o presente artigo é um resumo de minha tese doutoral sobre a
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o presente artigo é um resumo de minha tese doutoral sobre a
INANA E SUAS BRIGAS DIVINAS* Monika Ottermann** Resumo: o presente artigo é um resumo de minha tese doutoral sobre a figura de Inana, a deusa mais importante e mais popular da Suméria que predominou, sob o nome de Ištar, também nos panteões mesopotâmicos posteriores. Os principais conflitos em torno de sua posição especial atestam a crescente patriarcalização da na Suméria e são exemplificados enfocando tradições mitológicas de Inana como Senhora da Eanna, do Me e da Kur. Palavras-chave: Inana. Deusa. Suméria. Hermenêutica Feminista. Patriarcalização da religião. A venturas amorosas e bélicas de deusas e deuses fazem parte dos textos mais interessantes e fascinantes da literatura universal, mas para mim, teóloga feminista, são um fenômeno ambíguo. Por um lado, é muito preocupante, porque vejo nisso um dos males fundamentais do comportamento humano: a redução do divino ao humano, e demasiadamente humano. É uma redução para o tamanhinho de nossos próprios caracteres, para o nível de outros gêneros literários populares (novelas, literatura demagógica), ou seja, para um “tamanho de bolso”, cômodo no manuseio, plenamente utilizável e sempre controlável – pelo menos para aqueles que conseguem embolsá-lo. Por outro lado, considero uma pena que os detalhes suculentos e picantes de brigas divinas, em outras tradições religiosas às vezes demasiadamente presentes, fossem pudicamente silenciados, monoteisticamente polemizados e em todo caso androcêntrica e kiriarcalmente distorcidos na redação final da Bíblia Hebraica. Afinal, o que sabemos dos dias mais felizes ––––––––––––––––– * Recebido em: 01.11.2015. Aprovado em: 13.11.2015. ** Biblista, teóloga feminista comprometida com a Teologia da Libertação, tradutora e sócia da Nhanduti Editora. E-mail: [email protected]. 116 , Goiânia, v. 14, n. 1, p. 115-128, jan./jun. 2016 do casal divino YHWH e Aserá, o que podemos dizer de seu divórcio, se nem os textos mais explícitos de Oseias permitem vislumbrar os aspectos decisivos? Como podemos descobrir ou elaborar novos conceitos e imagens do divino e ativá-los para nossos conceitos e imagens do humano, quando deus e deusa são tão perfeitamente criados em nossa imagem e semelhança que neles predominam todos os traços negativos e hostis à vida que tornam nossa existência humana em seus sistemas religiosos e sociais uma tortura? Estas e outras perguntas semelhantes, e também a vontade de conhecer uma “deusa antiga” que não se encaixava em nenhum esquema me levaram a fazer de Inana o tema de meu doutorado (OTTERMANN, 2007)1. Inicialmente tentei traçar as brigas entre Inana-Ištar2 e YHWH, no conflito entre o deus supremo em Israel/Judá e a deusa da guerra assírio-babilônica, com a devida atenção para a “Rainha do Céu”, e com a hipótese de trabalho de que esse conflito e a vitória de Ištar sobre YHWH poderia ter-se tornado no pós-exílio um dos elementos que fomentaram a exclusão definitiva (oficial) da deusa e a formação decisiva de um rígido monojavismo (oficial). Contudo, problemas consideráveis, principalmente na história da tradição, levaram-me a colocar no centro das pesquisas em vez disso os traços mais antigos da figura complexa de Inana e a abordar a partir daí algumas de suas brigas que são notórias nos mitos sumérios e manifestas também na iconografia. Assim decidi trabalhar nesse recorte com base na minha experiência na leitura popular da Bíblia no ambiente da Teologia (latino-americana) da Libertação e com a ajuda da análise feminista complexa que Elisabeth Schüssler Fiorenza desenvolveu para textos “sagrados” (principalmente SCHÜSSLER FIORENZA, 2008). Colhi amplos materiais sobre aspectos históricos, políticos, sociais e cultural-religiosos da Suméria no período antes de Sargão, analisados sempre sob o aspecto-chave do gênero e da experiência e situação de mulheres. E trabalhei com a coleção e análise dos mais antigos testemunhos arqueológicos, iconográficos, epigráficos e literários sobre Inana. Neste resumo não será possível apresentar e discutir tudo isso, nem mesmo em seus elementos mais importantes. À medida que esses elementos são necessários para a compreensão das brigas divinas de Inana aqui apresentadas, serão mencionados em breves afirmações. Para tudo que vai além, remeto ao texto original (cf. nota i) ou a uma discussão pessoal. Nesta base convido, então, a acompanhar a síntese da