Organizar o romantismo ou uma lição em

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Organizar o romantismo ou uma lição em
 Organizar o romantismo ou uma lição em coreografia com uma chávena de chá Como no caos organizado da Natureza, os extremos atraem‐se na pessoa de Anne Teresa De Keersmaeker. Ícone da dança contemporânea, assume‐se apenas aprendiz duma obsessão. Celebrada pela poesia geométrica do movimento, confessa‐se uma romântica intuitiva. Protagonista dos maiores palcos do mundo, usa nada mais que uma chávena para explicar o que é o seu trabalho. Manhã cedo, Anne Teresa De Keersmaeker sentou‐se à mesa de madeira do seu gabinete para uma longa conversa, antes de um intenso dia de trabalho, no espaço de ensaios da companhia Rosas, em Bruxelas. Falou de ser mãe, de Lisboa ou de montanhas, mas esteve sempre a falar sobre dança. E quando falou de dança, era sobre pessoas. uma conversa com Anne Teresa De Keersmaeker por Tiago Rodrigues* TR ‐ Criaste Lisbon Piece em 1998, para a Companhia Nacional de Bailado, que é ainda a única coreografia tua para uma companhia que não as Rosas. Ao longo dos anos, o teu trabalho tem sido muito apresentado em Portugal. Esta presença tão forte em 2012 também acaba por ser uma forma de celebrar a tua relação com o país? ATDK ‐ Acho que sim. Tenho tido uma relação muito regular com Portugal. A certa altura, houve um hiato, mas este ano vamos apresentar muitas peças minhas em Portugal, o que é uma oportunidade excelente para revitalizar essa relação. TR ‐ E para lá da relação profissional, como é que te dás com o país? ATDK ‐ É difícil não cair nos lugares comuns quando se fala de Portugal. Quando eu penso em Portugal, penso sempre no oceano. É inevitável. Acho que Portugal é uma Espanha muito melhor. TR ‐ É extremamente simpático da tua parte colocares as coisas dessa maneira. ATDK ‐ A verdade é que, em Portugal, tenho sempre uma sensação de que há um olhar para o outro lado. Como se os portugueses pudessem ver algo mais do que aquilo que é apenas visível. Talvez tenha a ver com a situação geográfica. Fico sempre extremamente impressionada quando vou a Sagres. Tem a ver com essa ideia de estar num lugar de onde partiram pessoas em caravelas sem saber para onde iam. TR ‐ E Lisboa? ATDK ‐ Em Lisboa sente‐se uma mistura entre tradição e um certo sentido de anarquia. É uma cidade de misturas e de fronteiras. Talvez precisamente porque essa noção do que está distante estar tão presente. TR ‐ A tua obra vai estar muito presente em Lisboa em 2012. És a artista da cidade. Em 3Abschied, que criaste com Jérôme Bel, vais até dançar para os lisboetas. Pode resumir­se um espectáculo da Anne Teresa De Keersmaeker a isso: dançar para alguém? ATDK ‐ Se não estiver a dançar para ti, estou a dançar para mim. Ou há outra opção? TR ‐ Assim de repente, não sei se há outra opção. ATDK ‐ Há sempre um movimento circular num espectáculo. Um fluir de energia entre o que está a ver e aquele que é visto. Entre aquele que age e o que testemunha. TR ‐ E isso é o que define um espectáculo teu? ATDK ‐ Para mim, trata‐se de criar um espaço e um tempo separados onde podemos ter uma experiência partilhada. Isso significa que a experiência é vivida tanto por mim como por ti, ou por vocês, o público. TR ‐ É esse o tal movimento circular? ATDK ‐ Sim. Num certo sentido, eu danço para alguém. Mas também danço para mim. É uma ligação horizontal, aquela que crio com o público. Mas também há uma ligação vertical, em que saio do espaço física e mentalmente. TR ‐ Vertical pode ser traduzido por espiritual? ATDK ‐ Podes usar essa palavra. Eu não separo essas coisas. A Natureza é física ou espiritual? Acho que é as duas coisas. O meu corpo é construído verticalmente. A minha coluna é construída para criar uma ligação com o que está acima de mim literalmente, mas também com aquilo que está para lá de mim. E