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Título: TARRAFAL-Testemunhos
Autor: Vários
Capa: Gil Teixeira Lopes
Arranjo gráfico: Jorge Simões
Revisão tipográfica: João Loureiro
Editorial Caminho, SARL,
Lisboa, 1978
Composição e impressão: Antunes & Amilcar, Lds.
Tiragem: 4500 exemplares
Acabou de se imprimir: Em Fevereiro de 1978
Trabalho colectivo de sobreviventes coordenado por Franco de Sousa.
Aníbal Bizarro
António Dinis Cabaço
António Gonçalves Coimbra
Armando Martins de Carvalho
Armindo Amaral Guimarães
Augusto Costa Valdez
Francisco Miguel
Henrique Ochsemberg
João Faria Borda
João Rodrigues
João da Silva Campelo
Joaquim Amaro
Joaquim Gomes Casquinha
Joaquim Ribeiro
José Barata Júnior
José Gilberto Florindo de Oliveira
José Neves Amado
José Santos Viegas
Josué Martins Romão
Manuel Baptista dos Reis
Manuel da Graça
Miguel Wager Russell
Oliver Branco Bártolo
Reinaldo de Castro
PREFÁCIO
Sobre o Campo de Concentração do Tarrafal, que o fascismo criou e manteve
durante 19 anos, já se tem dito e escrito alguma coisa, mas nunca se dirá nem
escreverá tudo o que sobre tão sinistra prisão haverá para dizer. Alguns livros
já existem de pessoas que viveram no Tarrafal, mais ou menos anos. Outros livros
pessoais poderão ainda ser escritos sem que contudo essa dura e criminosa
realidade fique suficientemente descrita. Tão grande foi o crime da sua
existência. Tantas foram as violências lá praticadas.
Foi tendo em conta esta realidade e atendendo à necessidade, politica e
pedagógica, de mostrar a todos os portugueses, de todas as idades, o que foi o
Campo de Concentração do Tarrafal, que um grupo de comunistas sobreviventes
desse Campo da Morte Lenta - alguns que foram dos primeiros a lá chegar e lá
passaram mais de 17 anos seguidos; outros que, indo lá pela segunda vez, foram
os últimos a sair, em 1954 - empreenderam a elaboração deste livro. Com excepção
do camarada Franco de Sousa, que foi o coordenador dos trabalhos parcelares
apresentados, escritos ou gravados, os colaboradores do livro não são escritores
e nada mais quiseram fazer que mostrar, com
fidelidade, como foi e o que foi o Tarrafal, como lá trabalharam e sofreram,
como lá viram morrer
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muitos dos seus camaradas e companheiros de prisão. Este livro não é um produto
da nossa imaginação, nada tem de inventado, nada tem de ficção. E a verdade do
que nós vivemos, é o Tarrafal descrito por vários daqueles mesmos que o fascismo
para lá mandou para morrerem, como muitas vezes os próprios directores e seus
subordinados se compraziam em nos dizer. Temos a consciência de que este livro,
apesar de colectivo,
não dirá tudo o que foi o Tarrafal nos seus muitos aspectos. Mas estamos certos
de que tudo o que dizemos é verdadeiro e indiscutivel. É este, pensamos nós, um
dos méritos deste trabalho que entendemos ser nossa obrigação realizar.
Protagonistas da tragédia que foi o Tarrafal, não foi a situação pessoal de cada
um de nós o que nos preocupou; o que tivemos em vista foi dar a conhecer a
situação dificil que todos vivemos; e a que muitos não resistiram.
O Campo de Concentração do Tarrafal, como ao longo deste livro fica dito e
demonstrado, foi criado pelo governo fascista de Salazar para suprimir
fisicamente os antifascistas mais combativos e para, ao mesmo tempo, atemorizar
todos os
que, ansiosos de liberdade, combatiam a tirania salazarista. O Tarrafál não foi
nunca, e também não o deverá ser agora, um assunto que só dissesse respeito aos
que por lá passaram. Muito pelo contrário, é necessário ver o Tarrafal como ele
realmente foi, em todas as suas facetas e como uma parte da grande prisão que
era Portugal dominado pelo fascismo. Sem essa apreçiação correcta do que foi o
Tarrafal não poderíamos
compreender toda a enorme responsabilidade dos governantes que o criaram e o
mantiveram durante 19 anos (1936-1954).
As gerações de hoje e as futuras devem saber que o Tarrafal existiu e porque
existiu, qual foi
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a sua história e o seu verdadeiro significado. Devem saber que na nossa
história, como país e como povo, houve uma noite que durou cerca de meio século
e que no centro dessa longa noite se situa essa mancha ainda mais negra, que foi
o Campo de Concentração do Tarrafal. O conhecimento dessa verdade que lamentamos
e sofremos, é necessário para nos couraçar contra as manobras criminosas dos que
pretendem fazer-nos voltar ao passado, a esses tempos em que o Tarrafal existiu.
Foi um mal termos vivido tempos tão negros e suportado na carne tantos crimes.
Mas temos razões para estarmos orgulhosos de nem a existência do Tarrafal e
muitos outros crimes terem sido suficientes para parar a nossa luta pela
liberdade. O Tarrafal foi a morte para muitos antifascistas, mas o objectivo que
o fascismo tinha em vista com a criação do Tarrafal não foi
atingido. A nossa luta não parou. A vitória coube aos antifascistas portugueses
que não pararam na sua acção. Mesmo nos períodos mais difíceis, mesmo praticando
as maiores violências, mesmo quando cada um de nós admitia como provável não
voltar mais a Portugal e ficar lá sepultado, mesmo assim, a imensa maioria dos
presos do Tarrafal, manifestando uma elevada consciência política e
revolucionária, nunca cedeu à vontade dos carcereiros fascistas e sempre se
manteve fiel aos
ideais de liberdade e de justiça, pondo acima de tudo os interesses do nosso
povo explorado e oprimido pelo mesmo fascismo. O Tarrafal não foi um sonho mau;
foi um crime tremendo, friamente meditado e friamente executado.
Todos nós que vivemos no Tarrafal, os que morreram e os que ainda estão vivos,
sempre pensámos, e muitas vezes o dissemos uns para os outros, que uma vez
derrubado o fascismo no nosso país; todos os criminosos com responsabi11
lidade na criação do Tarrafal e nos crimes que aí se praticaram, seriam julgados
em tribunais comuns e justamente condenados. Lamentavelmente não tem acontecido
assim. Até agora nenhum desses criminosos compareceu perante a
justiça. Todos andam em liberdade como se nada de mau tivessem feito. Mas
vítimas do Tarrafal aí estão, recordando os sofrimentos a que foram submetidas
durante muitos anos.
Nas vítimas do Tarrafal, nos que trabalharam anos seguidos sem nada ganharem,
para si nem para o seus, porque estavam presos; ainda ninguém pensou. Há quem
fale muito na injustiça e nos direitos da pessoa humana, ainda diga sobre a
justiça a fazer às muitas vítimas dos crimes do fascismo. Estranho sentido de
justiça é ainda o que permite e explica que as coisas se passem assim.
Enquanto o Tarrafal existiu, duas coisas aconteciam paralelamente no tempo:
nesse Campo da Morte Lenta trabalhavam e morriam assassinados os antifascistas
mais combativos e os que melhor representaram os interesses dos trabalhadores,
como Bento Gonçalves, secretário-geral do PCP, como Mário Castelhano,
sindicalista destacado. Em Lisboa, por todo o país e nos territórios então ainda
colónias, os fascistas amassaram grandes fortunas à custa da exploração e da
opressão do povo. A violência - queremos aqui afirmá-lo uma vez mais - só existe
quando há quem a pratica. Se houve crimes também houve criminosos. E a justiça
só existe, de facto, quando e onde os criminosos recebem as condenações que
merecem. Dizer ao povo que o que se está fazendo é justiça e é democracia, leva
ao cepticismo e dá uma imagem errada desses dois valores que sempre devemos
defender. É preciso que o povo, os trabalhadores, vejam e saibam o que é a
justiça.
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O estudo do passado deve servir-nos para melhor compreendermos o presente e
prever o futuro. Se com este livro não dizemos e não demonstramos tudo o que foi
o Tarrafal, nós pensamos que teremos deixado uma boa base para o conhecimento do
que foi o fascismo e, deste modo, ajudarmos as gerações mais novas a não se
deixarem iludir e tomarem medidas no sentido de não permitir que ao nosso País
volte o fascismo em
nenhuma das suas versões.
Lendo este livro os antifascistas ficarão sabendo o que foi o Campo de
Concentração do Tarrafal e o que ele representou como prisão e local destinado a
matar os mais activos opositores ao fascismo salazarista. Lendo este livro os
antifascistas, todos os portugueses, poderão ver e compreender melhor os fins
criminosos que os fascistas tinham em vista ao adoptarem tais métodos de
repressão, quais os seus objectivos e qual é por consequência a responsabilidade
desses governantes de então e de todos os que, neste ou naquele posto,
desempenharam funções de carrascos dos antifascistas lá encarcerados.
A existência do Campo de Concentração do Tarrafal foi um crime e os criminosos
foram muitos.
Não é preciso absolver de culpas os simples guardas para reconhecer nos chefes
e nos directores maiores responsabilidades. Não é preciso diminuir em nada as
responsabilidades dos que nos torturavam e assassinavam directamente no Tarrafal
para se atribuir a Salazar e a todos os governantes de então a principal
responsabilidade em todos os crimes de que fomos vitimas.
Se neste livro dedicamos muitas páginas à conduta de ladrão do "Manuel dos
Arames", que tão descaradamente nos roubava no Tarrafal, isso não significa que
os nossos piores inimigos não fossem
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os que, desde o Terreiro do Paço, governavam o País.
Os Manuel dos Arames como os outros militares que aceitaram ser carcereiros dos
presos políticos no tempo de Salazar eram, em todos os casos, os elementos
inferiores, moral e profissionalmente, do nosso exército.
Nenhum desses militares foi ou opoderia se capitão de Abril. De facto,
derrubando o fascismo numa madrugada histórica de 25 de Abril de 1974, as forças
armadas lavaram essa sujidade com que o fascismo também as tinha manchado.
No Tarrafal morreram dezenas de antifascistas, muitos outros morreram já cá
fora, prematuramente em consequência directa das violências e maus tratos que lá
sofreram. O Tarrafal foi uma prisão de tipo especial, onde, isolados do mundo,
os antifascistas eram assassinados. Mas o Tarrafal esteve sempre integrado, fez
sempre parte do sistema de repressão brutal que atingiu na própria carne todos
os democratas. Para além do Tarrafal, antes e depois do Tarrafal, milhares de
antifascistas passaram pelo Forte de Peniche, por
Caxias, pelo Aljube de Lisboa, pela Fortaleza de S. João Baptista, nos Açores,
prisões que muitos de nós conhecemos directamente e que em 1936 os fascistas já
consideraram insuficientes perante o desenvolvimento da luta do povo português
pela liberdade e pela democracia. Todo o nosso povo
tenha o direito e o dever de exigir que justiça seja feita, quer reparando até
onde é possível reparar os danos causados às vitimas do fascismo, quer punindo
adequadamente os criminosos. Reclamar que seja feita justiça é já uma parte da
grande luta que travamos em defesa da democracia e da liberdade. Não é
subtraindo à acção da justiça os criminosos fascistas que defenderemos e
protegeremos os direitos da pessoa humana.
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Ao escrevermos este livro, e com ele chamarmos a atenção para o que foi o
Tarrafal, nós fizemos o que o 25 de Abril, no seu espirito, reclama de nós.
Pondo no conhecimento do povo português o que foi o Tarrafal, nós apresentamos
elementos concretos, rigorosamente verdadeiros, que permitirão fazer justiça,
como manda a própria essência da democracia.
Quem não passou pelo Tarrafal pode conhecer o que foi esse Campo da Morte Lenta
lendo este livro.
Antifascista, democrata, homem progressista: quando pensares nos direitos da
pessoa humana não esqueças o Tarrafal.
Se queres defender a liberdade e construir e consolidar a verdadeira democracia,
faz alguma coisa para que o fascismo não possa voltar mais à terra Portuguesa.
O Tarrafal simboliza 48 anos de política criminosa.
Nós, povo português, não podemos permitir que este crime se repita.
FRANCISCO MIGUEL
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ACHADA GRANDE DO TARRAFAL
1936. Tinha começado a Guerra Civil de Espanha. 1939 seria o início da mais
criminosa guerra da História, que terminou a 8 de Maio de 1945, com a derrota do
nazismo e dos sonhos de Milénio do seu império.
O fascismo português acompanhou esta ascensão e queda, marcada pela ferocidade
da sua repressão. Quanto mais triunfalistas eram as arengas de Hitler e de
Mussolini, mais a perseguição aos antifascistas portugueses era desapiedada,
visando o seu aniquilamento. Mas quando as esperanças de vitória se
desvaneceram, quando Von Paulus caiu prisioneiro em Estalinegrado e o exército
alemão, que se proclamava invencível, recebeu o golpe de morte de que não mais
se recomporia, quando a aviação de Goering foi batida no céu de Londres e a
esquadra alemã na batalha do Atlântico, quando pela Itália e pela Normandia
avançavam as tropas aliadas e o Exército Vermelho arrancava vitória após vitória
e já força alguma o poderia impedir de ocupar a Berlim do III Reich, então,
também em Portugal os carcereiros fascistas perdiam arrogância e procuravam
fazer esquecer todas as atrocidades cometidas de que o nazismo triunfante pelos
campos de guerra
da Europa fora durante muito tempo certeza de impunidade.
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O campo de concentração do Tarrafal foi o verdadeiro reflexo desta época. Não
houve em Portugal prisão onde os fascistas mais se mostrassem como na realidade
são, nem onde as reacções dos carcereiros melhor correspondessem ao fascismo
vitorioso e ao fascismo derrotado, temerosos de que a sorte de Mussolini,
julgado e executado pelos guerrilheiros, ou o Tribunal de Nuremberga tivessem em
Portugal os seus equivalentes. E isto, ao abalar o moral dos salazaristas,
determinou que o campo do Tarrafal, criado em 1936, para a morte dos mais
corajosos adversários do Estado Novo, fosse discretamente fazendo-se esquecido
até ser encerrado em 1954.
Ainda que decretado em 1936, a história do campo de concentração do Tarrafal
começa verdadeiramente em 1934, depois do 18 de Janeiro. É nesta data, com a
acção da luta de classes que o regime salazarista sente a uma repressão mais
dura, que a situação política na Alemanha e na Itália encorajava.
Na ilha de São Nicolau, no arquipélago de Cabo Verde, existira já um campo de
concentração. Durou poucos meses. Os prisioneiros da Revolução da Madeira, em
1931, eram na sua maioria oficiais do exército. O Governo fixou residência a
uns, em localidades das ilhas, concedeu-lhes subsídios e permitiu que outros
regressassem à Metrópole ou partissem para o exílio.
Ficaram desabitadas as barracas que, segundo se dizia, faziam parte das
indemnizações de guerra pagas pela Alemanha depois da Primeira Guerra Mundial.
Eram bem diferentes - ou não houvesse uma política de classe - daquelas que os
prisioneiros do Tarrafal viriam a conhecer. Eram de madeira, com bom isolamento
do calor, bem defendidas dos mosquitos, quase confortá18
veis. Vieram depois, no Campo, a servir para instalações da secretaria,
alojanento dos guardas, comando militar, oficinas, etc.
É este campo de São Nicolau que origina o antecedente justificador da colónia
penal, criada pelo Decreto 26 539, de 23 de Abril de 1936.
É, porém, o movimento de 8 de Setembro de 1936, a Revolta dos Marinheiros, que
vem precipitar a instalação do Campo em Santiago.
Vivia-se a Guerra Civil espanhola. O Afonso de Albuquerque tinha regressado da
sua missão de observação, a pretexto de proteger súbditos e interesses
portugueses em Espanha. Porém, boa parte da tripulação negara-se a desembarcar
em portos franquistas e não escondera a sua repugnância por Franco e a sua
simpatia pelos republicanos. Fundeados no Tejo, considerados revolucionários,
foram presos e imediatamente destituídos muitos homens da Armada.
O 8 de Setembro foi um protesto contra aquelas expulsões da Marinha de Guerra e
também contra o apoio que Salazar prestava a Franco. Foi uma revolta de
marinheiros e nela não tomou parte um só oficial.
O Movimento do 8 de Setembro enfureceu Salazar e tanto mais quanto o assustou.
Em Espanha, a guerra civil estava indecisa, de modo algum se vislumbrava como
certo o triunfo de Franco, e uma república democrática, em país tão próximo e
com tão extensa fronteira comum, era fonte de muitas apreensões para o fascismo
português. Ordenou que a revolta fosse sufocada da forma mais violenta. Os
navios foram bombardeados os revoltosos presos, julgados, condenados a pesadas
penas e rapidamente se preparou o campo de concentração na ilha de Santiago.
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Entre as ilhas do arquipélago de Cabo Verde, Santiago é a maior, uma das mais
próximas do Equador e aquela que tem a zona de pior clima - a Achada Grande do
Tarrafal - situada a norte, no extremo da ilha oposto ao da Cidade da Praia, a
que está ligada por uns setenta e cinco quilómetros de estrada, desolada e
triste, que desemboca na ampla Baía do Tarrafal, voltada para a ilha do Fogo.
A paisagem é montanhosa. Levanta-se a norte o escuro perfil do Monte da
Graciosa, onde não se avista casa nem árvore. O recorte eleva-se bruscamente,
não longe do oceano,
desce serenamente, quase na horizontal, para novamente se erguer numa segunda
carcova que vem descair em pequena planície. Mais baixos, em degraus, pequenos
morros. A leste
levanta-se outro monte, nu, em declive suave. Mas logo se formam tochas, em
cadeia que não se interrompe, em altos e baixos, que por fim caem verticalmente
sobre o mar. Litoral
rochoso e, aqui e além, pequenas praias de areia negra, amontoada pela mó das
vagas contra a pedra vulcânica. De sul para o oeste, a linha do horizonte é o
oceano claro ou escuro ora verde ora azul, ora cinzento, mas sempre deslumbrante
pelo
pôr do Sol.
No extremo sul da baía encontra-se a povoação da Ribeira da Prata, com uma
pequena praia, coqueiros, uma mancha verde a alegrar a aridez. A norte é a sede
do concelho, a Vila do Tarrafal, que começa junto ao mar e se alonga pelo sopé
do Monte da Graciosa. E afundada entre montes, rodeada por dunas perto da costa,
há uma pequena planície com uns três quilómetros de comprimento por uma largura,
limitada a norte pela Vila do Tarrafal e a sul pela Ribeira do Chambão. É esta a
zona de pior clima do arquiplélago: chuva, vento, calor, pântanos e paludismo.
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As chuvas são cíclicas em Cabo Verde. Passam-se anos consecutivos sem que chova.
E então é a fome e os mortos são aos milhares. Começam em Agosto as chuvadas. Em
Setembro é o vendaval desfeito, chapadas de água que tudo inundam. Em Outubro
ainda chove. Pelo final de Novembro entra de soprar o nordeste que arrasta os
mosquitos e turbilhões de poeira arrancada aos morros queimados pelo sol.
Depois, por Dezembro,
a paisagem modifica-se. As montanhas já não estão nuas, pardas, agressivas.
Cobrem-se de verdura e os vales perdem a sua desolação. Cresce o capim e o vento
faz ondular aquele mar verde. Os bois e as cabras têm abundância de pasto. Mas
vem
Janeiro, vem Fevereiro e os campos onde o capim cresceu até um metro de altura,
tornam-se amarelos, ressequidos pelo sol, cobertos por uma erva seca, onde se
abrigam milhões de larvas e insectos. Chega Junho muito quente, sem vento. Em
Agosto
não corre aragem e o céu parece metal fundido a abrasar plantas, bichos e
homens.
Quando chove floresce o milho e será ano bondoso, como dizem os cabo-verdianos,
que terão a sua cachupa. Se não chove é a fome.
Mas na Achada Grande do Tarrafal, ano de chuva é também ano de paludismo. Em
Setembro, quando das grandes chuvadas, é como se um manto de águas se rasgasse e
correm torrentes que vêm das vertentes dos montes, velozes, redemoinhantes e
tudo arrastam, cabanas e gado, no seu caminho para o mar.
A Achada Grande transforma-se num lago, para dias depois ser um pântano, com
lagoas nas baixas e junto ao areal negro da praia. O sol, muito quente, pesa
sobre as águas que apodrecem e fermentam. Germinam as larvas de mosquitos aos
milhões, no pântano, nos regatos, nos poços e até na folhagem
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das plantas, nas gotas do caçimbo que cai pela noite.
A baía do Tarrafal, entre Julho e Novembro, quando o nordeste não sopra, é zona
de paludismo. O mosquito anófele alimenta-se com sangue e é nos glóbulos
vermelhos que se reproduz e se completa o ciclo evolutivo do plasmódio, causa do
paludismo. O mosquito é o transmissor.
Na Achada Grande há pântanos, mosquitos e paludismo. A Achada Grande é a zona
mais temida pela gente de Cabo Verde.
Na Achada Grande do Tarrafal montou o governo fascista o campo de concentração.
Na ilha que o mar guardava melhor que o arame farpado e as armas dos
carcereiros, o mosquito seria um
executor discreto. Dispunha a cumplicidade do director, do médico, dos guardas
do campo, pois sem possibilidade de ferver a água inquinada, sem mosquiteiros,
sem medicamentos, com má alimentação, trabalhos pesados, espancamentos, semanas
de frigideira, todas as resistências orgânicas se desmoronavam abrindo caminho
fácil ao paludismo e às biliosas.
As mortes dos antifascistas do Campo do Tarrafal foram premeditadas. Estas
intenções certamente não eram confessadas em documentos oficiais, mas tão claro
era o objectivo que o director do Campo não o escondeu. Afirmou-o Manuel dos
Reis para que todos os presos soubessem a que estavam destinados.
- Quem vem para o Tarrafal vem para morrer!
E muitos morreram e lá ficaram no cemitério que tão perto estava do Campo.
Mas pelo Decreto nº 26 539 de 23 de Abril de 1936, o fascismo usava uma
linguagem que não era a de Manuel dos Reis. Ao campo de concentração chamava
Colónia Penal. Perante possíveis protestos
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internacionais denunciando a verdade terrível ali vivida, o decreto serviria de
desmentido. Dentro do Território nacional, a Censura impediria de sair na
imprensa toda e qualquer noticia que pudesse descrever como se vivia no Campo.
Que entre portugueses se segredasse do inferno que por lá havia,
que o medo se generalizasse e desencorajasse atitudes de oposição ao regime,
isso só seria uma vantagem. A polícia política não só prende e tortura, como
procura criar à sua volta uma publicidade que amedronte, que iniba, que crie a
passividade tão do agrado dos ditadores. O Campo do Tarrafal
tinha também esta função.
A linguagem do decreto era serena, objectiva, nela nada transparecia das
verdadeiras intenções do fascismo.
"Depois de um reconhecimento cuidadosamente feito por técnicos a diferentes
ilhas do arquipélago de Cabo Verde, chegou-se à conclusão de que o lugar do
Tarrafal, na ilha de Santiago, reunia as condições necessárias à instalação, sob
o ponto de vista higiénico, de vigilância e de recursos naturais de comunicação
indispensáveis ao seu bom funcionamento."
E reunia efectivamente as condições necessárias, de acordo com os objectivos do
governo fascista. O Tarrafal não tinha água, não tinha comunicações. No Tarrafal
havia pântanos, febres, morte.
Eram estas as condições de higiene que o fascismo desejava. Mas não as exprimia,
escondia-as numa linguagem que; interpretada por homens de boa vontade, parecia
bem intencionada.
"Sendo os estabelecimentos penais do Ultramar, como este, simples elementos do
sistema penal da Metrópole, justo era que se confiasse a sua direcção e
fiscalização a um Ministério a que incumbem em conjunto os serviços prisionais e
por isso ao Ministério da Justiça.
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Oficialmente era assim, mas, na realidade, esteve sempre directamente dependente
da Polícia de Vigilância e de Defesa do Estado. Estaria subordinada ao
Ministério da Justiça se fosse uma colónia penal. Mas não era.
"A colónia penal ... destinar-se-á a presos por crimes políticos que devam
cumprir pena de desterro ou que, tendo estado internados em outros
estabelecimentos penais, se mostrem refractários à disciplina desses
estabelecimentos ou elementos perniciosos para os outros reclusos" - e
continuava
o decreto - "Poderão igualmente ser internados nesta colónia, em secção
separada, os condenados a penas maiores por crimes praticados por fins
políticos, sujeitos por lei ao regime prisional comum e ainda, em caso de
necessidade, detidos preventivamente pelos crimes a que se refere o Decreto-Lei
nº 23 203 e que o Governo detiver ou quizer julgar fora da Metrópole".
Contudo, no Campo do Tarrafal; os presos, na sua grande maioria, não tinham sido
julgados ou de há muito haviam cumprido a sua pena.
Em Março de 1946, trinta e seis presos condenados a penas que, somados os anos
de prisão das sentenças, atingiam cerca de cento e vinte anos, cumpriam já um
tempo de encarceramento correspondente a trezentos e trinta anos! O caso de
Manuel Alpedrinha era um exemplo. Condenado a dois anos de prisão correccional,
estava preso havia doze anos e meio!
Em quarenta presos sem terem sido julgados, o tempo total de detenção aguardando
julgamento somava trezentos e quatro anos!
Os presos preventivos, sem culpa formada, cerca de sessenta, permaneciam em
cativeiro um tempo que atingia duzentos e trinta e quatro anos!
Apenas cento e trinta e seis homens - porque muitos mais passaram pelo Campo do
Tarrafal 24
representavam quase novecentos anos de prisão. Homens que eram energia
consciente dirigida para a felicidade do povo de que faziam parte, uma energia a
aplicar em todos os dias e horas e ali se mantinha reprimida, para que
lentamente fosse destruida.
Novecentos anos de vida lançados para um campo de paludismo e morte!
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MAR E ARAME FARPADO
Pela madrugada de 18 de Outubro de 1936 saíram da Penitenciária de Lisboa
trinta e quatro marinheiros. Éramos considerados como os mais responsáveis pela
revolta dos navios de guerra Afonso de Albuquerque, Bártolomeu Dias e Dão.
Meteram-nos em carros celulares que, pela cidade adormecida e em silêncio,
seguiram até ao cais da Rocha de Conde de Óbidos, onde havia grande concentração
guerreira de carros de assalto da Polícia de Segurança Pública e da Guarda
Nacional Republicana. Agentes da polícia política dirigiam as operações.
Ouvíamos motores, vozes de comando. Atracado ao cais estava o Luanda que nos
iria levar. Deram-nos ordem para formarmos em fila indiana e dirigimo-nos para o
navio, em silêncio, naquela angústia de quem vive momentos decisivos que para
sempre nos marcam; aquela angústia de quem vai por caminho com portas que se
fecham nas nossas costas e por onde não poderemos voltar a passar. Então, no ar
frio da manhã e em nós, ficou a vibrar uma voz de mulher:
- Adeus, Josué! Não te esqueças de escrever! Seguia a bordo uma força da
Guarda Nacional Republicana, comandada por um tenente; um pequeno destacamento
de marinheiros, postado junto à ponte de comando e uma brigada da Polícia de
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Vigilância e de Defesa do Estado, dirigida pelo chefe de brigada Gomes da Silva.
Connosco seguiam presos de Caxias, do Aljube, de Peniche, alguns portugueses
residentes em Espanha. Tinham sido expatriados por suspeita de simpatia pelos
republicanos.
Confraternizámos. As canções revolucionárias surgiram naturalmente. Pelo que
éramos e para nos encorajarmos naqueles porões de vigias tapadas, a cheirar à
tinta do cavername e onde abafávamos. Mas logo nos gritaram do convés:
- Ou se calam já ou mando montar mangueiras com água a ferver! Comandava a força
da GNR o tenente Adelino Soares, a quem tinham dito ser preciso ter mão firme,
pois iria guardar perigosos cadastrados. E durante a viagem provocou-nos e
insultou-nos tentando intimidar-nos.
- Se for preciso, estoiro-lhes os miolos!
No Funchal, o velho cargueiro embarcou camponeses destinados à prisão de Angra
do Heroísmo. Eram culpados pela greve dos lacticínios, da luta travada contra o
preço arbitrário do leite e a sua entrega total exigida pelos senhores
industriais do Grémio.
A 23 de Outubro, numa manhã húmida, aportámos à ilha Terceira. A muralha da
fortaleza estava negra e coberta de musgo. Os presos foram saindo das casamatas
e formaram diante dos portões ainda fechados. Na frente, de armas perradas, as
praças da GNR, comandadas pelo tenente, muito hirto e duro:
- Garanto-lhes que não hesitarei em os fuzilar a todos se, a bordo, durante a
viagem, notar o mais pequeno sinal de insubordinação.
E porque notou num preso uma expressão que lhe pareceu de riso, avançou para ele
e esbofeteou-o.
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Entre os presos embarcados em Angra do Heroismo encontravam-se Beato Gonçalves,
secretário-geral do Partido Comunista Português, e Mário Castelhano, dirigente
anarquista.
Connosco embarcara também o capitão Manuel Martins dos Reis. Iríamos conhecê-lo
mais tarde. Abandonara a direcção da Fortaleza de São João Baptista por ter sido
nomeado director do Campo do Tarrafal.
O rumo era agora Cabo Verde e as provocações do tenente continuavam. Chegou a
agredir com um pontapé um camarada que se encontrava no topo da escada do porão
e que foi cair em baixo. Decidimos constituir uma comissão de três exmarinheiros conhecidos do Comandante de Bandeira para lhe falarem de vários
problemas e entre eles o comportamento do tenente da Guarda.
Uma das nossas reivindicações, até ali sempre recusada, era o recreio no convés.
Garantíamos que tudo se iria dar em perfeita ordem, pois éramos homens
conscientes e responsáveis. E nos últimos seis dias de viagem vínhamos, por
turnos, respirar o ar livre do mar. É certo que longe dos portos de
escala já não lhes parecíamos tão perigosos.
Quanto ao tenente, deixámos de o ver. Já no Tarrafal, procurou aproximar-se de
nós. Elogiava-nos e tentava ser agradável. Confessava-se arrependido.
- Tinham-me dito tantas coisas a vosso respeito! Pensei estar a lidar com
verdadeiros criminosos e inimigos da Pátria.
Não, não éramos inimigos da Pátria, nós, os marinheiros do 8 de Setembro,
os militantes do 18 de Janeiro. Nem Mário Castelhano! Nem Bento Gonçalves!
Não nos considerou como criminosos o comandante Soares de Oliveira. Agradeceunos a maneira como nos tínhamos comportado a bordo. Ao de29
sembarcarmos saudou em especial os marinheiros e vimos que estava comovido.
Pelo começo da tarde de 29 de Outubro de 1936, o Luanda ancorou na pequena baía
do Tarrafal.
Depois de onze dias de viagem, em que nem por um momento as metralhadoras
deixaram de estar apontadas contra nós, prontas a disparar à primeira ordem,
começou a chamada para o desembarque.
Fomos para terra em embarcações com cabo-verdianos aos remos e logo formámos a
dois e dois para percorrermos, debaixo de escolta, os três quilómetros até ao
Campo.
Pelo caminho, pedregoso e poeirento, encontrávamos a gente de Cabo Verde,
esfarrapada e faminta, a olhar-nos surpreendida. Juntava-se para nos ver passar.
Éramos terríveis criminosos e havia ordens rigorosas para impedir qualquer
contacto connosco. Mas apesar de tudo conseguimos comprar-lhes laranjas com que
matámos a sede.
Causava-nos tristeza a paisagem. Aqui e além, ao longo do caminho, viam-se
pequenas e fracas purgueiras, árvores frequentes na ilha. E pelas encostas dos
montes espalhavam-se, negras e miseráveis, as palhotas sempre a fumegar pelos
telhados de junco. Perto, magríssimos, pastavam burros e cabras.
Em volta do Campo não se avistava casa, apenas as barracas que serviam de
dormitório aos guardas e, um pouco mais afastadas, as casernas dos militares que
tinham a seu cargo a guarda exterior do Campo.
Quando chegámos a vedação era o arame farpado preso a uns toscos troncos com
cerca de dois metros de altura, mais tarde substituidos por tubos de ferro. O
Campo era um rectângulo de
duzentos por cento e cinquenta metros. Víamos
30
o mar, a pequena aldeia de Chambão, toda a Achada Grande. Ano e meio depois da
nossa chegada a vedação que, na opinião dos carcereiros, não oferecia bastante
segurança, foi reforçada com um fosso.
Abriu-se uma vala com três metros de profundidade, de corte em V e da terra que
dali se tirou fez-se um talude com a mesma altura a cercar o Campo. O isolamento
era agora completo.
Por cima do talude passava uma estreita vereda, que os soldados angolanos, de
arma ao ombro, constantemente percorriam. A cada canto construíu-se uma rotunda
em cimento, muralhada, para que, se necessário fosse, servisse de trincheira aos
soldados e guardas e ali se colocassem metralhadoras. A porta de acesso ao Campo
tinha um torreão de cada lado, em cimento armado, de frente curva, rasgada por
duas ordens paralelas de seteiras de combate. Mais tarde ficaram unidas por uma
passarela, também com parapeitos, munida de um reflector que, de noite, pudesse
iluminar o Campo. Externamente, adquiriu assim o aspecto que manteve até ao
encerramento. Internamente, houve muitas alterações.
Chegados ao Campo, passados os portões de arame farpado, logo fomos divididos em
grupos de doze. Cada grupo ocupou a sua barraca de lona, montadas antes da nossa
chegada. Cada barraca assentava em estrados de madeira.
Distribuíram-nos uma cama de ferro, tipo quartel, um colchão de palha, dois
lençóis, uma fronha, uma manta de algodão, dois pratos de esmalte, um púcaro, um
garfo, uma colher, de que éramos responsáveis pela boa conservação.
- Quem estragar paga!
E porque ainda não tinham chegado os nossos fardamentos de presidiários, fomos
autorizados a
31
usar a roupa e o calçado que trazíamos. Só mais tarde nos distribuíram dois
fatos de caqui, duas camisas, dois pares de cuecas, um chapéu de palha e umas
batas. Não nos deram peúgas, nem toalhas, nem muitas outras coisas.
Com o tempo, os toldos das barracas foram apodrecendo. O vento encheu-os de
rasgões. Em noites de chuva tínhamos de desarrumar as camas para nos defendermos
da água que caia nas barracas. Só muito mais tarde foram construidos alojamentos
em pedra e cal, com telhados de fibrocimento.
A cozinha era um telheiro. A retrete, quatro paredes de pedra solta, sem
telhado, com cinco buracos no chão por onde se enfiavam outros tantos latões.
Não existia ainda a enfermaria, nem posto médico, nem refeitório. E como nas
barracas só havia espaço para as camas, comíamos ao ar
livre, em rústicas mesas de pinho. E como também não existia balneário, o banho
era tomado cá fora, com um litro de água, porque esta era uma das grandes
carências de que padecíamos.
Não havia luz eléctrica. A iluminação fazia-se com petromax colocados em certos
pontos do acampamento, junto da cerca de arame farpado. As barracas não tinham
luz. Não podíamos ler, não podíamos escrever. Os carcereiros proibiam-nos de
andar à noite pelo Campo. A falta da electricidade
só tinha para nós uma vantagem. Como os guardas não se aproximavam das barracas
durante a noite, estávamos à vontade para as nossas reuniões, quando camaradas
mais cultos nos falavam de problemas políticos e da história das lutas do
proletariado.
De noite, mais nos pesava o Campo, os clarões dos petromax, os brados das
sentinelas landins, o vento soprando por vezes com violência durante a estação
seca que vai de Novembro a Julho. Os ferros entortavam, partiam-se, rangiam toda
a
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noite. Arrastava poeiras que entravam por toda a parte e tudo sujavam. A lona
rasgava-se.
E quando deitados ouvíamos os uivos do vento ou a chuva e nos pesava o
desconforto e a solidão, chegavam as recordações de quanto tínhamos deixado tão
longe. Porém sempre a luta trouxe sacrifícios e tínhamos de fazer frente às
ameaças de
Manuel dos Reis.
- Quem entra por aquele portão perde todos os direitos e só tem deveres a
cumprir.
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O POÇO DO CHAMBÃO
Sem água não é possível a vida e não há memória de cidade nascida distante de um
rio. No Campo do Tarrafal, a água que nos estava destinada vinha de um poço,
situado a uns setecentos metros. Ali se juntavam mulheres e crianças. Vinham de
bem longe com as suas vasilhas. Carregavam-nas à cabeça e seguiam para suas
casas.
Era pouco fundo o poço. Não se podia dizer que fosse murado, pois o que tinha
como muro era muito baixo e esboroado e a água, puxada a balde e corda, escorria
pelas pernas das mulheres, com chagas que pareciam de lepra, envoltas em trapos
e ligaduras sujas, pelos pés imundos e com matacanhas, e novamente ia cair no
poço.
Era esta a água que bebíamos. Estava contaminada com excrementos de cabras e
burros lazarentos que ali iam beber todos os dias. Pelo tempo das chuvas, raras
mas torrenciais, as enxurradas que desabavam das montanhas arrastavam consigo
burros, cães, aves mortas. O poço ficava no caminho das torrentes e com a sua
água bebíamos também a outra, a das chuvadas que corriam para o oceano.
Ficava o poço a uns duzentos metros do mar que se infiltrava e tornava
integralmente salobra a água que bebíamos. Pelas marés vivas mais salgada era
ainda.
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A água é fonte de vida, mas também o pode ser de morte quando está inquinada e é
causa de diarreias e febres intestinais. Sabia-o o fascismo e o poço do Chambão
fazia parte do plano de morte a que nos condenara.
Dizia-se - não temos a certeza - que, de Lisboa,, onde a água fora analisada,
viera, através da PVDE, a resposta:
- Excelente. Tão boa como a de Vidago. Quanto mais beberem melhor.
Mas tão excelente água não era a que o director e os guardas bebiam. Esses
abasteciam-se na Ribeira da Prata, a alguns quilómetros do Campo, de onde
facilmente uma camioneta nos poderia trazer a sua água puríssima.
Não bastava aos carcereiros que fosse má, era também pouca, para que tivéssemos
sede, para que não nos pudéssemos lavar. Chegámos a ter de aproveitar a chuva
acumulada nos toldos de lona das barracas.
Inicialmente, chegava ao Campo numa camioneta.. Todos os dias eram descarregados
três a, cinco bidões de duzentos litros. Mas nem cheios vinham e tinham de
chegar para todos os gastos do Campo. E assim houve dias em que não pudemos
matar
a sede.
Muitas foram as vezes em que para cada um de nós por dia, apenas cabiam dois
púcaros de água. E contudo o poço não era distante e a camioneta, se o director
assim o entendesse, poderia trazer os bidões necessários para a lavagem da roupa
e das barracas, da louça e mesmo para tomarmos banho.
Pedíamos que nos deixassem ir à praia e durante algum tempo, três vezes por
semana, com numerosa escolta armada, tomávamos banho do mar, embora correndo o
risco dos tubarões que já por ali tinham sido avistados. Porém com água
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salgada não era possível lavarmo-nos convenientemente.
Três meses depois de termos chegado, a camioneta da água avariou-se e passámos a
ser nós a transportá-la. E todos os dias pela manhã passou a haver uma nova
formatura. Servíamo-nos de latas de folha de flandres, que antes tinham servido
para gasolina, com uma capacidade de vinte litros. ïamos em linha de oito
homens, de modo a que cada um de nós agarrasse duas latas pelas pegas de madeira
atravessadas nas bocas. Cada linha transportava assim sete latas. Os que seguiam
nas pontas ficavam com uma mão livre.
Dada a ordem de marcha, escoltados por agentes da PIDE e por soldados
angolanos, saíamos o portão e seguíamos. O caminho pelo restolho era fatigante.
Só mais tarde, em princípios de 1937, se abriu um troço de estrada que unia o
Campo ao poço. Estas caminhadas repetíam-se de manhã umas
sete a dez vezes e outras tantas durante a tarde.
Antes de chegarmos os agentes policiais afugentavam os naturais da ilha. Diziamlhes que éramos terríveis criminosos, embora os cabo-verdianos não tardassem em
ver de onde partiam os actos de banditismo e as violências. Enquanto enchíamos
as
latas, os soldados formavam um amplo círculo para que ninguém pudesse aproximarse de nós. Acontecia, por vezes, que homens ou mulheres atravessassem a
barreira. Não lhes faziam qualquer
aviso, logo recebiam furiosas coronhadas.
Mais tarde os soldados ficavam postados ao longo do caminho e andávamos à
vontade no transporte da água. Era sistema mais eficiente e evitava atritos com
os guardas.
Era um trabalho duro. O sol escaldava. Pousávamos as latas duas ou três vezes
para descansar e chegávamos encharcados em suor.
37
Enquanto as latas, os paus e as cordas aguentaram o trabalho foi-se fazendo. Mas
quando se estragaram tivemos de entrar em conflito com Manuel dos Reis, que nos
chamava estragados e malandros. Eram discussões diárias e como a direcção do
Campo não fornecia novas latas, tínhamos de tapar os buracos com sabão. Tudo
isto nos desesperava enquanto íamos esperando por nova forma de trazer água para
o Campo.
Só dois anos mais tarde, o transporte passou a ser feito por meio de um sistema
decauville, montado por nós. Colocaram-se os carris e a água vinha em vagonetas
e em bidões sobre plataformas rodadas, puxadas por um boi, a quem chamávamos
o Pinto, animal enorme, mansarrão, sempre em luta com enxames de moscas. Fora
comprado pela direcção do Campo.
Mas encher as vagonetas e bidões, baldear depois a água nos depósitos continuava
a ser um trabalho extenuante. E para que quem tivesse de realizar esta tarefa
não fosse escolhido pelos guardas e não ficasse à mercê das antipatias e
perseguição dos carcereiros, organizámos um sistema de inscrições diárias, tanto
para o transporte da água como para outras brigadas. Todas as manhäs, o camarada
Caldeira, com a sua ardósia, percorria as barracas apontando os nomes dos que se
encontravam em condições de trabalhar.
Da água que trazíamos, uma parte destinava-se à cozinha, outra, às nossas
necessidades. Porém cada bidão de gasolina de duzentos litros tinha de bastar
aos homens de duas barracas. Cravada na terra uma estaca de madeira com um braço
transversal para ali suspendermos uma pequena lata de azeitonas ou de azeite,
com o fundo cheio de buracos. Mas não muitos, para que o gasto fosse mínimo.
Eram os lavatórios e os nossos chuveiros.
38
Porque tivemos de aprender a tomar banho apenas com um litro de água. Era
operação que exigia auxiliar. Um camarada colocava-se em plano mais elevado e,
segurando o chuveiro, regulava-o com precisão. Procedia-se como um duche vulgar.
A diferença essencial estava na quantidade de água. Primeiro, a molhadela do
corpo, apenas com um terço do que continha a latinha com furos no fundo. Seguiase a ensaboadela e, por fim, os consoladores sete decilitros para arrastarem
toda a espuma do sabão.
A água preocupava-nos não só por ser pouca mas também por estar impura. Para lhe
retirarmos as impurezas imaginámos filtros. Um dos nossos camaradas, canteiro de
profissão, o João Diniz, que a cinzel gravou tantas inscrições nas lápides
destinadas às sepulturas dos nossos mortos e também lá ficou no cemitério do
Tarrafal, preparou os filtros de que nos servíamos.
Era abundante na ilha uma pedra vermelha, porosa e leve, de origem vulcânica.
Era a matéria-prima para os nossos filtros. Escolhíamos pedras grandes com mais
de meio metro de altura. Eram desbastadas e esculpidas em forma de bolotas mais
ou menos cónicas ou com o feitio de pirâmides. Por dentro escavavam-se os
depósitos, onde vertíamos a água para beber. E através das paredes porosas
daquelas pedras se filtrava gota a gota a água suja do poço. Os filtros estavam
suspensos de cavaletes de madeira de metro e meio de altura, e mesmo mais altos.
Os depósitos ficavam defendidos por uma tampa e na extremidade por onde a água
da pingando colocávamos panos, para que as poeiras trazidas pelo vento não
inutilizassem
todo o nosso trabalho.
Apareceram muitos outros filtros, porém o mais eficaz era constituído por um
bidão de chapa de ferro contendo uma camada de areia, outra de
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carvão, uma terceira de osso queimado e por fim uma de seixos, que
periodicamente eram lavadas.
Bem mais difícil foi ferver a água. A direcção do Campo dificultava-nos quanto
queríamos fazer em defesa das nossas vidas. Mas tinham morrido camaradas e
decidimos que a água passaria a ser fervida.
Trazíamos lenha da cozinha e por vezes à vista dos soldados angolanos. Muitos
deixavam-nos seguir, outros diziam-nos para não voltarmos. Fazíamos a fogueira
entre duas barracas, de modo a não serem vistas as chamas nem o fumo. Em vinte
minutos fervia-se uma lata de água. O forno servia
para todo o Campo, umas horas para uns, outras para outros.
Faltavam as latas, não havia lenha. Tínhamos de as comprar na vila, porque
aquelas de que nos servíamos para ir ao poço não entravam nas barracas.
Proibiram-nos de as comprar e decidimos fazer um depósito para a água. Fomos
tirando cimento das obras, estacas, arame farpado e, com tudo isto, numa noite
fez-se uma parte, depois outra e, passados seis dias, estava pronto o depósito e
resolvido o problema das latas.
Faltava-nos lenha e fomos arrancando os barrotes dos estrados. Só mais tarde
conseguimos autorização para ferver a água mas, por condição imposta pelo
director, tínhamos de pagar a lenha que a gente da ilha vinha vender ao Campo.
Na
secretaria, os carcereiros, do dinheiro que éramos obrigados a entregar,
retiravam uma parte destinada à sua compra.
Fervíamos a água. Depois de fervida, era preciso esperar que arrefecesse.
Enchíamos terrinas que colocávamos ao ar livre para que esfriasse. Muitas vezes
a sede nos forçava a bebê-la morna ou mesmo ainda quente. Só muitas horas depois
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arrefecia. Fria só a bebíamos após uma noite passada ao relento.
A lavagem de roupa era uma outra causa de mal-estar. Porque era na verdade
desesperante - e isto era o que os carcereiros pretendiam - sentir por todo o
corpo o pó da terra depois de um dia na pedreira, o cheiro a suor, a roupa suja
que não podíamos substituir por outra lavada. Passavam-se os dias e não aparecia
solução. A roupa imunda amontoava-se, as barracas e as camas tinham um cheiro
repugnante.
Encontrou-se uma solução temporária para a lavagem de roupa. Cabo-verdianas se
encarregavam de a lavar. Mas, passada uma semana, vimos não ser possível manterse aquela despesa e tentámos resolver a situação, embora. Faltasse água e um
lavadouro.
A nossa ração mensal de sabão era de quatrocentos gramas.
- Não há mais! Não há mais! Esse chega! - Era o que nos diziam.
A água salobra não fazia espuma e quase sempre tínhamos de esfregar a roupa com
casca de coco ou rama de palmeira.
Faltava a água muitas vezes durante dias seguidos e era a sede, a roupa dos
empaludados fedendo a suor e a doença, era a completa ausência de asseio.
O poço secava ou ficava quase seco e com as febres constantes, o calor sufocante
da ilha, era o drama. O cheiro dos lençóis empestava o ar das barracas e era com
extrema repugnância que à noite nos deitávamos nas camas imundas. A lavagem da
roupa que vestíamos era difícil. Camisolas e cuecas quase já não as usávamos.
Seguiamos nas diferentes brigadas de trabalho com os chapéus de palha, as calças
e os casacos de caqui amarelo meio apodrecidos. Não havia roupa que pudesse
resistir
41
ao sol, ao suor que constantemente escorria de todos nós com os trabalhos
forçados a que nos submetiam. Seguíamos para a pedreira com os casacos em tiras
ou com as calças tão rasgadas que nem o sexo escondiam.
Sem água, as retretes mais repugnantes se tornavam. Sem tecto, expostos os
latões ao sol, as moscas eram aos milhares e a pestilência espalhava-se por todo
o Campo.
Primeiro, foram dois serventes cabo-verdianos que iam despejar ao mar os nossos
dejectos. Depois, passámos a ser nós a levá-los num latão, enfiado numa vara e
carregado aos ombros. Duas vezes por dia, de manhä e à noite, se devia fazer
aquele trabalho. No regresso, o latão vinha cheio de água para a limpeza das
latrinas.
Era sempre o mesmo camarada o encarregado das sentinas. Tomara-as a seu cargo
pois não tinha olfacto. Chamava-se António Lúcio Bártolo. Todas as manhäs,
excepto quando estava doente - teve duas biliosas - lá da carregado com o latão
dos
dejectos, acompanhado por um outro camarada, para serem despejados no mar.
Seguíamos sob escolta de dois agentes da PIDE. Do Campo à praia era quase um
quilómetro de caminho com
pedregulhos e buracos. O sol queimava e tínhamos de pousar o latão muitas vezes
para descansar.
Já tinham sido avistados tubarões, na zona da praia onde se vazava o latão. A
uns dez netros os agentes sentavam-se vigiando. Encharcados em suor,
cansadíssimos, despíamo-nos e levantando o latão acima das cabeças, entrávamos
no mar atentos às vagas. Quando a água nos chegava aos ombros era altura de
vazar.
- Agora! Vai!
Era preciso escolher o bom momento e fugir imediatamente arrastando o latão
vazio, pois por vezes acontecia, para divertimento dos agentes, que
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o mar nos devolvesse as imundícies que lhe atirávamos e os nossos próprios
excrementos nos caíssem sobre as cabeças.
Não era tarefa fácil a do camarada Bártolo.
As retretes ficavam distantes das barracas. De noite, tínhamos de sair quentes
das camas e expor-nos ao cacimbo. Por vezes um camarada sentia-se mal e
desmaiava. As diarreias, as cólicas violentas muitas vezes não permitiam reter
as fezes e era frequente ter de limpar sangue, pus e dejectos fora das latrinas.
Se não havia água, as moscas e varejeiras eram aos enxames. Quando nos servíamos
das sentinas, pousavam em nós e enchiam-nos de larvas que, se não eram
arrancadas com pinças e alfinetes, punham-nos as costas em carne viva, pois que
em nós
se alimentavam.
Para nos limparmos servíamo-nos da palha dos colchões, do papel das sacas de
cimento ou dos farrapos das camisolas e cuecas.
Durou dois anos aquela situação. Abriu-se por fim uma fossa junto às latrinas e
fez-se um depósito de água anexo para as baldeações.
A falta de água originava provocações dos guardas.
Meses depois da nossa chegada ao Campo, Manuel dos Reis veio anunciar-nos a
chegada das barracas de madeira destinadas ao nosso alojamento.
Era preciso trazê-las para o Campo.
- Depressa! E no vosso interesse!
Não era, como depois se viu.
Seguimos formados para a vila com grande escolta de soldados e guardas.
Trouxemos portas, vigas, painéis vários. E tudo aquilo era muito pesado e exigia
grande esforço.
Quando partimos para a segunda viagem - e o cais distava três quilómetros do
Campo - pedimos água ao guarda Paco. Negou e quis forçar-nos a
43
seguir. A nossa indignação assustou-o e correu a chamar Numa Pompílio, o
comandante da Companhia Indígena. Que nos recusávamos a ir, queixou-se ele sem
explicar a razão.
- melhor não provocarem a intervenção da Companhia. Esta é a quinta vez que lido
com degredados e deportados e sei muito bem como se deve tratar convosco.
Um camarada quis falar-lhe, mas foi interrompido.
- Não estou aqui para conversas!
Gritámos então que tínhamos sede e não nos deixavam beber.
- Pois se querem água, bebam!
Só então se apercebeu da manobra do guarda. Do Campo trouxeram uma lata,
saciámos a nossa sede e só depois seguimos.
O poço do Chambão fazia parte do plano de morte que o fascismo concebera e
Manuel dos Reis exprimia muitas vezes com vingativa satisfação:
- Hão-de cair como tordos!
Lutámos muito para que assim não acontecesse e nem sempre triunfámos. Foram
muitos os camaradas que lá ficaram.
Foi este um dos aspectos da luta que travámos pela nossa sobrevivência no Campo
do Tarrafal.
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A COZINHA DE CAMPO
A cozinha estava instalada muito perto da vedação de arame farpado. Era, quando
chegámos, a única construção de pedra. Os fogões, construídos em tijolo, tinham
cavidades onde entravam os caldeiröes em que se cozinhava o rancho. Não havia
condições de higiene, nem utensílios, nem mesas onde os alimentos se
preparassem. Na frente dispunha de uma espécie de balcão, aberto, voltado aos
ventos dominantes. A poeirada entrava à vontade. Só muito depois se levantou uma
parede e
se abriu uma porta lateral. O pessoal era cabo-verdiano. Um cozinheiro e um
ajudante preparavam a comida de cento e cinquenta presos. Os géneros eram
despejados para os caldeiros sem qualquer asseio, cozinhados sem grandes apuros.
Era cozinheiro o João, homem envelhecido, a coxear dos calos e com muito medo do
director Manuel dos Reis, sempre a ameaçar espancá-lo se se atrevesse a falar
connosco. E porque tínhamos
de descascar batatas e era necessário este contacto com a cozinha, éramos
vigiados pelos guardas, que tinham ordens rigorosas para impedir qualquer
diálogo com o João e o ajudante.
Só mais tarde, quando o capitão José Júlio da Silva substituiu Manuel dos Reis,
que regressou a Lisboa, conseguimos ser nós a preparar as refei45
ções. Foi assunto devidamente ponderado e colocado a todos os camaradas, ficando
decidido que se falasse com José Júlio da Silva.
Ouviu-nos mas não nos deu logo a resposta. Dias depois transmitia-nos que o
pedido fora atendido.
Era para nós muito importante dirigir a cozinha. A saúde dependia do que
comíamos. Era possível vigiar os géneros tanto na quantidade como na qualidade.
E havia ainda a vantagem de podermos ferver a água e verificar se os alimentos
estavam em boas condições para consumo.
Passámos a preparar as refeições. O calor dos fogões era perigoso para a saúde
de quem já sofria as consequências do clima e do paludismo, mas as vantagens
eram muitas e além disso os nossos camaradas marinheiros, mais jovens e em
melhores condições fisicas, encarregaram-se desta tarefa.
Todas as manhäs se fazia a chamada para o serviço do rancho. O número de
auxiliares da de três a sete, conforme o que havia para fazer. Descascávamos as
batatas, preparávamos as abóboras, depenávamos as galinhas, amanhávamos o peixe
e
tínhamos de despiolhar as couves.
A hortaliça em certas épocas do ano estava tão roída pelas lagartas que ficava
reduzida aos talos. Além disso as folhas de couve estavam cobertas por piolho
branco e tanto que resistia a muitas lavagens. Era preciso usar escovas de unhas
e os resultados não eram satisfatórios. A sopa nas terrinas trazia ainda uma
película branca de piolho que retirávamos com as colheres.
Com a chegada de João da Silva, o fascismo voltou a servir-se da comida para nos
enfraquecer. A alimentação, a água, os trabalhos forçados eram diferentes meios
para o mesmo objectivo: abater-nos.
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As cáries dentárias eram frequentes. Faltava-nos o cálcio de que a água fervida
era uma das causas. Todos nós fomos atingidos no fígado, no coração, nos
intestinos.
E tanto assim era que o próprio João da Silva não o escondia. A quantidade de
alimentos era reduzida e quando o nosso camarada Taborda lhe dirigiu uma
reclamação nesse sentido, respondeu-lhe ser isso precisamente o que pretendia e,
a partir daquele instante, talvez desse ordem para que
diminuíssem mais ainda as rações. Quanto ao nosso camarada foi mandado para a
frigideira por se ter atrevido a queixar-se.
Os protestos contra o rancho eram castigados com dez, doze e mais dias de
frigideira. João Silva que todos os dias provava o rancho que lhe levavam em
bonitas travessas e terrinas e onde colocavam os melhores bocados, afirmava
tratar-se de
reclamações por sistema e era preciso acabar com tais actos por meio de uma
repressão severa.
E contudo aquele provar do rancho era muitas vezes motivo para gracejos entre
João da Silva, o Seixas e Esmeraldo Pais Prata.
- Prove, doutor, e diga de sua justiça - insistia o director.
Riam com muitos cumprimentos e gestos de convite. O médico, com o garfo, remexia
enojado num arroz de albacora que lembrava vomitado de bébedo.
Todos os dias cabia a um de nós levar a amostra do rancho e assistíamos assim
àqueles divertimentos.
- Prove, prove!
Esmeraldo Pais Prata não se atrevia. Experimentava então a sopa e levava a
colher à boca. Mas chegava-lhe ao nariz um cheiro que lhe parecia detestável,
hesitava e também não a provava.
47
- Está óptimo! - dizia por fim.
E os três davam grandes gargalhadas.
Quando João da Silva chegou ao Campo, Franco era já claramente o triunfador da
Guerra Civil de Espanha.
Precisamente por isso e porque Hitler e Mussolini
representavam a força preparada para esmagar a Europa, foram aqueles os tempos
mais difíceis que vivemos.
A possibilidade de vigiar a alimentação foi-nos fugindo. O chefe da cozinha
passou a ser o ex-sargento Canelas, um canalha e um sabujo.
Deixámos de escolher o arroz ou de descascar a fajoca.
- Comam com casca. É uma boa vassoura para o intestino.
O regime alimentar no Campo consistia no café pelas 6 da manhä, acompanhada por
pão, que era o melhor que nos davam. Ao almoço, pelas 10 e 45, um prato de arroz
com carne. Ao jantar pelas 17, sopa de arroz ou de legumes secos e um prato de
arroz ou massa, com carne ou peixe.
O arroz era a base da alimentação. A sua abundância no rancho tinha uma
explicação.
Cabo Verde era zona de fome no mundo. Quando não chovia era como um flagelo a
dizimar milhares de cabo-verdianos, que morriam pelas valetas. Um ano bondoso,
como diziam na ilha, era aquele em que chovia de Julho a Novembro, na altura
mais
benéfica para a principal cultura do arquipélago - o milho.
Muitas vezes víamos os trabalhadores cabo-vérdianos trazerem para o Campo tudo
quanto comiam durante um dia de trabalho: sete decilitros de leite e uma
maçaroca de milho que, depois de comidos os bagos, servia de rolha à garrafa.
Felizmente comiam também amendoins, ricos em vita48
minas do grupo B, pois de contrário as avitaminoses de que seriam vítimas não
lhes permitiriam sobreviver.
A cachupa, milho cozido, era o prato tradicional do homem pobre da ilha.
Preparava-a com sal, misturava-lhe leite. Existia uma cachupa rica, prato
abundante em carne, onde o milho era como um pretexto. Porém, só os ricos a
comiam.
A grande maioria da população da ilha sofria de fome crónica e, desesperados,
esfomeados, chegámos a vê-los comer o que atirávamos para a barrica dos restos,
onde despejávamos terrinas e travessas do mau rancho que recusávamos.
O cabo-verdiano não comia pão, nem batata, nem peixe, nem carne. Não lhe era
possível. Só de quando em quando, para variar, comia milho torrado ou em cuscus,
uma espécie de bolo.
No arquipélago de Cabo Verde o milho era a cultura predominante, mas pode dizerse que grande parte dos géneros alimentares consumidos no Campo, por nós, era de
origem local (carne, peixe, feijão, fruta, leite, hortaliças, café, banha,
batata doce, etc. ). Os guardas, o director, o médico e outros carcereiros (com
a excepção dos soldados angolanos) faziam largo consumo de produtos importados
da metrópole, pois a sua alimentação era cuidada e rica. O arroz que vinha da
Guiné
era barato e do agrado dos soldados landins da "Companhia Indígena de Angola".
E o arroz passou a ser, semanas, meses, anos seguidos, o prato de todos os dias:
arroz de peixe, arroz de carne, sopa de arroz, arroz ao almoço, arroz ao jantar
e sempre arroz e por vezes só arroz. Durante o ano era consumido às toneladas,
da pior qualidade, muito partido, numa massa, que ficava
leitosa por não ser lavado. E sempre a saber a mofo.
49
Todo o arroz servia.