minha reconstrução crítica de Inana em seus três aspectos principais, a saber: Inana como a senhora da Eanna (“Casa do Céu”), Inana como senhora dos Me (“Dons divinos”) e Inana como senhora da Kur (“Inframundo”). INANA E A EANNA Desde os tempos mais antigos da Suméria (desde o início do Período de Uruk, ca. 4000 anos antes da Era Comum3) e até o Período Babilônico-Antigo (desde 117 , Goiânia, v. 14, n. 1, p. 115-128, jan./jun. 2016 2000), Inana é a deusa da cidade de Uruk, a única “dona” do templo principal dessa cidade, da Eanna (“Casa do Céu”), com seus amplos recintos de culto e de armazéns. Apesar de todos os esforços, porém, não consegui comprovar a hipótese fascinante de Thorkild Jacobsen de que, originalmente, Inana não era a “Senhora (nin) do Céu (an)”, e sim a “Senhora das Tamareiras”. As fontes hoje disponíveis já não permitem essa interpretação (OTTERMANN, 2007, p. 132-134). Isso é tanto mais lamentável que muitas fontes, especialmente iconográficas, mostram a estreita relação entre a figura mais antiga de Inana e as tâmaras, um dos alimentos básicos da Mesopotâmia. Contudo, também sem essa confirmação explícita de uma relação particular entre Inana e tâmaras (e mosto de tâmaras, o produto que se esconde frequentemente por trás de traduções como “cerveja” ou “vinho”) é evidente que ela estava responsável, desde os tempos primordiais, pelo “bem-viver” (cf. o conceito andino do sumak kawsay!), pela abundância (para evitar o termo truncado “fertilidade”) e pela alimentação de seres humanos e animais, ricos rebanhos e boas colheitas. Este fato é documentado, com beleza singular, nos desenhos do Vaso de Uruk, confeccionado há 5000 anos. Seus “registros” (faixas) começam pela água, passam pelos rebentos de tamareiras e cereais para os rebanhos, e no plano humano esses produtos são imediatamente transformados em ofertas que são levadas numa longa procissão de servos cúlticos, liderada pelo rei da cidade (en), ao armazém da Eanna até Inana, que as recebe através de uma sacerdotisa. 118 Figura 1: Vaso de Uruk, IM (Irak Museum, Bagdá) 19606, em roll-out. Fonte: Schroer e Keel (2005, p. 290-1, figura 92). , Goiânia, v. 14, n. 1, p. 115-128, jan./jun. 2016 É um retrato perfeito da visão hierárquica do mundo e da sociedade, e um indício inequívoco de quem é o “dono” verdadeiro na casa da criação, da produção, do abastecimento e das relações com o divino: o En. Já aqui, Inana está perfeitamente encaixada nas hierarquias humanas, subordinada e domesticada. A abundância dada por ela é centralmente colhida, controlada e distribuída, e a distribuição ocorre para a grande maioria em rações miseravelmente pequenas. Somente as tâmaras parecem ter sido um alimento “livre”, porque não constam nas listas dessas rações e naquela época também ainda não eram cultivadas em latifúndios imperiais. Também a presença de uma mulher como representante de Inana não deve nos cegar para o fato de que são unicamente homens que levam as ofertas cúlticas, que é unicamente o En (servido por um portador de rabeira e um portador de carga) que agradece, em última instância, a abundância existente e assim garante a próxima, e não porventura um casal de governantes ou até mesmo uma família. Tudo isso mostra que, já nos documentos históricos mais antigos, Inana é uma deusa que não está acima das estruturas de opressão, desigualdade e injustiça, mas que já está “presa” nelas, já servindo para sua legitimação, e que a “supremacia” de uma divindade feminina não é absolutamente idêntica com liberdade, igualdade e justiça (nem entre seres humanos, nem entre seres divinos). Inana é a senhora divina da Eanna inclusive seus armazéns, mas as quantidades que as pessoas precisam entregar e as quantidades que, talvez, recebam de volta na redistribuição, são a decisão do senhor mundano, sustentado ali por Inana (OTTERMANN, 2007, p. 141-50). Resta a pergunta – provavelmente inútil, mas ainda assim tantas vezes levantada, principalmente em círculos feministas – se em algum momento da história não havia, sim, deusas que marcaram suas sociedades, nas quais desigualdade, injustiça e violência existiam também, mas pelo menos não estavam estruturalmente encrustadas. Se isso fosse o caso, e se Inana tivesse pertencido a esse tipo de deusas, então certas modificações em suas representações iconográficas falariam alto. Em muitos selos cilíndricos e outras retratações é a própria Inana que oferece alimento a animais, em posição central e no símbolo de um feixe de junco (muš), uma roseta (ou estrela, an4, normalmente de oito pontas) ou um galho frondoso com flores em forma de rosetas, ou seja, como deusa-árvore. 