História e genealogia das idéias psicanalíticas latino
Transcrição
História e genealogia das idéias psicanalíticas latino
1 História e genealogia das idéias psicanalíticas latino-americanas 1 Paulo Marchon 2 Oh! que saudades que tenho Da aurora da minha vida (…) (Casimiro de Abreu) Através do relato do seu desenvolvimento como psicanalista, o autor comenta as idéias psicanalíticas que estudou e acompanhou em sua vida. Conta também a aparição e o desenvolvimento de novas idéias e o impacto delas no cenário brasileiro. Focaliza a psicoterapia analítica de grupo, o lacanismo, a influência de Klein, Bion, Kohut, Winnicott e a importância da psicanálise argentina para a América Latina. Observa o desenvolvimento expressivo que São Paulo, Porto Alegre, Rio, Argentina, Chile, Uruguai e outras regiões da América Latina estão realizando. Mostra diferenças e semelhanças entre seu trabalho anterior e atual, enfocando os temas da “virada ética” kleiniana na psicanálise, bem como a evolução do conceito de Amor-Eros para Amor-Charitas, intimamente ligado à consideração em relação ao outro. Lembra Perestrello que, em 1974, já dizia não haver medicina sem Charitas, equivalente a amor e não caridade. Enfatiza o valor social desta “virada ética”. Atribui importância ao perdão como o meio pelo qual o ato pode atingir um término, um fim. 1 2 Publicado na Revista Brasileira de Psicanálise, vol. 38, n.2, 2004 Membro efetivo da SBPRJ, SPR e NPF 2 As idéias são um patrimônio universal. Contando o meu desenvolvimento cultural e minha evolução, desejo descrever a história vivida das idéias psicanalíticas de um psicanalista latino-americano. O que nos importa fundamentalmente é a escolha e o uso que fazemos das idéias. Trabalhando-as e, se possível, ampliando-as, modificando-as, ou talvez, quem sabe, criando novas, todas elas – alheias ou próprias – irão tornar-se nossas e também do nosso torrão natal, pequeno ou grande, mas integrante de toda a Humanidade. Trata-se de um duplo jogo: de um lado eu e meu pequeno mundo e, do outro lado, o Grande Mundo e o impacto da Psicanálise sobre mim e a minha geração. Como estudante de Medicina e monitor da Cátedra de Psiquiatria, do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, eu vivia integralmente nesse hospital psiquiátrico universitário, recebendo, dia e noite, as miríades de informações do grand-monde da Psiquiatria e da Psicanálise mundial. Mas, fundamentalmente, meus colegas e eu ficávamos recebendo as mensagens dos pacientes internados, com os quais vivíamos irmanados e, quase… também internados. A loucura nos atraía. Lá estavam Roberto Martins, Portella, Hoirisch, Zusman, Wanda, Jaime Salomão, José Cândido, Manhães, Quilelli, Neilton, Galina e muitos outros, acompanhados de Walderedo, Bahia, Marialzira, Décio, Azulay e Lisânias. Quanto ao “pequeno mundo”, há uma referência à orgulhosa cidade de Cachoeiro de minha adolescência, cujo hino diz: Meu pequeno Cachoeiro, vivo só pensando em ti. Trata-se de uma cidade que se diz “capital secreta do mundo”. Seu cronista maior, Rubem Braga, afiança que, na hora da conversa final com São Pedro, se este mantiver dúvidas quanto à admissão ao Céu, haverá um argumento decisivo: São Pedro, eu sou lá de Cachoeiro... Por isso todos querem ser de Cachoeiro e foi criada a naturalidade especial de cachoeirense ausente. Também vale. Nascido na década de trinta, era eu o nono filho de uma família de dez. Meus pais eram pessoas muito boas, pobres e apenas alfabetizadas. Através de intenso trabalho o pai se desenvolveu economicamente, tornando-se um “comprador de café”. Mas o mundo já era globalizado naquela época e, com a queda da bolsa americana e o "crack" do café em 1929, os pais perderam tudo e a família mergulhou de novo na pobreza e no trabalho intenso. A casa era sem 3 livros, os irmãos tinham apenas instrução primária. Aos oito anos, chegou às minhas mãos o mundo maravilhoso de Monteiro Lobato, através das Reinações de Narizinho. Cheguei até a brigar com uma irmã, disputando a primazia da leitura. Daí em diante o universo se abriu. Um outro mundo iria se descortinar com o Arquiteto de idéias. Era uma súmula dos trabalhos dos grandes cientistas do mundo. Lá estava, por certo, Freud. Seu nome provavelmente permaneceu apenas inconsciente. Depois, em plena 2ª guerra, a revista americana Em guarda para a defesa das Américas era leitura gratuita e indispensável. Pois a leitura era a luta e a luta contra Hitler estimulava o esforço da população civil, inclusive das crianças brasileiras de então. Havia grande admiração pelo esforço americano, britânico e russo na guerra contra a barbárie. E nem mesmo a invasão da França conseguiu abalar a intensa influência francesa naquela época. Aos onze anos de idade, todos nós começávamos a estudar latim, francês e inglês. Aos catorze anos, espanhol. Ao mesmo tempo, ensaiávamos nos livros-textos a leitura de Júlio César, De bello gallico, Virgílio e outros. Apenas ensaiávamos, pois ninguém ousava sair dos livros-textos. O latim continuaria uma pedra no meio do caminho. De Gaulle, Napoleão e os maquis representavam o heroísmo da França e se uniam a Julien Sorel, Le Rouge et le Noir e Sthendal. Ainda na adolescência, o mundo mágico dos irmãos Brontë, cuja atmosfera, de certa forma, é descrita e revivida em "Wuthering Hights", era lido avidamente, ao mesmo tempo que Os Sertões, de Euclides da Cunha, Álvares de Azevedo, Aloísio de Azevedo, os parnasianos, os românticos e quem mais? As fracas enciclopédias acessíveis eram insuficientes para desfazer as dificuldades das leituras. Daí em diante Raskólnikov, Dostoievsky, os Karamazov, Grushenka, Lamartine, “Le Lac” e Elvire, Victor Hugo, Jean Valgean, Castro Alves, “Navio Negreiro”, Alencar, Iracema, Ceci, Peri, Machado de Assis, Bentinho, Capitu de olhos oblíquos, misturavam-se com o futebol de Di Stéfano, Obdúlio Varela, Zizinho, Ademir, Labruna, Pontoni e Lostau, Gighia, Gighia, Uruguai 2x1, a derrota de 1950 no Maracanã e só depois, muito depois, Pelé, Garrincha e Maradona. O existencialismo, Sartre, a inacessível Paris era uma festa, mas só na imaginação, Hamlet, Shakespeare, Ibsen, o filme argentino Casa de Muñecas 4 existiu? O Petróleo é Nosso, Vargas, Jânio, Fidel, Guevara, Vietnã. Ainda havia a música dolente, Sertaneja, por que choras quando eu canto, o tango, Gardel, Mi Buenos Aires querido, tão distante, tão inacessível, Orlando Silva, You never know just how much I love you, Quizás, Quizás, Quizás, Cha Cha Cha, Maria Bonita, Agostin Lara, o bolero, o baião, Luiz Gonzaga, Piaf, Montand, Mário Lanza, musicais da Metro, a guerra fria, o cinema, o esquecido Cantinflas, Chaplin, John Ford, Pasárgada de Bandeira, Mistral dorado sol que já riegas mi ventana de esplendor, oh! que saudades que tenho de meus oito anos, de Casimiro de Abreu, de Lamartine Babo, de Noel Rosa, do Oscarito, de Grande Otelo, do samba e do carnaval, Brasil, meu Brasil brasileiro, vou cantar-te nos meus versos e nos versos de Ary Barroso. América Latina e nós mesmos, nossa alma, cantada por Borges e Neruda em mais de Una canción desesperada e em menos, infelizmente, em menos de Veinte poemas de amor e depois? Escrevêlos como? Com lágrimas ou com interpretações? Provavelmente com mais Una canción desesperada … Rubem Braga, Cachoeiro, Cachoeiro, vivo só pensando em ti, doce terra onde eu nasci... Em breves anos, sucederam-se a vinda para estudar medicina no Rio, a decepção com o curso médico, a admiração por Bernardo Houssay e seu extraordinário Tratado de Fisiologia. Ao final, o encantamento com a Psiquiatria e a Psicanálise. A psicanálise iria tratar destas e de outras questões. Os Primórdios da Psicanálise na América Latina Genserico Pinto – um brasileiro do Ceará – fez o primeiro “atendimento clínico de acordo com os princípios psicanalíticos [na América Latina]” (p.144) Eliana Nogueira do Vale O contato com Arnaldo Rascovsky foi um estouro. Marialzira Perestrello O ambiente da Faculdade de Medicina espelhava a situação geral do país e do continente latino-americano: o clima político era de extremos, de um lado 5 uma aguerrida juventude com idéias de esquerda, do outro, o grupo muito ativo dos chamados "reacionários" e, no meio das duas correntes, uma multidão. Todos