Numa madrugada de muito nevoeiro, o Lourenço Marques encalhou. Para libertar o
navio foi preciso lançar carga pela borda fora e assim para o mar sacas e sacas
de arroz. Desencalhado, o navio seguiu rumo e a população da ilha, correu à
pesca dos salvados.
Aquele arroz foi parar à mão de que era proprietário um tal Branco, antigo
deportado, que deve ter enriquecido com a venda de géneros ao Campo.
Também João da Silva não perdeu a óportunidade que aquele arroz lhe oferecia.
Era uma economia. Comprou-o a cinco tostões o quilo e não tardou que no rancho
nos aparecesse aquele arroz bafiento, a que não havia forma de arrancar o
gosto a mofo. Tínhamos de o despejar na barrica das sobras. Para o comermos, só
em bolas empurradas com grandes goladas de água.
Tudo fizemos para que nos fosse possível comê-lo. Saía das sacas aos torrões,
que púnhamos a secar ao sol. Foi inútil.
A carne era fornecida pelo gado que a população da ilha vinha vender ao Campo
para abater: porcos, cabras, bois.
Depois de abatidos, os animais eram examinados pelo médico do Campo, que
raramente considerava a carne como incapaz para ser consumida.
E, contudo, muito daquele gado sofria de doenças
contagiosas. No Campo, um dos nossos camaradas, Amado dos Santos, era o
magarefe, e não poucas foram as vezes que dos pulmões dos bois abatidos vimos
escorrer pus.
Nos porcos, eram frequentes os casos de triquinose. A triquina, alojada nos
músculos do animal, quando transmitida ao homem pode provocar-lhe lesões graves,
paralisia, invalidez e até a morte.
50
Esmeraldo Pais Prata observava e dizia-nos com a sua pronúncia de Santa Comba:
- Nam, icho nam tem importânchia.
Explicava que em salmoura o bicho morria e mandava salgar a carne de porco com
triquinose.
Não a comíamos.
Para nos tentarem serviam-nos aquela carne com um magnífico acompanhamento de
boa feijoca, pedacinhos de cenoura. O cheiro que se espalhava era delicioso. Mas
resistiamos e da tudo para a barrica dos restos, que nesses dias se enchia até
às bordas.
Só no tempo de Olegário Antunes conseguimos que a carne das reses doentes fosse
atirada ao mar.
Enfiávamos então os animais esquartejados em tubos de ferro e dirigíamo-nos para
a praia. A população espiava-nos e, apesar da vigilância dos guardas, conseguia
arrancá-la aos tubarões a que era destinada. Naquela noite, a fome saciava-se.
Os bodes abatidos não eram capados. A carne era intragável com um gosto e um
cheiro insuportáveis a bodum e muitos camaradas só a conseguiam comer com
torcidas de algodão enfiadas nas narinas.
O peixe que mais frequentemente comíamos era a albacora. Albacora desfeita, mal
cozinhada, guisada com batatas, albacora frita em banha, sopa de albacora, arroz
de albacora. É um peixe da família do atum. Se for cozinhada pouco depois de ser
pescada não é desagradável. Mas não era aconselhada na dieta de quem sofria de
males de fígado, motivados pelo paludismo e pela água salobra. Depois de
salgada, era difícil de digerir e de sabor desagradável.
O mar do arquipélago era abundante em peixe mas, porque a população não tinha
grandes possibilidades de o comprar, não havia indústria de
51
pesca, nem sequer mercado. Apenas alguns cabo-verdianos iam ao mar nuns frágeis
barquinhos construídos com as tábuas de caixotes de sabão e calafetados com os
restos de algodão usado na enfermaria do Campo.
Se havia ondulação, mesmo fraca, não se atreviam a enfrentá-la com embarcações
tão leves e ficavam deitados na praia, ao sol, a meterem pelas narinas as suas
pitadas de tabaco queimado, que reduziam a pó.
Iam vender a pesca ao Campo, que lhes comprava uma ou duas albacoras a cinco
tostões o quilo. Um caixote de bom peixe era pago a dez escudos.
A dificuldade e a incerteza de pesca originava o consumo da carne e a salga da
albacora, quando aparecia em quantidades que diariamente não seriam consumidas.
Na verdade, quando chegámos ao Tarrafal, a alimentação, embora se apoiasse no
arroz, de quando em quando substituído pela massa ou pelo feijão, era,
relativamente abundante em carne de vaca.
A carne era barata. Custava dois escudos e cinquenta o quilograma. Um vitelo
vendia-se entre cem e duzentos escudos. Mas, com a chegada do Regimento de
Infantaria 11, de Setúbal, que durante a guerra ali permaneceu em missão,
agravou-se
o custo de vida no arquipélago, sem quaisquer condições para manter alguns
milhares de soldados portugueses.
O encarecimento da carne originou que, no Campo, quase desaparecesse da nossa
alimentação.
O bacalhau entrava também, por vezes, no rancho. Manuel dos Reis mandava cozer
cinco quilos para cento e cinquenta presos, o que não chegava a trinta e cinco
gramas por cabeça. Vinha às farripas, soterrado no feijão frade, com um olho
52
de azeite aqui e outro além. Era servido numa bandeja que com o tempo se enchera
de ferrugem. É, como da cozinha ao refeitório eram uns trinta metros e se
levantavam remoinhos de poeira, quando chegava ali nos parecía vir coberto com
uma camada de pimenta. Primeiro tínhamos de juntar todos os fiapos de bacalhau,
algumas vezes ardido e com uma cor avermelhada, depois todos os olhinhos de
azeite, para que fosse possível uma distribuição equitativa pelos camaradas.
Também a galinha fazia parte do rancho. Eram compradas à gente da ilha por um
preço muito baixo. Pelos domingos e feriados matavam-se uns quinze a vinte
galináceos magríssimos, que davam uma canja rala, a que chamávamos chá de
galinha.
Do arroz que vinha em terrinas de lata ferrugenta retirávamos então a pouca
carne destinada a vinte homens. Mas só dois a comiam. Os restantes teriam de
esperar a sua vez segundo uma escala anteriormente estabelecida. Assim, havia
dois pelo menos que comiam galinha.
Os ovos eram baratos. Vendiam-se a dez tostões a dúzia. Quantas vezes uma gemada
e pão foi o nosso almoço! Quando o arroz de bode cheirava de maneira
insuportável, quando nos serviam porco com triquinose, quando a carne era podre
e com
manchas esverdeadas ou quando nos aparecia aquele feijão pequeno e tão amargo
que lhe chamávamos feijão quinino, nestes dias também nos socorríamos de alguma
lata de conserva, reservada preciosamente para aquelas dificuldades, do tomate
da nossa minúscula horta atrás da barraca, comido com pão, do que comprávamos na
cantina de Manuel dos Reis ou aos cabo-verdianos.
Na pedreira se faziam trocas e compras. Dávamos mais do que recebíamos. Os
vendedores
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eram muito pobres. Depois de abandonarmos o trabalho por lá ficava dinheiro e as
nossas ofertas: pão, carros de linhas, botões, peças de roupa que podiam ser
remendadas. A gente da ilha passava depois por lá, retirava o dinheiro e deixava
ovos, fruta que lá íamos encontrar pela manhä.
E, como a pedreira ficava perto da estrada, enquanto trabalhávamos conseguíamos
comprar grande quantidade de fruta - laranjas e bananas principalmente - aos
cabo-verdianos, assim como ovos e frangos. Muitos guardas não levantavam
dificuldade. É era nesses momentos que se combinavam as trocas, as compras e
eles nos agradeciam as nossas ofertas.
- Vocês são bons. Era mentira o que nos disseram!
O que as nossas famílias nos enviavam era também um precioso auxílio.
Quanto ao leite, tão indispensável para os doentes, tínhamos dificuldade em
comprá-lo.
De quilómetros de distância vinham mulheres vender, por vezes, apenas um litro
de leite. Recebiam dez tostões. O leite era despejado num caldeiro à medida que
iam chegando as fornecedoras. Quando atingia a quantidade estabelecida, seguia
para a cozinha onde era fervido e refervido. Quem chegasse mais tarde voltava
para suas casas, tão distantes por vezes, com o leite recusado.
Era destinado à alimentação dos doentes em regime de "dieta láctea". Litro e
meio de um leite muito mau e aguado, seis bananas; um pão e um caldo de arroz
mal temperado.
O encarecimento da carne dé vaca e a economia dos directores do Campo tornou-a
rara no rancho. As massas e as leguminosas desapareceram quase completamente,
excepto a favona. As doses de arroz tornaram-se maiores.
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Piorava o rancho. Passou a ser mais pobre e menos abundante. Era intragável.
Temperavam-no com uma estranha banha fabricada no interior da ilha. Nunca
descobrimos de que era feita. A cor variava. Víamo-la cinzenta, amarela, de um
tom escuro, verde, branca, consistente umas vezes, pastosa outras, ou quase
líquida, ora mais espessaora mais fluida ... Mas, fosse qual fosse a cor, o
rancho cozinhado com aquela gordura tornava-se repugnante.
Em Janeiro de 1945 chegou o capitão Prates da Silva. A guerra iria acabar em
Maio com a ocupação de Berlim pelo Exército Vermelho e o suicídio de Hitler. Os
tempos eram outros. E a alimentação, que reflectira os momentos de esperança do
fascismo na sua vitória pelo mundo e em que nós
antifascistas éramos inimigos a abater, ou os interesses de directores que
procuravam roubar e enriquecer, melhorou. O rancho passou a ser suportável.
Salazar queria fazer esquecer o Campo do Tarrafal, queria mostrar à Europa, onde
o fascismo fora duramente vencido, que Portugal era também uma democracia.
55
DEZ PANCADAS NO CARRIL
O campo despertava às cinco da manhä. O guarda de serviço ao portão dava dez
pancadas num troço de carril suspenso por arames. Ainda no ar da manhä
repercutiam as badaladas e já um
segundo guarda da batendo com as chaves nas portas das barracas.
- Vamos! Acima! - gritava.
Saltávamos da cama, enfiávamos as calças, calçávamos as botas sem meias e
encaminhávamo-nos para as retretes. Seguíamos depois para as nossas lavagens com
os trapos que nos serviam de toalhas.
Naqueles primeiros tempos; quando tudo estava por organizar, lavávamo-nos cá
fora. Depois, tivemos um "balneário". Era uma barraca de madeira, com chão de
cimento. Estava dividida em duas partes; numa tomávamos duche, na outra
lavávamos a roupa. De dois arames esticados entre as paredes mais afastadas
estavam suspensas pequenas latas com buracos no fundo por onde caía a água com
que tomávamos banho.
Pelas cinco e meia, de novo ouvíamos as pancadas no carril. Era o toque para o
café. Às seis tocava para a primeira formatura. Ao local onde formávamos
chamaríamos mais tarde "Avenida das Acácias". O nome foi dado por nós e tinha a
sua razão. Quando chegámos, dentro ou
57
fora do Campo, não se via uma árvore. Tempos depois tínhamos plantado acácias
rubras.
Nos primeiros tempos, havia ainda a formatura tanto para o içar como para o
arriar da bandeira. Nós, sem chapéus, enquanto os guardas e os soldados em
sentido faziam a continência. Como nos acusavam de estar ao serviço da União
Soviética, aquelas formaturas em honra do estandarte nacional, assim pensariam
os guardas, deviam humilhar-nos. Quando compreenderam que a bandeira portuguesa
nos era querida, a cerimónia foi caindo em desuso. Apenas os clarins anunciavam
quando a bandeira subia ou descia no mastro do Campo e, se estivéssemos fora das
barracas, devíamos ficar em sentido.
Uma vez formados, entrava no Campo o chefe dos guardas, armado e com o seu
séquito de subordinados, tantos quantas fossem as brigadas de trabalho a
organizar naquele dia.
- Tirar chapéus! - comandavam.
Pelo regulamento eram obrigatórios aqueles cumprimentos quando o chefe entrava
no Campo. E também aos guardas, ao comandante Nuno Pompílio, aos oficiais e
sargentos da Companhia Indígena e a outras autoridades do Campo.
Resistiamos. Sentíamo-nos vexados. Quando vieram os tempos mais duros não tirar
o chapéu de palha significava muitos dias de frigideira, por que o guarda
participava imediatamente. Chegava a fazê-lo mesmo quando o cumprimentávamos.
Se o director entrava no Campo tínhamos de ficar em sentido, de cabeça
descoberta.
Vingávamo-nos como nos era possível. Quando a caminho do trabalho nos cruzávamos
com um burro, sempre um de nós comandava:
- Tirar chapéus! Burro também é gente!
E divertíamo-nos quando o asno zurrava como se nos correspondesse.
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Terminado na formatura o cumprimento ao chefe dos guardas, começava a
distribuição pelas diferentes brigadas.
- Brigada da pedreira!
- Brigada da água!
- Brigada da estrada!
E outras. Mais tarde haveria também a "brigada brava", que marcou uma das épocas
mais duras do Tarrafal.
Passávamos pelo depósito onde íamos buscar as ferramentas e seguíamos então
formados para fora do Campo.
No Campo ficavam os faxinas as casernas, escolhidos geralmente entre os mais
fracos. O seu primeiro trabalho era despejar o latão que ficava durante a noite
e onde só urinávamos. Varrian, lavavam a louça do colectivo, davam ajuda, quando
necessário, aos camaradas em serviço na cozinha,
lavando couves ou descascando batatas.
Cada barraca tinha um chefe, eleito por nós ou nomeado pelos carcereiros,
conforme a repressão era menos ou mais dura. Era responsável pelo que de mau
pudesse acontecer. Havia quem levasse a tarefa a sério e quem não lhe concedesse
qualquer importância o que por vezes irritava os guardas.
Com o tempo, muitos de nós iriam ficar no Campo, nas oficinas, quando os
carcereiros se interessaram pelo trabalho mais rendoso da serralharia,
carpintaria e outras. Não estávamos sob constante vigilância, mas todos os dias
o director e o
chefe dos guardas iam ver o estado de limpeza das barracas e do Campo e ver como
corriam as coisas nas oficinas.
De manhã, fora do Campo, o trabalho era menos pesado para nós que o da tarde.
Não porque fosse mais brando o ritmo imposto pelos carcereiros com as suas
constantes ameaças, mas por haver menos calor e não estarmos tão fatigados.
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Para fumar, beber água ou urinar era preciso pedir autorização ao guarda e era
para nós humilhante ter de pedir licença a homens por quem sentíamos desprezo.
Havia camaradas que nada pediam e preferiam não fumar ou não beber. Pelas 10,
novamente batiam no carril. No Campo cessavam todos os trabalhos. Nas brigadas,
os guardas comandavam:
- Alto ao trabalho!
Regressávamos trazendo ao ombro as picaretas, as pás, as alavancas, que
deixávamos à entrada do Campo, depois de os guardas fazerem a contagem das
ferramentas entregues.
Vóltávamos então às barracas, suados, sujos. Mas apenas havia tempo para lavar a
cara e as mãos. Quando não faltava água. O toque para o almoço não tardava. Os
faxinas encaminhavam-se para a cozinha, nós para o refeitório, um barracão
grande onde cabiam cerca de duas dezenas de mesas. Eram para dez pessoas e cada
uma tinha o seu chefe, encarregado de distribuir a comida pelos pratos.
Depois de almoço era altura de se lavar os pratos, travessas e terrinas. Havia
então um periodo de repouso até às 2 horas. Enquanto descansávamos não era
permitido falar alto, fazer barulho ou ir a outras barracas para conversar com
camaradas. Era um período de silêncio, que nós próprios
estabelecíamos para que o repouso se tornasse possível.
Nos primeiros tempos, os carcereiros não nos impunham regulamentos rigidos nem
se preocupavam muito com a disciplina. E nada diziam quando, fora do Campo,
durante o trabalho, comprávamos géneros e fruta à gente da ilha. Podíamos
cozinhar para reforçar o rancho. E também os trabalhos não eram excessivamente
pesados. Limpeza, capinagem,
transporte da água, pouco mais havia para fazer.
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Nem nos tiravam os livros. Mas à medida que a Guerra Civil de Espanha se decidia
pelos franquistas a repressão no Campo tornava-se sempre mais dura.
Pelas 2 horas novamente ouvíamos as dez pancadas no carril. Era a formatura da
tarde e fazia-se então a entrega da correspondência, a leitura das "ordens de
serviço" que anunciavam castigos ou simples alterações aos regulamentos do
Campo.
E outra vez seguíamos formados, com escolta, para um trabalho agora mais penoso,
suportando o calor que em certas épocas do ano chegava a atingir os 40 graus. O
sol e a dureza do trabalho eram a causa de que, de quando em quando, um
camarada desmaiasse.
De todos os trabalhos - e não tinha chegado ainda o tempo da brigada brava - o
mais penoso era o da pedreira.
A pedra era arrancada a picareta e com pesadas alavancas de aço. Ficávamos com
os pulsos abertos e sem força. Todos os dias eram sete horas de trabalho,
excepto aos sábados e domingos. Era extremamente duro e contudo não era, isto o
que
mais nos desesperava. Sabíamos serem esforço e sofrimento inúteis. Trabalhávamos
por castigo.
Pelas cinco:
- Alto ao trabalho!
Formávamos a dois e dois, ferramentas ao ombro, a caminho do Campo. Chegávamos
às casernas extenuados, imundos e íamos tomar duche. Se houvesse água. Tomávamos
banho aos dez e aos
quinze de cada vez com as latas furadas como chuveiros.
Às cinco e meia, as pancadas no carril. O jantar. Os faxinas das várias barracas
formavam à porta do refeitório com as terrinas nas mãos e ali esperavam a
chegada do guarda, para depois seguirem
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em formatura para a cozinha. Pelos telhados esperavam os corvos e os jagudis.
Terminado o jantar, lavávamos os pratos e juntávamo-nos em pequenos grupos
segundo as nossas amizades e afinidades ideológicas. Entre o jantar e o recolher
era o período de convívio. Falávamos, líamos e estudávamos.
Pelas nove ouvíamos o toque de recolher. Formávamos em frente das camas e
perfilados esperávamos o chefe dos guardas. Fazia-se então a contagem.
O corneteiro tocava a silêncio e pelas casernas ouvia-se ainda o murmurar de
conversas e, de quando em quando, pelo Campo, os brados das sentinelas:
- Sentinela alerta.
- Alerta está.
- Passo palavra.
Aos sábados e domingos não havia trabalho fora do Campo. Estes dias eram
destinados à lavagem da roupa e limpeza das casernas.
Fora uma reivindicação nossa. Pedíamos reforço de água e colocavam um bidão à
entrada de cada barraca na sexta-feira à tarde. Três camaradas, por escala,
encarregavam-se da baldeação.
Pelas manhäs de sábado, logo depois do toque de alvorada, púnhamos ao ar camas,
roupas, prateleiras, enfim, quanto tínhamos nas casernas. Era o dia da batalha
contra os parasitas. Os percevejos eram no Campo, depois dos carcereiros e dos
mosquitos, os inimigos mais ferozes. Insecticidas não tínhamos, mas queimávamos
os ferros das camas com os fogareiros a petróleo.
Um outro inimigo eram as matacanhas, uma espécie de pulga que se aloja nos pés.
Enterra-se na pele e forma casulo. Provoca uma comichão desesperada e é
necessário descarnar em volta para arrancar o casulo completo com a matacanha lá
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dentro. Alguns camaradas especializaram-se naquela operação. Se o não
fizéssemos, a matacanha reproduzia-se e podia originar. Infecções que por vezes
conduziam a amputações de dedos ou mesmo de um pé. E havia muitas na ilha,
tantas que chegavam a cegar galinhas.
E na baldeação, na lavagem da roupa e no acabar com os percevejos se passava o
sábado.
O domingo era o dia de descanso, enbora a alvorada continuasse a ser às cinco e
fôssemos obrigados a levantar-nos. Se tínhamos livros, era o nosso dia de
leitura e de estudo em conjunto.
Falávamos de vários problemas culturais e políticos.
Quando nos levavam os livros, conversávamos ou fazíamos pequenos objectos, como
estatuetas de osso, caixas de madeira, jogos de xadrez, afiadores de läminas e
outras pequenas coisas.
Era também no dia de escrever à família, se a chegada do navio estivesse
próxima. Nos tempos mais duros íamos para o refeitório e sob a vigilância dos
guardas escrevíamos as nossas cartas e postais. No final devíamos devolver os
lápis e o papel que sobrasse.
Entretanto o Canpo transformava-se.
Quando chegámos existiam treze barracas de lona, montadas em duas filas no
sentido do comprimento do Campo e com um espaço central de uns cinquenta metros.
Existiam ainda três barracas que serviam de refeitórios. A entrada, mas fora do
portão, encontravam-se os alojamentos para a GNR, que ficou até ser substituída
pela "Companhia Indígena", cuja chegada se esperava então para muito breve.
Igualmente havia barracas para os guardas, que inicialmente eram uns dez.
Iam-se construindo novas barracas e quando João da Silva chegou como novo
director estavam já levantadas as construções de pedra e cal, com
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um reboco de cimento, caiadas, por dentro, a branco e, por fora, a ocre, com
rodapé cinzento. O campo com aquilo a que chamavam pavilhões ganhou um aspecto
diferente.
Dois daqueles pavilhões ficavam a meio do rectângulo, no sentido da largura, com
dimensões de uns quarenta metros de comprimento por uns dez de largura. Entre
eles havia um corredor de doze metros de largo, que da dar ao portão de entrada.
Dois, de iguais dimensões, perpendiculares aos primeiros, estavam portanto
alongados no sentido do comprimento do Campo.
Num dos extremos, para o lado do mar, a cozinha e a casa da carne formavam
bloco. No sentido oposto, pelo alinhamento dos dois primeiros pavilhões,
encontravam-se as barracas desmontáveis de madeira. Serviam de oficinas e uma
delas de balneário e lavadouro. As sentinas mantinham-se no mesmo ponto.
Os dois pavilhões mais próximos do portão estavam divididos em duas dependências
separadas. Os que se encontravam logo à esquerda e à direita da entrada do Campo
estavam divididos ao meio no sentido longitudinal. No da esquerda instalaram as
oficinas e o refeitório; no da direita,
aquilo a que chamávamos a mitra e o porta-aviões.
A mitra era o depósito de doentes e convalescentes.
O porta-aviões, o alojamento dos presos que, cedendo às pressões dos
carcereiros, renunciavam aos seus ideais julgando abreviar assim o tempo de
prisão.
Os dois pavilhões perpendiculares às oficinas, refeitório, mitra e porta-aviões
estavam divididos transversalmente em cinco dependências. A esquerda o B, à
direita o C. As dependências em que estavam divididos eram designadas por: B-1,
B-2, B-3, B-4, B-5, C-1, C-2, C-3, C-4 e C-5. No pavilhão C uma das dependências
era destinada à enfermaria. No
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B, uma outra dependência servia da arrecadação. Lá se encontravam as nossas
malas, a que não tínhamos acesso. Todas as restantes eram os nossos dormitórios.
Entre os pavilhões B e C, em frente do portão do Campo, ao fundo; havia uma
construção diferente de todas as outras. Era o consultório do médico. Mas também
servia de casa mortuária, o que estava perfeitamente de acordo com um clínico
que mais gostava de assinar certidões de óbito do que de tratar dos doentes..
Assim, à direita de quem entrasse no Campo, paralelamente à mitra e ao portaaviões, ficava a carpintaria, depois, numa segunda barraca, o balneário e o
lavadouro e, por fim, já perto da vedação do Campo, uma terceira barraca para a
alfaiataria, barbearia e reparação de automóveis.
Os pavilhões foram construídos com mão-de-obra cabo-verdiana, miseravelmente
paga. Um oficial de pedreiro ganhava quatro escudos por doze horas de trabalho.
Foi José Júlio da Silva quem orientou a construção do Campo. Quando Manuel dos
Reis estava ausente, substituía-o. Era mais humano e sempre que vinha ao Campo
procurávamos resolver com ele qualquer problema, mas sem resultado, pois
não tinha poderes para isso.
As novas construções tinham vindo substituir as antigas barracas, em muito mau
estado. Algumas tinham abatido com o vento. Um funcionário viera verificar o
estado em que se encontravam e trouxeram barrotes para as escorar. A partir daí
decidira-se a construção de novas instalações.
Contudo as obras arrastavam-se. Aproximava-se o período das chuvas e em Abril de
1937 tudo estava suspenso: da "enfermaria" apenas existiam os pilares onde se
apoiaria uma daquelas barracas alemãs que trouxemos da vila do Tarrafal.
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Muitos de nós estavam doentes. O posto clínico não existia ainda. Esmeraldo Pais
Prata, nomeado médico em Setembro de 1936, apareceu pela primeira vez no Campo
em Fevereiro de 1937. Vinha acompanhado por Manuel dos Reis e José Júlio da
Silva. Esperávamos consulta mas não a tivemos.
Esmeraldo Pais Prata falava na montagem de uma enfermaria, porque só então
poderia dar consulta e fazer tratamentos. Mas, montada a barraca, em Março
continuava sem aparecer. A sua vinda tinha apenas como finalidade demonstrar que
o Campo dispunha de médico e logo não podia faltar
assistência aos presos.
Apareceu em Maio. Quisemos consulta, medicamentos, mas nada conseguimos. A
enfermaria estava em fase de acabamento, mas parada. Era preciso comprar tinta
para as paredes interiores e não havia dinheiro. Andavam a compartimentá-la,
de modo a haver alojamento para doentes, uma sala de tratamentos e um gabinete
médico.
Esmeraldo Pais Prata considerou não existirem ainda condições que lhe
permitissem a actividade clínica.
Um dos aspectos da vida do Campo era também quanto observávamos acerca dos caboverdianos. Víamos a população da ilha esfarrapada, miserável, as crianças com os
ventres dilatados por uma fome nunca saciada. Eram espancados pelo
branco, que os tratava como animais. Extrema era a sua miséria. Ignorantes,
doentes, atacados pelo paludismo, a morte prematura era frequente entre eles.
Perto de nós, a cerca de um quilómetro do Campo, ficava o cemitério do Chambão.
Talvez esta proximidade fosse também um dos motivos da escolha do local para
campo de concentração.
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Enquanto o Campo não teve vala, víamos muitas vezes passar os enterros,
acompanhados por uma música de grandes búzios, em numerosa orquestra. Os sons
eram monótonos, repetidos. Na frente da um estandarte branco. O corpo era
transportado aos ombros de quatro homens, num caixão tosco, de tábuas ligadas
entre si. À frente tinha qualquer coisa para defender a cara do morto do sol ou
da chuva. De longe, já ouvíamos os búzios e o coro ululante da carpideira.
Corríamos
extremo norte do Campo, que, mais próximo da estrada, nos permitia ver o
enterro.
No regresso, a música continuava a tocar, mas trazia uma guarda avançada de
cavaleiros. Depois do funeral havia banquete.
Mas também os enterros obedeciam a questões de mais ou menos posses. Se a
família do morto era pobre não havia música nem carpideiras.
Também não eram felizes os soldados landins da "Companhia Indígena", chegados ao
Campo, a 16 de Novembro de 1936. A mais pequena falta era duramente castigada.
Faziam guarda constantemente sem folgas e sem se atreverem a queixas.
Os oficiais e sargentos tratavam-nos a cavalo-marinho. Para os menos brutais, o
argumento era a bofetada, o pontapé e principalmente as palmatoadas. Se estavam
de guarda, aproveitavam-nos ainda para outros serviços nos quartos de folga. Não
tinham momentos livres. Para eles se inventavam os trabalhos mais absurdos e
todos os dias trabalhavam, mesmo aos domingos. A alimentação era miserável. Nas
noite em que furtivamente nos aproximávamos do arame farpado contavam-nos
que passavam muita fome. Além de espezinhados por serem negros, existiam ainda
pelos quartéis os que governavam com o rancho. Os géneros entravampor uma porta
e saíam por outra para alimentar os familiares de sargentos e oficiais.
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Víamos os soldados angolanos limparem o terreno em volta do arame farpado a fim
de terem caminho aberto para a guarda e a ronda. Por vezes assistiamos a
incidentes entre os soldados. Certa vez presenciámos uma discussão que não
entendemos. Uma das sentinelas queria ser rendida no ponto em que se encontrava;
a que a vinha render entendia que o local era outro. Então chegaram a acordo e
ficaram as duas, cada uma delas sem arredar pé do ponto que fixara. Dada a volta
ao Campo e rendidas todas as sentinelas, o cabo da guarda
participou e voltou com o cabo branco para levar os teimosos e os conduzir ao
oficial de dia. Ouvimos depois gritos dos soldados, castigo com palmatoadas e
pontapés. Meteram-nos numa cerca de arame farpado e ali passaram o dia e parte
da noite.
Entre os oficiais havia um que particularmente se distinguia pela sua crueldade.
Não lhes dava descanso, inventava trabalhos. Era o tenente Samuel.
O pré de um soldado angolano não da além de um escudo por dia.
Eram frequentes os incidentes na Companhia.
O tenente Eurico metia raparigas no aquartelamento e aquilo dava origem a
escândalos. O próprio comandante tinha uma apenas para si, que certa vez lhe
fugiu para a Cidade da Praia onde foi novamente buscá-la.
De quando em quando havia toques a formar companhias para o serviço de
vigilância ao Campo, sempre reforçada quando o Guiné chegava e nos dias em que
permanecia no porto.
As noites eram mais vigiadas.
Para nós eram lúgubres. Acabado o trabalho queríamos ler e não nos era possível
com os petromax suspensos em postes junto da cerca de arame farpado.
Improvisámos então candeeiros. Assim conseguíamos ler. Também fabricámos
fogareiros. Pretendíamos evitar os gastos de petróleo
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não nos servindo dos fogareiros que tínhamos trazido da fortaleza de São João
Baptista. Fomos fazendo reserva de combustível, pois poderia acontecer que nos
cortassem a compra.
A 12 de Junho de 1937, novos camaradas entraram no Campo.
Chegaram no Lourenço Marques. Eram quarenta e um. Com que impaciência esperámos
pelo fim da distribuição de roupa e das buscas nas malas. Queríamos saber
notícias. Como da a frente
de Madrid, estaria o governo republicano a bater os fascistas, Como seguiam as
coisas em Portugal...
E quando por fim entraram e nos abraçámos e nos reunimos nas barracas, as
perguntas não acabavam mais. De um grupo passávamos a outro para nada perdermos
do que se dizia. Durante dias arrancámos quanto pudemos dos camaradas recémchegados.
Ao Campo não chegavam notícias. Os jornais e revistas eram-nos proibidos. O que
conseguíamos ir sabendo com muito esforço e engenho chegava atrasado. A
correspondência era censurada, borrada a tinta negra, depois cortada à tesoura,
e
pouco nos chegava de Portugal e do mundo que nos encorajasse como
revolucionários com notícias de vitórias do nosso combate.
Éramos agora cento e noventa e dois.
A vida no Campo retomou o seu curso. Mas construía-se a frigideira,
projectávamos uma fuga e tempos bem mais difíceis se aproximavam.
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O MANUEL DOS ARAMES
Manuel Martins dos Reis era capitão de artilharia. Foi ele o denunciante do
movimento dos rolões, assim conhecido pelo nome do seu dirigente, o chefe
integralista Rolão Preto, originando a prisão dos oficiais conjurados quando,
pela madrugada de 9 de Setembro de 1935, se dirigiam para o Castelo da São
Jorge.
Como traidor foi recompensado.
Porque sempre o fascismo recompensou os que traem para sua vantagem. Não só para
encorajar novas traições como ainda por neles encontrar bons colaboradores.
Tornam-se os piores inimigos daqueles com quem compartilhamos ideais e uma
mesma luta. Estão igualmente empenhados em que o lado em que participaram não
tenha triunfo, pois a vitória significará que lhes serão pedidas contas pelas
suas traições.
Manuel dos Reis pertencia àquele tipo de homem, consciente da própria
mediocridade, e tão profundamente egoísta que queria satisfazer os seus
interesses fosse como fosse, servindo-se de todas as baixezas, não respeitando
quaisquer escrúpulos.
O fascismo, para este tipo de gente, representa a porta das oportunidades. Se
lha abrirem, roubarão, cometerão crimes. Homens como Manuel dos Reis não têm
ideais políticos. Quando se dizem
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salazaristas ou franquistas, quando vestem as camisas castanhas, negras ou
verdes dos vários fascismos que têm aparecido, não fazem mais do que apoiar os
regimes que lhes permitem todos os abusos de poder ou obter pela violência o que
não conseguiriam legalmente e pelo valor do próprio
esforço. Nem sequer pertencem à classe dominante que a tudo recorre para não
perder bens e privilégios. São a sua matilha de cães de guarda.
Manuel dos Reis tinha consciência de quem era e desta consciência lhe viria
principalmente o ódio sentido a todos os antifascistas, por quantos lutavam por
uma sociedade onde já não fossem possíveis homens como ele.
O ódio de Manuel dos Reis era despeitado. Era o ódio do cobarde pelo corajoso,
do medíocre pelo que tem valor, do egoísta pelo revolucionário que se bate,
arriscando liberdade e vida, para que a humanidade venha a ser livre e feliz,
quantas vezes sabendo que morrerá muito antes do tempo em
que a sociedade sem classes, humana e justa, terá de ser uma realidade.
O fascismo conhece bem os Manueis dos Reis e deles faz directores de prisões.
Sabe que irão roubar, sabe que irão ser brutais... Por isso mesmo os nomeia. Que
importa que roubem? Dar-lhes a possibilidade de roubar é a recompensa pelas
violências que irão cometer contra os seus inimigos.
Como director da Fortaleza de São João Baptista, em Angra do Heroísmo, Manuel
dos Reis distinguiu-se a roubar no rancho, a mandar espancar presos e até a
disparar contra eles, como aconteceu a um preso que chegou às grades para pedir
água. Um soldado disparou ferindo-o num braço, de que ficou paralítico.
Manuel dos Reis, repetindo o sistema sempre usado pelo fascismo, recompensou a
sentinela dando-lhe dez dias de licença.
72
Espancamentos, constantes castigos no "calejão" e na "poterna", calabouços
húmidos de onde se saía com reumatismo, foram certamente as melhores referências
para a sua nomeação como director do Campo de Concentração do Tarrafal.
No Tarrafal lamentava-se por não ter "segredos" como em São João Baptista. E
como não os tinha quis montar fora do Campo uma cerca de arame farpado para ali
nos meter e nos deixar ficar ao cacimbo, durante a noite, e à torreira do sol,
durante o dia. Seria um acto criminoso, pois significaria a morte de quem fosse
castigado daquele modo. Os oficiais da "Companhia Indígena", que assim
castigavam os soldados angolanos, opuseram-se a que o mesmo castigo nos fosse
aplicado.
Mandava-nos então para a prisão da vila, a pão e água, enquanto ia construindo a
"frigideira". Mas nunca cessava de nos ameaçar:
- Vais para os arames! Vais para os arames!
E daqui veio a alcunha que lhe demos, Manuel dos Arames.
Tinha por nós um ódio que não se cansava e se exprimia numa ameaça muitas vezes
repetida:
- Hão-de cair como tordos!
Nunca perdia oportunidade para um castigo colectivo, que simultaneamente fosse
ao encontro dos desígnios do salazarismo para aniquilamento dos antifascistas.
Podíamos escrever muito sobre Manuel dos Reis, sobre a forma como dirigia o
Campo, como roubava, mas diremos apenas o que mais o caracterizou como figura
que só o fascismo pode criar.
Para abastecimento próprio tinha o Campo o seu rebanho de cabras e vacas,
guardado por um cabo-verdiano. Disse-lhe um dia o pastor:
73
- Eu ter medo de roubarem um bezerro a mim.
Manuel dos Reis enfureceu-se:
- Se me desaparecer algum animal, mando-te pendurar numa árvore, meu malandro!
Os bois tens de os guardar, ouviste? Tens de os guardar!
Ficou amedrontado o pastor e para lhe serenar a fúria foi dizendo:
- Mas aqui quem roubar bezerro dá vaca.
Acalmou imediatamente a ira do director do Campo e entre alegre e incrédulo
perguntou:
- Dá vaca?
- Quem roubar bezerro dá vaca. Vaca grande!
- Então deixa roubar. Deixa roubar!
Era ele quem impunha os preços aos fornecedores do Campo, que muitas vezes
chegavam a ser agredidos. Como aconteceu a um cabo-verdiano que chegou montado
no seu burricó. Vinha de longe, trazia galinhas para vender. Manuel dos Arames
ficou-lhe com o burro. Só lho devolveria quando trouxesse as galinhas de que
precisava.
- Estas não chegam. Vai buscar mais!
Um outro vendedor trazia dez galinhas, Manuel dos Arames chamou-o e perguntou o
preço:
Eram a quinze tostões cada uma. Ofereceu-lhe dez.
O homem não quis aceitar, pôs as galinhas às costas e dispôs-se a seguir o seu
caminho, Manuel dos Arames fê-lo parar.
- Quero as galinhas a dez tostões.
Esbofeteou-o e meteu-lhe dez escudos na mão.
Também nos lembrávamos de certa vez em que comprou um bezerro. Feita a venda,
pediu o cabo-verdiano que lhe devolvesse a corda com que viera puxando pelo
animal:
- Se comprei o bezerro também a corda é minha:
Teimou o vendedor na sua. Manuel dos Arames como resposta espancou-o.
74
Fazer dinheiro era a sua preocupação constante e para o conseguir todos os
processos lhe serviam.
Tinham-nos dito que a água que transportássemos seria para nosso uso, que não
tínhamos de a dar à cozinha. O próprio guarda Cruz nos dissera:
- A água para a cozinha não é convosco.
Mas, ao despedir os cabo-verdianos encarregados daquele trabalho e servindo-se
de nós como de mão-de-obra gratuita, não deixou de debitar como despesa quanto
pagava àquelas que antas carregavam a água.
As próprias latas de gasolina de que nos servíamos as tivemos de pagar a cinco
escudos cada uma.
Não hesitava em nos exigir um grande esforço se assim lhe fosse possível evitar
uma pequena despesa.
Quando nos mobilizou para o transporte das barracas alemãs, desmontáveis, Manuel
dos Arames bem mais rápido e facilmente o poderia ter feito utilizando um
caminhão. Mas porque não se serviria ele de nós para um trabalho pesado, se
tinha instruções para usar connosco a extrema dureza? Éramos presos
antifascistas a aniquilar.
Para obter da nossa parte algum entusiasmo pelo trabalho foi-nos tentando com a
promessa de que as barracas iriam ser destinadas ao nosso alojamento.
- E depressa! É no vosso interesse!
Nunca aquelas barracas seriam para nós. Eram demasiado confortáveis.
Do Campo à Vila eram três quilómetros. As peças desmontáveis, pesadíssimas. Um
painel tinha de ser carregado por seis homens. De quando em quando era preciso
fazer alto para descansar.
Numa dessas paragens apareceu Manuel dos Arames.
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- Que estão esses homens aí a fazer parados?
Respondemos-lhe que a carga era pesada, que eram três quilómetros de caminho e
tinha de se fazer alto para descanso.
- Patifes! Deixem estar que hão-de cair como tordos!
Fizemos naquele dia vários percursos. Nem sequer faltou uma grande chuvada que,
em instantes nos encharcou completamente. Só teve a vantagem de nos podermos
lavar no Campo com a bátega de água que continuava a cair.
Para o Manuel dos Arames o dia mais feliz foi aquele em que inaugurou a cantina.
Isto aconteceu pelos primeiros dias de Janeiro de 1937, data tão de festejar que
concedeu feriado ao Campo. Não trabalhámos.
Sabia ter ali uma excelente fonte de receita, pois todo o dinheiro que os nossos
familiares nos enviavam lhe passava pelas mãos. Cobiçava-o para si, vendo com
pena como da parar a outros comerciantes. Assim acontecia quando fazíamos
requisições do que pretendíamos comprar, quando da à Cidade da Praia.
É certo que algum ganho tirava. Devia obter descontos e a nós cobrava-nos
duzentos escudos por conta da gasolina, desgaste dos pneus, etc.
Instalou a cantina junto da cozinha, o que era muito cómodo para quem vendia
parte dos géneros destinadas ao rancho. Tinha à venda artigos que realmente nos
faziam falta e a preços ligeiramente mais baixos que os da vila.
Andava radiante com a inauguração e Manuel dos Reis, que nunca nos olhava de
frente, sempre de cara torcida, atendia-nos com sorrisos e convidava-nos a ir ao
seu estabelecimento. Faltava mercadoria, mas prometia-nos que mandaria vir e até
nos falou em vinho quinado para fortalecer.
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Tanto o absorvia, a sua cantina que no dia da inauguração se esqueceu de
fornecer o feijão pedido pelo cozinheiro para o almoço, que acabou por ser
servido uma parte à hora habitual e a outra só duas horas depois.
Na cantina punha ele a essperança de nos apanhar os escudos da Metrópole.
Interesse que também movia os guardas, uma vez que o dinheiro de Cabo Verde
estava desvalorizado em cerca de dez por cento em relação ao do Continente.
E, se a chegada do correio era por ele detestada, passou depois a esperá-lo
ansiosamente.
As cartas vindas de Portugal tornavam o director ainda mais insuportável.
Provocava, insultava, ameaçava... Certamente recebia correspondência em que se
via desmascarado, em que portugueses lhe faziam recordar o castigo que merecia
e sobre ele recairia quando o fascismo caísse e chegasse o dia de o povo
português exigir justiça.
Para nós a sua ira dava-nos alegria. Não porque Manuel dos Reis a manifestasse,
mas por adivinharmos a causa, por sabermos não estar esquecidas.
Era ele quem censurava a correspondência, e a sua entrega demorava sempre alguns
dias. E não havia dúvida de que muito do que lia não lhe agradava pois, certa
vez, chamou José de Sousa e Armando Callet, para lhes dizer ter recebido a
notícia
das suas mortes. Corria que o bandido Manuel dos Reis os assassinara.
Armando Callet respondeu-lhe que efectivamente havia na notícia um nadinha de
exagero.
As cartas que escrevíamos também não traziam satisfação ao Director. Chamavanos, devolvia-nos correspondência que devia ter seguido para os nossos
familiares, gritava:
- Vocês não me conhecem, mas ainda me vão conhecer!
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E isto acontecia porque uma das suas grandes preocupações era querer descobrir
como comunicávamos com o exterior, uma vez lá fora tudo se saber de quanto ali
acontecia.
Era problema que muito o preocupava. Pensava que as coisas se faziam através da
cozinha e afirmava que a iria colocar fora do Campo, para não termos contacto
com os cabo-verdianos que ali trabalhavam. Acreditava que também o podíamos
fazer pelo correio e ameaçava-nos com guardas que nos vigiassem enquanto
escrevêssemos. Com as nossas cartas fazia investigações muito espeçiais. Metiaas em água, passava-as a ferro de engomar para ver se descobria alguma coisa
escrita a
tinta simpática.
Com a abertura da cantina, para nosso benefício, começámos a jogar com aquela
sua ânsia pelo nosso dinheiro. Durante uns dias cortávamos nas compras e logo o
Manuel dos Arames suava angústias. Queria saber porque não comprávamos,
e nós, combinados, dizíamos não ter dinheiro e só depois de escrevermos às
nossas famílias elas poderiam saber das nossas dificuldades e mandar aquilo de
que precisávamos.
Manuel dos Reis permitia então correspondência extraordinária e, contra os seus
hábitos, quando o correio chegava entregava-nos imediatamente as cartas
registadas, onde vinha o dinheiro; para que corrêssemos à cantina a fazer
compras.
Só cuidava da sua cantina. Passava lá o dia, e todos atendendo, gabando muito a
mercadoria. Queria demonstrar-nos quanto era difícil obter certos artigos, o que
podia ser verdade, pois a ligação regular com Lisboa fazia-se pelo navio Guiné
que aparecia de quarenta em quarenta dias.
Para nós era divertido ver aquele capitão ganancioso, que tanto nos odiava; a
tentar naqueles momentos tornar mais humanas as suas relações
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connosco, apenas para que lhe comprássemos a mercadoria e lhe deixássemos no
balcão o dinheiro que os nossos familiares nos enviavam de Portugal.
E muitas vezes íamos à cantina sem intenção de comprar, apenas para nos
divertirmos um pouco, para o ouvirmos nos seus pregões de feirante.
- Perguntem aos marinheiros, que são pessoas viajadas, se o tabaco Abdula
Imperial não é bom!
Mas aqueles que elogiava logo podiam ser alvo da sua zombazia, se a venda da
mercadoria assim o exigisse. E de uns lenços um tanto berrantes dizia:
- São bons para os parolos dos marinheiros!
Vendia tudo. Chegou a vender a adriça da bandeira.
Faltavam-nos cordas para o estendal da roupa e tivemos de falar com ele. A sua
primeira reacção ao pedirmos-lhe qualquer coisa era enfurecer-se e insultar-nos.
Mas logo ao carcereiro se sobrepôs o comerciante ladrão e resolveu vender-nos as
cordas que de Lisboa lhe tinham enviado para prender as barracas de lona.
Quando um dia o capitão José Júlio da Silva passou pelo Campo, ao ver a roupa
nas cordas, perguntou-nos como as tínhamos conseguido obter.
- Foi o senhor director que as vendeu.
E ouvimos o seu comentário para o capitão Numa Pompílio que o acompanhava:
- Então o raio do homem não vendeu as espias das barracas!
Mas o director do Campo também nos vendera a adriça da bandeira.
Para fazer o seu comércio todos os recursos lhe serviam.
Certa vez ouvimo-lo em grandes berros com o João. O almoço era aquele horroroso
bode guisado com massa e o cozinheiro limpava a carne, tirava79
lhe as peles e o sebo. Foi esta a razão por que o Manuel Arames se indignou.
- Que estás a fazer?
E o João, que era bom homem, explicou que estava a tirar o sebo, porque de outro
modo não ficava bom, dava muito mau gosto;
- Qual quê, meu estúpido! Isso é gordura! Põe na panela!
Manuel dos Reis fazia assim uma economia que ainda lhe trazia outra vantagem.
Aquele sebo punha realmente um gosto intragável na comida e ele, precisamente na
cantina, tinha à venda frascos de molho inglês.
Chamava-nos e dizia:
- Isto é muito bom. Pões três pingos no prato e faz um bom paladar.
Ah, aquele director, fardado de capitão, a vender açúcar, batata-doce, latas de
conserva, pijamas japoneses...
- Olha este bonito pijama,! São sessenta escudos! É barato!
Ou quando nos pesava açúcar:
- Vá... vá ... vai bem pesadinho.
E à porta da cantina à espera da freguesia;
- Então não querem mais nada? Olhem que vou fechar!
O azeite que nos vendia, já pago pelo Estado para ser destinado à nossa
alimentação, mas, dizia ele, do melhor, do mais puro.
- É superior ao que têm no rancho - afirmava ele muito convicto, atrás do
balcão, junto ao guarda que lhe servia de marçano.
E tudo era de primeira qualidade, o chouriço, o toucinho, a carne...
- Comprem! É muito bom! Muito bom!
Sempre o rancho fora mau. Manuel dos Arames, que roubava nos géneros para
abastecer a cantina, ainda o tornava pior. Ele próprio o anunciava e,
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quando íamos à cozinha para trazer as terrinas e as travessas, ouvíamos-lhe a
voz de falsete:
- Venham cá! Venham cá! A comida não presta. Tenho aqui bom chouriço, latas de
conserva...
Apesar de tudo tínhamos de recorrer à cantina, porque éramos nós a comprar os
frangos, o azeite, os ovos para alimentação dos doentes.
Uma cebola ou um punhado de arroz que se pedisse ao cozinheiro João tinha um
preço fixado pelo Manuel dos Arames e era preciso pagar adiantadamente, embora
fossem géneros destinados ao rancho.
E víamo-nos forçados a tratar da nossa alimentação quando adoecíamos porque para
a "enfermaria" mandava um frango para seis ou sete doentes, embora nos livros de
contabilidade do Campo figurassem despesas equivalentes a oito ou nove galinhas.
E quando comprava um boi por quatrocentos e cinquenta escudos contabilizava-o
por mil ou mais.
Na cantina também se vendia papel, tinta, lápis.
Comprávamos. Mas um dia, a pretexto de que passávamos mensagens para fora do
Campo, fizeram uma busca às barracas e além de tudo o que tínhamos comprado
levaram também dinheiro e dois relógios.
Nas buscas pilhava-nos o papel que nos vendera, que, nalguns casos, era aquele
que nos tirava das encomendas enviadas pelas nossas familias.
Para abastecer a cantina recorria a tudo. Retinha o papel certamente com a
intenção de o vender, pois logo a seguir nos dava orden para que escrevêssemos.
Neste sentido, fornecia-nos o papel indispensável. Mas se o fôssemos comprar
vendia-nos todo aquele que pedíssemos.
Um camarada aproveitou para pedir a devolução de um caderno que lá tinha.
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- Não dou. Isto aqui não é escola de intelectuais. E portem-se bem para se irem
embora antes de tempo. Darei boas referências de vocês. Quando forem para a
Rússia terão tempo para estudar.
Manuel dos Reis nunca perdia oportunidade para uma provocação.
Nas encomendas, que sempre abria, encontrava uma outra fonte para se abastecer.
O roubo das onças de tabaco era frequente. Se reclamávamos ameaçava-nos com o
calabouço da Vila.
Se nos tirava o dinheiro, dizia que era do Socorro Vermelho. Se a encomenda era
de mais valor igualmente fora enviada pelo Socorro Vermelho. O Socorro Vermelho
era o seu pretexto para nos roubar.
Contudo a cantina não lhe trazia o que mais lhe interessava. Não lhe ficava na
caixa, e nosso dinheiro da Metrópole e para isso montara ele o seu negócio. Na
verdade, eram os guardas e também os sargentos da Companhia os beneficiados.
Manuel dos Arames era desorganizado, o que, em certos aspectos, nos era
benéfico. Com a sua maldade também hostilizava os guardas e a tal ponto que os
levava a não cumprirem as ordens ou a desempenharem-nas mal. E, como toda a
orientação dos carcereiros visava tornar-nos vítimas, era
evidente que com isso só beneficiávamos.
Podíamos assim comprar laranjas, ovos, tabaco... Os guardas fechavam os olhos às
nossas transacções com os cabo-verdianos e por vezes estavam mesmo interessados
em não fazerem as compras.
Acontecia que o serviço interno era feito por dois turnos de guardas. Mas o
segundo, não se sabia qual a razão, era formado pelos mais sabujos. Do primeiro
faziam parte o Teixeira, o Grito, o Carneiro e o Rafael. O segundo, pelo Paco,
pelo Poejo, pelo Manuel Padeiro e pelo Catraia.
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Com o primeiro grupo de guardas conseguíamos obter algumas coisas vindas de
fora, como tabaco e alimentos que tornassem a nossa alimentação mais rica.
O interesse dos guardas coincidia com o do director, obterem dinheiro de
Portugal. Nós, como tínhamos de o gastar, preferíamos que em vez de ir para o
Manuel dos Reis fosse para eles, com quem contactávamos mais e de quem
poderíamos obter o que certamente nunca seria possível vir do director do Campo.
Nenhum preso político consciente procura hostilizar deliberadamente o guarda.
Pelo contrário, tanto quanto possível, tenta servir-se dele, pois sempre são
possíveis da sua parte pequenas infracções aos regulamentos, simpatias, que
permitam uma vida prisional mais fácil e, através disto, o
que é bem mais importante, maior liberdade para os passos necessários a uma luta
política que na cadeia está bem longe de ter cessado.
Fugas houve de camaradas das prisões da Metrópole que foram feitas com estes
pequenos auxílios prestados pelo guarda e mesmo com a sua cumplicidade.
Manuel dos Reis andava desconfiado. Suspeitava que alguém beneficiava do nosso
dinheiro da Metrópole.
Na cantina começou a roubar o mais que podia. A onça de tabaco Superior vendia-a
a dois escudos e cinquenta. Como não queríamos comprar por aquele preço, dizianos que enquanto não o vendesse não havia outro e ficaríamos sem fumar. O tabaco
em folha, que fora do Campo se vendia em pequenos molhos de trezentos e
quatrocentos gramas e custava três escudos, punha-o ele à venda a quinze e mesmo
a quarenta escudos o quilo.
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Como não comprávamos fez constar que iria ficar com o dinheiro que nos era
enviado, abrindo conta-corrente para cada um de nós.
As perguntas que nos fazia eram frequentes.
- Que fazes ao dinheiro que recebes?
- Recebi em vale ultramarino.
- Mas os teus camaradas; que fazem ao dinheiro?
- Não me interessa o que eles fazem e não estou interessado em que me trate por
tu.
Enfurecía-se.
- Fora! Não te quero ver mais aqui dentro!
Se não fosse a necessidade de comprar certos produtos para as dietas dos doentes
havia muito que teríamos acabado com as compras na cantina.
Além disso a situação quanto ao tabaco agravava-se, pois só entrava no Campo
aquele que mandava vir. O fumo originava muitos problemas. Já depois de a
cantina ter sido fechada e de se ter voltado ao sistema das requisições, o
Manuel dos
Arames roubou a Carlos Galan, que chegara na segunda leva, um volume de onças de
tabaco. Depois da busca, ao verificar que lho tinham tirado apresentou queixa.
Foi castigado com doze dias de prisão no calabouço da Vila. Dali saíu muito
abatido depois do tratamento a pão e água em dias alternados, para vir
reconhecer as onças roubadas no tabaco que fora requisitado.
Manuel dos Reis também comprava aos cabo-verdianos tabaco em folha por preço
insignificante, mas que nos vendia com grande margem de lucro.
Durante algum tempo vendeu-o já cortado e bastante caro. Dizia-se que o come era
feito em sua casa pela mulher e pela criada.
O tabaco tornou-se assim um dos nossos grandes problemas. Antes éramos nós que o
comprávamos em rama, à população da ilha. Depois de
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bem lavadas, as folhas eram enroladas e cortadas à faca, como quem miga couve
para o caldo verde. Mais tarde usávamos uma máquina concebida e construída por
Hermínio Martins e António Gonçalves Coimbra, a que se juntou mais tarde uma
outra, de Bento Gonçalves, com um sistema de corte mais aperfeiçoado, e tão
disputada que se tornou necessário estabelecer uma escala.
Uma das tarefas dos sábados e domingos era a preparação do tabaco. Juntávamoslhe cachaça, quando a conseguíamos encontrar, uma raspa seca de laranja,
atirávamos uns salpicos de chá ou púnhamos um pauzinho de baunilha para lhe dar
o
aroma e paladar.
Umas vezes o tabaco entrava no Campo, outras não o conseguíamos. Se em certos
momentos havia que fumar podiam então faltar as mortalhas que vinham da Vila e
tínhamos de nos servir do papel que encontrássemos ou íamos aos colchões para
tirar a carapela mais fina com que enrolar o cigarro.
Mas com as medidas do Manuel dos Arames a falta de tabaco colocou muitos de nós
numa situação de irritabilidade e de mal-estar que os carcereiros exploravam.
Esmeraldo Pais Prata, com todo o seu ódio por nós, depois de duas ou três
fumaças
lançava fora o cigarro para logo o espezinhar. E fazia tudo isto acintosamente à
nossa vista.
Houve camaradas que, enfurecidos por aquela espécie de escravidão ao tabaco,
deixaram de fumar.
Acabámos por comprar o tabaco da cantina, mas o dinheiro com que pagávamos
continuava a ser o de Cabo Verde e Manuel dos Reis decidiu-se a nova
arbitrariedade.
Um dia fez-se a chamada dos que tinham cartas registadas. O dinheiro ficou
depositado e abriram85
se contas,correntes. Chamou-nos à secretaria por temer a nossa reacção.
Cada camarada chamado protestava e considerava o que se fazia como um roubo, mas
o director ouvia imperturbável, sempre acompanhado por dois agentes.
À noite avisou-nos ter recebido uma nota da polícia para não o entregar e que
assim procedia de acordo com as ordens recebidas.
Mas na verdade tomara aquela decisão por termos limitado as compras ao mínimo.
Pela nossa parte, indignava-nos ver que mesmo os géneros destinados à nossa
alimentação, vindos do Continente, eram postos à venda na cantina.
A outra decisão do Manuel dos Arames consistiu em modificar a composição dos
turnos dos guardas, que passaram a ser chefiados pelos dois maiores sabujos que
ali prestavam serviço, o Poejo e o Manuel Padeiro. Assim impedia que pudéssemos
abastecer-nos fora do campo como fazíamos até ali.
Entre os que prestavam serviço no Campo também criavam muito mal-estar. O turno
dos guardas que nos dava ajuda nas compras guardava o segredo cuidadosamente.
Suspeitava-se e aqui residia a causa de que entre os dois grupos de guardas
houvesse intrigas de toda a espécie. Uns não se davam com os outros.
E, como as nossas relações, muito naturalmente, eram melhores com um dos grupos,
o outro sentia-se despeitado. Aqui tiveram origem as intrigas do Paco, tentando
criar situações falsas aos outros guardas, para que as do segundo turno
surgissem como os mais zelosos e cumpridores.
Este Paco tinha um passado assustador. Fora marinheiro, desertara, alistara-se
na Legião Estrangeira, voltara a Portugal, entrara ao serviço da Po86
lícia de Vigilância e de Defesa do Estado que, por aquele tempo, não hesitava em
admitir ladrões e cadastrados. Pois mesmo assim Paco foi expulso. É certo que
não tardou em ser readmitido.
Acabou por abandonar o Campo.
Uma manhã, quando formávamos para a água, disse que podíamos dar vivas. Havia um
guarda que voltava ao Continente. Era ele.
Manuel dos Reis também o roubara.
Às suas roubalheiras ninguém escapava. Um dos guardas teve de lhe pagar a
passagem da mulher, dos Açores para Cabo Verde, embora o navio viesse fretado
por conta do Estado. A mulher do guarda Rafael tinha chegado e o director que se
encontrava na Praia, com carro, veio trazê-la. Mas no
fim do mês o guarda viu que no seu vencimento lhe faltavam cem escudos. Era a
conta das despesas em gasolina.
Começou a ser detestado pelos guardas.
Dois tinham sido castigados com a perda de dez e cinco dias de vencimento por os
ter surpreendido fora do Campo à procura de um cachimbo perdido. Foram os dois a
casa dele, à Vila, para, reclamarem. Quis pô-los na rua: foi o capitão José
Júlio da Silva que serenou os ânimos.
Pelas suas atitudes, já nem pelos guardas era respeitado. Um deles chegou a
dizer-lhe sentir vergonha por o ter como director do Campo.
Mas as relações entre Manuel dos Reis e os oficiais da Companhia não eram
melhores.
Tinham sido dadas às sentinelas ordens rigorosas para que ninguém passasse pelo
topo sul do Campo, junto aos arames. Uma noite, o guarda Teixeira teimou em
passar e a sentinela bradou às armas. Num instante se viu rodeado de soldados.
O guarda Costa, que era metorista e tratava da iluminação do Campo, também não
foi mais bem sucedido. Disparou contra a sentinela ou para o ar e
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criou alarme por todo o Campo. Mas, chegado o director, aquelas ordens foram
confirmadas, pois as fizera extensivas a si próprio.
Tudo isto tinha causa na rivalidade existente entre os guardas e os soldados
angolanos.
O Manuel Padeiro certa vez foi encontrar uma sentinela adormecida e desarmou-o.
O soldado foi duramente castigado, mas também o guarda foi censurado pelo
sargento de dia que não levou a bem tais intromissões no seu serviço e fez com
que a Companhia lhe levantasse um auto por se ter intrometido naquilo a que era
estranho.
Este e outros choques originaram um ambiente de hostilidade em que muito influía
Manuel dos Reis.
Um dia em que os soldados angolanos andavam a limpar o terreno em volta do arame
farpado, para terem caminho por onde seguir quando em ronda ou de guarda, chegou
o diretor. Criticou o tenente dizendo-lhe que devia ter-lhe dado conhecimento do
caso, pois não queria os soldados ali. No dia seguinte, seríamos nós, presos,
quem faria aquele trabalho.
Um tenente e um cabo vigiavam, mas Manuel dos Reis mandou colocar um guarda no
interior do Campo em vigilância. Temia os contactos e de todos desconfiava. Mas
tudo isto originava despeitos mútuos entre os oficiais, o director e os guardas.
Manuel dos Reis queria mandar em tudo, os da "Companhia Indígena" desejavam uma
esfera de maior influência, Numa Pompílio, que em Malanje era senhor absoluto,
sentia-se diminuído. Entre ele e o director os incidentes davam-se com
frequência.