2 3 4 5 Figuras: Selos cilíndricos em roll-out.Fontes: Figura 2: Goff (1963, p.62, fig.251); Figura 3: Danthine (1937, t. 109); Figura 4: Schroer e Keel (2005, p.280-1, fig.180); Figura 5: Schroer e Keel (2005, p.278-9, fig. 179). 119 , Goiânia, v. 14, n. 1, p. 115-128, jan./jun. 2016 Com o tempo, porém, seu “corpo” é substituído pelo corpo do En que passa agora para a posição central e que tem Inana na mão (bem concretamente na forma daqueles galhos) ou atrás de si (feixe de junco) ou que, como “Bom Pastor” (um de seus títulos honoríficos favoritos!), dá um alimento frugal a suas ovelhas que, para subir até ele, precisam fazer um esforço considerável (OTTERMANN, 2007, p. 152-61). Como primeiro resultado, portanto, no plano da relação entre o humano e o divino, podemos registrar: se Inana jamais tiver encarnado o divino como um elemento livre, igualitário e fraterno/sororal que teria espelhado assim a liberdade, igualdade e fraternidade/sororidade de uma sociedade humana, essa situação deixou indícios extremamente tênues. Desde os tempos antigos predomina sua integração e subordinação numa sociedade kiriarcal, e isso aumenta constantemente, como mostram vários de seus mitos que retratam abertamente brigas em torno de seus poderes e direitos divinos. Assim não é de se admirar que justamente o mito que apresenta Inana como a senhora do templo Eanna o faz de modo atordoador: ele alega simplesmente que ela o teria roubado, descaradamente roubado, de seu verdadeiro senhor, o deus do céu, An. A análise desse mito, que demorou a ser reconstruído e publicado e que ainda não recebeu muita atenção, caracteriza-se por dois desafios que são típicos para cada interpretação feminista de textos “sagrados”. Não são somente as próprias fontes cujo caráter patriarcal, androcêntrico e muitas vezes misógino deve ser considerado, documentado e confrontado com uma interpretação alternativa. São também (e frequentemente muito mais!) suas histórias de interpretação, inclusive as modernas e aquelas que reivindicam ser “científicas”, ou seja, “objetivas” e “neutras”. Este fato é suficientemente conhecido na exegese bíblica, mas se aplica, e até em medida mais acentuada, também à orientalística, como demonstrou em diversas ocasiões Julia Asher-Greve (1997, p. 218-37; 2000, p. 1-13). Um exemplo típico de uma interpretação discriminadora ou até mesmo misógina são os breves comentários que editores e tradutores do mito inserem ou acrescentam em seu trabalho filológico, e às vezes já o próprio título que lhe dão: Inana rouba o grande céu, criado por Dijk (1998, p. 9) 5. No fundo deveria ser evidente que especialistas na reconstrução e tradução de textos do Antigo Oriente não podem ser também especialistas em todos os seus aspectos de conteúdo e que, por isso, seus comentários e glosas devem ser considerados com a devida cautela. Infelizmente, porém, observações dessa espécie e sobretudo o título criado marcam ao longo de gerações a literatura secundária e perpetuam assim como “fatos” o que são frequentemente opiniões espontâneas duvidosas ou preconceitos encarnados. No caso do mito Inana e a Eanna (título proposto por mim) lemos na introdução elaborada por Dijk (1998, p. 3): 120 , Goiânia, v. 14, n. 1, p. 115-128, jan./jun. 2016 No panteão sumério-acádico não há figura mais complicada do que a InanaIštar ‘miriónima’. O traço mais importante de seu caráter foi sempre o de uma meretriz, da sexualidade feminina. Ela teria tido sempre seu lar em Uruk. Seu lugar de culto era, uma vez, a Eana em Uruk. Aqui se passa com facilidade por cima do fato de que a Eana era, na verdade, a casa do deus do céu, An. De qualquer modo, nunca ficou bem claro para nós como foi a relação entre An e Inana em Uruk. Pois seu amante era o pastor Dumuzi. Já na Antiguidade, teólogos parecem ter-se incomodado com a contradição, e isso tanto que até chegaram a equiparar An com Dumuzi. E lemos na conclusão (DIJK, 1998, p.30): O tema principal, e provavelmente o único, é a conquista do céu e de sua imagem terrestre, da Eana. O mito finalmente dá resposta à pergunta que – como dito acima – sempre permaneceu latente e desconsiderada: a saber, como foi possível que Uruk, principalmente também no tempo tardio, foi tido como lugar de culto do deus do céu, mas que efetivamente era o lugar de culto de Inana e, na sua esteira, o de Dumuzi: Inana roubou a Eana de An.6 Diante do fato de que foi comprovado, há tempo, que a