crimes de sedução em campos dos goytacazes - Pagu
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LUIZ CLÁUDIO DUARTE CRIMES DE SEDUÇÃO EM CAMPOS DOS GOYTACAZES – 1960/1974 Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito para obtenção do título de Mestre: Linha de Pesquisa: História Cultural. ORIENTADORA: PROFª. Drª. MARTHA CAMPOS ABREU NITERÓI - RJ 1999 LUIZ CLÁUDIO DUARTE CRIMES DE SEDUÇÃO EM CAMPOS DOS GOYTACAZES – 1960/1974 Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito para obtenção do título de Mestre: Linha de Pesquisa: História Cultural. BANCA EXAMINADORA Profª. Drª. Martha Campos Abreu (Orientadora) - Universidade Federal Fluminense Profª. Drª. Sueann Caulfield – Universidade de Michigan Profª. Drª. Magali Gouveia Engel - Universidade Federal Fluminense Profª. Drª. Rachel Soihet (Suplente) - Universidade Federal Fluminense NITERÓI - RJ 1999 DEDICATÓRIA Aos meus pais, Luiz Duarte e Maria José Mesquita Duarte, pois este trabalho é também o resultado dos seus sacrifícios e do seu amor. A José Marcos Duarte, irmão de quem a saudade não cessa. À Sheila Siqueira de Castro Faria, pela amizade, confiança e afeto. À Odete, Maria Tereza e João Luiz, por nossa história em construção. AGRADECIMENTOS Olhando para os últimos três anos em que o meu cotidiano resumiu-se, essencialmente, às atividades ligadas a esta pesquisa, percebo o quanto se trata de um trabalho coletivo. Como não reconhecer as contribuições de todos(as) os(as) autores(as), das mais diversas áreas do conhecimento, que, de alguma forma, influenciaram minha formação intelectual? O que consegui produzir reflete também a contribuição deles(as). Agradeço aos colegas do Departamento de Serviço Social de Campos da Universidade Federal Fluminense que me concederam a liberação das atividades docentes, especialmente aos professores Aristides Arthur Soffiati Netto, José Luís Vianna da Cruz e Hélio de Freitas Coelho por terem assumido as disciplinas que a mim cabiam; à CAPES pela bolsa de estudos que viabilizou todo o trabalho de pesquisa; à PROPP, especialmente ao Professor Marcos e às funcionárias Virgínia e Rita por toda atenção que me dispensaram; aos juízes e funcionários do Fórum Nilo Peçanha da Comarca de Campos dos Goytacazes, que possibilitaram o acesso aos processos que utilizei; aos professores do mestrado com os quais muito aprendi, ainda que nossas conversas, quase sempre, seguissem por caminhos bem distantes do tema desta pesquisa; às professoras Angela Maria de Castro Gomes e Magali Gouveia Engel agradeço a participação na banca que aprovou o projeto desta pesquisa; à minha orientadora, Professora Martha Campos Abreu agradeço por toda dedicação, pelo entusiasmo demonstrado com o tema, por ter sido sempre uma fonte de estímulo e, ao mesmo tempo, uma voz crítica apontando falhas, orientando correções e aplaudindo os acertos. A Márcio de Souza Soares, companheiro de viagem com quem pude compartilhar muitas das incertezas e expectativas vivenciadas na construção deste texto, agradeço as boas “dicas” e o apoio sempre constante. À Maria Luiza dos Santos Moutinho agradeço por ter limpado o texto das suas imperfeições gramaticais, permitindo-me o devido respeito a nossa língua, tão carente de cuidados e proteção, tão bela na sua capacidade de expressar idéias e emoções. De forma muito especial agradeço a amizade, a generosidade e o apoio de Sheila Siqueira de Castro Faria. Sem o seu estímulo, esta pesquisa não teria sido feita e, por isso, quero compartilhá-la com você. (...)Certa manhã, Sara da Conceição saiu de casa, era Maio o mês, e atravessou os campos até o lugar onde combinara encontrar-se com Domingos Mau-Tempo. Ali estiveram nem tanto como meia hora, deitados entre o trigo alto, e quando Domingos regressou às formas e Sara a casa dos pais, ele ia assobiando de comprazio e ela tremia como se o sol não queimasse já. E, quando atravessou a ribeira a vau, teve de ir agacharse e lavar-se debaixo de uns salgueiros porque o sangue não parava de escorrer-lhe pelas pernas. José Saramago SUMÁRIO FOLHA DE ROSTO FOLHA DE APROVAÇÃO DEDICATÓRIA AGRADECIMENTOS EPÍGRAFE LISTA DE TABELAS LISTA DE GRÁFICOS RESUMO ABSTRACT INTRODUÇÃO....................................................................................................................14 CAPÍTULO I: HONRA, VIRGINDADE E CONTROLE MORAL NA HISTÓRIA E NA HISTORIOGRAFIA.........................................................................................................33 1. AS REPRESENTAÇÕES DO FEMININO NA HISTORIOGRAFIA DA COLÔNIA.........................34 2. ENTRE A ORDEM E A ALTERIDADE: CONFLITOS E CONTINUIDADES APONTADAS PELA HISTORIOGRAFIA..........................................................................................................41 3. IMAGENS PERSISTENTES: LOUCURA E GÊNERO..............................................................47 4. ENTRE A DISCIPLINA E O DESEJO....................................................................................50 CAPÍTULO II: APRESENTAÇÃO – A CIDADE, SUA POPULAÇÃO E OS PERSONAGENS..............................................................................................................65 1. APRESENTANDO A CIDADE E SUA POPULAÇÃO...............................................................66 1.1- Economia, Educação e Gênero – As Condições da Planície....................................68 1.2- Nos Laços do Matrimônio........................................................................................73 1.3- Nas Páginas, Nas Ondas e Nas Telas.......................................................................76 2. AS CONDIÇÕES SOCIAIS DE EXISTÊNCIA........................................................................79 2.1- Trabalho e Papéis Sexuais........................................................................................80 2.2- Morando com os Pais...............................................................................................84 3. EDUCAÇÃO E “COR”......................................................................................................90 CAPÍTULO III: O NAMORO – MOÇAS, RAPAZES E JUÍZES ....................................................96 1. RUAS, PORTÕES E QUINTAIS..........................................................................................97 2. A “MORAL FAMILIAR”, A MORAL DOS JUÍZES..............................................................100 3. MULHERES ATIVAS......................................................................................................105 3.1- As “Moças de Hoje em Dia”..................................................................................116 4. HONESTIDADE E MORAL – OS OLHARES DAS TESTEMUNHAS.......................................120 5. OS PAIS, AS MÃES E OS PAPÉIS DE GÊNERO..................................................................130 CAPÍTULO IV: PRÁTICAS SEXUAIS...................................................................................140 1. JUSTIFICANDO A SEDUÇÃO: AS OFENDIDAS.................................................................141 2. ATITUDES MASCULINAS..............................................................................................145 3. A HIERARQUIA DAS “CORES” NAS RELAÇÕES SEXUAIS................................................156 CAPÍTULO V: AMIGADO COM FÉ, CASADO É....................................................................162 1. OS PAPÉIS SOCIAIS, A MORAL E O MATRIMÔNIO..........................................................163 2. ELA PENSA EM CASAMENTO? O SENTIDO DAS UNIÕES.................................................168 CONCLUSÃO....................................................................................................................182 PALAVRAS FINAIS............................................................................................................183 LISTAGEM DAS FONTES...................................................................................................187 BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................190 LISTA DE TABELAS Tabela 1: Anos de Estudos das Pessoas de 5 Anos e Mais, Por Sexo.............................73 Tabela 2: Casamentos no Município de Campos – 1960/1981.......................................74 Tabela 3: Estado Conjugal da População de Campos, Por Sexo.....................................74 Tabela 4: Atividades Exercidas Pelos Populares.............................................................80 Tabela 5: Profissões das Testemunhas............................................................................81 Tabela 6: Estado Civil das Testemunhas, Por Sexo........................................................82 Tabela 7:Estado Civil dos(as) Queixosos(as)..................................................................85 Tabela 8:Estrutura Familiar das Ofendidas – Onde Elas Moravam................................85 Tabela 9:A Herança Matrimonial das Ofendidas............................................................85 Tabela 10: Estrutura Familiar dos Acusados – Com Quem Eles