só posso criar essa ligação se tiver os pés na terra. Se eu for esse eixo, que liga a terra ao que está acima, então também consigo ligar‐me a ti, que estás à minha frente. Acho que é algo essencialmente humano. Quando eu danço, o que estou a fazer é, basicamente, celebrar essa ligação. TR ‐ É uma comunhão com transcendência. ATDK ‐ É uma comunhão na transcendência. TR ‐ Dito assim parece uma liturgia. É quase uma missa. ATDK ‐ Não é liturgia porque a liturgia obedece a uma série de códigos muito específicos. TR ‐ Mas a tua coreografia usa regras específicas. Muitas formas geométricas, por exemplo. ATDK ‐ Deixa‐me colocar as coisas de uma forma muito simples. Acho que sou uma pessoa muito romântica. E que a ferramenta mais forte com que trabalho é a minha intuição. TR ‐ No entanto, os adjectivos mais habituais para o teu trabalho são "racional", "matemático" ou "severo". ATDK ‐ Acho que é um fenómeno muito natural ser atraído pelo oposto. É como cozinhar. A atracção mais forte é pelo sabor oposto. TR ‐ Então organizas a tua intuição? ATDK ‐ Organizo a minha intuição. Acho que coreografar pode ser uma maneira de organizar o meu romantismo. TR ‐ Como é que fazes isso? ATDK ‐ Ao longo dos anos, desenvolvi um conhecimento bastante vasto e articulado de como queria organizar o meu romantismo. A música foi sempre essencial. "Roubei" ideias de muitos compositores e de música de diferentes períodos. A minha aprendizagem da música ditou o meu percurso de uma maneira fundamental. TR ‐ Também foste fortemente influenciada por um certo pensamento oriental. ATDK ‐ Sobretudo o que aprendi sobre energia, que veio muito da macrobiótica. TR ‐ Mas o teu primeiro contacto com esse pensamento foi através de um professor de ritmo na MUDRA (escola de Maurice Béjart, em Bruxelas). ATDK ‐ O Fernand Schirren era uma espécie de versão belga desse pensamento oriental. Ele era um professor notável que complementava a teoria e a prática muito bem. Falava muito da noção unidade através da polaridade, dos opostos. Basicamente, trata‐se de um movimento de abertura e de fechamento. TR ‐ E continuaste a pesquisar esse pensamento oriental. ATDK ‐ Sim. Durante os últimos 20 anos, tem sido uma fonte de inspiração e de aprendizagem para mim e para o meu trabalho. TR ‐ Como é que essa influência se configura no teu trabalho? ATDK ‐ Trata‐se de procurar quais são as regras que organizam o tempo e o espaço, que é precisamente o que tu fazes quando coreografas. E perceber como é que essa organização pode acontecer à imagem da Natureza. TR ‐ À imagem da Natureza? ATDK ‐ Porque a organização da Natureza é feita de uma grande diversidade. E a ordem que há na Natureza é a ordem que há no universo. TR ‐ Tens uma relação muito forte com a Natureza, não é? Tens viajado para lugares remotos onde a Natureza tem um poder muito grande. Estiveste na Mongólia, nos Himalaias... ATDK ‐ E subi o Mont Blanc, recentemente. Foi uma loucura. TR ‐ Tens uma coisa com montanhas. ATDK ‐ Gosto muito de fazer caminhada nas montanhas. TR ‐ E vais para as montanhas para te esvaziar ou para te encher? E não me digas que são ambas as coisas. ATDK ‐ São ambas as coisas. TR ‐ Claro! ATDK ‐ É um movimento de entrada e saída. É o tal movimento circular. TR ‐ E de onde vem esta relação com a Natureza? ATDK ‐ O meu pai tinha uma quinta nos arredores de Bruxelas e, quando era criança, passei muito tempo nos campos com os animais. Passei muito tempo a fazer parte da Natureza. De certo modo, é a esse lugar que eu volto sempre. TR ‐ Quando estás a criar uma peça, é uma maneira de fazeres parte da Natureza? ATDK ‐ É uma maneira de estudar a Natureza, duma forma ampla que nos permite perguntar as grandes questões filosóficas. E de manter um certo deslumbramento pelas coisas. TR ‐ Deslumbramento por quais coisas? ATDK ‐ Para começar, pelo espaço e pelo tempo. Especialmente porque, sendo