ler fragmento - Nova Acrópole

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ler fragmento - Nova Acrópole
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http://www.nova-acropole.pt
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Título: Florbela Espanca - A vida e a alma de uma poetisa
Título Original: Florbela Espanca - La vida y el alma de una poetisa
Autor: José Carlos Fernández
Coordenação Editorial: Cleto Saldanha
Paginação: Gabinete Gráfico da Nova Acrópole
Tradução: Maria Bastos | José Antunes | Cleto Saldanha
Revisão: Severina Gonçalves | Mariana Esteves | Isa Baptista | Rita Correia
Design da Capa: Daniel Oliveira
Impressão: ?????
Distribuição: Sodilivros — Tel.:213 815 600
1ª Edição: Fevereiro 2011
ISBN: ???????????
Depósito Legal: ??????????
Copyright da tradução: © José Carlos Fernández
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FLORBELA
E S PA N C A
A VIDA E A ALMA DE
UMA POETISA
José Carlos Fernández
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à minha amada e companheira Maricarmen, a mais bela flor do meu Jardim Encantado
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Índice
Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
Biografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
Anexos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 319
Florbela Espanca e o
Imperador-Filósofo Marco Aurélio . . . . . . . . . . . . 321
Florbela Espanca, alma gémea de
Fernando Pessoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325
Carta Astral de Florbela Espanca . . . . . . . . . . . . . 331
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Flor, verso, estrela ou ideia.
Uma biografia de
Florbela Espanca
Prefácio por António Cândido Franco
Durante muitos anos, ao longo do século passado, sobretudo
numa tradição que enraizou e irradiou a partir da Europa central,
ou até de leste, a escrita de biografias sobre autores poéticos foi
encarada como um anacronismo despiciendo e infrutuoso, além
de desprestigiante, que nenhum valor juntava àquilo que interessava ao leitor ou ao estudioso, a obra.
O paradigma dos estudos poéticos do século XX, dado à luz
ao mesmo tempo que as primeiras vanguardas se impunham por
toda a Europa como um modo novo de encarar, melhor, de fazer
Arte, foi assim marcado nos vários momentos da sua desenvolução, do Formalismo russo ao pós-Estruturalismo francês, pelo
apagamento progressivo do autor, tão ou mais notado quanto a
visibilidade deste era colossal com o impressionismo crítico romântico, de que os estudos de Carlyle são bom exemplo, e a História literária de tipo positivista, com Sainte-Beuve, Brunetière,
Lanson ou Teófilo Braga.
O que o novo método crítico veio dizer é que a Poesia ou a
Literatura não eram feitas pelo autor, segundo o modelo determinista anterior, que via na obra um reflexo da personalidade do
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autor ou do meio em que surgira, mas pela literariedade, uma
noção morfogénica, interna ao desenvolvimento da própria obra.
Neste paradigma, a poesia gerava-se a si própria, a partir de tópicos poéticos recorrentes, oscilando entre a imitação de modelos
anteriores tidos como superiores e a ruptura, o que levou um crítico
francês, Roland Barthes, no acume deste processo teórico, a decretar
a morte do autor – e até a da obra, substituída pela noção de texto,
muito mais apta a expressar segundo ele a autogestação duma literatura sem autor.
Estamos hoje em condições de perceber que o fechamento da
Poética no século XX, tendendo para uma abordagem exclusivamente morfológica da obra, representou um empobrecimento no
modo como entendemos e abordamos o fenómeno poético. Mesmo aceitando o suposto que o centro de interesses do leitor de
poesia é o texto a ler, e reconhecendo até que o trabalho da forma
é em Poesia a condição sem a qual nada mais existe, o que levou
Aristóteles a tentar perceber as regras básicas da tragédia grega recorrendo em exclusivo ao acervo escrito, fica sempre por explicar
porque razão o conhecimento da vida dum autor, entendendo
aqui por vida a esfera psíquica do ser, não é caminho proveitoso
para se entender, no mínimo, uma das fontes do poema que lemos, já que nunca se poderá negar que algum elo existirá entre o
autor e a obra ou entre o texto e o tecelão, por mais anónimo ou
colectivo que este seja.
Basta esta hesitação para se perceber quanto perdemos na ancoragem do fenómeno poético no momento em que passámos a
proscrever as biografias dos estudos poéticos. A proibição não foi
felizmente observada com rigor e mesmo num país como a França, que tantos subsídios de valor deu ao desenvolvimento da
poética formalista, com o Estruturalismo e a Semiótica, a obra
biográfica de André Maurois, um contemporâneo das roturas vanguardistas, impôs-se ao longo do século XX como um monumento de proficiência na compreensão crítica dalguma obras
capitais da literatura europeia.
Assinale-se aqui como exemplar uma das suas muitas biografias, e escreveu-as com impressionante regularidade de 1923 a
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PREFÁCIO
1965, À la recherche de Marcel Proust (1949), contemporânea das
primeiras lucubrações antibiografista de Roland Barthes, que
pouco depois dava à estampa Le degré zero de l’écriture (1953),
primeiro grande manifesto do Estruturalismo poético. Ninguém
pode negar que essa heterobiografia, pelos materiais que carreou,
pelas novidades que soube indagar e exumar, pelo escrúpulo que
pôs na reconstituição da esfera psíquica e do meio social, pelo cuidado e outrossim pelo à-vontade com que usou a omnisciência e
outras prerrogativas do narrador, se tornou num marco intorneável dos estudos sobre Proust.
Também em Portugal – país tão atreito à imitação acéfala, que
mais depressa se contagia pelas maleitas dos outros que eles por
elas – houve o labor monumental dum Gaspar Simões, que nos
deu pelo menos duas biografias modelares, ainda hoje de muito
proveito, a de Eça (1945) e a de Fernando Pessoa (1950), não
obstante uma importação acrítica e quase imediata dos novos paradigmas parisinos.
É neste quadro que encaro o trabalho de José Carlos Fernández sobre Florbela Espanca. Por um lado, é impossível ao estudioso fazer de conta que a obra que lê vive por si só, sem autor;
por outro, num movimento de retracção ante as infinitas possibilidades que tal constatação abre, pois qualquer vida é sempre um
viveiro sem fim, ele mostra-se sumamente cauteloso na construção
narrativa que tem entre mãos, reconstituindo passo a passo os
anos da biografia com documentos fiéis, em geral epístolas, saídos
das mãos da própria biografada.