Viviam.......................88 Tabela 11: Estado Civil dos Acusados............................................................................88 Tabela 12:Estrutura Familiar dos Acusados – A Herança Matrimonial..........................88 Tabela 13: Classificação dos Populares Pelo Item “Cor”................................................91 Tabela 14: Escolaridade das Ofendidas...........................................................................91 Tabela 15: Escolaridade e “Cor” das Ofendidas.............................................................91 Tabela 16: Escolaridade e “Cor” das Ofendidas Conforme a Composição Étnico/Racial dos Processos................................................................................................92 Tabela 17: Escolaridade dos Acusados...........................................................................93 Tabela 18: Escolaridade e “Cor” dos Acusados..............................................................93 Tabela 19: Escolaridade e “Cor” dos Acusados Conforme a Composição Étnico/Racial dos Processos................................................................................................93 Tabela 20: Tempo de Namoro Segundo as Ofendidas....................................................98 Tabela 21:Tempo Entre o Início do Namoro e a Primeira Cópula, Segundo as Ofendidas......................................................................................................98 Tabela 22: Local da Primeira Cópula, Segundo as Ofendidas........................................99 Tabela 23: Casos em Que as Ofendidas Admitiram Intimidades com os Acusados.....100 Tabela 24: Sexo das Testemunhas.................................................................................122 Tabela 25: Relações das Testemunhas com os Acusados e com as Ofendidas............122 Tabela 26: Comentários Positivos das Test. da Acusação Sobre as Ofendidas............126 Tabela 27: Relação de Parentesco Entre os (as) Queixosos(as) e a Ofendida...............132 Tabela 28: Posição do(a) Queixoso(a) Diante do Namoro da Filha..............................133 Tabela 29:Através de Quem o(a) Queixoso(a) Disse ter Tomado Ciência do Desvirginamento........................................................................................134 Tabela 30: Justificativas das Ofendidas Para Terem Copulado....................................141 Tabela 31: Posições dos Ofensores Diante das Acusações...........................................146 Tabela 32: Comentários dos Acusados Sobre as Ofendidas..........................................152 Tabela 33: Número de Coitos Segundo os Acusados....................................................152 Tabela 34: “Cor” Dos Casais.........................................................................................157 Tabela 35: Razões Para a Queixa Segundo as Ofendidas.............................................172 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1: População de Campos 1940-1980..................................................................67 Gráfico 2: Área de Residência dos Populares.................................................................68 Gráfico 3: Setor de Atividades das Pessoas de 10 Anos e Mais, Por Sexo.....................69 Gráfico 4: Pessoas De 10 Anos e Mais, Por Rendimento Médio Mensal (Salário Mínimo), Por Sexo........................................................................................69 Gráfico 5: Rendimento Médio Mensal das Mulheres em Salário Mínimo......................70 Gráfico 6: Pessoas de 10 Anos e Mais, Por Rendimento Médio Mensal em Salário Mínimo.........................................................................................................71 Gráfico 7: Rendimento Médio Mensal Familiar, em Salário Mínimo............................72 Gráfico 8: Estado Conjugal das Pessoas de 15 Anos e Mais, Por Sexo..........................74 Gráfico 9: Domicílios Permanentes, Por Utilidades Existentes......................................77 Gráfico 10: Freqüência a Festas e Bailes Segundo Relatos das Ofendidas...................110 Gráfico 11: Número de Coitos Segundo as Ofendidas..................................................144 RESUMO O estudo da criminalização da sedução e/ou defloramento de moças virgens fora do casamento tem-se constituído numa das linhas de pesquisa que estão a contribuir para o entendimento tanto das políticas de normatização como das relações de gênero no Brasil. Nesta pesquisa, recorrendo a uma parte da historiografia brasileira sobre relações de gênero e à análise de 53 processos por crimes de sedução, ocorridos entre 1960 e 1974 e recolhidos no Fórum da cidade de Campos dos Goytacazes, procuramos compreender as construções e reconstruções das imagens sobre o feminino e o masculino; os valores morais defendidos pelos profissionais do judiciário e as imagens sobre a condição feminina, a partir das quais os juízes proferiram suas sentenças; os conflitos e aproximações entre os pronunciamentos das autoridades judiciais e os depoimentos dos homens e mulheres das camadas populares envolvidos nesse tipo de crime; procuramos entender como viviam os homens e mulheres envoltos nos processos; as motivações que levaram os populares a buscar a intervenção do poder judicial numa disputa amorosa; buscamos perceber, a partir da historiografia examinada, as continuidades e modificações nas formas de se representar o masculino e o feminino. ABSTRACT The study of the criminality of the seduction and/or deflowering of virgin girls out of the marriage it has constituted in one of the research lines that contribute for the understanding as much the normatization politics as the gender relationships in Brazil. In this research, ressorting to upon a part of the Brazilian historiography about gender relationships and to the analysis of 53 processes for seduction crimes, happened between 1960 and 1974 picked up at the Forum of the city of Campos of Goytacazes, we tried to understand the constructions and reconstructions of the images about the feminine and the masculine; the moral values defended by the professionals of the judiciary and the images about the feminine condition, from which the judges uttered their sentences; the conflicts and approaches among the pronouncements of the judicial authorities and men and women’s depositions of the popular strata involved in that type of crime; we tried to understand how men and women involved in the processes; lived motivations that took the popular ones to look for the intervention of the judicial power in a loving dispute; we search to notice, starting from the examined historiography, the continuities and modifications in the forms of representing the masculine and the feminine. INTRODUÇÃO 14 INTRODUÇÃO O porão do 4º Ofício do Fórum Nilo Peçanha da Comarca de Campos dos Goytacazes não era um lugar aprazível. A parca iluminação, o ar pesado e o desconforto induziam-me a sair, a buscar ar e luz, mas eu precisava estar ali, precisava ficar. O ano era 1989 e me enfiara naquele “buraco” em busca de um tema para pesquisar e das fontes que me permitissem abordá-lo. A elaboração de um projeto de pesquisa em História, utilizando fontes existentes em Campos, era o trabalho final para a disciplina de Teorias e Métodos da História do curso de Pós-Graduação “Lato Sensu” em História do Brasil que estava concluindo. A sugestão dada pela professora Heloiza de Cássia Manhães Alves - minha colega de curso - de trabalhar com a História das Mulheres pareceu-me interessante e desafiadora. Em busca das mulheres, passei a vasculhar as pilhas de processos que estavam “arquivados” em maços cuja seqüência numérica não seguia uma ordem temática ou cronológica e, para completar o caos daquele “arquivo”, não havia um livro de tombo. Dessa forma, localizar, no tempo disponível para concluir o trabalho, processos com mulheres como protagonistas seria, como foi, uma questão de sorte. Contudo, aos poucos eles foram aparecendo e, para minha surpresa, tratavam de um assunto que jamais imaginara ser passível de criminalização: o defloramento. Lendo os processos, o que mais intrigava não era tanto saber por que o Estado criminalizava o defloramento, quando ocorrido em circunstâncias consideradas ilícitas, mas o fato de o desvirginamento ter sido denunciado e transformado em processo. Ao fim de alguns meses, o projeto estava pronto e a especialização concluída. Sete anos se passaram até que, tendo ingressado no mestrado da Universidade Federal Fluminense, voltei ao Fórum para reencontrar os ofensores e ofendidas, reler suas histórias e servir-me delas para pensar as relações de gênero e os conflitos, em termos de valores, entre os profissionais do judiciário e os homens e mulheres dos setores populares de Campos. 