coreógrafa e bailarina, o teu instrumento é o teu corpo. Acabas por passar os dias a viver a experiência do espaço e do tempo, do uso do espaço e da passagem do tempo. O primeiro lugar em que experiencias o espaço e o tempo é no teu corpo. TR ‐ É por isso que vais a esse lugares monumentais como o Mont Blanc ou os Himalaias? Para que o teu corpo se deslumbre com esses espaços? ATDK ‐ Não precisas, necessariamente, dos Himalaias ou do Mont Blanc para sentir isso. Basta ires aqui à frente, deitares‐te na relva e olhares para o céu. Ou para aquela árvore. TR ‐ É uma árvore incrível. É protegida, não é? ATDK ‐ Foi considerada um monumento da cidade de Bruxelas. TR ‐ Mas, apesar de tudo, é diferente estar debaixo duma árvore em frente ao espaço das Rosas, em Bruxelas, ou estar nos Himalaias? ATDK ‐ A grande diferença é o ar que respiras. E isso é algo que não podes controlar. Mas o que motiva as viagens são as caminhadas. É o movimento. TR ‐ Sempre o movimento. ATDK ‐ Mas tento não ser ambiciosa em relação às minhas caminhadas. TR ‐ Os destinos são bastante ambiciosos. ATDK ‐ Sim, mas não faço caminhadas nos glaciares. TR ‐ Por enquanto. ATDK ‐ Sim, por enquanto. TR ‐ Então a tua motivação não é a conquista das montanhas. ATDK ‐ Não. É sobretudo uma maneira muito bela de estar em contacto com o tempo natural. É uma forma de meditar, acho eu. Claro que lavar a loiça também é uma maneira de meditar. Mas quando se está nesse ambiente em que tudo o que nos rodeia é natural, em que tudo é transformado pela passagem da luz, há uma vibração muito diferente. TR ‐ As montanhas não acabam por ser também um escape a todas a pressão que acompanha o facto de seres um ícone da dança contemporânea? Como é que lidas com isso no teu quotidiano? ATDK ‐ Como é que eu poderia possivelmente lidar com isso? O que é que significaria "lidar com isso"? TR ‐ Quando estás a ensaiar, sentes a pressão de seres um dos grandes nomes da dança a nível mundial? ATDK ‐ Quando eu estou no estúdio e tenho uma ideia, quando penso que quero trabalhar com esta música ou aquelas pessoas, não posso incluir nessas decisões as expectativas que possam estar ligadas a um alegado "estatuto" que eu tenha enquanto artista. Nem sequer saberia o que isso significa. É claro que tens em conta a tua experiência de como o público percepciona a tua organização do espaço e do tempo. A paciência que têm, a forma como poderão aderir. Isso faz parte do teu savor faire. Mas isso não tem nada a ver com estatuto. TR ‐ Então a tua reputação não entra nos ensaios? ATDK ‐ Deixa‐me ver se consigo encontrar um exemplo do que aconteceria se a minha reputação entrasse nos ensaios. Imagina que eu penso que quero fazer uma peça muito lenta e silenciosa. Mas depois punha‐me a pensar e dizia: não posso fazer isto, porque não vai ter sucesso e não é o que as pessoas esperam de mim nesta altura. Este é um bom exemplo, não é? Isto é precisamente o que não acontece. TR ‐ Mas com Keeping Still ou The Song há um desvio consciente daquilo que é a expectativa de um público em relação ao que uma peça da Anne Teresa De Keersmaeker deveria ser? ATDK ‐ O que houve nesses casos, foi um desejo de regressar a um lugar com menos coisas. Há uma certa economia de meios que permitiu voltar a fazer perguntas fundamentais. O que é que se passa com este corpo? Como é que o movimento é gerado num corpo? Qual é a relação entre som e movimento? Qual é a relação entre a música e a dança? TR ‐ Foi como voltar ao início do teu trabalho? ATDK ‐ Eu quis colocar estas questões tal como as coloquei nos meus primeiros trabalhos, como Fase ou Rosas Danst Rosas, quando ainda não tinha 30 anos de experiência. Tinha a necessidade de criar uma espécie de tábua rasa e fazer essas perguntas de novo. Mas espantou‐me muito que houvesse tanta gente a dizer que eu quis ir contra as expectativas. Acho que todo o meu trabalho