Talvez aquilo que mais parece de assinalar no trabalho que de
seguida se lê seja mesmo o escrúpulo com que o autor procede
no levantamento da vida que escreve. É um tal processo que nos
permite afirmar que em nenhum momento este trabalho confunde
biografia e romance, risco maior e para bem dizer inevitável de qualquer biógrafo. A biografia literária é um retrato da alma singular
que se manifestou neste plano da existência e quanto mais próxima
estiver da verdade mais pertinente se torna para o conhecimento
da obra a que se associa; o romance é um tecido ficcional que não
tem por meta a verdade mas tão-só a verosimilhança.
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ANTÓNIO CÂNDIDO F RANCO
A questão que se coloca, e que baralha a linearidade destas asserções, é que a verdade dificilmente se deixa dizer em si mesma.
Por esse motivo qualquer verdade pode fazer a vez duma mentira
e qualquer mentira pode tomar o lugar duma verdade, quer dizer,
aquilo que designamos por verdade não passa duma probablidade
mais ou menos próxima. Neste sentido um romance apenas verosímil pode dar um contributo mais acerado para o conhecimento da realidade do que qualquer ciência documental, estribada
apenas no real verificável ou na verdade imediata.
Daí que a dramaturgia de Shakespeare, toda ela tecida com os
fios invisíveis da imaginação, seja mais verdadeira no entendimento da alma humana ou dos factos históricos que qualquer tratado de História ou de Psicologia. E daí ainda que o livro de
Agustina Bessa-Luís sobre Florbela Espanca, que o autor do estudo biográfico que de seguida se lê tanto castiga, de resto na linha
doutros respeitáveis estudiosos da autora calipolense, como Eugénio Lisboa, possa conter verdades inesperadas e dereitas, ainda
que escritas em linhas tortas, para aludirmos parafrasticamente a
uma máxima popular de largo alcance.
De qualquer modo, com a direcção que lhe é própria, procurando nunca resvalar para a ficção, separando em absoluto os dois
géneros, biografia e romance, mantendo e respeitando as apertadas prescrições do jogo biográfico, o trabalho que aqui se apresenta dum investigador que escreve e pensa na língua tersa de
Cervantes é um contributo muito estimável para o conhecimento
da personalidade da grande poetisa ibérica de língua portuguesa,
tomando a palavra personalidade como sinónimo duma psique
viva e vendo nesta o crivo decisivo da criação.
Para usar palavras que são caras ao autor deste estudo, diremos
que o corpo é pó, o espírito é mistério, e a alma nome ou obra.
Ao descrever com tanto desvelo a vida desta personalidade enigmática que passou pela Terra e se chamou, talvez para nos iluminar com a beleza das coisas raras e etéreas, posto que corpóreas,
Florbela, é natural, quer dizer, conforme àquele elo imprescritível
que liga o autor à obra, que ele, o autor do livro, tenha tocado
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PREFÁCIO
nas cordas puras que a poetisa nos legou, fazendo vibrar em círculos cada vez mais largos a significação das suas palavras.
Por isso o estudo biográfico de Fernández é também um ponto
a favor da compreensão da riquíssima alquimia verbal florbeliana,
como se vê nas páginas finais, em que o estudioso numera algumas figuras expressivas da poesia de Florbela. Nessas notas estilísticas pretende-se um entendimento simbólico de cada tropo, já
que um poema, naquilo que tem de mais essencial, a Poesia, não
é redutível a uma forma visível. A forma vê-se, presa que ficou
num tropo, mas a significação, ao ser poética, escapa à morfologia,
porque sendo livre e inesgotável é invisível.
A Poesia não depende da arte, menos ainda da técnica, porque
não se confunde com as palavras; é anterior a elas. Se dependesse,
qualquer um de nós faria altos e inspirados poemas, para tanto bastando o aturado estudo dum manual de instruções. Um poema não
tem equivalente numa construção mecânica. Aprende-se a construir
um carro, da mesma forma que se aprende a montar um lego. Com
o poema não é assim; a criação dum poema não se aprende, experimenta-se. Se quiser cristalisar em forma a sua essência mais soberana que é a Poesia, o poema necessita dum momento de
possessão, ou de aparente despersonalização, absolutamente espontâneo, estando além disso fora do quadro vulgar da intenção estética, e por isso da sua apreciação, e próximo da potenciação
máxima, em termos expressivos, do automatismo psíquico.
José Carlos Fernández é um recém-chegado a Portugal que
logo elegeu Florbela como sujeito de interesse, e até de paixão, já
que não é crível que alguém se devote a um poeta como ele faz
sem por ele sentir um elo de misteriosa simpatia ou de escaldante
fraternidade. Mas José Carlos Fernández é também um homem
que ama o conhecimento e por isso o livro que ora dá à luz é um
repositório daquela sabedoria ancestral, de matriz socrática e cratiliana, que vê na linguagem verbal uma dádiva divina.
Florbela Espanca foi – para usarmos as palavras de Teixeira de
Pascoaes, com quem a autora do Livro de Soror-Saudade tem as
melhores afinidades, infelizmente pouco exploradas – uma cria15
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dora, quer dizer, uma cúmplice de Deus no crime da Criação, não
uma versejadora ou uma artista do verso. Nesse sentido Florbela
não pertence à História da Literatura, mas ao Universo, do mesmo
modo que uma pedra ou uma labareda não pertencem à Ciência
mas à Vida.
Por esse motivo o autor deste estudo pôde contemplar maravilhado a essência da Criação nos versos da poetisa e ver nos poemas que ela nos legou a irradiação dum génio ou dum arcano; ele
viu no verbo de Florbela o rasto luminoso duma ideia sublime. E
se isto assim era desde que a poetisa trastagana incendiou a Terra
com os seus versos sáficos, fez-se porventura mais necessário e até
mais verdadeiro a partir do momento em que ele o disse, revelando-o aos nossos olhos.
20 de Janeiro de 2011
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“um livro de belos versos debaixo do braço, um
livro que nos fizesse sonhar, um livro que nos fizesse
sorrir...” 1
“Uma corajosa rapariga, sempre sincera para consigo mesma. (…) Honesta sem preconceitos, amorosa
sem luxúria, casta sem formalidades, recta sem princípios e sempre viva, exaltantemente viva, miraculosamente viva, a palpitar de seiva quente como as
flores selvagens da tua básbara charneca!” 2
“As almas das poetisas são todas feitas de luz como
as dos astros: não ofuscam, iluminam... (À margem
dum soneto)”3
Sem dúvida que Portugal é uma terra de poetas e sonhadores.