Eanna era originalmente o templo de Inana e que An é apenas um “intruso” tardio, ou, segundo a terminologia de van Dijk, que foi ele que roubou a Eanna de Inana (OTTERMANN, 2007, p. 30-32, 74-80, 190-192), o desafio principal para uma interpretação de Inana e a Eanna é evidenciar isso (196-202), em sintonia com as fontes materiais (arqueológicas e epigráficas) e com outras fontes literárias (hinos, outros textos míticos como, p.ex., Inana e o touro do céu, ETCSL 1.8.1.2), principalmente baseado na suspeita do patriarcalismo que se confirma amplamente em todas essas fontes. Assim surge a seguinte interpretação (OTTERMANN, 2007, p. 202-205): Inana e a Eanna é uma etiologia de fundação da Eanna, do templo de Inana em Uruk. Ela narra como a deusa em pessoa, e com pleno apoio de outras divindades (seu irmão Utu, deus do sol e da justiça) e de seres míticos (marinheiro, guardas, os seres protetores udug), viaja até o céu, busca ali uma “imagem” do templo celestial e a leva para Uruk. A competência de sua desenvoltura e a naturalidade com que ela recebe apoio em todos os perigos (até mesmo o selvagem touro do céu que vigia a Eanna é temporariamente neutralizado) mostram que ela possui plena autoridade sobre os respectivos âmbitos, seres e forças divinos ou semidivinos. Em contraste sente-se quase compaixão ao ler como An (que, segundo a versão atual, seria o verdadeiro senhor desses seres, forças e âmbitos) fica totalmente impotente e desorientado e apenas consegue, cheio 121 , Goiânia, v. 14, n. 1, p. 115-128, jan./jun. 2016 de ira e desespero, repreender Inana e sua arrogância, como se ela fosse uma criança sapeca (enfant terrible: “O que foi que minha filha fez? O que foi que Inana fez?” E a única coisa que lhe resta é admitir: “Ela se tornou maior que eu! Inana tornou-se maior que eu!” – e lhe dar sua bênção. Podemos inclusive supor que essa bênção seja um traço antigo do mito que inicialmente mostrou com toda naturalidade que a atuação e posse de Inana estavam em sintonia com as competências e responsabilidades desse panteão e foram “abençoadas” pela sua direção suprema. Portanto, entendo o texto em sua forma original, ainda bem manifesta, como uma típica etiologia que justifica a legitimidade do templo construído, e que louva e elogia as pessoas que realizaram sua edificação, apesar de todos os perigos e sob a proteção de sua “Senhora”, a deusa Inana. Mais tarde, An, em tempos antigos uma figura secundária que quase não teve função e principalmente não teve templo próprio, foi promovido à divindade principal da Eanna. Assim ele se tornou maior que Inana, e Inana foi degradada à sua esposa submissa, ricamente presenteada por ele7, ou a sua filha rebelde. E que o círculo dos interessados, o sacerdócio de An na Eanna babilônica, tenha “editado” essa versão incômoda para ocultar as dificuldades evidentes é apenas uma de muitas tentativas de manipular a historiografia. Felizmente, nem sempre essas tentativas são tão perfeitas que não fosse possível descobrir nas entrelinhas algo da verdade “um pouco mais verdadeira”. INANA E OS ME Os me são centenas de forças e dons divinos (sem qualquer valoração ético-moral!), também caracterizados como dons de sabedoria, que incluem todas as áreas das capacidades divino-humanas: da fala profética até a arte de fazer cerveja, da convivência harmônica até as carnificinas sangrentas nas guerras. Sua preservação e distribuição entre os seres humanos competem a uma divindade, e na maioria absoluta das fontes literárias, essa divindade é Inana. Uma de suas características mais típicas é ser “Senhora (nin) dos Me”. Ora, como é então que um dos mitos mais conhecidos de Inana, tradicionalmente intitulado Inana e Enki, mas por mim chamado de Inana e os Me, alega sumariamente que ela os teria roubado, infamemente, de seu verdadeiro “senhor”, o deus da sabedoria Enki? “Onde há fumaça, há fogo” – por isso, na interpretação desta segunda história de roubo não levantei a suspeita de que Inana fosse uma cleptomaníaca notória, mas que interesses patriarcais lhe roubaram notoriamente seus direitos e competências originais. O grande incômodo causado por essa competência abrangente de Inana mostra-se num outro mito que se encontra inserido em Enki e a ordem do mundo (ETCSL 122 , Goiânia, v. 14, n. 1, p. 115-128, jan./jun. 2016 1.1.3) e que eu chamei de Inana e a ordem do mundo (ETCSL 1.1.3, linhas 387-450). Aqui, Enki distribui as competências e qualidades divinas, e Inana fica sem nada. Quando ela protesta, indignada e de voz queixosa (“Eu