eles e nós iríamos mergulhar nas Sociedades de Psicanálise onde, de alguma forma, estas lutas continuariam, independentemente das escolas escolhidas e também, por que não dizê-lo, dentro de muitos de nós e independentemente de nós mesmos. Marialzira Perestrello, afirma que, em 1899, Juliano Moreira, referia-se às idéias de Freud em suas aulas. Em 1914, ele fez uma comunicação à Sociedade Brasileira de Neurologia sobre o método de Freud (p.13).” Em 1904, José Ingenieros, famoso psiquiatra e filósofo argentino, publicou um artigo em que, pela primeira vez, se falava em Freud. Na História do Movimento Psicanalítico (1914), Freud escreveu: “A physician from Chile (probably a German) spoke at the International Congress at Buenos Aires in 1910 … commended highly the effects of psychoanalytic treatment” (p.30). Sabe-se que ele era chileno e se chamava Germán Greve, mas suas palavras não repercutiram entre os psiquiatras argentinos (Roudinesco, p.32). Marialzira descobriu que Genserico Aragão de Souza Pinto, “em dezembro de 1914(!), pouco após a comunicação de Juliano Moreira, a conselho de Antônio Austregésilo, escreve e defende a tese de doutorado intitulada: ‘Da Psicanálise – a sexualidade das neuroses’. Segundo Lourenço Filho, trata-se do primeiro trabalho psicanalítico escrito em língua portuguesa” (p.14, os grifos são meus). Ele havia atendido quatro pacientes sob os “princípios psicanalíticos”. Em 1928, em São Paulo, foi publicado um número da Revista Brasileira de Psicanálise, que só voltaria a circular em 1967. Durval Marcondes trabalhou intensamente com Jones, para que, ao final, Adelheid Koch, analista de Berlim, viesse para São Paulo, em 1936, e inaugurasse, em julho de 1937, o “primeiro centro de formação de psicanalistas do Brasil”. Segundo Luiz de Almeida Prado Galvão: “foi São Paulo que introduziu o ensino sistemático para a formação de analistas da América Latina (Bicudo, p.414). Durval, Virgínia, Darcy Uchoa, Frank Philips e Lygia Amaral foram os primeiros candidatos. Em 1944, São Paulo transformou-se na primeira Sociedade brasileira ligada à IPA. 6 Em Buenos Aires, em 1938, formou-se o grande centro que difundiu a psicanálise em Porto Alegre, no Rio, México, Uruguai e outras regiões. Langer, Garma, Cárcamo, Ferrari Hardoy, Pichon Rivière e Arnaldo Rascovsky fundaram, em 1942, a APA. Entre os candidatos estavam Arminda Aberastury e Racker. Em El contexto del proceso psicanalítico, Emílio e Geneviève Rodrigué diziam que: El americano del norte sabe poco o nada del pensamiento analítico de su colega inglés. Y lo que sabe es prejuiciado. Lo mismo se da a la inversa. El grupo argentino, por su geografia y su história, pudo recibir más facilmente tanto del uno como del otro. La polémica nos ha tironeado menos, por no estar comprometidos (p.13). Marie Langer nos lembra que: Antes do final da guerra, houve um Congresso de Medicina Psicossomática no Brasil. Rascovsky, homem muito capaz para a propaganda e para convencer, sugeriu-nos que todos fôssemos participar do congresso. No Rio, nos encontramos com alguns colegas brasileiros que posteriormente, iriam analisar-se em Buenos Aires (p.89-90). Na publicação Homenagem ao Dr. Mark Burke (Pacheco, 1979), Marialzira dá a versão brasileira desse encontro. Depois de descrever a “ânsia” para trazer um psicanalista para o Rio, ela comentou sobre Rascovsky: Suas conferências criaram um entusiasmo enorme. Mas foi alvo de crítica intensa, por causa de suas atitudes hipomaníacas, fora das conferências … Foi uma revolução no Rio de Janeiro. … Alguns nem queriam falar em psicanálise. … A vinda de Arnaldo foi, porém, muito construtiva. Ele nos explicou o que era uma formação psicanalítica. … Garma também veio… Com tanta convicção quanto Arnaldo (p.13). Pode-se admitir que o resultado da capacidade para a propaganda e convencimento foi extremamente feliz e frutífero. Como diria Langer: “Esse foi o começo da importância da APA na América Latina como instituição de formação 7 e ensino” (p. 90). Parece-me que “esse começo” eclipsou São Paulo na história de tal maneira que eu só estou tendo a consciência plena disto neste momento de escrever esta história. Refiro-me a São Paulo de 1937. Mas assim se fez e se faz a História. Como se pode ver, ela tem seus momentos simples, humanos, muito humanos. A reciprocidade das aspirações entre Buenos Aires e a América Latina era uma realidade e, desta maneira, o país chamado Freud tornou-se um verdadeiro continente – a América Latina. Em 1943, conta-nos Cyro Martins que Mário Martins fez a assinatura da Revista de Psicoanalisis argentina e, daí, tomou Da. Zaira pelos braços, rumando para o divã de Angel Garma, levando a tiracolo o filho e futuro psicanalista Roberto (p.421). Em 1948, indicados por Jones, chegaram ao Rio Werner Kemper e Mark Burke. Dois anos após, se separaram e foram formados dois pequenos agrupamentos, chamados: "os de Burke", berço da Rio II e "os de Kemper", que constituiriam o núcleo da Rio I. Por esta época, retornaram de Buenos Aires Danilo Perestrello e Alcyon Baher Bahia, analisados por Cárcamo, Marialzira, por Pichon Rivière e Walderedo Ismael de Oliveira, por Marie Langer. Eles seriam denominados "os argentinos" e iriam se tornar, logo após, integrantes da Rio II, unindo-se “aos de Burke” e, posteriormente, “aos britânicos”, que estavam para chegar. Os três grupos iriam constituir uma sociedade predominantemente kleiniana, mas com imensa valorização de Freud. Este domínio kleiniano iria diminuir sensivelmente com o tempo, em função do desenvolvimento das idéias kohutianas e winnicottianas. Luiz Werneck afirma que no dia 23 de janeiro de 1948 “pela primeira vez, no Rio, médicos se deitaram num divã, tendo atrás de si um psicanalista” (p.27). Na mesma publicação, Noemy Rudolfer (p.20) nos lembra que “o primeiro núcleo verdadeiramente organizado de Melanie Klein fora da Inglaterra foi o grupo que se formou nesta Sociedade”[RioII]. Tal como o personagem de Tolstoi, porém nós não sabíamos que estávamos na grande batalha da psicanálise no Brasil e na América Latina. Nós vivíamos dentro da psiquiatria clássica, na tentativa do diagnóstico "perfeito", mergulhados na Psicopatologia Geral de Jaspers e no decepcionante Tratado de 8 Psiquiatria, de Mayer-Gross. Estudávamos Dilthey, Henry Ey, Évolucion Psichiatrique, Enciclopédie-médico-chirurgicale, os livros de Nobre de Melo, Honório Delgado, Kurt Schneider e outros. Kraepelin dominava a cena. Ao mesmo tempo, fazíamos insulinoterapia e convulsoterapia nos pacientes. A psicofarmacologia iniciava seus passos com o Amplictil. No íntimo, permanecíamos perplexos, atônitos diante do gravíssimo problema: o que dizer, o que falar aos pacientes? Como podíamos ser médicos e não lhes ter nada a dizer senão “você vai melhorar”? Esta era a grande questão consciente. A outra grande questão era: o que dizer a nós mesmos, diante de nossos problemas, de nossas dificuldades? Mas não sabíamos ainda que iríamos aprender, com a nossa análise pessoal, a desenvolver o diálogo interior. Freud ainda era uma interrogação mantida à distância. Com estas dúvidas, estes dilemas, estas terríveis questões atravessadas em nossas mentes, corria a notícia, no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro - onde muitos de nós vivíamos - de que quatro brasileiros se analisavam em Londres e estavam para chegar ao Rio. Eram "os da Escola inglesa", a escola "do seio bom". Nesta brincadeira, alguns de nós esperávamos. Resta a interrogação: Por que motivo esperávamos? Não sabíamos. Afinal, “os argentinos”, “os de Burke” e “os de Kemper” já estavam em plena atividade no Rio bem antes destes anos de 1955. Colegas um pouco mais antigos, admiráveis, tais como Portella e José Cândido, já se analisavam. Eu e outros colegas, incompreensivelmente, esperávamos. A idealização do estrangeiro e do europeu parecia um dado marcante. Naqueles tempos, a valorização da teoria kleiniana ainda engatinhava no Brasil, e a opção por motivos de preferência teórica ainda não havia ganhado corpo, pelo menos entre nós, os futuros analisandos. Mas parece que o fato de virem da Europa tais idéias teria características especiais. É provável que esta seja uma das marcas mais importantes da psicanálise