A suave doçura do seu clima, o encontrar-se afagado pelas ondas
em todo o seu litoral ocidental, ou talvez o sangue celta que corre
pelas veias dos seus filhos, fazem com que a sua alma se solte e
______________
1. Carta nº 56, Vol. V das Obras Completas de Florbela Espanca, Publicações Dom
Quixote, material compilado por Rui Guedes.
2. Anotação no diário feita no dia 12 de Janeiro de 1930, mesmo ano em que morreu.
Em Florbela Espanca, Contos e Diário, pág. 214, Editorial Bisleya, 2009.
3. Conto “À margem de um soneto”, Florbela Espanca, Contos e Diário, pág. 72,
Editorial Bisleya, 2009.
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J OSÉ CARLOS FERNÁNDEZ
agite como uma bandeira ante os ventos da poesia e do sonho.
Emotivo, melancólico, introvertido e fiel como ninguém perante
quem é capaz de trazer-lhes mensagens de uma beleza e uma razão
que não são as deste mundo mas as de um Rei desconhecido e
sempre esperado, o português é por natureza um enamorado da
poesia. E os séculos da sua história são séculos em que ressoam os
cantos dos seus poetas.
Mas a sua maior poetisa que melhor expressa a saudade e necessidade de voltar ao seu perdido reino, essa espécie de fada de
amor de trágica existência e de cantos ritmados na forma métrica
de sonetos, que ilumina com a beleza dos seus versos o primeiro
terço do século XX, é Florbela Espanca. Injustamente vilipendiada
depois de morrer, pelo Estado Novo, é em Portugal cada vez mais
lida: ela é a poetisa do amor; e a alma enamorada lê os seus versos
como em Espanha se podem ler os de Becquer ou como no mundo
os de Pablo Neruda. O seu erotismo sáfico e puro, arrebatado e,
ao mesmo tempo honesto, parece um manancial que em cascata
corre perdendo-se entre as sombras íntimas de um bosque sagrado.
A sua poesia, orgulhosa e íntima, triste e serena por vezes, outras
desgarrada pela necessidade de um sonho impossível, brota livre e
espontânea, e nada deve ao mundo nem ao seu tempo; nem tampouco às correntes estéticas do seu século… tal é a sua independência e sinceridade!
Florbela Espanca nasce pouco depois da meia-noite, ao começo
da madrugada4 do dia 8 de Dezembro do ano 1894, em Vila Viçosa (Alentejo). O seu nome completo é Flor Bela d’Alma da Conceição Espanca. É filha de João Maria Espanca que, impossibilitado
de ter filhos com a sua esposa e de comum acordo, tem-no com
Antónia da Conceição Lobo, dramática situação que hoje chama-
______________
4. Mais especificamente, nasce às 2 da madrugada, na casa do casal Espanca em Vila
Viçosa. Rui Guedes, no seu Acerca de Florbela, narra como recebeu o nome: “Entre
agonias e em dores tamanhas disseram-lhe: [a Antonia Lobo, que estava em trabalho
de parto] – É uma menina, é uma flor! E Antónia respondeu: Flor se chamará...
(Acerca de Florbela, Rui Guedes, publicações Dom Quixote, Lisboa 1986, pág. 24).
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FLORBELA ESPANCA:
A VIDA E A ALMA DE UMA POETISA
ríamos de “mãe de aluguer”. É criada pela esposa do pai, Mariana
do Carmo Inglesa, que também é sua madrinha. Para facilitar o
processo legal, Florbela é acolhida como uma “filha da vida”, isto
é, legalmente desconhece-se quem é o pai e a mãe. O mesmo acontecerá com o irmão mais novo da poetisa, Apeles, fruto também da
união do seu pai com Antónia Lobo e que nascerá três anos depois.
O pai, filho de um sapateiro, aprendera e exercera com este a
mesma profissão, mas a sua inquietação cedo o levou a trabalhar
como antiquário, vendedor de guarnições de cavalaria, decorador,
fotógrafo e pintor. E inclusive, desde 1898, fazendo projecções
de filmes viajando por todo o país com o seu vitascópio de Edison, o que o torna num dos pioneiros da difusão da sétima arte
em Portugal. Apaixonado pela cultura grega e de vida boémia e
aventureira, viajou também por Espanha, Marrocos e França, e
naufragou no Mediterrâneo.
A sua mãe – mãe biológica – também tinha sido “filha da vida”,
não tinha conhecido os seus pais e tinha sido criada na miséria por
uma mulher que lhe deu o seu apelido, Lobo. João Espanca raptaa e dá-lhe casa na Rua Angerino, na mesma em que tinham vivido
os seus pais e ali concebeu tanto Florbela como o seu irmão Apeles.
Falecerá jovem, em 1908 aos 29 anos de idade, o mesmo ano em
que foi assassinado o rei de Portugal, D. Carlos. A sua vida, uma
vida de dificuldades e de dor, seria expressa pela nossa poetisa com
os versos: “A minha pobre Mãe tão branca e fria / Deu-me a beber
a Mágoa no seu leite!” e também num poema em que funde o seu
pesar com a da sua mãe, o pesar de uma vida inundada de dor a
que não encontra nenhum sentido: “Ó Mãe! Ó minha Mãe, p’ra
que nasceste? / Entre agonias e em dores tamanhas / P’ra que foi,
dize lá, que me trouxeste // Dentro de ti?... Pra que eu tivesse sido
/ Somente o fruto amargo das entranhas / Dum lírio que em má
hora foi nascido!...”5
Pelo facto do seu pai ter sido fotógrafo, dispomos mesmo em
anos tão precoces, de numerosas fotografias tanto suas como do
______________
5. Poema “Deixai entrar a morte”.
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J OSÉ CARLOS FERNÁNDEZ
seu irmão. Numa delas, com seis anos6, aparece rodeada de livros,
sua grande paixão – juntamente com as flores – da infância e juventude. O seu pai deu-lhe uma esmerada educação, dentro das
limitações próprias do âmbito rural em que se desenvolvia.
Durante os anos da sua infância Florbela desfrutará da vida
pacífica do campo e do jovial carácter do pai. As fotografias desta
época mostram-na junto a ele em piqueniques e passeios, penetrando na planície e nas charnecas do Alentejo que depois tantas
vezes cantaria nos seus versos.