sou Inana! Cadê minhas competências?!”), Enki a repreende dizendo que ele já a teria presenteado de tudo que compete a uma mulher (divina) – saber fiar e tecer, ter uma voz amável, embelezar-se... Como bom exemplo, apresenta-lhe as qualidades de outras deusas, não por último sua submissão humilde e seu silêncio temeroso. Este episódio mostra o grande potencial conflitivo da pergunta sobre características e competências de Inana dentro da sociedade divina e principalmente sobre quem era responsável pelos Me – Enki ou Inana? Em conjunto com outros mitos que apresentam o deus da “sabedoria” Enki como uma espécie de trickster, mas principalmente como um baita troublemaker e babão8, esse fato leva novamente a suspeitar que, de modo algum, Inana “roubou” os Me e sua administração de Enki, mas que ela mesma era sua senhora original ou, ao menos, os recebeu legalmente de Enki na distribuição das competências dentro da ordem cósmica, no início da criação. Essa suspeita é confirmada por numerosos detalhes do mito Inana e os Me. A visita de Inana a Enki, na qual a distorção dos detalhes eróticos (sedução fraudulenta pela femme fatal) é novamente mais um problema de projeção dos intérpretes do que uma afirmação do texto9, pode ser a abordagem totalmente inocente da chegada dos Me a Uruk. E se queremos encontrar uma conduta fraudulenta, precisamos procurá-la junto a Enki que, saído do porre, emprega os meios mais duvidosos e violentos para roubar os Me que ele deu a Inana enquanto estava borracho. Consequentemente, também aqui, Inana tem toda razão ao protestar: “Como meu pai poderia ter mudado o que me disse? Como poderia ter alterado sua promessa no que diz respeito a mim? Como poderia ter desacreditado suas importantes palavras que dirigiu a mim? Será que foi falsidade o que meu pai me disse, será que ele falou comigo com falsidade? Ele jurou com falsidade pelo nome de seu poder e pelo nome de seu Abzu? Será que foi com falsidade que ele te enviou a mim, como mensageiro?” (ETCSL 1.3.1, linhas H21-29 etc.). E que todos os entes e forças que, supostamente, estão submetidos a Enki não conseguem resistir a suas medidas de defesa e que o próprio Enki acaba “abençoando” a permanência dos Me em Uruk aponta antes para uma aquisição legítima do que para um infame roubo. Quando perguntamos aqui pela situação vivencial ou pelos possíveis círculos de autores ou redatores, a resposta não pode ser tão inequívoca como no caso de Inana e a Eanna. O texto se apresenta como uma mistura complexa de interesses em Inana e interesses em Enki, e é difícil imaginar que um sacerdócio de Enki tivesse feito um gol contra do tamanho tão gigantesco como é a caracterização de Enki neste mito. Por isso, propus como hipótese que a forma atual pode ser 123 , Goiânia, v. 14, n. 1, p. 115-128, jan./jun. 2016 uma reação polêmica de um sacerdócio de Inana (em Uruk?) que, durante um conflito posterior entre Inana e Enki, se defende contra uma abordagem igualmente polêmica de um sacerdócio de Enki que procura transformar a história da transferência legítima dos Me para Inana e Uruk em uma história de fraude e roubo. Portanto, seria uma espécie de pingue-pongue: vocês (sacerdócio de Enki, governantes de Eridu etc.) estão alegando que nós (sacerdócio de Inana, governantes de Uruk) teríamos roubado os Me. E já que não dá mais para deletar essa calúnia, vamos pelo menos transformá-la, para expor a “sabedoria” de um deus da sabedoria que fracassa totalmente com sua providência e previdência, que é bobo o suficiente para ficar bêbado e fazer presentes precipitados e depois nem se envergonha de exigi-los de volta, com teimosia e violência. E quase poderíamos entender essa abordagem irônica e ridicularizadora de Enki como desmascaramento da “sabedoria patriarcal” como tal. INANA E A KUR O último setor de competência e mito que não podem faltar na reconstrução dos traços originais de Inana são o inframundo e a grande narrativa cujo título mais conhecido é A descida de Inana ao Inferno e que chamei de Inana e o inframundo (ETCSL 1.4.1). O termo sumério traduzido por inframundo ou, em coloração judaico-cristã, por “inferno”, é kur, a região montanhosa estrangeira e inimiga10 no fim do mundo (mesopotâmico). Seu interior abriga o mundo dos mortos para onde passam todos os falecidos e que é também caraterizado como “país sem retorno” (OTTERMANN, 2007, p. 237). O famoso mito sobre “morte e ressurreição” de Inana, cuja reconstrução (para sempre incompleta, provavelmente) demorou quase um século e que trouxe apenas