E por certo foi este ambiente de hostilidade que
originou a vinda de Antão Nogueira.
Vinha fazer uma inspecção e Manuel dos Reis em pleno Campo gritava:
88
- Roubaram-me o livro das contas. Eu sei que não foram vocês, os comunistas, que
estão aqui presos. Mas como vou eu dar contas sem o livro?
Tantos foram os seus atropelos e roubos que certamente os relatórios enviados
pelos oficiais da Companhia e talvez também pelos próprios guardas fizeram que
em Maio de 1937 viesse ao Campo do Tarrafal, em missão de inquérito, o capitão
Antão Nogueira, homem de confiança da Polícia, director do Aljube e directorgeral das prisões políticas.
O rancho, como era de prever, foi razoável nesse dia.
Antão Nogueira percorreu as barracas, sempre acompanhado pelo médico e por
Manuel dos Reis. À tarde voltou. A mercadoria foi retirada da cantina, que foi
encerrada por sua ordem.
A suprema vitória de um carcereiro fascista é levar um preso a repudiar as suas
ideias. Tem a alegria vingativa dos medíocres ao verificarem que mesmo entre
aqueles que se batem por uma sociedade mais justa, e no íntimo de si mesmos
admiram, existem também os que se parecem com eles.
Manuel dos Reis tentava igualmente fazer-nos renegar, mas os seus processos
eram, não podiam deixar de o ser, os do comerciante trapaceiro, a burla, a
tentativa de engano, de querer que assinássemos papéis sem que antes os
lêssemos.
Um dos nossos camaradas, Henrique Ochsemberg, que já cumprira a sua pena,
resolveu escrever a sua mãe pedindo-lhe que procurasse o advogado, a fim de se
darem os passos necessários à sua libertação, pois já tinha cumprido a pena
havia um ano.
E assim se fez.
Meteu requerimento e certo dia o director chamou-o à secretaria.
89
- Queres ir para a liberdade?
Respondeu que sim, que já tinha cumprido a pena.
- Então assina este papel.
Quis o nosso camarada ler primeiro e verificou tratar-se de um documento de
repúdio às suas ideias, consideradas como criminosas por irem contra as leis
fundamentais da sociedade. E também ali se elogiava o Estado Novo e a política
de Salazar. Não assinou.
Enfurecido, Manuel dos Reis gritava-lhe que nunca iria para a liberdade. E para
o guarda ordenou:
- Leva-o daqui.
O documento seguiu as suas vias. Muitos anos mais tarde teve oportunidade de ler
o despacho escrito à margem: indeferido por ser considerado perigoso.
As provocações, aos vexames dos carcereiros opúnhamos a nossa firmeza. Bando de
gente sem escrúpulos, nunca perdiam um pretexto para castigos colectivos ou
mesmo para agressöes. Era um ambiente de terror bem planeado que visava
destruir-nos o moral, mas que sempre encontrava a nossa oposição. Conhecendo as
suas intenções, sabendo quem éramos e pelo que nos batíamos, não nos deixávamos
abalar.
Manuel dos Reis apercebia-se da nossa força e tinha acessos de ira.
- Malandros, eu vos direi! Hão-de levar porrada que os cago!
A sua linguagem era bem nossa conhecida e mais ainda dos camaradas que o tiveram
como director em Angra do Heroismo. Por Manuel dos Reis só podíamos sentir
desprezo e logo a partir dos primeiros dias do Tarrafal quando, depois de ter
dado ordem para o cumprimentarmos, se pos90
tava perfilado e ridículo na frente das formaturas e ele próprio comandava:
- Tirar chapéus!
Era o alvo da nossa chacota e, quando o víamos vir para o Campo, quase em cima
do volante do velho Chrysler, que segundo se dizia, fora roubado a um
antifascista, já com os seus ameaçadores acenos de cabeça, soltávamos a
exclamação zombeteira:
- Lá vem ele! Lá vem ele!
E contudo ainda não o conhecíamos completamente. Falava-nos verdade quando
aneaçava:
- Vocês não me conhecem, mas ainda vão conhecer-me!
E na verdade, quando os primeiros seis camaradas morreram durante o periodo
agudo, como era grande a satisfação de Manuel dos Reis ao ir sabendo das suas
mortes:
- Morreu mais um bandido!
E, quando os caixões eram feitos pelos nossos camaradas carpinteiros com a
madeira que iam buscar às mesas do refeitório e lhe foram falar no pano preto
com que os forrar, respondia:
- Se querem luxos, paguem-nos!
A sua cara mais odienta, a que exprimia todo o seu ódio por nós, como
antifascistas, revelou-se quando da tentativa de fuga e durante o período agudo,
em que a morte rondava pelo Campo.
91
A GRANDE CAVALGADA
A vida era bem dura no Campo e cada momento dos dias que lentamente se iam
passando nos fazia sentir a änsia de liberdade. Constantemente pensávamos no que
faríamos se estivéssemos em liberdade. Pelo mundo, as forças da democracia
tinham de se bater num combate feroz, que não podiam evitar, pois estava em jogo
a própria sobrevivência, numa guerra que já se travava pelas terras de Espanha e
não tardaria em cair sobre a Europa com metralha, sangue e morte. Vivia-se uma
época trágica. Nem um antifascista podia recusar-se a tomar
parte na batalha.
Também nós, encerrados no arame farpado do Campo de Concentração do Tarrafal e
tendo como principal barreira aquele mar que nos cercava, pensávamos na forma de
nos evadirmos, de voltarmos ao trabalho revolucionário.
Havia assim na fuga que projectávamos uma força a empurrar-nos, a querer fender
a muralha de isolamento em que nos tinham fechado, numa ilha distante da terra
portuguesa onde dominava um fascismo de que éramos inimigos e ansiávamos
combater.
Não podíamos aceitar passivamente, nós, condenados a muitos anos de prisão, ou
com as penas já cumpridas ou aguardando julgamento, que a liberdade viesse
depois de cumprida a pena ou que
93
o fascismo, quando nos aniquilasse através das duras condições de clima e de
vida que nos impunha, acabasse por libertar os sobreviventes como adversários
destruídos que já não ofereciam qualquer perigo.
Foi este estado de espírito que nos levou a preparar a fuga que preparávamos,
mas que não nos impediu de encarar fria e lucidamente os grandes obstáculos que
se nos deparavam e as formas como os superar.
Eram grandes as dificuldades. Estávamos numa ilha a dois dias de viagem do
continente africano e não dispúnhamos de qualquer apoio que nos facilitasse a
evasão. Além disso não bastava fugir do Campo. Era preciso evadir-nos da ilha,
que
não oferecia qualquer refúgio e onde facilmente seríamos localizados entre a
população cabo-verdiana.
Mas havia circunstâncias favoráveis para uma fuga colectiva se conseguíssemos
dominar as forças militares e policiais existentes. Porque bem víamos que não
bastava cortar o arame farpado, era preciso dominar a ilha de Santiago,
garantir, livres de qualquer ataque, o caminho para o porto e aí apoderarmo-nos
de navios que nos transportassem para onde nos acolhessem como asilados
políticos e de onde pudéssemos partir novamente para a luta contra o fascismo.
Mas nunca chegaríamos ao porto se antes não dominássemos a companhia de soldados
landins e outras forças.
Era uma fuga arrojada que, depois da saída do Campo, se alguma coisa corresse
mal, trazia o risco de sermos abatidos pelas espingardas e metralhadoras da
companhia comandada por Numa Pompílio.
Tornava-se necessário conhecer as forças do inimigo. Ora, no caminho para a
pedreira, a qui94
nhentos metros do Campo, e onde arrancávamos pedra à força de marretas, guilhas
e alavancas, para depois a transportarmos aos ombros até às obras de alvenaria
que se construíam, tínhamos nás oportunidade de ir obtendo conhecimentos.
Depois do café começava o trabalho na pedreira e o transporte da pedra.
Encurtando caminho, vínhamos em fila e atravessávamos a parada do
aquartelamento. A vigilância de soldados e guardas, postados a certa distância e
nos locais mais favoráveis para impedir qualquer tentativa de fuga,
não nos impedia a observação. Passávamos e com todo o rigor íamos fazendo o
inventário das forças inimigas. Poucas semanas bastaram para sabermos com
exactidão o número de soldados, de serviço, de folga ou doentes, de quantas
espingardas e metralhadoras dispunham, onde estavam localizados os depósitos de
armamento, quais os homens de serviço e de licença, as plantas dos edifícios, as
distâncias entre as diferentes instalações e o tempo necessário para as
percorrer, além de muitos outros dados.
À tarde, quando de regresso ao Campo e até à hora de recolher, havia uma outra
tarefa a cumprir de que alguns camaradas se encarregavam. Era preciso ganhar a
confiança dos soldados angolanos enquanto faziam os seus quartos de sentinela.
Era trabalho lento, de paciência. Mas dava bons resultados. As informações que
nos iam prestando completavam as que obtínhamos pela nossa própria observação.
E o plano foi surgindo ao longo de reuniões, devidamente defendidas por
camaradas que, fora das barracas, estavam de vigilância.
Corria o mês de Junho, ventoso, com noites de belo luar, o que não nos ajudava.
Duas sentinelas estavam dispostas a favorecer a fuga, porém era
95
necessário que ficassem de serviço na mesma noite, no mesmo período de guarda e
ocupassem os dois postos, cada um a seu canto na parte do Campo por onde se
deveria dar a evasão. Situação difícil de conseguir, pois só o auxílio dos
soldados poderia criar a coincidência de, por escalonamento, ocuparem os dois os
postos desejados e no devido momento.
Passavam os dias, as semanas, e as dificuldades iam sendo vencidas, evitando-se
toda e qualquer imprudência que denunciasse os preparativos de fuga aos olhos
atentos dos carcereiros. Por razões de segurança, na nossa maior parte não
estávamos a par do que se preparava. E era bem difícil de
conseguir, pois numa prisão homens que têm de conviver as vinte e quatro horas
de cada dia conhecem-se profundamente e qualquer atitude pouco habitual é
imediatamente notada.
Por meados de Julho, o plano de fuga estava preparado em todos os seus
pormenores.
A fuga seria colectiva. Não ficaria um preso no Campo. Dominadas as forças
militares existentes na ilha de Santiago, seriam mobilizados todos os
transportes marítimos ancorados nos portos, para a passagem dos presos até
Dakar. Uma vez no
Senegal, recolhendo-nos as autoridades francesas como refugiados políticos,
muitos de nós iriam combater entre as tropas republicanas contra os franquistas,
outros regressariam a Portugal para, na clandestinidade, continuarem a sua luta
contra o salazarismo.
Nas operações a realizar tornava-se indispensável o corte imediato das
comunicações da ilha, ocupação dos locais de administração pública e o
esclarecimento à população acerca de quem éramos e das razões da nossa evasão.
E, uma vez que o
armamento existente na ilha estivesse nas nossas mãos, nem o governo local nem
mesmo o metro
96
politano dispunham de forças com que imediatamente nos pudessem fazer afastar
dos nossos objectivos. Além disso, os camaradas marinheiros tinham os
conhecimentos militares e navais que permitiam dar realidade à fuga projetada.
Organizámo-nos em sete grupos. Cada um deles, uma vez vencida a barreira de
arame farpado, com a conivência das sentinelas, a coberto da noite, ocuparia a
posição estabelecida e, dado o sinal, entrariam em acção dominando as forças
inimigas
colhidas de surpresa.
Munindo-nos de ferros, facas. Dois camaradas com as tesouras corta-arames, por
nós fabricadas nas oficinas, tinham a seu cargo a barreira farpada.
Faltava marcar a data.
A 2 de Agosto, já noite, com a maior naturalidade, em pequenos grupos de dois ou
de três, passeávamos como era habitual. Porém os nossos passos sempre se
alongavam mais até à cozinha, ponto de concentração. Um a um, sem darmos nas
vistas, íamos entrando.
A concentração planeada para as 22 e 30 terminara com cinco minutos de avanço.
Os grupos estavam formados, as sentinelas amigas encontravam-se nos seus postos
e o arame a cortar ali bem perto, apenas a uns três metros.
Estávamos todos em silêncio e já os dois camaradas empunhavam as tesouras e se
preparavam para entrar em acção, já a primeira coluna constituída por
marinheiros, mais jovens e fortes, com treino militar, tomavam posição, pois
seriam os
primeiros a sair para o assalto ao aquartelamento da "Companhia Indígena",
quando...
Abriam o portão do Campo. Entrava um guarda, o Manuel Padeiro e um servente do
armazém, um preso ao serviço dos carcereiros, a quem chamávamos o Falinhas.
Trazia uma saca às costas.
97
Naquela noite, o capitão José Júlio da Silva só tarde se lembrou do almoço para
o dia seguinte e ordenou então que levassem para a cozinha um saco de grão a pôr
de molho.
Da cozinha observámos os dois vultos que se aproximavam. Já era tarde para
abandonar o local e passar a um barracão ao lado onde se encontrava o Chrysler
do director em reparação.
- Alto! - segredámos.
O guarda de nada suspeitava. Entrou despreocupadamente, o servente pousou a
saca. Talvez tudo se passasse sem que nos vissem, mas quando se preparava para
sair a luz da lanterna iluminou um vulto.
- Que está aí a fazer?
E logo viu que entre a parede e um caldeiro se encontrava mais alguém que não
reconheceu por estar de costas. Manuel Padeiro não hesitou, correu pelo Campo,
meteu o apito à boca, disparou a pistola. As sentinelas bradaram às armas.
Estava dado o alarme. A fuga tinha falhado e só nos restava dispersar e tentar
defender-nos o melhor que nos fosse possível.
Corremos para as barracas e cerca de setenta homens que estavam descalços por
razões de segurança, correndo pelo Campo fizeram um barulho espantoso. Foi esta
a razão por que lhe chamámos a Grande Cavalgada.
Na nossa correria abandonámos pelo caminho os ferros com que íamos armados.
Junto dos pavilhões em construção houve tropeções, quedas e quem se ferisse.
As sentinelas, disparavam. No quartel, os soldados acordados em alarme corriam
para os seus
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postos. Ao fogo das espingardas juntou-se o de uma metralhadora.
Nas barracas, também nós - e éramos muitos os que nada sabiam do que se passava
- acordávamos em sobressalto. Ouvindo toda aquela fuzilaria, o matraquear seco
das metralhadoras, vendo camaradas erguer colchões em barricada, tentávamos
defender-nos e agarrávamos em pratos, travessas e terrinas que enfiávamos na
cabeça ou púnhamos em escudo sobre o coração para nos defendermos das balas que
caíam sobre o Campo como
saraivada. Alguns de nós meteram-se nos bidões da água.
O tiroteio durou uns dez minutos, depois tornou-se intermitente e por fim parou.
Nós espreitávamos pelas aberturas da lona das barracas e víamos luzes que se
deslocavam na parada do aquartelamento da Companhia e movimentação de tropas e
guardas.
Pela estrada do Tarrafal aproximava-se um automóvel. Chegava o director
acompanhado pelo médico.
Decorreu meia hora. Nós não dávamos sinal de vida. Ouvíamos o capitão Numa
Pompílio falando com Manuel dos Reis, que denotava grande agitação. De armas em
punho, percorriam pelo lado de fora toda a cerca de arame farpado.
Compreendíamos que eles nada sabiam do que se passara e
que o completo silêncio no Campo os surpreendia.
Assustava-os aquela tranquilidade e hesitaram muito antes de darem a ordem de
entrada. Por fim, abriram o portão e duas colunas de soldados avançaram
comandados por sargentos, logo seguidos pelo capitão, pelo director, pelo
médico, pelos guardas, todos de pistolas empunhadas, trémulos e muito cautelosos
ao aproximarem-se das nossas barracas.
99
Numa Pompílio, mais sereno, dirigia-se a nós:
- Vamos, meus senhores! Vamos a formar! Sei que são homens corajosos e que
assumem as vossas responsabilidades!
Com uma lanterna eléctrica iluminava o interior das barracas.
Manuel dos Reis também gritava ordens:
- Todos cá para fora! Saiam como estiverem!
Simulando toda a serenidade que nos era possível íamos saindo, quase nus, como
se tivéssemos sido apanhados de surpresa por tão estranha atitude dos
carcereiros.
- Formem todos na cabeceira do Campo!
Formámos. À nossa volta, de armas apontadas para nós, víamos muitos soldados e
guardas. Manuel dos Reis vociferava insultos e ameaças.
Formados dois a dois fez-se a contagem. O segundo comandante-adjunto, o capitão
José Júlio da Silva, verificando que ninguém faltava, fez uma tentativa para que
tudo aquilo ficasse por ali.
- Posso mandar destroçar?
Mas Manuel dos Reis parecia ter enlouquecido.
- Agora vão saber quem eu sou! Os de Angra já me conhecem! Agora vão saber os de
Peniche e os outros!
Voltou-se para o guarda que nos surpreendera na cozinha:
- Aponte lá os que viu!
Mas o Manuel Padeiro, ainda atordoado pelos acontecimentos, gaguejava sem nada
conseguir dizer.
- Vamos, aponte!
Que podia ele ter visto? A noite estava escura. Vira todos aqueles vultos
emcorreria, ouvira
100
aquele barulho que o atarantara, distinguira um que tinha ..
- Vi que tinham barbas ...
E tanto bastou para que Manuel dos Reis mandasse sair da formatura todos os
barbudos, mesmo aqueles que momentos antes dormiam tranquilamente sem nada
saberem do que se passava. Eram José de Sousa, João Borda, Luís Taborda, Joaquim
Dias, Eduardo Neto, Alvaro Duque, Joaquim Santos, Gabriel Pedro, Correia Pires,
Neves Amado, Carlos Ferreira e outros que também tinham deixado crescer a barba.
Feita a escolha, deu-nos ordem para recolhermos às barracas, enquanto os nossos
camaradas barbudos seguiam em formatura para o portão do Campo.
Mas, antes de saírem, Manuel dos Reis pediu a Numa Pompílio um pelotão.
Seguíamos de noite, acompanhados de perto pelos soldados, de armas aperradas, em
grande aparato guerreiro.
Pensámos que íamos ser fuzilados e alguns camaradas exortavam-nos:
- Morrer com digmidade!
A marcha continuava. Na frente Manuel dos Reis, de cuecas, tal como tinha
saltado da cama, com o dólman enfiado à pressa ainda por abotoar, sapatos
calçados sem as peúgas, de pernas tortas, empunhando uma pistola niquelada a
tremer-lhe
na mão.
Não, não íamos ser fuzilados, encaminhávam-nos para aquilo que iríamos conhecer
bem dolorosamente e que sempre designaríamos por frigideira.
101
A FRIGIDEIRA
A frigideira era uma caixa de cimento, construída perto do aquartelamento dos
soldados angolanos. Tinha uma forma rectangular. O tecto era uma espessa placa
de betão. Uma parede dividia-a interiormente em duas celas quase quadradas.
Tinha cada uma delas a sua porta de ferro, perfurada em baixo com cinco
orifícios onde mal se podia enfiar um dedo. Por cima, junto ao tecto, havia um
postigo gradeado em forma de meia lua com menos de cinquenta centímetros de
largura por uns
trinta de altura.
Estava exposta ao sol de manhä à noite. Lá dentro era um forno. Aquela prisão
merecia o nome que lhe tínhamos dado.
O sol batia na porta de ferro e o calor ia-se tornando sempre mais difícil de
suportar. Iamos tirando a roupa, mas o suor corria incessantemente.
A frigideira teria capacidade para dois ou três presos por cela. Chegámos a ser
doze numa área de nove metros quadrados.
A luz e o ar entravam com muita dificuldade pelos buracos na porta e em cima
pela abertura junto ao tecto.
Quatro passos era o percurso de uma parede a outra. Dentro havia uma constante
penumbra. A porta quando se abria ou fechava rangia, e aquele
103
rangido repercutia pelas paredes rebocadas a cimento. A água que nos davam para
beber nunca chegava. Traziam-na de manhã numa pequena bilha de lata e tálvez não
chegasse a uns quatro litros. Se éramos mais de dois não bastava para compensar
os líquidos perdidos com o calor e sofríamos constantemente a sede.
A comida que nos forneciam era um pão. Em dias alternados apresentávam uma sopa
rala.
Lavarmo-nos era impossível e ao fim de poucas horas o cheiro a suor repugnava.
O latão que servia de urinol e de pia estava destapado e só de manhã o podíamos
despejar. Espalhava-se pela cela um cheiro pestilencial misturado com o das
substâncias amoniacais da urina que nos faziam arder os olhos.
Quando éramos muitos a respiração condensava-se no tecto e caíam gotas de água,
mas não representavam um alívio e sim um tormento mais. Iamos de rastos até à
porta para respirar o ar mais fresco que entrava pelos buracos. Abafávamos.
De noite era a praga dos mosquitos, o chão de cimento como cama, onde
maldosamente tinham espalhado uma leve camada de areia que se incrustava na
pele. E era também o frio, um frio que nos punha a tiritar, pois o cacimbo,
depois do pôr do
Sol, arrefecia o bloco de cimento.
Vinha o silêncio e, se estávamos sozinhos, apenas ouvíamos a chuva e o correr
das águas da ribeira para o mar, os batuques, noite fora, das danças caboverdianas, os brados das sentinelas, os sons dos animais que pastavam.
Pela manhä, abriamos a porta e chegava o guarda com o pão para todo o dia e a
água para despejar na bilha que já tínhamos. Depois era o momento de ir despejar
o latão.
104
Aproveitávamos para passear os olhos em volta. O que se via era uma desolação.
Nem uma folha verde. Só pedras. E uma planta rasteira de que ignorávamos o nome.
Não tardámos em lhe dar um. Reproduzia-se todo o ano. Eram umas bagas pequenas,
do feitio de castanhas quando ainda dentro dos ouriços que as envolvem. Quando
se ia por ali, descalço, pois nos tiravam as botas, o cinto e o chapéu, não
tardávamos, dados dois passos, a parar.
- Arre! Porra!
Levantávamos os pés para ver e arrancar o que mais parecia alfinetes enterrandose.
- Arre! Porra!
Foi o nome que lhe demos.
Pouco depois de o sol nascer já o ar se tornava abafado, irrespirável. Despíamos
a roupa e estendíamo-la no cimento para nela nos deitarmos. O sol da erguendo-se
sobre o horizonte e o calor aumentava, aumentava e suávamos, suávamos. Sentíamos
sede, batíamos na porta a pedir água, mas não tínhamos resposta. A água da bilha
não tardava em ficar quente. Havia momentos em que a sede era tanta que
passávamos a língua pela parede por onde escorriam as gotas da nossa respiração
que ali se condensava.
Os dias pareciam infindáveis. Suspirávamos pela noite, pois o frio nos era mais
fácil de swportar.
Mas pelo entardecer também a séde aumentava. A excessiva transpiração não era
devidamente compensada.
A frigideira matava.
Ainda nos recordamos de ver Pedro Soares caminhando para o Campo, descalço,
tronco nu, sem óculos, cambaleando com o esforço para dominar o extremo cansaço.
Vinha muito magro, muito sujo. Também nos lembramos de Luís Taborna, com o
corpo todo numa chaga, de Gabriel Pedro, que nos
105
primeiros cinco anos foi quem mais tempo passou na frigideira, tão perseguido
pelos carcereiros para o fazerem fraquejar e repudiar os seus ideais através de
constantes castigos que, num momento de desespero, cortou as veias dos pulsos no
rebordo do latão.
A frigideira foi inaugurada na noite em que tentámos a evasão. Éramos dezassete,
dez numa cela, sete noutra. Não podíamos deitar-nos. Não havia espaço para que
todos o pudessem fazer. Na primeira noite, sem conhecermos a prisão, tacteávamos
no escuro à procura de lugar. Esbarrávamos uns nos outros e não conseguimos
dormir.
Entretanto, no Campo, Manuel dos Reis continuava sem saber quem tinha
participado na fuga. Mandou fazer uma busca à cozinha onde nos concentráramos e
ao barracão contíguo e foi encontrar sapatos, um de Júlio Fogaça, outro do José
Soares.
Henrique Ochsemberg foi denunciado pelo Manuel Padeiro.
- Também vi o homem do requerimento.
- Ah! O homem do requerimento! Já sei quem é! O Henrique Ochsemberg! Vai saber
quem eu sou!
Na manhã seguinte, Júlio Fogaça, José Soares e Henrique Ochsemberg foram levados
para o armazém fora do Campo e brutalmente espancados.
O chefe dos guardas, o Teixeira, comandava uma equipa constituída por Poejo,
Costa, Manuel Padeiro, Grifo e outros, encarregádos do espancamento.
Mas será justo falarmos aqui de tais guardas. O Grifo fingia bater. E devemos
ainda dizer que nenhum de nós tinha razão de queixa pela maneira como tratava
connosco. Veio a morrer de paludismo a 14 de Agosto. O outro guarda chamava-se
Sérgio e era cabo-verdiano. Mandaram-no substi106
tuir um deles já cansado de tanto espancar. Recusou-se
- Tenho exame de instrução primária. Não bato em ninguém.
Preferiu aceitar as consequências da sua recusa a sujar as mãos em tão imundo
trabalho.
Manuel dos Reis não assistia. Passeava cá fora. De quando em quando aparecia à
porta e perguntava:
- Já confessaram?
Não, não tinham confessado, respondiam-lhe.
E o espancamento continuava com réguas e sarrafos.
Não confessaram.
Foi com dificuldade que estes três camaradas conseguiram chegar à frigideira. As
costas, as pernas estavam inchadas e roxas. Deitaram-se no cimento, voltavam-se,
mas não tinham posição em que encontrassem alívio. Durante os espancamentos, o
ódio e a tensão nervosa quase nos tornam insensíveis à dor, mas na frigideira
como a sentíamos!
Não era, possível dormir.
Nessa manhã, pelas onze horas, já o calor era muito. O ar só entrava por cima.
De fora tinham tapado os buracos da porta com um taipal.
Pela tarde o calor aumentou. A porta de ferro já ninguém conseguia encostar-se.
Pela madrugada era fria e nela refrescávamos as costas e o peito.
Era alívio que não durava muito.
Os dias iam passando e começávamos a cair doentes. Luís Taborda além de erupção
na pele tinha sintomas de intoxicação. José Correia Pires exclamava:
- Daqui já não saímos vivos!
O seu estado e o de Henrique Ochsemberg era grave. Não tinham qualquer
assistência médica.
107
Pelo corpo aparecia-nos uma borbulhagem, que devia ser provocada pelo suor, pela
sujidade, pela falta de ar.
Pedíamos aos guardas que tirassem dali camaradas doentes, mas nada faziam.
A Comissão de Campo, de que faziam parte Bento Gonçalves e Mário Castelhano,
responsabilizava o director pelo que pudesse acontecer. Como resposta, Manuel
dos Reis ameaçava:
- Vejam se também querem lá ir parar!
Todos estávamos atentos ao que se passava na frigideira. Sentíamo-nos inquietos.
Só Manuel dos Reis dava mostras de alegria.
- Queriam fugir? para saberem! Hão-de cair como tordos!
Uma noite o calor aumentou. Sufocávamos. Gritámos, batemos na porta. A sentinela
ameaçou-nos. Continuámos a bater e a gritar e os nossos gritos ecoavam e as
pancadas na porta ressoavam na noite.
Estendidos no cimento; completamente nus para melhor suportarem o calor, aqueles
três camaradas já não davam acordo de si.
Apareceu Numa Pompílio e ao ver o estado em que se encontravam tomou a
iniciativa de os levar para a enfermaria. Dizia-se que havia dias teimava com
Manuel dos Reis para que nos libertasse da frigideira. A indignação no Campo
poderia originar uma sublevação e não se responsabilizava pelas consequências.
Manuel dos Reis não cedia.
Dias depois saíamos. Tínhamos de nos apoiar uns aos outros. A luz do Sol depois
de tantos dias quase na escuridão cegava-nos. Vínhamos escaveirados, com
furuncoloses; muito abatidos e doentes.
Reclamávamos consulta médica, mas sempre nos era recusada.
108
- Se morrerem - dizia Manuel dos Reis - são
uns bandidos a menos.
Com excepção dos três camaradas doentes, estivemos na frigideira quinze dias. Só
Joaquim Dias saiu quatro dias antes.
Joaquim Dias nunca se queixava. Fizera parte da revolta dos marinheiros. Logo
que entrou no Campo deixara crescer a barba.
Não teve qualquer participação na tentativa de fuga. Não porque não nos
merecesse confiança. Bem pelo contrário. Simplesmente por não servir para os
preparativos a fazer. Mas, por ser um dos barbudos do Campo, foi incluído entre
os castigados à frigideira, ele que dormia tranquilamente
quando o alarme se deu e começou o tiroteio.
Ao voltar da frigideira, com borbulhas por todo o corpo, muito sujo, combalido e
magríssimo, via-se que fazia um imenso esforço para manter a serenidade.
Deixou-se cair na cama e assim se preparava para ficar. Foi quando o camarada
Josué Martins Romão lhe disse:
- Deixa-te estar aí quietinho, que eu vou ver se te arranjo um banho quente e
roupa lavada.
Lavou-o, vestiu-o e Joaquim Dias sempre sem uma palavra.
Josué Romão que dele cuidava pegou então num pente e começou a pentear-lhe o
cabelo e a barba.
E foi aqui que Joaquim Dias interrompeu o seu silêncio:
- Camarada, dás-me licença que chore um bocado?
- Pois com certeza, amigo, chora à tua vontade.
E Joaquim Dias chorou, soluçou por muito tempo e deixou correr todas as lágrimas
que trazia sufocadas.
109
O PERÍODO AGUDO
O ódio de Manuel dos Reis não se satisfazia.
As barracas, depois de nos afastarem para os pavilhões em construção, e
revistadas. Levaram livros, papel, tinta e tudo o que encontraram de cor
vermelha, principalmente roupas. A seguir, meteram tudo aquilo em caixotes,
pegaram-nos à nossa vista e numa camioneta os levaram para o armazém.
A busca prolongou-se até às três da tarde e só então almoçámos. Nem os que
estavam de cama puderam ficar nas barracas.
A água foi limitada. Foram proibidos os banhos de mar. Continuávamos sem
balneários.
As compras que semanalmente estávamos autorizados a fazer e com que nos era
possível enriquecer a nossa alimentação eram proibidas.
Durante seis meses não poderíamos escrever nem receber cartas. Debalde os nossos
familiares nos escreviam. Manuel dos Reis retinha a correspondência. Retratos
que nos eram enviados iam parar às mãos dos carcereiros que deles se serviam
como motivo de zombarias. As ameaças e insultos dos guardas tornaram-se
frequentes mesmo por parte daqueles que até ali tinham sido menos incorrectos.
111
As encomendas que nos mandavam e traziam alimentos e remédios eram devolvidas ou
apreendidas.
A 20 de Agosto, logo pela manhä, os guardas entraram pelas barracas.
- Vamos a sair! Cá para fora!
Ninguém que pudesse levantar-se pôde ficar.
Já antes tínhamos ouvido dizer que se da abrir uma vala em volta do Campo, com
um talude formado pela terra escavada. E na verdade, quando íamos para o serviço
da água, notávamos grande movimento na secretaria. Armazenavam-se pás e
picaretas.
Não nos apanharam pois completamente de surpresa quando, no dia 20, nos fizeram
formar junto da secretaria.
Lá estavam também o médico e Numa Pompílio.
- Vai abrir-se uma vala - começou o Manuel
dos Reis - agora é que vão saber o que isto custa. E olhem que já dei ordens
para os que quiserem safar-se. Está aqui o senhor doutor para que vocês não se
finjam doentes. Lá fora estão as picaretas e as pás. Aqui não há oficios. Todos
têm de trabalhar.
E Esmeraldo Pais Prata começou a sua inspecção médica: Olhava-nos para a cara,
media-nos a pulsação. Dos sessenta presos que já nessa altura estavam com os
primeiros sintomas de paludismo, só cinco puderam ficar nas barracas. Esmeraldo
Pais Prata considerou que todos os outros estavam aptos.
- Apto para o trabalho!
Passávamos para o grupo de guardas e serventes que distribuíam pás e picaretas.
Protestávamos, mas era inútil. O médico não passava de um carcereiro mais e
nessa manhã se iniciou a marcação do corte da vala.
112
Mandaram-nos pôr em fila e o trabalho começou sob a vigilância dos guardas.
O sol de Agosto queimava, a terra escaldava e os que já não tinham botas tinham
de saltitar para evitar a terra abrasada. E nem uma aragem. Nem uma sombra.
Chegou a hora do almoço.
Pelas duas horas, quando devíamos voltar para, muitos camaradas já não puderam
ir. A febre começava a abater-nos.
Durante a tarde o trabalho foi mais fatigante ainda. Soprava um bafo de
fornalha. Cada pazada de terra, cada golpe de picareta parecia ser aquele que
nos faria tombar de exaustão.
De regresso às barracas mais camaradas caíram com paludismo.
E o trabalho na vala continuou pelos dias seguintes.
Manuel dos Reis espicaçava os guardas para que nos fizessem trabalhar em pleno
rendimento mas, de dia para dia, era maior o número dos que ficavam de cama com
acessos febris.
Tínhamos começado a viver um dos períodos mais brutais do Tarrafal. Chamámos-lhe
o "período agudo". Os primeiros camaradas iriam tombar para sempre.
Corriam os últimos dias de Agosto de 1937, muito quentes e sufocantes. Manuel
dos Reis vinha ver como a obra seguia e exasperava=se por ver que cada vez
éramos menos na vala.
Joaquim Faustino de Campos suportava-lhe mal os gritos e os insultos e acabou
por responder-lhe:
- Aqui somos todos trabalhadoras dignos!
Foi levado aos empurrões até à frigideira, de onde saiu amparado, mal
conseguindo arrastar as
113
pernas. Só depois de muitos dias de cama se recompôs.
Todas as manhäs os guardas entravam pelas barracas para ver quem estava em
condições de ir para a vala, quem - na opinião deles - se fingia doente para lhe
fugir.
- Vamos a levantar! Vamos ao trabalho!
Se os acessos febris se davam de dois em dois dias, como por vezes acontecia,
tínhamos de voltar às pás e picaretas debaixo daquele sol de Agosto.
Começaram as chuvas. Cargas de água que caíam e pareciam fervilhar na terra, de
onde se soltava um bafo húmido e quente a envolver-nos, a deixar-nos viscosos.
As chuvadas interrompiam os trabalhos na vala. Mas logo o Céu se abria, voltava
o sol, aquele calor pesado de chumbo, e mais uma vez nos forçavam a cavar a
terra.
Durante a noite desabavam tempestades. O céu parecia baixo, todo toldado de
nuvens arroxeacias, e soprava um vendaval furioso. As lonas, nos pontos de
junção do tecto com as partes laterais, havia grandes rasgões abertos pelo vento
durante a estação seca. A água corria dali como bica de fonte e as lonas
estralejavam à ventania como velas de barco. Tínhamos de afastar as camas, o
chão alagava-se...
E por toda a ilha, no poço, nos charcos deixados pela chuva, no cacimbo que caía
pela madrugada, germinavam mosquitos aos milhões.
Os nove primeiros meses que vivemos no Tarrafal foram de seca e, apesar da
alimentação tão má que nos davam, da água inquinada do Chambão, dos trabalhos
violentos a que nos obrigavam, resistíamos com aquela rebustez da juventude,
pois
quase todos nós éramos homens entre os vinte e os trinta anos.
114
O paludismo mal dera sinal de si. Houvera, é certo, um caso de biliosa Adoecera o Garradas.
Mas, ainda saudável, venceu-a sem grande dificuldade.
O Garralas era um velho militante das lutas sindicais. Era rijo, vaidoso da
bigodeira que penteava muitas vezes no espelho suspenso do apoio central da
barraca.
Adoeceu, e Alvaro Duque, que dormia perto dele, ao notar-lhe os sintomas febris,
procurou o único termómetro do Canpo e viu-lhe a temperatura.
Estava muito próximo dos quarenta e um graus: Preocupado, limpou o termómetro,
guardou-o no tubo de cartão. A doença parecia grave, não havia medicamentos, do
médico todos sabíamos nada haver a esperar...
O velho Garradas observava-lhe a preocupação.
- Ó ålvaro, quantos tenho?
- Pouco. Não chega a trinta e nove.
- Sim? E quantos pode um homem aguentar? - perguntou o Garradas, que não era
grande entendedor de febres e medicinas.
- Aí uns quarenta e cinco ou mais!
- Ah! - suspirou o Garradas, mais aliviado.- Então ainda tenho muitos cartuchos!
O Garradas, homem corajoso, tinha realmente uma saúde ainda com muitos cartuchos
e resistiu à biliosa.
Sentíamo-nos confiantes. Parecia-nos que a nossa juventude a tudo resistiria. Se
o Garradas, mais velho do que nós, se curara, com mais razão seríamos capazes de
enfrentar paludismos e biliosas.
O paludismo apanhou-nos assim de surpresa. Havia entre nós um ou outro que já
passara pelas deportações, porém quase todos nós não tínhamos qualquer
experiência do clima africano e das precauções a tomar contra a malária.
115
Ninguém nos forneceu mosquiteiros e também nós não nos apercebemos da sua falta.
A nossa robustez fizera-nos passar os primeiros meses no Campo sem grandes
sobressaltos quanto à saúde.
Mas, quando o vento deixou de soprar e as primeiras chuvas vieram, chegou o
paludismo. Os mosquitos eram uma praga. Deixavam-nos na pele manchas
avermelhadas, empaladas, que nos causavam grande prurido. E dias depois...
Uma dor de cabeça, muitos bocejos, as pernas moles, o corpo a pedir cama... Era
o paludismo. Entrava em nós um frio que nem roupas nem mantas nos traziam calor.
Enrolávamo-nos com os joelhos encostados ao queixo e ficávamos a tremer, a
tremer, as camas tremiam connosco, e só desejávamos que nada nos dissessem, que
nos deixassem estar ali imóveis e em silêncio enquanto o febrão durasse. Assim
se passavam duas horas. Depois, vinha o calor e começávamos a sacudir o
cobertor, a despir a roupa, e suávamos, suávamos até encharcar lençóis e
colchões. Chegava então a sede, e, naquele silêncio que se fizera na barraca,
ouviam-se as interrupções feitas pelas nossas vozes, uma primeiro, a seguir
outra e outra, fracas, muito fatigadas.
- Dá-me água, camarada.
E sentíamo-nos tão sem forças que qualquer movimento nos parecia impossível.
Entrávamos no mês de Setembro. A repressão no Campo continuava com a mesma
dureza. A 2, um mês depois da fuga frustrada, houve novo alarme e mandaram-nos
formar entre muitos gritos dos guardas. Avançou então um soldado angolano que
apontou para José Trovisco Malarranha.
Levaram-no para a frigideira. E tudo isto por se ter aproximado mais do arame
farpado.
No dia 4, Manuel dos Reis decidiu que teríamos de ser nós, precisamente quando o
número de im116
paludados aumentava, a fazer os despejos das sentinas e levar os latões ao mar,
o que até ali fora feito por serventes cabo-verdianos.
As chuvas tinham feito crescer o capim e os montes antes escalvados justificavam
agora o nome do arquipélago. Das camas, nas barracas com as lonas levantadas,
avistávamos para além da vedação os montes inteiramente verdes, ouvíamos os
mugidos do gado, na pastagem, e recordávamos com tristeza, os campos da terra
portuguesa tão afastada de nós.
Mas reagimos e repetíamos como gracejo as palavras do Garradas:
- Aqui ainda há muitos cartuchos!
Do rancho nem o cheiro suportávamos. Estava pior ainda, se tal era possível.
Pela tarde, a sopa era um pouco melhor, mas por essa altura atacava a malária
com mais força e não conseguíamos comer. Leite só estava autorizado pelo médico
aos
doze doentes que se encontravam na barraca de madeira a que chamavam enfermaria.
A febre impossibilitava-nos de nos alimentarmos. Os camaradas que se mantinham
de pé faziam-nos sopas de pão em água quente, com um fio de azeite, um raminho
de hortelã, que alguns cultivavam em volta das barracas, um ovo escalfado. Estes
ovos ia-os Alvaro Duque tirando a uma galinha que todos os dias passava o arame
farpado e vinha pôr no Campo. E nós, que nada podíamos receber das famílias, por
estarmos castigados, andávamos sempre atentos àquela galinha que nos regalava
com os seus ovos que depois dávamos a algum camarada mais fraco.
O apetite desaparecera. A comida enrolava-se na boca e não a engolíamos. De
manhã, com muita dificuldade, lá comíamos o miolo do pão molhado no café. E era
tudo.
117
Um dia, Manuel Alpedrinha e outros camarada que ainda não tinham caído com o
paludismo cozinharam-nos um bacalhau guisado muito apuradinho e cheiroso, com a
esperança de que o nosso apetite aguçasse. Mas não, não conseguimos saborear o
que nos tinham trazido com tanto gosto.
Íamos definhando.
O rancho muitas vezes não chegava a ser levantado na cozinha para não termos o
trabalho de o despejar na barrica dos restos. Neves Amado, um dos camaradas mais
dedicados, preparava-nos caldos de farinha, torrava pão e com o grão e o feijão
do rancho fazia-nos puré. Usava uma lata barrada
de barro vermelho, muito abundante por ali, que lhe servia de fogão.
Só nos apeteciam coisas frescas, mas onde iríamos encontrá-las?
E as sezões atacavam sempre e deixavam-nos magríssimos, exaustos, com uma cor
amarelo-esverdeada. Novos camaradas caíam à cama. Vinha a febre, o frio que nos
fazia bater o queixo e tremer convulsivamente, o febrão de quarenta e um
graus e décimos, o suor às bagas. As roupas suadas eram postas aos pés das camas
para as vestirmos logo que secassem. Já não era possível lavá-las.
Dava-nos a malária uma sede insaciável. A água sabia-nos a fumo e amargava. Quem
bebesse muita piorava, porque os vómitos eram mais terríveis. Mas nem sempre se
podia resistir à sede e de noite, a cambalear, apoiando-nos às camas, íamos até
à lata da água e bebíamos púcaros e púcaros cheios.
Logo a febre não tardava em subir.
Na vala éramos cada vez em menor número. Os guardas continuavam a entrar todas
as manhãs pelas barracas para ver quem fugia ao trabalho.
- Vamos a levantar! Nada de ronha!
Mas o que viam não dava lugar a dúvidas. Eram os arrancos dos vómitos, os nossos
camaradas
118
ainda sãos a correrem com uma lata para onde pudéssemos vomitar. Por vezes eram
tantos que não sabiam qual socorrer primeiro. E as latas enchiam-se de bílis;
água e a comida que ainda conservássemos no estömago. Ouviam os gemidos dos que
estavam com cólicas intestinais ou de fígado. Virgílio de Sousa, acompanhado
pelos seus auxiliares, corria com latas de água fervida para os clisteres.
Muitos de nós, com o desgaste sofrido, depois de noites e noites sem dormir, já
não sentiam o corpo. Parecia-nos que só o coração ainda batia que só o cérebro
ainda pensava. Mas desesperados por não conseguirmos pegar no sono.
Vinha a noite de insónia e também cães que uivavam. Doentes como estávamos,
debilitados pela febre, sabendo que a morte estava ali e convivia connosco,
muitos não conseguiam afastar velhas superstições ligadas a uivos na noite a
anunciar desgraça. Chegavam a juntar pedras a um canto da barraca para os
afastar à, pedrada.
E eram também os mosquitos, o cacimbo que escorria pelas lonas, os vendavais que
se levantavam e traziam terra que nos entrava para os olhos e chegava a cobrir
completamente as mantas. Era desesperante.
O vento chegava em rajadas e os ferros das barracas rangiam e ameaçavam vergar e
cair sobre nós. Agarrávamos os tubos, ou vínhamos cá fora para segurar as espias
e ali ficávamos suportando as chuvadas de um céu de nuvens avermelhadas,
enquanto o vendaval não serenasse.
De dia para dia aumentava o número de impaludados. Mal começávamos com os
bocejos, sabíamos que não tardariam os arrepios. Procurávamos então uma lata que
virávamos com o fundo para cima e assim colocávamos ao alcance da mão um
119
prato de esmalte cheio de água fria. Esperávamos pelo febrão e encharcávamos
lenços que púnhamos no ventre e na testa. Dali a monentos estavam quentes e
voltávamos a ensopá-los.
Os camaradas que ainda se mantinham de pé estavam esgotados. Traziam a água do
Chambão, despejavam-na nos bidões, lavavam lençóis e a roupa, faziam os
despejos, trazian o rancho da cozinha e cuidavam dos doentes. Eram quinze, não
tardou que fossem dez, e por fim nove.
O Virgílio de Sousa, bom profissional de enfermagem, Vale Domingos, Silvino
Leitão e Leonião Felizardo levemos não ter sido maior o numero de vítimas do
paludismo. Todas as manhãs percorriam as barracas. Tratavam-nos como era
possível, com clisteres e compressas de água fria. De nada mais dispunham.
Não havia no Campo um comprimido de quinino.
Como podia explicar-se que não houvesse medicamentos nem fossem tomadas
quaisquer medidas numa ilha africana onde a malária teria fatalmente de
aparecer? Como se podia justificar a ausência do médico quando cerca de duzentos
presos ardiam
em febre?
Só uma resposta era possível. O salazarismo desejava a nossa morte. Não nos
matava de frente, deixava-nos morrer de paludismo.
Como explicar de outro modo que os medicamentos e encomendas que os nossos
familiares nos enviavam se acumulassem na secretaria? Manuel dos Reis afirmava
que estávamos castigados. Mas deste modo não nos entregava o que nos podia
curar.
Nós, que não ignorávamos a falta de medicamentos, sentíamo-nos abandonados, sem
qualquer esperamça de auxílio.
120
Dizia-se que estava para chegar um barco com medicamentos, mas o navio não
entrava no porto e os médicos não apareciam.
Pedíamos injecções, qualquer coisa que nos curasse.
Virgílio de Sousa enchia seringas com água.
- Isto vai pôr-te bom!
E fingia injectar.
Sentíamo-nos melhores. Mas aqueles que assistiam e compreendiam o bemintencionado engano sentiam-se enraivecidos contra os carcereiros que nos
deixavam morrer.
A 14 de Setembro foram interrompidas as obras na vala. Não havia gente para
trabalhar. O Campo era um hospital.
O pequeno número que ainda não adoecera continuava a ir buscar água, a fazer os
despejos. Manuel dos Reis não fazia qualquer esforço para resolver a angustiante
situação que vivíamos.
E foi numa dessas idas ao poço do Chambão que fomos avisados por um motorista
das Obras Públicas, com todas as precauções para que os guardas não ouvissem,
que devíamos ferver a água.
Quando o soubemos, acreditámos que o mal de todos nós fosse provocado pela água
e quantos o podiam fazer se lançaram para a pilha da lenha da cozinha.
Vieram os guardas dizer-nos:
- Voltem a lá pôr a lenha! O senhor director não autoriza!
Gritávamos:
- Querem matar-nos. Mas desta maneira não nos matam. Não deixamos!
Acendíamos fogueiras e as primeiras latas de água fervida foram conseguidas com
luta.
- Apaguem as fogueiras!
- A água tem de ser fervida! Está inquinada!
121
Junto da lenha colocaram sentinelas. Arrancámos os barrotes dos estrados. E às
ordens dos guardas para que não o fizéssemos respondíamos que não podíamos
deixar-nos matar sem nada fazer em defesa.
Na Cidade da Praia pensavam haver entre nós uma epidemia de tifo. E tais eram as
condições do Campo que o engenheiro das Obras Públicas, Bernardo Faria, mandou
retirar todo o pessoal a trabalhar na construção dos pavilhões pelo receio de
que a epidemia se espalhasse por toda a ilha, e em vários pontos do Campo mandou
colocar latas com enxofre a arder. E, como já nos era impossível o abastecimento
de água, foi, ainda este engenheiro que tomou essa tarefa a seu cárgo pondo em
serviço uma camioneta cisterna.
A situação agraváva-se. De cerca de duzentos presos, apenas uns oito estariam de
pé a tratar de todos os outros. Quase não descansavam. Viam as temperaturas,
davam água;, acudiam aos que queriam vomitar, aos que gemiam com cólicas, aos
que deliravam com febre e se imaginavam em casa entre os seus.
O pão que não comíamos empilhava-se cá fora. Nos primeiros tempos ainda o
dávamos aos trabalhadores cabo-verdianos, mas tínhamos de o fazer sem que os
guardas vissem.
As bananas compradas antes da tentativa dé fuga eram muitas é apodreciam.
Viam-se pelo Campo bandos de corvos que tinham comida farta e fácil no rancho
que não comíamos. Todo o dia crocitavam no topo das barracas, muito negros, como
prenúncio de morte.
No barracão a que chamavam enfermaria e onde só havia a vantagem de se estar
mais defendido do vento e da poeira, eram cada vez em maior número os camaradas
em estado grave. Uma das dppendências era reservada aos que estavam na agonia,
para
122
que os restantes doentes não ficassem impressionados. Jaime Francisco e Zuís
Leitão chegaram a ser transportados para a câmara mortuária, que era o gabinete
de Esmeraldo Pais Prata. Já estavam dados como mortos. Aplicava-se então o
escalda-pés
como último recurso e felizmente reagiram tão bem que momentos depois pediam
comida. Alvaro Ferreira, João Campelo, Armando Callet, João Rodrigues, Casimiro
Ferreira, João Borda e outros quase passaram pelo escalda-pés. Quando não se
reagia, era a morte.
Porque morreram camaradas. A 20 de Setembro morriam Pedro de Matos Filipe e
Francisco José Pereira; a 21, Augusto da Costa, da Marinha Grande, a 22,
Francisco Domingos Quintas e Rafael Tobias, a 24, Cândido Alves Barja.
Só então aparecia Esneraldo Pais Prata da vê-los quando estavam a morrer.
Os camaradas mentiam-nos quando algum de nós era levado das barracas. Diziam-nos
que iam ser hospitalizados.
Acreditávamos. Parecia-nos impossível que nos deixassem morrer sem nada fazer
para nos salvarem. Sentíamo-nos mais tranquilos por eles e imaginávamo-los no
hospital da Cidade da Praia, numa enfermaria clara e higiénica, entre médicos e
enfermeiras de batas muito brancas, onde teriam todos
os tratamentos necessários. E muitos os invejavam.
Mas Rafael Tobias jazia na sala mortuária e ainda estava vivo. Pensava-se que
não duraria mais que momentos e a sua agonia prolongou-se até ao dia seguinte.
Ouviam na enfermaria o seu estertor os camaradas que estavam melhor. Ouviam e
faziam perguntas embaraçosas. Respondiam-lhes que a camioneta que o levaria ao
hospital ainda não chegara, que só viria à tarde.
Pelo Campo, ouviam-se serras, plainas e martelos, dia e noite. Mas não
pensávamos que fossem
123
os carpinteiros serrando e aplainando a madeira das mesas do refeitório,
pregando as tábuas dos caixões. De noite, aquelas marteladas ecoavam pela
planície.
Não imaginávamos que os camaradas sãos, quando vinham prestar-nos assistência,
tivessem acabado de lavar, de vestir os que tinham morrido, que tivessem sido os
últimos a vê-los antes de se fecharem os caixões. Não imaginávamos que viessem
do cemitério. Iam sempre oito. Quatro pegavam nas cordas, pelos cantos. Os
outros levavam caixotes vazios onde, de quando em quando, o ataúde era colocado
para descansarem e se revezarem. Não imaginávamos que as mãos que momentos antes
nos tinham dado água tivessem aberto o coval onde fizeram descer o caixão e
sobre ele tivessem deixado cair as pazadas de terra.
Não o imaginávamos, mas sentíamos a morte bem perto de nós. E, embora o
estoicismo e a coragem fossem os traços daquele período horrível, a amgústia
dava-nos os seus sacões quando ouvíamos os soturnos taques dos búzios e os
gritos das
carpideiras nos enterros da gente da ilha.
A morte viera ao Campo e Esmeraldo Pais Prata
satisfazia o seu ódio ao passar as certidöes de óbito.
- Em vez de seis, podia muito bem ter assinado quinze.
Manuel dos Reis lastimava-se:
- Vocês têm pacto com o diabo! Eu esperava que já, tivessem morrido mais de uma
dúzia e só foram seis! - dizia a um dos elementos da Comissão do Campo que lhe
fora colocar as nossas reivindicações.
Porque fora criada uma Comissão do Campo, que abrangia os representantes das
organizações políticas existentes: comunistas anarco-sindicalistas e
republicanos.
124
aos carcereiros a responsabilidade de quanto se estava a passar.
Tinham sido nomeados camaradas responsáveis em cada barraca, após reuniões.
Foram discutidos e aprovados os problemas e resoluções que deviam ser tomadas
para fazer frente a novas situações que tivéssemos de enfrentar. Depois destas
reuniões, onde foram analisados em todos os aspectos os
momentos graves que vivíamos, foi decidido lançar um apelo de socorro,
utilizando todos os meios, para que até nós chegassem antipalúdicos e
desinfectantes intestinais e, acima de tudo, a arma mais eficaz - o mosquiteiro.
As nossas famílias enviaram-nos remédios e alimentos, e também aqui a Comissão
do Campo teve de travar grande luta com Esmeraldo Pais Prata e Manuel dos Reis,
que retinham os medicamentos, apesar de saberem que as nossas vidas estavam em
perigo. E, quando lhe fizemos sentir a responsabilidade que sobre ele pesava
como médico, respondeu:
- Não estou aqui para curar, mas para assinar certidões de óbito.
E se não as assinou em maior número foi porque em muito o contrariou a nossa
inventiva.
Construímos um forno onde se introduzia uma lata cheia de água, que atingia o
ponto de ebulição em cinco minutos, aproveitando a energia dos gases em
combustão. Nas oficinas, fabricámos aparelhos de grande utilidade para os
tratamentos. De uma lata de azeite, de litro, fizemos um irrigador, que se
completou com um tubo de borracha e uma cânula que vieram da Vila. Fabricámos
suportes para os frascos de soro, uma mesa móvel para que os doentes pudessem
comer deitados, um escarrador largo, onde fosse possível vomitar, um destilador
para água, que também bidestilava e permitia fabricar soros fisiológicos,
oloreto de cálcio injectável endovenosamente, cacodilato de sódio,
125
medicamento precioso, quer para o restabelecimento dos atacados pelas biliosas
quer dos que tinham suportado febres altas, pois era grande a destruição de
glóbulos vermelhos. Este aparelho construído por António Coimbra e Hermínio
Martins servia depois para a composição de medicamentos que, uma vez
pasteurizados, nos eram ministrados.
Assim se salvaram as vidas de muitos camaradas.
Mas nas oficinas fabricámos também pinças, sondas, estiletes, bisturis e até uma
cânula de circulação de água para tratamentos à próstata. Porque o médico não
fornecia as dedeiras necessárias. Dizia que se podia fazer com bexiga de porco.
Nem só a Comissão do Campo exercia pressão sobre o director e o médico. Sofriam
outras. Em Portugal havia um importante movinento de solidariedade, que recolhia
medicamentos e fazia sentir a sua pressão sobre os carcereiros. Conhecia-se na
ilha de Santiago e mesmo no arquipélago o nosso caso e a desumana situação
vivida.
Assim se viram forçados a ceder e apareceu por fim um garrafão com soluto de
quinino.
Este medicamento podia Esmeraldo Pais Prata, se quisesse, tê-lo fornecido nais
cedo, antes das seis mortes que o paludismo originou. Eis porque se tornou o seu
principal responsável.
Foi a partir do garrafão milagroso, como lhe chamámos, que começámos a melhorar.
Amargava como fel, mas bebíamo-lo sôfregos, às colheres, duas vezes ao dia.
Abríamos a boca
e a colherada escorregava, quase com prazer, só pela esperança de cura, de amor
à vida.
E chegou-nos então uma fome insaciável. Comíamos tudo. Guardávamos para o dia
seguinte aquele empastado arroz de albacora que tragávamos de manhã, pois o café
não nos bastava. Debaixo
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da cama deixávamos comida de reserva. De noite acordávamos com fome. Só os
pratos de feijão frade a formar montanha nos satisfaziam. O pão, tínhamos de o
comer de uma só vez. Não resistía mos. Nunca o dividíamos por todo o dia. Uma
terrina de rancho que devia chegar para doze era devorada por seis. Depois vinha
o suor às bagadas. O nosso estado de fraqueza ressentia-se com o esforço
daquelas digestões.
O corpo queria sobreviver, exigia a recuperação de quanto perdera. Os nossos
pensamentos giravam em torno dos pratos de que mais gostávamos e a água crescianos na boca. Até o fedorento guisado de bode tinha o gosto das iguarias que
imaginávamos.
Numa tarde de forte nortada, agarrados aos ferros que rangiam e vergavam à força
do vento, ouvimos o toque no carril para o rancho. E, então, vimos aparecer uma
bandeja com joaquinzinhos e batatas cozidas.
Que regalo! Nós que quase só comíamos albacora como peixe fresco! Como
saboreámos, como fizemos render aqueles pequenos carapaus fritos!
Naquele dia, o Manuel dos Reis não estivera no Campo. Por ele nunca os teríamos
comido.
Lentamente, recuperávamos. Os menos combalidos voltavam ao serviço da água.
À vala já não iríamos. Acabou por ser aberta por uns duzentos trabalhadores
cabo-verdianos, aos gritos de um capataz feroz que nem os deixava respirar.
Recuperávamos e soubemos então que os camaradas que julgávamos no hospital da
Cidade da Praia tinham morrido. Só então avaliámos o perigo que tínhamos
corrido.
A vida continuava e era preciso prosseguir a luta, resistir aos carcereiros,
sobreviver para manter vivo o combate.
127
Havia muito a fazer, a limpar. Era preciso enterrar todo aquele pão que se
acumulara sobre as mesas, já esverdeado de bolor, lavar toda aquela roupa
impregnada de suor e doença. Algumas peças tinham apodrecido e tivemos de as
queimar. Lançámo-nos à lavagem e desinfecção das barracas com creolina, para
evitar o surto de epidemias, tanto mais que nos empurraram para um dos topos do
Campo, para que o outro ficasse livre para a construção dos pavilhões em pedra e
cal.
Sabíamos que o paludismo nos marcara. Tínhamos de nos defender. Chegavam os
medicamentos e gaze com que fazer mosquiteiros. O fascismo criara as condições
para a nossa morte, fizera-nos seis baixas. Atribuíra-as ao clima, ao paludismo;
enfim, as causas naturais de que ninguém era responsável. Era preciso evitar que
o mesmo voltasse
a acontecer.
As forças voltavam e já nos levantávamos um pouco. Saíamos das barracas e íamos
deitar os olhos pelo Campo.
O capim crescera. Em volta tudo era verde. As barracas tinham as lonas
levantadas e acenávamos uns aos outros. Estávamos vivos. E, contudo, viamo-nos
abatidos, sem cor, barba crescida, a cara e as pernas inchadas. E todos estavam
assim, como o camarada Abatino, antes tão forte e saudável e
que víamos então macilento, magríssimo, olhos encovados e mortiços.
- Nem já parecemos nós!
Sorríamos uns aos outros, alegres por vivermos, embora víssemos que nunca mais
seríamos tão jovens e sãos como quando tínhamos entrado no Campo.
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O "TRALHEIRA"
Esmeraldo Pais Prata, nomeado médico do Campo de Concentração do Tarrafal por
finais de 1936, só em Abril de 1937 se apresentou para dar consulta. Tracheira
foi a alcunha com que o conhecíamos e aquela que merecia quem afirmava:
- Não estou aqui para curar, mas para passar certidões de óbito.
A dor dos doentes do Campo deixava-o indiferente. Pela calada da noite vinha
assistir aos espancamentos. O muito ódio que tinha por nós era frio; a medicina,
a arma com que nos feria. E como médico podia atingir-nos de muitas formas.
Não aparecia. Conhecendo os perigos do clima africano, nada fez para abastecer a
farmácia do Campo com os medicamentos necessários para combater a malária e as
disenterias que fatalmente teriam de surgir.
Quando vinha era de fugida, dava consulta a dois ou três doentes, para
justificar o seu papel de médico, e desaparecia com promessas de voltar no dia
seguinte. Mas não cumpria. Geralmente nada receitava.
- Isso passa. Isso não é grave.
Junto do Posto Médico juntávam-se por vezes muitos doentes.