A vocação poética e uma extrema sensibilidade a todas as vozes
da natureza despertaram muito precocemente na sua alma: “Aos
oito anos já fazia versos, já tinha insónias e já as coisas da vida me
davam vontade de chorar.Tive sempre esta mesma sensibilidade
doentia, esta profunda e dolorosa sensibilidade que um nada martiriza, esta mesma ternura apaixonada pelos bichos inocentes e
simples. Ficava horas debruçada sobre um formigueiro, dizia coisas ternas aos sapos e às aranhas, e era eu quem criava os pardais
e as andorinhas caídos dos ninhos que o meu irmão, solícito, me
levava para que eu lhes servisse de mãe. Quando matava as moscas
para alimentar as andorinhas, já o triste problema da injustiça da
sorte me atormentava. Porquê sacrificar as moscas em benefício
das aves? Não compreendia: se ambas tinha asas!...”7. Conservamos dois poemas escritos nesta idade, dois poemas em que é evidente a sua pluma infantil mas nos quais já há expressões e
imagens espantosas. Um chama-se “vida e morte”, que título para
uma criança de oito anos!, e diz8:
A Vida e a Morte / O que é a vida e a morte/ Aquella infernal
enimiga/ A vida é o sorriso/ E a morte da vida a guarida/ A
morte tem os desgostos/ A vida tem os felises/ A cova tem as
tristezas/
______________
6. Na obra Fotobiografia de Florbela Espanca, por Rui Guedes, Publicações Dom
Quixote, 1985.
7. Carta nº 150, Vol. V de Rui Guedes...
8. Em Florbela Espanca, Poesia Completa, Publicações Dom Quixote, Lisboa 2007,
compilação realizada por Rui Guedes, pág. 30.
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FLORBELA ESPANCA:
A VIDA E A ALMA DE UMA POETISA
I a vida tem as raizes/ A vida e a morte são/ O sorriso lisongeiro/ E o amor tem o navio/ E o navio o marinheiro.
O segundo começa com um verso que faria sonhar o mais subtil dos filósofos platónicos: “A bondade o som de Deus”, escrito
na forma métrica de um soneto que usaria em praticamente todos
os seus poemas9:
A bondade o som de Deus/ A bondade e a Iducação/ A gente
sempre ama os pais/ A estrella do coração.// A bondade ai a
bondade/ Aquele anjo de amor/ Aquella santa felis/ E a bondade da flôr// O anjo vem dar a bondade/ A bondade do coração/ A bondade para todos// E uma bõa iducação/ Feliz de
quem tem bondade/ E sempre sempre um bom irmão.
Vários meses depois escreve outro poema como presente de
aniversário ao seu pai e que começa:
Hoje é o dia dos teus annos/ Não quero que te faltem meus
parabens/ Que sejas muito felis/ E que todos te estimem bem.
Desde muito pequena, Florbela teve a clara consciência de que
a vida é como uma peregrinação sobre a qual não sabemos exactamente de onde nem para onde vamos, e menos ainda o por quê.
Intelectualmente precoce, a sua vida interior avançava de uma
forma impetuosa, penetrando nas selvas da dor e recolhendo experiências tão aceleradamente ao ponto de, com vinte e cinco
anos, se considerar a si mesma velha. No mês de Abril de 1916,
portanto com vinte e um anos, escreveu o conto “A Oferta do
Destino”10 que expressa muito bem o mistério da sua alma, demasiado grande para ser vulgarmente feliz neste mundo:
______________
9. Florbela Espanca, Poesia Completa, pág. 31.
10. Págs. 27 e 28 das Obras Completas de Florbela Espanca, Vol. III, Contos.
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J OSÉ CARLOS FERNÁNDEZ
Um dia, o destino, trôpego velho de cabelos cor da neve, deu-me uns sapatos e disse-me: “Aqui tens estes sapatos de ferro,
calça-os e caminha... Caminha sempre, sem descanso nem fadiga, vai sempre avante e não te detenhas, não pares nunca!...”
“A estrada da vida tem trechos de céu e paisagens infernais; não
te assuste a escuridão, nem te deslumbres com a claridade; nem
um minuto sequer te detenhas à beira da estrada; deixa florir os
malmequeres, deixa cantar os rouxinóis.”
“Quer seja lisa, quer seja alcantilada a imensa estrada, caminha, caminha sempre! Não pares nunca! Um dia, os sapatos
hão-de romper-se; deter-te-ás então. É que terás encontrado,
enfim, os olhos perturbadores e profundos, a boca embriagante e fatal que há-de prender-te para todo o sempre!”
Isto disse-me um dia o destino, trôpego velho de cabelos
cor da neve.
Calcei os sapatos e caminhei, O luar era profundo; às vezes,
cantavam nas matas os rouxinóis... Outras vezes, ao sol ardente
do meio-dia desabrochavam as rosas, vermelhas como beijos
de sangue; as borboletas traziam nas asas, finas como farrapos
de seda, os perfumes delirantes de milhares de corolas!
Outras vezes ainda, nem uma estrela no céu, nem um perfume na terra, e eu ouvia a meus pés a voz de algum imenso
abismo. Passei pelo reino do sonho, pelo país da esperança e do
amor que, ao longe, banhado pelo sol, dá a impressão duma
imensa esmeralda, e vi também as terras tristes da saudade, onde
o luar chora noite e dia! Não me detive nem um só instante! O
coração ficou-me a pedaços dispersos pelos caminhos que percorri, mas eu caminhei sempre, sem fraquejar um só momento!... Há muito tempo que ando, tenho quase cem anos já, os
meus cabelos tomam-se da cor do linho, e o meu frágil corpo
inclina-se suavemente para a terra, como uma fraca haste sacudida pela nortada. Começo a sentir-me cansada, os meus passos
vão sendo vagarosos na estrada imensa da vida!
E os sapatos inda se não romperam!
Onde estareis vós, ó olhos perturbadores e profundos, ó
boca embriagante e fatal que há-de prender-me para todo o
sempre?!...
Em 1907, com doze anos, Florbela escreve o seu primeiro
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FLORBELA ESPANCA:
A VIDA E A ALMA DE UMA POETISA
conto11 com o título Mamã! em que reflecte como num espelho,
o do seu inconsciente, a imagem invertida do que foi o seu próprio nascimento:
Noite negra e tempestuosa! No céu não luzia uma estrela, o
vento soprava com violência, e flocos de neve envolviam,
como em alva mortalha, a aldeia adormecida. Só ao longe milhares de luzes ardiam no soberbo castelo. Perfumes, flores,
sedas, rendas e cá fora, numa humilde choupana à beira da estrada, fome, miséria e lamentos. Vivia ali uma pobre camponesa com dois filhinhos. Magros, doentes, pediam esmola
pelos casais. Agora choravam. Tinham fome e não tinham
pão, os míseros pequeninos.