latino-americana. Finalmente, chegaram de Londres Décio Soares de Souza e Edgar de Almeida e uma leva de psiquiatras se analisou com eles. Veio depois Moreira Lyra e, por último, Henrique Mendes e, já mobilizado para "fazer análise", comecei minha formação. A admiração a Freud devotada pelos Perestrellos e todos os outros, o 9 amor por Klein demonstrado pelos três analistas que vieram da Inglaterra, secundados pelo amor à Psicanálise pelos demais membros das duas sociedades, estimulou o mergulho na obra freudiana, nos clássicos, na obra kleiniana e na de seus seguidores. Bahia mobilizava a todos com as últimas idéias psicanalíticas e nos chamava atenção para a obra de Bion. Na Rio I, Kemper, Dalheim e outros trabalhavam ativamente. São Paulo e Porto Alegre eram outros “continentes”. E quanto aos colegas fora do Rio, nós nos encontrávamos nas jornadas, nos congressos e, depois, na Associação Brasileira de Psicanálise, fundada por Mário Martins e uma plêiade de analistas. Ampliando o nosso mundo, os analistas do continente fundaram a Copal, que depois iria chamar-se FEPAL, e se tornaria o grande centro de encontro de psicanalistas latino-americanos. Rio I e Rio II se encontravam diariamente no grande estuário da Psicanálise que era o Instituto de Psiquiatria da UFRJ, berço da grande maioria dos analistas do Rio. A Psicoterapia Psicanalítica de Grupo Es que a veces ni sabíamos lo que estábamos haciendo. Marie Langer (apud Cyro Martins, p.11) Mas, na história da psicanálise latino-americana, outro fenômeno ocorreu de repercussões extraordinárias: a psicoterapia psicanalítica de grupo. Cyro Martins conta que, em 1951, ao começar sua formação, freqüentou o Hospício de las Mercedes, onde Usandivaras e Resnick tratavam em grupos esquizofrênicos crônicos. “No ano seguinte, deu-se a explosão da psicoterapia de grupo”. Alguns grupos chegavam a ser atendidos “em pé, nos recantos do pátio” (p.9). Para Cyro, Pichon Rivière era o grande capitão do ensino dos grupos. Em 1953, Rodrigué chegou trazendo as idéias de Bion referentes aos supostos básicos e ao enfoque do grupo como um todo. Langer nos lembra que o célebre trecho em que Freud (1918) propõe tratamento psicanalítico gratuito para os pobres motivou 10 a que ela, Rodrigué e Grinberg desenvolvessem a psicoterapia analítica de grupo na Argentina e assim difundissem esta terapêutica na América Latina. Zimmermann sintetizou a teoria prevalente entre os psicanalistas que trabalhavam com grupos: Se considera al grupo como una entidad o totalidad, con características estruturales y funcionales propias, diferentes de aquellas de los individuos que lo integran. De este modo, la situación terapéutica del grupo, en lo que respecta al manejo técnico de las situaciones clínicas, puede ser equiparada a la del análisis individual. … Las interpretaciones seran dirigidas constantemente al grupo como totalidad o entidad dinámica, y no a los pacientes, aisladamente (pp.94-95). Havia um interesse imenso dos pacientes, dos analistas e dos candidatos. A atmosfera era efervescente: estudos, jornadas, artigos, etc. Se os argentinos podiam orgulhosamente chamar de el nuestro (1957, p.8) o modo deles tratarem grupos, os brasileiros Walderedo, David Zimmermann e Bahia se abeberaram da fonte argentina e deram um cunho especial à grupoterapia no Brasil. O livro de Bion, Experiências em Grupos, teve importância fundamental. Sendo assim, também poderíamos chamar de “nossa” uma preciosidade, como esta sessão de Roberto Bittencourt Martins: Trata-se de um grupo aberto num hospital psiquiátrico.… Chamados para o consultório, sentam-se nas cadeiras dispostas em círculo e permanecem em silêncio, olhos presos no terapeuta, durante cerca de cinco minutos. Sentindo seus olhares interrogativos o terapeuta comenta: parece-lhe que estão à espera de que lhes diga que podem falar... Os componentes do grupo reagem com sorrisos. Uma das pacientes – Carmem – comunica que se sentem estranhos:... é como se a gente estivesse num ônibus, todos desconhecidos... O terapeuta interpreta: estarão com receio e, ao mesmo tempo, com vontade de se conhecerem uns aos outros, ao terapeuta e ao desconhecido que cada um carrega dentro de si mesmo. … [Depois eles se identificam, falam em esperanças e desesperanças, no tempo de espera para iniciar o grupo e um deles diz que] sua mãe deu à luz após uma agressão de seu pai. … Carmem diz saber que seus pais não controlavam a natalidade e que não a queriam … . Assis informa haver nascido no cais do porto e seu relato, feito de modo irônico, desperta risos. Ema, porém, não ri e, séria, fala: não entendo sua despreocupação, só vejo tristeza em nascer no cais do porto, é uma coisa vergonhosa... O terapeuta intervém e interpreta a situação de nascimento do grupo e as imaginações que fazem a respeito dela: o tempo de espera, os atrasos, os 11 ressentimentos que desejam superar, a idéia de serem filhos não desejados, nascidos de uma briga e de um descuido dos médicos e num local do qual se envergonham – esse cais do porto do hospital psiquiátrico – e tendo nele, terapeuta, essa mãe que dá vergonha e tristeza. João confirma: de fato, sua mãe lhe produz vergonha, porque não se veste como uma senhora. Passam a discutir novamente suas expectativas… [E, assim, prosseguem a sessão nesse clima até que, no final,] Odorico então alude a seu temor de perder o cabelo – o que desperta sorrisos diante da calvície do terapeuta. Pouco depois, João conta a morte de seu pai, dizendo não a haver sentido; e Carmem conta um sonho no qual está cuidando de um irmão que já morrera. É chegado o fim da sessão – que não é apenas a primeira sessão do grupo, mas também do terapeuta que, na ocasião, iniciava seu trabalho com grupos. (pp. 51-53) A suavidade destas interpretações nós todos tentávamos atingir. Na recordação há um toque nostálgico do que todos nós perdemos, psicanalistas e pacientes. Ainda existe a esperança da reconquista daquela saborosa ingenuidade. Afinal de contas, a poesia e os sentimentos são imorredouros, assim como o temor dos pacientes de que o psicanalista implante suas idéias na cabeça deles, o medo de sofrer o luto pela morte dos pais, os lutos de nossa vida, além de termos que lidar com os irmãos que já morreram, naqueles que estão vivos. No grupo, estamos diante desse dado real, o cuidado direto para com os irmãos, que parece traduzir o nosso trabalho como psicanalistas, a charitas para com nossos pacientes – nossos irmãos. Mas a evolução ou involução das idéias pode percorrer caminhos estranhos. Depois de mostrar seu amargor diante do abandono que Grinberg, Langer e Rodrigué deram ao grupo, mesmo após haverem escrito “a nossa bíblia – o livro Psicoterapia del Grupo” – Cyro perguntou a Marie Langer: o porquê de semelhante resolução de tão sérias repercussões. ‘Es que a veces ni sabíamos lo que estabamos haciendo’ – foi sua resposta, sem nenhuma explicação. Horas depois, conversando com Hector Garbarino contei-lhe o episódio. Palavras de Garbarino: ‘Não é nada disso. É que Melanie Klein não aprovou o grupo.’ (p.11). A explicação expressa acima, de dependência a uma líder, mesmo carismática como Melanie Klein, não subsiste tanto tempo. Por outro lado, o 12 abandono de Bion aos grupos foi eclipsado e justificado. Temos de aceitar que os pacientes desejariam modificações de personalidade que implicassem um tempo e um sacrifício menores do que aqueles que a psicoterapia de grupo oferece. Além do mais, a necessidade das confidências que um tratamento emocional exige, parece ser maior do que os benefícios que uma participação grupal proporciona. Daí a preferência pelo tratamento individual. Por outro lado, o aumento do número de psicoterapeutas, psicanalistas e “soi-disant” analistas tornou-se um fator de extraordinário peso. A grande influência argentina no Rio se fez através dos estudos da psicoterapia analítica de grupo. Na época falávamos em Grinberg, Langer e Rodrigué com grande entusiasmo. Parece que a deserção deles quanto aos grupos levou-nos a uma “séria repercussão”, provavelmente um progressivo desligamento em relação a todos os argentinos. A desconfiança generalizou-se. Garma, Liberman e outros passaram a ter, no Brasil, uma expressão aquém do valor real deles. Com os Fundamentos da Técnica Psicanalítica de Etchegoyen, em 1985, a Psicanálise argentina pôde retomar um maior vigor dentro do Brasil. As outras escolas É possível que a frustração com Klein se devesse a uma concepção filosófica diferente em relação aos primórdios da mente infantil. Bion já acentuara que as imensas dificuldades de se penetrar na mente do adulto são bem menores do que o mergulho na mente da criança "pela hipótese especulativa" (p. 36). Aos poucos, as idéias kohutianas foram se firmando e colegas, que eram de influência kleiniana, aderiram a estas novas idéias. Paralelamente, Winnicott alcançou um maior número de interessados e todos nós estudávamos as obras deles. Por outro lado, a ênfase kleiniana nos aspectos agressivos, ou na precocidade da posição depressiva, conduziu muitos para outros caminhos, inclusive os caminhos de Winnicott. Este dizia: "que pena estragar um conceito [posição depressiva] tão valioso por fazer com que seja difícil acreditar nele" (p. 439). A psicanálise francesa foi-se fazendo presente através da vinda de colegas 13 que se formaram em Paris. Os congressos e apresentações de trabalhos, a Revista Brasileira de Psicanálise, o IJPA, a IRPA, as Revistas de Psicanálise da Argentina e de outros países constituíram fatores fundamentais para o desenvolvimento dos psicanalistas brasileiros. Por outro lado, o intercâmbio de psicanalistas latino-americanos propiciado pela Fepal, ao lado das visitas de analistas estrangeiros – Heimann, Garma, Bion, Betty Joseph, Thorner, Meltzer, Segal, Green, Mac-Dougall, Stolorov, Schwaber e outros, bem como o estudo intensivo de suas obras, marcaram nossa formação. Muitos de nós fizemos reanálises seja com Thorner, seja com outros analistas. Colegas das diversas escolas se reuniam para estudar, durante anos, durante decênios, continuamente, em grupos que se transformaram em verdadeiros mini-institutos de pós-graduação analítica dentro das grandes sociedades de psicanálise brasileiras. Desde então, a prata da casa reinou soberana com Rosa Beatriz, Inaura, os Portellas, Fábio Teoria dos Campos Herrmann, os dois Davids do sul, Ana Maria, Isaias, Laertes, Pacheco, Zenaira, Doin, Henrique, Otávio Sales, Pessanha, Vasco, a tradução da obra de Freud e Jaime Imago Salomão. Houve uma evolução extraordinária com o estudo de Kohut, Winnicott e Bion. Desenvolveu-se também um entrelaçamento dos analistas das diversas sociedades como, por exemplo, os da Rio I e Rio II, interessados mais especificamente em um ou outro desses autores. Assim também o estudo da chamada Medicina Psicossomática uniu em hospitais universitários colegas de diferentes formações, bem como de diversas sociedades psicanalíticas. Julio, Abram, Amaury, Kathalian e outros trabalhavam em uníssono. Infelizmente, a pluralidade científica não se acompanhou de um diálogo maior entre as escolas. O Lacanismo “Logo, é preciso que ela [a psicanálise lacaniana] assuma sua diferença e sua posição cismática, a fim de que o público não seja enganado e que não imagine estar fazendo a mesma experiência ou estar recorrendo à mesma terapêutica somente tendo ela algumas diferenças de opinião” (p.197). André Green 14 A formação psicanalítica, obedecendo aos minimal requirements da IPA, era o padrão fielmente seguido pelas sociedades latino-americanas. À margem das nossas sociedades, porém, foram surgindo interessados em outras linhas de pensamento: Lacan e Sullivan principalmente. A priorização por parte dos analistas da IPA de seus próprios consultórios, o abandono das universidades e dos hospitais levou a que este campo ficasse livre para a psiquiatria, a psicofarmacologia e os lacanianos. O interesse que nos despertava o estudo de Grinberg, Racker, Garma, Libermam, Rodrigué, Rascovsky, Langer, Féder e outros latino-americanos era estimulante e se constituiu em parte integrante de nossa formação. O distanciamento em relação a Lacan seria natural. Claro que havia os fatores próprios de Lacan, as limitações de suas idéias apontadas no Discurso Vivo, de Green, críticas essas aceitas pela maioria de nós. Acrescentamos também a aberração ditatorialesca do “tempo lógico” lacaniano – expressão lídima do abuso para com os analisandos, associada ao conhecimento que tínhamos das extravagâncias pessoais de Lacan, detalhadas na História da Psicanálise da França de Roudinesco, posteriormente confirmadas no seu livro Jacques Lacan e que foram acrescidas com o que Green viria a agregar em Um psicanalista engajado. Tempos depois, as críticas de Alan Sokal e Jean Bricmont, expressas em Imposturas Intelectuais, evidenciaram erros conceituais importantes de Lacan em outras esferas que não apenas as psicanalíticas, erros esses que minaram ainda mais o conceito de que ele desfrutava. O crescimento do lacanismo, suas facilidades de formação, a diluição da identidade do psicanalista são fatos de conhecimento mundial. Não obstante tais problemas, o Congresso da IPA, de 2004, dará um lugar especial ao psicanalista francês. Trata-se de um retorno triunfal, desta vez é um retorno a Lacan e, diríamos, à Lacan. Não é indiferentemente que tal ocorre. Algumas de suas idéias têm algum substrato para poderem sobreviver à sua biografia e ao seu autoritarismo. 15 A virada ética Como é que podemos realmente desfrutar da felicidade, enquanto houver miséria, fome, sofrimento e dor infligida a seres humanos? Podemos tentar negar o fato, desconsiderá-lo, porém a perseguição interna provavelmente arranjará um meio de nos envenenar a existência, enquanto não trabalharmos para a resolução do problema. Paulo Marchon (1993, p. 381-382). Melanie Klein acentuou a importância da mãe no relacionamento com o bebê. Uma filósofa brasileira, Emília Steuerman (2000), iria consignar o valor desta passagem, considerando-a paralela à "virada lingüística” na filosofia, cujo expoente mais notável foi Wittgenstein. Ela chamou a atenção para esta mudança: Houve uma passagem de uma teoria das pulsões, essencialmente econômica e que, em certo sentido, ainda privilegiava a idéia de um indivíduo isolado, encarando o duplo desafio do prazer e da realidade, para uma teoria que enfatiza os objetos destas pulsões (2003, p.34). Steuerman (2000) nos ensina também que a segunda grande mudança da filosofia contemporânea seria uma “virada ética”. Esta seria uma continuação da primeira virada, a “virada lingüística” e a teoria kleiniana seria aquela que realizaria “na psicanálise, uma mudança de paradigma similar à da filosofia” (p.19). A perspectiva de Klein permitiria compreender, ver e pensar a outra pessoa como um “outro”. Para ela a alimentação do bebê seria uma “experiência fundamental não apenas em termos do prazer e da satisfação de uma necessidade, como também em termos do estabelecimento das bases para as regras de um mundo moral e social” (p.102). Steuerman relembra a noção de Alford, de 1989, para quem o amor em Klein seria menos Eros e mais charitas: amor que vai além do interesse próprio e tem uma preocupação genuína com o outro como outro. E concluiu: “Nosso cuidado e preocupação com os objetos internos e os sujeitos externos é o que cria a possibilidade de felicidade nos mundos interno e externo” (p. 118). É extraordinário saber que, já em 1974, três décadas antes do livro de Steuerman, Danilo Perestrello desenvolveu o que ele 16 chamou de Medicina da Pessoa, através da qual ele propunha uma “psicanálise mais ampla”. Perestrello dizia: Não há medicina sem charitas. Esta palavra que vem nas traduções bíblicas como “caridade”, na verdade não significa bem isso. Sua verdadeira tradução é amor. Sem isso não há medicina e quem tiver o privilégio de poder amar terá a condição básica para, intuitivamente, estabelecer uma compreensão profunda com seu paciente… (os grifos são de Perestrello, p. 163). Como se vê, há uma identidade de conceitos e de posições. Porém, mesmo diante de toda essa compreensão moral da problemática humana, ainda não havia sido abordada a questão do perdão. Em nosso trabalho de 1993 (pp. 427-429) focalizamos essa questão e sua relação com a felicidade. Lembrávamos Hanna Arendt, que, em A Condição Humana, defendia ardorosamente a necessidade do perdão para nos libertarmos da prisão da vingança. Escrevíamos na época: O que Hanna Arendt está dizendo é algo que se relaciona e se integra completamente na realidade da relação psicanalítica. É possível que seja do perdão que se esteja a tratar o tempo inteiro da análise, para que possamos nos libertar dos grilhões da vingança, principalmente em relação a nossos pais, ou quem nos tenha cuidado e também as falhas deles ou nossas (1993, p.430). A semente lançada por Perestrello, numa visão kleiniana, permitiu uma evolução que integrou o amor-charitas e o perdão, fatores que poderiam levar a um aumento da capacidade intuitiva e à ampliação do acesso à felicidade. Importante lembrar que Márcia Cavell, em “Freedom and forgiveness”, estudou o valor do perdão na psicanálise, em artigo atualíssimo, de 2003. Diz ela que a psicanálise está repleta de questões éticas, entre elas o perdão e a gratidão e assim termina o artigo: “Nós não podemos modificar o passado, mas podemos lembrá-lo, entendê-lo e contá-lo diferentemente, o que pode modificar o modo como nós vivemos nossa vida agora, precisamente porque nós somos esse tipo de “coisas” no universo que têm mentes, e que algumas vezes fazemos coisas motivadas por razões, fazemos escolhas e também pedimos e recebemos 17 perdão.” (p. 529). O acento que a teoria kleiniana deu à posição depressiva levou-nos às considerações que consignamos em um trabalho de 1993. Tratava-se do caso de um paciente operado de câncer de um dos testículos, hipertenso, gordo, comilão, sem nenhuma sensibilidade social até então e que não conseguia parar com o fumo. Há um ano atrás, quando estava em dificílima situação financeira, duas irmãs - não sócias - abandonaram sua fábrica e criaram atividade semelhante, uma pequena fábrica, e se desenvolveram, inicialmente, muito bem. Hoje, o paciente está bem financeiramente e me diz que se sente muito invejoso, mau, pois desejou que as irmãs e seus maridos, que o abandonaram no passado, fossem à falência. Hoje se sente arrependido deste sentimento, disposto a ajudá-los; compreende que eles tinham que abandoná-lo porque senão todos iam falir juntos. Como eu lhe dissesse que ele imaginava que o pensamento dele fosse tão poderoso que levasse as irmãs e cunhados à situação difícil em que estão no momento atual, ele então me respondeu: "Paulo: eu sei que eles, minhas duas irmãs e os maridos pensam que lucro a gente divide, prejuízo eu tenho que agüentar sozinho, mas isto não tem importância. Resolvi dar almoço na fábrica para os empregados. Eles estavam passando fome. Eu não posso mais ver criança na rua passando frio, me dá muita pena! … Eu vinha aqui só dizendo que eu tinha raiva deles. Também vou ajudar minhas irmãs. Não é me tornar bobo não. Que importa! Vou ajudar a eles! mas as crianças nas ruas... Você sabe, é preciso uma modificação nisto para que eu possa parar de fumar...Senão eu não paro de fumar... Sem fazer alguma coisa para as crianças como vou poder gostar de mim e conseguir parar de fumar? Como se pode observar, o menino que precisa ser salvo, é não apenas o irmão, a irmã, que está lá fora, jogado na rua para morrer de frio, de falta de amor, intoxicado, envenenado, mas é também ele internamente, ameaçado de morte se não encontrar uma parte adulta dele disposta a ajudá-lo. (pp.443-444) Rustin (1991) iria enfatizar a importância destes fatores, mas sua tradução para o português só iria ser feita em 2000: A capacidade para o sentimento moral, nas suas formas mais ou menos benignas, é vista, portanto, mais como um atributo determinante compartilhado pelos seres humanos do que como uma restrição inevitável sobre eles... O que é incomum é considerar a capacidade moral dos seus sujeitos como sua natureza essencial. Esta visão parece derivar, cientificamente, da visão kleiniana do relacionamento inicial mãe-bebê.(os grifos são meus) (p. 30). 18 Mas, a nosso ver, a compreensão de superego de Freud já iniciara esta vertente. Tudo isto estava profundamente ligado às idéias iluministas de Freud – o sapere audem, o ousar saber kantiano, o primado da razão não obstante e até por causa das emoções – brilhantemente expostas e difundidas, há alguns decênios, pelo filósofo brasileiro Sérgio Paulo Rouanet. Para ele: Freud é o último e o mais radical dos iluministas. Os filósofos do século XVIII se limitavam a dizer que o homem já era, de saída, racional, deixando-o com isso, prisioneiro do irracional, cujos limites a Ilustração desconhecia. Freud descobre esses limites e, com isso, armou o homem para a conquista da razão. Ela não é um ponto de partida, mas de chegada. Onde havia Id, que passe a haver o Ego. Onde havia caos, que passe a haver sentido. Onde havia impostura, que passe a reinar a verdade. É a mais alta afirmação dos direitos da inteligência e, ao mesmo tempo, todo um programa de luta contra o obscurantismo: écrasez l’infame (p.299). Compreendíamos o "pensar" bioniano como sendo originalmente "destinado a descarregar a psique dos acréscimos de estímulos" que se manifestavam pela identificação projetiva. Admitíamos desde o princípio da vida algum contato do bebê com a realidade, de tal forma que ele pudesse provocar na mãe sentimentos que ele não aceitaria em si mesmo, e, mais ainda, que o bebê pudesse ir além, conseguindo provocar na mãe sentimentos que ele desejaria que a mãe sentisse realmente. Procurávamos tornar consciente o fato do seio dar ao bebê leite e amor, ambos comparáveis na importância para a sobrevivência física e mental da criança. O tubo digestivo receberia e trabalharia o leite. Restaria o problema: e quanto ao amor? O interjogo que se processa quando o seio não existe, momento em que o pensamento pode passar a existir, estimularia a interrogação: mas o que aconteceria quando o seio fosse proporcionado sem amor ou quando o bebê não se sentisse amado? As hipóteses de rêverie e da intolerância às frustrações estariam aí presentes e formariam a base de um arcabouço teórico que a obra inteira de Bion, Britton, Segal e outros iriam sedimentar. Os estudos de Piontelli dariam uma dimensão fetal a esses questionamentos, embora ela tenha sido cautelosa, não afirmando o psiquismo antes do nascimento. Rascovsky e Féder foram pioneiros no trato do psiquismo fetal. Como se pode concluir, a “virada ética” levou a um 19 desenvolvimento da compreensão da relação mãe-bebê e, conseqüentemente, da análise de crianças. O livro de Grinberg, Sor e Elizabeth Bianchedi: Introducción a las ideas de Bion (1972), estimulou e facilitou a leitura do original bioniano. Grinberg trouxe uma grande contribuição clínica quando percebeu o fenômeno a que deu o nome de contraidentificação projetiva. A carga de identificações projetivas do paciente tomariam o governo da mente do analista que se tornaria, assim, propenso a desenvolver sentimentos e realizar atos passivamente (Etchegoyen, p.152). Grinberg defendia seu ponto de vista de que havia diferença em relação à contratransferência complementar de Racker, porque na contraidentificação projetiva o processo se desenvolve no analista em grande parte independentemente do mesmo e corresponde, fundamentalmente, à intensidade, quantidade e qualidade das identificações projetivas do paciente. Estudou ainda detalhadamente a culpa persecutória e a depressiva. Defendia a “hipótese de que a perda temporária ou permanente de um objeto evoca numa pessoa o sentimento doloroso de que ela tenha perdido também alguma coisa que ela sente como sendo sua” (p. 245). Os trabalhos de Racker e Paula Heimann sobre a contratransferência, bem como a defesa de Bion da "inconsciência da contratransferência", estudados desde o princípio da formação psicanalítica, serviam de pano de fundo para a tentativa de melhor entender os dois protagonistas da sessão: o paciente e o psicanalista. Para Racker, o paciente como um todo é colocado em ação na sessão; a parte doente e a sadia, o presente e o passado, tudo enfim, mas ele frisa – o mesmo acontece com o analista. A diferença está na situação interna e externa de cada um e no fato do analista haver sido analisado. Os sentimentos, as idéias e os impulsos que são dirigidos ao paciente e que são determinados pela pessoa do analista, Racker chama de contratransferência. Os dois aspectos da contratransferência, seja encarando-a como obstáculo – na identificação complementar – seja quando se a vê como instrumento, na concordante – estão em interação contínua. Daí a necessidade de o analista não só analisar o paciente, mas também examinar-se atentamente. À expressão patológica destes sentimentos ele deu o nome de neurose de contratransferência. Tendo em vista a 20 relativa inconsciência destes processos, ele enfatizou a necessidade da abstinência não apenas por parte do paciente, mas também por parte do analista (pp.95-110). Bernardi escreveu: A resposta emocional do analista, na atualidade da sessão, aparece como pista-chave do descobrimento da transferência inconsciente do paciente. Nesta altura, vê-se a coincidência de Racker com a postura de Heimann (1950) quanto a que a percepção das respostas afetivas do analista lhe permitem aferir o rapport profundo com o analisando (p.218). Herrmann propõe que a psicanálise seja um estudo da realidade humana e não apenas uma “ciência da psicoterapia”. Introduziu o conceito básico de campo psicanalítico, que “pouco ou nada tem a ver com K. Lewin”, mas que guardaria alguma analogia com o campo magnético (p.86). Fábio iniciou seus estudos em 1969, com o trabalho “O campo e a relação”. Empreendeu, desde então, uma compreensão que está expandindo notavelmente a psicanálise, enriquecendo-a com uma revisão e revitalização de conceitos. O desejo, a rutura e o vórtice adquirem contornos impressionantes nos seus trabalhos. Baranger focalizou a relação intersubjetiva dentro da qual se desenvolve o trabalho consciente e inconsciente em que os “dois participantes se definem um pelo outro”. E concluiu: “Quando falamos de campo psicanalítico, entendemos que está ocorrendo uma estrutura, produto dos dois integrantes da relação, que, no entanto, por sua vez, os envolve num processo dinâmico e eventualmente criativo” (p.575). Como disse Bernardi, cabe ao casal Baranger “ter usado a noção de campo dinâmico para descrever a situação analítica” (p.219). A gestalt, Kurt Lewin e Pichon Rivière foram seus grandes inspiradores. Provavelmente Racker, Heimann – ambos via Ferenczi – e os Baranger são os psicanalistas que têm maior influência na Psicanálise atual. O mundo contratransferencial está tomando conta da Psicanálise. Toda a fortíssima corrente baseada no campo intersubjetivo e que segue esta tendência do pensamento contemporâneo, desenvolvendo novos conceitos, modificando os antigos, por vezes até de uma maneira chocante, é influenciada por estes analistas. Um exemplo ocorreu quando Jacobs apresentou seu trabalho no Congresso da IPA de 1993: 21 “Determinados pensamentos, sentimentos, fantasias e sensações físicas de que me dei conta durante essa hora analítica surgiram em resposta a comunicações inconscientes do meu paciente, esclareceram determinadas resistências em mim mesmo e contribuíram para o formato e a substância de minhas intervenções” (p.587). Cassorla contou que “a atmosfera da reunião [no Congresso foi] bastante agressiva” (p.99). Freud, já em 1910, com a descoberta da contratransferência, havia introduzido explicitamente o intersubjetivo na psicanálise. Em 1915, apoiando-se em Kant, advertiu que "nossas percepções estão subjetivamente condicionadas" (p. 171). A contenda intersubjetivista liderada por Stolorov e Renik teve o valor de mobilizar a psicanálise no sentido de rever suas posições, seus conceitos sobre neutralidade, reavaliação da self-disclosure, da contratransferência, do enactment, o que levou Green a chamar a atenção para a importância do "Id, do objeto interno, ou as fantasias arcaicas", qualquer que fosse o seu nome (p.1134). Nossa preferência pela “neutralidade possível” de Eizirik (2000, p.718) pelo esforço para a não self-disclosure, se evidenciam pelo valor que damos à pergunta de Dunn: “Por que uma busca por neutralidade – não importa como seja aplicada na prática – tem propriedades inerentes que transmitem uma atitude antianalítica e não terapêutica? (1995, p.209) Sabemos que, não obstante as nossas teorias e fantasias – nossas subjetividades – poderem ser extremamente diferentes, há um mundo que está ali, à nossa mão ou não, mas está ali. As idéias bionianas "sem memória e sem desejo" marcaram a minha geração, seja pela aceitação das mesmas, seja pela rejeição. Serviram como um marco divisório. Pretendi permanecer ao lado dos que postulavam a proposta bioniana. Hoje, olhando para o passado, sinto que meus desejos à época ainda continuavam e constituíram provavelmente os fatores que mais dificuldade acarretaram nos tratamentos por mim realizados. Afastá-los é um trabalho para toda a vida. Em 1999, David E. Zimerman lançou também uma grande obra, Fundamentos psicanalíticos, teoria, técnica e clínica, numa abordagem didática. Este compêndio, junto com o do Etchegoyen, pela visão ampla destes dois 22 psicanalistas, se tornaram essenciais no estudo da psicanálise. Ambos, no entanto, pouca referência fazem aos mexicanos, peruanos, chilenos e outros latino-americanos, pecado que também estamos cometendo. Desnecessário dizer que nós pouco nos citamos. É possível que o estudo proposto pela Conferência Latino-americana do IJPA funcione como um tratamento psicanalítico, uma conscientização – e assim reconquistemos uma parte de nossa identidade, valorizemos todos os países latino-americanos, e não só os do Mercosul. Que possamos fazer o mesmo também no plano econômico, social, político, cultural e humano. Que os trabalhos sobre os mitos, tão bem elaborados nestes países, em sendo valorizados, possam ser um meio de dosar a influência das idéias advindas da Europa e de acima do Rio Grande. Isto terá importância para o desenvolvimento de uma aceitação mais crítica das idéias, não importando de onde venham, que é a posição que, realmente, produz conhecimento. Na América Latina, desenvolveu-se um pluralismo teórico extremamente saudável e enriquecedor. Na opinião de Jacobs (1999, pp. 575-595), Annie Reich defendeu a psicologia do ego e os Estados Unidos da invasão contratransferencialista desencadeada por Heimann. A nosso ver, Racker participou ativamente do processo e, assim, Londres e Buenos Aires invadiram a Europa e a América Latina. Segundo Hanly, “a agonia de morte da psicologia do ego americana estaria mobilizando, atualmente, reações radicais, entre as quais o inter-acionismo analista-analisando” (1994, p. 511). Os analistas da América Latina e da Europa tiveram o matiz suavizante de Racker e Heimann. Já os estadunidenses tiveram que esperar a passagem do tempo para que o enfraquecimento e morte da geração freudiana clássica, refugiada da Europa, desse lugar à entrada dos “novos europeus” – kleinianos, kohutianos e de outras escolas – a fim de estabelecer um maior diálogo dentro da psicanálise. Como era de se esperar, abrindo a panela de pressão norte-americana, aquecida durante longo tempo, a descompressão foi grande. Em uma passagem, à vol d’oiseau, sobre parte da produção latinoamericana, não poderíamos ainda deixar de, pelo menos, citar Liberman, quando trabalhou suas idéias sobre estilos lingüísticos complementares. Assim, quando um obsessivo passava a utilizar mais a ação, ou, ao inverso, quando um 23 psicopata se tornava mais capaz de refletir, tais movimentos significariam que estariam ocorrendo modificações nas personalidades deles. Liberman nos deu também uma visão geral dos analistas argentinos: Es una característica de los trabajos clínicos que se presentan en la Associación Psicoanalítica Argentina tener en cuenta cómo inciden las interpretaciones transferenciales sobre la evolución del paciente en las sesiones. … Todas las veces en que esto no ocurrió, caímos en dogmatismo… (p.447). Matte-Blanco, integralmente chileno, tornou-se universal. Ultimamente, a bi-lógica estaria iniciando a conquista de adeptos no Brasil e o avanço do pensamento do psicanalista chileno é notável no mundo inteiro. Além de MatteBlanco, em torno de cuja cátedra se desenvolveu a psicanálise do país, outros chilenos importantes emigraram para o estrangeiro: Ramón Ganzarain, Ruth Malcolm, Otto e Paulina Kernberg. Rocha Barros, resenhando o livro “Cuarenta Años de Psicanalise en Chile” comentou que a nossa cultura latino-americana favorece experiências emocionais intensas e, por este