129
- Estão todos mal? - perguntava.
- Sim, senhor doutor.
Olhava-nos e dizia zombeteiro:
- Coitados.
O seu receituário era modesto.
Um dos seus medicamentos preferidos era aquela excelente água do Chambão, em
aplicações frias no peito, nas costas, na barriga, de baixo para cima, de cima
para baixo e para casos de tuberculose, de reumatismo, de males intestinais ou
hepáticos.
O salicilato gozava também da sua preferência.
Uma manhä, o nosso camarada Manuel da Graça foi queixar-se. Sentia-se muito
engripado. Os brônquios estavam atacados, doía-lhe o peito, tinha febre.
Esmeraldo Pais Prata olhou-o e com a sua habitual gravidade, depois de um
silêncio prolongado, disse-lhe com a sua voz pausada e os "ches" de natural de
Santa Comba Dão:
- À noite, antes de se deitar, cheire o salicilato.
Parecia apoiar muito as suas esperanças de cura nas propriedades terapêuticas do
salicilato. No salicilato e nas ventosas.
- Doem-lhe as costas?
- Sim, senhor doutor. Sinto-me muito fraco. O rancho é mau...
O Tralheira ouvia muitos queixas contra o rancho e atalhou:
- Sim... E a dor é interna ou externa?
O doente, perplexo, voltou a explicar o que sentia. O Tralheira escutava numa
atitude de muita concentração e dizia por fim para Virgílio de Sousa:
- Ponha-lhe umas ventosas e dê-lhe o salicilato.
Ou a tintura de iodo.
Foi um camarada queixar-se de ter todo o corpo com manchas vermelhas. Era um
caso de urticária. Mas quando esperava qualquer medicamento, como o hipossulfito
de magnésio de que já lhe tinham
130
falado como sendo um dos remédios indicados, ouviu-lhe a receita:
- Dê-lhe umas pinceladas de tintura de iodo diluída em água a dez por cento.
Todas estas prescrições eram antecedidas de um silêncio a que dava solenidade. E
parecia divertir-se com o contraste entre a sua gravidade sabedora e a
ineficácia das suas prescrições clínicas.
Havia porem receitas que muito nos surpreendiam.
Certa vez, a um camarada que se queixava de cólicas no fígado e se recusava ao
sulfato por lhe irritar o intestino respondeu:
- Isso é um erro. A reacção só o beneficia. Olhe, eu quando estou mal do fígado,
como um bocado de chouriço ou qualquer outra coisa assim picante. Tenho uma
cólica forte e, depois da descarga, alivio!
Admirador da Alemanha nazi, convicto da sua vitória, entusiasta das suas
qualidades de organização e poder realizador, sentia um ódio muito grande pelos
comunistas. Parecia ter uma perversa satisfação em nos desanimar, em nos criar o
desespero por sabermos que dele não obteríamos qualquer auxílio.
O ódio de um Manuel dos Reis manifestava-se em berros e insultos, o de Esmeraldo
Pais Prata era frio, tratava-nos pelo nome e por senhor. Era uma forma cortês de
tratamento com que nos brindava, sem que isso significasse menos ódio por nós.
Estávamos presos, e esse facto era já uma vitória da facção a que pertencia.
Éramos seus inimigos, e não o escondia ao dizer-nos não estar interessado na
nossa saúde e que só as certidões dos nossos óbitos lhe traziam contentamento.
Ouvia imperturbável as nossas críticas e acusações. Porque era culpado da
morte de camaradas, porque retinha os medicamentos que nos manda131
vam e nos poderiam curar. Não tinha a intenção de ceder, mas agradava-lhe fazernos sentir que não o fazia por imcompetência, por ser mau médico, mas porque
deliberada e conscientemente assim o pretendia.
Uma vez, quando a crítica se alongou e o nosso ataque se tornou mais duro,
interrompeu:
- Não se canse. Já mijei o medo há muito tempo.
Escutava a censura para que ficasse bem claro em nós que ele não desconhecia a
deficiência da assistência médica, pela simples razão de ser essa a sua vontade.
Também o Peque lhe fez os seus ataques. Peque, desde criança, vivera em Espanha.
Era português de origem, mas em tudo espanhol. Embora rude e ignorante, pois
tivera de trabalhar desde muito novo e nunca lhe fora possível ir à escola,
tinha muita consciência de classe e batera-se valorosamente em Espanha. Finda a
guerra veio para Portugal. Mas, mal passou a fronteira, foi preso e poucos meses
depois, sem julgamento, estava no Tarrafal.
Era fraco e as febres não o largavam. Febres baixas que o iam minando. Havia
muito que trabalhava sem poder. Pedia nas consultas que lhe desse baixa, mas sem
o conseguir. Para o Tralheira, isto só podia trazer satisfação. Era desesperar
um homem, fazê-lo trabalhar estando doente, fazê-lo esperar uma baixa que não
pensava em conceder.
Peque, indignado, pediu ao guarda que o levasse à consulta e, ao ver o médico,
em vez de se queixar, dos seus males, começou a acusá-lo numa língua que não era
a portuguesa nem a espanhola, e com tal violência que Esmeraldo Pais Prata não
conseguiu manter a sua habitual serenidade.
- Mas afinal o senhor vem para aqui invectivar-me?
132
Peque ficou um tanto desorientado com aquela palavra desconhecida. Mas ao notar
a irritação do Tralheira deduziu que as suas acusações tinham originado o efeito
pretendido e respondeu:
- Estoy de acuerdo.
E saiu sem pedir baixa.
Quanto mais desesperado via um doente, maior era a alegria daquele módico
criminoso. Nesses momentos não resistia a fazer humor.
Jacinto de Almeida, que viria a morrer pouco depois da sua libertação, por
quanto sofrera no Tarrafal, também já não podia suportar o trabalho no Campo.
Pedia baixa, mas sempre o Tralheira a recusava.
Foi mais uma vez à consulta. Na cara viam-se manchas provocadas pelo fígado, já
tão dilatado que lhe era difícil suportar as dores e os vómitos.
Sofria de horríveis dores de cabeça.
- Estou realmente sem forças, nas pernas e em todo o corpo.
Esmeraldo Pais Prata olhava duas vezes para nós, a primeira quando entrávamos no
consultório e a segunda quando dava a consulta por terminada. Entre estas duas
miradas, tinha os olhos no tampo da secretária e escutava.
Quando Jacinto de Almeida acabou de lhe falar de todos os seus males, levantou
os olhos e disse:
- Sabe o que lhe digo, senhor Jacinto? Que é preciso ter muita saúde para
aguentar tanta doença.
Mas quando lhe surgimos como inimigos perigosos, quando tentámos a fuga, também
o Tralheira insultou e ameaçou.
Henrique Ochsemberg estava cheio de equimoses depois de o terem espancado.
Sentia dores fortes nas costas e queria dormir. Exigiu o médico e pediu-lhe um
comprimido para passar de um sono nem que fosse uma só noite.
133
Olhou-o o Tralheira de alto a baixo e disse:
- Seu malandro, eu não lhe fazia isso, eu dava-lhe três tiros nos miolos!
E afastou-se sem lhe prestar qualquer assistência.
Mas as dores violentas que sentia tinham uma causa grave. Anos mais tarde, já em
liberdade, depois de tirar uma radiografia - continuava a sentir dores na região
cervical - viu-se que tinha três vértebras calcificadas. Não era difícil saber
qual fora a causa daquela lesão.
Os tratamentos de Esmeraldo Pais Prata eram estranhos e logo se via haver neles
uma intenção criminosa. Nenhum médico faria aquela operação a uma otite sem ter
como finalidade o mal do doente.
Pela porta da enfermaria entravam nuvens de poeira. Ia cair no golpe que lhe
fizera atrás da orelha. O Tralheira laqueava veias, cortava veias e sempre sem
qualquer desinfecção ou anestesia.
Aníbal Barata - era ele o doente - suportou tudo aquilo sem um gemido.
Uma oútra vítima foi o Felicíssimo. Era um pobre homem que se dizia poeta e
grande pintor, mas não passava de um diminuído mental. Fora preso na fronteira,
quando queria fugir aos franquistas.
Fizeram-no seguir para o Tarrafal como perigoso comunista. Era contudo homem
honesto e sempre manteve uma posição digna.
Tinha a boca em péssimo estado. Os dentes estavam já sem as coroas e resolveu
arrancar as raízes que o faziam sofrer muito. Sem anestesia, o Tralheira
enterrava as pontas da turquês nas gengivas doridas. Os gritos do Felicíssimo
ouviam-se por todo o Campo. Foi horrível o que suportou. E inutilmente, por
perversidade de Esmeraldo Pais Prata,
pois, quando anos mais tarde abandonou o Campo, verificou-se que dispunha de
ampolas de novocaína,
134
anestésico indispensável a qualquér dentista ao extrair um dente.
Porque Esmeraldo Pais Prata era também estomatologista e sempre que queriamos
tratar dos dentes tínhamos de nos inscrever e aguardar o dia em que trouxesse
todos os seus instrumentos.
Além de médico do Campo, era delegado de saúde e administrador do concelho do
Tarrafal. Por todos estes cargos recebia boas remunerações e neles se manteve
durante várias comissões de serviço.
Tinha como primo Mário Pais de Sousa, então ministro do Interior. Era natural,
tal como Salazar, de Santa Comba Dão. Atacar o regime fascista, como nós
fazíamos, era abalar o estado da sua prosperidade.
O guarda à entrada do Campo pegava num ferro e batia num pedaço de carril
suspenso de um arame ferrugento. As pancadas anunciavam a chegada do médico para
a consulta.
Esmeraldo Pais Prata caminhava com passos lentos, de olhos no chão, muito
pensativo. Atravessava a pequena passarela sobre a vala, passava o portão já
aberto e seguia para o posto clínico, que lhe ficava em frente, no outro lado do
rectângulo ao campo.
Chegava ao posto clínico, um pequeno pavilhão de paredes caiadas a ocre e
janelas em cantaria vermelha. Entrava no gabinete, arrastava as grandes botas
pelo cimento e sentava-se à sua secretária.
O enfermeiro oficial do Campo, cabo-verdiano, o Júlio, seguia-o e ficava de pé a
contemplar o Tralheira, sentado, taciturno, a fumar um cigarro.
Tudo caía em silêncio. Ouviam-se zumbir as moscas.
Nós esperávamos que a consulta começasse.
135
A biliosa fizera já as suas vítimas. Sentíamo-nos inquietos. Quem seria o
próximo? E víamo-nos doentes, à morte, já nos tiravam as medidas, já uma mesa do
refeitório iria seguir para a carpintaria e pelo Campo voltariam a ouvir-se as
serras, as plainas e os martelos a fazerem o caixão. Porque se a biliosa fosse
anúrica não haveria qualquer esperança. Ficaríamos na Mitra, de onde
passaríamos à enfermaria, última escala antes do cemitério.
Dávamos o nome de Mitra ao depósito de doentes. Era um barracão onde chegaram a
estar quarenta homens, em camas encostadas umas às outras, dispostas em duas
filas com um estreito intervalo entre elas. Não tinham mosquiteiros. Lá
dentro, com os suores das sezões que encharcavam lençóis e colchões, com os
vómitos de bílis, com as urinas, o ar era denso, azedo, cheirava a couves
fermentadas, a imundície, a doença e a morte. Ouviam-se gemidos, as vozes fracas
dos que deliravam, viam-se cabeças descarnadas, com uma pele cor
de limão, que rolavam sobre os travesseiros e eram já máscaras de morte.
Vivíamos no receio de que uma manhä urinássemos sangue, que a urina saísse
negra. Iniciava-se então um ciclo quase sempre sem regresso. Era a Mitra, os
purgantes, os clisteres,
todas as tentativas para que o doente não deixasse de urinar. Quando não se
urinava era a morte e mais uma certidão de óbito para contentamento do
Tralheira. Esperávamos a consulta. Rangia a porta do gabinete do médico, na
abertura víamos a bata branca do Virgílio de Sousa, que sempre acompanhava as;
consultas e em quem confiávamos como bom profissional.
- O primeiro para a consulta.
Entrávamos.
136
- Então que temos?
Era a inevitável pergunta do Tralheira.
- Senhor doutor, sinto-me mal. Dói-me o fígado.
Estou doente, senhor doutor. Seis anos a comer
este rancho.
- Sim, sim - interrompia Esmeraldo Pais Prata. - Vamos ver isso.
Calava-se e ficava em grandes meditações. Virgílio de Sousa esperava, corria os
olhos pela secretária do médico, via mais uma vez o termómetro no seu tubo de
cartão, o grande livro de registo dos diagnósticos e prescrições, e acabava
por tossir para acordar o Tralheira.
- O senhor doutor vai estudar o caso.
- Sim, é isso... Vou estudar o seu caso.
E o doente saía.
- Outro! - chamava o Virgílio de Sousa.
- Então que temos
Era um caso de tuberculose.
- Está tuberculoso? Tenho muita pena. Vou estudar o seu caso. Vou, sim...
Junto da porta, sabendo que a consulta estava terminada,
Virgílio de Sousa
chamava:
- Outro!
- Então que temos?
O doente queixava-se.
- O senhor tem dores?
- Sim, senhor doutor.
- Evacua bem?
- Não, senhor doutor.
Caía em novos pensamentos, batia com o lápis no tampo da secretária e parecia em
grande esforço para estabelecer o diagnóstico. Por fim, chegava a prescrição:
- Dez gramas de sulfato...
Virgílio de Sousa abria o livro dos receituários, escrevia o nome do doente, a
receita, e recomendava que passasse pela enfermaria para levar o remédio
receitado pelo senhor doutor.
137
- Mas, senhor doutor . . - insistia o doente - eu queixo-me...
Era inútil, e Virgílio de Sousa da à porta.
Outro!
O doente que entrava sofria do coração.
- Sim, sim, é cardíaco... Pois, é cardíaco... Vou estudar o seu caso.
O doente saía.
- Outro!
Mas também podia acontecer visitar-nos na frigideira.
Olhava em volta, via as paredes soturnas, sentia aquele cheiro do latão e
respondia distraidamente, sem interesse, com pressa de sair dali.
- Não quer comer? Assim é pior! É pior, acredite!
O doente queixava-se, mas o Tralheira continuava com os olhos num ponto que
particularmente o parecia interessar.
- Não, não posso fazer nada.
E já da a sair quando se voltou e apontou ao guarda a parede ao fundo da
frigideira.
- Mandem tirar aquela teia da aranha que ali está.
Eram assim as consultas de Esmeraldo Pais Prata.
Quando o doutor Manuel Baptista dos Reis chegou ao Campo, depois de se ter
batido em Espanha contra o fascismo e conhecer em França o campo de concentração
de Argelés, já nós tínhamos vivido os tempos da "brigada brava". Os
espancamentos, os castigos eram menos frequentes. O abandono à
doença sem qualquer assistência médica já não era completo, nem já Esmeraldo
Pais Prata afirmava ter vindo para ali apenas para pôr a sua assinatura nas
certidões de óbito.
138
A ruptura do campo imperialista originado pelo pacto germano-soviético, a
confiança a perder-se no milénio fascista, a propaganda da BBC escutada pelos
carcereiros, abalara-o. Já não ameaçava com tiros na cabeça, já se entregava a
simulacros de consulta médica e de tratamento. Do mesmo modo, a repressão no
Campo abrandara.
Na farmácia já havia quinino, embora na forma injectável, a de ministração mais
dolorosa. E outros medicamentos para receituário do Tralheira, com a água do
Chambão como excipiente.
As camas já estavam protegidas com mosquiteiros feitos com a gaze enviada pelos
nossos familiares.
Contudo, as condições para uma eficaz assistência médica não se tinham alterado.
Sem análises, sem raios X, toda a enfermidade que exigisse internamento
hospitalar ou intervenção cirúrgica só podia significar a morte.
De três tuberculoses renais que no Campo tinham sido diagnosticadas, só uma se
curou. Mas porque entretanto a guerra chegou ao seu termo e o doente foi posto
em liberdade a tempo de ainda poder ser operado em Lisboa. A intervenção
cirúrgica era então a única possibilidade de cura para a tuberculose renal.
E se foi possível o tratamento de um caso de mal de Pott foi por se ter
improvisado um colete de gesso, feito de duas partes ajustáveis, fixadas com
correias.
Para se conseguir o gesso, quanta luta e sacrifício! Diziam-nos não o terem.
Mas sabíamos, por um camarada que trabalhava no armazém, haver por lá gesso
reservado para estuques em casa do director. Tudo isto originou que o Dr. Manuel
Baptista dos Reis fosse castigado com vinte dias de
frigideira, por se negar a dizer como obtivera a informação.
139
Nunca até aí veio ao Campo um médico especialista, nunca se deu a transferência
de qualquer doente para hospital ou centro clínico onde o seu caso pudesse ser
estudado, diagnosticado e tratado.
Ao chegar ao Campo, embora como preso, o Dr. Manuel Baptista dos Reis
apresentou-se a Esmeraldo Pais Prata para lhe oferecer o seu auxílio como
médico. Foi autorizado a prestar serviço e assistia às consultas. Apresentava ao
Tralheira os casos de doença e cautelosamente sugeria-lhe a
medicação a prescrever.
As biliosas tinham morto já vinte camaradas, e o Dr. Manuel Baptista dos Reis
sabia existir um medicamento novo que as poderia evitar.
Pouco antes do começo da guerra de 1939 lançava a Bayer no mercado mundial a
Atebrina, um novo antipalúdico, de que mantinha o exclusivo de fabrico. Os
ingleses e americanos, que os japoneses, ao ocuparem as ilhas da Malásia, tinham
impedido de chegar às suas fontes de quinino, viram-se forçados a fabricar a
Atebrina, para a fornecerem aos seus exércitos em campanha na Asia e em África,
zonas de paludismo. Ora, o amplo consumo que do produto se fazia permitiu provar
que não sobrevinham biliosas quando a malária era tratada com a Atebrina.
A febre biliosa hemoglobinúrica era uma gravíssima sequela do paludismo tratado
pelo quinino e matava mesmo nas melhores condições de assistência médica, o que
de modo algum correspondia à realidade do Campo. Com a Atebrina não se
verificavam biliosas.
Ninguém no Tarrafal estava a par deste facto.
Assim, o fascismo, ao prender Manuel Baptista dos Reis e ao enviá-lo para o
campo de concentração, fez involuntariamente o melhor que poderia fazer por nós,
antifascistas, ali encerrados.
140
E, embora no Campo o Dr. Manuel Baptista dos Reis tivesse uma função subalterna
- só Esmeraldo Pais Prata o reconhecia como médico -, embora sugerisse
tratamentos durante as consultas e fosse depois prestar serviço de enfermagem
juntamente com Virgílio de Sousa, embora tivesse enfrentado muitas dificuldades,
a sua campanha no sentido de se conseguir a Atebrina teve por fim êxito.
E certo que nunca este produto fez parte do formulário do Campo, mas chegou
através dos nossos familiares e depois que a começámos a tomar foram menos
frequentes os casos de biliosa.
Hoje, a biliosa é um mal do passado. A Atebrina está esquecida. Novos
medicamentos nascem, mais eficazes, com menos efeitos secundários. Foi
substituída pela Cloroquina e outros produtos.
Foi ainda em nome do Dr. Manuel Baptista dos Reis que decidimos apresentar à
direcção do Campo uma exposição acerca das condições sanitárias existentes.
Esmeraldo Pais Prata, apesar de se opor e até de nos ameaçar, viu-se forçado a
entregá-la ao capitão Filipe de Barros.
Nada conseguimos a não ser colocá-lo na impossibilidade de alegar ignorância.
Quanto ao Dr. Manuel Baptista dos Reis foi castigado com a frigideira e proibido
de prestar assistência na Mitra. Pouco tempo depois voltava a acompanhar o
Tralheira nas suas consultas.
Mas o tempo passava e nas frentes de batalha da Europa viviam-se acontecimentos
que não eram de molde a encorajar os fascistas. O Tralheira modificava-se.
Francisco Miguel recusara-se a cumprir uma ordem do director e fora castigado
com vinte dias de frigideira.
Negou-se alegando as más consequências que
teria para a sua saúde. As suas razões não foram atendidas e, cumprido o
castigo, saía, mas
141
a ordem era renovada. Novamente se recusava a cumpri-la e voltava à frigideira
por novo período de vinte dias. Assim tinham decorrido quase cem dias. A sua
vida estava em perigo.
Foi apresentada a questão a Esmeraldo Pais Prata. Que não. Que era assunto do
senhor director e que o senhor director por razões de prestígio não cederia.
Respondemos-lhe que, como médico, sabendo estar uma vida em perigo, era seu
dever mandar suspender o castigo e internar Francisco Miguel na enfermaria. Se o
não fizesse, as consequências motivadas pela sua recusa seriam da sua
responsabilidade.
E o Tralheira cedeu.
Na frente russa, os nazis começavam a bater em retirada, e Esmeraldo Pais Prata,
que afinal não tinha mijado o medo, receava por si. Bem se recordava que não
recusara carne de porco com triquinose destinada ao rancho, que dera como aptos
para trabalhos extremamente pesados homens depauperados pelas febres e por
muitos e muitos dias de frigideira, que não queria deixar-nos ferver a água que
sabia estar inquinada, que nos deixara morrer sem qualquer assistência durante o
período agudo, que não requisitara quinino, que não nos entregara os
medicamentos que nos podiam curar, que quando pedíamos soro fisiológico para
camaradas a morrer com biliosas nos dizia que o fôssemos buscar ao mar, por ser
igualmente um composto de água e sal, que nunca escondera o seu ódio por nós nem
a sua alegria ao passar certidões de óbito, pois nunca ali fora médico para
curar, mas médico para matar.
E certamente recordaria alguns que entre nós tinham morrido. Como Fernando
Alcobia.
Fernando Alcobia passara muitas vezes pela frigideira. Pela primeira vez em
Outubro de 1938. E a
142
sua saúde sofreu o primeiro abalo. Foi depois a brigada brava, de onde certa vez
o trouxeram em braços. Numa outra altura meteram-no na frigideira com um abcesso
no ouvido. Passou toda uma noite com dores agudas a pedir a vinda do médico. Não
veio o Tralheira. Queriam que trabalhasse e não o podia fazer e toda uma manhã
ficou sentado numa pedra gemendo com dores. De volta ao campo, levaram-no para a
frigideira e ali esteve vinte dias, sempre com um abcesso, sempre sem que
Esmeraldo Pais Prata o tratasse. Trabalho, frigideira, frigideira, trabalho, foi
o que Fernando Alcobia teve de sofrer até 15 de Dezembro, quando adoeceu com uma
biliosa. O estado de fraqueza em que se encontrava quebrou-lhe todas as
resistências à doença.
Esmeraldo Pais Prata veio enfim vê-lo. Estava na agonia. Acendeu uma lanterna e
os olhos de Fernando Alcobia não reagiram. A morte já não tardaria muito.
Fernando Alcobia tinha vinte e quatro anos e da morrer assassinado.
- Se estiver pior amanhä, mandem-me chamar.
- E que tratamento lhe devo fazer, senhor doutor? - perguntou Virgílio de Sousa,
que só depois de muito insistir conseguira que o Tralheira fosse ver o doente.
- Tratamento? Sim! Olhe, ponha-lhe umas compressas de água fria na testa.
Fernando Alcobia morreu pelas dez da manhã.
Morria muito jovem, devido à frigideira, ao trabalho da "brigada brava", às mãos
daqueles que o fizeram sofrer tudo isto e tudo lhe negaram.
Esmeraldo Pais Prata está em liberdade.
Foi preso em 1975, em São Joaninho, e aguardava julgamento numa pequena prisão
de Santa Comba Dão, à ordem do Tribunal de Coimbra, quando fascistas assaltaram
a prisão e exigiram
143
à GNR que o libertasse. E a GNR, ali comandada por um tenente tão fascista como
os assaltantes da cadeia, entregou o Tralheira.
Dizia-se muito bem de Esmeraldo Pais Prata, que dava consultas gratuitas aos
pobres, que se levantava de noite para ir ver os seus doentes, que lhes fornecia
os remédios...
Mas não vemos também como nos tribunais são louvados os agentes da PIDE, que
torturaram e mataram? Não vemos ser-lhes concedida a liberdade?
144
SEGUNDA FUGA FALHADA
A 17 de Novembro de 1937, Manuel dos Reis abandonou o Campo, sem ter completado
os dois anos de comissão de serviço. Era demitido, acusado de irregularidades de
administração. O capitão José Júlio da Silva substituiu-o.
Antes da partida do Manuel dos Reis tínhamos feito uma reunião para análise da
nossa situação prisional e das medidas de defesa a tomar. Levados os resultados
da discussão a todas as barracas, viu, a Comissão do Campo ser necessária uma
entrevista com o director. E foi já com José Júlio da Silva que, depois de muito
se insistir, conseguiu ser recebida.
As nossas reivindicações foram apresentadas com serenidade, mas firmemente. Se
não fossem aceites, então...
- Morrer por morrer, preferimos outra forma mais de acordo com o nosso direito
de presos e a dignidade de homens.
José Júlio da Silva não deixava de ser um carcereiro, mas não tinha por nós
aquele ódio que caracterizava Manuel dos Reis. Mostrava-se receptivo aos
problemas que lhe colocávamos e tentava resolvê-los. Se não lhe era possível,
explicava-nos
as razões porque não o podia fazer.
As nossas reivindicações foram parcialmente satisfeitas. A Farmácia acabou por
ser abastecida
145
com quinino injectável. Esmeraldo Pais Prata disfarçou um pouco mais o seu ódio
e passou a vir ao Campo com mais frequência. As dietas melhoraram, porém o leite
era tão fraco que o densímetro mergulhava até ao fundo da vasilha.
Foi levantada a proibição de escrever e receber cartas. As encomendas que se
amontoavam na secretaria foram-nos entregues e com elas os remédios que
familiares e amigos nos tinham enviado. E ainda muitos metros de tule para os
mosquiteiros.
Na alimentação igualmente beneficiámos. Aliás, ainda no tempo do Manuel dos Reis
e quando ele se ausentava, José Júlio da Silva procurava melhorar o rancho. E
tivemos certa vez um almoço que entre nós ficou conhecido pelo "quatrocentos".
Estávamos no Tarrafal havia já meses e nem uma só vez tínhamos comido bacalhau
cozido com batatas. Era caro, dizia-nos. Era uma refeição para quatrocentos
escudos. Coube a cada um de nós cem gramas de bacalhau, meio quilo de batatas e
vinte milímetros de azeite, que distribuímos com a ajuda de uma pequena medida
de lata, fabricada por nós.
O capitão José Júlio da Silva forneceu-nos esta refeição, mas nele sentíamos um
certo embaraço. Sabia que a sua "generosidade" iria ser severamente censurada
por Manuel dos Reis.
Propusemos-lhe que fôssemos nós a preparar o rancho, e concordou.
Nem todos estavam de acordo. Mas, se de qualquer modo forçoso era trabalhar, não
seria então melhor fazê-lo em nosso benefício, vigiando pela higiene da cozinha,
pela quantidade e qualidade dos géneros? Significava igualmente a água fervida
na devida altura. Seríamos nós a abater as reses, o que nos permitia verificar
se a carne estava em condições.
146
Além disso, para nós que continuávamos a sentir aquela fome instintiva de vida
a querer sobreviver, ter a cozinha à nossa guarda só podia ser uma vantagem.
Melhor podíamos cuidar da nossa alimentação numa altura em que tínhamos de nos
recompor, de criar forças para resistir.
A vontade de viver fazia-nos pensar muito em comida. A vida, mesmo no Campo,
voltava a ganhar sabor, a ser fonte de alegria. Recordávamos episódios passados,
vividos.
- Que fazias se estivesses em liberdade?
E, com a resolução de voltar à luta, igualmente nos ocorriam outros pensamentos,
ligados com a nossa vontade de viver. Imaginávamos por exemplo, um passeio a
Sintra, pela tarde, a regalar os olhos em todo aquele arvoredo, passear à sombra
de grandes árvores, colar a boca a uma bica saída da rocha e beber água muito
pura e fresca, ir depois a algum restaurante à beira da estrada, num sítio
bonito, e comer peixe frito com uma saladinha de alface...
Aqui levantavam-se sempre várias e saborosas sugestões, a saudade por petiscos
havia muito não saboreados.
Sentávamo-nos a conversar de tudo isto e um dos lugares preferidos era a cama do
camarada Oliver Bártolo, já conhecida pela "cama do Pirão", o nome de um dos
cães nossos amigos, e tão desengonçada com o peso de tantos camaradas que nela
se sentavam.
Não nos abandonava a esperança, nem conseguiam abater-nos.
Enquanto nos revezávamos na escalha do arroz, fazíamos "campeonatos de bilhar".
As bolas eram de madeira, feitas por João Dinis. Jogávamos nas mesas onde
comíamos e com tal entusiasmo que nos esquecíamos do arroz.
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Não, não nos abandonava a alegria. Foi ela que nos levou a fazer aquela célebre
pega de caras.
Éramos nós a abater o gado. Como magarefes tinham sido destacados o Amado dos
Santos, o Joaquim Ribeiro e o Josué Romão.
Os animais que entravam no Campo quase sempre eram mansos, mas, certa vez,
apareceu um de porte orgulhoso, a escavar a terra com a pata, a baixar os cornos
disposto a marrar. Entrou o portão, demos uns puxões à corda que o segurava e aí
veio ele, em corrida, para investir contra as silhuetas que se recortavam negras
na luz forte do Sol.
- Eh touro! - gritámos nós de longe, com passos pimpões de bons pegadores e
olhos postos à cautela em abrigo para onde nos safarmos.
O animal investia, mas o vulto que os cornos lhe buscavam fugia-lhe e logo outra
sombra lhe aparecia na frente, mais distante.
- Eh touro!
Acabou por se aborrecer o bicho e deixou de investir.
Ficou parado, bem
firme nas pernas, a gozar o sol e a sacudir as moscas com a cauda.
- Eh touro!
Nada! Não se mexia.
E foi então que um se lembrou:
- Ó Josué, tu que és do Ribatejo... Pega-o de caras. Nós cá fazemos o resto!
Mas o camarada não parecia sentir tão grande confiança e hesitava.
- Anda lá, Josué! - animávamos nós.
Estava hesitante, mas de repente decidiu-se, avançou, deu a corrida, esticou o
peito, bateu palmas e... o animal arrancou. Só teve tempo de abrir os braços e
de agarrar. Corremos à cernelha, ao rabo... e a pega estava feita.
Esta alegria não nos perdoavam os guardas e começavam a murmurar contra o
capitão José
148
Júlio da Silva, que nos deixava fazer quanto queríamos.
Mas não, o director era apenas um carcereiro que nos concedia o que lhe parecia
ser justo.
Reconhecia, por exemplo, que o transporte da água era trabalho pesado e tornavao mais suave. Com Manuel dos Reis muitas vezes nos deitávamos sem podermos lavar
os pés sujos de terra. Fazíamos várias caminhadas por dia, mas tínhamos de a
entregar na cozinha, mesmo quando dela já não havia necessidade. Ficávamos
apenas com uma ou duas latas por barraca, o que praticamente não dava para nada.
O capitão Jocé Júlio da Silva mandou fazer um carro e comprou um boi para o
puxar. E já não nos faltava a água.
Deixámos de trabalhar na pedreira. Fazíamos o despejo dos latöes das latrinas e
o trabalho na horta, ïamos muito cedo, antes do café. Voltávamos para comer,
íamos trabalhar novamente e pelas nove da manhä estávamos já no Campo. E isto
era muito mais agradável e evitava-nos aquele sol africano.
Assim nos
sobrava muito tempo para ler e estudar.
Porque os livros que nos tinham sido apreendidos em Agosto voltaram às nossas
mãos. Quase todos, que a leitura de autores como Zola, Górki, Dostoievski não
nos foi permitido.
Voltámos a poder fazer requisições de compras individuais. Eram entregues na
secretaria. Quando o director ou o subchefe Ferreira iam à Cidade da Praia
traziam o que pedíamos e nos era permitido, com a vantagem de ser mais barato
que na Vila.
Fora também um problema que o capitão José Júlio da Silva resolvera quase
inteiramente. Os comerciantes enviavam-nos sempre muitos artigos que não
tínhamos requisitado. Insistiam que os trouxessem para o Campo.
149
- Podem interessar aos presos.
- E se não interessarem? - perguntava o subchefe Ferreira.
- Se não interessarem, eles os devolverão.
E foi o próprio José Júlio da Silva quem confessou a um dos nossos camaradas:
- Os senhores têm todo o crédito na Praia, mas à Colónia não fiam cinco réis.
Pagávamos contra a entrega da mercadoria. Mas já não dispúnhamos do dinheiro que
as nossas famílias nos enviavam. José Júlio da Silva não anulou a manobra de
Manuel dos Reis que nos abria contas-correntes na cantina. Mandou imprimir
cédulas apenas para uso no Campo. Eram em papel branco
impressas a vermelho. Tinham os valores de meio, um, dois, cinco, ceis e vinte e
cinco tostões e de cinco, dez, vinte e cinquenta escudos. No verso eram
carimbados: "Polícia de Vigilância e de Defesa do Estado-Colónia Penal de Cabo
Verde"
e, numa outra edição, "Colónia Penal - Cabo Verde".
Com estas cédulas pretendiam facilitar as compras. O preço dos produtos pedidos
era pago por nós com as cédulas que nos entregavam dentro do mesmo valor das
importâncias que nos chegavam da Metrópole; depois, a direcção do Campo
efectuava o pagamento aos fornecedores com o nosso dinheiro em depósito.
Havia porém uma vantagem exclusivamente do interesse dos carcereiros. Aquelas
cédulas fora do Campo nada valiam, não seriam aceites por ninguém, o que
evidentemente era um obstáculo para qualquer fuga. E uma outra, essa
fraudulenta, pois muitos anos mais tarde, quando fomos libertados e tiveram de
nos devolver o dinheiro depositado, não se encontrou a moeda portuguesa, mas o
dinheiro emitido pelo Banco Nacional Ultramarino para Cabo Verde.
150
As condiçöes de vida do Campo tinham realmente melhorado e isto não agradou à
maioria dos guardas e a muitos oficiais da "Companhia Indígena". Censuravam a
direcção de José Júlio da Silva.
- Não presta para lidar com presos políticos. Deixa fazer o que eles querem. E
não é gente que se poupe! Ou eles ou nós!
Era preciso ter mão dura, fazer-nos trabalhar ao sol, carregar-nos com as pedras
da pedreira...
Mas o capitão José Júlio da Silva não manifestava por nós o mesmo ódio.
Oficial do quadro auxiliar da Administração Militar, podia ter roubado e não o
fez. É bem natural que a hostilidade provocada por ele entre guardas e oficiais
tivesse origem na inveja daqueles que, se ocupassem o seu lugar, não deixariam
de meter as mãos no saco azul.
Todas estas críticas e mau ambiente o azedavam. Nem sempre nos atendia bem. Com
as mãos sobre o ventre gordo acolhia-nos com o humor de momento, muitas vezes
influenciado pelos oficiais que o queriam ver usar de maior dureza connosco.
Recebia-nos com impaciência quando lhe íamos colocar algum problema de que
esperávamos solução. Se reconhecia o pedido como justo, não via como o pudesse
recusar. Mas, acedendo, bem sabia o que guardas e oficiais iriam dizer.
- É um banana!
As contas dos produtos que comprávamos eram feitas com um escrúpulo que
pretendia afastar qualquer suspeita sobre a sua honestidade. Neste aspecto era
particularmente susceptível. E o mesmo acontecia com o subchefe Ferreira.
O descontentamento dos oficiais deve ter dado origem a relatórios e foi
certamente o que explicou nova visita de Antão Nogueira.
151
Antão Nogueira, que de quando em quando ia até África em turismo, mas com ajudas
de custo, chegou a 12 de Março. A 16 esteve no Campo e tudo inspeccionou.
As nossas roupas, calçado e enxergas estavam extremamente estragadas. Mais
parecíamos pobres andrajosos. Fáltava roupa. Muita tivera de ser queimada.
Estava podre ou manchada com vómitos de bílis.
Mas Antão Nogueira certamente não vinha averiguar se as condições do Campo eram
razoáveis. Trazia consigo o capitão João da Silva, e este, como iríamos
verificar, só estava interessado em nos tornar a vida bem mais dura e difícil.
Era mais natural que Antão Nogueira viesse investigar as razões por que não se
verificavam mais óbitos.
Tinham morrido havia pouco dois camaradas: Francisco Esteves e Arnaldo Simões
Januário. Embora a farmácia estivesse já abastecida com quinino injectável para
tratamento da malária, o Tarrafal continuava a fazer mortes.
De 17 de Novembro de 1937 a 20 de Outubro de 1938, períado em que o capitão José
Júlio da Silva foi director, foram atacadas por biliosas Hermínio Martins,
Boaventura Gonçalves, Carlos Sovela, Alfredo Caldeira, Américo de Sousa e
outros, e alguns mais de uma vez, como foi o caso de Herminio
Martins.
Mas, apesar de tudo, a vida no Campo era melhor que no tempo de Manuel dos Reis.
Pelo Natal, fomos autorizados a compras extraordinárias. E cantámos. E houve
alegria. E, ao lembrarmo-nos dos nossos, confortava-nos saber que àquela mesma
hora todos nós estaríamos presentes nas suas recordações, e na consoada muitos
olhos amigos se voltariam para a cadeira que à mesa habitualmente ocupávamos.
Haveria brindes para que a saúde
152
não nos abandonasse, para que a liberdade viesse bem cedo.
Estávamos confiantes. Apesar de Hitler estar no Poder, de Mussolini ter
conquistado a Etiópia e ameaçar as democracias com os seus quatro milhões de
baionetas, de o socialista Léon Blum trair em França os republicanos espanhóis.
Sabíamos que viriam maus tempos para todos os democratas, mas estávamos
confiantes. A grande fortaleza do socialismo, a União Soviética, continuava
firme e vigilante. Nela confiávamos.
E também brindámos, nesse Natal de 1937, pelas forças da paz, da justiça entre
os homens.
Estávamos no cativeiro, mas não havia cárcere nem carcereiro capaz de nos
arrancar a liberdade de brindar pelo triunfo da Democracia.
Celebrámos o primeiro de Maio, o 7 de Novembro.
No Campo, os carcereiros festejavam o 28 de Maio. Na secretaria, de onde nos
chegava o bater das palmas aos discursos que se faziam, suspenderam os retratos
de Carmona e Salazar. Com a presença dos guardas e de Almeida Júnior, que pela
mão dos carcereiros entrara no bom caminho e se tornara chefe do armazém de
géneros. Um outro preso virado para o fascismo era o Canelas. Viria a ser o
chefe da cozinha para ali pôr e dispor, dar e tirar dietas segundo as suas
simpatias e embirrações. Era um bandalho, um intriguista, um denunciante. Chegou
a coar a sopa dos que estavam na frigideira, sem que os carcereiros lho
pedissem, apenas por ódio; para tornar ainda mais fraca uma alimentação que já
era pobre. Tomás Rato e Fernando Vicente, por lhe terem chamado canalha, foram
castigados com oito dias de frigideira. E denunciou muitos outros que igualmente
sofreram castigos.
153
Houve infelizmente presos sabujos com os guardas. Pretendiam demonstrar que nada
tinham a ver com os comunistas e os anarco-sindicalistas. Logo nos primeiros
meses, ficaram alguns fora da cerca de arame farpado. Ali estavam, numa barraca,
naquilo a que chamámos a "aldeia dos pinguins", e sempre observávamos com
repugnância as suas curvaturas de espinha para os guardas que sorriam
envaidecidos. Tudo faziam para obter a liberdade, nenhuma vileza lhes parecia
indigna.
Colaboravam com os carcereiros, denunciavam. E por vezes conseguiam. Vieira
Marques, assim se chamava um deles, regressou ao Continente.
A vida no Campo seguia com José Júlio da Silva sem grandes sobressaltos.
Passámos para as casernas em pedra e cal. Foi depois inaugurada a Mitra,
abriram-se as oficinas, e camaradas profissionais de serralharia, de
carpintaria, alfaiataria, sapataria nelas começaram a trabalhar.
Junto da vala, a cerca de arame farpado foi reforçada com grossos tubos de
ferro, solidamente fixados a blocos de cimento, e o campo adquiriu então a
configuração definitiva que já descrevemos. Abriam-se os regos onde seriam
colocados os cabos eléctricos. Fora construía-se a central.
Passou a haver uma formatura pelas oito da manhä para se efectuar a contagem, o
que veio criar embaraços a certos guardas mais boçais. As contas por vezes não
lhes batiam certas.
- Então, isso acaba ou não? - perguntava ao guarda Buque o subchefe Ferreira, já
impaciente.
- São setenta e dois pares e meio!
- Mas quantos são ao todo?
- São setenta e dois pares e meio! - teimava o guarda.
- Mas quais pares! Que raio de maneira de contar! Conte lá como deve ser e digame o número certo.
154
Vermelho com aquela vergonha por que estava a passar à nossa frente, o Buque
tanto contava que quase suava com o esforço.
- Então?
- São cento e...
- São cento e quarenta e cinco homens! Uma coisa tão fácil! Diabo de azelha você
me saiu!
Eram assim os guardas.
De quando em quando o clima do Tarrafal também os matava.
O Manuel Henriques, a quem chamávamos o Manuel Padeiro, que chegou a ser
detestado pelos próprios colegas, pois deles se queixava a Manuel dos Reis, veio
a morrer a bordo do Guiné, quando regressava à Metrópole. A tripulação do navio,
que
parecia estar tão informada acerca daquele passageiro, não se preocupou muito
com tratamentos, e quando morreu e o lançaram pela borda levava lastro duplo às
pernas.
Eram homens ignorantes e maus que nos odiavam. Todos os pretextos serviam para
provocações e queixas que nos levassem à frigideira. E José Júlio da Silva não
era para nós tão feroz quanto desejariam.
- É um banana!
E entendiam dever contrariar-nos, como o José Maria que, estúpido e vingativo,
nos perseguia.
- Ouça lá, porque não vai por ali com o carro?
- E para que hei-de dar uma volta tão grande? - era a resposta.
- Comigo, enganam-se. Comigo, vocês não fazem o que querem.
Era a alusão indirecta ao director, de quem menos ainda suportaram a atitude
tolerante quando de uma segunda tentativa de fuga.
Foi a 2 de Agosto, precisamente um ano depois da frustrada evasão colectiva.
155
Nessa noite, quando nos deitámos, houve gracejos.
- Lembram-se? Faz hoje um ano...
O tempo fizera com que muitas coisas daquela grande cavalgada já nos fizessem
rir, como aquele camarada que enfiara uma terrina na cabeça como capacete que o
defendesse das balas ou um outro que se atirara a eito para o bidão da água.
Dormíamos, e eis que novamente na noite estrondearam tiros de espingarda e mais
uma vez se ouviu uma metralhadora.
Acordámos em sobressalto.
- Deve ser um pesadelo! - ouvimos nós de um camarada.
Mas não. Os gritos dos guardas não tardaram.
- Todos cá para fora! Formatura!
Formámos. José Júlio da Silva, com a sua barriga e um dedo metido no casaco
entre dois botões, não empunhava pistola e falava serenamente:
- Não vou exercer quaisquer represálias, pois penso que todo o preso tem o
direito de tentar a fuga. Mas, como director desta colónia, certamente me
reconhecem o dever de a evitar. E, como não pretendo o castigo de inocentes,
espero que os comprometidos na tentativa se acusem, arcando com a
responsabilidade dos seus actos.
As sentinelas que tinham bradado às armas disseram ter visto três homens.
Apresentaram-se quatro: Manuel Alpedrinha, João Borda, Oliver Bártolo e Gilberto
Oliveira.
José Júlio da Silva afirmou-se satisfeito com a atitude tomada e mandou
dispersar.
E só no dia seguinte se procedeu a um breve interrogatório na secretaria, mas
sem insultos nem espancamentos.
Foram castigados com a frigideira mas por poucos dias. Não estiveram a pão e
água e foi-lhes permitido levar os colchões.
156
Mas as barracas que antes ficavam abertas passaram a ser fechadas. Ao toque de
recolher, os guardas percorriam as casernas, faziam a contagem e fechavam depois
as portas a cadeado. Dentro, pendurado da porta, ficava um balde fabricado
na serralharia, para servir de urinol.
E, para justificar estas e outras medidas, o director mandou afixar no
refeitório:
Tendo-se dado, na noite de 2 para 3 de Agosto, uma tentativa de fuga, foi grato
à Direcção verificar a maneira leal como se apresentaram, como culpados, quatro
reclusos. Contudo não é crivel que a evasão dos presos que se dizem culpados não
fosse conhecida ou, ainda mais, preparada pela
maioria dos presos. A fuga de quatro individuos isolados não tem nenhuma
possibilidade de êxito, em virtude de estarmos
numa ilha relativamente pequena e com escassos meios de transporte. Tudo leva a
crer que era uma fuga preparada em grande escala, com todas as consequências de
uma fuga de muitos individuos que se vêem livres e podem dar vazão a todos os
sentimentos de represália.
É convicção da Direcção que alguns reclusos desconheciam completamente o que se
estava a dar. Contudo, é impossivel destrinçar culpados e inocentes.
Pelo que fica dito, não pode a Direcção deixar de punir o Campo e, como não
dispõe de outro meio senão cercear regalias
157
já concedidas, determina que, até se esclarecer completamente o caso, se observe
o seguinte acerca da correspondência: os presos só podem escrever uma carta de
meia folha ou um postal em cada viagem de carreira normal para esta ilha. Logo
que se
esclareça o caso, passar-se-á ao regime anterior.
Colónia Penal, 8 de Agosto de 1938.
O director
José Júlio da Silva
Capitão
Este castigo veio desmentir a afirmação de que não exercia represálias.
José Júlio da Silva não se adaptou ao cargo. Terminada a sua comissão de serviço
não a quis renovar.
- Não sirvo para isto.;
Falava-se já de João da Silva, e o subchefe Ferreira dizia-nos com vingativa
satisfação:
- Com esse que aí vem não fazem vocês o que querem. Agora é que as vão amargar.
Sim, tempos bem difíceis iam chegar.
158
O FARAÓ
Por Outubro de 1938 tomava posse o capitão João da Silva. Com ele vinham Duarte
Osório Fernandes, Henrique de Sá e Seixas e os guardas Epifânio Mateus, Travessa
e Carlos Silva.
João da Silva era o homem da repressão organizada. Tinha uma teoria para nos
regenerar, simples e feroz. Ou renegávamos e nos voltávamos para o Estado Novo
ou faria do Campo um inferno.
O capitão Osório, como subdirector, ameaçava-nos:
- Um dia entro no Campo e, com uma metralhadora, varro-os à bala!
O Seixas, como chefe dos guardas, repetia o que já ouvíramos a Manuel dos
Arames:
- Quem vem para o Tarrafal vem para morrer! João da Silva trazia concepções
tendentes a transformar o Campo à imagem dos campos de concentração nazis, que
visitara e observara. No
entanto, dizia-nos vir na disposição de melhorar as nossas condições de vida. Os
trabalhos ao sol terminariam, a alimentação seria excelente, escutaria todas as
nossas reclamações.
- De futuro, a Direcção e os presos poderão vir
a ser uma grande e unida família. Não quero que lá fora se diga que os
maltratamos. Mas não perdoarei faltas de disciplina. Os regulamentos são para se
cumprirem.
159
E os regulamentos determinaram que o trabalho passasse a começar às 6 e 15 da
manhã, terminasse pelo sol-posto e houvesse apenas um pequeno intervalo para o
almoço.
A água, como sempre acontecia nos períodos mais duros, faltou-nos. O carro que o
capitão José Júlio da Silva mandara fazer foi posto de parte. O boi tinha uma
pequena ferida no pescoço e João da Silva entendia que devia, ser tratado e não
podia fazer o transporte da água. Passámos a ser nós, mesmo doentes, a trazê-la
para o Campo.
Éramos vinte, e de manhä à noite carregávamos a água do Chambão. Não parávamos.
De regresso ao Campo não a tínhamos nem para lavar as mãos.
José Neves Amado queixou-se e logo foi castigado com uma semana de frigideira.
A alimentação piorou. O Canelas foi nomeado chefe da cozinha e acabaram-se os
nossos pequenos recreios no refeitório enquanto escolhíamos o arroz e a feijoca.
As encomendas dos nossos familiares, que tanto contribuíam para o reforço do
rancho foram reduzidas. Só podíamos receber três. Para além deste número eram
apreendidas.
João da Silva mandava chamar-nos.
- O senhor é rico?
- Não, senhor director, sou pobre.
- Então como explica todas estas encomendas que lhe enviaram?
Entregava três. As restantes eram apreendidas. Em sua convicção só podiam vir do
Socorro Vermelho.
E tudo era aberto. Papel, lápis, tinta, quanto servisse para escrever ficava
retido.
Escrevíamos as nossas cartas com lápis de tinta que nos obrigavam a devolver.
Não o fazer era a frigideira. Os guardas vigiavam e as cartas eram160
lhes entregues abertas para censura. Seguiriam para os seus destinatários se não
contivessem matéria subversiva.
Por "matéria subversiva" entendia-se quanto dissesse respeito à realidade que se
vivia no Campo.
Os regulamentos ordenavam ainda que devíamos trazer o grosso casaco de caqui do
uniforme e cortar o cabelo à escovinha. O uso do chapéu de palha era
obrigatório.
- Estas ordens são para se cumprirem.
Quem não as acatasse, esperava-o a frigideira.
- As ordens são sagradas! - gritava-nos o Faraó.
Assim lhe chamávamos por ser o senhor absoluto daquele pequeno império.
Criaram-se oficinas rudimentares de serralharia e carpintaria, de sapataria e de
alfaiataria. As percentagens por depreciação de ferramenta e os orçamentos
dependiam inteiramente da Direcção do Campo.
Os clientes eram raros, pouco compensadores; e a maior parte do trabalho
realizado destinava-se ao Campo e ao João da Silva. Foi para a sua residência
que fizemos uma mobilia, numa daquelas belas madeiras que existem na Guiné. Nada
recebemos, mas o director contabilizou-a como tendo sido paga.
Os trabalhos que fazíamos para fora desmentiam as calúnias dos carcereiros:
- São uns vadios, uns falhados sem eira nem beira. Não sabem fazer nada. Não
prestam para nada. Ora o nosso trabalho demonstrava o contrário, que éramos bons
operários e tanto esta opinião acabou por se generalizar que nos procuravam
para; darmos solução a problemas que os meios da ilha;
não resolviam.
161
O trabalho nas oficinas só abrangia um número diminuto de presos e tinha a
vantagem, para os que nela trabalhavam, de estarem abrigados do sol. Dos guardas
não conseguíamos fugir. E também o Seixas por lá entrava em fúria:
- Eu arranco-lhes o coração!
E gritava na sua voz cava cheia de rancores:
- Rebento-os à porrada se os vejo a fazer cera ou a discutir política!
Na nossa maior parte trabalhávamos fora do Campo. Muitas vezes trabalho inútil.
E contudo quanto não poderíamos ter feito pela ilha e pela sua gente! Podíamos
ter construído bebedouros para o gado que chegava a morrer de sede. Podíamos ter
erguido bairros para abrigar tantos cabo-verdianos que viviam em palhotas. Havia
entre nós bons pedreiros, como Tomás Aquino, Silvério e Mateus e outros.
Depois da alvorada e do café havia a formatura e a distribuição pelas diferentes
brigadas. As portas das casernas eram fechadas. Só a da enfermaria ficava
aberta.
Eram muitos os trabalhos. O que fazíamos na pedreira era um dos mais duros. Uns
arrancavam a pedra com guilhos e cunhas de ferro que iam entrando a golpes de
marreta - e uma delas pesava treze quilos - outros transportavam-nas para
vagonas que empurravam. Na capinagem, tínhamos de andar curvados a arrancar o
capim com a enxada. E era preciso limpar grandes extensões de terreno cortando a
erva rente ao solo.
Ficavam-nos os rins a doer durante muitos dias. Poucos
tinham já trabalhado com enxada. Havia a terraplenagem e a construção de
estradas em volta do Campo. Por vezes mandavam-nos destruir o que antes tínhamos
feito ou removíamos terra e pedras daqui para o levarmos para outro lado nos
carros de mão. Levantámos muros, nivelámos o Campo.
162
Um dos trabalhos mais duros foi a garagem e a estrada de acesso à casa do Faraó.
Foram abertas na rocha.
Certos trabalhos eram manuais e particularmente pesados. Tínhamos de desentulhar
a vala que rodeava o Campo. As grandes chuvadas enchiam-na das terras e pedras
que arrastavam consigo. O entulho era transportado em latas para longe do
Campo, até que novas chuvadas arrastassem do talude terra para a vala.
Um outro trabalho de todos os anos era a capinagem dentro da cerca. Enredados
entre o arame, de enxada na mão, muitas vezes nos feríamos nas farpas. Era
impossível evitá-lo e o sangue corria-nos dos braços e das pernas. Mas bem mais
grave
era não haver no Campo soro antitetânico quando um soldado angolano que se
ferira no arame farpado já ali morrera de tétano.
Eram muitas as brigadas e todas elas tinham tido um chefe nomeado pela direcção.
Era uma tentativa para nos dividirem, pois os camaradas nomeados, quase sempre
os politicamente mais responsáveis, eram dispensados de trabalhar. Estavam ali
para dirigir. Foi habilidade inútil. Nunca nos prestámos a tais manobras.
João da Silva escolhia precisamente para os trabalhos mais pesados os camaradas
mais combativos e conscientes. Acabou con o sistema em que nos cabia indicar
quem iria participar nas brigadas. Não lhe convinha. Passaram a ser os guardas a
escolher para os trabalhos mais duros aqueles que
tinham a intenção de aniquilar.
Contudo, havia trabalhos que não nos desagradavam. Plantámos árvores. Papaieiras
e acácias. Mas tratava-se apenas de propaganda fascista. João da Silva
preparava-se para receber as autoridades máximas de Cabo Verde, que, num
domingo, visitaram o Campo.
163
Mas, depois da visita do governador da, colónia, João Silva não se preocupou
mais com as árvores. As papaieiras morreram antes de dar fruto e se as acácias
rubras vingaram foi porque nós não as abandonámos.
Um outro trabalho útil foi o belo troço de estrada que abrimos. Era o único em
todo o arquipélago, onde não havia por ali mais que caminhos de pedras queimados
pelo sol, descarnadas de terra pela nortada.
Também construímos caminho para a água. Colocámos as chulipas e os carris por
onde rolaria depois o carro que o Pinto puxaria.
Mas todo o trabalho visava o nosso enfraquecimento, quebrar a resistência à
malária. E a esperança dos carcereiros era de que ela nos fosse, matando um a
um.
E, como o trabalho parecia não chegar, não tardaram os castigos.
O Seixas era bem claro:
- Se estão aqui é para morrer e ou trabalham ou vão para a frigideira, onde
morrem mais depressa.
Para castigos havia sempre motivos. Era razão entrar numa barraca que não fosse
a nossa sem pedir autorização ao guarda de serviço, ou ir à cozinha para trazer
agua quente, ou quando nos demorávamos na realização de certos trabalhos e
procurávamos justificar-nos, ou quando os guardas nos acusavam de respostas
nenos correctas. Se nos encostávamos à parede da barraca era motivo de castigo.
Tirávamos a cal com o roçar da
roupa.
Custódio Ferreira e Artur Trindade, porque não viram um oficial da Companhia e
não tiraram os chapéus: dez dias de frigideira.
164
Na formatura, o Seixas lia as ordens de serviço:
- Sua Excelência, o Senhor Director, determina e manda publicar que sejam
punidos com dez dias de degredo, com ração reduzida em dias alternados os
reclusos Custódio Ferreira e Artur Trindade, por não terem cumprimentado um
oficial da "Companhia Indígena".
O castigo era lido na presença do preso punido, que devia sair da formatura.
Depois de saber o número dos dias na frigideira e as suas condições, era
acompanhado por um guarda. porta tiravam-lhe o chapéu, o cinto e as botas e
depois de
revistado era metido na frigideira.
E hoje um, amanhä dois. sempre houve gente castigada.
Durante a comissão de
serviço do Faraó nunca a frigideira esteve vazia.
Tomás Ferreira lato, por não ter cumprimentado o guarda Velhinho, foi espancado
pelo Seixas e pelo Teixeira, ficou uma noite de pé entre os arames da cerca e
dali passou à frigideira, onde esteve quinze dias.
Pedro Soares foi castigado com vinte dias. Adolfo Pais, por ter perdido uma peça
de roupa, que aliás teve de pagar. Bento Gonçalves, por se ter negado a dar
informações sobre um incidente ocorrido na sua barraca. Chamado ao João da
Silva,
respondeu-lhe:
- O facto de ter sido nomeado pela Direcção como chefe de caserna não quer dizer
que tenha de me tornar carcereiro ou bufo dos meus companheiros.
A perseguição dos guardas intensificava-se. Entravam pelas barracas e, se três
camaradas conversavam, queriam saber o que diziam, mandavam-nos dispersar,
insultavam-nos. Forçavam os doentes a trabalhar, iam queixar-se de que não os
cumprimentávamos.
165
Alguns tinham andado em Espanha como viriatos - mercenários portugueses que
combateram ao lado de Franco -, outros tinham sido legionários ou da Brigada
Naval, ou marginais ou vadios sem, profissão certa.
Tinham-nos ódio. Rancorosos, pareciam ter sido treinados especialmente para
aquela imunda tarefa. Quando nos falavam faziam-no com gestos e palavras
provocadoras. E era preciso da nossa parte um grande esforço para aguentarmos as
suas
provocações. Nem sempre o conseguíamos. Foi o que aconteceu com Faustino de
Campos.
Joaquim Faustino de Campos era conhecido pelo Faustino das Fragatas. Homem
robusto, tinha uma força espantosa.
Naquele dia foi o Seixas quem entregou a correspondência, o que habitualmente
era feito pelos guardas. Faustino de Campos sabia, como todos nós, que as nossas
cartas estavam a ser queimadas e as que nos chegavam às mãos vinham tão
mutiladas que nada entendiamos do que os nossos familiares nos escreviam.
Vieram avisar-nos para a formatura junto do portão e vimos aparecer o Seixas
apenas com cinco cartas. Era impossível que para cerca de duzentos presos apenas
fosse aquele o correio.
O Seixas aproximou-se e com vagares e ares divertidos foi dizendo:
- Tiveram sorte. Chegaram estas cinco.
E para o camarada Faustino, que havia muito andava provocando:
- Tu não merecias isto...
Mas, mal lhe tocou com a carta no queixo logo foi esbofeteado e com tamanha gana
que cambaleou.
Como não trazia arma, pois não era permitido andar-se armado dentro do Campo não fôsse-mos nós arrancar-lhes as pistolas -, correu para
166
o guarda do portão. Estava de serviço o Cardoso que, justiça lhe seja feita; lha
recusou e lhe virou as costas.
Joaquim Faustino foi levado à coronhada para a frigideira e ali foi espancado
por seis guardas.
Resistiu-lhes enquanto pôde até ficar caído no cimento.
Nunca mais o Seixas o provocou.
- Aquele homem estava doido - iria dizer depois.- Tenho pena dele. Cheio de
filhos! Quando as cartas me passam pelas mãos palavra que tenho dó dele!
Eram constantes as provocações do Seixas.
Num 28 de Maio, procedeu-se à cerimónia do, içar da bandeira. Tivemos de
assistir em formatura, em sentido. Não era a bandeira que nos humilhava, mas a
data. Então, da entrada do Campo, o Seixas lançou foguetes, mas inclinados,
rasteiros ao chão. Vieram rebentar por cima de nós e junto dos pés, para
divertimento dos guardas.
Henrique Seixas viera do Porto, onde à noite entrava pelas salas para provocar
os presos:
- Seus cabrões, destapem lá as cabeças. Estão a ouvir, seus cobardes miseráveis!
Dizia-se ter assassinado presos entre 1936 e 1938. Um dos assassinados teria
sido o major Areosa Feio.
Fora mandado para o Tarrafal, castigado, assim se dizia, mas na verdade apenas
por se ter distinguido pela sua ferocidade, considerada um pouco exagerada em
Portugal, mas de modo nenhum no Tarrafal; onde visava o nosso extermínio.