No único aposento via-se apenas uma enxerga onde, com a
cabeça entre as mãos, a pobre mãe pensava, talvez, no futuro
bem negro dos filhinhos.
A contrastar, porém, singularmente com a miséria do casebre, via-se um berço elegante e lindo. Envolviam-no rendas e
arminhos. Dentro um pequeno gentil dormia, com a linda
cabecita emoldurada nos anéis doirados do seu cabelo loiro.
Nos lábios pairava-lhe um sorriso meigo de anjo dormente.
Abre-se a porta de repente. Uma mulher divinalmente formosa, envolta em ondas de rendas e sedas, arrastando altiva a
longa cauda, entra na choupana.
A camponesa ergue-se admirada, enquanto a fidalga adulada,
invejada, que tinha a seus pés um mundo de adoradores, não
receando amarrotar as rendas caras do seu opulento vestido de
baile, ajoelhou humilde ante o bercito do filho do crime, que
tinha de beijar furtivamente; inclinou a cabeça, e duas lágrimas
brilhantes como gotas de orvalho se desprenderam dos olhos,
resvalando-lhe pelas faces, que foram cair nas do pequenito
que, a sorrir no seu sorriso de anjo, balbuciou mimoso:
Mamã!
______________
11. Obras Completas de Florbela Espanca volumen III, Contos, pág. 23 e 24.
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E com esta mesma idade escreve postais com versos de amor,
postais12 que desconhecemos o destinatário:
Escrevi o nome teu/ Na branca areia do mar/ Vieram as
ondas brincando/ Teu lindo nome beijar.13
Em 1908 a mãe de Florbela morre em Vila Viçosa numa das
camas do Hospital da Misericórdia, apenas com 29 anos, oficialmente de neurose. Florbela, com treze anos, veste luto. A família
Espanca instala-se em Évora, na rua Aviz nº 61, para que a sua
filha pudesse estudar nesta cidade, no Liceu André de Gouveia.
Os pais não poupam gastos para a educação de Florbela, mas
ela é principalmente uma apaixonada pelos livros. Sempre o será,
pelos livros e pelas flores. Muitos anos depois, recordará numa
das suas cartas14: “Tive os melhores professores de tudo na capital
do Alentejo (que se são melhores não são bons), de bordados, de
pintura, de música, de canto, e afinal sou uma eterna curiosa de
livros e alfarrábios e mais nada.”
Neste Liceu é onde Florbela diz que passou “os melhores anos
da minha vida, aqui nasceram todas as ilusões, todos os sonhos,
todas as quimeras que eu tenho visto perder e fugir para sempre.”15
No 5 de Outubro de 1910 encontra-se instalada com a sua
família no hotel Francfort, no Rossio, em Lisboa, quando rebenta
a revolução que instauraria a República em Portugal. Embora o
seu pai fosse declaradamente antimonárquico, nada sabemos de
como eles viveram esse dia de mudança histórica no destino de
uma nação.
Rui Guedes, que realizou a compilação da obra completa de
Florbela e passou vários anos a investigar como um jornalista profissional tudo o que pudesse resgatar do passado relativo à poetisa,
especifica no seu Acerca de Florbela, os livros que pediu na Biblio-
______________
12. Carta nº 15 da edição de Rui Guedes.
13. Florbela Espanca, Poesia Completa, pág. 34.
14. Carta nº 58 da edição de Rui Guedes.
15. Carta nº 50 da edição de Rui Guedes.
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A VIDA E A ALMA DE UMA POETISA
teca Pública de Évora: Lírio do Vale de Balzac, Os Três Mosqueteiros
e A Dama das Camélias de Alexandre Dumas, Amor de Salvação
de Camilo Castelo Branco, A Morte de D. João de Guerra Junqueiro, o mais vigoroso dos poetas lusitanos.
A estrela de Amor que inundaria depois toda a sua vida, em sonhos, esperanças e desgraças, começa a aparecer no seu horizonte.
O sorriso da deusa Vénus, o seu doce olhar, apresenta-se de um
modo inocente, sem necessidade de quebrar ainda muros e diques,
sem necessidade de arrastar a alma nos torvelinhos da Necessidade:
Amei16 um dia… um dia… eu já nem sei
Há quanto tempo foi que assim amei…
E esse amor foi rir!...
Tinha talvez quinze anos, quinze anos apenas…
Alvorada de lírios e açucenas…
E esse amor foi rir!... 17
Em 1911, com 16 anos, inteira-se da relação íntima que o pai
tinha com uma das suas empregadas domésticas (e que terminaria
em casamento), Henriqueta, a quem escreve com grande maturidade e superando todos os preconceitos da época. Preconceitos que
tanto farão sofrer Florbela durante toda a sua curta vida e que, como
veremos mais adiante, não deixaram repousar o seu cadáver.
Eis a carta, datada de 27 de Maio, que escreve à nova namorada do seu pai:
Deve18 se amar sempre o homem que Deus escolheu para
ser nosso companheiro na vida.
A amizade é o maior sentimento que não morre.
______________
16. Poema sem título, em tercetos. Pág. 49 de Florbela Espanca, Poesia Completa.
17. O poema completo, escrito com vinte e dois anos, continua dizendo como depois deste amor chegou outro que já não foi somente rir, mas sim que nele se
entrelaçaram os bons sonhos e os enganos; nele pôde apenas sorrir, como orar
num altar, que se murmura cantando. O seguinte, inundando a sua alma, traz
apenas “Soluço triste em turbilhões de dor, admiração / É só chorar, chorar...”.
18. Carta nº 21 da edição de Rui Guedes.
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J OSÉ CARLOS FERNÁNDEZ
Toda a mulher que acarinha os filhos de outra tem uma
alma bem formada.
Em 1912 é já oficialmente noiva de Alberto Moutinho que
conhecia desde criança pois tinha andado na escola primária com
ele. Mas, estando na praia da Figueira da Foz, em finais de Setembro inicia uma relação sentimental profunda com um tal
“José”, relação que será devastadora para a alma da poetisa. Este
enamoramento, pelo qual rompe o seu primeiro noivado, foi
acompanhado de uma abundante correspondência da qual, infelizmente, apenas conhecemos uma pequena amostra. Apesar da
tenra juventude da nossa autora, a sua alma e génio criador tornam-se evidentes nestas cartas.