no final clareza sobre o verdadeiro desfecho da narrativa11 (OTTERMANN, 2007, p. 238-239), alega em sua versão final descaradamente que Inana estava no inframundo não por direito próprio, mas que ela o tivesse invadido com astúcia, enganando sua verdadeira “senhora”, a deusa do inframundo Ereškigal, e que teria escapado da morte já decretada apenas com outro truque que fez com que pudesse deixar o mundo dos mortos. E já que esse mundo seria o “país sem retorno” e ela teria que entregar um substituto, ele teria escolhido para isso, por pura maldade, seu esposo que a amava, Dumuzi. Nas teologias sumério-babilônicas, a história da tradição na área desses motivos de Inana-Ištar e do inframundo é particularmente rica, embora devamos sempre levar em conta que nosso conhecimento depende de achados que podem ser muito casuais e que os impérios da história universal sempre têm conseguido saquear, plainar ou detonar “patrimônios culturais da humanidade”12. Contudo, conhecemos uma versão acádico-babilônica do mito (Descida de Ištar ao 124 , Goiânia, v. 14, n. 1, p. 115-128, jan./jun. 2016 inframundo) cuja comparação com a versão suméria é muito instrutiva e mostra uma imagem de Inana que é cada vez mais distorcida pelo patriarcalismo. E conhecemos também uns vinte outros mitos ou fragmentos de mitos sobre a relação de Inana com o inframundo e principalmente sobre a morte de Dumuzi (OTTERMANN, 2007, p. 243-291). Além desse material, dispomos de material escrito, iconográfico e epigráfico, em parte muito antigo, que atesta o caráter de Inana como deusa da kur e sobretudo como deusa da Vênus. Trata-se daquele planeta fascinante que, como Estrela Vespertina, é a primeira luminária do céu noturno, e como Estrela da Manhã, é a última, que percorre durante o dia o “inframundo” de um extremo até o outro e que se tornou assim, e principalmente devido ao seu desaparecimento total periódico, um símbolo da ressurreição (OTTERMANN, 2007, p. 161-4. 174.250-2.292-3). Nos textos sobre a morte de Dumuzi é possível observar duas tendências: uma que lamenta a morte trágica de um jovem herói inocente (o “noivo” ou “amante” de Inana) e outra que justifica a merecida sentença de morte contra um “rei” transgressor (o “esposo” de Inana), da qual Inana não o protege ou a qual ela mesma confirma (OTTERMANN, 2007, p. 270-91). Considerar esses dois complexos de tradições – Inana em sua antiga competência como deusa da Vênus e da kur, e a morte merecida de Dumuzi (como figura de um governante humano, um protegido de Inana) permite uma hipótese sobre as afirmações originais e as versões sucessivas de Inana e o inframundo que serão apresentadas a seguir de forma muito reduzida. O texto do mito que existe hoje é uma composição a partir de três textos independentes: Inana visita o inframundo, Inana entrega Dumuzi ao inframundo e Dumuzi morre e vai ao inframundo. Isto, e principalmente os interesses e intenções oscilantes e contraditórios das sucessivas camadas de composição e redação, explica grande parte das contradições que perpassam o texto e que não são tão arbitrárias como imaginou Bendt Alster (1996). Em seu estado original, Inana visita o inframundo pode ser uma visita inocente e sem conflitos da deusa a suas propriedades ou, como etiologia do fenômeno astronômico cotidiano, um percurso normal da Vênus, eventualmente incluindo certas competências de Ereškigal. Ou, se os elementos conflitivos já constassem na versão mais antiga, poderia se tratar de uma etiologia do desaparecimento total e reaparecimento periódicos da Vênus. Um primeiro estado de desenvolvimento reflete a legitimação do gradual desapossamento de Inana que perde, no processo da patriarcalização da religião, uma parte de seu poder a uma figura sombria, Ereškigal (desnudamento total, morte), e que é submetida cada vez mais a decisões de divindades masculinas (Anuna, An, Enlil). Principalmente, porém, reflete a resistência contra essa tendência: as providências de Inana, a ajuda de Ninšubur e Enki, sua “ressurreição”. Os círculos 125 , Goiânia, v. 14, n. 1, p. 115-128, jan./jun. 2016 portadores desses interesses diametralmente opostos no período sargônico ou pós-sargônico devem ter sido os respectivos sacerdócios, sem que fosse possível identificar uma influência especial de mulheres. Essa versão já modificada de Inana visita o inframundo tornou-se a primeira parte de um mito maior, cuja segunda parte, Inana entrega Dumuzi ao inframundo, também foi originalmente independente. No quadro das numerosas tradições sobre a morte de