E assumia realmente um ar assustador - e ridículo também - quando punha o seu
crachá da Polícia e se preparava para ir buscar presos que tinham chegado à
Cidade da Praia. Muito alto e forte, com umas patilhas que quase lhe chegavam à
boca, de botas altas nos grandes pés - e como
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as mãos eram também enormes chamámos-lhe o Patolas -, de capacete colonial
amarelo, duas pistolas no cinto, cassetete e um molho de algemas, entrava no
barco e gritava:
- Onde estão os presos?
Entre os passageiros, as mulheres sentiam-se
assustadas e lastimavam-nos:
- Pobres homens, o que eles vão sofrer!
O Seixas era o melhor argumento do Faraó nas suas pretensões a "regenerar-nos".
E conseguiu alguns resultados que o animavam.
Antonino Francisco, depois de sair da frigideira, pediu para lhe falar.
- A partir de hoje, abraço a causa nacionalista e considero Vossa Excelência
como meu chefe espiritual. Estou arrependido do que fiz e pensei e aqui me tem
para ser útil ao Estado Novo no que puder.
Era a imundície que tinha para dizer e, a partir daí, para obter a liberdade
perdeu toda a dignidade. Tornou-se denunciante, e muitos foram os camaradas
castigados pelas denúncias que fez a João da Silva.
O tenente Piçarra seguiu este mesmo caminho. Denunciou a organização republicana
de que fazia parte dentro do Campo. Mas, quando João da Silva já não lhe
encontrou utilidade, abandonou-o. Piçarra quis então fazer a greve da fome, mas
não a levou a termo. Teve medo de morrer e maior foi o peso do desprezo dos
carcereiros.
Albino Coelho também denunciou a troco de promessas de liberdade.
Isidro Felizberto Canelas, que já antas do Faraó prestara bons serviços,
ascendeu à chefia desse grupo de novos "nacionalistas" de que faziam parte
Custódio Ferreira, Joaquim Luís Machado, Manuel Pereira dos Santos, Joaquim
Pais, além de José Borges Seloiro e de José Maria de Almeida Júnior, que
especialmente se evidenciaram.
168
Borges Seleiro começou por discursar aos berros, citando nomes. Os carcereiros
escutavam-no e ele sabia-o. Muitos antifascistas foram assim presos.
Almeida Júnior era o decano dos rachados. Empregado no armazém de géneros, ali
fazia central de informações que lhe chegavam de outros bufos, que depois
canalizava, com algumas achegas suas, até ao João da Silva.
Era ele quem nos fornecia os géneros. Mas nunca os entregava nas quantidades
regulamentares exactas. Roubava sempre, e o que lhe acrescia figurava como pago
nos livros de contas do Campo. Os bois comprados entre cem e duzentos escudos
eram contabilizados a quinhentos e seiscentos.
Estes furtos somavam mensalmente uns milhares de escudos, que se juntavam a
muitos outros dos roubos de que João da Silva se encarregava.
Estava fixada como média diária por preso, para alimentação e remédios, a
importância de vinte escudos. Nem três se gastavam. Mas nas contas João da
Silva, evitando cair nos exageros do Manuel dos Reis, verbava dezoito. Como
poderiam acusá-lo de ladrão se poupava diariamente dois escudos por preso?
Almeida Júnior, recompensado com o regresso à Metrópole, foi substituído por
José Maria Alpoim. Ambos participavam nestes "ganhos". Não muito João da Silva
apenas lhes consentia os pequenos roubos, para obter a sua colaboração nos
grandes.
Deixava-os vender a um escudo e vinte o litro de leite que compravam a oito
tostões. E tinham ainda os trezentos escudos mensais com que o Faraó lhes
remunerava os serviços.
Havia no entanto outros lucros para João da Silva, ou antes, despesas a que se
poupava.
Durante os seus dois anos no Tarrafal nada gastou com a alimentação. Os géneros
eram-lhe fornecidos...
169
pelo Alpoim, para quem isto lhe parecia tão natural que quando Olegário Antunes
veio substituir o capitão Osório, também graciosamente fornecido pelo armazém de
víveres, não queria de modo algum debitar-lhe as contas da mercearia. E dizia em
sorrisos de lacaio rasteiro e voz com entoações de subentendidas cumplicidades:
- É costume, senhor director.
- Será, mas eu não sou desses. Está a entender? - gritou-lhe enjoado o Olegário
Antunes.
João da Silva, como administrador, foi homem de grande imaginação e muitos
recursos.
O camponês cabo-verdiano, além da palhota miserável em que vive, pode ser dono o mais remediado - de um porco, de uma vaca ou de um boi, que pastavam
livremente pela planície. João da Silva, depois de inteirado destas realidades
socioeconómicas, verificou que muito o poderiam beneficiar. Junto à praia ficava
a horta do Campo. E, como os animais pastavam em liberdade e a horta não tinha
cancela nem sebe, entravam os bois, as vacas e os porcos.
João da Silva considerava ter havido violação da propriedade privada e o gado
ficava cativo e só era devolvido mediante resgate. Fixava vinte escudos por
cabeça.
Mas muitas vezes onde tinha aquela gente tão pobre da ilha os vinte escudos com
que resgatar o seu gado? Dois dias depois, os animais eram abatidos. Iam para o
rancho e, como era evidente, figuravam no livro de contas, como reses compradas
a quinhentos e seiscentos escudos.
Tinha João da Silva a sua vivenda sobranceira ao Campo, na encosta de um monte.
Era uma daquelas barracas de madeira vindas da Alemanha, dividida em saletas,
quartos de cama, casa de banho, cozinha, e toda ela pintada a esmalte e muito
bem mobilada com móveis de boa madeira, por
170
nós feitos na marcenaria do Campo. Havia uma varanda de onde o Faraó contemplava
uma bela paisagem. Em baixo, via a estrada de acesso, aberta por nós e uma
rotunda. Álvaro Duque, que
ele tratava por engenheiro, fora o encarregado dos traçados.
Mas João da Silva não estava inteiramente satisfeito.
- Ó engenheiro - disse ele com a sua voz pausada - temos de enfeitar aquela
rotunda com qualquer coisa.
Álvaro Duque não estava a ter ideias. Foi quando João da Silva teve uma daquelas
frases que tão bem demonstravam quantera homem inculto.
- Olhe, ponha ali um cilindro quadrado. Como não há-de o fascismo ter tal gente
a seu lado? Todos estes candidatos a ladröes, não os arrombadores de portas ou
cofres, mas de cofres e portas já abertas de que lhes confiam a guarda!
Tornavam-se então os grandes defensores do salazarismo, não pelo fascismo em si,
mas pelas possibilidades de roubo, pela impunidade que ele lhes oferecia. E como
odeiam quem queira extirpar os podres de onde comem!
João da Silva queria regenerar-nos. Ele compreendia perfeitamente os Almeida
Júnior, os Alpoim, os Canelas. Estava convicto de que nós, antifascistas; não
poderíaos ter tão grande força de carácter que preferíssemos suportar
espancamentos, frigideira, trabalhos forçados a renegar a nossa causa de
revolucionários.
Logo, desencorajando-nos, esmagando-nos com todo o peso da brutalidade, não
poderíamos deixar de ceder, de enfileirar com ele, a troco da liberdade, do
repúdio, da traição, para nos libertarmos do inferno em que transformou o Campo.
171
E contudo, apesar dos espancamentos, da frigideira, de trabalhos forçados, via,
que nos mantínhamos firmes, convictos da vitória; sempre corajosos, sempre mais
dispostos a aceitar a morte do que a trair os ideais da nossa luta: João da
Silva não compreendia homens como Alfredo Caldeira.
Este camarada, que deixou uma grande vaga no Comité Central do Partido Comunista
Português, morreu a 1 de Dezembro de 1938, depois de doze dias de agonia em que
sempre conservou a sua luçidez e a absoluta certeza de que ia morrer.
Adoecera com uma segunda biliose e deixou de urinar. Era a morte para o grande
revolucionário que dedicara toda a sua vida para que os Portugueses vivessem
numa sociedade justa e livre.
João da Silva vinha vê-lo.
- Você está em perigo de vida.
- Se vem para me desanimar é melhor não vir.
E na verdade João da Silva queria ver se a morte não faria fraquejar no último
momento um homem cuja vida era exemplo de dignidade, de coragem, de
inteligência, de dedicação a uma causa.
Alfredo Caldeira adivinhava-o e respondia:
- Verá que sei morrer como um revolucionário.
E morreu realmente com a coragem e a confiança no futuro de que sempre em vida
dera provas.
Pouco antes da sua morte, João da Silva trouxe uma garrafa de champanhe, bebida
muito diurética, mas que bem sabia já não poder faser qualquer efeito. O seu
objectivo era justificar aquilo que iria dizer mais tarde:
- Não lhe faltou nada. Até champanhe lhe demos.
João da Silva não entendia. A nossa superioridade moral punha-o louco de raiva.
Concluía então que não usara ainda da dureza bastante para
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quebrar a nossa resistência e o seu ódio com mais fúria ainda caía sobre nós.
Eram porém as convicções do Faraó que saíam abaladas, não as nossas. Sempre que
nos via, nos falava, nos ouvia, mais se convencia de que a nossa firmeza não
fracassaria.
Tentava então desanimar-nos com os acontecimentos no mundo. A Catalunha caíra
diante da Espanha franquista. E João da Silva, que não nos permitia a leitura de
um farrapo de papel impresso, mandou entregar-nos os jornais. E pensava:
- Aguentem! Vejam o futuro que os espera!
Líamos, devolvíamos os jornais, mas nem um de nós deixou de pensar que o
fascismo teria de ser vencido. Simples questão de tempo. A queda do Governo
Republicano não era mais do que uma; batalha perdida na grande luta pela
liberdade que os povos travavam em todo o mundo.
Sabíamos que tempos difíceis viriam, que o fascismo iria vencer mais batalhas,
mas a convicção de que a vitória final seria nossa, essa nenhum João da Silva
nos conseguiria arrancar.
Ficou muito desiludido o Faraó, e dias depois dizia-nos:
- Não compreendo
como não sentem o ridículo da vossa posição. Agora que o eixo Berlim-Roma-Tóquio
irá dominar o mundo...
E João da Silva teimava nas suas, promessas de liberdade. Todo aquele que se
arrependesse do seu "mau passado" dele teria referências de "bom comportamento"
e a liberdade que não tardaria.
Pela correspondência que lia e censurava, ia notando os sinais de fraqueza deste
ou daquele preso que não tardava em ser tentado para o porta-aviões. Assim
chamávamos ao barracão destinado aos rachados, pois dali lhes prometiam levantar
voo para a liberdade.
173
Aos rachados - assim conhecíamos os que renegavam a sua luta, e na verdade a
sua integridade de homens fendia-se de alto a baixo - prometia o Faraó as
delícias do seu paraíso. Saíam aos Domingos, e aqueles em que os carcereiros
mais confiassem podiam mesmo sair e entrar no Campo quando quisessem. Guiavam o
Pinto na sua tarefa de carregar água ou iam até à horta ou à praia onde
apanhavam mariscos, sem guardas a vigiá-los.
Era o cão do João de Silva e talvez por isso mesmo um preso que enlouquecera não
o podia ver aproximar-se, rodeado pelos guardas, com a calva brilhando ao sol,
sem logo gritar:
- Olha o São Pedro! Olha o São Pedro!
Havia de facto quem rachasse, mas não ganhava a amizade dos carcereiros. Só
obtinha o seu desprezo.
- Vocês estão desmoralizados - dizia-lhes o Seixas. - São uns desgraçados. Já
não são capazes de se partirem como os outros. Os comunistas e os anarquistas
são homens que sabemos estar ali para nos fazer frente. Vocês não valem nada!
E não valiam. Não eram eles os que João da Silva mais gostaria de ter no portaaviões.
Para nós, os que continuávamos "irrecuperáveis", os que não rachavam, havia o
inferno, e nele imperava o Seixes.
Muito alto, com as suas enormes patilhas, os olhos esbugalhados em furores, aos
berros, aos insultos, às ameaças, que seriam ridículas se não partissem de um
homem perigoso.
- Ouviste, Borda? A ti arranco-te o coração pelas costas!
Como seus auxiliares tinha os guardas que, ou cumpriam ou os queimava. Do guarda
Costa, que antes se caracterizava pela sua humanidade para
174
connosco, fez um bandalho; o ex-chefe Cruz; por se recusar a participar nos
espancamentos; foi forçado a reformar-se. O guarda Conceição manteve-se no
Campo, mas porque sempre se negou à tomar parte em quaisquer violências contra
nós; sofreu
muitos vexames do Seixas. Nunca ou Queremos aqui prestar homenagem à sua
dignidade e ao seu carácter.
Mas o mesmo não acontecia com o Zé Maria, branco e brutal, nem com o Travessa,
entroncado e forte, tipo de fadista valentão, nem com o Carlos Silva; antigo
aluno da Casa Pia, sempre sioso por fazer mal; por nos apanhar em falta, nem com
o Teixeira, com um aparente ar inofensivo, mas pérfido e sem quaisquer
escrúpulos, capaz de tudo, nem com o Adelino, escriturário na secretaria, mas
que nunca se negava a "bater nas sessões da sala de bailes", nem com o Bobby, um
rapazola inbecil de quem o Seixas fizera um fantoche e sempre participava com o
Travessa, o José Maria e o Teixeira nas encenações de fuzilamento, tão ao gosto
do Seixas.
Pela noite, noite alta; vinham buscar-nos, frigideira. punham-nos de caras
voltadas para a parede, enquanto atrás de nós ouvíamos o engatilhar de armas.
Depois vinha o berro do Seixas:
- Fogo!
E logo a seguir eram as gargalhadas, as graçolas.
Alguns dos guardas
tinham sido viriatos e, por vezes, entre eles, escutávamos frases como esta:
- Tu matavas para lhes tirares os anéis e os dentes de ouro.
Tentavam "converter-nos" pela violência. Ou cedíamos ou
- Daqui só saem para o jardim das tabuletas!
175
E cada tentativa falhada traduzia-se em dias e, dias de frigideira para o
irrecuperável.
José Correia Pires por lá passou muitas vezes por esta razão.
Manuel Alpedrinha foi também uma das tentativas de João da Silva, feita através
do Seixas:
- Você é uma pessoa doente. E este clima é mesmo mau. Se tirasse essas ideias da
cabeça livrava-se do trabalho pesado e de outras coisas - e insistia com voz de
muitas promessas.- Olhe que um pedido do senhor director...
Manuel Alpedrinha cansou-se e virou-lhe as costas.
- Ainda não perdi o juízo.
Não teve de esperar muito pelas consequências da sua resposta. No dia seguinte,
apontaram-lhe um saco cheio de legumes.
- Leve isso!
Era tão pesado que não o conseguiu levantar.
- Leve isso! Não ouviu?
- Não posso!
- Não pode? Não quer é trabalhar!
E por se negar ao trabalho esteve vinte dias na frigideira.
Alberto de Araújo era natural de Almada. Esteve onze meses incomunicável, foi
espancado, escarram-lhe na cara. Professor do Liceu Passos Manuel, foi proibido
de leccionar. Nada lhe abalou a firmeza. Estivera dois anos no Sanatório da
Guarda por sofrer de uma tuberculose renal. Chegou ao
Campo por finais de Junho de 1939, com Augusto Valdez e Carlos Matoso. E,
juntamente com eles, começou a trabalhar na horta em regime semelhante ao da
Brigada Brava.
Foi imediatamente um dos que mais sofreu a persuasão de João da Silva. O Faraó
sonhava com
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transformar aquele intelectual brilhante e firme antifascista num fiel adepto do
Estado Novo. E com esta finalidade, para lhe quebrar a resistência, lançou
Alberto de Araújo na Brigada Brava, ele que vinha já tão fraco que mal podia
levantar a enxada. Salvou-o ter escorregado no cimento do balneário
e deslocar um osso do cotovelo. Contrariado, Esmeraldo Pais Prata teve de lhe
dar baixa.
O Seixas ficou furioso.
- Salvaste-te da Brigada Brava, mas da frigideira não te livras. E não tardou
que arranjasse um pretexto.
Alberto de Araújo passou vinte dias na frigideira e de lá saiu para a
enfermaria. Mas ali estava sob a alçada do Tralheira. Não esperou muito para lhe
dar alta. Voltou a todos os trabalhos violentos que o Seixas lhe destinava.
Carregou pedra, descarregou sacas de cimento, foi cavador, foi calceteiro e
novamente voltou à enfermaria.
Viria a morrer em liberdade, da tuberculose renal que se agravou no Tarrafal.
O mesmo ódio perseguia Augusto Valdez, Carlos Matoso, António Guerra, António
Nunes, Tomás Rato, Joaquim Almeida, Gabriel Pedro...
João da Silva não podia perdoar a Gabriel Pedro toda a sua abnegada militância
pela classe operária, a sua força moral, a luta infatigável que conduzia. E como
nem admitia a hipótese de o fazer trair, Gabriel Pedro era um homem para
abater.
No trabalho havia sempre sobre ele uma vigilância cerrada. Os guardas Travessa,
Mateus, Costa e Carlos Silva nem por um instante o perdiam de vista. As
provocações eram constantes. Por qualquer pretexto o metiam na frigideira, onde
os guardas o espancavam até o deixarem sem acordo de si.
177
João da Silva não escondia as suas intenções. Quando se tratava de novo castigo
a Gabriel Pedro dizia:
- Agora damos-lhe vinte, depois mais vinte e mais vinte... Há-de acabar por
desaparecer deste mundo. Está bem entregue.
A porta da frigideira abriu-se muitas vezes para Gabriel Pedro, e mesmo quando
João da Silva abandonou a direcção do Campo, em Junho de 1940, não deixou de se
abrir. Ficara o capitão Duarte Osório Fernandes, que sentia o mesmo ódio. E como
os períodos de vinte dias não o tinham aniquilado, o novo castigo foi de
quarenta dias.
Condenavam-no à morte.
Uma manhã ao abrirem a porta para lhe entregarem o pão e a água encontraram-no
banhado em sangue. Cortara os pulsos. Felizmente as veias tinham ficado
laqueadas ao cortá-las numa aresta do latão.
A perseguição só findou quando da chegada de Olegário Antunes como novo
director.
As perseguições dos guardas não tinham interrupção.
- Quando não há por onde se pegar - explicava o Travessa ao Carlos Silva prega-se uma pisadela. O tipo refila, dá-se-lhe logo nas ventas e ala para a
frigideira!
Nos primeiros dias de Maio de 1939, estávamos na frigideira doze presos, quatro
num lado, oito noutro.
Numa das celas da frigideira havia um pequeno buraco onde os ratos faziam ninho.
Já tínhamos avisado que seria aconselhável tapá-lo. Alguém arrancara depois
pedras mal unidas pela argamassa. Certamente não o fizera para uma fuga que bem
poucas probabilidades teria.
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Uma noite, o Seixas, numa das suas habituais rondas, com a sua lanterna
eléctrica deu com o buraco.
- Quem foi? - berrava.
E todos os que nos últimos tempos por lá, tinham passado começaram a ser
chamados à "sala de baile". Eram espancados com os cabos dos cassetetes. Pedro
Soares, que então se encontrava na frigideira, foi levado à caserna dos guardas.
descalço, já sem óculos.
- Depressa! Mexe esses pés!
Faziam-no pisar aquela planta rasteira cheia de espinhos, a que chamávamos arreporra. Foi espancado durante mais de uma hora até cair inanimado. Voltaram a
metê-lo na Frigideira, mas adoeceu e teve de ser levado para a enfermaria onde
esteve
internado quarenta dias.
Também António Nunes foi espancado e metido entre os arames durante a noite. O
que em Manuel dos Reis não passara de ameaça, fazia-o agora o João da Silva. Era
terrível para a saúde ficar exposto ao cacimbo.
Carlos Galan foi também espancado.
Pela noite, rangiam os gonzos da porta da frigideira, faziam-na bater com
estrondo, tiniam cadeados e chaves e ouvíamos as vozes dos guardas que nos iam
chamando para os espancamentos. Um domingo de manhã levaram-nos, esfarrapados e
sujos, de barba crescida, para a Brigada Brava.
Na encosta do monte, onde se encontrava a casa do Faraó, era preciso abrir uma
vala.
Pelas 6 e 30 chegou a brigada: enfraquecidos pelos muitos dias de frigideira,
tínhamos de trabalhar com enxadas e picaretas.
179
Começara o mês de Junho e o sol queimava. O terreno era rochoso. O Seixas
gritava:
- Aqui não há doentes nem fracos. Aqui tudo trabalha! E quem não trabalhar já
sabe...
As picaretas batiam na rocha, o ferro repercutia na pedra e aquela vibração
propagava-se dolorosamente pelos braços e por todo o corpo. Dois, três golpes de
picareta e pensávamos que as mãos não aguentariam, não conseguiriam agarrar com
firmeza os cabos das ferramentas. O suor corria pelas costas, sentíamos as gotas
correrem pela pele, a camisa, já encharcada, agarrava-se ao tronco.
- Água! Pode-se beber?
- Uma vez! E já passa a mais!
O pó levantava-se da terra, voava das pás, entrava-nos pela boca a arfar e
punha-nos a garganta acre e seca. O peito parecia estalar, nos ouvidos latejava
o sangue, ouvíamos as pancadas surdas e rápidas do coração, nos olhos caía uma
névoa. Nas mãos, formavam-se bolhas que aumentavam, rebentavam e ficavam em
chaga.
Uma hesitação no levantar e baixar das enxadas e já o guarda gritava:
- Vamos a desembaraçar as mãos! Ainda entra o cassetete!
Responder a isto ou aos insultos era o regresso à frigideira e aos
espancamentos.
Pela Brigada Brava passaram António Nunes, Carlos Galan, Gabriel Pedro, António
Guerra, João Borda, José Correia Pires, João Lopes Dinis, Joaquim Amaro, António
Marreiros, José Tavares de Almeida, José Júlio Ferreira, Manuel dos Santos
e muitos outros, para quem aquele trabalho brutal significou a saúde arruinada e
mesmo a morte.
A Brigada Brava destinava-se a reforçar o terror e tentar levar mais presos a
"rachar".
- É preciso acabar com esta praga dos Comunistas! - dizia João da Silva.
180
E o Seixas com rosnidos de rancor:
- Vamos a trabalhar! Se estão aqui é para morrer!
Depois de almoço, voltávamos. O calor era agora sufocante. Na terra, nas
pedras havia cintilações de luz que cegavam. As moscas atraidas pelo suor
zumbiam à nossa volta, colavam-se pegajosas.
Ouviam-se aquelas pancadas surdas no silêncio da tarde e os ferros tinham
relampejos ao sol. De quando em quando, um tinir metálico. Era uma enxada a
bater na rocha. E nós abafávamos uma praga contra aquela repercussão pelo cabo
que
nos atingia as mãos e parecia fender-nos os pulsos.
Sentíamos como que uma ânsia de vómito, a terra parecia oscilar em balanço de
navio. O coração pulsava pulsava, e o sangue latejava nos dedos, enclavinhados
nos cabos das pás e picaretas, nas bolhas já em sangue das palmas das mãos. A
luz
parecia tornar-se amarela, a escurecer-nos nos olhos...
Caíam camaradas inanimados. Corríamos mas logo vinha o berro do guarda:
- Alto! Ninguém larga o trabalho!
Ali ficavam sem acordo de si, ao sol, até recobrarem os sentidos ou terminar a
jornada de trabalho para enatão os socorrermos e os ampararmos no regresso ao
campo.
Durante a noite acordávamos naquela ansiedade pelo dia de inferno que nos
esperava. O sono era agitado.
Na Brigada Brava não sa podia fumar, urinar só uma vez, beber só uma vez!
Queríamos ir ao médico, mas o Tralheira não nos atendia e tínhamos de continuar.
181
As bolhas infectavam, criavam pus.
- Mijem nas mãos que isso passa! - aconselhava o Seixas.
Ou ria-se:
- Ora vês, como te vais habituando ao trabalho!
E para os que sabia nunca terem pegado em ferramentas:
- Agora a tua caneta é esta.
Apontava a picareta.
Os camaradas mais fortes e resistentes tentavam ajudar os mais fracos. Punham-se
a seu lado e iludiam a vigilância dos guardas, cravando a enxada na terra por
eles e pelos camaradas que amparavam.
Vinha ver-nos todos os dias o Faraó. O guarda gritava:
- Alto ao trabalho! Tirar chapéus!
Só então se perfilava e fazia a continência regulamentar.
Era para nós um instante de alívio. Endireitávamos o tronco e sentíamos então
quanto cada músculo estava dorido.
Durou oito dias o trabalho da vala, mas logo começou a cava da horta. Era pior
ainda. Quatro horas de manhã, quatro horas da tarde.
Era a Brigada Brava, nome que lhe fora dado pelo Seixas.
O único conforto era a assistência que os camaradas nos prestavam quando
chegávamos ao Campo. Preparavam-nos roupa lavada e alimentos que nos
compensassem naquele tremendo desgaste.
Quarenta e cinco dias durou a Brigada Brava.
Só António Guerra e João Borda aguentaram até ao fim. O orgulho e a dignidade
levaram-nos a fazer frente a todas as tentativas dos carrcereiros para os
quebrarem. Quebrou a Brigada Brava, que não podia continuar apenas com dois
homens.
183
Uma manhã apareceu o Seixas e disse com uma gargalhada:
- Acabou-se a Brigada Brava! Vocês julgavam que isto nunca mais tinha fim?
Estava a tornar-se demasiado conhecida em originando - Portugal, no arquipélago,
era muita indignação e protestos.
Mas António Guerra ficou ferido de morte. Duas vezes passou pelo Tarrafal. Na
segunda ficou lá. Morreu com tuberculose.
O tempo mais duro do Tarrafal aproximava-se. Adoeceu então o Seixas com
paludismo, e era curioso ver aquele sólido defensor do salazarismo, de
ascendência nobre que vinha já de feroz antepassados visigodos - era ele que o
dizia -, aquele
e não teria descanso enquanto os mais destacados comunistas não fossem
entusiastas e fiéis defensores da bandeira da Legião Portuguesa - também nos
falava destas suas por desistir
de tão honrosa missão por se apavorar com a ideia da morte.
- Santa Virgem Maria, livra-me das biliosas! Tira-me deste sofrimento!
E beijava as medalhinhas que trazia ao pescoço.
Não quis ficar. Exigiu que o transferissem, Voltou à PIDE para torturar presos
políticos ainda durante muitos anos, a ao 25 de Abril de 1974.
O Faraó ainda ficou. Mas Junho de 1940... Andavam os nossos camaradas Miguel
Russell e Aníbal Bizarro a trabalhar na calçada que dava acesso à, vivenda do
João da Silva, quando o viram passar. Levava má cara. Seguiram-no com os olhos.
Encaminhava-se para a secretaria.
Junto à entrada do Campo estavam o Manuel Alpedrinha, o José Barata e o Saul
Gonçalves, que
183
trabalhavam na brigada de jardinagem. E viram os gestos furiosos com que a estes
camaradas se dirigia.
- Que teria acontecido? - perguntou o Anibal Bizarro.
E não se conteve. Pegou numa lata e seguiu para o Campo a pretexto de que a da
encher.
Soubemos então.
Chegara uma ordem para libertar cerca de três dezenas de presos. Mas apenas seis
eram rachados. Contrariamente ao que João da Silva esperava, os presos que
sempre se tinham recusado ao porta-aviões foram postos em liberdade, enquanto os
seis rachados foram ainda cumprir tempo de prisão em Caxias.
Foi um violento golpe nos planos do Faraó. Ele que prometera a liberdade aos que
odiassem a luta...
- Agora com que cara lhes apareço!
Gesticulava furioso pela secretaria. Queixava-se da incompreensão da polícia
pela inteligência da sua táctica.
- Umas bestas! - berrava ele com patadas ao soalho.
E decidiu partir para a Metrópole.
Durante dez anos foi ainda o director do Forte de Caxias, onde continuou a
maltratar antifascistas e a roubar no rancho. Montou um seco de táxis, com
motoristas admitidos depois de escolha muito especial. Tinham também por tarefa
escutar as conversas dos familiares dos presos, quando vinham visitá-los.
Veio a morrer atropelado na Avenida da Liberdade.
184
O ARREDA
Transferido do cargo de director do Forte de São João Baptista, José Olegário
Antunes chegou ao Campo do Tarrafal no Verão de 1940.
Pela Europa iam caindo os países à passagem das Panzer nazis. En Portugal, pelas
botoeiras dos entusiastas do Estado Novo viam-se os emblemas da Legião, da União
Nacional e mesmo cruzes suásticas. A arrogância fascista não tinha limites.
Foi o tempo em que se escutava a BBC com o som muito baixo, de ouvido colado ao
altifalante, portas e janelas fechadas com receio do vizinho. Falar nos cafés a
favor da Inglaterra, na sua ilha, disposta a resistir, era perigoso em Portugal,
onde se apregoava neutralidade mas se colaborava com a Alemanha de Hitler.
Assim, era de prever um director muito semelhante aquele que saíra. A PIDE tinha
então como chefes dos seus agentes oficiais do Exército, como os cadetes do
Sidónio, dos mais reaccionários que era possível encontrar. Nada de bom
esperávamos.
Reunimos no refeitório. O novo director entrou com o capitão Osório e o corpo de
guardas. Deu um passo em frente e declarou não ter vindo ao Tarrafal para nos
perseguir.
185
- Considero uma cobardia bater nos presos.
Olegário Antunes afirmou mesmo ver baixeza moral nos que abusando do mando
humilhavam, batiam, torturavam presos cansados à sua guarda.
Aquele ar furibundo do novo director parecia ser dirigido ao capitão Osório e
aos guardas, que também o ouviam em silêncio, com evidentes sinais de mal-estar.
Nós não nos sentíamos impressionados. Ouvíramos já frases semelhantes em
direcções anteriores. Usando de maior ou menor dureza, todos eles eram fascistas
e tinham aceitado aquele feio encargo de directores do Campo de Concentração do
Tarrafal.
A razão estava connosco. O capitão Olegário Antunes era um neurótico. Dele eram
frequentes os acentuados períodos depressivos. Nesses dias, insultava-nos com os
palavrões mais imundos, por vezes sem qualquer motivo. Os insultos e palavrões
dizia-os ele à frente fosse de quem fosse, da mulher e da filha, que,
disfarçadamente, nos faziam sinais para que o desculpássemos.
Fora ferido na Primeira Grande Guerra Mundial, e alto, muito magro, quando
caminhava descaía-lhe o ombro direito que avançava primeiro ao jeito de quem
quisesse afastar um obstáculo com violência. Foi esta a razão por que lhe
chamámos o Arreda.
Racista, era brutal com a gente da ilha e os soldados angolanos. Certa vez,
estavam na cozinha o camarada Manuel da Graça e um cabo-verdiano. O Arreda
passou tão de repente que não tiveram tempo de o cumprimentar. Voltou atrás e
foi apenas ao cabo-verdiano que se dirigiu em ameaça.
- Precisavas já dessa cara cheia de bofetadas - e apontando a pele branca do seu
braço - : Então isto não é nada?
186
Era gesto muito frequente nele.
- Isto não é nada?
Sempre assim começava antes de espancar homens ou mulheres naturais da ilha.
Arrogante por carácter, julgando-se muito acima de todos, não tardou em
desmentir as palavras iniciais preferidas no refeitório.
Em Maio de 1941 tivemos um período em que não havia muito para fazer. Mas
entendiam os guardas que devíamos trabalhar, e inventavam tarefas absurdas.
Enfurecia-nos vermo-nos forçados
a fazer o que sabíamos ser de todo inútil.
Fomos para fora do Campo, uns com carros de mão, outros com picaretas e pás,
fizeram um risco no chão e ordenaram-nos que cavássemos. E uns retiravam terra
com que enchiam os carros enquanto outros a transportavam e a despejavam a uns
dez metros dali. Mas, feitos os buracos, o guarda ordenou-nos que os tapássemos
com aquela mesma terra que antes tínhamos carregado.
Refervíamos numa ira que contínhamos só para não cedermos à provocação. Não nos
apressávamos. Enchido o carroíamos empurrando-o lentamente, e aquilo que podia
fazer-se em dois minutos levava meia hora.
- Vamos a andar mais depressa! - dizia-nos o guarda Travessa.
Fingíamos não o ouvir.
- Vamos a andar mais depressa! Ouviram ou não?
Continuávamos com o mesmo passo, mas numa ira que um pequeno nada tornaria
impossível de controlar.
Foi quando o guarda sacudiu o camarada Josué Romão pelo ombro e o ameaçou:
- Quer andar mais depressa ou quer que o leve ao director?
187
A ira sufocada em todos nós transbordou pela boca do camarada Josué.
- Você leva-me ao raio que o parta! E não me diga mais nada! Mais depressa para
quê, sua besta?
Vendo-o de cabeça perdida, o guarda acobardou-se. Nada mais disse, mas
encaminhou-se para a secretaria e deixou-nos sós durante meia hora.
Quando voltou, ordenou que o camarada Josué largasse o carro de mão e pegasso
numa picareta.
Assim fez, mas manteve-se de pé recusando-se a um trabalho inútil, até o guarda
nos mandar formar a dois e dois e nos ordenar que seguíssemos para o Campo- Mas
ao camarada Josué disse:
- Venha comigo.
Josué Romão era homem calmo. Ao entrar na secretaria logo se apercebeu de que se
preparavam para o espancar. Olegário Antunes com a perna a tremer de fúria
contida agitava o pingalim. O Teixeira passava a mão por uma pesada régua,
enquanto o Travessa, com expressão de quem se sentisse muito ofendido, já
empunhava o cassetete.
As janelas vóltadas para o Campo, tal como acontecia quando ali se davam
espancamentos, estavam fechadas.
O Arreda berrava:
-Onde julga que está? Nalguma colónia de férias?
Não se impressionou o nosso camarada. Deixou-o falar. Interrompê-lo precipitaria
tudo. Ouviu-o dizer que era muito grave a atitude tomada da ser castigado para
que tais coisas não voltassem a repetir-se, mas antes queria que lhe
confirmasse, na frente do guarda, se era ou não verdade ter dito palavras
agressivas.
- Se me permite, senhor director, eu começarei pelas causas, pois duvido muito
que tivesse tido ordens para um trabalho sem utilidade
188
que só por maldade se pode mandar fazer, e relatarei depois o que o senhor
director me pede.
E aqui Olegário Antunes começou a perguntar:
- Mas que trabalho inútil era esse?
Contou-lhe que fizera buracos, levara terra para voltar a trazê-la e tapar os
buracos feitos.
- Isto para quê, senhor director? Se há tanto trabalho útil a fazer no Campo?
O director, que na verdade não dera tais ordens, começava a encarar o guarda com
maus olhos. Mas apesar de reconhecer a nossa razão entendeu dever dar castigo
por desobediência a uma ordem.
Como é evidente o nosso camarada negou ter chamado besta ao guarda e que
avançasse para ele em jeito de o querer estrangular.
O Travesa, ainda iniciou um protesto, mas o medo pelo director fê-lo deter-se.
Além disso bem via que o preso da ser castigado.
- Não lhe dou uma tareia porque me apanha bem disposto, mas vai oito dias para o
segredo a pão e água.
O sistema repressivo montado pelo Faraó não fora posto de parte pelo capitão
Olegário. Limitou-se a afrouxá-lo. Mas aquele que considerava ser prova de
baixeza moral bater nos presos não deixou de o fazer.
A José Galinha mandou tirar os óculos para depois o esbofetear.
Ferreira da Costa, médico otorrinolaringologista, que continuava usando barba
contra a vontade do director, que detestava peras, bigodes e outros ornamentos
de pêlo, foi amarrado a uma cadeira para lhe cortarem a barba. E como já era
mais arrancar que barbear e tivesse a cara ferida, pediu
tratamento. Esmurraram-no no estômago e meteram-no na frigideira.
José Olegário Antunes viera da antiga Escola do Exército, onde se incutia aos
futuros oficiais
189
o espírito de casta. Tinha-o bem desenvolvido. Sentia-se diminuído se alguém o
enfrentava com dignidade e altivez. A sua reacção era a bofetada, de que nem os
próprios guardas escaparam. Assim aconteceu com o Carlos Silva, que não tardou
em ser enviado para Portugal.
- Gosto das coisas direitas! - dizia.
E, na verdade, houve aspectos da vida do Campo que melhoraram.
A alimentação conheceu maior abundância de carne. Na correspondência, onde se
verificavam abusos de censura feita às nossas cartas, afirmou aos guardas:
- O que se lê esquece-se!
E ainda dentro do seu conceito das coisas direitas havia muito que o exasperava.
Faltavam roupas de cama, faltavam-nos botas. As fardas estavam em farrapos. As
nossas reclamações eram insistentes. Elaborávamos listas do muito que não
tínhamos e entregávamos aos guardas. Quando chegava alguma remessa, formávamos
bicha à porta do armazém esperando pela distribuição de roupas, de botas, de
pratos, de colheres...
Alguns de nós andavam de tal modo andrajosos que não nos deixava sair do Canpo
por o consíderar vergonhoso. Olegário Antunes via-nos andar pelo Campo como um
bando de maltrapilhos e perdia a paciência contra as demoras das autoridades da
Metrópole. Metia-se então na carrinha e seguia para a Cidade da Praia onde
comprava por qualquer preço o caqui ou os poucos géneros que encontrasse à
venda.
Nas oficinas de alfaiataria e sapataria já nada se podia fazer. Havia roupa que
não aguentava mais remendos e botas tão estafadas e podres que nenhum concerto
consentiam. Olegário Antunes tinha então desabafos de fúria que seriam bem
desagradáveis aos ouvidos dos seus chefes da PIDE.
190
- Quem não tem dinheiro não monta campos de concentração em åfrica!
Fazia-nos algumas concessöes, que retirava para voltar a conceder, conforme as
suas disposições. A assistência médica melhorou. A nossa solidariedade com o
auxílio que nos chegava permitia-nos mais reforços alimentares e pelo fim da
tarde tínhamos todos o nosso chá.
Os guardas faziam menos provocações. A frigideira continuava em funcionamento,
mas com menos frequência. Podiamos levar a enxerga e não nos tiravam as botas.
Raramente era imposta a ração reduzida. Autorizou aulas tanto de dia como de
noite, e pouco se importava que nos reuníssemos quer nas barracas quer cá fora,
ou que visitássemos camaradas noutras casernas.
O trabalho não parou, mas não era tão pesado. Continuava a limpeza anual da
vala. Era preciso desentulhá-la depois da época das chuvas. E eram toneladas de
terra e pedras. Depois tinham de ser consolidadas as paredes do fosso e
lançávamos pazadas de lama que escorria para o fundo apesar das lascas de pedra
que espetávamos nos taludes para a reter. Terminado o desentulhamento da vala e
seguia-se a capinagem, que parecia não mais, acabar.
Apesar de tudo a vida no Campo melhorava. A situação era menos dura.
Organizávamos a nossa vida prisional. Cada caserna tinha criada a sua escala de
trabalho - lavagem das barracas, serviços auxiliares na cozinha, limpeza das
latrinas, para que houvesse uma rotação entre todos. O chefe de grupo em cada
uma das casernas era eleito por nós. Todas as sextas-feiras; junto de cada
camarata ficavam dois grandes bidões cheios de água.
Sábado pela manhã, e bem cedo, os três escalados para a balicação começavam a
limpeza, depois de
191
colocarem cá fora as nossas camas. E enquanto o pavimento secava íamos lavando
lençóis, mosquiteiros e roupas.
Era também aos sábados que conseguiamos - nem sempre - autorização para arejar
as nossas roupas, guardadas numa arrecadação, onde os grilos, as baratas e as
traças as iam devorando. Puxávamos uma vagoneta que sempre ficava cheia
com os restos deixados por toda aquela bicharada e que já não tinham qualquer
salvação.
Os livros foram-nos devolvidos. E como éramos muitos, a nossa biblioteca tinha
uns setecentos volumes. Alberto de Araújo foi o bibliotecário. Mas primeiro
tivemos de construir uma grande estante de boa madeira, uma enorme mesa de
leitura e dois bancos corridos. E tudo isto devia ser primorosamente fabricado.
Era uma das características do capitão Olegário Antunes, o excesso de arrumação,
de higiene, de perfeição. Ia ao exagero. Em sua casa, por exemplo, a vivenda
antes ocupada por João da Silva, instalou um armário todo envidraçado, onde em
prateleiras de vidro, mais indicadas para pratos e copos, colocou todo o
calçado, o seu, e da mulher e o da filha, rebrilhante de graxa.
E quando nos permitiu a prática de voleibol e de basquetebol igualmente tivemos
de preparar o terreno, fazer a vedação com arame e tubos pintados a esmalte, os
postes para os cestos e a rede, tudo com excelente acabamento, sempre sujeito às
suas recusas quando ainda não achava a seu gosto.
Levou-nos muitos meses de trabalho; mas ficou por fim pronto e foi inaugurado.
Mas poucos dias depois da inauguração, numa das suas bruscas oscilações de
humor, gritou-nos que desmontássemos tudo. E lá seguiram os livros, as estantes,
as mesas, os bancos, os postes, os cestos, a rede, as bolas para o armazém. E
muitas
192
semanas se passaram antes que a Comissão do Campo lhe arrancasse autorização
para que tudo aquilo nos fosse devolvido.
A vida ia melhorando no Campo, mas não era fácil.
Foi-nos autorizada a compra de papel, lápis, tinta e canetas. As nossas cartas
já não estavam limitadas a duas folhas de papel. Também conseguíamos receber
livros da familia, mas para que nos fossem entregues era preciso vencer muitas
dificuldades. A entrega podia, durar semanas e meses, e nisto se manifestava o
despeito dos carcereiros pela nossa vontade de estudar.
Jaime Tiago dedicava-se ao estudo das Matemáticas superiores. Pediu a sua
família que lhe enviasse um Tratado de Álgebra e Análise. O livro chegou e o
director mandou-o chamar.
- Qual era a sua profissão lá fora?
- Operário da indústria gráfica.
- Um operário não precisa de estudar Matemáticas Superiores. Estás a ouvir? Eu,
que sou Oficial do Exército, não estudei essas Matemáticas. Ponha-se a andar!
Não tem nada que levar o livro! Não lho dou!
E muitos meses tiveram de passar até Jaime Tiago conseguir a restituição do
livro que a familia lhe enviara. Era seu e com ele pretendia aprofundar os seus
conhecimentos, direito que não queriam reconhecer-lhe por ser operário.
Deu-se durante a sua comissão de serviço uma tentativa de fuga.
Com bastante dinheiro e muita arrogância, chegaram ao Campo dois alemães. Nunca
entendemos muito as razões do seu aparecimento no Tarrafal. Racistas, logo nos
consideraram como raça inferior. E não o escondiam.
193
Para melhor resistirem ao clima batiam gemadas de dez ovos e muito açúcar e em
cima devoravam bananas às meias dúzias.
Faziam-se na ilha uns queijos que, só pelo aspecto não pareciam ser atraentes
nem muito limpos, eram na verdade saborosos. Curados ao ar livre, a poeira
cobria-os e dava-lhes a cor da terra.
Bastante grandes, depois de bem raspados, com gosto os comíamos. Eram baratos e
cada queijo dava perfeitamente para quatro ou cinco pessoas.
Fred comia um sozinho e com frequência acabava por sofrer de desarranjos
intestinais por estes e outros exageros.
Com lealdade, avisámo-los de que tais excessos só os prejudicavam. Além disso, a
prudência impunha que se defendessem durante a noite com mosquiteiros.
Riam-se com a muita superioridade de homens certos de pertencerem a uma raça
pura.
- A alemão forte não faz mal. Português, sim, não aguenta.
Não tardou que o Fred caísse com paludismo e chorasse com medo da biliosa. Foi
quando um de nós lhe perguntou se já, vira algum desses portugueses fracos a
chorar com temor da doença e da morte.
O outro era o Willy. Louro, de olhos azuis, robusto, daquele tipo tão enaltecido
pelo doutor Goebells como o da raça ariana, era reservado e frio. Não conseguia
esconder a sua tristeza pelas derrotas nazis. Também se desgastava muito com as
atitudes de Fred, que já não parecia tão ariano.
De pele e cabelo mais escuro, abrutalhado no aspecto e nas maneiras, mas mais
comunicativo, conseguiu falar e compreender um pouco da nossa língua. Tinha
muito de infantil. Willy procurava arrancá-lo ao nosso convívio, pois
compreendia
que muitas vezes nos divertíamos com as suas fan194
farronices, principalmente quando Rommel e o Áfrika Korps levavam de vencida os
aliados, no Norte de África.
Estavam ambos no porta-aviões e, podendo sair do Campo e ir até à praia,
meteram-se num daqueles pequenos barcos dos pescadores cabo-verdianos, feitos
com a madeira dos caixotes de sabão, e fizeram-se ao largo, numa aventura tola.
Não chegaram a percorrer quinhentos metros. Dado o alarme, outro barco saiu em
perseguição. De regresso ao Campo, o Arreda recebeu-os a cavalo-marinho. E
irritado com a Alemanha, que lhe parecia não estar a conduzir a guerra da melhor
maneira, a sua fúria desabou sobre o Fred e o Willy.
- Vocês são uns parvos. Têm a mania da superioridade e ainda acabam por perder a
guerra. Os Russos é que vos hão-de ensinar.
Depois de espancados, mandou-os para a frigideira.
Numa outra leva, entrara no Campo o sargento-ajudante Pires, que fora da PIDE.
Mas porque conspirou contra Agostinho Lourenço foi mandado para o Tarrafal. E
ali viu-se obrigado a trabalhar a nosso lado no empedramento da vala. Foi o que
mais o feriu. Não se conformava ver-se misturado com comunistas. Queixava-se,
chorava, e era do Tralheira que, conhecedor das suas façanhas pelo fascismo, o
salvava de trabalhos pesados e o fazia baixar à Mitra.
Não tardou que o considerassem homem de confiança e o pusessem à frente da
cozinha. Então o seu ódio por nós imediatamente se manifestou e se satisfez.
A morte continuava no Campo.
Morreu Mário Castelhano, com uma fébre intéstinal.
195
Olegário Antunes tomou então a atitude de pretender afastar de si toda a
responsabilidade pela morte do dirigente anarco-sindicalista.
Recebemos ordem para formar em quadrado deixando um dos lados livres para o
director, o médico e os guardas. E começou então a cerimónia a que pretendeu dar
aspecto de julgamento. Acácio Tomás de Aquino e o enfermeiro Virgílio de Sousa
foram chamados e depois de darem dois passos em frente dele ficaram como réus.
Muito teatral, muito grave, Olegário Antunes falou de si, das suas atitudes,
para concluir que nem ele nem o médico tinham a mais pequena culpa da morte de
Mário Castelhano. Depois, recusando todo o direito de defesa, responsabilizou
Acácio Aquino e Virgílio de Sousa por aquela morte. Humilhou-os, insultou-os,
acusou-os de terem dado informações que não correspondiam à doença que abatera
Mário Castelhano, privado assim do tratamento mais indicado.
Mas, terminada a formatura, a nossa resposta ao Arreda e ao Tralheira foi
demonstrar a nossa amizade e solidariedade por aqueles que na verdade tudo
tinham tentado para salvar a vida de Mário Castelhano.
E dois anos depois morria Bento Gonçalves, com uma biliosa anúrica.
Olegário Antunes foi vê-lo, e numa dessas visitas, Carlos Matoso ao notar
aquela imobilidade, aquela qualquer coisa que logo nos fazia distinguir a vida
da morte; pegou num pequeno espelho e aproximou-o à boca de Bento Gonçalves.
Já não havia sopro de vida, e Carlos Matoso não pode conter toda a sua mágoa e
toda a sua revolta.
196
- Assassinos!
O capitão Olegário fitou-o demoradamente e não tardou que o chamasse à
secretaria para o esbofetear.
- Nunca os pântanos podem dar rosas.
Foi depois disto o seu comentário pretensioso.
O homem que armava ser baixeza moral bater nos presos que lhe estavam confiados,
suspendia, nos braços do seu cadeirão os símbolos do seu poder: dois grandes
cassetetes.
197
A BILIOSA
Com o tempo das chuvas de Julho a meados de Setembro - começava aquele tempo de
sobressalto, das febres e, pelos finais de Outubro, um mais terrível ainda, o
das biliosas.
Distinguíamos as febres em frias, quentes, lentas, terças, quartas. Todas elas
eram formas de paludismo e minavam-nos.
Havia sempre paludismo, mas pela época das chuvas era o seu período. Tal como
durante todo o ano se podiam dar biliosas, embora o final de Outubro fosse a sua
altura.
Mas por que razão se verificavam mais no fim de Outubro? Seria a biliosa a fase
final do paludismo crónico? A consequência de uma série de acessos febris
quebrando resistências até sobrevir a biliosa? Seria sequela da medicação pelo
quinino? A verdade era aparecer sempre naqueles que anteriormente já tinham sido
vítimas do paludismo. E também era verdade que aqueles que substituiram o
quinino pela atebrina deixaram de se verificar biliosas.
Mas antes quantas mortes!
A biliosa aparecia de repente. Não era pressentida. E a todos nós assustava e
nos fazia vigiar ansiosamente a urina. Porque quando se urinava sangue, quando a
urina trazia um tom de café, era a biliosa.
199
E o camarada a quem isto acontecia, procurando dominar a sua angústia, vinha
dizer-nos:
- Estou com uma biliosa.
Bem sabíamos todos nós o que aquilo significava. Toda a nossa solidariedade era
encaminhada para aquele camarada e com ele nos íamos bater mais uma vez contra a
morte. Dali a momentos, na sua cama, transportado por nós, seguia para a
enfermaria, e por todo o Campo corria a notícia como um arrepio de frio.
- Mais uma biliosa!
Durante dez horas a vida estava dependente de a biliosa ser ou não anúrica.
- Já urinou?
- Ainda não!
Esperávamos em volta da enfermaria.
- Urinou! O sangue vem mais claro!
A morte atravessara o Campo e passara. Era a vida. A solidariedade que nos
reuniu junto da Mitra sentia-se mais tranquila. Dispersávamos, voltávamos às
aulas, ao trabalho das oficinas, aliviados.
Mas quando as dez horas passavam e...
- Já urinou?
- Não!
Então era a morte que viera ao Campo e ali ficara. Para o camarada doente era a
consciência de que ia morrer. Mais três, quatro dias sem urinar e a intoxicação
iria progredindo lentamente e seria o fim.
Não tínhamos a possibilidade de iludir o nosso camarada, de lhe dar esperança,
pois todos sabíamos o que representava a biliosa anúrica. Quando o rim
paralisava...
Introduzia-se a algália e se corriam alguns centímetros cúbicos era, a
esperança. Ríamos, dávamos-lhe pancadinhas no ombro.
200
- Temos homem!
E o camarada sorria-nos, animado.
- Parece que ainda me safo desta!
Mas quando da algália nada corria...
- Ainda é cedo. Daqui a pouco experimentamos outra vez.
E levavamos-lhe água e injectávamos-lhe soro e mais soro.
Mas o camarada não se iludia. A morte estava com ele.
Sorria com amargura e
preparava-se para morrer com a mesma coragem com que vivera. E donhinava a sua
angústia para dar exemplo de boa morte.
Assim víramos morrer Alfredo Caldeira. Assim morrera Ernesto José Ribeiro, em
quem a lucidez se mantivera também até uma hora antes da morte. Mandara chamar
os amigos mais íntimos porque deles se quis despedir.
-Tenho pena de morrer e de os deixar! Morrer agora que tão grandes dias sa
aproximam! A derrota do fascismo! A vitória da Democracia! São os dias que irão
viver. Peço-lhes que sejam dignos deste tempo que já não será para mim! E não se
esqueçam! Digam lá aos rapazes do meu bairro que morri como comunista.
Assim morreu o homem que vivera inteiramente para a causa do proletariado, Bento
Gonçalves, Secretário-Geral do Partido Comunista Português, Bento Gonçalves fora
operário do Arsenal, mas ganhara tal cultura, tais conhecimentos técnicos, que
conseguia o que a engenheiros parecia impossível.
E isto trazia-nos prestígio perante a gente de Cabo Verde, o que tinha para nós
grande importância.
Desmoronavam-se conpletamente as calúnias dos
carcereiros de que éramos gente desqualificada, sem quaisquer aptidões.
201
Bento Gonçalves dirigie a oficina de serralharia e entre nós encontravam-se
operários altamente qualificados. Só assim se explica que tenham sido realizados
trabalhos tão complexos com ferramentas improvisadas e construídas por nós.
Com as dificuldades de abastecimento provocadas pela guerra aumentou o número de
encomendas à serralharia do Campo. E não nos limitávamos a reparaçães,
fabricávamos objectos. Usávamos então a chaparia dos bidões de gasolina. Era a
nossa matéria-prima.
A madeira vinha da Guiné em troncos que colocávamos sobre cavaletes para serrar.
Faustino de Campos era um dos serradores, a braço, com uma serra de lenhadores,
o que exigia grande esforço.
As reparações e revisões do grupo gerador diesel pequena central eléctrica do
Campo estavam a cargo dos camaradas da serralharia. O electricista era pouco
competente e muitas vezes deixava queimar peças do motor que Bento Gonçalves
tinha
de ir tornear para a Cidade da Praia.
Nas condições de clima de Cabo Verde fazia-se sentir muito a falta de gelo,
essencial para tratamento de febres intestinais, de apendicites ou de outras
doenças em que fosse de aplicar.
Bento Gonçalves concluiu que era possível construir a máquina desde que pusessem
à sua disposição os materiais necessários. E com a nossa colaboração a máquina
apareceu e com ela o gelo, perante a admiração dos que não queriam acreditar:
Quando se soube foi um acontecimento, e muito contribuiu para o nosso prestígio.
De Bento Gonçalves foram os cálculos e os desenhos, e também foi ele quem, na
Cidade da Praia, nas oficinas das Obras Públicas, onde existiam as máquinas e as
ferramentas indispensáveis, fabricou os elementos fundamentais - o compressor
com as paletas de arrefecimento, o pistão, os segmentos,
202
a cambota, as complexas válvulas e torneiras de passagem - de materiais
escolhidos de un monte de sucata que existia na cidade. Toda a tubagem serpentina de arrefecimento, etc. - foi feita com os tubos de ferro das nossas
antigas barracas de
lona.
Num pequeno edifício de alvenaria, também construído por nós, atrás da central
eléctrica, ficou instalada, a máquina de gelo.
E uma noite, já na fase experimental, veio ao Campo o director das Obras
Públicas de Cabo Verde.
- Só vendo eu acredito - dizia ele.
Parecia-lhe impossível que tivéssemos construído tal máquina de técnica tão
especializada e entre tantas carências que se faziam sentir na ilha.
Mas teve de acreditar. A máquina produzia gelo. Viu os desenhos e os cálculos de
Bento Gonçalves e felicitou-o.
Era frequente Bento Gonçalves ser conduzido à Cidade da Praia para ali realizar
qualquer trabalho que a falta de ferramentas no Campo não consentia de sempre
acompanhado por um guarda.
Dormiam no mesmo quarto da Pensão onde se hospedavam. Nem por um instante o
guarda abrandava a sua vigilância. Aliás, também o encarregado da oficina de
reparações de automóveis se deslocava por razöes semelhantes à Cidade da Praia.
Deu-se um outro caso em que o auxílio prestado por Bento Gonçalves foi muito
comentado.
Tinha Olegário Antunes recebido um telefonema do Banco Ultramarino da Praia.
Fora comprado no estrangeiro uma complicada porta de segredo para a nova casaforte. Fechava-se automaticamente e as chaves ficaram lá dentro esquecidas.
Não conseguiam abrir a casa-forte e o director do Banco via-se em grandes
dificuldades. Dinheiro,
203
letras, tudo lá estava guardado, mas sem que lhe pudesse tocar.
Olegário Antunes chamou Bento Gonçalves à secretaria para o consultar sobre a
situação em que se encontrava o Director do Banco Ultramarino.
Bento Gonçalves depois de o ouvir comentou com ironia:
- Eu não sou um arrombador de cofres e receio que mais tarde ainda venham a
acusar os comunistas de terem tentado um assalto ao Banco. Mas atendendo aos
trabalhadores que precisam de receber a sua féria, aos pequenos comerciantes
certamente em apuros...
E concordou em ir à Cidade da Praia para tentar abrir aquela complicadíssima
porta de segredo.
Seguiu imediatamente na camioneta do Campo.
Já muita gente o esperava. Observou a porta, e na oficina das Obras Públicas
procurou um broquim eléctrico e mais algumas ferramentas. Depois, perante a
surpresa dos que assistiam, tudo se limitou a um pequeno furo na porta. Fez
vários movimentos, várias tentativas com um arame que introduziu no orifício, o
volante moveu-se e a porta abriu-se.
O director do Banco Ultramarino oscilava entre a admiração por Bento Gonçalves e
a desilusão por aquela porta em que gastara tanto dinheiro para afinal se abrir
com um furo e um arame.
Mas o trabalho mais ambicioso que projectávamos era a construção de um barco em
ferro, com motor a gasolina. O motor de automóvel teria de ser adaptado. Seria
demasiado rotativo. O cavername estava já construido. Destinava-se a ser
utilizado em serviço de cabotagem entre o Tarrafal e a Cidade da Praia, para
transporte de mercadorias de abastecimento ao Campo e, secretamente, para uma
outra viagem que nos levaria para bem longe do Tarrafal.
204
Uns meses antes de se iniciar a construção do barco houve um acontecimento que
nos lançou em alvoroço. Entre nós foram escolhidos dez que deveriam ir à vila do
Tarrafal para um trabalho de descarga. Fomos e encontrámos um excelente veleiro
com motor auxiliar. Trazia mercadorias paro armazém do Campo.
Quando soubemos que aquela viagem se iria repetir, porque as estradas de acesso
à Cidade da Praia ficavam interrompidas com o tempo das chuvas, preparámo-nos
para nova fuga. Foi escolhida a equipa que deveria fazer a próxima descarga,
mas com o objectivo de se apoderar do barco.
Tinhamos já preparado, por meios Clandestinos, um salvo-conduto, caso no nosso
caminho encontrássemos algum navio aliado em patrulha por aquela área.
Mas o veleiro não voltou. Lançámo-nos então à construção de um barco, que nunca
ficaria concluído porque, entretanto...
Uma manhã, Bento Gonçalves entrou na oficina muito macilento, curvado. Trazia a
gola do casaco levantada.
Aproximou-se da banca de trabalho e
- Tens frio?
Olhou-nos e disse com ar de quem pedisse desculpa:
- Acho que estou com elas.
Era a frase habitual entre nós quando o paludismo nos atacava.
Com ele trabalhavam o Manuel Rodrigues da Silva, o Russell, o Herminio, o
Coimbra. Pediram-lhe que se fosse deitar, que se tratasse. Não quis. Dava-lhe
grande alegria o trabalho. Muitas vezes víamos o seu sorriso de satisfação,
ouvíamos o seu cantarolar alegre quando a peça lhe ia saindo a
seu gosto.
205
Fixou no torno o que ia limar com a lima murça e começou. O ferro rangia ao
passar da lima e a limalha caía. Mas aquela cor de limão acentuava-se. A febre
subia. Pousou a lima na bancada e disse:
- Parece-me que tenho de ir para a cama.
Naquele momento não ficámos muito em cuidado. Bento Gonçalves era de saúde
robusta e já tinha passado por muitos ataques de paludismo.
Ainda na véspera tomara banho na praia. Para o conseguir lá seguira numa brigada
que fora deitar ao mar a carne de um boi abatido e que estava doente. E lá
andara à beira da água, por causa dos tubarões, sorridente, muito magro, quase
ruivo e
cheio de sardas. Não parecia estar doente.
Ficámos na oficina e íamos trabalhando. De quando em quando entrava um camarada
aproveitando um momento em que o guarda, no seu giro, voltava as costas. Não era
permitido. Iludindo a vigilância lá nos íamos visitando.
Mas naquela manhã entrou o Joaquim Amaro que nos gritou a má nova:
- O Bento está com uma biliosa! Corremos à caserna. Bento Gonçalves estava já a
ser levado para a enfermaria. E com aquele seu ar meio despreocupado, meio
sorridente, disse-nos:
- Mais um, camarada! Preparem outra mesa! E, na verdade, tudo parecia que
teríamos de fazer mais um caixão. As notícias que começaram a vir da enfermaria
eram desalentadoras. Estava
muito agitado, o pulso mal perceptível e nenhum trabalho dos rins. Não tardou a
cair em coma, com uma cor arroxeada e uma respiração difícil. Bento Gonçalves
adoecera com a forma mais grave da biliosa, aquela a que chamamos permiciosa e
para
a qual não havia esperança.