Na seguinte, datada de 26 de Setembro de 1912, na Figueira
da Foz, responde a um amor suplicante deste jovem, “José”, e diz
claramente que ela já está comprometida. Mas pelas sucessivas
cartas chegamos a conhecer a paixão amorosa que nasceu em Florbela, um amor de quatro meses que seria, talvez, o grande amor
da vida da poetisa.
Meu amigo19
Vou responder à sua carta de 24, e ao mesmo tempo pedirlhe mil desculpas das minhas maldades de ontem. Fui indelicadíssima para consigo, mas espero da sua bondade o perdão
para todas essas indelicadezas. Posso contar com ele? Eu não
sou muito má, mas, em compensação, sou extraordinariamente orgulhosa, e de todos os meus imensos defeitos é esse
que eu mesma mais tenho combatido em vão. Magoou-me
muitíssimo o seu procedimento, que afinal me parece hoje naturalíssimo, depois das suas desculpas tão habilmente arquitectadas... confesse...
Mas já me esquecia que a minha carta não é um pretexto
para lhe dizer por outras palavras o mesmo que lhe disse
ontem, talvez injustamente. Envio-lhe o livro que tão gentil-
______________
19. Carta nº 23 da edição de Rui Guedes.
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A VIDA E A ALMA DE UMA POETISA
mente me enviou, junto com a carta que contém o “célebre”
pensamento que tantos desejos mostra em possuir. E tem
muita razão, porque preciosidades destas não se desprezam.
Agora falemos a sério, que já é tempo disso. Pensei em não
responder à sua carta porque era, afinal, o que ela muito bem
merecia, mas como sou muito boazinha (modéstia à parte)
faço precisamente o contrário do que penso. O seu amor,
sendo sincero como creio, é dos que lisonjeiam uma mulher,
seja essa mulher a mais digna das criaturas. Eu tenho a convicção que será bem ditosa a mulher que for sua durante uma
vida inteira, tenho a certeza que será feliz a mulher que lhe
consagrar a existência; mas, meu bom amigo, essa mulher não
serei eu, nem sequer é possível pensar em tal loucura. Pense
no que eu lhe digo e verá que tenho razão. Obriga-me a proceder contra o que a minha consciência me ordena, obriga-me a ouvir-lhe falar de uma coisa que eu não devia consentir
a ninguém que não fosse ao meu noivo, ao homem a quem
devo completa lealdade. Eu julgo que a mulher verdadeiramente digna é aquela a quem repugna uma traição, seja ela de
que natureza for. Ele quer-me muito, tem confiança em mim,
e eu que faço? Abuso assim daquele grande amor, daquela cega
confiança, escrevendo-lhe e lendo as suas cartas em que me
fala de um amor que eu não posso nem devo compartilhar. O
que nos reserva o futuro senão acabar de vez com esta loucura?
Quanta desilusão, quantas mágoas nos causará tudo isto?
Pense bem, meu amigo, peço-lhe. “Tenhamos fé no futuro”.
Mas o que espera desse futuro que eu hei-de consagrar, por
enquanto, a alguém que não há-de ser o Sr.? Por Deus lhe
peço, por esse amor que diz ter-me, afaste o pensamento de
mim, procure outra mulher, que as há tão dignas por esse
mundo, que o tornará tão feliz quanto eu desejo sê-lo. Ficarei
sendo sempre sua amiga, um pouco querida e um pouco esquecida, que de longe pensará muitas vezes nestes dias que
temos passado juntos. Guarde sempre da minha estima uma
recordação, porque a mereço, creia. Enoja-me a mentira; é por
isso que sinceramente hoje lhe escrevo, tão sinceramente como
lhe tenho falado. Que atractivos encontra em mim para que
tanto me queira, conhecendo-me há apenas oito dias? Não
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posso saber nem compreendo o que em mim o encantou, conhecendo-me eu a mais simples de todas as mulheres, que tão
encantadoras algumas se tornam com a intrincada rede dos
seus lindos caprichos.
Disseram-me hoje uma coisa que me magoou bastante. De
todas as coisas que a seu respeito me têm dito, foi esta talvez
a que mais me custou pela significação humilhante, para mim,
que tem: disseram-me que a sua mãe o tinha quase proibido
de falar comigo, que se tem mostrado desagradavelmente surpreendida com a sua assiduidade junto de mim. E isto porquê?
Não sei. Nunca mendiguei o favor de me falarem e, como já
lhe disse, sou suficientemente orgulhosa para não aceitar semelhantes favores. Faça pois a vontade a sua mãe, sim? Eu
nunca senti o quanto há de santo no amor de uma mãe boa
como é a sua. O amor das mães tem destes egoísmos que eu
compreendo, meu bom amigo. Eu não tenho o direito de lhe
causar uma angústia, e creia que não lha causarei, por muito
injusta que ela possa ser para comigo. Foi ontem à noite que
eu detalhadamente soube isto. Peço-lhe que o não diga a ninguém: faz-me esta vontade, sim?
Contaram-me, também, uma coisa que me magoou e que
me não devia magoar, uma coisa a respeito de uma prima sua
de que já me tem falado algumas vezes. Para que me dizem
estas coisas? Para quê? Para me torturarem, creio eu. São coisas
que dizem respeito à sua vida íntima, com o que eu nada
tenho, mas que apesar de tudo me fazem ver o que há de mau
nesta gente que só é feliz quando faz sentir bem fundo o luto
de uma amargura.
Têm-me causado muitos desgostos nestes últimos dias e isto
para a minha vida simples, para os meus gostos de sossego e
tranquilidade, é tudo quanto há de mais triste, pode crer, meu
amigo. Tem sido o Sr. o causador de tudo isto, vê? Involuntariamente, bem sei, e eu perdoo-lhe. Digo isto apenas para ver
as primeiras consequências da sua loucura e da minha. Uma
única pessoa tem sido boa para mim: a D. Josefina, que é ao
mesmo tempo muito sua amiga. Podem dizer-lhe muito mal
de mim que ela não diz nada. É muito boazinha, não é verdade? Eu gosto imenso dela, e talvez porque, para ela, o Sr.
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não tem defeitos. É uma das senhoras mais dignas que tenho
encontrado. Não é da minha opinião?