Dumuzi, ele defende a tendência que sabia de uma “grave transgressão” e punição legítima do ente designado como Dumuzi e o descreveu na imagem da usurpação do trono de Inana. Portanto, aqui não se trata da explicação de um fenômeno da natureza, e sim da política ou história, por exemplo, o fracasso ou a morte de um rei corrupto ou megalômano (ou seja, um rei totalmente normal) que se acreditava sob a proteção de Inana (“esposo”, rei pela graça da deusa) e que perdeu essa proteção por causa de seu crime. Possíveis situações por trás disso poderiam ser transgressões da dinastia de Sargão (Naramsin!) ou os conflitos em torno da morte de Urnamu e a sucessão ao seu trono, ou situações comparáveis que desconhecemos. Sem desmerecer essa crítica, porém, não devemos esquecer que o simples fato de que a teologia de uma deusa manda um determinado rei “pro inferno” ainda não significa que ela defende com isso interesses e valores que teriam algo a ver com a justiça e o bem do povo, e muito menos das mulheres. No entanto, se o pano de fundo for aqui uma situação individual-pessoal, é interessante observar que mulheres sumérias podiam ter o poder e a autoestima de mandar um marido pro inferno quando ele o merecia (cf. o fragmento de mito ETCSL 4.32s). A terceira parte do mito completo, Dumuzi morre e chega ao inframundo, pode ser entendida como acréscimo adaptado de um mito original que descreve a morte inocente de Dumuzi e sua passagem para o mundo dos mortos, acompanhadas de lamentações e intervenções de mulheres que não as aceitam sem resistência. Essa adaptação se deu pela simples transferência do motivo da lamentação de Geštinana para Inana e, um lance genial, com o decreto de Inana de que Dumuzi e Geštinana podiam se revezar no mundo dos mortos (um detalhe que novamente atesta Inana como “senhora” poderosa da kur). Em sua forma final conhecida, Inana e o inframundo seria, portanto, uma interpretação de fenômenos astronômicos (o desaparecimento cíclico de Inana como Vênus) que foi transformada em uma interpretação apologética de fenômenos ideológico-teológicos (do crescente desaparecimento de Inana do topo do panteão) e finalmente na interpretação apologética de um fenômeno sociopolítico (do desaparecimento de um rei ou uma dinastia, sem o desaparecimento da monarquia imperial como tal). Nessa mescla complexa de contextos e narrativas predomina o interesse de reduzir o poder e as competências de Inana e submetê-la a divindades masculinas. Contudo, esse interesse não conseguiu camuflar o 126 , Goiânia, v. 14, n. 1, p. 115-128, jan./jun. 2016 extremo alcance e o uso sábio e responsável de seu poder e suas competências, e também não a sua autonomia em relação a todos os seres masculinos, divinos ou humanos. Nesse aspecto, Inana e o inframundo é o testemunho impressionante de uma resistência criativa e eficiente contra tendências de cortar o poder de uma deusa, e com isso também o poder de suas adoradoras. CONCLUSÃO Para uma interpretação feminista, inserida na teologia da libertação, comprometida com os interesses de pessoas oprimidas e discriminadas, principalmente mulheres, os resultados acima delineados ainda não são suficientes. Sempre devemos verificar também a qualidade ética das soluções, ideologias e mensagens. Neste sentido pesam, nas brigas apresentadas, no lado negativo não só elementos e forças patriarcal-kiriarcais que se voltam contra Inana, mas também muitos elementos de sua própria caracterização e atuação, porque obedecem à mesma lógica. Isso precisa ser considerado sempre, não obstante toda a valorização de muitas características de Inana que podem contribuir para uma maior autoestima e autonomia especialmente de mulheres. Assim se manifestam em todos os aspectos de Inana as possibilidades positivas, mas também os aspectos duvidosos de tudo aquilo que seres humanos, homens e mulheres, constroem como imagens do Divino. E já que é sempre mais fácil descobrir e admitir problemas quando não se trata do próprio “ídolo”, mas daquele de outros tempos e culturas, essa análise abre consideráveis liberdades e possibilidades de contemplar a partir dela, criticamente, as próprias construções. Portanto, se a análise das brigas de Inana ajudar para que pessoas, particularmente mulheres, desenvolvam sob a “boa estrela” dessa figura do Divino a capacidade e a coragem de considerar sua vida, suas relações, sua sociedade e sua religião com mais liberdade e vontade de viver melhor e de dar os passos necessários (“sem vergonha de ser feliz”), então ela alcançou seu