Na enfermaria, num arfar sempre mais difícil, a sua vida escoava-se rapidamente.
206
Durou três dias.
Cá fora, a todo o momento esperávamos que nos dessem a notícia da sua morte. A
11 de Setembro de 1942, Olegário Antunes, por quem Bento Gonçalves se fizera
respeitar, acompanhado pelo doutor Moreira, que temporariamente substituíra o
Tralheira, em gozo de férias, e demonstrou ser médico competente e humano,
verificou o óbito.
Tinha norrido um homem excepcional.
Dois anos antes, também em Setembro, morrera Mário Castelhano, outro valoroso
antifascista, dirigente anarco-sindicalista de prestígio. Conversavam muito os
dois, a sós, procurando soluções unitárias que estabelecessem uma acção comum
das duas organizações.
O Tarrafal causou a morte de homens como Bento Gonçalves, Alfredo Caldeira,
Mário Castelhano, António Guerra. Apenas estas quatro mortes - e houve muitas
outras - já justificariam aos olhos do salazarismo a criação do Campo.
Em volta da casa mortuária nos encontrávamos em pequenos grupos. Falávamos em
voz baixa. A morte de Bento Gonçalves era uma grande perda para nós.
- Mais um que mataram! - dizíamos.
Tocou para o rancho, nós não comemos. Soava-nos tão triste aquele bater da louça
de alumínio em cima das mesas de madeira, de que não tardariamos em tirar a
madeira!
Tocou a recolher, mas não dormimos. Na casa mortuária vestiam Bento Gonçalves.
Com dificuldade lhe encontrámos uma camisa. Tudo dava dinheiro recebido dos
trabalhos que fazia para fora ia inteiramente para o colectivo. Era assim no
Campo. Quanto se recebia, fosse dinheiro, medicamentos, comida ou roupas; tudo
207
se confiava ao colectivo, que o distribuía conforme as necessidades.
No Campo, iluminou-se a carpintaria. Um grupo de camaradas encaminhou-se para o
refeitório e escolheu uma mesa. E, na noite, começámos a ouvir as primeiras
marteladas para a desconjuntar. Ressoavam por todo o Campo, repercutiam em nós.
Já distinguíamos todos aqueles sons. Não tardávamos em ouvir os rangidos das
serras cortando tábuas, depois novamente o martelar, mas dos pregos, ora mais
apressado, ora mais lento. E por fim o silêncio. Estava feito o caixão.
Na caserna não dormíamos. Havia o lampejo de un fósforo a acender um cigarro, o
choro abafado de um de nós a recordar gestos ou palavras da vida de Bento
Gonçalves, ouviam-se palavras que a revolta, no silêncio, transformava em
gritos:
- Miseráveis! Assassinos!
Durante toda a noite, de hora a hora, vinha o guarda abrir as portas das
casernas para os diferentes turnos de vela ao corpo de Bento Gonçalves.
Foi uma noite serena e quente. Entravam borboletas e voavam em volta da lâmpada
da casa mortuária. De quando em quando ouvíamos os brados das sentinelas, que se
sobrepunham ao som distante do motor da central eléctrica.
Tocou à alvorada.
Os últimos turnos eram mais breves e neles participavam mais camaradas. Para que
chegasse a vez a todos. O funeral tinha de ser pouco depois do amanhecer. Com
aquele clima a decomposição era mais rápida.
Tocou para a formatura. Formámos em duas filas, uma em frente da outra ao longo
do corredor que dá do Posto de Socorros ao portão do Campo.
Chegou a camioneta com panejamentos pretos.
Ela nos trazia ao campo, ela nos levava ao cemitério quando morríamos.
208
Na casa mortuária fechava-se o caixão, e os camaradas mais íntimos
transportavam-no até à camioneta, enquanto o chefe dos guardas se sentava ao
lado do condutor. Subiam para acompanhar o corpo dez camaradas que tínhamos
escolhido, um
de cada caserna.
Perfilávamo-nos nas duas alas que formáramos, os chapéus caíam nas mãos que
desciam, quando o caixão saía e era colocado na carrinha.
Começava o desfile.
Sempre assim era quando um camarada morria. A camioneta arrancava e rodava
lentamente e, à medida que avançava, íamos desfazendo as alas e caminhando
atrás.
Assim seguíamos até ao portão do Campo. A carrinha ficava então oculta por nós,
para só se verem os dez camaradas de pé, rodeando o caixão.
Abria-se o portão e a camioneta seguia, depois de uns instantes de paragem em
cima da passarela sobre a vala. Era a última despedida.
Ali ficávamos imóveis, todos nós, magros, esverdeados pelo paludismo, na nossa
farda de caqui amarelo, com a mesma expressão de revolta por mais um camarada
que o Tarrafal matara.
Arrancava a camioneta e rodava então veloz até ao cemitério da Achala, onde não
havia registo, nem toque de sineta, nem flores, nem palavras, mas apenas os dois
coveiros cabo-verdianos, à beira do coval aberto no talhão que nos estava
destinado.
Caía a terra sobre o caixão e nós cerrávamos o punho na últina saudação ao
camarada morto e para ele e para nós murmurávamos:
- A luta continuará, camarada!
209
O ABÓBORA
Olegário Antunes, segundo se disse, deixou uma grande dívida ao comércio que
abastecia o Campo. Os directores sucediam-se. Estavam dois anos e voltavam à
Metrópole, onde os esperavam os louvores pelos bons serviços prestados.
Foi substituído pelo capitão Filipe de Barros. Chegou em Janeiro de 1943.
Pesado, com aquele ar bonacheirão dos gordos, lento no andar, sempre fardado,
cavalo-marinho entalado no sovaco, fez-nos o seu discurso de tomada de posse,
mastigando
e remastigando frases que lhe saíam difíceis e embrulhadas.
- Não sou um algoz, mas também não esperem ver em mim uma pomba.
Foi o que nos repetiu muitas vezes. E não tardámos a ver quanto era de natureza
brutal, agindo muito ao vento dos impulsos e do que lhe diziam.
Quando vinha ao Campo, logo lhe colocávamos muitas das nossas reclamações,
ligadas aos castigos, à devolução de livros, à alimentação, e ou nos respondia
com uma negativa rude ou nos dizia:
- Hei-de ver isso.
Raramente nos dava um sim. E se acedia aos nossos pedidos, bem podia acontecer
voltar atrás e dizer-nos não ter dito o que antes afirmara. Fazia-nos lembrar o
Manuel dos Arames, na maneira
211
como mudava de opiniões e de atitudes de um dia para outro.
Manhoso, reservado, sempre em desconfiança, sempre a julgar-se vítima de
enganos, continuava a perseguir-nos, e se não o fazia como nos tempos mais duros
era por o fascismo já não oferecer promessas de impunidade. Na frente leste, a
máquina de guerra nazi conhecia a derrota da batalha de Estalinegrado.
Mas alguma coisa o fascismo ainda permitia ao capitão Filipe de Barros; a
possibilidade de roubar muito durante aqueles dois anos de comissão de serviço.
O rancho piorou. A alimentação passou a ser o feijão quinino já bem nosso
conhecido, mas agora muito mais frequente. E aquele feijão miudinho, tipo feijão
frade, muito amargo, assim como vinha nas travessas, assim o despejávamos na
barrica dos restos. O peixe e a carne foram muito reduzidos. O rancho atravessou
muitas fases segundo as diferentes direcções do Campo. Nunca foi bom, mas com o
capitão Filipe de Barros atingiu o seu nível mais baixo.
Dedicou-se o novo director a uma pequena horta, situada muito perto do poço de
captação de água do mar, e tentou a cultura da batata-doce, da abóbora, de
couves e de alguns outros vegetais cultivados em Portugal. Foi bem sucedido. A
mão-de- -obra era barata, e nós não tardámos em ver o arroz
de carne substituído pelo de couve e de outros produtos da horta. Tão habitual
passou a ser a sopa e o arroz de abóbora que já nos referíamos ao director como
o Abóbora.
O regime alimentar, com o capitão Filipe de Barros, passou a ser: pelas seis,
café e pão; ao almoço, arroz de couves e uma batata-doce cozida, ao jantar, sopa
ou arroz de abóbora ou de batata-doce e carne salgada de porco ou albacora.
212
Enriquecia o director. No Campo comíamos abóbora e batata-doce, mas das contas
enviadas! Para Lisboa figuravam os gastos de muitas galinhas e vitelas.
O rancho minguava tanto quanto o saco azul inchava. O número de reses abatidas,
em quilos de carne, era inferior às quantidades consumidas. Nos mapas enviados,
chegaram a figurar dois mil quilos de carne gastos no rancho, quando na conta
corrente do Campo era contabilizada a compra de seis vitelas, com um peso total
de mil quilos. Tinhamos comido uma tonelada de carne que não existia.
Os roubos do Abóbora foram descobertos, mas como apresentou duzentos contos que
lhe tinham aparecido a mais no cofre sem saber bem como, entenderam em Lisboa
"que a sua honra ficou salva".
Havia muita carne nas contas do Campo, mas faltava no rancho, e quando uma rês
era abatida podia acontecer ter de ser lançada à água aos tubarões, sem que
tivéssemos outra em troca. Aliás a melhor carne sempre dá para os guardas.
Abateu-se uma vaca que estava tuberculosa. Ao passar pelas trazeiras da cozinha,
o director foi; abordado pelo nosso camarada Manuel Amado dos Santos, que era o
magarefe e queria saber se viria outra.
- E agora, senhor director?
- Agora, mija na mão e deita fora! E foi-se sem outra resposta.
Era uma atitude habitual para fugir a embaraços. A Comissão do Campo procurava
reclamar contra o abuso da abóbora, mas o director, para evitar aqueles
encontros incómodos, não aparecia. Quase não era visto na secretaria. Andava
pelas proximidades, ia à vila do Tarrafal ou ficava em
casa com raparigas naturais da ilha, onde a mi213
séria e a fome as forçava à prostituição. Organizava grandes orgias, que
terminavam em bebedeira com os guardas mais sabujos, para irem depois dormir às
cubatas das cabo-verdianas.
Em Cabo Verde, aquele ano de 1943 foi trágico. Foi ano de seca e morreram de
fome milhares de pessoas. Não se via uma folha verde, tudo estava torrado pelo
calor. Do Campo víamos morrer burros e bois e sobre eles logo caíam jagudis,
milhafres e corvos, que começavam a devorá-los, por vezes ainda vivos.
Crianças entre os sete e os dez anos esperavam à porta do Campo, e quando nos
viam sair com a barrica dos restos corriam e com as mãos tiravam as sobras,
comiam como animais, com a sofreguidão de uma fome de dias.
Foi por esse tempo que deu à praia um cachalote, precisamente onde íamos
despejar os latões das latrinas. Gente de todos os lados da ilha, homens e
mulheres, velhos e crianças, chegavam com facas e machados e, na rebentação das
vagas, retalhavam, esquartejavam o animal morto e consigo
levavam grandes nacos de carne.
Dias e dias, sangue e gordura flutuaram no vaivém das marés, enchendo a praia, à
tona da água, sendo chamariz para pássaros e peixes, que a iam limpando. Mas
também lá tinham estado os tubarões, e um camarada ao encher o latão de água viu
o guarda tirar a arma do coldre. Ouviu gritos, correu para a praia. O guarda
fazia fogo. Foi já da areia que, na transparência das águas, viu um tubarão que
por ali nadava, precisamente onde momentos antes despejara os latões.
A fome na ilha levava muitos pais a venderem as filhas, por vezes apenas com
doze anos, a comerciantes da vila, e eles próprios as levavam às casas dos
compradores. Vendiam-nas a duzentos e cinquenta escudos.
214
A quarta tentativa de fuga que se deu no Campo veio demonstrar que o Capitão
Filipe de Barros era tão brutal como qualquer dos directores anteriores.
Cinco presos, entre eles o Tomás Rato, conseguiram sair do Campo. Foram poucos
os dias de liberdade. Iam sendo capturados. Tomás Rato durante uma semana andou
pela ilha, caminhou muitos quilómetros pelas serras, sempre seguido de longe por
um observador a soldo do Campo. E quando esfarrapado, a cair de cansaço, de fome
e de sede, o apanharam, fizeram-no seguir para o Campo onde logo deu entrada na
frigideira a pão e água, por muitos e muitos dias.
Todos os fugitivos foram espancados com a mesma brutalidade nossa conhecida dos
tempos do Manuel dos Reis e do João da Silva.
Ainda que os tempos fossem outros, a ferocidade dos carcereiros manifestava-se
de quando em quando. O camarada Francisco do Nascimento Gomes, um dos que
participou na fuga, foi uma vítima do capitão Filipe de Barros. Veio a morrer
com
uma biliosa em fins de 1943, depois de dois meses de castigo na frigideira. Foi
espancado pelos guardas, que primeiro lhe perguntaram onde tinha os furúnculos
de que sofria, para precisamente nesses pontos o ferirem com os cassetetes.
Depois daqueles sessenta dias levaram-no para a enfermaria
completamente esgotado e já com o paludismo que o levaria à biliosa e à morte.
Contudo o fascismo recuava. A Wehrmacht desagregava-se na frente leste e o
fascismo português já não tinha ilusões. Também o capitão Filipe de Barros as
não tinha. Queria roubar o máximo, gozar quanto podia antes que tudo se
desmoronasse.
Os guardas, depois da Batalha de Estalinegrado, tratavam-nos
com menos dureza. Alguns procuravam agradar-nos transmitindo-nos notícias
215
da guerra, escutadas pela rádio. E faziam-no com ares de cumplicidade, como se
sempre tivessem estado do nosso lado.
Embora menos duro, o trabalho continuava na horta, na capinagem, e criara-se
mesmo uma nova brigada para abater árvores e preparar um terreno onde o director
pretendia plantar milho.
Perderam-se árvores numa ilha onde a vegetação era tão pobre e sem que o milho
vingasse.
Mas o director assim o queria para nos alimentar com mais batata-doce e abóbora
e fazer mais dinheiro para levar terminada a comissão de serviço.
Podia já não ter tempo. A história mostrava-se favorável à Democracia.
Os dias que vivíamos tornavam-se para nós menos opressivos. A esperança de
libertação já não era vaga, ganhava contorno e volume. As nossas festas no final
de cada ano eram sempre mais alegres. Montávamos espectáculos teatrais e na
encenação das peças corríamos às oficinas de sapataria, alfaiataria e
carpintaria. Mas nem sempre. Só o pudemos fazer naquele tempo em que a repressão
foi menos dura.
O rancho era detestável, apenas os recursos da Caixa de Solidariedade nos
permitiam reforçar um pouco a alimentação dos camaradas mais doentes.
Mas o que mais nos alegrava era saber que em Portugal e no estrangeiro eram cada
vez mais insistentes, as campanhas pela nossa libertação e se denunciava a
terrível história do Campo do Tarrafal.
Estas notícias provocavam o boato. Acreditávamos que o governo de Salazar seria
forçado a mandar-nos regressar sob prisão ou a promulgar uma ampla amnistia.
216
E o boato corria pelo Campo:
- Agora é que é certo! A ordem já está na secretaria! São oitenta e quatro os
que estão na lista para irem no próximo Guiné!
Um momento depois já havia quem tivesse lido a lista.
- Vão libertar quem já tenha acabado a pena e mais todos os "ferro-velhos".
Chamávamos ferro-velhos aos do grupo de presos por uso de velhas armas muito
antiquadas.
- Não! Aí há qualquer coisa mal. Vamos sair todos! Assim é que é! A guerra é uma
questão de dias!
E na verdade, pelo nosso grande mapa, naqueles finais de 1944, constantemente
tínhamos de alterar a posição dos alfinetes e do retrós vermelho, tão grandes
eram os avanços das forças aliadas.
Sim, a guerra já não duraria muito e seria a derrota do nazismo e das ditaduras
fascistas. Assim acreditávamos.
- O Tarrafal vai acabar! Nem pode ser de outra maneira! O Exército Vermelho só
pára em Berlim! E não vai demorar muito!
Mas o Guiné chegava, partia, e não levava ninguém.
- Ninguém foi porque não havia lugares. Estava já tudo ocupado com passageiros.
O caminhar da guerra trazia-nos novas esperanças.
- Vais ver como vamos passar o Natal a casa!
A justificar o boato, em Janeiro de 1944 foram postos em liberdade os dois
alemães, Willy e Fred, um judeu polaco, Israelvski, o italiano Bartolini, o
sargento-ajudante António Augusto Pires, da PIDE, mas também Cândido de
Oliveira, António Guerra e outros. O médico Ferreira da Costa seguira já num
outro navio.
217
- No próximo Guiné vamos todos! No Tarrafal não fica ninguém!
O boato insinuava-se facilmente. Os mais vulneráveis eram os presos
politicamente menos conscientes, e por vezes tornava-se doentio e perigoso.
Era então necessário lutar contra ele. Mas sempre que estava próxima a chegada
do Guiné, o boato espalhava-se e circulavam então as esperanças mais absurdas. E
os próprios carcereiros o lançavam tentando criar o desânimo, depois de noticias
que não se confirmavam.
Não nos desanimavam. Sentíamos, isso sim, a impaciência pela liberdade.
Desânimo, não! Nem naquele Novembro de 1942 o sentimos. Hitler estava então no
auge do seu poder. A Alemanha
ocupava ou dominava dezasseis países da Europa. A Wehrmacht estava ás portas de
Estalinegrado, de Leninegrado e do Cairo. A sua aviação bombardeava Londres, os
seus submarinos fechavam o Mediterrâneo aos navios aliados e estavam prestes a
cortar as ligações marítimas entre a Inglaterra e os Estados Unidos, a enfrentar
com dificuldade um Japão enfileirado no Eixo.
Mas em Outubro de 1942, apesar de tudo, já os acontecimentos indicavam que os
destinos da guerra iriam pender para as Forças Aliadas. Os alemães eram batidos
em El Alamein. Em Novembro, os americanos desembarcavam no Norte
de África. A 1 de Fevereiro de 1943, o Exército Vermelho vencia em Estalinegrado
e passou a empurrar os nazis para fora da terra soviética. Em Setembro,
americanos e ingleses expulsavam os alemães de África e foram-nos perseguindo
pela Sicília e pela Itália. Em Junho de 1944 dava-se o desembarque na Normandia
e pelo Natal já os ingleses e os americanos estavam no Reno.
Foi por meados de 1944 que conseguimos obter autorização para a assinatura de
jornais. As notí-
218
cias chegavam-nos agora com regularidade, embora atrasadas. Porém existiam
outras fontes de noticiário, e estas eram mais actuais. Ouvidos no Campo
escutavam a rádio e transmitiam-nos.
Tínhamos assinado vários jornais, e um dia chegaram-nos por fim às mãos, o
Século, o Diário de Noticias, o Primeiro de Janeiro, o Diário Popular.
Que dia grande! Que duro combate travado de que por fim obtínhamos a vitória!
Nós, que na nossa ânsia de notícias tínhamos sido leitores dos pedaços de jornal
usados nas latrinas dos guardas! Que alegria! Que ansiedade! Todos queríamos
ler. E estabelecemos que o refeitório seria a sala
de leitura.
Líamos tudo. Terminado um jornal pegávamos noutro que também líamos de ponta a
ponta. Lembramo-nos ainda de algumas como "depois das nove", "comentários",
"peço a palavra". Nem um artigo ficava sem leitura, principalmente se estivesse
relacionado com a guerra.
Quando o jornal nos caía nas mãos liamos em voo os grandes títulos: "A frota
aérea que protegeu as tropas de invasão, "Guerra nos cinco continentes", "Na
Normandia, o inimigo tentou reforçar os testas de ponte; mas não se realizou
qualquer novo desembarque. Era um comunicado do
Quartel-General Alemão. "Comunicado do Grande Quartel-General Russo: ao norte e
noroeste de Jassy repelimos novos ataques inimigos com grandes massas de
infantaria e de tanques", "Colónia intensamente bombardeada".
E naquela ânsia de ler esbarrávamos de quando em quando em frases que eram como
que tropeções na nossa familiaridade com jornais havia tanto tempo interrompida.
Líamos: "Os 3500 contos da Lotaria de Santo António" ou "O Crime da Meia Noite"
folhetim de...
219
- Não interessa! - dizíamos nós com impaciência:
"Continuam bem as operações, segundo os planos estabelecidos e os horários
previstos".
- Interessa!
E mergulhávamos na leitura e acompanhávamos ansiosos os avanços dos Aliados pela
Normandia.
Não nos cansávamos de ver as fotografias de aviões em formação de combate, de
soldados páraquedistas a pintarem-se de negro, a camuflarem-se com a noite, de
oficiais que acertavam os relógios para e "Hora H".
Nem nos fatigavam os mapas tracejados, com grandes setas apontando as direcções
das ofensivas, as linhas marcando as frentes de batalha, que percorriamos com a
unha do indicador, avaliando distâncias, o que faltava percorrer a ferro e fogo
para esmagar o nazismo que tanta morte e destruição lançara por toda a Europa.
Tínham-nos chegado os jornais de 22 de Junho. Não descansávamos. Era preciso ler
tudo. Doíam-nos os olhos, mas sorríamos felizes uns para os outros: os jornais
passavam de mão em mão.
O avanço dos Aliados continuava. A leste avançava o Exército Vermelho, que em
Abril de 1945, no Elba, iria encontrar as primeiras patrulhas americanas. E a 30
de Abril, já com Berlim ocupado pelas tropas soviéticas, Hitler suicidar-se-ia.
O nosso Natal de 1944 foi alegre. A vitória estava próxima:
- É o último Natal que aqui passamos! - diziam os mais optimístas.
Nos carcereiros pesava o desalento. Filipe de Barros, com os bolsos cheios,
terminava a sua comissão de serviço com louvores.
220
ÚLTIMOS ANOS
Numa manhã de Janeiro, pelas seis horas, os chefes de caserna foram chamados ao
portão para lhes ser comunicado que o novo director ia passar revista ao Campo.
Devíamos portanto ter as camas feitas, tudo muito arrumado, sendo mesmo
obrigatório vestir a roupa em melhores condições.
Era o que sempre acontecia quando um novo director chegava, e, uma hora depois,
já as casernas tinham perdido aquele aspecto de armazém de ferro-velho. Toda
aquela incrível variedade de objectos que iamos acumulando, porque nos eram
úteis, se escondera por baixo das camas, onde também os lençóis sujos e
esfarrapados estavam ocultos pelas mantas ou o que delas sobrevivia. Só o nosso
vestuário não era possível esconder.
Quando o capitão David Prates da Silva, homem alto e forte, entrou acompanhado
pelos guardas e pelo médico, logo parou junto do primeiro casaco esfarrapado.
- O senhor não tem outro casaco?
- Tenho, sim, senhor director.
- Porque não o vestiu?
- Ainda está mais roto que este.
- Mais roto ainda? Há quanto tempo lho deram?
- Há dois anos e meio, senhor director.
221
Voltou-se o capitão Prates da Silva para o chefe dos guardas.
- Não há um período de duração para as roupas que se entregam aos reclusos?
- Saiba Vossa Excelência que há, senhor director.
- E qual a duração calculada para um casaco de cotim?
- Oito meses, senhor director.
A visita não decorria como anteriormente era habitual. O capitão Prates da Silva
fazia perguntas, interrogava o chefe dos guardas, queria saber as razões de
todas as deficiências que observava.
- Mas não há mantas na Colónia?
- Não há, senhor director.
Mas não há porquê?
E o chefe dos guardas gaguejava explicações, tinha gestos vagos.
A impressão que o capitão Prates da Silva nos causou foi favorável. O tempo
confirmou a nossa opinião. Foi um director humano, tal como antes o fora José
Júlio da Silva, e durante nove anos se manteve dirigindo o Campo, até 1954,
quando foi
encerrado.
Foi encerrado como Colónia Penal. O fascismo de modo algum queria confessar
agora que se tratava de um campo de concentração. Porém houve um tempo em que
nas cartas enviadas aos nossos familiares escrevíamos "Campo de Concentração
da ilha de Santiago, em Cabo Verde". Para nós isto tinha alguma importância. Era
uma forma de fazermos confessar - uma vez que o aceitavam não se tratar de uma
colónia penal, mas sim de um campo de concentração. A PIDE ao consentir visava
um fim repressivo, espalhava o terror que os campos de concentração traziam em
si, ao estabelecer-se analogia com os da Alemanha nazi. Permitiu-o enquanto o
fascismo vencia pela Europa.
222
Quando as derrotas na frente leste abalaram as esperanças salazaristas na
vitória do nazismo, então nas nossas cartas impunha-se a designação de colónia
penal.
Em Janeiro de 1945 era já evidente que a guerra não iria durar mais que alguns
meses. Terminou a 8 de Maio, com a rendição incondicional da Alemanha.
Sentimo-nos participantes naquela tão grande vitória, tão carregada de
consequências históricas. Era também nossa, pois no Tarrafal tínhamos travado
batalha contra o fascismo e venceramos. E sabermos como o povo português se
manifestara
no Dia da Vitória comovia-nos até às lágrimas.
O salazarismo tentou então mascarar-se com humanidade na pessoa do capitão
Prates da Silva. Três camaradas regressaram ao Continente para que tivessem a
devida assistência médica. O rancho melhorou. A água era-nos fornecida em
melhores condições. Líamos livros e jornais sem receio de buscas. O trabalho
duro foi posto de parte e fazía-mos apenas aquilo que nos era necessário. O que
aliás se impunha dado o estado de saúde geral.
Mas o que foi inteiramente novo foi ser-nos permitido ouvir a rádio. Só as
emissoras nacionais, com guarda sempre presente, vigiando o camarada por nós
nomeado. Ouvir postos estrangeiros era proibido e teria como consequência sernos tirada a regalia. Instalarmos um aparelho nosso não era
consentido, e a solução foi colocar-se o aparelho na casa da guarda, sobre o
talude. Todas as tardes, sentados ou de pé, à entrada do Campo, escutávamos a
Emissora Nacional, mas tão limitada pela Censura que preferíamos ouvir os
noticiários transmitidos pelo Rádio Clube de Moçambique.
A 8 de Outubro de 1945 formou-se o Movimento de Unidade Democrática. Para nós
era arrebatador
223
saber que continuava bem viva a luta contra o regime salazarista.
Salazar tinha montado a sua resposta a uma Europa nova. Prometera eleições tão
livres como na livre Inglaterra. Porém a Emissora Nacional não estava aberta às
vozes da Oposição, e nós, no Campo, ouvíamos António Ferro e Júlio Botelho
Moniz e as mesmas afirmações fascistas de que Portugal é nosso e de que ninguém
o arrancaria ao seu domínio nem a votos nem a tiros. E ouvimos ainda, nós,
prisioneiros do Tarrafal, o que nos deixou boquiabertos de espanto: em Portugal
não existiam presos políticos.
Por meados de 1945, dias depois da chegada do navio da carreira, saiu da
secretaria um guarda com uma lista. Bateu as pancadas no carril para a formatura
e começou a fazer a chamada. E aqueles que chamava saíam da forma e faziam uma
segunda formatura junto de um dos pavilhões à entrada do Campo.
Éramos uns quarenta e seguiríamos sob prisão para Portugal no primeiro navio que
aportasse a Santiago.
O capitão Prates da Silva apareceu para nos felicitar.
- Será bem melhor do que viver no Campo.
Em Portugal, certamente as condições prisionais seriam melhores, mas todos nós
continuávamos a esperar que em breve teríamos de sair em liberdade.
Assim aconteceu para a grande maioria da população prisional do Campo. Em
Outubro, Salazar viu-se forçado a decretar uma amnistia. A situação interna, à
beira de eleições, e a situação política externa, depois de uma guerra vitoriosa
para as democracias europeias, forçavam o ditador a, não querer que o vissem
como uma sobrevivência ao que acabara a 8 de Maio de 1945.
224
E mais uma vez houve toque para formatura e discurso do director. Eramos cento e
dez os abrangidos pela amnistia, incluindo os quarenta da lista anterior que
esperavam pelo Guiné.
- A partir deste momento - dizia-nos Prates da Silva - podiamos sair do Campo em
liberdade. Mas teríamos de nos manter à nossa custa até embarcarmos para Lisboa.
Estava próxima a liberdade e contudo não nos alegrava tanto aquele momento como
das muitas vezes em que o imaginávamos. Sempre tínhamos pensado que iríamos
todos. O fascismo português resistia. Camaradas ficavam.
O Tarrafal não cedia facilmente. Mesmo os que, já estavam amnistiados não podiam
abandonar o Campo. Quase todos nós continuámos detidos, pois não tínhamos a
possibilidade de nos sustentarmos. E assim continuámos até 25 de Janeiro de
1946.
Que madrugada! Iamos passando pela secretaria. Entregavam-nos o
dinheiro que ali tínhamos depositado, revistavam as malas, que também não tinham
resistido a tantos anos. Da roupa com que ali entrámos pouco restava, e a
solidariedade mais uma vez se manifestou. Os que ficavam cediam o que das suas
coisas ainda se salvara.
- Leva esta camisa.
- E para ti?
- Aqui acabava por se estragar.
A solidariedade era isto. Aceitávamos.
- Mando-te outra de lá.
Erguia-se o punho em mensagem de firmeza e confiança entre os que ficavam e os
que iam continuar a luta, entre os que partiam e os que no Campo iriam continuar
tão firmes quanto o tinham sido até ali.
Chegou o momento da partida, aquele doloroso instante dos abraços de despedida,
das lágrimas que se contrariam, que fungávamos e engolíamos
225
com raiva, das vozes que a comoção apertava na garganta apesar de toda a força
que fazíamos para que se soltassem sonoras e límpidas. Mas não conseguíamos.
- Vai ver a minha gente.
- Logo que chegue.
E o abraço desfazia-se quase sem nos olharmos, um tanto envergonhados pelas
lágrimas que queríamos esconder de olhos tão marejados como os nossos.
Íamos saindo do Campo.
- Até breve!
- Até breve! - respondiam os camaradas junto
do portão vendo-nos partir.
Em sucessivas viagens a camioneta foi-nos transportando até à vila.
Era muito cedo, e a gente cabo-verdiana que nos via em liberdade alegrava-se por
nós. Por ali andárnos muitas horas, livres, sem guardas armados.
Ali tínhamos desembarcado havia muitos anos, ali iríamos embarcar para a viagem
de regresso. Fomos à praia, sentámo-nos junto dos coqueiros à beira-mar, com os
olhos correndo pelo oceano que nos era familiar depois de todos aqueles anos.
Já o sol descia para a ilha do Fogo quando o Guiné fundeou ao largo. Uma lancha
ia-nos levando para bordo. Da amurada, passageiros assistiam ao nosso embarque.
O Guiné largava e ficámos ainda no convés a ver o recorte da ilha, o monte da
Graciosa... Aquela hora, no Campo.. E todos sabíamos o que estariam fazendo os
camaradas que tinham ficado.
Viajávamos em terceira classe. Mas não Esmeraldo Pais Prata, que também seguia
para Portugal, terminada a sua comissão de serviço. E com os passageiros com os
quais logo estabelecemos relações nos apressámos em dizer-lhes como
226
era o Tarrafal, quem era o Tralheira e como exercia clínica.
Foi geral o repúdio dos passageiros. Até ao fim da viagem ninguém lhe desejou o
convívio.
A 1 de Fevereiro, pelo nascer do Sol, já todos nós estávamos no convés. Ainda
distante, o casario
pelas encostas de Lisboa reflectia os tons avermelhados da alvorada.
Ao cais de Alcântara onde embarcámos viera muita gente. E não eram só os nossos
familiares. Apesar da repressão policial o povo veio saudar-nos.
Lembramo-nos de uma operária, que arquejando por ter corrido, receando já não
nos encontrar, furava pela multidão e perguntando:
- O camarada veio do Tarrafal?
E quando acertava, abraçava-nos, sorria.
- Trago-lhes as saudações dos operários daquela fábrica além!
E novamente se lançava para outro remoinho de gente onde calculava ver
movimentos de abraços em torno de alguém que regressara. E ouvíamos a sua voz:
- O camarada veio do Tarrafal?
Que alegria! Que alegria aquela mulher nos trouxe! A melhor que poderíamos
esperar!
O Tarrafal continuava. O fascismo em Portugal não fora derrubado. Tremera a 8 de
Maio com as grandes manifestações populares pela vitória dos Aliados. Salazar
definia Portugal como uma democracia orgânica. Formara-se o Movimento de Unidade
Denocrática, mas a Oposição, sem possibilidades de concorrer às urnas,
abstivera-se nas eleições legislativas.
Foi depois das eleições que recebemos cartas, livros, alimentos, remédios vindos
de Cesina Bermudas, Maria Lamas, António de Macedo, Mário
227
Cal Brandão e outros militantes do MUD. Não podíamos esquecer a alegria que nos
causou a sua assistência e camaradagem antifascista.
Em 1946 deu-se a Revolta da Mealhada, Henrique Galvão denunciou na Assembleia
Nacional que em Angola o trabalho assumia para a população angolana a forma de
escravatura. A 10 de Abril de 1947, uma dezena de oficiais de alta patente do
Exército e da Marinha eram presos. Na base aérea de Sintra eram sabotados
aviões. Foram demitidos professores da Universidade. Em Lisboa, os estudantes
manifestavam-se contra o fascismo.
Os operários dos estaleiros navais entravam em greve. A Comissão Central do
Movimento de Unidade Democrática era presa e, em 1949, a Oposição numa frente
unida, apresentava Norton de Matos como candidato à Presidência da República.
Mas mais uma vez a Oposição desistia à boca das urnas por falta de garantias
indispensáveis a eleições livres.
A 4 de Abril Portugal aderia à Organização do Tratado do Atlântico Norte, e
Salazar sabia estar a salvo num mundo onde se travava a guerra-fria.
O Partido Comunista Português continuava a ser o primeiro objectivo da repressão
fascista, e para o Tarrafal foram enviados vários operários das construções
navais que participaram nas greves de 1947. Ficaram separados dos outros presos
políticos, que lhes prestaram toda a solidariedade
possível. Também Guilherme da Costa Carvalho para lá teve de partir, e mais
tarde, em 1951, pela segunda vez, Francisco Miguel.
No Campo, éramos agora bem poucos. Prates da Silva foi portador de uma longa
exposição dirigida a Cavaleiro Ferreira; ministro da Justiça e o criador das
"medidas de segurança", pelas quais um preso, sem ser condenado a prisão
perpétua,
228
pena que não existia na legislação portuguesa, podia passar toda a vida
encarcerado se o governo fascista continuasse a reconhecer-lhe "perigosidade".
Neste documento era solicitada uma redução de quatro anos no nosso tempo de
pena, uma vez
que tendo tomado parte no Movimento de 8 de Setembro tínhamos sido condenados a
prisão maior, e não a degredo. Porém, a resposta do ministro foi um "arquivese", o que fez regressar ao Campo o capitão Prates da Silva, desiludido com
aquele "que fazia o favor de ser seu amigo".
A vida no Campo era bem menos difícil e pais de Guilherme da Costa Carvalho
vieram visitar o filho e foi-lhes permitido tirar fotografias e falar conosco.
De regresso a Portugal quase tiveram de percorrer o país para pessoalmente darem
notícias de todos nós aos nossos familiares.
Íamos saindo em liberdade. Mas, por vezes, a ordem de libertação trazia-nos
novas dificuldades.
Assim aconteceu com o nosso camarada José Viegas, operário litógrafo, condenado
a doze anos de prisão por ter participado no 18 de Janeiro e preso havia
dezassete anos.
Em Dezembro de 1949 chamaram-no à secretaria, onde o subdirector - Prates da
Silva estava de férias - lhe disse:
- Acabo de receber ordem para o pôr em liberdade. Mas a passagem não lhe é paga
e eu também não o posso fazer.
O orçamento do Campo não previa tais casos. Se quisesse partir teria de ser por
sua conta. Entretanto passar-lhe-ia uma ressalva prisional para que pudesse
circular livremente pelas ilhas do arquipélago.
Depois de dezassete anos de prisão era liber tado. Mas como servir-se da
liberdade? Como ficar em Cabo Verde, onde ninguém o conhecia, sem dinheiro, com
a saúde abalada pelo paludismo? Só
229
encontrou uma solução: foi pedir ao subdirector que o autorizasse a continuar
preso, junto de nós, até que a sua família lhe mandasse o dinheiro necessário
para a viagem.
O pedido foi satisfeito, mas sem direito ao rancho. No orçamento do Campo também
não estavam previstas tais situações.
Dos pais de Guilherme da Costa Carvalho, que ainda se encontravam em Cabo Verde,
e de nós veio o auxílio necessário.
Faltava a roupa. Aquela que trouxera durante todos aqueles anos fora comida
pelas baratas, pelos grilos e traças na arrecadação do Campo. Mas também esta
dificuldade se resolveu. O camarada Josué Romão era da mesma estatura e cedeulhe um casaco de fazenda que se aguentara e, com a camisa, as calças e as botas
cardadas da farda do Campo,
embarcou pelo Natal de 1949, acompanhado pelos pais de Guilherme da Costa
Carvalho.
Em Lisboa, depois das formalidades alfandegárias e sanitárias, acabou por
almoçar com Cândido de Oliveira e Heliodoro Caldeira, irmão de Alfredo Caldeira,
que morrera no Tarrafal. Encontravam-se na gare esperando o desembarque do pai
de Guilherme da Costa Carvalho.
Almoçaram num hotel, onde o vestuário do nosso camarada despertou muita
curiosidade. Não tardou que empregados e pessoas que ali almoçavam os rodeassem
e fizessem perguntas sobre o Tarrafal.
Entre elas estava uma senhora que era a telefonista do hotel e lhe perguntou:
- Eu só queria saber como está meu pai. Há tantos anos que nada sei dele!
E soube que o pai fora o Albino de Carvalho. Republicano, antifascista, exilarase em Espanha, onde, quando rebentou a Guerra Civil, se bateu contra os
franquistas. De regresso a Portugal, fora
230
preso e enviado para o Tarrafal onde morrera a 22 de Outubro de 1941, com
cinquenta e seis anos.
- Sim, minha senhora, conheci muito bem seu pai. Estava comigo no Tarrafal...
- E já, não está?
O nosso camarada não sabia que dizer.
- Não a avisaram?
Ninguém a tinha avisado de coisa alguma, e ela insistia em saber.
- Morreu a 22 de Outubro de 1941. Com uma biliosa.
Ficou imóvel, a olhá-lo como que atordoada, e a seguir afastou-se, quase a
correr, com os ombros sacudidos pelos soluços.
Foi triste o almoço. Mas quantos assistiram avaliaram bem ao vivo o que era o
fascismo.
Íamos saindo em liberdade. Em 1952, no Campo, já eramos apenas vinte e dois
presos.
A libertação continuava a ser difícil, criavam-se dificuldades.
Já por finais de Setembro foram libertados Joaquim Ribeiro, Josué Romão, Marques
Figueiredo, Joaquim Dias e João da Silva Campelo. Mas só vinte e quatro horas
antes do Ana Mafalda aportar à Cidade da Praia os avisaram da hora certa do
embarque. A direcção do Campo negou-se a transportá-los; que esperassem um mês
até à chegada do próximo navio.
Mas quem, depois de dezasseis anos no Tarrafal, queria esperar mais trinta dias?
Da vila do Tarrafal à vila de Santa Catarina eram quarenta quilómetros a subir e
descer por montes e vales, sem estradas e sempre por maus caminhos. De Santa
Catarina à Cidade da Praia havia estrada e carreira diária de camioneta.
Decidiram formar uma brigada, contrataram um guia e lá seguiram, dispostos a
percorrer aqueles quarenta quilómetros em doze horas. Nem imaginavam
231
as dificuldades que iam ter e mesmo o perigo a que se arriscavam.
Cometeram o erro de querer fazer o caminho a cavalo. Mas não encontraram selas e
tiveram de os montar em osso. Dois quilómetros andados e preferiram ir a pé, mas
embaraçados agora a puxar os cavalos pela arreata em vertentes da serra,
escorregadias das chuvadas de Setembro e onde os cascos dos animais resvalavam
constantenente, mais do que as botas cardadas. Quando o terreno era mais íngreme
aguentavam com o dorso as cabeças dos cavalos, e cada escorregadela era um
sobressalto, o perigo de se despenharem por aquelas encostas rochosas.
Na frente, seguiam os quatro rapazes cabo-verdianos, que levavam as malas à
cabeça, mas corriam e trepavam por vertentes e ladeiras com uma ligeireza que
invejavam.
Para Joaquim Dias, muito envelhecido por todos aqueles anos de Tarrafal e que
apesar da má alimentação engordara muito, aquela caminhada estava para além das
suas forças. Por fim já não conseguia dar mais um passo.
- Eu não arranco daqui. Sigam vocês e deixem-me ficar. Não posso mais!
Ninguém no Campo abandonaria um camarada. Com a roupa das malas improvisou-se
uma albarda e o Joaquim Dias lá seguiu.
Foram doze horas duras, mas chegaram à vila de Santa Catarina. A camioneta de
carreira levou-os à Cidade da Praia a tempo de embarcarem no Ana Mafalda.
Em Junho de 1953 foram transferidos para Peniche os marinheiros que ainda se
encontravam no Tarrafal. No Campo ficou apenas Francisco Miguel.
232
Tinha voltado ao Tarrafal no inicio de 1951. Ia castigado com um mês de cela
disciplinar e acompanhado com esta recomendação do director de Peniche: é homem
de mau carácter e com tendência para estragar a fazenda nacional. Era esta
a forma como se exprimia o uso dado por Francisco Miguel a dois lençóis e uma
manta, transformados em sacos onde meter a terra cavada para abrir galeria pór
onde fugir. A fuga era certamente uma prova do seu mau carácter.
Era a segunda vez que Francisco Miguel era enviado para o Tarrafal. De Junho de
1940 a Janeiro de 1946, encontravam-se então no Campo uns duzentos presos.
Daquela segunda vez seríamos uns vinte.
Havia muito mais silêncio. Os carcereiros não faziam a vida tão dura.
Estudávamos, fazíamos pequenas estatuetas de chifre, e nisto era mestre o
camarada Casquinha. Tão cheios de vida eram os seus papagaios e cegonhas que os
guardas nos pediam que os fizéssemos para eles. Não fizemos. Eram ofertas para
as nossas famílias. Eram objectos de adorno, mas na pequena base de madeira a
que as fixávamos, numa cavidade bem dissimulada, seguiam escritos nossos, longas
cartas. Assim seguiu em letra minúscula um relatório de Francisco Miguel
destinado ao Partido Comunista Português.
Depois de dactilografado transformou-se em vinte
e duas páginas cerradas, a um espaço.
Íamos assim quebrando o nosso isolamento apesar de todos os esforços dos
carcereiros.
Mas também nós acabámos Por ser transferidos, nós os marinheiros do 8 de
Setembro, os "sócios fundadores" do Tarrafal, como muitas vezes dizíamos em
gracejo.
Francisco Miguel ficou.
A noite tinha a companhia de dois camaradas anarquistas. Pratas e José
Alexandre, que trabalha233
vam fora, do campo e recolhiam pelo fim da tarde. Quando em Dezembro de 1953
partiram para Portugal, para o Forte de Peniche, Francisco Miguel passou a ser o
único preso do Campo.
Pela madrugada de 26 de Janeiro de 1954, precisamente três anos depois da sua
segunda chegada ao Campo, seguiu no Alfredo da Silva, com rumo a Lisboa.
O Campo de Concentração do Tarrafal estava encerrado.
OS VENCEDORES DO CAMPO
Todo o militante antifascista sabe que a prisão é um risco a correr. E ao ser
preso terá de se preparar para interrogatórios brutais, para espancamentos, para
a tortura, uma vez que para todas as polícias ao serviço dos regimes fascistas o
milihante preso representa uma potencial fonte de informações. Tudo tentará para
lhas arrancar. Se o consegue, obtém nomes, moradas, muitos dados que lhes
permitisse novas prisões. É evidente que se todo o militante antifascista não
resistisse aos interrogatórios em bem pouco tempo o partido a que pertencesse
estaria totalmente encarcerado.
E esta é a razão por que um partido na ilegalidade tem de adoptar normas
conspirativas e impõe como dever a cada um dos seus quadros e filiados que nada
declare à polícia, mesmo quando submetido a tortura, mesmo quando a sua vida
esteja ameaçada. Porque um partido em luta contra o fascismo, causa de miséria e
morte para milhões de seres humanos, pretende alcançar finalidades que estão bem
acima de quaisquer considerações de interesse pessoal. E todo o filiado num
partido deste tipo o sabe e já o sabia ao ter a grandeza de enfileirar num
combate que não pode deixar de ser perigoso.
Mas na prisão não deixa o militante antifascista de continuar a sofrer os
ataques dos carcereiros.
235
Nunca abandonarão as tentativas para o destruir para que não volte a constituir
perigo para quem o aprisionou. E é preciso que resista.
Para resistir terá de lutar para se manter tanto quanto possível saudável e
vigoroso, apesar de quanto o carcereiro possa fazer para o enfraquecer.
Terá pois de se bater por melhores condições de vida prisional. E só o poderá
fazer solidariamente com todos os outros militantes antifascistas que com ele
estejam encarcerados. Travam-se então as lutas com a direcção da prisão tão
conhecidas de quem conheceu as cadeias políticas, por um rancho melhor; por mais
tempo de recreio ao ar livre, pela prática do desporto, por uma assistência
médica mais eficiente.
Para resistir não pode o militante antifascista perder a visão da luta que o seu
partido trava e onde continua a participar embora preso. Porque tem de fazer
frente ao fascismo, no seu aspecto mais duro, o das prisões, e nunca lhe será
tão necessária a convicção de quem é, de soldado revolucionário no combate por
uma sociedade nova.
E assim é necessário não se alhear da batalha onde se batem os seus camaradas em
liberdade. Tem de quebrar o isolamento que os carcereiros querem fechar à, sua
volta, tem de conhecer o que se passa no seu país e no mundo, onde outros
camaradas
se batem no mesmo combate, onde outros já triunfaram e têm agora pela frente as
grandes tarefas das sociedades progressistas.
O militante antifascista deve pois ler atentamente os jornais, os livros, fazer
análises dos acontecimentos políticos nacionais e internacionais, estudá-los com
os seus companheiros de prisão.
Mas deve fazer mais o militante antifascista. Deve aproveitar o tempo de prisão
para se tornar mais sabedor, mais apto politicamente. Porque assim como o total
de uma soma será tanto mais
236
elevado quanto maiores forem os valores das suas parcelas, assim também um
partido será tanto mais forte quanto maior for o valor dos seus militantes.
E eis porque os presos políticos organizavam cursos, estudavam línguas,
aprofundavam os conhecimentos do seu próprio idioma para desenvolverem as suas
capacidades de expressão. Quando saíam em liberdade eram melhores militantes,
mais sabedores, mais experientes.
Eis o que procurávamos fazer no Campo de Concentração do Tarrafal.
Existiam no Campo três grupos políticos. De início, para o Tarrafal; seguiam,
com raras excepções, apenas os comunistas e os anarquistas. Entre 1935 e 1940, a
polícia política vibrou profundos golpes nas organizações revolucionárias, que
não
tinham tido tempo de se recompor das sérias baixas depois do 18 de Janeiro de
1934.
O Partido Comunista Português, em Novembro de 1935, com as prisões de Bento
Gonçalves, José de Sousa e Júlio Fagaça sofreu um rude golpe que repercutiu na
actividade partidária dos anos seguintes. Porém o Partido já tinha em si a
vitalidade necessária para superar a crise através de novos
quadros. Em Abril de 1936 constituiu-se um Comité Central de que faziam parte
Alberto Araújo, Manuel Rodrigues da Silva, Alvaro Cunhal e Pires Jorge, entre
outros. Nesses anos destacam-se, na actividade partidária Francisco Miguel, José
Gregório, Manuel Guedes, Augusto Valdez, Matoso; Ludgero Pinto Basto, Sacavém e
outros. O Partido Comunista Português continuava a sua luta.
O mesmo não aconteceu com os anarco-sindicalistas. As prisões de dirigentes
como, Arnaldo Simões Januário, Mário Castelhano, Correia Pires, e do
sindicalista Carlos Ferreira, enfraquecera muito o movimento a que estavam
ligados.
237
Deflagrou a Segunda Guerra Mundial, e Salazar, depois de ter contribuído para o
qual para o triunfo de Franco muito concorreu, auxiliava agora a Alemanha nazi
com a sua neutralidade colaborante. Tinha esperança na vitória do fascismo, na
derrocada da URSS, ferida pela vaga de ferro da Wehrmacht.
E este período que vai do final da Guerra Civil Espanhola até à queda militar da
França e de muitos países da Europa, em que a vitória do fascismo parecia
inevitável, foi o tempo mais feroz vivido no Tarrafal,
Mas o Partido Comunista Português caminhava para grande partido nacional; nós,
no Campo, resistíamos e a esperança fascista na morte da luta revolucionária em
Portugal desvanecia-se.
Foi por esta altura que novos presos de tendência republicana foram igualmente
enviados para o Tarrafal. E também gente de uso ilegal de contrabando e mesmo de
delito comum.
Muitos eram analfabetos e alguns caracterizavam-se pelo seu mau carácter.
Nunca compreendemos as razões por que os internaram em os Aqueles homens assim o deduzimos - que politicamente não representavam qualquer perigo para o
salazarismo, representavam para a Polícia uma tentativa de desorganizar a nossa
vida no Campo. Além disso facilmente os carcereiros os transformavam em
instrumentos ao seu serviço.
A nossa atitude para com eles foi a da solidariedade. Ensinámos a ler os
analfabetos e íamos explicando as razões
por que ali estávamos. Alguns foram atraídos para o nosso lado em liberdade eram
homens diferentes, politicamente conscientes e mais cultos. Com outros nada foi
possível, e foram de facto manobrados contra nós.
238
Com a queda da França, quantos se encontravam no Campo de Concentração de
Argèles acordaram uma manhã sem guarda a vigiá-los. Eram milhares. Ali os tinham
encerrado depois de atravessarem os Pirenéus, vindos de Espanha, onde tinham
combatido os franquistas.
Os portugueses que combateram contra o fascismo dirigiram-se ao Consulado de
Portugal e obtiveram salvo-condutos. O regime era bem perigoso em Portugal, não
regressar não o era menos. Atravessar a Espanha até à fronteira portuguesa era a
possibilidade de mau encontro com um pelotão de fuzilamento, mas ficar e cair
nas mãos dos nazis
era igualmente a morta ou bem pior.
Os que chegaram à fronteira portuguesa foram presos e enviados para o Tarrafal.
E assim, entre nós, tivemos também os antifascistas que se bateram em Espanha.
Entre eles, Mário e Manuel Baptista Reis, dois irmãos, o Mário, como capitão de
artilharia, o Manuel, como capitão médico, o Miguel Ramos, que com Mário Reis
frequentara cursos intensivos de artilharia e como ele comandara baterias em
várias frentes de batalha, o Alípio, que fora tanquista, o Castro, que na cidade
de Valência fora feito prisioneiro e se salvara do pelotão de fuzilamento por
conseguir convencer os fascistas de que era espanhol, além de outros.
Por eles, pelos seus relatos, pelas palestras feitas; muito soubemos da Guerra
Civil de Espanha.
Naqueles anos de guerra, o número dos que ali se encontravam no Campo chegou a
ir além de duzentos e quarenta. Mais de metade eram comunistas ou simpatizantes.
A seguir vinham os anarquistas. Muito menos numerosos eram aqueles a quem
chamávamos republicanos.
Profissionalmente, quase todos éramos operários. Os intelectuais eram bem
poucos. A média
239
das idades oscilava entre os vinte e cinco e os trinta anos.
Por 1942, chegou nova leva de democratas. Entre eles, Cândido de Oliveira,
jornalista de grande mérito, considerado o maior técnico português de futebol,
homem de ideias progressistas, firme e generoso, o ex-capitão Correia, o médico
Ferreira
da Costa e outros.
Com excepção de Ferreira da Costa, todos foram alojados fora do Campo por ordem
da Polícia, que não estava interessada no seu contacto connosco. E ainda bem,
pois os nossos processos para furar o isolamento melhoraram muito com o auxílio
de Cândido de Oliveira. Por seu intermédio, enfrentando grandes riscos,
recebíamos um noticiário sempre actualizado.
Era esta a constituição do Campo, e a par da organização imposta pelos
carcereiros existia uma outra, a nossa.
Cada grupo político - comunista, anarquista, republicano - acordou em ser
necessária uma organização entre todos os presos do Campo; que os representasse
e colocasse à direcção os problemas por nós vividos e a que fosse necessário dar
solução.
Cada barraca elegia um chefe de grupo. Os chefes de grupo eleitos designavam
entre si a Comissão do Campo, composta por cinco elementos. As reuniões ao nível
de barraca eram frequentes, ali se discutiam todos os nossos problemas, que,
pelos chefes de grupo, eram levados à Comissão do Campo.
Sabiam os carcereiros desta organização, e embora tentassem surpreender e
impedir as nossas reuniões, viam-se forçados a receber os nossos representantes.
Não era pequena esta vitória, só alcançada graças à nossa unidade e à nossa
consciência política.
240
A solidariedade era a nossa resistência às intenções criminosas dos carcereiros.
Assim; defendemos muitos camaradas de saúde abalada pelo paludismo, pela
alimentação do Campo, pelo trabalho forçado, pela frigideira.
A nossa solidariedade estava organizada em comunas. Quanto chegava dos nossos
familiares, fossem alimentos ou dinheiro, era entregue na comuna; que o
distribuia ou reforçava a alimentação daqueles cuja saúde mais risco corria de
fraquejar. E aqui é de salientar a actividade infatigável dos camaradas José
Neves Amado, João Faria Borda e Luís da Cunha Taborda.
Quantas vezes nas cartas nos perguntavam:
- Gostaste do doce que te mandei?
Respondiamos:
- Gostei. Estava muito bom.
Mas nem o tínhamos provado. Fora distribuído pelos camaradas mais fracos e
doentes.
Os carcereiros sabiam que nem só as nossas familias nos enviavam alimentos e
dinheiro. Sabiam existir uma solidariedade organizada como o Socorro Vermelho
Internacional (SVI). E assim nos tempos mais duros do Campo nunca os guardas
perdiam oportunidade para castigos colectivos, em que ficávamos impedidos de
receber quanto de Portugal nos enviavam.
Entre nós, só os comunistas e os anarquistas estavam organizados e dispunham de
comunas. Entre a dezena de republicanos não se tinham estabelecido as nossas
normas de solidariedade.
E compreendia-se que assim fosse. Eram os homens dos "putchs" militares
planeados, entre alguns civis e oficiais. Uniam-se para o derrubamento do
Governo, nem normas conspirativas. Aliciavam militares, faziam confidências a
amigos de inteira
241
confiança, mas tudo isto acabava por chegar aos ouvidos da polícia, que
pacientemente esperava o amadurecimento do fruto e, na devida altura, prendia os
conjurados.
Destes homens, os mais combativos foram enviados primeiro para Timor, Guiné,
Angola, São Nicolau, em Cabo Verde, e por fim para o Campo do Tarrafal.
Nunca a nossa solidariedade foi tão preciosa como durante aqueles dias
terríveis da Brigada Brava. Era nomeado um controlador do acampamento que tinha
por principal tarefa, por intermédio dos responsáveis de cada barraca, recompor
os
camaradas exaustos por aquele trabalho brutal com uma alimentação reforçada,
repouso, roupa limpa. Fazíamos quanto nos era possível para que resistissem
melhor ao trabalho do dia seguinte. E isto era tanto mais necessário quanto João
da Silva nos arrancara a possibilidade de sermos nós a indicar
aqueles que estavam em melhores condições de energia e de saúde para suportar os
trabalhos mais pesados. João da Silva, empenhado na nossa destruição, não queria
perder a oportunidade de ser ele a indicar para os trabalhos extenuantes aqueles
precisamente em que mais estava interessado em provocar o esgotamento. Quebrarnos a resistência física era via para também nos fazer fraquejar
como militantes, e os mais atingidos eram aqueles que tinham demonstrado ser
mais corajosos, mais aguerridos como dirigentes revolucionários.
Era uma guerra de crueldade, sem repouso, que nos moviam. Tínhamos de resistir,
manter a saúde do corpo e da mente.
E porque lutávamos pela nossa saúde nunca deixámos de colocar as nossas
reclamações à direcção do Campo para que o rancho fosse melhor, para que a
assistência médica fosse eficiente, para que pudéssemos praticar desporto...
242
Conseguíamos por vezes. Mas enfraquecidos devíamos primeiro ser observados pelo
nosso camarada médico Manuel Baptista dos Reis. Praticávamos voleibol,
basquetbol, futebol.
A prática de desporto no Campo teve altos e baixos. Quando pelo mundo a vitória
começou a fugir aos fascistas, os carcereiros autorizaram-nos a fazer desporto.
E tivemos um campo e equipamentos. Umas camisolas eram brancas; outras tingimolas de vermelho. Os desafios travavam-se entre civis e marinheiros.
Houve um desafio de futebol que ficou para sempre lembrado entre nós. Disputámos
um troféu. Era o Popee, o marujo dos desenhos animados, feito em madeira por
Armando de Carvalho e pintado por João Rodrigues, litógrafo. Devia ser oferecido
à mãe de Oliver Bártolo, como prova de amizade e de reconhecimento, pois nunca
em sua casa fora negado auxilio às mulheres, mães e filhas de antifascistas.
Devia ser o nosso camarada a levá-lo para que ele próprio o entregasse a sua
mãe.
Não o pôde fazer. Ao chegar a Lisboa soube da sua morte, um mês antes.
Foi um desairo renhido e nem brancos nem vermelhos arrancavam a vitória. Então,
Fernando Vicente recebeu a bola e numa grande jogada, sem defesa possível, fez o
golo do triunfo. E por entre as nossas vozes ouviu-se o grito de alegria do
camarada Oliver:
- O boneco é meu!
Quando a repressão era dura, e sempre a dureza coincidiu com aqueles anos de 38
a 40, quando o nazismo não parecia ter adversário que o pudesse bater e os
carcereiros queriam isolar os "ferros em brasa", como nos chamavam; isolar-nos
de tudo e de todos, reduzir-nos aos próprios pensamentos, amachucar-nos, então
tínhamos de recorrer ao jogo de berlinde:
243
Demonstrávamos aos guardas. que não nos venceriam, que nunca nos veriam
acabrunhados, que de nós não conseguiriam expulsar a alegria.
Berlindes não tínhamos, mas os nossos camaradas canteiros faziam-nos em pedra.
Escavávamos no chão as pequenas covas, formávamos equipas, discutíamos as
jogadas e exagerávamos um pouco a nossa animação para lhes fazer ver que não nos
tinham atingido privando-nos de livros; de papel, de quanto pudesse cultivar-nos
ou distrair-nos.
Os guardas afastavam-se. Sentiam-se sem argumentos. Nos regulamentos do Campo,
nas ordens do director não havia qualquer referência a berlindes: mas não todos,
um entendeu dever impedir-nos o jogo.
- Os senhores têm autorização para jogar?
- É preciso autorização para jogar o berlinde? - sim, senhor. Não podem jogar
sem autorização do senhor director.
Passámos a fazê-lo às escondidas, e quando o tal guarda se aproximava metiamos
os berlindes no bolso.
Na verdade eram os carcereiros que ficavam perturbados. Os seus golpes pareciam
resvalar em nós sem nos ferir.
Tínhamos imaginação, e o que nos retiravam, logo encontrávamos com que o
substituir.
Nem tudo nos podiam tirar. Era impossível. Como o pôr do Sol.
E ali ficávamos em contemplação. Um grupo de homens com as calças e as camisas
rasgadas, de tairocas de madeira, ar doentio do paludismo, de olhos no Sol, que
mergulhava lá para trás da ilha do Fogo.
Que cores extraordinárias as das nuvens! Havia tons que nunca tínhamos visto e
nos levavam a dis244
cussões em que vinha à baila Júlio Verne e o raio verde de que falou num dos
seus livros.
