto podemos entender a importância da discussão sobre representação e populismo em Laclau. Esses conceitos podem ser entendidos um como complemento do outro. Em primeiro lugar, o duplo movimento da representação está presente no populismo, porque a emergência de um “povo” depende da identificação com um significante vazio (um movimento das pessoas representadas em direção à representante), e essa identificação só acontece porque o significante de fato representa a cadeia de equivalências, ele não pode ser um momento totalmente autônomo em relação às demandas da cadeia (um movimento da pessoa representante às representadas). Laclau (2013, p.237-8) explica que esse duplo movimento gera uma tensão entre o “momento totalizador”, que pode chegar a destruir o “povo” caso se torne inteiramente autônomo, e as demandas articuladas, que caso se autonomizem além da conta, acabam rompendo a cadeia de equivalências e tornando impossível o “momento da totalização representativa”. Em segundo lugar, essa é a mesma tensão existente entre os dois movimentos da representação, que são opostos, mas que dependentes um do outro. É por isso que a análise sobre o populismo também diz muito sobre o cerne da representação. O populismo não é, diz Laclau (2013, p.238), um caso particular para uma teoria geral da representação, é “um caso paradigmático porque é aquele que revela a representação naquilo que ela é: o terreno primário da constituição da objetividade social”. Além disso, e ainda em contraposição à Pitkin, é preciso enfatizar, sem mais delongas, que alguns movimentos populistas podem ser totalitários, mas a construção de equivalências e sua unificação em torno de significantes vazios é uma condição também para a construção de vontades coletivas democráticas que venham a se articular contra um sistema inapto a satisfazer demandas sociais. Considerações finais: Representação e Democracia Pudemos ver, ao longo do artigo, a noção de representação desenvolvida por Laclau como constituição de identidades e compará-la com a de Pitkin e com a teoria apresentada por Bishin. Em relação a Bishin, o fato de que grupos sejam atendidos diz respeito a uma situação, segundo uma interpretação laclauniana, em que a institucionalidade consegue absorver tais demandas e, nesse sentido, opera a lógica da diferença. A emergência de populismos na América 23 Latina9, porém, demonstra a operação da lógica da equivalência e, portanto, uma limitação da teoria de Bishin em relação a contextos diferentes do da política estadunidense. Nos resta, todavia, levar em consideração a relação de constituição de identidades e demandas, nos termos de Laclau, que podemos observar no comportamento dos políticos dos EUA em resposta e em ativação das identidades de grupos, conforme descrito por Bishin. E em relação à Pitkin, Laclau deve mais à formulação dela do que parece admitir, mesmo que fosse apenas para criticá-la. Mas também é verdade que Laclau avança em relação à Pitkin: o que ela vê como ameaça à política democrática, Laclau enxerga como vitalidade. Como vimos, a representação é constitutiva da relação hegemônica (LACLAU; MOUFFE, 2001; LACLAU, 2001; 2011d; 2013), pois a “universalidade” da comunidade só pode ser alcançada através da mediação de uma particularidade, o que torna constitutiva a relação de representação, ao mesmo tempo em que é imperfeita, mas não inteiramente impossível. Uma relação representativa absoluta e transparente é a ilusão que acompanha noções de emancipação total, e, por outro lado, a negação de qualquer possibilidade de relação representativa é apenas um niilismo pós-moderno. Laclau escapa a essa dicotomia, pois, ao acolher a perspectiva de que não existe um fundamento racional último da sociedade, argumenta que a representação total é impossível, mas nem por isso são impossíveis as representações parciais, imagens mais ou menos adequadas do mundo. A representação, para Laclau, é também uma condição de possibilidade da democracia, pois se existe um vazio na identidade dos atores sociais e estes buscam seu preenchimento e se esse preenchimento não está predeterminado por nenhum conteúdo em específico, vários conteúdos irão competir para realizar esta função. O universal, numa democracia, é uma identidade vazia, sem corpo ou conteúdos necessários e predeterminados, de maneira que diferentes identidades vão competir para preencher este vazio, dando a seus particularismos uma função de representação universal, hegemônica, gerando significantes vazios cujos sentidos são sempre temporários, precários, e contingentes. 9 Laclau analisa com detalhes a emergência do populismo, por exemplo, com o peronismo na Argentina (LACLAU, 2013, 2011e), e, mais rapidamente, na Venezuela com o chavismo e o bolivarianismo (LACLAU, 2006), entre vários outros exemplos e contextos diferentes dos da América Latina (LACLAU, 2013). 24 REFERÊNCIAS ALTHUSSER, Loius. “Contradição e Sobredeterminação”. In: Análise crítica da teoria marxista. Trad. Dirceu Lindoso. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967. BISHIN, Benjamin G. Tyranny of the minority: the subconstituency politics theory of representation. Philadelphia: Temple University Press, 2009. BURITY, Joanildo Albuquerque. 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