15 Muita coisa havia sido modificada, menos a desorganização e as más condições de “armazenagem” dos processos. Com a reestruturação ocorrida no Fórum, todos os processos criminais foram reunidos no “arquivo”/depósito da Primeira Vara Criminal e aglutinados em maços numerados; porém, para localizarem um processo os funcionários do Fórum servem-se do nome do acusado e então encontram o maço onde ele esta guardado. Ou seja, não é possível fazer uma localização dos processos por temas ou datas e, mais uma vez, teria que contar com a sorte para ir localizando os processos relativos aos crimes de defloramento ou de sedução. Apesar de muito procurar, não localizei os que havia utilizado em 1989, mas, aos poucos, foram surgindo processos por sedução produzidos entre 1960 e 1974. Foi um achado que me animou. Primeiro porque estes processos estão em bom estado de conservação, se comparados aos mais antigos; em segundo, porque teria a oportunidade de analisar as posturas e discursos do judiciário e dos envolvidos (homens e mulheres) em conflitos decorrentes da violação de uma norma social: a sedução e conseqüente desvirginamento de uma moça fora do casamento, num período da história em que, no ocidente, tanto se falou em “liberação sexual” e “revolução sexual”. Não sei quantos processos existem no “arquivo” para o período, pois não há, segundo me informou o funcionário do Fórum, livro de registro para antes de 1978, e não seria viável abrir todos os maços. Tentei saber quantos processos foram abertos por sedução entre 1960 e 1974, recorrendo aos registros da delegacia de polícia. Infelizmente a tentativa foi frustrada, pois vários livros de ocorrência foram queimados. Por isso, interrompi o levantamento ao ter localizado 53 processos por crime de sedução, tendo deixado de lado alguns casos de estupro ou tentativa de estupro. *** As pesquisas que no Brasil têm estudado as relações de gênero e os conflitos culturais a partir dos processos-crimes por defloramento ou sedução, vêm contribuindo para a afirmação do que Leila Algranti denominou de a “recente história da mulher brasileira”. Segundo a historiadora, esta nova historiografia sobre a mulher, “procurou 16 romper com a imagem quase monolítica, imputada pela história, de que a mulher foi sempre o elemento subjugado, sem direitos civis ou participação política”1. Como bem assinalou Leila Algranti, inspirada pelas inovações temáticas e teóricas trazidas ao debate historiográfico pela nouvelle histoire e pela emergência da história das mentalidades, têm frutificado novas abordagens da história centradas nas pesquisas das “práticas cotidianas” e “representações sociais e culturais”, especialmente das camadas populares, dos “excluídos da história”. Um dos temas que tem ocupado lugar de destaque nessa recente historiografia brasileira é a ‘cultura feminina’, com o estudo do cotidiano das mulheres, da diferenciação nos papéis sexuais, dos referenciais simbólicos que opõem e articulam o masculino e o feminino2. Dessa forma, a atual historiografia sobre gênero se diferencia das perspectivas teóricas anteriores por conceber as mulheres como ativas, capazes de articular ações e usar o imaginário e os valores do judiciário em seu próprio benefício, destacando a questão da autonomia feminina e não vendo a mulher reduzida à condição de “vítima”. A capacidade feminina de ser autônoma, ativa e sagaz, manifesta-se, na historiografia, de diversas formas. Desde a resistência mais aberta com a recusa a aceitar as regras dos comportamentos normatizados defendidos pelas elites intelectuais - incluindo os juristas - simplesmente exercendo um outro modus vivendi, até o uso dissimulado dos valores dos grupos dominantes para tentar alcançar objetivos específicos. Seria o caso de muitas das ofendidas que recusavam o casamento ou demonstravam seu desagrado com a existência do processo. Seria, outrossim, o caso de outras que, ao contrário, buscaram servir-se da legislação e dos discursos moralizadores para forçar seus namorados à união matrimonial3. Depois da leitura dos processos, chegamos a uma conclusão geral a respeito da historiografia relativa à História das Mulheres. A de que um dos perigos dessa linha de 1 Cf. ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e Devotas: Mulheres na Colônia: condição feminina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750-1822. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Edunb, 1993, pp. 57 et. seq. 2 Id. Ibid., pp. 55-62. 3 Cf. DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Edunb, 1993, Segunda Parte, Capítulo 2. Ver também, CANCELA, Cristina Donza. Adoráveis e Dissimuladas: As relações amorosas das mulheres das camadas populares em Belém no final do século XIX e início do XX. Campinas: Dissertação de Mestrado/ UNICAMP, 1997, pp. 6-7. 17 pesquisa está na possibilidade do(a) historiador(a) deixar-se levar pela lógica formal na análise dos fatos narrados nos documentos, mantendo-se preso a um sistema de pensamento onde vigoram as exclusões. Segundo Leila Algranti, nesses casos, a mulher aparece como vítima ou rebelde onde uma qualidade exclui, necessária e permanentemente, a outra4. Uma manifestação matizada desta abordagem estaria na localização das qualidades de submissa ou rebelde, conforme seja a classe social da mulher. Assim, as mulheres ricas seriam mais controladas, “civilizadas” e, por isso, mais submissas; enquanto as mulheres pobres, por suas condições sociais de existência (necessidade de trabalhar, condições de moradia e etc.) e por influências e opções culturais (a exemplo de uma estrutura familiar mais flexível), seriam mais rebeldes (rebeldia que se expressaria tanto em atos explícitos de contestação, como em comportamentos ardilosos de subversão e/ou recusa implícita da ordem instituída). Assim, há o risco, salientado por Leila Algranti, da “recente história das mulheres” ao concentrar-se nas “mulheres ativas” obliterar a existência das mulheres que não foram rebeldes e viveram em conformidade com as políticas de normatização do seu tempo5. Uma crítica às abordagens dicotomizadas que contrapõem, em absoluto, submissão e rebeldia, estaria nas leituras que reconhecem a submissão e a rebeldia como presentes em todos os agrupamentos sociais, porém a submissão seria vivenciada por grande parte, provavelmente, pela maioria das mulheres. Esta revisão crítica encontrada nos trabalhos de Leila Mezan Algranti6 e Maria Clementina Pereira Cunha7, apesar da vantagem de reconhecer a generalidade da submissão e da rebeldia como elementos caracterizadores do ser mulher na história brasileira e admitirem a assimetria na vivência dos valores, reconhecendo a maior expressão quantitativa da submissão e/ou menor disposição para o confronto por parte da maioria das mulheres, também mostra-se presa à lógica formal, pois ainda raciocina em termos de contraposição; admitindo, no máximo, variações na extensão e na intensidade da submissão ou da rebeldia, que 4 ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit., pp. 55-62. Cf. LEITE, Miriam Moreira Leite. Apud. ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit., pp. 59-60. Ver ARAÚJO, Emanuel. “A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia”. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, p. 53. 6 Cf. ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit. passim. 7 Cf. CUNHA, Maria Clementina Pereira. Loucura, Gênero Feminino: Internação Psiquiátrica de Mulheres em São Paulo no Início do Século XX. Campinas: UNICAMP, mimeo, passim. 5 18 continuam como qualidades que se excluem mutuamente e não poderiam ser vivificadas, simultaneamente, por uma mesma pessoa, por um mesmo grupo social ou comunidade. Penso ser possível e necessária a superação das análises dicotômicas pelo reconhecimento de que os indivíduos, independentemente das suas configurações sócioeconômicas e culturais são, tais quais as sociedades, perpassados por conflitos e contradições, muitas das vezes antagônicas. Da mesma forma que não temos uma sociedade brasileira que seja racista e outra que não o seja, mas uma sociedade que afirma e nega simultaneamente o racismo; assim como não temos uma sociedade brasileira que seja misógina e androcêntrica e outra que não o seja, mas uma formação social que tem simultaneamente reafirmado e negado a misoginia e o androcentrismo; também os indivíduos não são “puros”, eles são, como percebeu Karl Marx, “a síntese de múltiplas determinações”. Cada indivíduo porta em si a sua sociedade e o seu tempo, além dos fantasmas do seu mundo. Não sendo, porém, redutível à condição de receptáculo da cultura. É agente social vivo! Cultivado, é verdade, mas agente e não receptáculo. Não é somatório, é a articulação complexa, contraditória, mutável, e assimétrica de tudo quanto há e de quanto houve, é uma totalidade. Os indivíduos não guardam coerência absoluta, não são retilíneos. Por serem totalidades são contraditórios. Negam e afirmam, submetem-se e insurgemse, são explícitos e dissimulados, corajosos e tementes; são socialmente constituídos. Reconhecer que os indivíduos são constituídos e se constituem a partir das suas relações sociais e das múltiplas determinações que sobre eles agem, ou seja, historicamente, não implica vê-los iguais, idênticos. São distintos. Diferenciações de classe, gênero, raça/etnia, condição