Mas, além daqueles belíssimos poentes, tínhamos outros recursos. Com que
entusiasmo plantávamos e víamos crescer os ips de manjericó! E como defendíamos
do vento uns adoendros por nós plantados dentro do Campo! com que alegria
olhávamos as poucas acácias rubras e as de bolinhas amarelas, a que chamávamos
arábicas por causa da resina, e de que cuidáramos desde a sementeira!
Também não nos podiam tirar o motivo de distracção que eram os animais do
Campo. Fizeram por vezes grandes batidas às aves e aos cães, mas sempre sem
resultado. A barrica dos restos era
um chamariz a atraí-los.
Era muito variada a fauna do Campo, principalmente em insectos e pássaros.
Pela manhã assistíamos ao render dos animais nocturnos. Voavam os morcegos e os
mochos para os seus sombris abrigos defendidos da luz do Sol, e regressavam os
corvos, os jagudis, os bicos-de-lacre e os milhafres.
Eram animais úteis; comiam os restos que a nossa higiene do Campo pudesse deixar
esquecidos; comiam ratos.
Os milháfres planavam lá no alto, sempre atentos. O doutor Manuel Baptista dos
Reis punha-lhes à prova a rapidez de voo. Juntava pedaços de gordura, restos de
comida que lançava para o ar servindo-se da colher como de catapulta. Vinham
então em voo picado, muito velozas, e com as garras apanhavam a comida no ar
para logo ganharem altura.
E de tal modo se habituaram aquele exercício que um dia um camarada, ao
atravessar o Campo com o prato de sopa numa mão e na outra um de arroz com
carne, para levar a um de nós que estava
245
doente e não podia ir ao refeitório, foi assaltado. De repente, qualquer coisa
passou veloz na sua frente, o prato fugiu-lhe da mão, mas não a carne das garras
do milhafre que lá do alto caíra e para o alto voltava.
De uma outra vez estávamos na cozinha a descascar batatas quando ouvimos um piar
de ave em perigo. Olhámos. Um milhafre voava ainda a baixa altura com um pinto
nas patas. Atirámos-lhe pedras, e ele largou a presa. Era um pinto de galinha do
mato, com alguns ferimentos ligeiros. Levámos a ave para uma das casernas,
lavámos-lhe as feridas e íamos apanhar gafanhotos e grilos para o irmos
alimentando. Em pouco tempo estava curado, mes não inteiramente, pois abanava
muito a cabeça.
Cresceu, afeiçoou-se a nós. Era a galinha maluca, como lhe chamávamos. Sempre
que nos via ir atrás de alguma barraca, onde sempre se encontravam muitos
gafanhotos e grilos, seguia-nos a bicar-nos os calcanhares para nos fazer
lembrar
que estava ali e queria comer.
As aves mais abundantes eram os corvos. Nunca abandonavam o Campo. Nos telhados
das barracas crocitavam sempre, esperando o momento do despejar dos restos do
rancho na barrica. Eram às dezenas.
Também os corvos entraram no nosso convívio. Certa vez um deles partiu uma asa.
Lá o curámos, o alimentámos, e ele foi-se deixando ficar seduzido com a nossa
companhia. Mas nem sempre se mostrava muito grato. Uma vez roubou o lápis a um
camarada. Vivíamos então os tempos duros do João da Silva e do Seixas, e quando
escrevíamos cartas tínhamos de devolver os lápis. Não as entregar era a
frigideira. Quando se apanhava sozinho no refeitório, a nossa sala de estudo,
podia mesmo causar246
-nos prejuízos. Os tinteiros entornavam=se, os cadernos voavam atirados pelas
suas bicadas, as folhas dos livros rasgavam-se. Depois, sabendo quanto nos iria
desagradar o que fizera, desaparecia e ia esconder-se em qualquer canto.
Os jagudis eram pássaros grandes, feios, pelados no pescoço, com uma plumagem
sem graça nem brilho, de um branco-acinzentado ou de um amarelo-escuro. Pesados,
eram lentos é banboleantes a caminhar, tal como os patos. Para vóarem; tinham
primeiro de correr, de dar pulos, primcipalmente quando o papo, cheio na barrica
das sobras;
lhes pesava. Eram porém aves úteis. Eram como uma brigada de limpeza da ilha, e
avia disposições camarárias proibindo que os matassem. Por vezes, os jagudis até
nos vinham comer às mãos.
Mas entre todas as aves os bicos-de-lacre, que conhecíamos pelos necas, eram as
nossas preferidas.
Saíamos do Campo e logo de ramo em ramo nos acompanhavam sempre com os seus
trinados, chamando-nos a atenção. Esperavam os grilos e as baratas. Levantávamos
a mão e aí vinham eles,
para logo a seguir levarem os insectos nos bicos e ficarem pelas ramadas com os
seus cantos a pedirem-nos mais.
Eram umas aves pequenas e bonitas, de plumagem vistosa. No arame onde ficavam
presos os mosquiteiros, mesmo por cima da cama do Abatino, logo que o Sol descia
para o oceano, ali vinham pousar, para dormir, dois bicos-de-lacre. Uma manhã, o
Abatino viu que um dos necas não levantava voo para o bem voado dia em busca da
sobrevivência. E às suas perguntas, "então que tens tu?"
"Conta-me lá" viu que o passarito continuava mono,
de olhos fechados, sem sinais de interesse pela vida.
Saltou da cama e, com o bico-de-lacre bem acon247
chegado na mão; levou-o à enfermaria para consulta médica.
Decidimo-nos por um clister, e com um conta-gotas procedeu-se ao tratamento.
Dali a momentos, muito mais aliviado, abriu os olhos, cantou e voou para as suas
caçadas de baratas e grilos.
Mas não nos podemos esquecer do Pascoal, um pardal do telhado, que bebia leite e
comia açúcar e nos pousava nas mãos para as guloseimas que lhe dávamos.
Também os insectos nos distraíam. Eram muitos e, alguns, estranhos. Como os
"fanfans", que lembravam formigas gigantes e construíam ninhos de lama, com
muitos alvéolos, onde metiam aranhiços, e aranhas para alimento das suas larvas.
Por toda
a parte faziam aqueles estranhos ninhos: atrás das prateleiras, debaixo das
camas e até dentro das; nossas botas. As borboletas eram lindíssimas, grandes,
pequenas, com asas de estranho recorte e belos desenhos coloridos.
As aranhas também não faltavam, havia-as grandes e pequenas, de formas e cores
bizarras.
Entre os animais do Campo havia um bode, o Jeremias. Tinha lá entrado ainda
cabrito, destinado a uma noite de Natal. Mas, fosse por falta de temperos, fosse
por qualquer outra razão, nunca o comemos, e de cabrito passou a bode e de bode
a Jeremias e a fazer-nos companhia. Tomava banho
conosco, comia do nosso rancho, ia dormir a sesta nas camas que lhe pareciam
mais confortáveis.
Mas verdadeiros amigos foram os muitos cães que vieram até nós durante todos
aqueles anos do Tarrafal. Na ilha, onde a fome era uma presença constante;
aquela barrica das sobras atraía-os de muito longe e por ali ficavam. Os seus
inimigos
eram, tal como para nós, os guardas do Campo. Muitos foram vítimas da afeição
que por nós mostravam.
248
Lembramo-nos do Mangonha, o primeiro a aparecer. Nosso amigo, ficou até o
notarem. Era um rafeiro grande, malhado de castanho e preto, novo ainda e muito
brincalhão. Quando tocava para a formatura vinha formar também. E lá estava na
frente esperando a ordem de marcha. Corria depois, mas nunca se afastava muito,
sempre atento, não fôssemos nós parar. Queria estar conosco, quer quando
trazíamos água do Chambão quer
quando trabalhávamos na pedreira.
Um dia, o Manuel Padeiro, o Mata-Cães, como passámos a chamar-lhe, e que sempre
nos dizia, para enxotarmos o cão porque... - punha a mão no coldre da pistola -,
apanhou o animal a seu jeito junto dos feixes de lenha à entrada do Campo.
Empunhou a arma e disparou. O Mangonha não morreu logo. Ganiu muito, arrastou-se
tentando chegar junto de nós, mas uma segunda bala matou-o.
Quando viu a nossa indignação, o Mata-Cães ficou branco de cera e correu para os
portões, onde se sentiu em segurança.
Lembramo-nos da Andorinha, que, por também se afeiçoar a nós, foi desterrada
para a outra ponta da ilha, a uns oitenta quilómetros. Dois dias depois
aparecia-nos, muito magra, ferida pelos espinhos da caminhada, mas contente por
voltar a ver-nos.
Com tanta alegria a recebemos!
Tivemos o Bob. Fora-nos oferecido pela mulher de um oficial. Iam voltar à
Metrópole e não o podiam levar, por causa das despesas da viagem.
Como sabia que o trataríamos bem, confiou-nos o Bob. Chorou ao despedir-se do
cão.
Era um bicho bonito, de pêlo comprido, às malhas pretas e brancas, muito vivo.
Mas não podia suportar os guardas. Mal via um capacete branco rosnava. Tínhamos
de estar muito atentos para evitar que se atirasse às canelas dos carcereiros.
249
Era precisamente o José Maria aquele que o Bob mais detestava. Rosnava, mostrava
os dentes, e com dificuldade o aguentávamos:
- Quieto, Bob! Quieto!
O José Maria ameaçava-o com a biqueira da bota, e mais o animal se enfurecia.
Suspeitava o guarda de que lhe aculávamos o cão; o que não era verdade, pois bom
trabalho tínhamos em o
segurar pela coleira.
- Não prendam o cão, não, que um dia lhes digo como é.
Uma tarde, um servente da Polícia apanhou o Bob e prendeu-o ao tronco de uma
purgueira. O José Maria queixou-se, o cão mordera-o numa perna, e o animal foi
levado do Campo.
Mas à tarde, no refeitório, o Bob apareceu-nos cheio de sangue e trazendo ainda
ao pescoço a corda com que o tinham levado.
O José Maria alvejara-o a tiro, mas não o conseguira matar. As balas resvalaram
nos ossos, uma delas saiu por entre as orelhas, a outra, extraímo-la nós do
pescoço.
Fomos escondê-lo. Arranjámos-lhe um caixote com palha e numa das casernas o
fomos tratando.
Tempo depois estava curado.
Mas, apesar de nos terem autorizado o cão, o Bob estava condenado. O José Maria
acabou por matá-lo. Contou-nos um cabo-verdiano que lhe ataram uma pedra ao
pescoço e o atiraram para o fundo da baía.
Chegámos a ter seis cães. Só um se salvou, mas porque raramente entrava no
Campo. Só quando a fome o apertava muito. Fizeram-lhe o cerco os guardas, mas o
animal soube fugir-lhes. De quando em quando víamos-lhe a cabeça lá no cimo do
talude.
De dia não ousava entrar no Campo, mas à noite vinha comer o que deixávamos
guardado para ele.
250
Também os cães estavam submetidos à mesma regra. Em tempo de repressão eram
perseguidos e abatidos pelos guardas. Quando os tempos se tornaram menos duros,
os animais voltaram a poder
alegrar muitos dos nossos momentos. Na verdade, era a nós que pretendiam
atingir.
Das oficinas, criadas para tirarem vantagem do nosso trabalho, também soubemos
retirar motivos para nossa satisfação. Eram muitos os objectos que íamos
construindo para nosso uso e alegria.
Muitos se perderam, e foi pena, pois formariam uma ampla colecção, digna de ser
exposta ou formar toda uma grande secção num museu do que foi a repressão
fascista em Portugal.
Fizemos caixas de costura com embutidos em marfim, com gravações a estilete e
pinturas a tinta-da-china, caixas de selos com gravações em baixo relevo ou
embutidos em alumínio e marfim, molduras trabalhadas, jogos de xadrez em forma
de
livro, com as pedras de madeira entalhada, escovas para o cabelo, pincéis para a
barba, canetas de tinta permanente, cigarreiras de tartaruga com dobradiças e
fechos de prata, malas para a roupa, estatuetas de osso .. Quantas coisas! E
sempre com o risco da frigideira se os guardas notassem.
Armando Martins de Carvalho e Rodrigo Ramalho construíam guitarras, violas,
bandolins.
Tentávamos construir nas oficinas quanto pudesse facilitar o nosso trabalho no
Campo. Fabricávamos velas de lona para as vagonetas, o que nos facilitaria o
trabalho de as empurrar quando carregadas de pedra. O vento soprava com força na
ilha. As velas foram talhadas, a primeira, por Joaquim Casquinha e José Neves
Anhado, e, a segunda, de modelo diferente, por Joaquim Faustino de Campos. As
velas foram na verdade úteis e deram pleno resultado.
251
E, para saltarmos aquela parede com que nos isolavam dos acontecimentos do
mundo, decidimo-nos a construir um aparelho de telefonia. Se o conseguíssemos,
poderíamos captar os postos emissores e ouvir todos os noticiários de guerra.
Mas aqui
não fomos felizes. Não era possível experimentar o aparelho sem que os
carcereiros o notassem. Era construído à base de bobinas e disjuntor, ligado a
auscultadores. Nunca ouvimos mais que ruídos.
Todo o preso, como homem e como militante antifascista, tem o dever de estudar.
Uma das nossas reclamações, apresentada pela Comissão do Campo, era o direito à
leitura e ao estudo. E, como nos negavam inteiramente este direito ou não nos
era satisfeito inteiramente, tínhamos de o conseguir pelos nossos meios,
iludindo a vigilância dos carcereiros.
O nosso contacto com os livros viveu dois períodos: clandestino e autorizado.
Quando nos tiraram os livros pela primeira vez, muitos escaparam à busca e
ficaram para sempre
em nosso poder, livros que eram necessários à nossa formação política: mas não
chegavam para todos nós e deles tirámos cópias, escondendo os originais entre a
palha dos colchões, no telhado das barracas ou enterrados na pequenina horta,
enfim, em toda a parte que pudesse constituir esconderijo seguro.
Porque, de quando em quando, entravam-nos os guardas pelas casernas:
- Todos os livros para a secretaria.
- É proibido escrever.
- Entreguem toda a tinta, todo o papel, todos os livros.
Alguns salvaram-se no último instante, como a gramática inglesa do camarada
Oliver Bártolo, que
252
durante uma busca ele conseguiu enfiar na manga de um casaco de caqui a secar no
estendal da roupa.
E contudo os livros voltavam a aparecer e também aparecia tinta e aparecia
papel.
Como?
Fabricámos lápis com carvão. Como tinta servíamo-nos do mercuriocromo da
enfermaria e do vieu-chène da carpintaria. De papel tínhamos ampla provisão,
obtida dos sacos do cimento, utilizado na construção dos pavilhões do Campo.
Cada saco
era formado por umas cinco camadas de papel encorporado. Foi este o papel para
os nossos livros. Neles trabalhávamos de noite.
Não tínhamos luz, mas improvisámos pequenos candeeiros de petróleo.
Aproveitávamos pequenos frascos vazios de medicamentos enviados pelos nossos
familiares. Furávamos a rolha, por onde passava a torcida; e colocávamos a
pequena tampa de aluminio de um tubo de comprimidos. Aplicada
a chaminé, feita com o tubo de vidro a que cortáramos o fundo, estava completo o
candeeiro. De petróleo possuíamos uma reserva, e lá o íamos obtendo.
A luz era fraca, mas mesmo assim podia ser avistada pelos guardas. Era preciso
usar de muitas precauções. Assim iamos copiando obras ou livros de estudo que
tinham centenas de páginas. Escolhíamos os de melhor caligrafia. Os aparos e
canetas eram de nosso fabrico.
Também traduzíamos do francês obras de matemática, de física e de outras
ciências. Era o material didáctico para as aulas.
Liamos, estudávamos em pequenos grupos, e mesmo enquanto caminhávamos íamos
discutindo e esclarecendo-nos mutuamente. E chegavam os guardas a seguirnos de
perto, para ouvirem quanto
dizíamos, ou iam pelas traseiras das barracas, tentando escutar as nossas
conversas.
253
Organizávamos o ensino. Os mais instruídos ensinavam quem menos soubesse. As
aulas chegavam a ser dadas cá fora, estando nós sentados no chão.
Quando se fez o barracão destinado ao refeitório, houve períodos em que nos foi
permitido utilizá-lo para os nossos estudos. Ali estudávamos e líamos entre o
jantar e o recolher. Mas também houve tempo em que nos esteve vedado.
Tínhamos aulas de matemática, de francês, de inglês, de economia política e de
outras matérias. Os comunistas ficavam ao fundo do refeitório, e ali chegavam a
juntar-se sessenta a setenta alunos. Também ali se reuniam os anarcosindicalistas. Ficavam ao centro os republicanos, menos numerosos, instalavam-se
à entrada.
E muitos que no Campo entraram como analfabetos saíam sabendo ler e escrever,
com conhecimentos de francês e inglês, e com uma formação política que lhes iria
permitir interpretar correctamente os acontecimentos nacionais e os do mundo.
Quantas vezes na pedreira, enquanto carregávamos pedra, fomos fazendo perguntas
uns aos outros sobre vocabulário francês ou inglês, ou conjugávamos verbos.
Decidíramos estudar oitenta vocábulos por dia.
E quando íamos à água ou de lá vínhamos aproveitámos o tempo a decorar palavras.
Mas que alegria quando começámos a ler os primeiros livros em francês e em
inglês!
Por fim conseguimos que os livros que nos tinham tirado nos fossem restituídos.
Eram setecentos, e construímos uma estante, que foi colocada no refeitório.
No refeitório funcionava uma verdadeira universidade popular, onde estudaram
camaradas que quase analfabetos à data da sua prisão, aprenderam o francês e o
inglês. Ali se formou um núcleo
254
que se dedicou a matemáticas superiores, um outro que se entregou ao estudo da
filosofia e da literatura, e outro ainda às ciências económicas e financeiras.
Um grupo de marinheiros aprofundou os conhecimentos náuticos e a construção de
instrumentos de navegação, e entre eles se notabilizou Oliver Bártolo, a quem
passámos a chamar, em gracejo, o Almirante.
Um dia, o governador de Cabo Verde, em visita ao Campo, entrou no refeitório,
passou os olhos pelas lombadas dos livras da nossa biblioteca e, ao ver A
Crítica da Razão Pura, a obra do idealismo transcendental do grande filósofo
alemão, comentou com surpresa e também com alguma ironia:
- Ah, lêem Kant!
Para os guardas que espreitavam as nossas aulas, aqueles símbolos matemáticos, o
X e o Y da Álgebra, a trigonometria, com as suas tangentes e co-tangentes,
secantes e co secantes, as rectas e planos da geometria a alvejarem a giz na
negrura
do quadro, só podiam ser os sinais com que disfarçávamos as nossas conjuras
revolucionárias. E iam queixar-se daquilo que a sua ignorância não lhes permitia
compreender.
E muitas vezes certos direetores, oficiais tarimbeiras, quase tão ignorantes
como eles, os apoiavam e nos dificultavam as aulas. Olegário Antunes, capitão
formado pela Escola do Exército, foi aquele que, no relativo ao estudo, mais
liberdade nos concedeu.
O nosso isolamento era quase completo. Ilha. Mar em volta. E contudo, lá longe,
trava-se uma grande batalha em que já tínhamos participado, a que para sempre
ficaríamos ligados, mas de que nada sabíamos.
As cartas não abriam brecha naquele paredão de silêncio feito à nossa volta. A
censura do Campo
255
borrava a tinta negra quanto pudesse dar-nos qualquer indicação do que se
passava em Portugal e no mundo. Depois, como por vezes contra a luz conseguíamos
ler uma ou outra palavra, passaram a usar a tesoura e mutilavam as cartas.
Desaparecia o que entendiam ter de ser cortado e também o
que estava escrito do outro lado da folha.
Jornais não entravam no Campo.
Tentávamos tirar conclusões pelo silêncio carrancudo ou pela alegria dos
guardas.
Era bem pouco: Mas o tempo passava e nós íamos imaginando processos que nos
trouxessem o conhecimento dos acontecimentos históricos pelo mundo. Pouco a
pouco fomos esburacando a muralha do nosso isolamento.
Por mais feroz e atento que seja o carcereiro fascista, não pode lutar contra a
imaginação do preso político. Bate-se por razões muito nobres, tem por ele o
entusiasmo, a dedicação, e não há risco que não corra pelo triunfo do combate em
que se bate.
A batalha de que o cativeiro nos afastara estava
a dar-se em terras de Espanha, iria passar à Europa, nela estávamos também
envolvidos e queríamos saber para que lado pendia a vitória e, se possível,
contribuir para a derrota das forças fascistas, pela fuga ou, se esta não fosse
possível, pela firmeza da nossa convicção, pois que abalava os carcereiros.
Se não permitiam que as notícias chegassem até nós, tínhamos de as obter contra
a vontade da direcção do Campo.
Havia guardas venais. A troco de dinheiro conseguíamos saber o que se passava.
Mas, sabendo nós também que a certeza das vilezas para connosco, de que eram
autores, trazia a muitos deles inquietações por um tempo que poderia estar
distante mas chegaria, e em que nos tornaríamos seus
256
acusadores e juízes, prometíamos-lhes a nossa compreensão futura. Deste modo
íamos conseguindo notícias.
Uma outra fonte de noticário era o soldado angolano, que também não se recusava
a uma peça de roupa ou a uns escudos. E de noite, rastejando, lá íamos até ao
arame farpado, junto do posto de uma sentinela, a comprar noticias do mundo.
Por vezes tudo isto falhava, mas não a nossa persistência, que não tardava em
encontrar outra forma.
Naquele tempo em que transportávamos água em latas, sempre íamos atentos a
papéis. O vento arrastava pedaços de jornal de que os guardas se serviam nas
suas retretes e deixava-os presos ao capim ou pela berma da estrada.
Enquanto enchíamos as latas ou no caminho do Campo para o poço do Chambão sempre
ölhávamos em volta. E quando avistávamos um pedaço de jornal:
- Arreia!
Pousávamos as latas para descansar as mãos, para nos revezarmos, e um de nós,
sem que o guarda o visse, apanhava o papel e logo o enfiava no bolso.
De regresso ao Campo, íamos impaçientes pela leitura. Por vezes eram de páginas
de anúncios e não valiam o risco corrido, mas, outros, compensavam-nos bem. Eram
então confiados aos camaradas dos serviços de informação, muitos com
excelente caligrafia, que tratavam de compilar o noticiário, que passava a
circular entre nós.
E, como aqueles pedaços de jornal apresentavam de modo bem evidente aquilo para
que eram usados, chamávamos ao nosso noticiário "Rádio Merda".
Era grande o risco. Saul Gonçalves sofreu as suas consequências. Andava na
brigada de jardi257
nagem fora do Campo com Manuel Alpedrinha e José Barata Júnior. Ora o camarada
Saul prestava solidariedade ao Daniel, que estava no porta-aviões, mas que
considerava bom homem, e sem qualquer auxílio da família. Daniel puxava o Pinto
no seu
transporte da águia, e os guardas viram-no a conversar com Saul. Imaginaram
haver ligação entre eles, servindo o Daniel de "correio".
Armaram ratoeira. Atiraram uma folha de jornal para a granja, junto de uma vala,
e ficaram de atalaia. Mas estava um dia de vento, o jornal foi levado para
longe, e logo os carcereiros se convenceram de que o Saul o tivesse apanhado.
Acareados, o Daniel negou, e Saul foi espancado a perder acordo de si. Todo o
corpo lhe ficou negro. Muito tempo esteve de cama e veio mais tarde a sofrer de
tuberculose.
A "Rádio Merda" tinha como fonte informativa o papel das latrinas dos guardas.
Às nossas não era fornecido. E esta era uma das nossas reclamações, e mais
insistente pela nossa finalidade oculta do que por aquela que apresentávamos.
Quando o conseguimos, foi grande o nosso contentamento e logo transmitimos que
se reunissem todos os recortes possíveis.
Mas, quando, certa vez, já tínhamos colado as folhas cortadas do jornal e íamos
enfim poder ler as notícias, embora atrasadas, entrou um guarda. Pediu-nos as
folhas e tirou-nos os nomes.
Foi uma tentativa que falhou e nos custou muitos dias de frigideira.
De quando em quando chegavam novos camaradas ao Campo. Durante dias saciávamos a
nossa fome de novidades. E até por noite alta se ouvia pelas barracas o nosso
murmurar.
Escutávamos, fazíamos perguntas, trocávamos de grupo nada perder. De
manhã, mal acordávamos, tínhamos novas interrogações a pôr ou íamos ouvir mais
258
uma vez o que na véspera nos dera mais prazer escutar.
A chegada ao Campo de camaradas que tinham combatido em Espanha permitiu-nos
saber em pormenor a luta heróica do povo espanhol contra o fascismo
internacional.
Houve palestras, o que aliás sempre acontecia quando novas levas de presos
chegávam. Depois, quando os amigos terminavam, era a nossa vez de fazer
perguntas. Enquanto não nos contassem tudo não havia descanso para os que tinham
chegado até nós.
Mas os recém-chegados, mal entravam no Campo, caiam dentro do paço de silêncio e
em breve estavam em tão grande ansiedade por notícias como nós.
Os nossos processos clandestinos eram o único recurso.
Cândido de Oliveira, que, por deteção da Polícia, ficou numa barraca fora do
Campo, com outros democratas, foi um ponto-chave na transmissão de notícias.
Todos os dias nos preparava minúsculos comunicados de guerra que mantinham o
Campo ao corrente do que se passava nas frentes de batalha, Cândido de Oliveira
e outros democratas estavam numa situação favorável para esta missão. Facilmente
comunicavam com a população cabo-verdiana e não tinham qualquer dificuldade em
saber o que se dizia nos noticiários da rádio. O problema era transmitir-nos
tódas estas informações.
Não era fácil. Havia vigilância. Os que entravam e saíam do Campo eram
revistados. Mas nunca os guardas poderiam evitar os processos que a nossa
imaginação criava.
Comunicávamos com uma letra minúscula, em papel muito bem enrolado. Os
"envelopes" eram
259
variados. Servíamo-nos, por exemplo, de um velho pedaço de madeira, antes
preparado na oficina de carpintaria, oco, habilmente tapado. Em caso de
emergência podíamos deixá-lo cair sem que se suspeitasse do seu conteúdo. Também
usávamos um livro de mortalhas. As notícias iam escritas nas folhas intermédias
e seguiam no bolso juntamente com a onça de tabaco. A manobra consistia em se
sair do Campo com um livro de mortalhas e voltar com outro e... noticias. Servia
também um cigarro esvaziado de tabaco no meio para dar lugar ao pequeno rolo de
papel com o noticiário.
Mas por vezes era preciso fazer entrar um jornal ou uma revista ou mesmo um
livro de teoria marxista, um frasco com medicamentos ou uma garrafa de petróleo
para os candeeiros do nosso fabrico, que iluminavam o nosso trabalho nocturno.
Era tarefa mais difícil. Tinha de estar à porta um guarda menos vigilante
para que a "encomenda" pudesse ficar ao nosso alcance.
Chegaram a entrar no Campo cargas bem volumosas, e nas nossas manobras havia
algo de contrabandistas. Tudo consistia em desviar no momento oportuno a atenção
de guardas ou aproveitar a presença de outros.
O contacto com estes guardas era controlado pelos camaradas mais responsáveis.
Eram assuntos que, como é evidente, não deviam ser do conhecimento de todos.
As notícias conseguidas eram, depois de analisadas pela direcção do Partido no
Campo, levadas ao conhecimento de todos nós, acompanhadas por comentários que
permitissem ensinamentos políticos.
Como as notícias circulavam entre nós nunca os carcereiros souberam. Nunca foi
apanhado um papel. Eram lidos dentro de livros; quando deita260
dos, por baixo dos mosquiteiros. Porém não era fácil toda esta manobra
clandestina
O trabalho com os guardas tinha de ser bem defendido. Os seus turnos eram de
duas horas, seguidas por quatro de folga. Se, por exemplo, entrava de serviço às
dez da noite só voltari aàs quatro da manhã. Era durante os turnos da noite que
estabelecíamos as ligações, por haver muito mais segurança.
Assim o guarda entrava de serviço, o camarada encarregado de estabelecer
contacto dirigia-se ao local combinado, para lhe entragar ou receber o que fosse
necessário, e isto sem que mais alguém o visse.
Um dos locais - não eram muitos os que ofereciam segurança - era a casa da
lenha, onde se serravam e rachavam troncos para os fogões da cozinha.
À hora combinada lá ia um de nós e, em completa escuridão, espereva que o guarda
amigo pudesse aproximar-se. Acontecia por vezes que as circunatâncias não eram
favoráveis e então muito tinha de esperar. Se não era possível naquele turno, o
guarda saía, e o camarada tinha de esperar mais quatro horas até que ele
regressasse, e isto sempre na escuridão, em silêncio, escondendo-se de quem de
ali se aproximasse.
Mas havia um outro processo. o camarada encarregado da tarefa ficava numa
caserna e junto de uma janela que dava para aquele corredor entre os pavilhões,
que is desembocar na entrada do Campo. Escondido com o mosquiteiro, esperava a
hora marcada. Não podia adormecer antes de o guarda passar, para imediatamente
lançar mão ao pacotinho com as notícias que lhe colocava ao canto da janela. mas
quantas vezes este camarada teve de esperar seis horas sem dormir, imóvel, em
261
silêncio, para que os outros camaradas não se apercebessem e estranhassem a
insónia.
Era difícil, mas tinha de ser feito. Era tarefa do Partido e considerada como
honrosa pela confiança que representava.
Assim circulavam clandestinamente os documentos escritos. Nunca perdíamos
oportunidade para obter mais notícias e, quando nos era possível entrar na
caserna dos guardas ou na residência do director para realizar qualquer
trabalho, toda a
nossa preocupação era descobrir jornais ou revistas, mesmo atrasados.
Emergíamos daquele poço de silêncio de muitas maneiras e por vezes recebíamos
directamente de Portugal, enviados pelo Partido Comunista Português e pelas
organizações antifascistas, noticiários e outros documentos. Em letra
pequeníssima, os relatórios entravam e saíam do Campo,
trazendo e levando informações.
Tudo isto nos era indispensável não só para nos manter o moral como para nos
orientarmos na nossa actividade política no Campo e reforçarmos a nossa
resistência contra as manobras dos carcereiros.
E, como as notícias chegavam com mais frequência devido ao aperfeiçoamento do
nosso aparelho clandestino, vimos que nos fazia falta um mapa da Europa onde
pudéssemos acompanhar o
andamento das campanhas contra a Alemanha nazi. Constituiu-se um grupo de
trabalho que começou por fazer um pantógrafo de madeira, com o qual foi possível
ampliar o mapa da Europa de um pequeno atlas que possuíamos. Durante um mês este
grupo de trabalho dedicou-se a desenhar o mapa, que, finalmente, foi afixado na
parede de uma das casernas.
Íamos agora acompanhando os avanços e os recuos das ofensivas e contraofensivas. E com que
262
mágoa víamos recuar o Exército Vermelho, que suportava quase toda a fúria e ódio
dos nazis.
Mas nunca deixámos de confiar na vitória da União Soviética.
Dizia-nos Bento Gonçalves:
- Camaradas, é agora que vamos ver qual é o aço mais duro, se o do Rur, se o dos
Urales.
E um dia chegou-nos a notícia de que centenas de milhares de fascistas estavam
cercados em Estalinegrado. O Exército Vermelho passara à ofensiva e só iria
parar em Berlim.
O nosso mapa passou a ter uma linha a retrós vermelho a marcar o avanço da
frente russa. Todos os dias os alfinetes eram espetados mais em frente, a
prender o retrós, que ia empurrando, apertando, encurralando os nazis.
Ao nosso entusiasmo correspondia agora o desalento dos guardas. Vinham procurarnos, tentavam desculpar-se.
- Eu estava desempregado...
- Pensava que isto fosse outra coisa.
- Enganaram-me.
- Nunca persegui ninguém...
Que diferença daqueles guardas que nos recusavam toda e qualquer notícia!
- Vocês lêem os jornais ao contrário!
Assim exprimiam o sabermos ler nas entrelinhas da imprensa fascista.
Mas como estavam diferentes os guardas que tínhamos conhecido quando da queda de
Barcelona, ou naqueles anos duríssimos de 38, 39 e 40, em que acompanhando as
vitórias nazis o terror campeava pelo Tarrafal com o Seixas e o João da Silva!
A partir de Estalinegrado e sempre que o Exército Vermelho conquistava centros
importantes, dias antes ainda tão longínquos e logo abandonados pelos nazis,
varridos pela arrancada dos soldados soviéticos, nós o festejávamos com os
cigarros fal263
cões que nos eram dados pela caixa de solidariedade.
- Há cigarros falcões? - perguntávamos sempre ansiosos por mais vitórias.
Como estavam diferentes os guardas! Bem nos lembrávamos de quanto nos diziam,
despeitados pela inferioridade sentida em relação a nós, mas certos de terem a
força pelo seu lado:
- Lá fora vocês podem saber mais e ser mais do que nós, mas aqui somos nós a
mandar!
Aquele paredão de isolamento foi caindo aos poucos, derrubado por nós. Um dia
conseguimos autorização para jornais diários. O material era agora abundante e
organizámos um grupo de trabalho de investigação económica.
Elaborámos um ficheiro das grandes empresas e das grandes famílias do
capitalismo português. Íamos registando todas as notícias económicas, sociais e
mundanas, e por fim dispúnhamos dos elementos para uma análise. E que conclusões
curiosas dali retirámos. Era o quadro de uma economia monopolista inteiramente
nas mãos de um número reduzido de grandes capitalistas.
Obtínhamos novos dados, e como eles se iam ajustando perfeitamente no quadro,
completando-o, tornando-o claro e evidente.
Este ficheiro saiu do Campo através do nosso aparelho clandestino. Veio a PIDE,
mais tarde, a apoderar-se dele e um jornal que então se referiu àquele estudo
comentava: "... e o mais grave é que todas as informações desse ficheiro estão
certas".
Não conseguimos construir um aparelho de telefonia para captar noticias. Mas já
terminada a guerra foi instalado no Campo um aparelho de rádio onde todos os
dias podíamos ouvir o noticiário.
264
O nazismo caíra e com ele também o isolamento a que no Tarrafal nos tinham
condenado.
Na nossa vida prisional o trabalho político era-nos essencial. Eramos
antifascistas e essa era a razão por que estávamos presos. Era tarefa
obrigatória para nós, que não abdicávamos como lutadores contra o fascismo nem
do combate com que pretendíamos dar-lhe fim.
O Tarrafal, como muitas outras prisões políticas, foi escola de quadros.
Os grupos de estudo eram orientados por camaradas politicamente mais experientes
e sabedores. E os resultados tornaram-se evidentes. As nossas provas consistiam
na redacção de trabalhos sobre acontecimentos revolucionários, que no
Campo comemorávamos: o aniversário da Comuna de Paris, as datas de nascimento de
Marx e Engels, a figura de Ténine, o 7 de Novembro de 1917, o 1 de Maio, o 31 de
Janeiro, o 5 de Outubro...
O camarada orientador sugeria os dados que devíamos recolher, como relacioná-los
com a história portuguesa. A princípio parecia-nos impossível. Os conhecimentos
eram poucos, conhecíamos mal a nossa própria língua... Mas as aulas de
português, de francês, de inglês, de matemática, de ciências naturais, de
história, de economia política iam-nos tornando mais aptos. Por fim já
dominávamos o nosso nervosismo, a sensação de incapacidade para dar forma a uma
ideia a expor.
Os guardas tinham conhecimento desta actividade e tudo tentavam para nos
surpreender em flagrante. Não o conseguiam. Não tinham forma de vencer a nossa
determinação e vigilância, a nossa solidariedade e disciplina. Aproximavam-se,
rondavam para ver se ouviam. Estávamos prepa265
rados para tais manobras e imediatamente o tema de conversa passava a ser outro.
Que desapontamento! Por vezes não conseguiam esconder o seu despeito.
Esta preparação de quadros teve períodos mais fáceis e outros bem mais difíceis,
mas nunca foi interrompida. E ainda hoje nos recordamos com admiração dos nossos
professores, de Bento Gonçalves, de Alberto Araújo, de Alfredo Caldeira, de
Manuel Rodrigues da Silva, de Militão Bessa Ribeiro, de Pedro Soares, de Júlio
Fogaça, de Francisco Miguel, de Manuel Alpedrinha, nosso orientador em
filosofia. E de outros.
De quando em quando fazíamos teatro. Miguel Russell era o ensaiador. Aníbal dos
Santos Barata criava o guarda-roupa, os cenários, e com os poucos meios de que
dispunha fazia pequenas maravilhas.
Nunca os carcereiros do Campo de Concentração do Tarrafal nos venceram. Houve
rachados, é certo, mas foram bem poucos. A grande maioria resistiu às medidas
regeneradoras do João da
Silva.
É muito grande a força de um homem que se bate por razões justas que o
engrandecem e não quer abdicar do respeito por si próprio. No Tarrafal éramos
muitos os que assim pensavam e sentiam, e mútuo era o amparo e mútuas as
palavras de encorajamento.
Cercaram-nos de arame farpado, de mar, de muitas muralhas de isolamento, e todas
elas derrubámos. Mas a que construímos com a nossa firmeza, a nossa convicção
num futuro que iria abater os fascistas, essa não a demoliram os carcereiros.
Os vencedores fomos nós. Nós que pelo 1º de Maio, arriscando-nos aos
espancamentos e à frigi266
deira, de costas para as paredes das oficinas, ali estávamos esperando pela
alvorada. E quando o Sol se erguia por cima dos telhados das casernas
levantávamos então o punho em saudação. Saudação ao Sol que um dia amanheceria
numa Pátria livre.
267
DOCUMENTO 1
Decreto-Lei nº 26 539 - Cria-se uma colónia penal para presos politicos e
sociais no Tarrafal, da Ilha de Santiago, no Arquipélago de Cabo Verde.
PRESIDêNCIA DO CONSELHO
DECRETO-LEI Nº 26 539
É necessário dar execução imediata ao disposto nos decretos nº 23203, de 6 de
Novembro de 1933, e 24112, de 29 de Junho de 1934, que prevêem a instalação de
uma colónia penal para presos politicos e sociais no ultramar.
Depois de um reconhecimento cuidadosamente feito por técnicos a diferentes ilhas
do Arquipélago de Cabo Verde, chegou-se à conclusão de que o lugar de Tarrafal,
da Ilha de Santiago, reunia as condições necessárias à instalação desta colónia,
sob o ponto de vista higiénico, de vigilância
e de recursos naturais de comunicações indispensáveis ao seu bom funcionamento.
Sobre esses dados, e aproveitando-se os ensinamentos da ciência e prática
penitenciária, foi elaborado o respectivo projecto da colónia, que se desdobrará
em diferentes pavilhões para instalação apropriada dos respectivos serviços,
agrupamento dos presos e separação dos diferentes grupos entre si.
Urge pôr em prática este projecto e dar às respectivas obras a unidade de
direcção, continuidade e rapidez de execução necessárias.
Para este fim, confia-se a construção da colónia ao Ministério das Obras
Públicas e Comunicações, conferindo-se-lhe os poderes necessários para
271
levar a cabo a sua missão. Como para outros se fizera; dá-se a este Ministério
uma certa latitude e atribuições que lhe permitem abreviar e simplificar os
trâmites legais a bem do interesse colectivo e sem ofensa dos interesses
individuais.
Sob este ponto de vista o presente decreto-lei não faz senão aplicar à
construção urgente desta colónia o que para outros casos se legislara em
diplomas anteriores, como na Lei de 26 de Julho de 1922 (artigos 2º e 20º), e no
decreto nº 19465, de 11 de Março de 1931.
Além das disposições sobre a instalação definitiva da colónia, prescrevem-se
estas permitindo a sua instalação provisória, a exemplo daquilo que no País e no
estrangeiro tantas vezes se tem feito, quer para obviar à necessidade urgente de
internamento de reclusos, quer para aproveitar o trabalho destes na construção
das obras necessárias
à colónia.
Sendo os estabelecimentos penais do ultramar, como este, simples elementos do
sistema penal da metrópole, justo era que se confiasse a sua direcção e
fiscalização a um Ministério a que incumbem em conjunto os serviços prisionais e
por isso
ao Ministério da Justiça. Assim se legisla no presente decreto-lei.
Nestes termos, usando da faculdade conferida pela 2ª parte do nº 2º do artigo
109º da Constituição, o Governo decreta e eu promulgo o seguinte:
Artigo 1º É criada uma colónia penal para presos politicos e sociais no
Tarrafal, da Ilha de Santiago, no Arquipélago de Cabo Verde.
Artigo 2º A colónia penal a que se refere o artigo anterior destinar-se-á a
presos por crimes politicos que devam cumprir a pena de desterro ou
272
que, tendo estado internados em outro estabelecimento prisional, se mostrem
refractários à disciplina deste estabelecimento ou elementos perniciosos para os
outros reclusos.
1º Serão considerados crimes politicos, para os efeitos deste decreto-lei, os
previstos no decreto-lei nº 23203, de 6 de Novembro de 1933.
2º Poderão igualmente ser internados nesta colónia, em secção separada, os
condenados em penas maiores por crimes praticados com fins políticos, sujeitos
por lei ao regime prisional comum, e ainda, em caso de necessidade, os detidos
preventivamente pelos crimes a que se refere o decreto-lei nº 23203 e que o
Governo decida deter ou fazer julgar fora da metrópole.
Artº 3º
A colónia terá instalações necessárias para uma lotação de 500 presos.
Artº 4º As obras a fazer para a instalação ou futuras modificações da colónia e
os demais serviços a realizar para este fim, incluindo os da aquisição de
terreno, formação de povoações, no todo ou em parte, aquisição e aproveitamento
de águas e outros arcálogos, ficarão a cargo do Ministério
das Obras Públicas e Comunicações.
1º O projecto de instalação definitiva da colónia será o aprovado pelos
Ministérios das Obras Públicas e Comunicações e da Justiça, com prévio parecer
da Comissão das Construções Prisionais.
2º O Ministério das Obras Públicas e Comunicações poderá nomear um ou mais
técnicos, cujos vencimentos serão fiados por este Ministério, que no lugar
dirijam e fiscalizem as obras
e serviços a que se refere este artigo e os seguintes.
273
Artº 5º Para a execução dos serviços a que se refere o artigo anterior é
concedida ao Ministério das Obras Públicas e Comunicações a faculdade de
simplificar, dispensar ou substituir quaisquer formalidades legais, nos termos
do artigo 1º do decreto-lei nº 19465, de 11 de Março de 1931.
Artº 6º Todos os materiais que se torne necessário importar para a construção da
colónia gozarão do benefício da redução da um quinto dos respectivos direitos.
Artº 7º A colónia será instalada nos terrenos denominados do Chão Bom, Achada
Grande e Ponta da Achada, situados no concelho do Tarrafal, podendo utilizar-se
ainda outros terrenos, se for necessário.
1º A área de terreno ocupado inicialmente será aproximadamente de 1700
hectares, podendo ampliar-se esta área por determinação do Ministério da
Justiça, caso as necessidades ulteriores da colónia o exijam.
2º O terreno a que se refere o parágrafo anterior será determinado e marcado no
lugar pelo representante do Ministério das Obras Públicas e Comunicações a que
se refere o 2º do artigo 4º, de harmonia com as instruções deste Ministério.
Artº 8º Para os efeitos do artigo 7º passarão desde já para a posse do Estado e
serão postos à disposição do Ministério das Obras Públicas e Comunicações,
mediante o pagamento da indemnização que for fiada, os bens municipais que se
encontrem dentro da área destinada à colónia.
Serão postos à disposição do Ministério e para o mesmo fim, sem qualquer
indemni274
zação, os bens pertencentes à colónia de Cabo Verde e situados nessa área.
Artº 9º Se houver bens de dominio particular dentro dos terrenos destinados à
colónia, proceder-se-á à sua expropriação e será declarada de utilidade pública
e urgente, observando-se as respectivas disposições legais.
1º O Ministério das Obras Públicas e Comunicações poderá tomar posse imediata
dos edifícios e terrenos a expropriar, mesmo antes de iniciado o processo de
expropriação, quando esta medida seja indispensável para se não interromperem as
obras da instalação da colónia penal, pondo desde logo à disposição dos
interessados a indemnização que se fixar por acordo ou, na falta de acordo, a
que conste da matriz predial e, se o prédio nela não estiver inscrito, a
determinada por um perito nomeado por aquele Ministério ou seu representante,
com poderes para tal.
2º O disposto no parágrafo anterior não obsta a que, na falta de acordo, se
sigam, quanto ao mais, os termos do processo de expropriação por utilidade
pública urgente e ai se fie definitivamente o quantitativo da indemnização,
satisfazendo o Estado a diferença ou recebendo o excesso do que houver pago nos
termos do 1º.
Artº 10º Será fixada pelo Ministério da Justiça uma zona de isolamento em torno
da colónia penal, destinada a evitar o contacto dos reclusos com a população
livre.
1º Na zona a que se refere este artigo não poderá haver bens do dominio
particular ou que os particulares possam fruir directamente.
2º Para a constituição da zona de isolamento a que se refere este artigo será
aplicado o disposto nos artigos 7º e 8º deste decreto.
275
Artº 11º A colónia penal criada por este decreto poderá instalar-se
provisoriamente, antes de realizadas as obras previstas no respectivo projecto,
utilizando-se para a instalação provisória os meios adequados e entre eles os
destinados ao campo de concentração da Ilha de S. Nicolau.
Artº 12º O pessoal da colónia será nomeado pelo Ministério da Justiça nos termos
em que o é o dos estabelecimentos da mesma natureza da metrópole.
1º O pessoal a que se refere este artigo será constituido por um director, um
capelão, um médico, um farmacêutico e três enfermeiros, um secretário, um
ecónomo, um regente agrícola e um a três mestres de oficina, um escriturário,
três empregados de expediente, três empregados de contabilidade, um chefe de
guardas e setenta guardas, sendo quinze de 1ª classe, quinze de 2ª classe e
quarenta de 3.a classe, um cozinheiro, dois ajudantes, dois motoristas, um
ajudante e quatro serventes.
2º O pessoal a que se refere este artigo será nomeado à proporção que as
necessidades da colónia o exigirem.
Artº 13º Além do pessoal a que se refere o artigo anterior haverá na colónia uma
companhia Indígena, com os respectivos oficiais europeus, à disposição do
director da colónia, que poderá ser o próprio comandante da força.
Artº 14º O regime prisional a observar na colónia será o prescrito na lei para
estabelecimentos desta natureza.
O Ministério da Justiça, por intermédio da Direcção-Geral dos Serviços
Prisionais, exer276
cerá, em relação ao pessoal e serviços da colónia, as mesmas atribuiçöes de
direcção superior, fiscalização e administração que a lei lhe confere quanto aos
estabelecimentos prisionais da metrópole.
Artº 15º Pelos Ministérios da Guerra, Marinha e Colónias serão postos à
disposição dos Ministérios das Obras Públicas e Comunicaçães e da Justiça os
elementos indispensáveis respectivamente para instalação e funcionamento da
colónia
penal.
Publique-se e cumpra-se como nele se contém.
Paços do Governo da República, 23 de Abril de 1936. Carmona
Chegaram ao Tarrafal
António Fernandes Baptista
António Guerra
António Carlos Castanheira
António Teodoro
António Marreiros
António Jesus Branco
António Dinis Cabaço
António Nunes
António Gonçalves Saleiro
António Gonçalves Coimbra
António Fernandes Almeida Jor.
António Franco da Trindade
António Gato Pinto
António Jorge Marques
António Vicente Carvalho
António Enes Faro
António S. Marcelino Mesquita
Augusto Costa
Arnaldo Simões Januário
Alfredo Caldeira
Armindo Amaral Guimarães
Armindo Fausto Figueiredo
Acácio José Da Costa
Acácio Tomás Aquino
Américo Fernandes
Américo Gonçalves de Sousa
António Oscar fragoso
Ariosto Mesquita
Afonso Pereira
Artur Esteves
Álvaro Duque da Fonseca
Álvaro Gonçalves
Álvaro Ferreira
Anibal dos Santos Barata
Adolfo Teixeira Pais
Abatino da Luz Rocha
Armando dos Santos Callet
Abílio Gonçalves
Abílio Gonçalves Garradas
Adelino Alves
Bento António Gonçalves
Bernardino Augusto Xavier
Bernardo Casaleiro Pratas
Boaventura Gonçalves
Candido Alves Borja
Casimiro Ferreira
Carlos Martins Sovela
Carlos Ferreira
Custódio Rodrigues Ferreira
Custódio da Costa
Domingos Rodrigues Quintas
Ernesto José Robeiro
Eduardo Valente Neto
Edmundo Pedro
Francisco Domingues Quintas
Francisco Augusto Belchior
Francisco Silvério Mateus
Francisco José Pereira
Fernando Alcobia
Fernando Quirino
Fernando Vicente
Fernando Cruz
Franklim Ferreira De Azevedo
Felicíssimo Ferreira
Filipe José Da Costa
Gabriel Pedro
Gavino Rodrigues
Henrique Val Dom. Fernandes
Henrique Ochsenberg
Herminio Martins
Isidoro Felisberto Canelas
João Lopes Dinis
João Faria Borda
João da Silva Campelo
João Maria
João Galo Gomes
João Garrido
João Machado
João Martins Leitão
João Gomes Jacinto
João Rodrigues
Joaquim Gomes Casquinha
Joaquim Marreiros
Joaquim dos Santos
281
Joaquim de Sousa Teixeira
Joaquim Ribeiro
Joaquim da Cruz Dias
Joaquim Jacinto
Joaquim Pais
Joaquim Luís Machado
Joaquim Faustino De Campos
Joaquim Pedro
Joaquim Duarte Ferreira
Joaquim Montes
José Neves Amado
José Barata Júnior
José António Filipe
283
José Bernardo
José Soares
José Maria Videira
José Luis Marques Lebroto
José Maria de Almeida Jor.
José Tavares Almeida
José de Sousa Coelho
José Gilberto F. Oliveira
José de Almeida
José Severino Melo Bandeira
José Ramos Vargas
José Borges Celeiro
José Ramos dos Santos
José Ferreira Galinha
José dos Santos Viegas
José Alexandre
José Ventura Paixão
José Jacinto de Almeida
Jaime de Sousa
Jaime Tiago
Jaime Francisco Rosa
Jolio Ferreira
Júlio de Melo Fogaça
Josué Martins Romão
Jacinto e Melo F. Vilaça
Luís Marques Figueiredo
Luís Pires
Luis Martins Leitão
Luis da Cunha Taborda
Leonildo Anunc. Felizardo
Mário Santos Castelhano
Manuel Amado dos Santos
Manuel Rodrigues
Manuel da Graça
Manuel Henriques Rijo
Manuel Rodrigues da Silva
Manuel Rosa Alpedrinha
Manuel Pessanha
Manuel Augusto da Costa
Militão Bessa Ribeiro
Oliver Branco Bertolo
Pedro de Matos Filipe
284
Pedro dos Santos Soares
Patrício Quintas
Rafael Tobias Pinto Silva
Raul Vieira Marques
Rodrigo Ramalho
Silvino Leitão Fern. Costa
Sérgio de Matos Vilarigues
Tomás Baptista Marreiros
Tomas Ferreira Rato
Virgilio Martins
? Miranda
? Rebelo
Manuel Pereira dos Santos
2ª leva
António Augusto Russo
António Lúcio Bartolo
António Joaquim
António Rodrigues da Silva
António Sebastião Rosinha
Antonino Francisco
Artur Crescêncio Teixeira
Artur Trindade
Anibal da Silva Bizarro
Alfredo Garcia
Armando Martins De Carvalho
Américo Martins Vicente
Benjamim Inácio Garcia
Carlos da Conceição Galan
Domingos dos Santos
Damasio Martins Pereira
Edmundo Gonçalves
Francisco Baptista
Francisco Esteves
Fernando Macedo de Sousa
Filipe Piçarra
Herculano Marques Gouveia
José Manuel Alves dos Reis
José Ricardo do Vale
José Trovisco Malarranha
José Gomes
Joaquim Amaro
José Correia Pires
Joaquim Manuel da Costa
José Salazar
Joaquim Fernandes Teixeira
Jaime Ferreira
Luis Lima
Dr. Luis Figueiredo
Luis Duarte
Miguel Wager Russel
Manuel Albino
Manuel Gomes
Rui Cardoso Gomes
Tomás Garcia
285
286
Virgilio Sousa
3ª leva
Albino Coelho
Adelino Fonseca
Eurico Pinto Mateus
João da Cruz Cebola
José Júlio Ferreira
Manuel dos Santos
4ª leva
António Guedes Oliveira Silva
Abilio Guimarães
Carlos Guedes Leal
Daniel Evaristo dos Santos
Domingos de Oliveira
Eurico Martins Pires
Francisco Nascimento Gomes
Jaime Augusto de Carvalho
Joaquim Zacarias
José Maria de Alpoim
Joaquim Marques
Manuel Francisco Candeias
Saul Gonçalves.
5ª leva
Domingos Tavares
Ernesto Marques
287
6ª leva
Alberto Emílio de Araújo
Augusto da Costa Valdez
Albino de Carvalho
Carlos Luis Correia Matoso
João Mpntlet. Cardoso
João da Silva
José Ventura
Manuel Afonso
7ª leva
António Baptista
Herculano Jorge Bragança
Joaquim Ferreira
Sebastião Viola Júnior
8ª leva
António Faria de Ataíde e Melo
Basílio Lopes Pereira
Francisco Barbas
José Ferreira
José De Sousa
José Duarte
Joaquim Fernandes Rocha
Joaquim Diogo
João Pedro Leitão
Júlio Marques
Penkos Isra Shy
Reinaldo Vítor
288
9ª leva
Augusto Alves De Macedo
Alberto Grimja
Cândido Francisco Pólvora
Francisco Miguel Duarte
Fred
João Rodrigues da Silva
Luis Manuel Dizy Arquelles
Miguel Fontes
Paulo José Dias
Wlly
10ª leva
António Augusto Russo
Domingos Martins
José Ricardo do Vale
11ª leva
António Gonçalves Calça
Augusto Damas
Alfredo Augusto das Neves
José Marques
Levindo Manuel da Costa
Vitorino Domingos
12ª leva
Albino Afonso Da Rocha
António Lopes De Sousa
Augusto Joaquim Raimundo
João Garcia Ribeiro
Joaquim Roque
289
Luis Pires de Mendonça
Manuel Maria Silva Pinho
Pedro José da Conceição
13ª leva
António Sebastião Torres
António Cisneiros Ferreira
Constantino Costa
Candido Conceição Vieira Silva
Firmino Lopes de Matos
João Guerreiro
José Simão
Manuel Maria
Manuel António Boto
Manuel Baptista Reis
Miguel Francisco Ramos
Manuel Borges do Canto
Reinaldo de Castro
14ª leva
Abílio Ferreira Ramada
António Augusto Pires
António Dias Mendes
Alipio Dos Santos Rocha
José Agostinho Candido
José de Almeida
José Rodrigues Reboredo
João Paulino De Sousa
Jûlio Mateus Farinha
Manuel Francisco Almaço
Manuel Molina Bailó
Mateus Pedroso
Manuel Rodrigues
290
15ª leva
Miguel Óscar
António Amorim
Francisco Maria Dias
19 Soldados
Carlos Pereira Ribeiro
José Lopes Dinis
Luís Valente De Matos
16ª leva
Armando De Azevedo
Artur Inácio Bastos
Júlio Mascarenhas
Virgilio Bartolini
17ª leva
Pedro Foyos Teixeira
Alexandrino Rodrigues
Américo Cunha
Artur Rodrigues Paquete
Candido de Oliveira
Francisco Rato
Hernani Pinto
João António Pires
Josué Fernandes
Manuel Firmo
Manuel Martins Betencourt
Mário Baptista Reis
Sebastião Encarnação Júnior
Júlio Monteiro Macedo
António Ferreira Da Costa
Francisco Baptista da Silva
Gil Cornélio Gonçalves
Hélio de Amorim
José Correia
Sebastião Palma
Outras levas
Abílio De Macedo
Kan
Carvalho
António Teodoro S. Salvador
Augusto Da Cruz
Francisco Manuel Ferreira
José Gomes Gomes
João Manuel Gil
291
Abecm Chuman
José Gomes da Silva
Rui Pereira Vicente
Guilherme da Costa Carvalho
Francisco Miguel Duarte
LEVA DE OPERÁRIOS GREVISTAS
Em Janeiro de 1947 chegaram 27 grevistas que ficaram separados por um muro dos
restantes prisioneiros e que estiveram no campo 6 meses. Quatro desses grevistas
ficaram
com residência fixa na Cidade da Praia durante mais cerca de um ano.
EXPOSIÇÃO ENVIADA AO DIRECTOR SOBRE A SITUAÇãO SANITÁRIA NO CAMPO
DOCUMENTO 3
Exposição enviada pelo camarada médico Manuel Baptista dos Reis, ao director,
capitão Filipe Barros, acerca da situação sanitária existente no Campo (Maio de
1944?):
Ex.mo Sr. Director:
O aspecto verdadeiramente grave que o estado físico e sanitário dos presos nesta
Colónia Penal está tomando, força-nos a dirigir a V. Ex.a este escrito.
Por ele pretendo pôr V. Ex.a inteiramente ao corrente de uma situação que, se
ainda não é catastrófica, vai assumindo formas progressivamente mais dolorosas e
cada vez menos remediáveis.
Tem V. Ex.a por ocasiões várias, manifestado intenções de se interessar pela
regularização de aspectos anormais que a nossa vida aqui comporta. Ainda
ultimamente, V. Ex.a teve ocasião de declarar-me todo o seu empenho em que
fossem
retirados para o Continente os doentes em estado grave e, aqui, incurável,
presos na CP.
Infelizmente, até este momento, nenhuma providência ou indício dela se
manifestou e pouca esperança podemos alimentar de que venha a surgir.
Para mais, senhor director, o problema da defesa da vida e da saúde dos presos
no Tarrafal, não pode confinar-se à evacuação para o continente dos doentes em
perigo de vida que aqui se encontram.
Limitar a isso as medidas a tomar, o mesmo seria que continuar e, deixar aos
acasos do tempo, do clima, da compleição física de cada um, e das vicissitudes
da vida da CP a saúde e a existência de todos nós. Uma só excepção surgiria:
aqueles a quem a infelicidade ou a boa dita concedes295
sem uma doença grave, de feliz aspecto crónico, embora terrivelmente torturante,
poderiam alimentar a santa esperança de que ainda voltariam a ver os seus (e
quem sabe?) a recobrar um pouco da saúde que aqui tinham, impotentemente, visto
desfazer-se. Os outros (todos os outros!) continuariam a esperar o impaludamento
progressivo, a biliosa traiçoeira, quando não a tuberculose ou a loucura,
transformados, terrivelmente, no único meio de libertação.
Há um ano, quando da inspecção feita a esta CP, pelo Sr. Major Antão Nogueira,
muitos de nós se lhe dirigiram, expondo a situação em que se encontravam e nos
encontrávamos.
Concebemos, então, a possibilidade de que fossem tomadas
medidas que minorassem, se não liquidassem, os aspectos de verdadeira
anormalidade em que a nossa vida está decorrendo.
Um ano se passou, e nada vimos que nos indicasse que se iria entrar na
liquidação de tudo o que, verdadeiramente, e anormal ou, até, ilegal, na vida
desta Colónia.
Pelo contrário, nós vemos que os sete anos e meio em que a maioria de nós aqui
vive, vai dando os seus resultados maléficos e de terrível pertinácia.
Um novo caso de loucura veio ensombrar a pouca boa disposição de alegria em que
nos podemos encontrar. Casos de destrambelhamento nervoso, resultado do
intensíssimo desgaste que esta vida em todos nós opera, vão surgindo.
Transtornos do coração aparecem, a juntar-se à verdadeira legião de doenças do
figado, que, dia a dia, vão fabricando, a permanência neste clima, o paludismo
insuficientemente tratado e nunca prevenido, a alimentação inconveniente que
aqui temos. Existe, em todos nós, um definhamento progressivo, de que é prova
bem frizante, a incapacidade, progres296
sivamente maior que todos nós temos para qualquer trabalho, e o número de presos
que o Ex.mo Clínico da Colónia Penal se vê forçado a dispensar de todo o esforço
físico.
Neste ano e meio da direcção nesta CP, V. Exª já terá notado como,
sucessivamente, tem ido a diminuir o número dos que se encontram aptos para o
trabalho.