foi sempre um processo de aprendizagem. Quando fiz as minhas primeiras peças, eu não sabia coreografar, não sabia como gerar vocabulário. TR ‐ Se não sabias, como é que fazias? ATDK ‐ Sempre fui muito ambiciosa, mas nunca tive vergonha de mostrar e potenciar as poucas coisas que sabia. E as poucas coisas que sabia eram as perguntas que tinha para colocar. O que tentei sempre fazer foi partilhar essas perguntas. TR ‐ Mais uma pergunta ignorante: como é que colocas essas perguntas usando os corpos dos bailarinos e sem recurso a palavras? ATDK ‐ Espera, Tiago. Vou tentar encontrar uma maneira... (acaba de beber o chá que resta na sua chávena e coloca­a de pernas para o ar sobre a mesa) Podes olhar para esta chávena desta maneira. (afasta a chávena para perto de si) Também podes olhar para ela desta maneira. (coloca a chávena no extremo oposto da mesa e depois fá­la girar) Também podes olhar desta maneira. E desta. E desta. É diferente quando está aqui ou quando está ali. TR ‐ E isto é que é coreografia? ATDK ‐ Coreografia é organizar estas acções umas a seguir às outras. TR ‐ E como é que isto pode servir para fazer perguntas? É pelo desafio que me é colocado para ver de uma maneira diferente? ATDK ‐ É transformando a tua percepção. Além disso, coreografam‐se corpos em vez de chávenas. E esses corpos carregam a memória de todas experiências humanas possíveis. São um gigantesco reservatório de energia transformadora. São corpos que perguntam quem somos e onde estamos. TR ‐ E depois de 30 anos a fazer essas perguntas, não tens a sensação de te repetir? ATDK ‐ Não tenho a sensação de ter uma linguagem ou um código estabelecidos. É sobretudo uma procura. É sempre uma procura. TR ‐ E é ainda a mesma procura? ATDK ‐ É ainda a mesma procura e agora mais do que nunca. Continuo a dançar as minhas primeiras peças, mas danço também peças recentes onde essa procura está cada vez mais presente. Aqui misturam‐se um pouco o ponto de vista da coreógrafa e da bailarina. TR ‐ O facto de dançares uma boa parte das tuas próprias peças teve muita influência no teu desenvolvimento como coreógrafa? ATDK ‐ Foi outra parte crucial da minha aprendizagem. Nos meus primeiros trabalhos, eu dançava em todas as peças. A escrita das coreografias era muito ancorada nessa experiência de intérprete. Ao passo que, mais tarde, afastei‐me um pouco da interpretação e comecei a trabalhar em material que era dançado por outros. O vocabulário era‐me oferecido pelos bailarinos no estúdio e desenvolvi capacidades diferentes. TR ‐ Mas, recentemente, voltaste a dançar em novas peças? Agora é diferente? ATDK ‐ É, porque sou diferente, mas sobretudo porque acumulei toda essa experiência anterior e trouxe‐a para as minhas ambições coreográficas. TR ‐ Mas não sentes nenhuma distância quando danças peças mais antigas? ATDK ‐ Há uma certa distância, sim. Mas trata‐se sobretudo da questão da escrita coreográfica ou da soberania da escrita. O facto de ter uma percepção diferente dessas peças, faz emergir a escrita. Faz com que a escrita se sustente sozinha. TR ‐ E qual é a diferença para ti, enquanto intérprete? ATDK ‐ O que começa a ser um pouco estranho é que essas primeiras obras reflectem o que se passava na minha cabeça e no meu corpo nessa época. E o que se passava no mundo e a minha relação muito específica com esse mundo. Quando se é 20 ou 30 anos mais velho, as coisas mudaram. Eu mudei. É muito bonito interpretar de novo essas peças. É como revisitar um lugar. TR ‐ E qual é a tua relação com peças tuas em que eras intérprete e agora são interpretadas por outros? ATDK ‐ Essa é a situação que me custa mais, porque a minha percepção da peça era enquanto bailarina. Mesmo tendo sido eu a coreografar a peça, sentia‐a sobretudo enquanto bailarina. Estar de fora e vê‐la interpretada por outros, obriga‐me a compreender a peça de outro modo e é mais difícil. TR ‐ Mas isso acontece com muitas das tuas peças que se tornaram reportório em escolas ou companhias. E tens que lidar com isso diariamente, até aqui na P.A.R.T.S. (escola de dança contemporânea dirigida por ATDK, sediada em Bruxelas, nas mesmas instalações que a companhia Rosas). ATDK ‐ Aprender uma peça como intérprete é a melhor maneira de aprender a arquitectura de uma peça. E no caso da P.A.R.T.S., os alunos aprendem fragmentos do material das peças e constroem também o seu próprio material. Isso acontece com as minhas peças, como com as da Trisha Brown ou outros coreógrafos. É essencial que isso aconteça porque é a melhor forma de transmitir conhecimento. TR ‐ E no caso das companhias que remontam peças tuas? O Ballet Opera de Paris montou recentemente Rain e agora a Companhia Nacional de Bailado, em Lisboa, vai remontar Prelúdio à Sesta dum Fauno, Grosse Fuge e Noite Transfigurada. ATDK ‐ Eu sempre fui muito relutante em abrir mão dessas peças, mas devo dizer que depois desta experiência com Paris, acho que é uma boa maneira de ver como as coreografias vivem por si só. E é também uma maneira de deixar as peças existirem. Não é como um texto literário ou uma composição musical. Se as peças não forem apresentadas, não existem. Voltar a apresentá‐las é a única forma de as oferecer a novas gerações de bailarinos e de público. E até a públicos que tenham já visto essas peças, serve‐lhes para traçar uma linha no tempo. TR ‐ Ver como outros remontam o teu trabalho acaba por influenciar o que estás a desenvolver neste momento? ATDK ‐ Tem‐me permitido pensar sobre como passar a escrita coreográfica a outros. Tenho pensado muito sobre o que é a autonomia da escrita e qual é o espaço que os intérpretes preenchem. TR ‐ Os teus intérpretes têm uma participação muito grande na escrita? ATDK ‐ Apesar de dependerem das minhas ideias, a maioria das minhas peças são também muito ancoradas na relação de trabalho com os bailarinos. Por exemplo, Drumming nunca seria o que é se não tivesse sido feito com uma bailarina como a Cynthia (Loemij) ou com o Roberto (Oliván de la Iglesia) ou o restante elenco dessa criação. São relações muito intensas que se criam. TR ‐ E quando esses intérpretes que participaram da criação são, anos mais tarde, substituídos por outros? O que é que acontece às peças? ATDK ‐ Quando a escrita é boa, a peça tolera o facto de esses indivíduos que foram determinantes já não estarem em palco. Naturalmente, perde‐se a personalidade desses bailarinos e, por isso, é fundamental que os novos intérpretes que vêm sejam muito bons não só a aprender a peça, mas também a torná‐la sua. Às vezes, as peças até se tornam melhores, o que é um pouco... Embaraçoso não é a palavra certa... É curioso. TR ‐ Quando falas de intérpretes muito bons, de que é que estás a falar? O que é que procuras num bailarino? ATDK ‐ Talvez pareça uma maneira demasiado simples de colocar as coisas, mas o que eu procuro são pessoas com quem possa trabalhar. No processo de ensaios, eu proponho coisas e faço perguntas. Os intérpretes procuram respostas a essas perguntas. Por isso, é natural que procure pessoas com quem consigo criar uma ligação. TR ‐ Que tipo de ligação? ATDK ‐ Uma ligação que se cria porque partilhamos ideias sobre o movimento, porque amamos a dança, porque acreditamos que o movimento deve ser levado a sério. Acho que procuro pessoas que têm uma grande sentido de disciplina e de rigor, mas que, ao mesmo tempo, não têm barreiras na sua imaginação. Procuro também bailarinos com uma grande intuição e com a necessidade de reflectir intelectualmente sobre o que fazem em palco. TR ‐ O que é queres dizer quando falas de levar o movimento a sério? ATDK ‐ Estou a falar de um bailarino considerar o movimento a mais importante ferramenta de comunicação que possui. De não se relacionar com o movimento apenas no plano do virtuosismo, mas