objetivo verdadeiro que está além de quaisquer procedimentos e resultados acadêmicos. E quem conhece a vida e obra de Haroldo, o homenageado deste livro, sabe que estão marcadas por esta mesma preocupação. INANA AND HER DIVINE QUARRELS Abstract: the present article is a synthesis of my dissertation on the figure of Inana, the most important and most popular goddess of Sumer who dominated, as Ištar, also the later Mesopotamian pantheons. The main conflicts about her special position demonstrate the increasing patriarchalization of the Sumerian religion and are exemplified by centering on the mythological traditions of Inana as the Lady of the Eanna, the Me e the Kur. 127 , Goiânia, v. 14, n. 1, p. 115-128, jan./jun. 2016 Keywords: Inana. Goddess. Sumer. Feminist Hermeneutics. Patriarchalization of religion. Notas 1 Sabendo que Haroldo, o homenageado desta coletânea, também já se dedicou a esta temática, achei oportuno presenteá-lo com este resumo. 2 Inana é o nome sumério, Ištar é o nome acádico, posterior. 3 Já que todas as datas são “aEC“, dispenso esta especificação daqui em diante. 4 O desenvolvimento do determinativo para “divindade, divino”, dingir (com simultâneo significado de “céu”, an) a partir de duas cruzes sobrepostas (ou seja, oito braços) e o desenvolvimento do símbolo de oito raios ou oito pétalas para a presença e o poder de Inana parecem ter raízes comuns. Isso pode indicar, por um lado, que Inana era, em tempos muito antigos, a divindade por excelência. Por outro lado, porém, contribuiu provavelmente para que, na esteira da patriarcalização da religião sumério-acádica, Inana fosse cada vez mais substituída por An (o “deus do céu”), cujo nome é o único nome divino que não precisa do determinativo dingir. Em todo caso, este detalhe da escrita sumério-babilônica causa a dificuldade de que nem sempre fica claro quando um texto fala simplesmente do “céu” e quando se refere ao deus “An” (OTTERMANN, 2007, p. 73-4.79-80) 5 Cf. para a edição mais nova do texto, que é um pouco mais completa, a segunda edição (2005) de The Electronical Text Corpus of Sumerian Literature (ETCSL), 1.3.5. A primeira edição do ETCSL cataloga o texto como Mythical Narrative of Inana. Atualmente, seu título ali é Inana and An. 6 Cf. minha discussão dessas observações (OTTERMANN, 2007, p.192-4). 7 Cf. o único hino conhecido de An, com um título quase irônico: “Inanas Erhöhung” (A Exaltação de Inana; HRUŠKA, sem ano), a não ser confundido com o hino sumério-acádico Exaltação de Inana, cuja autora é a sacerdotisa Enheduanna (Ninmešara, ETCSL 4.07.2). 8 Cf. Kramer (1970, p. 103-10). Kramer entende os complexos de inferioridade de Enki a partir de uma situação semelhante à que pode ser reconstruída para Inana: a desclassificação nas brigas pelas posições no topo do panteão sumério-acádico. Evidentemente devemos nos lembrar sempre de que não se trata nas divindades atingidas não de seres reais e seus interesses, mas de criações e interesses dos respectivos templos e cidades) e sacerdócios (e outros governantes). 9 Veja as interpretações “clássicas”, p.ex.: Alster (1974), e minha crítica (OTTERMANN, 2007, p. 219-20). 10 Quando kur possui esse significado, compete a Inana desde o período do primeiro império mesopotâmico (o acádico, de Sargão I, a partir de aprox. 2350) o papel de “Senhora dos países estrangeiros”, onde ela literalmente se chafurdou em sangue e que pré-configurou seu posterior papel de deusa de guerra assírico-babilônica. 11 Cf. Kramer (1961, p. 83-6) e Wolkstein; Kramer (1983, p. 127-35). 12Exemplos são a história recente do Vaso de Uruk (2003 roubado durante a invasão do Irak Museum em Bagdá e mais tarde reencontrado), a terraplanagem das escavações da cidade da Babilônia (cf. www.unesco.org/culture/iraq) ou a destruição de monumentos em Palmira. 128 , Goiânia, v. 14, n. 1, p. 115-128, jan./jun. 2016 Referências ALSTER, B. On the interpretation of the Sumerian myth “Inana and Enki”. Zeitschrift für Assyriologie, Berlim, v. 64, p. 20-34, 1974. ALSTER, B. Inana repenting: The conclusion of Inana’s Descent. Acta Sumeriologica, Tóquio, v. 18, p. 1-18, 1996. ASHER-GREVE, J. M. Feminist Research and Ancient Mesopotamia: problems and prospects. In: BRENNER, A. (Org.). A feminist companion to reading the Bible: approaches, methods and strategies. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1997. p. 218-237. ASHER-GREVE, J. M. Stepping into the Maelstrom: Women, Gender and Ancient Near Eastern Scholarship. 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