econômica, instrução, cultura, institucionalidade, características corpóreas etc., se combinam influenciando as diferenciações e semelhanças entre os indivíduos. Demarcam as formas como cada referencial marcará, o pensamento, os sentimentos e as ações dos indivíduos. As diferenciações existentes nas sociedades humanas, antagônicas ou não, não são epifenômenos umas das outras, possuem autonomia, porém, estão sempre sendo produzidas e reproduzidas, afirmadas e contestadas conforme o contexto e as necessidades. No caso específico das mulheres e sua história, não temos porque vê-las como submissas ou rebeldes se, provavelmente, elas eram submissas e rebeldes simultaneamente. As razões pelas quais e as formas 19 como vivenciaram, desigualmente, adesões e recusas, aceitações e releituras (explícitas ou dissimuladas) dos valores socialmente difundidos foram, certamente, mediadas por outras tantas diferenciações, que marcaram o seu contexto histórico, além das diferenciações de gênero. Assim, é possível que uma mulher seja, ao mesmo tempo, insubmissa quanto à superioridade masculina e à autoridade do pai ou marido, mas legitime a exploração étnico/racial (da qual muitas mulheres brancas que aparecem como “vítimas” da opressão masculina foram promotoras e beneficiárias). Ela pode não compactuar com o poder supremo do marido, mas impor-se aos filhos e filhas, reconhecendo o direito de autoridade plena dos pais sobre a prole. Mais do que atentar “a multiplicidade dos comportamentos femininos”, como pede Leila Algranti8, é mister antenar para o caráter intrinsecamente contraditório dos comportamentos femininos e masculinos. Ser contraditório não é defeito, é uma condição. Iludidos foram os normatizadores, civilizadores e reformadores sociais (médicos, juristas, jornalistas, higienistas, moralistas, pregadores e tantos outros) que sonharam com a imposição de comportamentos retilíneos. *** O leitor não encontrará nesta dissertação um capítulo dedicado a reflexões teóricas e metodológicas. Procurei fazer da teoria e da metodologia ferramentas que me auxiliassem na lida com a documentação e, por isso, acredito que elas estejam incutidas no texto, no resultado do trabalho empírico, na práxis da pesquisa. Entretanto, para que o(a) leitor(a) possa comprovar se a práxis foi efetuada a contento, é que vou, de forma breve, expor as linhas gerais das premissas teóricas e metodológicas que me serviram de farol no trabalho empírico. Sendo uma pesquisa na área da História Cultural e um dos seus objetivos estudar os usos que os setores populares, especialmente as querelantes, fizeram ou buscaram fazer dos processos por crime de sedução de que tomaram parte, empreguei como referencial teórico as reflexões de historiadores ligados tanto a História Cultural 8 ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit., p. 61. 20 como à chamada “história vista de baixo” e/ou microhistória; dentre eles Edward P. Thompson9, Jim Sharpe10, Giovanni Levi11 e Martha Abreu12. Thompson, um dos precursores da história vista de baixo, traz à historiografia em geral e à historiografia marxista em particular, uma importante reflexão sobre as possibilidades de uso da lei pelos dominados, questão relevante para uma pesquisa como esta que tem em processoscrimes a sua fonte primária. Para Thompson, a lei contém um nível de flexibilidade que permite o seu uso pelos dominados, em suas disputas com os poderosos, ou seja, os “populares” podem servir-se dela para reclamar o que consideram como direito seu13. Os “populares”, diz-nos Thompson, possuem um sentido de direito o qual é capaz de levá-los a querelas judiciais (ou a outras modalidades de reivindicações ou protestos), quando sentem tais direitos violados. Neste caso, entenderiam como legítimas suas reivindicações ou protestos, face à violação de um direito ou norma social14. Os dominados, diz Thompson, adotam partes dos modelos (morais e jurídicos) dos dominadores, incorporando-as ao seu patrimônio cultural, integrando-as ao rol de direitos pelos quais estarão dispostos a lutar legal ou extralegalmente. No entanto, esta incorporação não deve ser compreendida como adição ou pura absorção, pois que é mediada pelas experiências dos próprios “populares”, os quais se utilizam dos modelos gerados e difundidos pelos dominadores a partir de uma lógica própria15. Reconhecendo, por um lado, a dimensão institucional da lei (que se expressa nos tribunais, nos juízes e advogados; enfim, no conjunto de instituições e práticas 9 THOMPSON, Edward. P. Senhores e Caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.___________. Tradición, Revuelta y Consciencia de Clase: estudios sobre la crisis de la sociedad preindustrial. Barcelona: Editorial Crítica, s.d. 10 SHARPE, Jim. “A história vista de baixo”. In: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1992. 11 LEVI, Giovanni. “Sobre a micro-história”. In: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1992. 12 ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas Perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. 13 THOMPSON, Edward. P. Op. cit., p. 315. 14 Id. Ibid., p.331. Sobre o conceito de legitimação ver ____________. Tradición, Revuelta y Consciencia de Clase: estudios sobre la crisis de la sociedad preindustrial. Barcelona: Editorial Crítica, s.d., p. 65. 15 Id. Ibid. 21 próprias do poder judiciário) e por outro, sua condição de ideologia16, Thompson agrega ao conceito de lei a idéia de que ela possa ser reconhecida “simplesmente em termos da sua lógica, regras e procedimentos próprios - isto é, simplesmente enquanto lei”17. Sendo, por um lado, um instrumento (institucional e ideológico) de imposição do poder de uma classe18, a lei é também um lugar de conflitos e mediação dos conflitos Assim, a lei (concordamos) pode ser vista instrumentalmente como mediação e reforço das relações de classe existentes e, ideologicamente, como sua legitimadora (...) se dizemos que as relações de classe existentes eram mediadas pela lei, não é o mesmo que dizer que a lei não passava da tradução dessas mesmas relações, em termos que mascaravam ou mistificavam a realidade. Muitíssimas vezes isso pode ser verdade, mas não toda a verdade19. Mas para que possa cumprir eficazmente sua função de ideologia é condição sine qua non que a lei mostre “uma independência frente a manipulações flagrantes e pareça justa”. O que implica reconhecer não somente direitos para os dominados, mas que eles possam ter a expectativa de poder recorrer ao judiciário como forma de obter proteção ou reparação, ou seja, como meio de alcançar o que possam considerar como justiça20. Thompson, portanto, coloca-nos o desafio teórico de pensarmos as possibilidades dos dominados, dos “de baixo”, utilizarem-se - na defesa de valores e normas que concebam como direitos seus - dos instrumentos legais produzidos e controlados pelos dominadores. Assim, o que fora produzido como mecanismo de dominação pode ser empregado como instrumento de resistência e luta. Mas, para ver isso, é preciso que o olhar do pesquisador esteja voltado para as contradições e conflitos, entendendo que as relações sociais, inclusive as relações judiciais, caracterizam-se por serem contraditórias e conflituosas. 16 “A lei também pode ser vista como ideologia ou regras e sanções específicas que mantêm uma relação ativa e definida (muitas vezes em termos de conflito) com as norma sociais (...)”. Id. Ibid., p. 351. 17 Id. Ibid. 18 id. Ibid., p. 325. 19 Id. Ibid., p. 353. 20 Id. Ibid., p. 354. 22 Por sua vez, Jim Sharpe aponta como uma das mais expressivas contribuições dos novos historiadores vinculados à história vista de baixo, o fato de que eles passaram a valorizar e a empregar, em suas pesquisas, documentos e escritos produzidos por personagens ou testemunhas dos acontecimentos históricos que ocuparam um papel subordinado, que não se constituíram nos “grandes homens”, mas deixaram, muitas vezes, registros sobre os acontecimentos. Assim, afirma Sharpe, nos últimos vinte anos as pesquisas históricas fundamentadas nos relatos e fontes produzidos por personagens e testemunhas que atuaram ou presenciaram os acontecimentos de uma posição subordinada, isto é, como comandados, dominados ou simplesmente pessoas comuns, passaram a ser conceituadas como “a história vista de baixo”.21 Para Sharpe, a utilidade das fontes empregadas pelos historiadores praticantes da “história vista de baixo”, a exemplo das fontes cartorarias e inquisitoriais, está no fato dos seus compiladores não terem tido a consciência de estar realizando registros para posteriores estudos históricos. Tais fontes podem permitir uma aproximação com as experiências “das pessoas das classes inferiores”22. E tanto se pode, sem comprometimento metodológico, recorrer a uma única “fonte excepcionalmente rica”, como ao “exame minucioso de um vasto corpo de documentação” 23. Mas, para adquirir uma maior eficácia explicativa é preciso que a história vista de baixo esteja situada dentro de um contexto24. Esta suposição, por sua vez, presume que a história das ‘pessoas comuns’, (...) não pode ser dissociada das considerações mais amplas da estrutura social e do poder social. Esta conclusão, por sua vez, leva ao problema de como a história vista de baixo deve ser ajustada a concepções mais amplas da história. Ignorar este ponto, ao se tratar da história vista de baixo ou de qualquer tipo de história social, é arriscar a emergência de uma intensa fragmentação da escrita da história25. 