Aproveito a ocasião para lhe dizer que lhe não dou o meu
retrato e que lhe não tornarei a escrever. Sou má? Talvez, mas
faço nisso o que devo e o que já há muito devia ter feito. Não
me censure, não? Não torne a falar comigo, não digo já por
mim, mas por si, que vai causar contrariedades a quem deve
tudo, à única pessoa que merece todo o amor da sua alma
bondosa.
Hei-de hoje pedir-lhe uma coisa. Será apenas um momento
a dizer, descanse, meu amigo, que eu sei fazer sempre o que
devo.
Sinceramente afeiçoada, a sua amiguinha
Florbela
Evidentemente, o amor tem razões mais poderosas que o intelecto e a nossa vontade, e toda a fortaleza dos argumentos de Florbela cederá ante o empurrão do mais poderoso dos Deuses, aquele
que abre as portas da vida e lança os seus dardos mesmo para lá das
portas da morte. A poetisa inicia relações sentimentais com esse
“José”. Escreve-lhe versos muito simples, de grande beleza, em português e francês:
Avec tout ton coeur aime-moi
Car tout mon coeur n`aime que toi
Je ne puis te voir sans émoi
Je t’aime bien plus que ma vie.20
-------------O que mais me comove e me contrista
Neste pesar que se apossou de mim
É não saber (que tenebrosa egoísta)
Se te lembras de mim!
______________
20. Com todo o teu coração ama-me / Pois todo o meu coração só a ti te ama / Eu não
posso ver-te sem emoção e amo-te muito mais do que a minha vida.
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Qualquer pesar em que a memória insista
Recorda a nossa angústia. É uma aflição.
E eu vivo a repetir: longe da vista...
Longe do coração...21
No mês de Fevereiro do ano seguinte, em 1913, e devido a pressões da família dele, a poetisa termina o idílio com o seu amado.
Fica moralmente destruída. Numa carta que Florbela escreveria vários anos mais tarde, expressa a ruína desse desamor, embora não
saibamos se é devida a essa experiência ou simplesmente ao facto
de que a alma sente, a partir dos 16 ou 17 anos, o peso da vida; esta é a idade que os egípcios chamavam “da deusa Hathor”, idade
na qual a alma desperta na sua prisão de carne e sangue.
Nasci num berço de rendas rodeada de afectos, cresci despreocupada e feliz, rindo de tudo, contente da vida que não
conhecia, e de repente, amiga, ao alvorecer dos meus 16 anos,
compreendi muita coisa que até li não tenha comprrendido e
parece-me que desde esse instante cá dentro se fez noite.
Fizeram-se ruínas todas as minhas ilusões, e, como todos os
corações verdadeiramente sinceros e meigos, despedaçou-se o
meu para sempre.
Podiam hoje sentar-me num tronco, canonizar-me, dar-me
tudo quanto na vida representa para todos a felicidade, que
eu não me sentiria mais feliz do que sou hoje. Falta-me o castelo cheio de sol entrelaçado de madressilvas em flor; falta-me
tudo o que eu tinha dantes e que eu nem sei dizer-te o que
era... É a história da minha tristeza. História banal como quase
toda a história dos tristes.22
Este “José” era, na realidade, João Martins da Silva Marques
que chegaria a trabalhar como director do Arquivo Histórico da
Torre do Tombo e que pediu, ao serem editadas essas cartas, que
______________
21. Carta nº 26 edição de Rui Guedes.
22. Carta nº 57 da edição de Rui Guedes, Vol.V.
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A VIDA E A ALMA DE UMA POETISA
se substituísse o nome de João pelo de José. Muitas das páginas
da sua futura prosa estão dedicadas a ele e à pureza do amor que
viveram juntos. É o amor da sua juventude, Mário no seu conto
“Amor de Sacrifício”, o amor de quem a fatalidade e o dever que
esta impõe nos separa; Karl na “Alma de Mulher”; e sobretudo o
Dr. Manuel de “Amor de Outrora”, conto de sublime beleza escrito já na plena maturidade da autora. Neste conto descreve cenas
deste amor de ouro, não contaminado pelo desejo23, que são histórias vividas ou imaginadas artisticamente na sua relação com o
seu primeiro amado:
Viu o outro24, o verdadeiro, aquele que era dela ainda, que
trazia ao pescoço como uma medalhinha benta capaz de todos
os milagres. Ah! Aquele Manuel de romântica capa negra dos
seus sonhos de rapariguinha! Aquele que tinha um sorriso já tão
triste desenhado num sinuoso traço rubro tão bem feito, sobre
a palidez da face! O Manuel que lhe chamava Nita, que punha
no seu nome o afago que ninguém mais lá pusera, que lhe mandava molhos de violetas e amores-perfeitos que lhe escrevia em
grandes cartas todas as palavras lindas que há no mundo, todas
as blandícias perfumadas e santas, três vezes santas, do seu amor
de sortilégio. (...) E lembrava-se, lembrava-se das noites em que
falava com ele à janela, às horas sossegadas em que o silêncio
rumoreja pelas ruas desertas. O luar banhava tudo; as casas, no
largo, desmoronavam-se e caíam em linhas rectas sobre a branca
toalha estendida. As fadas andavam por toda a cidade estendendo os seus lençóis de linho... e os olhos da rapariguinha apaixonada viam as fadas andar na sua lida, que os olhos de quinze
anos são como varinhas de condão no mundo feio e lôbrego,
os olhos de quinze anos vêem tudo onde por acaso pousem!...
— Boa noite.
______________
23. Amor que Agustina Bessa Luis, no cinismo e mordacidade que a caracterizam,
chama depreciativamente “amor de verão”. E certamente o é aos olhos do mundo
e dos costumes vulgares, mas desde a extrema sensibilidade da poetisa é muito
mais que isso, é a primeira vez que o amor chama às portas de uma alma enamorada. Ver a sua biografia Florbela Espanca, a vida e a obra.
24. Florbela Espanca, Contos e Diário, editora Leya Biis, págs. 88 e 89.
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J OSÉ CARLOS FERNÁNDEZ
— Boa noite.
Ah, a voz dele a vibrar no silêncio, nítida como um cristal
intacto! Que se diziam depois? Lembrava-se lá! Aos trinta anos
sabe-se lá bem o que bocas puras murmuraram em noites luarentas, em românticos balcões debruçados sobre o largo rio de
luar, enquanto o mistério dos destinos vai afagando as almas
para as estrangular! Sabe-se lá!...
