Afeganistão: trabalho para uma geração

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Afeganistão: trabalho para uma geração
ID: 21368175
15-07-2008
Tiragem: 64822
Pág: 35
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 27,21 x 22,45 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 1
Importa incluir os taliban moderados no processo político e combater aqueles cuja agenda torna o diálogo impossível
Afeganistão: trabalho para uma geração
P
articipei numa delegação do Parlamento Europeu
que foi ao Afeganistão no fim de Abril.
Voltei tocada pelo povo sofredor e pela paisagem extraordinária. E mal impressionada com
o balanço de segurança, reconstrução e desenvolvimento. Voltei a pensar que o Afeganistão não pode
ser largado a meio, à mercê da rapacidade e do tribalismo
dos senhores da guerra, do fanatismo assassino da Al-Qaeda e dos seus apoiantes entre os taliban e do flagelo da
produção e tráfico de droga.
Foi o 11 de Setembro de 2001 que voltou a pôr o Afeganistão no mapa geoestratégico ocidental, depois de uma
década de negligência. Mas a Europa, os EUA e os seus
aliados e ainda os países vizinhos precisam de se mobilizar realmente para reconstruir o Afeganistão de forma
mais eficaz e mais rápida. Por razões tanto políticas, como
humanitárias: a miséria, a violência e a impunidade que
marcam as vidas dos afegãos são as raízes dos males que
dali projectam insegurança para o exterior, quer através
do terrorismo, quer do ópio. Nunca haverá segurança
no Afeganistão sem desenvolvimento e sem Estado de
direito. E as bases de um e de outro não estão ainda minimamente lançadas.
Sem a presença internacional, o Afeganistão resvalaria
de novo para o mais profundo dos obscurantismos. Sem
a intervenção militar de 2001 e a NATO não haveria hoje
espaço humanitário para as ONG, por exemplo, poderem
fazer o seu trabalho.
A presença internacional contribuiu para alguns sucessos, especialmente na área da saúde e da educação. Por
exemplo, mais de um terço das 6 milhões de crianças que
vão hoje à escola são raparigas – a mais alta percentagem
da história do país (sob regime taliban, entre 1996 e 2001,
elas foram totalmente excluídas das escolas). E a taxa de
mortalidade infantil, sendo ainda das mais elevadas do
mundo, baixou 24 por cento desde a queda dos taliban.
Mas estes avanços são ensombrados pela percepção
generalizada da degradação da situação de segurança
nos últimos anos. O atentado contra o Presidente Karzai
numa parada militar em Cabul, durante a nossa visita,
evidenciou a colaboração de elementos dentro das forças
de segurança afegãs com a Al-Qaeda. Mais recentemente,
o atentado bárbaro contra a embaixada da Índia ilustrou
de forma horripilante a insegurança que paralisa o país.
O próprio Presidente Karzai, apesar de respeitado por
elementos progressistas da sociedade afegã, é visto como
figura fraca, luta pela sobrevivência política e física, e não
tem força para impor uma visão estratégica para o país.
A fragilidade das instituições em geral e a total ineficácia do sistema judicial, em particular, explicam o clima
de absoluta impunidade em que operam os agentes da
corrupção e da criminalidade, profundamente enraizados
Ana
Gomes
em ministérios como o do Interior e na polícia e entre os
senhores da guerra, reciclados em ministros, parlamentares, juízes ou governadores de províncias. Por exemplo,
os juízes, na maior parte iletrados, ganham 50 dólares por
mês – metade do salário de um polícia ou de um soldado.
Nem uns, nem outros demonstram evidentemente interesse em pôr fim a práticas pedófilas e à violência contra
as mulheres, ambas culturalmente enraizadas.
A presença da Europa no país é importante, financeiramente. Mas no total, apenas 15.000 milhões dos 25.000
milhões de dólares de ajuda prometidos pela comunidade
internacional desde 2002 se materializaram.
Mais grave ainda é a maneira como estes e outros fundos
europeus são gastos no Afeganistão. Por exemplo, as equipas de reconstrução provinciais (PRT) da NATO, muitas
sob a responsabilidade de países europeus, revelam-se
descoordenadas e ineficazes. É absurdo pensar que se
ganham “cabeças e corações”, com soldados a fazer de
ONG de desenvolvimento! As actividades das tropas da
NATO-ISAF devem centrar-se antes na criação do espaço
de segurança para que as ONG, as instituições afegãs e outras possam actuar de forma estratégica na reconstrução
e desenvolvimento do país.
A
crise identitária da ISAF (força de manutenção
da paz ou braço armado da ajuda à reconstrução?) está directamente ligada aos famigerados
caveats: uma série de países europeus impõem
limitações geográficas e funcionais à utilização
dos seus contingentes militares. A Alemanha, por exemplo, tem cerca de 3500 efectivos no terreno, mas recusa-se
a pô-los em funções de combate no Sul do país, onde são
mais precisos. Em vez disso, dedicam-se à “reconstrução”
no Norte pacificado... Quando é que governos e populações europeias assumem que o combate militar é uma das
dimensões, por vezes necessária, da gestão de crises e que
quem escolheu ser soldado decidiu arriscar a vida?
Tanto a ajuda ao desenvolvimento como as operações
de combate da ISAF devem ser postas ao serviço de uma
estratégia política coerente, que torne a democracia possível no Afeganistão. E no contexto afegão os taliban não
podem ser eliminados: representam uma fatia considerável da etnia pachtun indispensável para qualquer solução
política para o conflito, tanto quanto representaram uma
reacção contra a criminalidade da Aliança do Norte, ainda
hoje fortemente ressentida pela população afegã. Os recentes esforços do Reino Unido e do Governo afegão em
estabelecer plataformas negociais com alguns dos líderes
taliban vão na direcção certa: importa dividir os taliban,
incluindo os moderados no processo político e isolando
e combatendo aqueles cuja agenda maximalista, determinada pela Al-Qaeda, torna o diálogo impossível. E, como
CAREN FIROUZ/REUTERS
todos os interlocutores afegãos sublinham, não é possível continuar a política de
avestruz da Administração
Bush relativamente ao papel dos militares paquistaneses no apoio à Al-Qaeda e
aos taliban nas zonas tribais
fronteiriças.
Tudo isto significa que
o envolvimento da comunidade internacional no
Afeganistão é um compromisso para uma geração,
no mínimo. A Europa tem
feito muito, mas não deixa verdadeira marca estratégica, por razões já conhecidas de outros cenários: por um
lado, ausência de uma visão estratégica alternativa à dos
EUA e insuficiente coordenação entre as actividades dos
Estados europeus com a Comissão Europeia; por outro,
um obsoleto desconforto com a utilização de meios militares, mesmo quando legitimados por claro mandato das
Nações Unidas, o que coloca os actores europeus na ISAF
à margem das decisões estratégicas.
O sucesso da comunidade internacional no Afeganistão
passa por um papel acrescido da Europa. Mas todos – europeus, americanos, japoneses, canadianos, e também o
povo afegão– vamos precisar de longo fôlego e de muita
coragem política, para construir um Afeganistão diferente.
Deputada ao Parlamento Europeu pelo Partido Socialista
Nunca haverá
segurança no
Afeganistão sem
desenvolvimento e
sem Estado de direito.
E as bases de um e
de outro não estão
ainda minimamente
lançadas

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