21 SHARPE, Jim. Op. cit., pp. 40 e 41. Id. Ibid., pp. 48 e 49. 23 Id. Ibid., pp. 50 e 51. 24 Id. Ibid., pp. 53 a 55. 25 Id. Ibid. 22 23 Quais seriam, pois, as contribuições trazidas pela “história vista de baixo”? Ela favoreceu o recurso à imaginação - aliada à erudição - no uso e análise das fontes, em especial de fontes que antes não eram empregadas ou privilegiadas. Contribuiu para recuperar e dar luz à historia de grupos até então marginalizados das pesquisas históricas ou que não tinham a dimensão da sua participação nos processos históricos valorizada. Tem contribuído para a consciência de que “a nossa identidade não foi estruturada apenas pelos monarcas, primeirosministros e generais”. E, em especial, tem demonstrado que “os membros das classes inferiores foram agentes, cujas ações afetaram o mundo (às vezes limitado) em que eles viviam”. Recorri também à pesquisa de Martha Abreu26 como principal referência, tanto teórica como metodológica, de como pensar e trabalhar - a partir das reflexões postas pela nova História Cultural e pela microhistória - os processos por crimes de sedução por mim reunidos. Martha Abreu, apesar de reconhecer “que os valores de honra, definidos e difundidos pela Justiça influenciavam os valores das mulheres e homens pobres”27, vai enfatizar a idéia de uma diversidade na significação daqueles valores por parte das mulheres e homens das camadas “populares”. Ou seja, para os “populares”, no Rio de Janeiro do início do século XX, valores como virgindade (física e moral), casamento e honestidade teriam significados diferentes ou diversos dos emprestados àqueles termos pelos juristas28. Porém, para terem chances de obter decisão favorável às suas querelas, as ofendidas precisavam expressar diante da polícia e do judiciário a valorização da virgindade e do casamento formal, nos moldes do discurso normatizador, o que nem sempre conseguiam realizar com uma coerência constante, permitindo captar em seus depoimentos, assim como nos de outros participantes dos processos, as diversidades29. No entanto, a apreensão da diversidade - premissa teórica fundamental nas pesquisas de História Cultural, por influência da antropologia30 - nos depoimentos das ofendidas, somente pode ser alcançada pela “síntese intelectual de alguém que esteja preocupado com valores 26 ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit. Id. Ibid., p. 118. 28 Id. Ibid. 29 Id. Ibid. 30 CARDOSO, Ciro Flamarion. “História e Paradigmas Rivais”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. _________. “No Limiar do Século XXI”. (Artigo a ser publicado pela Revista Falas do DSSC/UFF). __________. “O Significado Político das Posições Intelectuais Pós-estruturalistas e Pós-modernas” In: Jornal Inverta. Rio de Janeiro: fevereiro de 1992. CARRION, Raul. “A Escola dos Annales e a Nova História”. In: Princípios nº 42. São Paulo: Anita Garibaldi, 1996. CASTRO, Hebe. “História Social”. In: CARDOSO, Ciro. F.S. e VAINFAS, Ronaldo. (orgs.). Op. cit. 27 24 diversos dos padrões (...)”31 o que implica um método de pesquisa que valorize “uma pequena frase contraditória aqui, outra acolá (...)”32. [grifo meu] A idéia ou premissa de que os “populares” recebem “influências externas” mas o fazem de uma forma “não passiva”, não como receptáculos, mas como agentes históricos capazes de operar uma leitura33 própria dos valores e leis produzidas e difundidas pela classe dominante é pensada a partir de dois conceitos-chave, permanentemente ligados, no trabalho de Martha Abreu: o conceito de circularidade cultural, formulado pelo marxista russo Mikhail Bakhtin e acessado através de Carlo Ginzburg e o de “cultura popular” 34. Ginzburg define a noção de circularidade cultural como sendo a influência recíproca entre a cultura das classes subalternas e a cultura dominante. No entanto, o acesso aos elementos dessa mútua influência, os seus modos e tempos, em particular aos elementos da cultura popular, é feito, via de regra, de forma indireta o que exige um tratamento criterioso das fontes. A questão essencial é saber até que ponto os possíveis elementos da cultura dominante presentes na cultura popular, são resultantes de uma aculturação relativamente deliberada ou de uma confluência mais ou menos espontânea, não sendo, pelo contrário, o resultado de uma inconsciente deformação da documentação35. A ênfase na busca das diferenças, das diversidades - que se constitui em uma das premissas teóricas de Martha Abreu - é reforçada pela leitura de Robert Darnton para quem, ao buscarmos conhecer a história dos homens e mulheres das 31 ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 119. Id. Ibid. 33 “(...) a leitura é feita em busca do significado - o significado inscrito pelos contemporâneos no que quer que sobreviva de sua visão de mundo (...)” DARNTON, Robert. O Grande Massacre de Gatos e Outros Episódios da História Cultural Francesa. Rio de Janeiro: Graal, 2ª ed., 1986, p. XVI. 34 ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 120. 35 GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, pp. 24 a 26. 32 25 camadas populares, “precisamos começar com a idéia de captar a diferença” 36, para que então possamos reconstruir ‘a fisionomia muitas vezes obscurecida, de sua cultura e contexto social na qual ela se moldou’37. A utilização dos processos por crimes de defloramento ou sedução permite acessar, nas entrelinhas, nas contradições dos depoimentos e pronunciamentos38, nos seus indícios, idéias, pensamentos, aspirações, comportamentos, relações de amor, relações de vizinhança, relações de trabalho, sofrimentos, alegrias etc., de membros das camadas populares, tornando possível conhecer e construir, mesmo que fragmentariamente, o que se costuma denominar de ‘cultura popular’.39 [o itálico é meu] O conceito de cultura, e ainda mais o de “cultura popular”, é deveras polissêmico existindo várias tentativas de definição40. Minha opção foi trabalhar com uma definição de cultura popular já experimentada por Martha Abreu e que deu bons resultados como perspectiva teórica. 36 DARNTON, Robert. Op. cit., p. XV. ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 120. 38 Depoimentos são as falas do queixoso(a), da ofendida, do acusado e das testemunhas; já os pronunciamentos são as falas do delegado, do promotor, dos advogados, do defensor público, do júri (quando é o caso) e, finalmente, a fala do juiz. 39 ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 120. 40 Uma visão panorâmica das disputas teóricas em torno dos conceitos de cultura, popular e cultura popular, bem como dos seus usos pelos historiadores, é encontrada em CHALHOUB, Sidney; SLENES, Robert W. et alli. Projeto Integrado de Pesquisa - Cultura Popular: um Problema Histórico e seus Desafios. Campinas: UNICAMP, 1995. Ver também VAINFAS, Ronaldo. “História das Mentalidades e História Cultural”. In: CARDOSO, Ciro F.S. e _____________. (orgs.). Op. cit. 37 26 Entendo cultura (...) como um ‘corpo de crenças e valores’, formando uma espécie de guia de comportamento para um determinado grupo ou classe social. Constantemente esse corpo é recriado em função do processo de mudança, interação social e adaptação a novas e variadas situações sociais. A recriação baseia-se no passado, na cultura herdada e nas novas opções e limites impostos. Enquanto agentes da sua própria história, os populares (...) criavam uma cultura diferente dos padrões vigentes, resultado das suas próprias escolhas frente ao que era importante ou possível conseguir. Sem deixar de receber influências e limites, até pela força, dos valores e normas burgueses, os trabalhadores construíram uma cultura relativamente autônoma (...), decorrente de uma prática cotidiana de vida. Toda a política de controle e repressão, atualizada pela República (...) comprova a ameaça que representava essa autonomia41. [os grifos são meus] A opção pela História Cultural, sob a influência de Ginzburg, Darnton e Thompson, levará a que Martha Abreu não só formule os problemas relativos aos crimes sexuais denunciados no Rio de Janeiro, no início do século XX (1900-1913), em novos termos, como também a que chegue a conclusões diversas das encontradas, por exemplo, por Boris Fausto que trabalhou com processos por crimes de defloramento e estupro em São Paulo (1880-1924). Se para Boris Fausto, as normas de virgindade e casamento oficial estavam introjetadas por todas as camadas sociais e as dificuldades da classe trabalhadora em viver plenamente segundo aquelas normas, deviam-se às suas condições materiais de existência, expressas nas privações e na irregularidade de trabalho. Para Martha Abreu, as condições materiais de existência não seriam suficientes para explicar a diversidade de comportamentos, as quais seriam também “resultantes de concepções e valores diversos dos dominantes, são fruto de determinadas opções culturais”42. Se Boris Fausto aproxima-se de noções como alienação e reificação, Martha Abreu pensa em termos de diversidade, autonomia e circularidade cultural43. Uma das questões mais complexas das pesquisas históricas, especialmente das que investigam os valores e práticas dos setores populares, através de documentos oficiais como os processos-crimes, consiste na possibilidade de se produzir “provas” para as hipóteses e conclusões. 