de estar interessado no seu estudo porque acredita que o movimento é uma grande parte daquilo que ele é enquanto pessoa. TR ‐ Também tens que pensar na relação entre bailarinos dentro de um grupo. ATDK ‐ Sim. Muitas vezes, não penso apenas nas pessoas individualmente, mas em como se podem combinar umas com as outras. Penso em como criar um grupo e em que tipo de estratégias e de química é que podem surgir se juntarmos esta pessoa com aquela. É exactamente como cozinhar. TR ‐ E é uma parte do trabalho que te dá especial prazer? ATDK ‐ Sim, porque é sempre um pouco como uma aposta. Combinar a energia das pessoas é tentar descobrir como é que as pessoas se podem ajudar, empurrar, controlar umas às outras. É criar dinâmicas. TR ‐ E essa dinâmica é determinante para a peça que estejas a criar? ATDK ‐ Absolutamente. Eu nunca sei que peça vou fazer quando começamos. Tenho uma ideia e tenho perguntas, mas a peça escreve‐se a si própria através das respostas que o grupo dá. E as respostas que cada um dá vêm da sua individualidade. O Carlos (Garbin) escreverá algo completamente diferente da Chrysa (Parkinson) ou da Cynthia (Loemij). TR ‐ Pode dizer­se que dependes dos bailarinos? ATDK ‐ Para mim, como coreógrafa, é um processo socialmente muito intenso. Eu escrevo com as pessoas. Não há um texto, como no teatro. Sobretudo se não houver música, não há nada parecido com o texto em que nos possamos suportar. Por isso, o texto vai ser escrito com as pessoas. TR ‐ Mas há uma direcção tua que é muito forte. Pelo menos, é o que se diz. ATDK ‐ Sim. Eu sou muito directiva. Isso cria uma relação ainda mais carregada entre o bailarino e a coreógrafa. Porque a minha relação com as respostas que os intérpretes oferecem às minhas perguntas é "isto eu quero, aquilo não quero". Eu escrevo a partir do vocabulário que eles me oferecem, mas é deles que vem o material. E, ao longo dum processo, esse material é muito influenciado pela relação que o grupo tem entre si. É como um microcosmos. E, nos últimos anos, eu tenho investido cada vez mais nisso. Eu gosto muito deste trabalho intenso e longo no movimento. TR ‐ Quanto tempo demoras a criar uma peça? ATDK ‐ Passamos quatro meses no estúdio, mas a preparação antes de entrar no estúdio torna o processo ainda mais longo. TR ‐ Mesmo com processos longos, criaste peças sempre com uma grande regularidade e não tens dado sinais de estar a abrandar o ritmo. ATDK ‐ Nos últimos anos, tenho tido a preocupação de criar uma peça por ano para a companhia. No entanto, como quero continuar a dançar, tenho tentado criar uma segunda peça, às vezes de menor escala, onde também danço. TR ‐ Além de todo esse trabalho, ainda tens as digressões. Continuas a ter prazer em viajar com as tuas peças? ATDK ‐ Não deixa de ser trabalho, mas eu estou rodeada de pessoas muito bonitas nas equipas com que viajo. Deixa‐me profundamente feliz ver essas pessoas a fazerem as minhas peças. TR ‐ Mas há muitas peças tuas que fazem digressão sem ti. ATDK ‐ Sim, isso acontece bastante agora. Viajo menos com as peças porque quero estar em casa com os meus filhos. E estou farta dos aviões. TR ‐ Quando fazes digressão, o que é que procuras na cidade onde estás? ATDK ‐ Procuro sempre um parque ou uma floresta onde possa caminhar. Visito alguns museus. TR ‐ Também tens que lidar com entrevistas e reuniões. ATDK ‐ Sim, mas a digressão permite‐me também resguardar‐me no hotel e ter tempo para ler e tocar flauta. E cozinho. Cozinho muito. TR ‐ Mesmo em digressão? ATDK ‐ Mesmo em digressão. Porque como comida macrobiótica. TR ‐ Podias fazer uma guia mundial de restaurantes macrobióticos. ATDK ‐ Podia. Podia mesmo. Por falar nisso, acho que Lisboa é a cidade do mundo com mais restaurantes macrobióticos. Mas é verdade que, em digressão ou não, tenho muitas responsabilidades que já têm pouco a ver com a criação. TR ‐ Estás envolvida