motivo, teorias como a kleiniana, “que enfatizam a centralidade das emoções na existência de um espaço interno onde significados são gerados encontrava um campo fértil” (p.357). Bleger realizou o “mergulho especulativo” na mente infantil, ao defender a hipótese de que o indivíduo “não nasce como um ente isolado, que fosse, gradualmente, e a partir daí, estruturando sua natureza social pela perda desse isolamento, em prol da assimilação da cultura” (p.10). Bleger concebeu um “estado de indiferenciação primitiva como ponto de partida do desenvolvimento humano” (p.10). Tal estado, que na realidade, seria uma estrutura, “inclui sempre o sujeito e seu meio ainda que não como identidades diferenciadas.” (p.11). Bahia fez um estudo valioso sobre as screen memories, mostrando que o processo humano de se lembrar e esquecer é todo ele uma extraordinária screen memory “que se destina a transformar a realidade externa de acordo com as necessidades instintivas” (p. 244). A neurociência e sua integração com a Psicanálise têm encontrado em Doin, José Cândido e Sousumi sensíveis 24 estudiosos. Isaias Melsohn vem realizando uma revisão crítica de conceitos fundamentais da Psicanálise a partir das idéias de Cassirer. Isaias considera que “o processo psicanalítico tem por objetivo a transformação da ‘consciência do objeto’ em consciência de si, que participa na constituição de seus objetos”. Ele percebe que se distancia do conceito clássico de consciência, que “deixa de ser disfarce de impulsos e de objetos inconscientes, [e] cede lugar à noção de consciência produtora de suas intenções e das formas de pensar correspondentes”. Conclui que os objetivos da psicanálise deixam de ser voltados “para a busca de conteúdos infantis reprimidos, presentes hoje … e se dirigem para a apreensão dos sentidos vividos visando à transformação das estruturas de impulsos e das formas de simbolização da consciência” (p.275). Para Rascovsky, tornava-se necessário ter havido o real assassinato do pai, conforme Totem e Tabu. A nosso ver e da grande maioria dos psicanalistas, as afirmativas de Freud a esse respeito são inteiramente dispensáveis, pois o que nos importa, fundamentalmente, são as fantasias, os assassinatos aos pais realizados internamente. Em algumas pessoas ou mesmo em algumas culturas, a indiana e a chinesa, por exemplo, tais fantasias assassinas seriam demasiadamente intensas e, por isto, projetadas violentamente nos filhos, daí advindo o temor de que eles fossem matar realmente o próprio pai. A solução seria o filicídio: Laio e Jocasta mandam expor Édipo no monte Cíteron. Rascovky chegou a escrever: “Nós não acreditamos que a proibição do incesto fosse a primitiva motivação para o assassinato e a degradação das crianças” (p.275). A meu ver, Rascovsky e Féder realizaram um trabalho magnífico de conscientização do mundo, no que diz respeito à proteção à infância, mas, no âmbito psicanalítico, eles esvaziaram a compreensão de Édipo ao reforçar o filicídio e a ambivalência pré-conceptiva. A interação destrutiva que existe entre os pais, a sociedade filicida e as vítimas é expressão da problemática universal edipiana do ser humano. Esta problemática é que mantém o ódio para com os filhos que se expressa na ambivalência pré-conceptiva e no filicídio. Os esforços para compreender os pacientes chamados psicossomáticos tiveram em Garma, Rascovsky e Langer estudiosos profundos e pioneiros. 25 Langer reviu seu trabalho com uma paciente deprimida, provavelmente a Sra. B. (1964, pp.163-168), e comentou (1986, p.155): Quando a melancolia cessou, ou seja, quando acabou a perseguição superegóica … engravidou. Como é que entendo isto? Se sigo unicamente a inveja do pênis, não o entendo. … Aí a gente tem que tomar todo o conceito de fantasia inconsciente de Melanie Klein … que continuo a aceitar totalmente. Ela afirmou que a APA era kleiniana e, ainda mais, que o padrão teórico adotado não era nem revolucionário nem feminista, mas que, na realidade, “procurava dar à mulher um lugar biológico e psicológico próprio” (p.84). Este toque latino-americano sempre esteve presente em nossa educação psicanalítica, principalmente devido à influência de Rascovsky e Féder. Segundo Marie Langer, Pichon Rivière criou sua psicologia social e uma compreensão muito bem elaborada da psicose, “desenvolvendo pela primeira vez os grupos operativos e transformando os pacientes internados em enfermeiros”. Mas, fundamentalmente, “Pichon elaborou um critério psicanalítico para as psicoses” (p. 93). Passado e Presente Voltando ao passado e pensando em semelhanças e diferenças, recordo o meu segundo caso de supervisão, em 1966. Era um rapaz de 21 anos, de vida “largada”, que perdera a mãe aos três anos e o pai aos seis. Mentia para os tios que, de uma maneira sofrível, cuidavam dele, dizendo que ia às aulas, mas o que procurava, na verdade, era divertir-se. Usava meios fraudulentos para conseguir aprovações. Não estudava e não trabalhava. Vejamos um trecho: Uma vez, estava no banheiro do curso vestibular evacuando, quando jogaram uma bomba explosiva do tipo cabeça de negro dentro do banheiro. O inspetor de disciplina acusou-o; o paciente negou dizendo: "Se fosse eu, eu iria jogar a bomba comigo aí dentro?" Juntaram diversos 26 estudantes fora do banheiro dizendo: "Foi ele". Ao sair olhou os estudantes, em geral ginasianos, que tinham suas aulas no mesmo período do curso vestibular e, com o olhar, os fez silenciar. Foi chamado à presença do diretor que, embora suspeitando, não o expulsou do curso. Mostramos que o pai seria, na fantasia dele, o inspetor que o acusaria de, através dos ataques sexuais e anais, haver atacado e destruído a mãe, e ele a dizer que não, pois isto corresponderia à destruição dele mesmo, porque ele estava no interior daquela mãe-banheiro. Eu seria o diretor que, na fantasia dele, manteria as suspeitas, mas que não o expulsaria da análise por isto. Assim, de maneira técnica e “seca”, foi sumarizada a interpretação para o Relatório. Podemos considerar este material do paciente como sendo fruto de uma lídima associação livre de idéias. Mas será realmente livre ou a realidade, a objetividade do fato – a explosão de uma bomba – foi tão traumática e taxativa que ele não poderia deixar de contá-la a um amigo, ao pai, ou principalmente ao seu analista? Perguntaríamos então: Será, portanto, este material algo fundamentalmente interno ou terá ele mais características externas à vida emocional do paciente? Pode-se concluir que as reações dos ginasianos, dos colegas de vestibular, do Inspetor e do Diretor teriam sido moduladas pela maneira de ser anterior do paciente. Em outros termos: se ele fosse uma pessoa querida por todos, a reação poderia ter sido diferente. Haveria, por exemplo, menor desconfiança do Inspetor e do Diretor para com ele. Isto é compreensível, mas a fantasia de que, ao cair um tijolo na cabeça de um passante, este tem alguma coisa a ver com sua própria morte naquele momento é, no mínimo, enlouquecedora. Provavelmente, hoje eu não modificaria essencialmente a interpretação, mas acentuaria a problemática dos "ginasianos". Cabe à psicanálise trabalhar com estes ginasianos internos que, ou não sabem do que se passou e o acusam, ou sabem da sua inocência, mas são implacáveis perseguidores e continuam a acusá-lo. Há uma outra possibilidade de entendimento: os ginasianos sabem da culpa, mas não perdoam, porque sabem que ele continua armando bombas e, desta forma, não podem perdoá-lo. São estes alguns aspectos interiores dele que o enlouquecem. A ida ao banheiro e a explosão de uma bomba são algo fortuito, mas as representações na sua vida, expressas nas reprovações constantes – em 27 termos colegiais, "levando bomba" – eram algo, que através de sua vida "largada", ele armava contra si mesmo. Assim as “bombas” não eram fortuitas. O mesmo ocorria em relação ao uso dos meios ilegais para conseguir aprovação nos cursos bem como as suas mentiras. Tudo poderia explodir um dia. Mas o essencial é que já estava explodindo dentro dele, danificando sua vida interna e externamente. O rapaz "largado" apegou-se à análise de uma maneira muito vívida e fluente. Conseguiu estudar, namorou e tornou-se estudante de medicina. A interrupção da análise