41 ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., pp. 120 e 121. Id. Ibid., p. 123. 43 CHALHOUB, Sidney; SLENES, Robert W. et alli. Op. cit. 42 27 A leitura dos processos forneceu certos indícios e impressões a respeito de valores e atitudes dos homens e mulheres inseridos nos processos para os quais não pude obter “provas” absolutas ou indiscutíveis (se é que tais provas existem para alguma área do conhecimento científico). Mesmo sem “provas” irrefutáveis, resolvi expor as impressões, e mesmo convicções, que os processos me possibilitaram e o fiz tendo em conta não só o meu trabalho empírico com a documentação, mas também as reflexões metodológicas de Carlo Ginzburg e seu conceito mais flexível de “prova”44. Para Ginzburg, se o historiador não pode realizar experiências no sentido restrito do termo, pode efetuar investigações elaborando critérios próprios de cientificidade, fundados “sobre a noção de prova”. Esta é dada pelo nível de “possibilidade histórica” contida numa “interpretação historiográfica”, à medida em que ela seja capaz de expressar com maior grau de plausibilidade uma realidade histórica ou “realidade externa”45. Provar, portanto, significa demonstrar algo, o que está para além da exclusividade narrativa e interpretativa. Assim, se o processo histórico não pode ser reconstituído de maneira integral e o historiador não pode recorrer às experiências de laboratório, sua alternativa é a reconstrução intelectual dos acontecimentos pela análise criteriosa dos seus “vestígios”, que, dependendo das fontes, podem ter um maior ou menor potencial revelador. Desse modo, “provar” é estabelecer níveis de plausibilidade. E foi isso que procurei fazer com as hipóteses que levanto e com as conclusões a que cheguei no decorrer da pesquisa. A análise dos documentos cujas informações, muitas vezes sutis e implícitas, foram articuladas com o contexto histórico de Campos nos anos 60 e 70. Procurei demonstrar a plausibilidade, a “possibilidade histórica” das conclusões, e é isto o que considero possível de ser feito em pesquisas dessa natureza. (...) O problema da prova continua mais do que nunca no centro da investigação histórica: mas o seu estatuto é inevitavelmente alterado no momento em que são abordados temas diversos relativamente ao passado, como o apoio de uma documentação também diversa (...)46. 44 Cf. GINZBURG, Carlo. A Micro-História e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil e Difel, 1989. Id. Ibid., p. 210. 46 Id. Ibid., p. 201. 45 28 Cabe salientar, como faz Ginzburg, que algumas questões não puderam ser respondidas se não de forma indireta e sugestiva, porque elas não foram formuladas nos processos, quer pelas autoridades quer pelos envolvidos, pois os objetivos dos que participaram dos interrogatórios e autos de qualificação não foram os mesmos do pesquisador. Por exemplo, nenhum juiz, promotor ou defensor, perguntou às ofendidas se elas consideravam o casamento um valor moral ou se o objetivo delas com o processo era conseguir casar com aqueles a quem acusavam. As opiniões que formulo a respeito dessas questões foram construídas a partir dos indícios, dos vestígios, constantes dos depoimentos e da análise das circunstâncias históricas em que se deram os processos. As particularidades de uma pesquisa histórica com o uso de fontes judiciais, levou-me a adotar o comportamento cauteloso proposto por Montaigne, recorrendo a termos mais flexíveis como ‘talvez’, ‘de certo modo’, “pensamos que” e “provavelmente”47. Procurei então distinguir, no estilo da redação, o que pude considerar provado pelos documentos, do que tenho - a partir da documentação e do contexto histórico em que viviam os personagens, na Campos dos anos 60 e 70 -, como verossímil48. Assim, conjecturando ou narrando, procurei manter sempre em mente o real49. *** Ao iniciar a pesquisa inquietou-me - nestes processos produzidos nas décadas de 60 e 70 do século XX -, a presença marcante e decisiva de valores morais e regras de julgamento próximos aos verificados em outras pesquisas sobre o tema, mas que abrangeram áreas e períodos por demais diferentes de Campos dos Goytacazes dos anos 60 e 70 deste século. 47 M. de Montaigne. Apud. GINZBURG, Carlo. Op. cit. p. 180. Cf. GINZBURG, Carlo. Op. cit. p. 180. 49 Id. Ibid. 48 29 Pude perceber uma divisão sexual das funções familiares onde coube às mães, na maior parte dos processos, a tarefa de apresentar a queixa na delegacia. Nos depoimentos das ofendidas, encontrei as afirmações de que seus namorados tiveram dificuldades para realizarem a penetração e que, quando efetuada a cópula, elas sangraram e sentiram dor. Pelo que disseram as ofendidas, a aludida dificuldade na penetração, a ocorrência da dor e do sangramento, resultariam da sua condição de virgens. Inversamente, encontramos os acusados negando qualquer envolvimento sexual com as ofendidas ou afirmando que elas não eram virgens por ocasião da relação sexual. Os acusados que admitiram o envolvimento sexual com a ofendida, via de regra, afirmavam a não virgindade das suas acusadoras por não terem, no momento do coito, constatado sangramento, percebido manifestação de que a ofendida estivesse sentindo dor ou por ter a penetração se dado “sem embaraços”. As proximidades são também encontradas nos pronunciamentos dos profissionais do judiciário que reclamavam para todos uma prática comportamental modelar com regras rígidas quanto às formas e ao sentido de se namorar. Os profissionais do judiciário repetiam velhos chavões contra a “modernização dos costumes” e a “liberalização feminina” que estariam estimulando os crimes contra os costumes. Dessa forma, continuidades relativas e diferenças se fazem presentes nos processos de Campos dos anos 60 e 70 em relação às pesquisas feitas para outras épocas e lugares. Ao focalizar os processos-crimes por sedução produzidos em Campos nos anos 60 e 70, encontrei homens e mulheres pobres, adultos e jovens, “pretos”, “brancos” e “pardos”, com diferentes atividades, vivendo em conflito e/ou conformidade com as políticas e leis através das quais as elites têm buscado produzir, introjetar e fazer cumprir a normatização dos comportamentos e a disciplinarização da sexualidade50. O que me levou a indagar se os comportamentos e depoimentos desses homens e mulheres expressariam uma cultura popular distinta dos valores esposados e difundidos pelos juristas? Tratando especificamente dos valores morais e suas representações, pude perceber que não havia somente semelhanças com o que fora estudado em outras 50 Mesmo sabendo que tais políticas e leis não foram formuladas exclusivamente e nem inicialmente para as camadas populares, é para as suas relações com este grupo social que voltamos nossa atenção, até pelo tipo de documentação com a qual estamos trabalhando na qual não localizamos a presença de “moças ricas”. 30 pesquisas, diferenças também ficaram visíveis, particularmente no tocante às ofendias. Estas, se guardavam semelhanças comportamentais com as mulheres estudadas por Martha Abreu, Sueann Caulfield, Cristina Donza Cancela, Karla Adriana Martins Bessa, Magali Gouveia Engel, Maria Clementina Pereira Cunha, Mary Del Priore, Leila Mezan Algranti, Carla Bassanezi, Luzia Margareth Rago, Rachel Soihet e outras, também possuíam várias e importantes diferenças que serão esclarecidas na dissertação. O reconhecimento de que continuidades e singularidades emergiam da documentação indicou ser preciso - para um melhor entendimento dos dilemas e conflitos em torno da moralidade e das práticas sexuais nos anos 60 e 70 - dar um breve e pontual passeio pela historiografia brasileira especializada e dedicada à História Social dos Gêneros. Não por toda ela - o que, de resto, ser-nos-ia impossível - mas por algumas pesquisas diretamente úteis ao entendimento das origens, significações e transformações dos valores morais e das representações de honestidade e honra, do masculino e do feminino. Assim, o Capítulo I, Honra, Virgindade e Controle Moral na História e na Historiografia se propõe, através da historiografia, a fazer uma breve exposição de como a mulher foi sendo representada, no tocante aos critérios definidores da sua honra, em determinados momentos e lugares. Verificar os valores, imagens e papéis, através dos quais, segundo a historiografia analisada, os setores dirigentes têm buscado construir o feminino e o masculino e a relação entre os sexos, com a atribuição de papéis sociais distintos conforme o gênero. Conhecer como as mulheres, especialmente as mulheres pobres, lidaram com os estereótipos do ser mulher e com os paradigmas comportamentais difundidos pelas elites (leigas e eclesiásticas) em variados momentos da nossa história; acompanhar, na longa duração, as construções, reconstruções e os conflitos em torno das políticas de normatização procurando compreender o que há de continuidade e de novo51 nos processos que pesquisei; perceber quais foram os agentes sociais formuladores, difusores e fiscalizadores das políticas sexuais ao longo desse 51 E continuidade não significa a repetição literal do passado, não é o “mesmo” passado, ou a inalterabilidade dos fatos, fatores ou acontecimentos. A continuidade é também parte constituinte da história, muitas vezes é o que dá inteligibilidade às relações entre o hoje e o ontem e consubstancia a própria noção de processo histórico que não é o ajuntamento narrativo de fatos e acontecimentos. A continuidade é formada pelas nossas heranças e lembranças, por todos os fantasmas que o presente carrega. O novo também tem suas raízes no passado, traz a herança dos seus mortos, resulta dos conflitos entre o que existe, o que não faz mais sentido e o que deseja nascer. 