E nunca nessas horas ruivas, a rir como bacantes, nunca sentira latejar nos seios o desejo de uma carícia proibida, nunca
sonhara com os beijos da sua boca triste, nunca as suas mãos
tremeram na obsessão de um contacto mais envolvente e mais
perturbador. Não, nunca! Toda a castidade, toda a doçura, o
seu sonho ia mais alto que as asas das cotovias e desconhecia
tudo o que ia por cá abaixo, os caminhos ignorados por onde
mais tarde havia de caminhar, fazendo pó e lama.
Mas um dia, um dia morrera tudo, desabara tudo. Os fortes
alicerces da sua catedral de ouro abanaram como se um ciclone
sacudisse uma humilde choupana de colmo, e tudo desabara
como um frágil castelo de cartas. Porquê? Sabia lá! Nem já se
lembrava! Intrigas... calúnias... sabia lá! A vida começava a
cumprir as suas promessas, que a vida é boa pagadora e não
esquece nunca as suas dívidas...
Viu-se de um dia para o outro mais pobre que Pedro Sem25,
viu-se despojada de toda a sua grandeza, sem mesmo saber
porquê e, asas esfarrapadas, espantada, tonta, pousou na terra
e teve medo... mas a vida lá a arrastou, pegou-lhe na mão e
lhe levou!.... Para onde?
Com a alma destruída26 pela forçada separação, Florbela pede
______________
25. Personagem que era um mercador rico à custa da desgraça alheia, mas que, tomado
pela arrogância, desafiou Deus afirmando que nem este o poderia fazer pobre.
Nesse momento uma tempestade afundou as suas naus cheias de especiarias e
bens preciosos e um raio destruiu o seu palácio. Arruinado Pedro Sem passou a
pedir esmola na rua lamentando-se: “Dê uma esmolinha a Pedro Sem, que teve
tudo e agora não tem...”.
26. Na carta nº 28, finalizando esta turbulenta relação, escreve: “Pena é não haver
um manicómio para corações, que para cabeças há muitos!”. Vol V., edição
de Rui Guedes, pág. 89.
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A VIDA E A ALMA DE UMA POETISA
ao seu pai que venha buscá-la à Figueira da Foz, que está presa na
angústia e desesperada:
Minha amiga27
Recebi a carta do papá. Domingo, sem falta, quero-os cá,
porque isto não pode continuar assim.
É preciso tomar uma resolução, seja qual for. Já tenho as
minhas cartas, rasguei-as todas, tudo está acabado. Eu tenho
sofrido tanto como nunca pensei sofrer. Nunca pensei que isto
custasse tanto.
Ele era o meu maior amigo. Não sei o que hei-de fazer,
tenho a cabeça doida, tenho febre.
Eu não volto ao liceu. Quero ir-me embora, mesmo que
seja para Vila Viçosa. Eu não posso viver assim. Ele escreve-me cartas que me fazem medo. Que dó que eu tenho dele,
nem calculas!
Diz ao papá que venha domingo para ir a Lisboa e ter ocasião de resolver tudo. Eu quero acabar com este inferno, quero
ir-me embora.
Estou doente. Tem dó de mim, dá-me conselhos, eu quero-te cá. Quero ver o meu pai querido, estou doente.
Eu nem sei o que escrevo.
Pela saúde do meu paizinho, vem tu depressa ou leva-me
daqui.
Adeus.
Beija-te muito.
A tua grande amiga.
Florbela
Neste mesmo ano, 1913, talvez como uma fuga psicológica
frente ao seu trauma amoroso, restabelece o seu noivado com Alberto Moutinho, emancipa-se antes da idade legal e no dia 8 de
Dezembro28, dia da Lua, une-se com ele num casamento civil.
______________
27. Carta nº 30, edição de Rui Guedes.
28. Dia em que cumpria 19 anos, portanto. Como veremos mais adiante, a data
de 8 de Dezembro, dia da Nossa Senhora da Conceição em Portugal ou da
Imaculada Virgem em Espanha, foi uma data em que a nossa poetisa se desposava com o Destino, quer fosse para nascer, para casar-se ou para morrer.
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J OSÉ CARLOS FERNÁNDEZ
É fácil de determinar o quanto há da vida de Florbela no seu
breve conto “Amor de Sacrifício”29:
Ao som daquela voz tão bela, Armanda estremeceu e, levada
por aquele encanto infinito, pôs-se a recordar todo o seu passado, passado de sonho e amargura que ela tinha acalentado
dentro do peito como uma criança que se adormece e que acordava agora, ao som daquela voz profunda e evocadora que
gemia saudades e agonias. Por diante dos seus olhos castanhos,
de uma luz casta e doce, perpassou rapidamente a visão daquele
seu primeiro amor, nascido um dia à luz de dois olhares trocados
por acaso, e morto um ano depois, deixando-a para sempre
aquela criatura triste e pacífica, tão diferente daquela alegre rapariga de lábios vermelhos e olhos petulantes que ela tinha sido!
Depois, o seu casamento com outro, aquela aventura nascida
de um enorme despeito e dum orgulho excessivo. Era preciso
esquecer, e era o único meio! Esse mesmo falhou, porque o
sonho não morrera nunca, estava apenas adormecido, e ela sentia-o despertar agora, ao som da voz do humilde soldado que
continuava a gemer saudades da noiva ausente! No entanto
tinha encontrado, no marido, um grande amigo e um grande
coração. Ela estimava-o muito, sem dúvida, era mesmo muito
amiga dele, mas... Mário... Mário era esse o nunca esquecido,
era esse a agonia vivida cada vez mais funda e mais dolorosa,
era essa a chaga sempre sangrando, a amargura infinita e o supremo encanto da sua triste vida! Onde estaria ele? Em que canto da terra viviria o seu amor? Nunca mais o vira!
Florbela e o seu marido instalam-se no Redondo, nas proximidades da serra d’Ossa. Dão aulas a crianças num regime de semiinternato, de manhã à noite, apertados pelas dificuldades económicas.
Florbela ensina Francês, Inglês, Geografia e História e queixa-se nas
suas cartas de como se lhe “derretem” as escassas receitas.
______________
29. Conto incluído no caderno Trocando Olhares e datado de 11 de Abril de 1916.
Não se sabe quem é o Alex da dedicatória, talvez o seu amor já distante no
tempo e no espaço mas nunca esquecido.
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