se deveu ao fato de ele haver-se atrasado no pagamento por sete meses, após três anos de tratamento. A venda do último bem paterno proporcionou condições de me pagar, mas ele perdeu ou lhe roubaram o dinheiro. Era-lhe impossível, no 2º ano do curso médico, refazer as condições para pagar a dívida e continuar a análise. Nestas circunstâncias, eu a interrompi. Se eu desse a mesma importância que, pouco tempo depois, passei a dar a fatores essenciais como os relacionados à reparação e à charitas, eu não teria interrompido a análise. A diminuição do número de sessões, ou do preço, a protelação do pagamento da dívida para depois que ele se formasse em Medicina, teriam sido soluções diferentes da "morte" do analista aos três anos de análise. Uma verdadeira bomba, uma reprovação explosiva. A mãe do paciente havia falecido de tumor cerebral quando ele completou três anos de idade. Trinta anos depois ele me procurou novamente. Estava casado com a namorada de então, vivendo modestamente do salário de médico, esforçando-se para que seus três filhos e suas irmãs não ficassem "largados" na vida. Era uma ótima pessoa, interessado, sensível e trabalhador. Não obstante tudo isso, expunha-se a dois perigos, um deles o excesso de peso - 140 quilos - o outro o excesso de velocidade, que já lhe causara acidente quase mortal. Parece-me que de alguma forma, havia ainda estudantes ginasianos, no mundo interior dele, que não sabiam da realidade de sua vida e de seus sentimentos e que ainda o acusavam injustamente... 28 Summary By the account of his development as a psychoanalyst, the author comments the psychoanalythical ideas that he studied and followed in his life. He also speaks about the arrival and the development of new ideas and their impact in the brasilian scenario. He focalizes group analythical psychoterapy, lacanism, Klein’s, Bion’s, Kohut’s and Winnicott’s influence and the importance of the argentinian psychoanalysis to Latin America. He observes the expressive development that São Paulo, Porto Alegre, Rio, Argentina, Chile, Uruguay and other regions of Latin America are achieving. The author shows differences and similarities between his previous and current work, focusing on the kleinian “ethical turn” theme in psychoanalysis, as well as the evolution of Love-Eros concept to Love-Charitas, which is intimately linked to concern in relation to the other. He remembers Perestrello who, in 1974, already said that there was no medicine without Charitas, which is equivalent to love and not charity. The author emphasizes the “ethical turn” social value. He gives importance to forgiveness as a way the act can reach a termination, an end. Bibliografia ARENDT, H. (1989). A condição humana 4ªed. São Paulo: Forense BAHIA, A. B. (1981). New theories: their influence and effect on psychoanalitic technique. In Do I dare disturb the universe?, ed. J. Grotstein. Beverly Hills: Caesura Press, pp.239-268. BARANGER, M. (1992). A mente do psicanalista: da escuta à interpretação. Rev. Bras. Psicanál., vol. 26, no 4: 573-586. BERNARDI, B. L. (2002). “Contratransferência: Uma perspectiva a partir da América Latina” In Livro anual de Psicanálise, Tomo XVI. São Paulo: Ed. Escuta. BICUDO, V. & PESSANHA, A. L. S. (1994). Meio século de história. Rev. Bras. Psicanál., vol. 28, no 3: 413-418. BION, W. R. (1962). Learning from experience. London: W. Heinemann. BLEGER, J. (s.d.). Simbiose e ambigüidade. Rio: Francisco Alves Editor. 29 CASSORLA, R. N. S. (1998). Objetividade, confidencialidade e validação : três problemas e uma surpresa na apresentação de material clínico. Jornal de Psicanálise, vol 31, no 57: 93-112 CAVELL, M. (2003). Freedom and forgiveness. In Int. J. Psycho-Anal., vol 84, parte 3, pp.515-531. DUNN, J. (1995). Intersubjetividade em psicanálise: uma revisão crítica. Int. J. Psycho-Anal., 76, 4 : 201-216 EIZIRICK, C. L. (2000). Entre a objetividade, a subjetividade e a intersubjetividade: ainda há lugar para a neutralidade analítica? Rev. Bras. Psicanál., vol. 34: 711-722. ETCHEGOYEN, R. H. (1987). Fundamentos da técnica psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas. FÉDER, L. (1965). El eterno Édipo Cuadernos de Psicoanálisis. vol.II: 119-122 ---------- (1980). Preconceptive ambivalence and external reality. Int. J. PsychoAnal., 61: 161-178. FREUD, S. (1914). On the history of the psycho-analytic movement S.E.14 FREUD, S. (1915). The unconscious S.E.14. GARMA, A. (1974). Mis investigaciones psicoanalíticas originales en el transcurso de cuarenta y cinco años. In Revista de Psicoanálisis, 31: 141-275. GREEN, A.(1993). Two discussions of ”The inner experiences of the analyst” and a response from Theodore Jacobs. Int. J. Psychoanal. 74: 1131-1136. GREEN, A. (1999). Um psicanalista engajado – Conversas com Manuel Garcias. São Paulo: Casa do Psicólogo. GRINBERG, L. (1978). The “razor’s edge” in depression and mourning. Int. J. Psycho-Anal., 59: 245-255. HANLY, C. (1994) Sobre subjetividade e objetividade em psicanálise. Rev.. Bras. Psicanál., vol. 28,no 3 :509-522 HERRMANN, F. (1979). Andaimes do real. São Paulo: E. P. U. JACOBS, T. J. (1992). As experiências internas do analista : sua contribuição ao processo psicanalítico. In Rev. Bras. Psicanál., volume 26, nº 4 : 587-601. -------------------- (1999) Countertransference past and present : a review of the concept Int. J. Psychoanal.: 3: 575-594 30 LANGER, M. (1964) Maternidad y Sexo, 2ª ed. Buenos Aires: Editorial Paidos. LANGER, M. ET AL. (1976) Memória, história e diálogo psicanalítico. Santos: A tribuna de Santos. LIBERMAN, D. (1972). Linguística, Interacción comunicativa y psicoanalítico, Tomo II. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, p.447. proceso MARTINS, C. (1994). Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre – síntese histórica e relações com a IPA. In Rev. Bras. Psicanál., vol. 28, no 3: 419-424. ---------- (1986). Prólogo. In OSÓRIO, L. C. ET AL. Grupoterapia hoje. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986, pp. 9-12. MARTINS, R. (1986). Contribuições de Freud à psicoterapia psicanalítica de grupo In OSÓRIO, L. C. ET AL. Grupoterapia hoje. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986, pp. 43-57 MARCHON, P. (1993). Psicanálise do século XXI In Relatórios, conferências e mesas-redondas do XIV Congresso Brasileiro de Psicanálise. Rio: SBPRJ, pp.373-474. MELSOHN, I. (2001). Psicanálise em nova chave. São Paulo: Editora Perspectiva. PERESTRELLO, D. (1974). A medicina da pessoa. Rio e São Paulo: Livraria Atheneu. PERESTRELLO, M. (1977). In PACHECO, M. A. P. Homenagem ao Doutor Mark Burke. Rio: SBPRJ, 1979, pp. 12-13. --------- (1987). História da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. Organizado por PERESTRELLO, M. Rio: Imago. --------- (1992) Encontros: Psicanálise &. Rio: Imago, 1992. RASKOVSKY, A. e RASKOVSKY, M. (1972). The prohibition of incest, filicide and the sociocultural process In Int. J. Psycho-Anal., 53: 271-276. RACKER, H. (1977). Estúdios sobre técnica psicoanalítica. Buenos Aires: Paidos. ROCHA BARROS, E. M. (1993). Resenha de Cuarenta años de psicoanálisis en Chile. Ed. E. Casaula, J. Coloma e J. F. Jordan. Rev. Bras. Psicanál., vol. 27, no 2: 357-362. RODRIGUÉ, E. e RODRIGUÉ, G. (s.d.). El contexto del proceso psicoanalítico. Buenos Aires: Paidos. 31 ROUANET, S. P. (1993). Mal-estar na modernidade. São Paulo: Companhia das Letras. ROUDINESCO, E. e PLON, M. (1998). Dicionário de Psicanálise. Rio: Zahar. RUDOLFER, N. (1977). In PACHECO, M. A. P. Homenagem ao Doutor Mark Burke. Rio: SBPRJ, 1979, p. 20. RUSTIN, M. (2000). A boa sociedade e o mundo interno. Rio: Imago. STEUERMAN, E. (2000). Os limites da razão. Rio: Imago. ---------- (2003). Criando vínculos – um diálogo entre a filosofia social e a teoria das relações de objeto. In Rev. de Psicanálise, vol. X, no 1: 31-45. VALE, E. N. In PERESTRELLO, M. Encontros: Psicanálise &. Rio: Imago, 1992, p.144. WERNECK, L. (1977). In PACHECO, M. A. P. Homenagem ao Dr. Mark Burke. Rio: SBPRJ, 1979, p.27. WINNICOTT, D. (1978). Da pediatria à psicanálise. Rio: Livraria Francisco Alves, p. 439. ZIMMERMANN, D. (1969). Estúdios sobre psicoterapia analítica de grupo. Buenos Aires: Ediciones Hormé. E-mail: [email protected]