31 passeio histórico, foram as questões que me levaram a fazer o breve balanço historiográfico em que se constitui o Capítulo I,. O Capítulo II, Apresentação – A Cidade, sua População e os Populares, é dedicado a dois assuntos. Por um lado, objetiva possibilitar ao leitor um conhecimento, ainda que sucinto, do município de Campos dos Goytacazes nos anos sessenta e setenta do século XX. Para tanto fizemos uma descrição geral das condições sociais e econômicas dos habitantes de Campos, especialmente das mulheres. Seu objetivo é ajudar a pensar as possibilidades e limites para as ações femininas. Por outro, procurei demonstrar que os homens e mulheres que protagonizam os processos-crimes pesquisei compunham, por suas condições sociais, uma parte da população pobre de Campos e que, em vários aspectos, notadamente na questão das rendas e das relações matrimoniais, os dados relativos aos envolvidos nos processos se assemelham aos levantados para a população campista de forma geral. Com isso, objetivamos possibilitar ao leitor conhecer as características econômicas, familiares, étnicas e educacionais dos personagens das histórias que estão registradas nos processos. No Capítulo III, O Namoro, abordo as formas como se deram as práticas amorosas, o namoro, entre as ofendidas e os acusados. Como se dava o início do namoro e os lugares dos encontros; o posicionamento dos pais diante das relações amorosas e do desvirginamento das suas filhas; a divisão sexual das funções entre os casais das camadas populares; as posturas das testemunhas e dos profissionais do judiciário; as representações em torno das ofendidas no tocante a seu posicionamento “ativo” ou “passivo” na relação amorosa e as noções de honestidade e moral. No Capítulo IV, As Práticas Sexuais, os assuntos tratados são: as justificativas para a sedução e para o desvirginamento e as posturas adotadas por acusados e ofendidas diante da denúncia. Também examino o que denominei de “A Hierarquia das “Cores” nas Relações Sexuais”, analisando a questão das preferências sexuais a partir do recorte étnico. O Capítulo V, Amigado Com Fé, Casado É, trata dos motivos que levaram à formulação das queixas, da moral popular e dos significados de uma união matrimonial. Nele procurei mostrar as coincidências e conflitos entre os valores e atitudes dos homens e mulheres das camadas populares e os profissionais do judiciário. 32 O(a) leitor(a) poderá sentir falta de um capítulo especialmente dedicado ao judiciário. Realmente ele não existe porque minha opção foi por diluir as questões referentes ao judiciário no decorrer da dissertação, retomando-as sempre que necessárias às argumentações. CAPÍTULO I HONRA, VIRGINDADE E CONTROLE MORAL NA HISTÓRIA E NA HISTORIOGRAFIA 34 1. AS REPRESENTAÇÕES DO FEMININO NA HISTORIOGRAFIA DA COLÔNIA Lava roupa todo dia, que agonia na quebrada da soleira, que chovia até sonhar de madrugada uma moça sem mancada uma mulher não deve vacilar... Luís Melodia Em estudo publicado em 1988, Mary Del Priore demonstra que as formas de relacionamentos amorosos praticadas largamente pelas “camadas populares” da Colônia: concubinato, mancebia, amasiamento, adultério, prostituição e etc., eram vistas, pelas autoridades leigas e eclesiásticas, como ameaçadoras. Daí os desejos e tentativas de fazer da família cristã (católica) a base da organização da população. As autoridades coloniais partiam da premissa de que o enquadramento das pessoas na ordem familiar as tornariam mais propensas a adaptarem-se à ordem institucional, política e econômica52. Para consolidar a imagem do casamento como a forma correta de constituir-se a família e estabelecer socialmente as relações amorosas, foi construído por setores católicos o modelo da mulher ideal para o casamento como sendo a mulher dócil, casta, recatada, “honesta”, meiga e submissa53, voltada à maternidade e à família54. Objetivando realçar as vantagens dessa mulher idealizada, as autoridades leigas e eclesiásticas, acentuaram o seu contrário: a prostituta e a concubina. Ambas eram mulheres degradadas por vivificarem relações amorosas e sexuais fora do casamento oficial e sem ter por finalidade a maternidade55. 52 Cf. DEL PRIORE, Mary. A Mulher na História do Brasil. São Paulo: Contexto, 1988. _______. Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Edunb, 1993, p. 133. Ver também, ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e Devotas: Mulheres na Colônia: condição feminina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750-1822. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Edunb, 1993, p. 53. 53 Ver ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit., pp. 114-121. 54 Cf. DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Edunb, 1993, pp. 27-32. 55 Sobre o sentido etimológico da palavra matrimônio e sua vinculação com a função procriadora da mulher e da sexualidade, ver ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit., p. 115. Sobre as funções do casamento e a normatização dos comportamentos conjugais pela igreja, ver ARAÚJO, Emanuel. “A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia”. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, pp. 51-53. 35 Assim, ter-se-ia iniciado na Colônia (...) o longo processo de domesticação da mulher no sentido de torná-la responsável pela casa, a família, o casamento e a procriação, na figura da ‘santa-mãezinha’56. [grifo nosso] E a “domesticação” das mulheres, assim como das famílias, passava pela disciplinarização dos corpos e dos desejos femininos. (...) A sensualidade, abandonada às impulsões desregradas, rebaixava a alma dos homens ao nível dos animais, e por isto era fundamental evitar que a mulher, criada por Deus para cooperar no ato de criação, acabasse por tornar-se para o homem uma oportunidade de queda e perversão. Ela deveria apagar todas as marcas da carnalidade e animalidade do ato pela imediata concepção. Daí serem malditas as infecundas, as incapazes de revestir com a pureza da gravidez a dimensão do coito. Daí também a importância do casamento em dar uma ordem e uma regra para a natureza, a priori corrompida57. [o negrito é nosso] Na execução deste “projeto normatizador” das autoridades coloniais, a que se referem tanto Mary Del Priori quanto Leila Algranti, teve especial importância a padronização discursiva dos comportamentos, através da reutilização e propagação de valores androcêntricos - presentes no imaginário popular lusitano - e que foram adaptados pela igreja e difundidos pela ação dos moralistas, pregadores e confessores. As mulheres apareciam no discurso religioso do clero renascentista e colonial como sendo um dos caminhos capazes de levar o homem à perdição58. Agentes de satã, elas seriam concupiscentes, melífluas, fétidas, infectas, gastadoras, desbocadas 56 DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Edunb, 1993, p. 26. 57 Id. Ibid., pp. 30-31. Itálico no original. 58 Leila Algranti, como Mary Del Priori, localiza na Idade Moderna a mudança discursiva onde a imagem tradicionalmente conflituosa sobre a mulher, que oscilava entre a atração e a repulsa, a admiração e a hostilidade, “assumiu uma intensa malevolência”; no entanto, a emergência deste discurso renascentista, traduzido em várias obras que estigmatizaram as mulheres, foi simultâneo ao aparecimento de outro discurso, entre os séculos XVI e XVIII, valorizando a “intimidade individual”, “alterando o sentido da família” que passa a ser ‘o que nunca havia sido antes: lugar de refúgio onde se escapa aos olhares de fora, lugar da afetividade onde se estabelecem relações de sentimento entre o casal e os filhos, lugar de atenção à infância’. ALGRANTI, Leila. Op. cit., p. 118. 