em muitos outros projectos. Por exemplo, a tua escola. ATDK ‐ A P.A.R.T.S. nunca é um peso. Eu estou presente na escola, mas numa segunda linha. Apesar de ter uma ligação muito forte ao projecto, a escola tem uma vida própria que não depende de mim. TR ‐ Mas tens toda uma agenda fora do estúdio. As reuniões, as entrevistas. Conversas como esta... ATDK ‐ Isso é o que custa mais. TR ‐ O que é que estarias a fazer agora se não estivesses a conversar comigo? ATDK ‐ A caminhar na floresta ou a fazer ioga. TR ‐ Tens que lutar para ter o tempo para essas coisas? ATDK ‐ Sim, às vezes é uma luta. E também me dou conta que tenho cada vez menos disponibilidade ou flexibilidade para estar a fazer cinco coisas ao mesmo tempo, Gostaria de fazer apenas uma coisa de cada vez. Ainda não consigo. É muito ambicioso ter uma companhia, dançar, ter filhos. TR ‐ A maternidade teve uma grande impacto no trabalho? ATDK ‐ Desde logo, na gestão do tempo. Ser mãe implica pensar no tempo de uma forma muito diferente. TR ‐ A dança tornou­se mais ou menos importante? ATDK ‐ As duas coisas. Uma coisa que é muito específica para uma bailarina é que a idade em que pode dançar, em que o seu corpo é mais forte, é também a idade em que pode ter filhos e estar com eles. Claro que podes dançar aos 60 anos ou quando os teus filhos forem adultos. Mas, regra geral, uma bailarina que seja mãe, está no seu auge exactamente ao mesmo tempo que está a tomar conta dos filhos. TR ‐ A maternidade foi mais uma aprendizagem? ATDK ‐ Mudou muito a minha perspectiva sobre uma série de coisas. Sendo mãe, és colocada frente a escolhas permanentemente e todos os dias. Estás sempre a perguntar‐te como é que vais gerir a maternidade perante os teus desejos artísticos. TR ‐ Nesse sentido, a maternidade é muito diferente da paternidade? ATDK ‐ As artes performativas ainda são muito um mundo de homens. Sobretudo quando se dirige uma companhia, como é o meu caso, que é muito absorvente em termos de tempo. Julgo que isto se aplica a mulheres líderes em qualquer profissão, mas especialmente nas profissões criativas. No meu caso, o que eu crio reflecte a minha visão do mundo e a visão que tens do mundo transforma‐se substancialmente quando tens filhos. Passas a ter novas preocupações. TR ‐ Nunca te apetece ser mais explícita em relação a essas preocupações nas tuas peças? ATDK ‐ Acho que houve alguns momentos no meu percurso em que fui um pouco mais explícita, mas costumo preferir um certo grau de abstracção. É isso que gosto muito nos corpos: o facto de poderem materializar as ideias mais abstractas. Os corpos mostram coisas muito concretas que nos acontecem. TR ‐ Mas tens um discurso público sobre certos temas que é bastante explícito. ATDK ‐ Exacto. Acho que quando quero dizer algo de uma forma mais frontal, prefiro não o fazer na forma de uma peça de dança. Se quero dizer algo sobre alimentos geneticamente modificados ou sobre colonialismo, a minha tendência é dizer o que tenho a dizer e pronto. Não foi sempre assim, mas é o que tendo a fazer. Nas peças, trato de ideias mais abstractas e intemporais. TR ‐ Trabalhas imenso. Toda a gente que te rodeia sabe isso. É o quê? Disciplina? Compulsão? ATDK ‐ É ambição. TR ‐ Ambição? ATDK ‐ É ambição mas não tem nada a ver com fama. Julgo que não seja disease to please (doença de agradar). Eu adoro estar no estúdio. Tenho uma obsessão pela dança e pela música. TR ‐ Alguma vez pensas em reformar­te? Ou em parar de dançar? ATDK ‐ Às vezes, penso nisso. * Actor, encenador e dramaturgo, Tiago Rodrigues é director artístico do Mundo Perfeito, tendo apresentado o seu trabalho em mais de 12 países. Colabora regularmente com a companhia belga tg STAN e, desde 2004, é professor de teatro convidado na escola de dança contemporânea P.A.R.T.S., dirigida por Anne Teresa De Keersmaeker. 

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