Se fizermos confronto entre as possibilidades físicas, há cinco e seis anos, da
maioria dos presos, e as actuais, ficaremos verdadeiramente edificados. Homens
que aqui exerceram as mais fatigantes tarefas, homens cuja robustez lhes era
motivo de sadio orgulho e serena confiança no futuro,
estão hoje - ainda os mais fortes - incapazes de um esforço prolongado, senão
mesmo de o tentarem. E isto, sr. director, não é uma situação a que chegámos e
que, aqui, se imobilize. É uma situação que tende a agravar-se e cada vez mais.
É uma situação, cuja gravidade cresce muito mais depressa que o tempo marcha, em
virtude da acumulação de males anteriores, e do agravamento de algumas das
condições de vida nesta CP.
Por terrível experiência à nossa custa obtida, sabemos como, um ano após outro,
a época das febres e das biliosas - a que já nos habituámos a chamar período
agudo - vem dar forte empurrão na nossa saúde, quando não nas nossas vidas.
Porque isso assim é, e porque a natureza da actividade que exerço me põe em
estreito contacto com todos os aspectos que a vida aqui comporta, resolvi,
escrevendo a V. Ex.a salientar alguns dos mais flagrantes da vida que aqui
vivem
todos os presos.
Antes que chegue a época das chuvas, com todas as suas consequências, é
necessário que se actue, que alguém actue. Evidentemente, que de
297
tudo o que há a tratar, muito não depende directamente de V. Exª. Porém,
impossibilitados como estamos de nos dirigir a outrém, enquanto a isso não
formos autorizados, será a V. Ex.a a que teremos de nos dirigir, representante,
como é, aqui,
da PIDE, a cuja ordem, na maioria, nos encontramos presos.
Para mais, medidas há, e imediatas, que dependem, directamente, de V. Exª ao
menos nas diligências a ordenar a tal respeito.
Dependem de V. Ex.a como director, todos os serviços de abastecimento, todos os
pedidos de fornecimentos feitos à PIDE, a direcção superior de todos os sectores
da actividade desta CP.
Isso me diz que de V. Exª poderá depender bastante do que é imediatamente
possível realizar no sentido de atenuar, enquanto não se solucionar, as
condições anormais e perigosas em que a nossa vida aqui se encontra.
Passo a considerar, em particular, algumas dessas anormalidades a que me refiro,
confiado em que V. Exªa tentará resolver as que de si dependem, e empregará os
convenientes esforços para que as restantes - e, infelizmente, fundamentais
sejam relegadas às entidades que na sua resolução devem interferir.
SITUAÇÃO SANITáRIA - É bastante anormal a situação sanitária dos presos da CP. O
número de doentes das mais variadas doenças é relativa e permanentemente
elevado, como V. Exª muito bem sabe.
Infelizmente, não só as doenças são muitas, como os meios de as tratar são
escassos e, cada vez mais. Está a chegar o período das febres e das biliosas e a
carência geral de medicamentos, na colónia, toma, nesta época, e sob este
aspecto, uma extensão que a torna particularmente grave.
298
No ano passado, que não foi, de forma alguma, um ano mau, registando em seis
meses (Julho a fins de Setembro), uma população de duzentos e vinte e seis
homens, os seguintes e expressivos números: 498 casos de paludismo com um total
de: 1743 dias de febre, dos quais 547 com temperaturas superiores a 38º.
Para a grandeza altamente anormal destes números, contribuem, muito do clima, as
condições que as condições
penúria de çs de vida que suportamos e a medicamentos da colónia. Deverei
recordar, ainda frecuência de castigos em pésimas condições higiénicas.
Se bem que o seu número se tenha reduzido em relação ao passado e, em muitos
casos, tenham melhorado um pouco as condições em que são sofridos, não deixam de
ser péssimos, e, muitas vezes, sem qualquer justificação, como o patenteia um
caso recente.
A comparação da morbilidade e da mortalidade por paludismo, na CP, com as da
população europeia e do arquipélago, deve demonstrar as considerações acima de
forma assaz expressiva.
(Lembro a V.Exª que se não fosse o uso quase geral de mosquiteiros adquiridos
pelos presos, muito pior seria a nossa situação sanitária. Isto aliás, põe o
problema de a colónia auxiliar na aquisição de mosquiteiros ou no concerto dos
danificados, todos os presos que, para isso, não tenham posses.
Isto evitará uma generalização de ataques palustres com todas as consequências
conhecidas).
De há certo tempo para cá, a colónia unicamente fornece
já declarada para cada caso de febre palustre, já declarada, 0,5 g de quinino
diário, metade da dose habitual, e mesmo essa dose, insuficiente, é
299
retirada logo três dias depois do último dia de febre. Entre outras
consequências, isto motiva que as recaídas sejam extremamente frequentes (não
deveremos esquecer, também, que já estivemos, e talvez voltemos a estar, na
iminência de nem 0,5 g de quinino obtermos).
Por outro lado, a existência de trabalhos pesados (muitos no passado e alguns no
presente), exigindo um esforço físico considerável (boa porção dele à torreira
do sol), durante a estação dos calores, das chuvas e das febres - tem sido e
ainda é outro factor que vem agravar o primeiro e, além
disso, contribui largamente, para a frequência, ainda mais anormal, da biliosa,
que entre nós se regista.
Em sete (7) anos de existência do campo do Tarrafal, registamos um total de 67
biliosas, das quais faleceram 14 indivíduos, a maioria deles aqui presos desde o
primeiro ano da existência do campo.
A estes 14, há ainda a juntar, no primeiro ano de vida do campo, mais 8 mortos
por perniciosa, mortes devidas a absolulta falta de tratamento antipalúdico.
O total de mortos por paludismo eleva-se, assim, a 22, o que representa uma
mortalidade por paludismo, de 9,7 %.
(Salienta-se que a média real deve ser um pouco maior, visto que toma por
referência a população actual do campo, manifestamente superior à população
média nesse período.)
Este quadro não ficará completo se lhe não associarmos o número das pessoas de
entre nós que, como consequência do paludismo crónico e da frequência dos
acessos febris, sofrem de afecções do fígado.
Tomando só as manifestações, perfeitamente evidentes, da pele e mucosas, dores,
icterícias,
300
encontraremos 56 casos, número tremendo para uma população de 226 homens.
Isso explica que se mantenham, permanentemente, a dieta, mais de 80 pessoas, das
quais cerca de 40 a leite, ou a leite e caldos.
Passando a outros aspectos da vida sanitária dos presos desta CP, encontraremos:
Tuberculose óssea - 1, e tuberculoses renais - 3.
Qualquer destes doentes necessita tratamento que só se poderá fazer no
continente. A sua permanência aqui significa uma verdadeira condenação à morte,
porquanto um período mais adiantado, nem a sanatorização terá valor para o
primeiro caso, nem serão operáveis os restantes.
Úlceras gástricas - 6
Hérnias - 8 ( quatro delas não contidas por falta de fundos)
Fístulas ano-rectais - 2
Apendicite - 1
Leucoplasia (perigo de cancro) e ptose generalizada - 1
Todos estes casos são operáveis e só se prejudicarão com a permanência aqui.
Haja em vista o que aconteceu com o doente de apendicite aqui operado, cujo
estado o fez sofrer, durante um longo ano, e chegou quase ao limite em que a
vida correria o mais sério risco.
Temos, além disso: doentes hepáticos - 56, sifilíticos - 78
301
três caso de psicopatia tendem a agravar-se, fortemente com a permanência aqui.
Gaseados da guerra - 2
Doentes pulmonares - 35
(com lesões pleurais - 17)
Com lesões pulmonares, mais ou menos extensas, 18 dos quais já tiveram
hemoptises 11. Dois destes doentes pulmonares encontram-se em estado
particularmente grave e sujeitos a morte certa, se aqui continuarem.
Se passarmos da consideração do estado actual de saúde do campo, para o da
mortalidade até aqui ocorrida, encontramos um total de 28 mortos, que
subdividirei assim: por biliosas - 14, perniciosas - 8, tuberculose pulmonar 2, cancro - 1, vários - 3.
Referidos à população actual (superior à média, já o vimos), teremos:
mortalidade em 7 anos, por paludismo 9,73% (22), por outras causas 2,65% (6), um
total de 12,38% (28).
302
As tábuas de mortalidade, para a Alemanha elaboradas por Kuiezynsky (1924-1926),
indicam que, em 5 anos, a população sofre um desgaste de: nas idades
compreendidas entre 30 e 35 anos, 1,75%. Nas idades compreendidas entre 35 e 40
anos,
1,92 %. A idade média, no acampamento, esteve sempre entre os 30 e os 35 anos
e, sempre, também, com muito forte predominância dos números baixos.
Portanto, fazendo redução dos números obtidos, de 7 anos, à média de 5,
teremos: média de mortalidade em 5 anos
Por paludismo - 6,95 %
Por outras causas - 1,89 %
Total - 8,84 %
Feita a comparação com os resultados de Kuczynsky, vemos como o paludismo (
6,95 % ), principalmente pela frequência de biliosas nas condições
particularmente desfavoráveis em que nos encontramos, carrega o quadro da
mortalidade geral
( 8,84 % ) que, sem elas, já estaria carregado ( 1,89 % ) e acima da mortalidade
geral na Alemanha para as mesmas idades dos 30 aos 35 ( 1,75 % ).
A uma situação em que as taxas de mortalidade e mobilidade se manifestaram e
manifestam tão elevadas, não correspondeu uma intensificação de tratamentos pela
CP, antes pelo contrário.
Se não fossem os remédios de nossas famílias recebidos que, em número avultado
para as suas possibilidades, cada vez menores, são escassíssimos para as nossas
necessidades - mais e mais doenças e mortes teríamos a registar.
303
Contudo, o agravamento da penúria existente farmácia da Colónia, o paupérrimo
racionamento de medicamentos que nos é feito - motivam que a situação se torne
cada vez mais apertada, e possa assumir, em breve, proporções nefastas.
Assim, vemos que a própria tintura de iodo para desinfecção de golpes e para
outros fins praticamente não existe.
Cálcio injectável, tão necessário para os doentes pulmonares e para todos os
debilitados (e eles são muitos numa população em que o paludismo faz os estragos
que já apontei), praticamente não é dado.
Arrenol - Este medicamento de bastante eficácia no tratamento do paludismo,
quando associado ao quinino, não é, há muito tempo, fornecido pela Colónia aos
doentes.
Os tratamentos anti-sifilíticos por conta da Colónia são feitos, sobretudo, com
iodeto e benzoato de mercúrio, preparados na farmácia da Colónia e de tal modo
dificilmente suportáveis pelos doentes que muitos preferem não fazer tratamento
a sofrerem as dores e transtornos que motivam.
Os desinfectantes pulmonares são dados escassamente e a escassíssimos doentes.
Existe uma grande falta de tónicos, cardíacos, necessários em todos os casos
graves, particularmente no descanso do tratamento das biliosas.
Medicamentos para doentes do fígado, poucos são dados e de pouca eficácia, em
muitos dos casos.
Fortificantes gerais, poucos são dados.
Desinfectantes intestinais e laxantes têm sido dados com rigorosa e deficiente
parcimónia.
Teobromina injectável e outros diuréticos enérgicos injectáveis (único processo
útil de os ministrar aos doentes que vomitam, como acontece em quase todas as
biliosas) não são dados. São medi304
camentos absolutamente indispensáveis nas biliosas.
Soro fisiológico - o que a Colónia fornece é fabricado na farmácia daqui, tem-se
revelado, nos últimos tempos, particularmente doloroso, em contraste com o das
ampolas de proveniência particular, que tem sido usado em alguns doentes.
A atebrina, que é, na actualidade, o antipalúdico mais eficaz e que não envolve
risco de biliosa como a quinina, não é dada pela Colónia, apesar de ser, hoje,
mais barata e de mais fácil obtenção no continente que qualquer outro
antipalúdico.
Devo salientar que, nos trés últimos anos, só foram aqui usadas injecçöes de
atebrina da CP em três casos e, nalguns destes, num terço da dose diária. Chamo,
em particular, a atenção de V. Exª para esta falta de atebrina que, se é muito
necessária para todos os casos de paludismo rebelde, constitui, injectável, o
único antipalúdico que se pode ministrar sem perigo durante as biliosas.
Sulfamidas-Este medicamento, de grande eficácia em doenças como as broncopneumonias, não tem existido sequer na farmácia da CP.
Em suma, Sr. Director: os medicamentos que a Colónia tem e fornece são
absolutamente deficientes em quantidade e qualidade, para ocorrer às
necessidades motivadas pelas doenças mais vulgares. Se nos lembrarmos que as
mais variadas
doenças podem, acidentalmente, surgir, veremos que, a este respeito, também a
situação não é nada tranquilizadora.
Alimentação de doentes - Alguns progressos têm sido feitos neste capítulo. Há
uma dieta, infelizmente só utilizada por três doentes, que é satisfatória. As
outras deveriam ser mais cuidadas, menos rígidas, tendo-se em conta, em
particular, as necessidades dos dietéticos que trabalham.
305
Ocorrerá perguntar, Sr. Director: qual será a justificação de mais de duas
centenas de homens aqui se encontrarem nesta situação e com tais perpectivas?
Em que condições decorre a sua existência?
A isto procurarei responder como se segue:
SITUAÇÃO JURÍDICA - Como as fichas policiais em seu poder rapidamente indicarão,
é bastante grande o número de presos que, aqui, se encontram contra as
determinações da lei. É bastante grave tão injusta situação, que condena à
permanência, aqui, com todos os riscos, um número bastante grande de pessoas que
não têm culpa formada; jé cumpriram há muito as suas condenações; não foram
julgados ou estão condenados a prisão correcional.
Não esqueçamos, inda, que alguns dos que aqui têm as penas cumpridas (e até que
aqui morreram) estavam condenados a prisão correcional, portanto a pena de nunca
aqui os deveria ter trazido.
Quando no fim do passado ano o governo decretou um indulto e amnistia a presos
políticos, fez, também, uma declaração sobre o reduzidissimo número de presos
políticos que continuariam, de momento, privados de liberdade. Afirmou-se,
então, que seriam, apenas, umas escassas dezenas.
Julgámos, por essa altura, que, finalmente, iria regularizar-se um estado de
coisas que, por incompatível com a lei fundamental do país e com as declarações
de alguns actuais dirigentes do Estado português - era e continua sendo uma
verdadeira contradição.
Julgamos que o cumprimento da lei e a excução das promessas contidas na
amnistia, no indulto e na declaração ministerial reduziriam a número tão
insignificante os presos desta CP que ela não teria condições para sobreviver, e
uma ultima determinação de regresso para prisões do continente dos presos ainda
subsistentes acabaria com uma prisão que não tem quaiquer condições ou motivos
que, ou motivos que, humana e legalmente, determinem ou sequer justifiquem a sua
existência.
Porém, a realidade foi inteiramente outra. Tirada uma escassa meia dúzia de
presos que seguiu para o continente, e de que muito poucos foram postos em
liberdade - tudo ficou como antes nesta Colónia, agravada a situação com o tempo
que vai passando, deixando os seus estragos e fazendo que o irreparável de
muitas mortes anos de vida
destroçados e saúdes abaladas - vá crescendo, não sabemos até onde nem até
quando.
Permito-me chamar a atenção de V. Exª e para os números e considerações que
seguem, dada a sua extraordinária importância.
Dos duzentos e vinte e seis presos que aqui se encontram, 127 (56% do total)
estão numa situação inteiramente ilegal. Destes, 72 (31% dos presos) não foram
julgados, apesar de muitos se encontrarem detidos há longos anos; e outros nem
matéria para julgamento, pelo que mais devem ser considerados presos sem
processo sem culpa formada. Cinquenta e cinco (24% do total) terminaram as
penas, a maior parte, há vários anos (a quantidade de tempo em excesso de pena,
cumprida pelos presos da CP, TOTALIZA MAIS DE DUAS CENTENAS DE ANOS!
Isto representa uma ileglidade e injustiça tão evidentes que eu julgo, Sr.
Director, que o conhecimento desta situação deverá levar quem de direito a
proceder conforma mandam os tribunais e as leis portuguêsas.
Não será de mais esperar que os que têm a seu cargo a excução e a defesa das
leis vigentes lhe dêm efectivo cumprimento, fazendo cessar tão irregular e
ilegal situação que a ninguém é pro307
veitosa, antes prejudica os presos e suas famílias, ao mesmo tempo que mantêm um
aspecto de coisas inconvenientes e, até, desprimoroso para as entidades
encarregadas de estabelecer o acordo entre as leis e as acções dos vários
organismos do
Estado.
Alimentação - É este um assunto bastante importante, a considerar em particular,
se aqui ainda havemos de permanecer mais tempo.
Dela depende a robustez que possamos obter para resistirmos às doenças; dela
depende a rapidez, maior ou menor, de recomposição física, após cada ataque de
paludismo ou de qualquer das tantas doenças e achaques a que estamos,
constantemente, sujeitos.
Também, do modo como a alimentação seja constituída, assim resultará um menor ou
maior número de doentes do fígado ou dos intestinos, o que, no primeiro dos
casos, é coisa de grande e gravíssima importância como já apontei a V. Exª.
Ora, o que acontece? Tirando a inclusão de algumas refeições temperadas com
azeite, a alimentação continua com a mesma monótona e deficiente constituição. A
banha, de péssima qualidade, um dos nossos mais permanentes e discretos
inimigos, continua a ser o tempero fundamental que, constantemente, nos ataca o
fígado, cada vez em pior funcionamento. Também o peixe ( quando há ) continua a
ser gasto ( em boa parte dos casos ) no dia ou dias seguintes a ser preparado, o
que tem os piores inconvenientes, sob o
ponto de vista higiénico. Os escabeches ou ceboladas em que possa ser
apresentado, se são agradável meio de estimular o paladar, não podem desfazer os
inconvenientes que, num clima como este, e para pessoas no nosso estado, tem a
alimen308
tação de peixe, quando este não é consumido imediatamente, após ser preparado.
Os ovos continuam a ser um elemento usado com bastante frequência na organização
do rancho; quando a verdade é que, salvo raras excepções nunca deveriam entrar
na nossa alimentação.
Contra a monotonia e deficiência do rancho, lutam muitos dos presos, adquirindo
ora um pouco de fruta ora qualquer alimento com que compensam as falhas da sua
alimentação. Nem todos o podem fazer; quase nenhuns o podem fazer sempre. Por
outro lado, as dificuldades que pesam sobre suas famílias cada vez mais
impossibilitam o envio, por estas, de algum dinheiro, com que ocorriam a essas
despesas, aliás insuficientes para a obtenção do que necessitam.
Há, pois, uma situação absolutamente anormal: chocante até, porque não é de
admitir que sejam os próprios presos (muitos deles até ilegalmente detidos) quem
haja de ocorrer às despesas da sua alimentação, senão no todo, pelo menos em
parte.
Esta situação, evidentemente, só se pode remediar pela aquisição da variedade e
quantidade de alimentos necessários para a constituição sã e equilibrada.
Só a utilização simultânea dos recursos locais e dos géneros que só se obtêm
(como se obtiveram noutros períodos) no continente - poderá, julgo, proporcionar
o meio de resolver todo este problema.
Roupas - Apesar de uma ou outra distribuição de roupas, continua a notar-se uma
escassez de vestuário, com todas as consequências higiénicas e morais que são
fáceis de avaliar.
Muitos presos (os que tinham roupas, tiveram necessidade e a isso se dispuseram)
gastaram e continuam a acabar de gastar as suas roupas interiores, abafos e
calçado. Outros continuam a so309
frer as consequências da penúria a que se vêem reduzidos. Deixaram,
praticamente, de serem dadas camisas; continua a mesma falta de calças e
casacos. Aos doentes, ou aos que, pelo seu debilitamento, deixaram de poder
trabalhar, foram tiradas as botas, inovação extraordinariamente perigosa para os
que, com mais facilidade, serão atacados pelos mosquitos, além de terem de
sofrer tantas das consequências do uso das sandálias de pau que, agora, lhes são
distribuídas.
Por outro lado, nunca nos foram dadas toalhas (apesar de terem sido pedidas ao
Sr. Inspector major Nogueira), o que põe, a muitos, a necessidade de as pedirem
a suas famílias, além de tudo o mais que já eram forçados a pedir-lhes.
Deverei recordar, ainda, que muitos de nós têm de utilizar mantas ou abafos seus
para se cobrirem de noite, porquanto as mais das mantas da CP estão desfeitas
por um longo uso, sem que sejam substituídas, como, oportunamente, o
deviam ter sido.
Julgo conveniente lembrar ainda, neste capítulo do vestuário, que a muitíssimos
de nós se têm estragado todas as roupas que para aqui tinham trazido em bom
estado. Muitos de nós, quando formos postos em liberdade, não terão que vestir.
E os que ainda têm, se forem forçados, como até agora, a manterem os seus fatos
fechados na arrecadação - ficarão sem nada.
Eis, Sr. Director, a nossa situação, que é bem dolorosa e cheia de perigos para
que necessite de considerações mais longas.
Está a abrir-se um novo período de doenças em que as péssimas condições em que
vivemos, as deficiências de toda a ordem que nos assaltam irão ser mais
vivamente sentidas. Vai entrar-se, novamente, numa época em que a normali310
dade má da nossa vida, aqui, vai ser terrivelmente agravada pelo irremediável de
mais saúdes aniquiladas, de mais algumas vidas perdidas.
A injustiça flagrante, que acima demonstrei, de se manterem aqui presos dois
centos e tal de pessoas, sem motivo legal grande parte delas, sem condições
higiénicas todas - vai, neste momento juntar-se o desfazer das últimas energias,
que, teimosamente, têm conseguido guardar.
Irá esquecer-se, mais uma vez, tudo isto? Irão as autoridades de que esta CP
deve pensar que esta situação pode manter-se?
Eu julgo que a atenção e intenção dadas à existência desta Colónia pelas
entidades respectivas, tal situação não pode continuar. Todos nós assim o
julgamos.
Por isso mesmo entendi que deveria dirigir esta exposição a V. Exª visto que é
justa, legal, e até imprescindível que se actue imediatamente.
A V. Exª cabe tomar as providências necessárias para que toda a actividade da
nossa vida aqui seja devidamente considerada pelas entidades a quem tal diz
respeito.
Urge que sejam determinadas medidas de rápida evacuação de todos os presos daqui
para o continente e subsequente regularização da situação ilegal em que muitos
se encontram detidos.
Urge que, entretanto, sejam adoptadas as medidas convenientes de fornecimento, à
Colónia Penal, de remédios, alimentos e roupas, que tanta falta nos fazem. Urge,
se se julga que a PIDE não tem possibilidades de obter todos os medicamentos
necessários à defesa das nossas saúdes e vidas (o que parece inacreditável), nos
seja dada, imediatamente, autorização para nos dirigirmos a organizações que,
como a Direcção-Geral de Saúde, Assistência Nacional aos Tuberculosos, Cruz
311
Vermelha Portuguesa e outras, por sua natural funçao têm possibilidades de nos
valer.
Importa, ainda, que a acção de V. Exª, informando a PIDE, seja completada pelos
nossos esforços e de nossas famílias.
Por isso, vos peço, Sr. Director, autorização para que possamos expor a S. Exª
o ministro do Interior, as dificuldades prementes da nossa vida aqui.
Por isso, vos peço, também que os de nós que o queiram fazer sejam autorizados a
expor, livremente, por carta, a suas famílias, as diligências que deverão
empregar, no continente, para que seja resolvida a sua situação, como é legal e
de justiça.
Sobre V. Exª, Sr. Director, pesam, nesta momento, não só as dificuldades
imediatas do exercício do vosso cargo, mas as muito mais delicadas e espinhosas
de empregar todos os esforços para que não se multipliquem as consequências, em
grande parte, infelizmente, irreparáveis, da manutenção de um estado de coisas
manifestamente avesso a tudo o que é justo, às decisões dos organismos judiciais
e, até, aos princípios que orientam a lei fundamental em vigor no país.
Espero, Sr. Director, que V. Exª terá em devida conta quanto expus e tomará,
directa e imediatamente, quantas medidas sejam adequadas a resolver um estado de
coisas que, humanamente, não se pode prolongar mais.
Subscrevo-me com toda a consideração.
Manuel Baptista dos Reis
312
PRESOS POLÍTICOS
FALECIDOS NO TARRAFAL
DOCUMENTO 4
Francisco José Pereira
Pedro de Matos Puipe
Francisco Domingos Quintas
Rafael Tobias
Augusto da Costa
Candido Alves Barja
Abilio Augusto Belchior
Francisco Esteves
Aldo Simões Januário
Alfredo Caldeira
Fernando Alcobia
Jaime de Sousa
Albino Coelho
Mário dos Santos Castelhano
Jacinto de Melo Faria Vilaça
Casimiro Ferreira
Albino António de Carvalho
António Guedes de Oliveira e Silva
Ezo José Ribeiro
João Lopes Dinis
Henrique Vale Domingues
Bento António Gonçalves
Damásio Martins Pereira
António de Jesus Branco
Paulo José Dias
Joaquim Montes
Manuel Alves dos Reis
Francisco Nascimento Gomes
Edmundo Gonçalves
Manuel da Costa
Joaquim Marreiros
António Guerra
315
CRONOLOGIA
28.5.1926 - Golpe de Estado militar que instaura em Portugal a ditadura
fascista.
7.2.1927 - Tentativa de revolta militar contra a ditadura. É esmagada com
dezenas de mortos.
27.4.1928 - Salazar é nomeado ministro das Finanças.
8.7.1930 - É decretado o Acto Colonial que proclama os princípios coloniais
fascistas.
30.7.1930 - Criação do partido único, União Nacional.
25.2.1931- Manifestações em Lisboa contra o desemprego.
1.5.1931- Grande manifestação do 1 de Maio em Lisboa, tendo como principal
palavra de ordem a luta contra a ditadura. A polícia ataca a tiro os
manifestantes, no Rossio.
1931-1932 - Desenvolve-se em Portugal um forte movimento reivindicativo dos
trabalhadores marcado por importantes greves: 2500 operários da construção naval
em Lísboa (1 mês); 500 marinheiros de Setúbal (3 meses); na Companhia Nacional
de Navegação (2 meses), com apoio de uma greve de solidariedade dos estivadores
de Lisboa; greve dos marinheiros de Lisboa (15 dias); dos vidreiros da Marinha
Grande; dos estudantes das Faculdades de Direito e Medicina de Lisboa.
5.7.1932 - Salazar ocupa o cargo de chefe do Governo.
30.1.1933 - Hitler é nomeado chanceler do Reich.
1.2.1933 - Hitler manda dissolver o Parlamento da República Alemã.
27.2.1933 - Goering chefe nazi, manda incendiar o Reichstag, para justificar o
desencadeamento duma feroz repressão contra os comunistas.
19.3.1933 - Promulgação da Constituição fascista elaborada por Salazar.
317
29.9.1933 - Salazar publica o Decreto Nº 23053, que proibe os sindicatos livres
da classe operária e cria a organização corporativa.
19.10.1933 - A Alemanha abandona a Sociedade das Nações.
1.1.1934 - Entra em vigor o decreto fascista de Salazar que proibe os sindicatos
operários. Entra em vigor também o Estatuto do Trabalho Nacional elaborado
segundo o modelo
da "Carta del Lavoro", de Mussolini.
18.1.1934 - Eclode o Movimento Revolucionário de "18 de Janeiro" contra as leis
anti-sindicais fascistas. Os principais centros deste movimento são Marinha
Grande, Silves, Coimbra e a zona operária de Setúbal e de Lisboa.
25.7.1934 - Em Viena, os nazis assassinam o chanceler austríaco, Dollfuss.
8.9.1934 - São deportados para Angra do Heroísmo para a Fortaleza de S. João
Baptista, os antifascistas presos durante o "18 de Janeiro".
16.3.1935 - Hitler decreta o serviço militar obrigatório
rompendo com os tratados que proíbem a Alemanhã de ter exército regular.
21.5.1935 - É promulgada a lei que obriga os funcionários públicos a assinar uma
declaração anticomunista, e que permite suspender ou demitir das suas funções,
por simples decisão do Conselho de Ministros os que não derem provas de
aceitação dos
Princípios da Constituição fascista. Na sequência desta legislação foram
demitidos milhares de funcionários públicos.
10.9.1935 - Tentativa de revolta na Marinha de Guerra portuguesa. É rapidamente
sufocada pela polícia política (PIDE).
30.10.1935 - A Itália fascista declara guerra à Abissínia (Etiópia).
318
11.11.1935 - É preso Bento Gonçalves secretário-geral do Partido Comunista
Português, no desenvolvimento de uma violenta vaga repressiva em que são presos
destacados dirigentes do PCP e de outras organizaçöes antifascistas.
16.2.1936- Em Espanha a Frente Popular vence as eleições e leva ao Parlamento
278 deputados contra 134 das forças de direita.
7.3.1936- Hitler ocupa militarmente a Roménia.
23.4.1936- Sai o Decreto Nº 26539, que cria o Campo de Concentração do Tarrafal.
5.5.1936- Esmagada militarmente, a Abissínia torna-se colónia italiana.
5.6.1936- Em França, toma posse o governo de Frente Popular, chefiado por Leon
Blum.
17.7.1936- As guarnições militares estacionades Marrocos e comandadas por
Francisco Franco revoltam-se contra a República
Espanhola.
18.7.1936- Começa a Guerra Civil de Espanha. As forças rebeldes são apoiadas
desde o início pelos regimes fascistas da Alemanha, Itália e Portugal.
27.7.1936- Salazar declara estar ao lado de Franco. Pelas fronteiras portuguesas
como a entrar o auxílio alemão e italiano.
8.9.1936- Revolta dos marinheiros dos navios Dão, Afonso de Albuquerque e
Bartolomeu Dias contra o regime salazarista.
20.9.1936- Criação da Legião Portuguesa.
13.10.1936- Julgamento dos marinheiros implicados no Movimento de 8 de Setembro,
no Tribunal Militar Especial de Lisboa.
319
18.10.1936 - Partida da primeira leva de presos políticos para o Campo de
Concentração do Tarrafal, a bordo do navio Luanda.
23.10.1936 - O navio Luanda aporta à ilha Terceira, para embarcar presos do
Forte de São João Baptista com destino ao Tarrafal.
25.10.1936 - É assinado o pacto "Eixo Roma-Berlim".
29.10.1936 - É inaugurado o Campo de Concentração do Tarrafal, na ilha de
Santiago, em Cabo Verde, tendo como director o capitão Manuel Martins dos Reis.
Entram neste dia os primeiros 150 presos.
25.11.1936 - É assinado entre a Alemanha e o Japão o pacto Anticomunista.
1936 -1937 - Desenvolve-se em Portugal uma grande campanha de protesto contra a
intervenção fascista em Espanha e de solidariedade com os democratas espanhóis.
28. 2.1937 - Esmeraldo Pais Prata é nomeado médico do Campo de Concentração do
Tarrafal.
26. 4.1937 - A aviação alemã, por ordem de Goering, destrói a povoação espanhola
de Guernica. É o primeiro ataque aéreo na História contra uma população civil.
12. 6.1937 - Chegada duma nova leva de presos ao Campo de Concentração do
Tarrafal.
7. 7.1937 - As forças progressistas chinesas obrigam o Governo à unidade para
resistir à invasão japonesa iniciada em 1931.
17. 7.1937 - As forças fascistas de Franco entram na cidade de Bilbau.
20. 7.1937 - Abertura da vala em volta do Campo do Tarrafal.
2.8.1937- Tentativa de fuga colectiva dos presos do Tarrafal.
320
3.8.1937-Iniciam-se no Tarrafal os castigos na Frigideira acabada de construir.
Por este lugar sinistro passou a quase totalidade dos presos antifascistas do
Tarrafal. O recorde de dias de castigo na Frigideira pertence a Gabriel Pedro e
a Joaquim Faustino, com 135 e 108 dias respectivamente.
14.9.1937- O paludismo atinge todos os presos. São
interrompidos os trabalhos na vala.
20.9.1937- Morre o primeiro antifascista vitimado pelo paludismo. Outras mortes
se seguirão.
17.11.1937- José Júlio da Silva substitui Manuel dos Reis na direcção do Campo
do Tarrafal.
1.12.1937 - Começam a circular as cédulas que substituem o dinheiro entre os
antifascistas presos no Tarrafal.
12.1.1938 - Mudança dos presos do Tarrafal para os pavilhões de alvenaria
construidos para substituirem as barracas de lona.
11.3.1938- A Alemanhã nazi ocupa militarmente a Austria.
28.4.1938- O Governo português reconhece o Governo de Franco.
2.7.1938- Dado o grande número de doentes é criada a cemitra no Tarrafal.
2.8.1938- Nova tentativa de fuga de alguns presos do Tarrafal.
29.9.1938 - É assinado o Pacto de Munique entre a Alemanha Itália, França e
Inglaterra. Segundo as cláusulas deste Pacto, a região dos Sudetas (da
Checoslováquia) é cedida à Alemanha nazi.
1.10.1938 - Começa a ocupação pela Wehrmacht da região dos Sudetas.
321
20.10.1938- João da Silva - o director dos tempos mais duros do Campo do
Tarrafal - toma posse como novo director.
19.12.1938- É ordenada a proibição absoluta da entrada de jornais no Campo do
Tarrafal.
27.1.1939- O exército fascista de Franço ajudado pelas forças alemãs e
italianas, ócupa a cidade de Barcelona.
15.3.1939 - A Alemanha ocupa militarmente a Checoslováquia.
17.3.1939- É assinado o Pacto Ibérico entre Salazar e Franco.
31.3.1939- As forças franquistas entram em Madrid.
31.3.1939- Fim da Guerra de Espanha.
29.4.1939- João da Silva cria no Campo do Tarrafal o "porta-aviões".
29.5.1939- Com o fim de liquidarem fisicamente os presos do Tarrafal, é decidido
pelos torcionários da PIDE João da Silva, director do Campo, e Seixas, chefe dos
guardas, criar a célebre "Brigada Brava".
1.9.1939- A Alemanha invade a Polónia. Começa a Segunda Guerra Mundial.
2.9.1939- Salazar define a neutralidade portuguesa, que foi de facto uma
política de colaboração com os países do Eixo.
3.9.1939- A Inglaterra e a França declaram guerra à Alemanha.
17.9.1939- O Exército Vermelho entra na Polónia para defender as fronteiras da
URSS do exército alemão.
27.9.1939- O exército Alemão ocupa Varsóvia.
322
21.1.1940- No Campo de Concentração do Tarrafal os carcereiros tiram os
mosquiteiros com que os prisioneiros antifascistas se defendem dos mosquitos e
do paludismo. Só os devolvem em Junho.
9.4.1940 - Hitler invade a Dinamarca e a Noruega.
10.5.1940 - Hitler invade a Bélgica, Holanda e Luxemburgo.
7.6.1940 - João da Silva, despeitado pelo fracasso dos seus planos de divisão
entre os presos do Campo do Tarrafal, parte para Lisboa. O capitão Duarte Osório
Fernandes substitui-o
como director interino.
10.6.1940 - A Itália entra na guerra ao lado da Alemanha.
12.6.1940 - São evacuados do continente europeu os últimos soldados do corpo
expedicionário britânico, que embarcaram em Dunquerque.
14.6.1940- As tropas alemãs entram em Paris
18.6.1940- Começa a batalha aérea da Inglaterra.
22.6.1940- A França capitula perante o exército nazi.
29.6.1940- Encontro de Salazar com Franco.
31.7.1940- Hitler declara: "A Rússia será esmagada em 5 meses".
7.8.1940- O capitão Olegário Antunes toma posse como novo director do Campo do
Tarrafal.
27.9.1940- É assinado o Pacto Anti-Soviético entre a Alemanha, Itália e Japão.
13.4.1941- É assinado entre a União Soviética e o Japão um Pacto de NãoAgressão.
17.4.1941- A Alemanha ocupa militarmente a Grécia.
22.6.1941 - Violando o Tratado de Não-Agressão, a Alemanha invade a União
Soviética.
323
26.6.1941- A Finlândia declara guerra à União Soviética.
31.7.1941- Os chefes nazis decidem a liquidação total dos judeus. Principia a
Solução Final, que leva à liquidação da 4,5 milhöes de seres humanos.
16.9.1941- Keitel, comandante do exército alemão na União Soviética, ordena: por
cada alemão morto, morrerão 50 a 100 comunistas.
23.9.1941- Os nazis fazem as primeiras experiências de assassínios nas câmaras
de gás, no Campo de Concentração de Auschwitz.
28.9.1941- Em Kiev, capital da Ucrânia Soviética os nazis assassinam 4 mil
judeus. Começam os fuzilamentos em massa das populações civis. Só na União
Soviética as unidades especiais nazis, em pouco mais de 6 meses, liquidaram um
milhão de seres humanos.
12.10.1941- As tropas alemãs chegam às portas de Moscovo.
5.11.1941- Inicia-se na Covilhã uma greve geral dos operários têxteis, que
marcou o início de uma nova grande vaga de acções de massas dos trabalhadores
portugueses contra a ditadura fascista.
28.11.1941- Começa na Frente Central a contra ofensiva do Exército Vermelho.
7.12.1941- O Japão ataca Pearl Harbour.
11.12.1941- As forças do Eixo-Alemanha, Itália e Japão declaram guerra aos EUA.
Dezembro de 1941- Manifestações massivas dos estudantes de
Lisboa contra os aumentos das propinas.
1941-1942 - As massas camponesas, em Penafiel, Oliveira de Azeméis e outras
regiões de Portugal, levantam-se contra o envio de géneros alimentícios para a
Alemanha nazi.
324
6.1.1942 - A União Soviética apresenta a primeira nota sobre os crimes de guerra
alemães.
15.1.1942 - As Nações Aliadas declaram: "Os criminosos de guerra serão
castigados".
10.6.1942 - Os nazis alemães arrasam Lidice pequena aldeia checa e matam toda a
sua população, numa operação de represálias massivas.
15.8.1942- Começa a Batalha de Estalinegrado.
11.9.1942- Morre no Campo de Concentração do Tarrafal Bento Gonçalves,
secretário-geral do PCP.
7.10.1942- É criada a Comissão Internacional de Crimes de Guerra.
Outubro/Novembro de 1942 - Vaga de greves de 20000 operários de Lisboa e
arredores contra o congelamento de salários. O governo fascista é obrigado a
publicar uma série de "contratos colectivos" para "actualizar" os salários.
7.11.1942- Desembarque das tropas anglo-americanas no Norte de África.
12.11.1942- O exército alemão completa a ocupação de França.
19.11.1942- Começa em todas as frentes a grande ofensiva soviética com
particular realce na Frente de Estalinegrado.
30.11.1942- Toma posse como director do Campo de Concentração do Tarrafal o
capitão Filipe de Barros.
31.1.1943- Capitulação das forças alemãs cercadas em Estalinegrado. Mudou a face
da guerra. A iniciativa na guerra passa, a partir de então às forças militares
soviéticas.
325
13.5.1943- Termina a batalha da Tunísia com a vitória dos Aliados.
11.6.1943- Hitler ordena a liquidação total dos judeus.
5.7.1943- Começa a batalha dos salientes de Kursk e Orel.
8.7.1943 - Bombardeamento de Colónia pela aviação anglo-americana, que
intensifica os bombardeamentos aos centros industriais da Alemanha.
10.7.1943- As tropas anglo-americanas desembarcam na Sicília.
13.7.1943- O Exército Vermelho passa ao ataque em Orel. O seu avanço só se
deterá em Berlim.
25.7.1943- Queda do fascismo italiano. É preso Mussolini.
26.7.1943- Iniciada pelos operários da construção naval desenvolve-se em Lisboa
uma vaga de greves que abrange, no terceiro dia, 50000 trabalhadores. O
movimento alarga-se a Silves, S. João da Madeira e outras regiões. A polícia
ocupa militarmente as empresas e prende milhares de grevistas.
Agosto de 1943 - Milhares de camponeses da região de Coimbra saem à rua em
manifestação contra a falta de géneros. Nos meses seguintes desenvolve-se no
país um movimento de
marchas de fome, com grande participação das mulheres.
18.8.1943- Portugal cede a base dos Açores à Inglaterra.
3.9.1943- A Itália assina o armistício com os Aliados.
10.9.1943- Os alemães invadem a Itália.
12.9.1943- Os nazis alemães libertam Mussolini.
29.9.1943- Inicia-se a batalha pela linha do Dnieper.
326
13.10.1943- A Itália declara guerra à Alemanha.
Novembro de 1943 - O Partido Comunista Português realiza o
seu primeiro Congresso clandestino (III do Partido), que dá um grande impulso ao
desenvolvimento de toda a luta antifascista.
1.11.1943- "Declaração de Moscovo" sobre o castigo dos "criminosos de guerra".
6.11.1943- Kieve libertada pelo Exército Vermelho.
24.12.1943- Inicia-se a terceira grande ofensiva soviética para a libertação
total do território nacional.
Janeiro de 1944- É formado o Movimento Nacional Antifascista (MUNAF), em cujo
Conselho Nacional estão representadas as principais forças e sectores políticos
portugueses em luta contra a ditadura de Salazar.
29.1.1944- Os alemães vêem-se forçados a abandonar Leninegrado depois de um
cerco de cerca de dois anos.
16.2.1944- Aniquilamento das forças alemãs - 100000 soldados - na bolsa de
Kerson.
10.3.1944- Rende-se a guarnição alemã de Uman: 6 divisões Panzer.
8.4.1944- O Exército Vermelho liberta a Crimeia.
10.4.1944- É libertada Odessa.
8/9.5.1944- Poderosa vaga de greves dos trabalhadores da zona de Sacavém, Vila
Franca, Lisboa, Barreiro, Loures, Pêro Pinheiro. As greves, a que aderem mais de
25000 trabalhadores,
são acompanhadas de manifestações com grande participação de camponeses.
4.6.1944- As tropas anglo-americanas ocupam Roma.
327
6.6.1944- Começa a invasão da Normandia pelas forças militares anglo-americanas.
22.6.1944- Pelo terceiro aniversário da invasão da URSS, O Exército Vermelho
desencadeia nova ofensiva.
3.7.1944- É libertada Minsk, capital da Bielorrússia.
20.7.1944- Atentado contra Hitler.
14.8.1944- Novo grande desembarque das forças aliadas no Sul de França.
21.8.1944- Conferência para a criação das Nações Unidas.
25.8.1944- As tropas aliadas entram em Paris.
31.8.1914- O Exécito Vermelho entra em Bucareste.
4.9.1944- A Finlândia assina a paz com a URSS.
20.10.1944- As forças patrióticas jugoslavas, com o apoio do Exército Vermelho,
libertam Belgrado.
11.1.1945- O Exército Vermelho entra em Varsóvia.
26.1.1945- As tropas soviéticas entram no Campo de Concentração de Auschwitz.
14.2.1945- O Exército Vermelho liberta Budapeste, capital da Hungria.
12.4.1945- Morre Roosevelt, presidente dos Estados Unidos.
13.4.1945- O Exército Vermelho liberta Viena, capital da Áustria.
18.4.1945- Na bolsa de Ruhr são aprisionados 325000 soldados alemães e 30
generais.
25.4.1945- Junção das forças americanas e soviéticas no Elba, us povoação de
Torgau.
328
28.4.1945 - Mussolini é preso, julgado e fuzilado pelos guerrilheiros italianos.
30.4.1945 - Hitler suicida-se no Bunker da Chancelaria, em Berlim. Salazar
decreta luto nacional.
1.5.1945- É içada a bandeira soviética no edifício do Reichstag, em Berlim.
2.5.1945- O Exército Vermelho toma Berlim, capital da Alemanha hitleriana.
8.5.1945 - A Alemanha nazi capitula incondicionalmente.
8/9.5.1945 - Em Lisboa, Margem Sul, Porto, Coimbra, Viana do Castelo, Marinha
Grande, Alentejo e muitas outras regiões do País e povo vem para a rua, em
grandiosas manifestações, festejando o fim da guerra e a derrota do nazismo,
reclamando eleições livres e a libertação dos presos políticos.
A extinção do Tarrafal aparece, em todas as manifestações, como uma das
principais reclamações do povo português.
26.6.1945- É assinado o acordo que cria as Nações Unidas.
6.8.1945- Truman, presidente dos Estados Unidos, manda lançar sobre a cidade
japonesa de Hiroshima a primeira bomba atómica da História.
15.8.1945- Rendição do Japão. Fim da Segunda Guerra Mundial.
6.10.1945- Salazar, pressionado pelas forças antifascistas portuguesas, decreta
uma amnistia-burla.
7.10.1945- É criado o Movimento de Unidade Democrática (MUD), que encabeça a
luta unitária de toda a oposição ao regime salazarista, no plano legal.
20.11.1945- Começa em Nuremberga o julgamento dos grandes criminosos de guerra.
329
Outubro//Dezembro de 1945- Mobilização de milhares de trabalhadores para as
eleições nos sindicatos fascistas e
vitórias das listas democráticas unitárias em mais de 50 sindicatos. Formam-se
em todo o país comissões do MUD.
Desenvolve-se por todo o país um grande movimento nacional reclamando o imediato
encerramento do Campo de Concentração
do Tarrafal e a libertação dos antifascistas aí condenados à morte lenta.
Outubro/Novembro de 1945 - Poderosas manifestações e comícios da Oposição
Democrática marcam a campanha eleitoral que Salazar é forçado a conceder sob a
pressão da opinião pública nacional e internacional.
"Amnistia" e extinção do Tarrafal são duas das principais reclamações
apresentadas na campanha.
18.11.1945 - O MUD boicota as eleições-burla, por não terem sido concedidas as
condiçöes mínimas para regularidade do acto eleitoral.
26.1.1946 - Embarcam com destino a Portugal os presos amnistiados do Campo de
Concentração do Tarrafal. Ficam ainda no Tarrafal 52 presos politicos.
31.1.1946 - Grandes manifestações pela liberdade em Lisboa (70000 pessoas) e no
Porto.
5.10.1946 - Grandes manifestações antifascistas em Lisboa e Porto.
10.10.1946 - É dominada na Mealhada uma tentativa insurreccional promovida por
sectores militares liberais.
12.11.1948 - Termina em Lisboa o julgamento dos 108, com a condenação de cerca
de uma centena de antifascistas, entre os quais Francisco Miguel, que é enviado
para o Tarrafal donde será o último preso político a sair.
330
Janeiro de 1949 - Desenvolvem-se grandiosas manifestações populares de apoio à
candidatura do general Norton de Matos, apresentada pela Oposição Democrática
nas eleições para a Presidência da República. A extinção do Tarrafal é uma das
reclamações apresentadas na campanha que recebe maior apoio popular.
13.2.1949 - A Oposição Democrática boicota a votação como protesto contra a
farsa eleitoral. Os representantes da Oposição não podem sequer participar na
contagem dos votos.
4.4.1949 - O governo de Salazar é admitido na NATO.
11/12.12.52- Vários oficiais implicados numa tentativa de golpe de Estado são
julgados em Conselho de Guerra.
1952-1953 - A luta pela Amnistia torna-se uma das principais frentes de acção e
unidade das forças democráticas portuguesas.
31.1.1953 - O último preso politico português no Tarrafal, Francisco Miguel, é
transferido para a cadeia do Forte de Caias.
26.1.1954 - Encerramento do Campo de Concentração do Tarrafal.
331
BIOGRAFIAS
ANIBAL BIZARRO, operário-pintor, militante do Partido Comunista Português desde
1933, trabalhou durante dois anos numa tipografia clandestina do jornal Avante!
Preso em Maio de 1936, foi enviado em Julho de 1939 para o Campo de Concentração
do Tarrafal. Libertado em 1944, voltou à luta contra o fascismo.
ANTÓNIO DINIS CABAÇO, marinheiro da Armada, membro do Partido Comunista
Português desde 1935, foi preso a 8 de Setembro de 1936, quando da revolta dos
navios Afonso de Albuquerque, Bartolomeu Dias e Dão. Condenado a 16 anos de
desterro, é enviado para o Campo de Concentração do Tarrafal, foi libertado em
1952.
ANTÓNIO GONÇALVES COIMBRA, alistou-se na Armada em 1933, encontrando-se a bordo
do Bartoloméu Dias quando da Revolta de 8 de Setembro de 1936. Condenado a 16
anos de desterro pelo Tribunal Militar Especial segue para o Tarrafal onde
cumpriu todo o tempo da sua pena.
ARMANDO MARTINS DE CARVALHO, carpinteiro, militava desde 1932 no movimento
sindical. Responsável em 1933 por uma célula de Juventude Comunista, preso após
o 18 de Janeiro de 1934, cumpriu quinze meses de prisão. Em Maio de 1936 é preso
de novo no Barreiro. Julgado e condenado, cumpre os quatro anos da sentença no
Campo de Concentração do Tarrafal. Libertado, volta à actividade política.
ARMINDO DO AMARAL GUIMARÃES, alistou-se como voluntário na Armada em 1933.
Participa na Revolta dos Marinheiros e é condenado a 16 anos de desterro. Cumpre
333
no Campo de Concentração do Tarrafal 12 anos e 6 meses e na Penitenciária de
Lisboa, 2 anos e meio. Foi libertado a 12 de Julho de 1951.
AUGUSTO COSTA VALDEZ, membro do Partido Comunista Português desde 1934, foi
preso pela primeira vez em Maio de 1935. Em 1936 teve de passar à
clandestinidade, trabalhando numa tipografia do Avante!. Preso em Janeiro de
1938 evade-se de Caxias em Março de 1939. Volta ao trabalho da tipografia
clandestina e novamente a polícia o prende em Maio de 1939. Deportado para o
Campo de Concentração do Tarrafal em Junho
desse ano, é libertado em Janeiro de 1946. De novo nas tipografias clandestinas
em Julho de 1947, volta à legalidade em 1948, por razões de saúde. É preso uma
vez mais em Julho de 1959. Manteve-se sempre em actividade política.
FRANCISCO MIGUEL DUARTE, membro do Partido Comunista Português desde 1932, foi
preso quatro vezes e julgado trÊs. Passou nas prisões fascistas 21 anos e 2
meses. No Tarrafal esteve duas vezes e 5 anos e meio quando da primeira, 3 da
segunda. Foi o último preso a ser libertado do Campo de Concentração. Evadiu-se
quatro vezes das prisões fascistas e viveu muitos anos na clandestinidade.
Membro do Comité Central do PCP desde
1939, foi deputado à Assembleia Constituinte pelo distrito
de Beja. É deputado da Assembleia da República pelo mesmo distrito.
HENRIQUE OCHSEMBERG, alistou-se na Marinha e militou na Organização
revolucionária da Armada (O.R.A.) e na Juventude Comunista. Foi preso em Maio de
1935, a bordo da fragata D. Fernando. Enviado para o Campo de Concentração do
Tarrafal, ali permaneceu 4 anos. Libertado em 1940, continuou a sua actividade
política.
JOÃO FARIA BORDA, dirigente da Organização Revolucionária da Armada (O.R.A.),
foi condenado a 20 anos de degredo por ter participado na Revolta dos
Marinheiros, a 8 de Setembro de 1936. Passou 16 anos e 3 meses no Campo de
Concentração do Tarrafal e mais um ano no Forte de Peniche. Em Outubro de 1959
volta a ser preso, cumprindo mais 8 meses de prisão. É autor
de A Revolta dos Marinheiros.
334
JOÃO RODRIGUES, litógrafo, membro do Partido Comunista Português desde 1933, foi
preso por ter participado no 18 de Janeiro de 1934. Julgado pelo Tribunal
Militar Especial, foi condenado a 14 anos de prisão, que cumpriu na Trafaria,
Angra do Heroismo Peniche e Tarrafal. No Campo de Concentração esteve 13 anos e
5 meses, de um total de 16 anos e 6 meses.
Libertado, voltou a lutar contra o fascismo, na clandestinidade. Por ocasião do
25 de Abril encontrava-se em
França, onde ainda trabalha.
JOÃO DA SILVA CAMPELO, alistou-se na Armada, como voluntário em 1931. Aderiu ao
Partido Comunista Português em 1935. Militante da Organização Revolucionária da
Armada, foi preso em 1936 pela sua actuação na Revolta dos Marinheiros. E
condenado a 16 anos de prisão, cumpridos inteiramente no Campo de Concentração
do Tarrafal.
JOAQUIM AMARO, operário da construção civil, militante antifascista desde 1931.
De 1931 a 1933 foi deportado para Timor. Em 1935 filiou-se no Partido Comunista
Português. Em Abril de 1937 é preso e, sem julgamento, enviado para o Campo de
Concentração do Tarrafal. Libertado em Janeiro de 1946, voltou a ser preso em
Abril de 1963, só sendo libertado em Julho de 1968.
JOAQUIM GOMES CASQUINHA, alistou-se na Armade como voluntário. Militante de
O.R.A., tomou parte na Revolta dos Marinheiros. Julgado pelo Tribunal Militar
Especial é condenado a 20 anos de prisão. Depois de 17 anos no Campo de
Concentração do Tarrafal foi transferido em Agosto para o Forte de Peniche, até
24 de Dezembro de 1953.
JOAQUIM RIBEIRO, alistou-se em 1930 na Armada, onde aderiu à O.R.A. Em 1934,
filia-se no PCP. A 8 de Setembro de 1936 é preso por participação na Revolta dos
Marinheiros. Condenado a 16 anos de degredo é enviado para o Tarrafal de onde só
é libertado em Agosto de 1952. Sofre ainda prisões em Março de 1962 e Julho de
1966. Depois do 25 de Abril foi candidato pelo PCP a deputado à Assembleia
Constituinte. É autor de "No Tarrafal, Prisioneiro".
JOSÉ BARATA JÚNIOR, alistou-se na Armada, como voluntário, aos 16 anos.
Participa na revolta dos Mari335
nheiros. Condenado a 16 anos de degredo, esteve preso 14 anos, 4 meses e 8 dias
dos quais, no Campo de Concentração do Tarrafal, 10 anos e 11 meses e o tempo
restante nas prisões da Penitenciária, Limoeiro, Peniche.
JOSÉ GILBERTO FLORINDO DE OLIVEIRA, foi preso pela primeira vez em Janeiro de
1933, como dirigente da Juventude Comunista. Sai em liberdade em Março de 1935.
Participou no VII Congresso da Internacional Comunista e no VI Congresso da
Internacional Juvenil. Em Julho de 1936 volta a ser preso. Enviado para o
Tarrafal, ali fica preso até Janeiro de 1946. Participou no II Congresso ilegal
do PCP. Viveu vários anos na clandestinidade.
JOSÉ NEVES AMADO, marinheiro da Armada desde 1932, foi a 8 de Setembro de 1936,
um dos participantes na revolta dos navios Afonso de Albuquerque, Bartolomeu
Dias e Dão. Condenado a 17 anos e 6 meses de prisão maior é enviado para o Campo
de Concentração do Tarrafal. Ao fim de 16 anos foi transferido para a
Penitenciária de Lisboa, onde ainda fica um ano. É, finalmente, libertado em
1953.
JOSÉ DOS SANTOS VIEGAS, operário, aderiu ao PCP em 1933. Participa no 18 de
Janeiro de 1934. Preso, é condenado pelo Tribunal Militar Especial a 12 anos de
prisão. Passa pelas prisões de Lisboa e Faro, pelo Presídio Militar da Trafaria
pelo Forte de São João Baptista e finalmente pelo Campo de Concentração do
Tarrafal, onde esteve 13 anos e 2 meses. Libertado em 1949, volta a ser preso e
encarcerado em Caxias. Passou nas prisões fascistas 19 anos e 2 meses.
JOSUÉ MARTINS ROMÃO, alistou-se na Armada como voluntário e tomou parte na
Revolta dos Marinheiros. Condenado a 16 anos de prisão, passou-os completamente
no Campo de Concentração do Tarrafal. No Tarrafal, em 1939, filia-se no PCP.
Libertado em 1952, continuou a lutar contra o fascismo.
MANUEL BAPTISTA DOS REIS, médico, foi preso pela primeira vez em 1932. Combateu
na Guerra Civil de Espanha até ao seu termo, como médico. Terminada a guerra foi
internado num campo de concentração em França, onde tentou refugiar-se. Com a
ocupação do território francês pelas tropas hitlerianas evade-se do Campo e
regressa a Portugal. Preso na fronteira pela polí336
cia fascista portuguesa é enviado para o Campo de Concentração do Tarrafal, em
1941. É libertado em 1946. Exerce clínica em Grândola.
MANUEL DA GRAÇA, operário, filiou-se no PCP em 1927. A 18 de Janeiro de 1934 faz
parte do Comité Revolucionário de Setúbal. Julgado à revelia pelo Tribunal
Militar Especial, acaba por ser preso. Passa pelas prisões do Governo Civil,
Aljube, Peniche. Julgado em segundo processo, a pena é agravada de 3 para 6 anos
de desterro. Em Outubro de 1936 é enviado para o Campo do Tarrafal, de onde é
libertado em 1946. Em 1949, quando da candidatura de Norton de Matos à
Presidência da República, é novamente preso e encarcerado em Caxias.
MIGUEL WAGER RUSSEL, aderiu ao PCP em 1931 e nesse mesmo ano é preso. Sai em
liberdade em 1932, passando a exercer actividade partidária clandestina. Preso
em Abril de 1937, é enviado sem julgamento para o Campo do Tarrafal, onde
permanece preso de Junho de 1937 a 25 de Janeiro de 1946. É autor de
"Recordações dos Tempos Difíceis".
OLIVER BRANCO BÁRTOLO, alistou-se na Armada em 1927. Militou na O.R.A., de que
foi um dos dirigentes, desde o seu início, em 1931. Preso em Maio de 1935, é
condenado a 23 meses de prisão correccional pelo Tribunal Militar Especial, que
iriam transformar-se, de facto, em 10 anos e 8 meses de prisão. Deste tempo, 9
anos e 3 meses foram passados no Campo do Tarrafal, e o restante nas prisões do
Aljube, Governo Civil e Peniche.
REINALDO DE CASTRO, foi preso pela primeira vez em Agosto de 1931 e deportado
para Timor. Regressando dois anos depois, em 1933, volta à luta contra o
fascismo. Parte depois para Espanha, onde combate na Guerra Civil, nas brigadas
Internacionais. Feito prisioneiro, continua em Espanha até Dezembro de 1940,
submetido a trabalhos forçados. Entregue na fronteira à polícia portuguesa, é
enviado para o Campo do Tarrafal por meados de 1941. Sai em liberdade em Janeiro
de 1946.
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ÍNDICE
I
II
III IV
V
VI
VII VIII IX
X
XI
XII XIII XIV XV
XVI XVII -
Achada grande do Tarrafal................
Mar e arame farpado .....................
O poço do chambão .......................
A cozinha do Campo ......................
Dez pancadas no carril ..................
O Manuel dos Arames .....................
A grande cavalgada ......................
A frigideira ............................
O período agudo .........................
O "Tralheira" ...........................
Segunda fuga falhada ....................
O "Faraó" ...............................
O "Arreda" ..............................
A biliosa ...............................
O "Abóbora" .............................
Últimos anos ............................
Os vencedores do campo ..................
57
103
111
129
145
159
185
199
211
221
235
9
17
27
45
71
93
TESTEMUNHOS DE:
ANÍBAL BIZARRO, ANTÓNIO DINIS CABAÇO, ANTÓNIO GONÇALVES COIMBRA, ARMANDO
MARTINS DE CARVALHO, ARMINDO AMARAL GUIMARÃES, AUGUSTO COSTA VALDEZ, FRANCISCO
MIGUEL, HENRIQUE OCHSEMBERG, JOÃO FARIA BORDA, JOÃO RODRIGUES, JOÃO DA SILVA
CAMPELO, JOAQUIM AMARO, JOAQUIM GOMES CASQUINHA, JOAQUIM RIBEIRO, JOSÉ BARATA
JUNIOR, JOSÉ GILBERTO FLORINDO DE OLIVEIRA, JOSÉ NEVES AMADO, JOSÉ SANTOS
VIEGAS, JOSUÉ MARTINS ROMÃO, MANUEL BAPTISTA DOS REIS, MANUEL DA GRAÇA, MIGUEL
WAGER RUSSEL, OLIVER BRANCO BÁRTOLO, REINALDO DE CASTRO
COORDENAÇÃO DE FRANCISCO DE SOUSA
Digitalizado e Corrigido por José Miguel Santos e Maria da Conceição Santos em
1999

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