36 e sexualmente insaciáveis; estando sempre prontas a corromperem o corpo e a alma dos homens59. Segundo Mary Del Priori, conjuntamente ao discurso eclesiástico, manifestou-se, nos séculos XVI, XVII e XVIII, na Europa e, por extensão, em Portugal e no Brasil, um discurso médico sobre o funcionamento do corpo feminino cujo escopo era dar “caução ao religioso na medida em que asseverava, cientificamente, que a função natural da mulher era a procriação”. Os médicos renascentistas esmeravam-se em coadjuvar os esforços eclesiásticos na confirmação da inferioridade feminina e da necessidade de disciplinar as mulheres para o casamento e o exercício da função reprodutora, para a qual teriam sido criadas. A inferioridade feminina estaria inscrita no corpo da mulher, na sua natureza, no seu temperamento. Ela é melancólica, débil, frágil física e emocionalmente, imbecil e malsã60. Essa conflitante natureza feminina: satânica, matreira, lasciva, mas também, melancólica, frágil, imbecil e enfermiça ditava a necessidade de sobre elas exercer-se um severo controle induzindo-as a copiarem “as santas-virgens” - o que implicava na valorização da virgindade pré-nupcial - e legitimava a sua contenção no território que será para elas difundido como ideal, onde poderiam viver sua determinação divino/natural de serem mães: o lar, a casa, o privado, a família. Tais premissas e perspectivas foram transpostas da Europa para a Colônia, onde a normatização dos comportamentos seria ainda mais necessária61. (...) Os esforços convergentes tanto da Igreja quanto do Estado moderno para a normatização do corpo social passava pela valorização do casal legalmente constituído e da repressão de toda atividade extraconjugal62. Compreendendo as construções e reconstruções das representações sobre o feminino e as relações de gênero como possuidoras de uma longa duração histórica, 59 DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Edunb, 1993. Ver, especialmente o capítulo 2 da primeira parte e o capítulo 4 da terceira parte. 60 Id. Ibid., pp. 34-37. Sobre o saber médico e sua caracterização da mulher, ver a Quarta Parte – O Olhar da Medicina. Cf. DEL PRIORE, Mary. “Magia e medicina na Colônia: o corpo feminino”. In: ______. (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. 61 Id. Ibid., pp. 36-37. 62 Id. Ibid., p. 38. 37 objeto da História das Mentalidades, Del Priori aponta a persistência, no século XIX, das caracterizações negativas - que se refaziam desde o Antigo Regime e foram transpostas para o Brasil - das mulheres não disciplinadas cujos corpos ardentes, insaciáveis, seriam pecaminosos e malsãos. Daí, conclui a historiadora, a história da condição feminina e das mentalidades sobre a mulher na Colônia confunde-se com a história dos esforços e discursos empreendidos por clérigos, médicos, moralistas e autoridades visando a disciplinarização do seu corpo63. O desejo eclesiástico de moralizar os comportamentos femininos não era uma novidade. Leila Algranti informa-nos que desde os primórdios da cristandade, já para as primeiras mulheres que se consagraram à veneração do Cristo, a virgindade era representada como “símbolo da pureza do corpo e por extensão da alma”, adquirindo desde então um papel destacado na vida religiosa das mulheres64. Segundo Leila Algranti, nos compêndios morais do século XVI ao XVIII, e na documentação do período colonial brasileiro, a honra feminina - que deveria ser amada pelas mulheres mais do que a própria vida - esteve diretamente vinculada à sexualidade da mulher e ao seu controle sobre os impulsos e desejos do corpo. Isto significava para as solteiras a castidade pré-nupcial e para as casadas a fidelidade ao marido. Um mulher que se desonrasse, arrastava na sua queda a honra do pai (no caso da filha deflorada antes do casamento) ou do marido (no caso das adúlteras). Assim, a honra da mulher era um bem pessoal pelo qual ela devia zelar, mas era também assunto do interesse da família que poderia ser atingida e da sociedade (representadas pelo Estado e pela igreja) visto afetar os bons costumes65. (...) Das leis do Estado e da Igreja, com freqüência bastante duras, à vigilância inquieta de pais, irmãos, tios, tutores, e à coerção informal, mas forte, de velhos costumes misóginos, tudo confluía para o mesmo objetivo: abafar a sexualidade feminina que, ao rebentar as amarras, 63 Id. Ibid., pp. 177,178 e 199; 180-200 e 333. Ver ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit., pp. 36-37. Assim como Mary Del Priore, Leila Algranti, vê “a submissão da mulher ao homem como fenômeno cultural de longa duração presente tanto em certas civilizações da Antigüidade, como nas sociedades cristãs”. Id. Ibid., pp. 109-110. [grifo nosso] 65 Id. Ibid., 111-121. Posição semelhante foi percebida entre os juristas do século XIX e início do XX. Ver ABREU, Martha e CAULFIELD, Sueann. “50 Anos de virgindade no Rio de Janeiro: as políticas de sexualidade no discurso jurídico e popular (1890-1940)”. In: Caderno Espaço Feminino. Volume 2, ano II, nº 1/2. Uberlândia, 1995. Cf. CAULFIELD, Sueann. “‘Que virgindade é esta?’ A mulher moderna e a reforma do Código Penal no Rio de Janeiro, 1918-1940”. In: Acervo, v. 9, no 1-2. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, janeiro/dezembro, 1996. 64 38 ameaçava o equilíbrio doméstico, a segurança do grupo social e a própria ordem das instituições civis e eclesiásticas66. [grifo nosso] Analisando a relação entre virgindade e casamento no período colonial, Sheila Faria reafirma a importância do casamento, o qual, mais do que um valor moral, era uma vantagem na luta pela sobrevivência67. Demonstra a historiadora como casais dos extratos subalternos da sociedade colonial: índios, escravos e mesmo crioulos, serviram-se da moral valorizadora do casamento - vinculado à virgindade feminina anterior -, para, através dos processos de banho e dispensas de impedimentos matrimoniais, obterem o casamento oficial. Eram casos em que o casamento estaria interditado frente os critérios de consangüinidade estabelecidos pela igreja, que impedia uniões matrimoniais entre parentes até o quarto grau. O defloramento então teria sido utilizado como estratagema para pôr a autoridade eclesiástica diante de um fato consumado e constrangêla a dispensar o casal dos laços de consangüinidade, de forma a possibilitar o casamento e a recuperação, pela noiva, da “honra perdida”. Do contrário, ela estaria, no discurso da igreja, fadada às ‘misérias do mundo’ e ao amasiamento, o que seria um mal maior68. Sheila Faria acentua que, até mesmo pelas condições de morada da população colonial, a ocorrência dessas relações sexuais pré-nupciais era do conhecimento dos parentes e vizinhos do casal, e o uso do defloramento como estratagema para obter a dispensa do impedimento canônico por consangüinidade, contava, no mínimo, com a aquiescência dos pais da moça69. Por um lado, se a perda da virgindade fora do casamento significava uma desonra para a mulher que teria sido “desonestada” e “levada da sua honra”, como diz Mary Del Priore, por outro, o estar desvirginada não implicava, necessariamente, num embargo à obtenção de uniões conjugais (preferencialmente o casamento oficial). Esta hipótese foi demonstrada por Sheila Faria que, ao estudar 27 processos de banho de forros e seus descendentes, constatou que, “em 29% a mulher não era mais virgem e, 66 ARAÚJO, Emanuel. Op. cit. p. 45. Ver FARIA, Sheila Siqueira de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp. 61-68. 68 Id. Ibid. A respeito do sentido dos processos de banhos e impedimentos matrimoniais, ver pp. 58-61. 69 Id. Ibid., pp. 65-68. 67 39 dentre estes, o noivo não era o deflorador em 57% dos casos”. E mais, para Sheila Faria, “a virgindade tinha pouco sentido ou influência no mercado matrimonial”70. [grifo nosso] Porém, complementa a pesquisadora fluminense: Se virgindade e casamento não estavam necessariamente ligados para a população mais pobre, o mesmo não pode ser dito para os que detinham prestígio econômico e social. Idealmente, pelo menos, as noivas ricas deveriam ser virgens. Foram raros os processos de banhos envolvendo pessoas designadas como ‘dona’, ‘sargento-mor’, ‘capitão-mor’ e titulações afins que tivessem referidos relacionamentos sexuais antes dos matrimônios. Certamente isso não significa necessariamente abstinência sexual por parte das mulheres, mas sim que, com maior facilidade, tais práticas puderam ser encobertas. A publicidade é que poderia impedir casamentos. Desde que tudo se mantivesse longe do domínio público, estava salvaguardada a honra da família (...)71. [grifos nossos] Segundo Leila Algranti, para conter a sexualidade da mulher, tida como normalmente incontrolável, e garantir que ela permanecesse virtuosa e honrada72 as autoridades colônias e seus propagadores pregavam que sobre elas fosse exercida estrita vigilância pelo pai ou pelo marido73. A exigência do controle e da fiscalização - aliada à montagem de paradigmas referenciais do que deveria ser o modelo de comportamento “que se esperava no despertar da sexualidade feminina” na Colônia -, denotava um 70 FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Op. cit., pp. 64 e 67. Ver, DEL PRIORE, Mary. Op. cit., p. 76. A respeito do crime de defloramento no período colonial, ver DEL PRIORE, Mary. Op. cit., Segunda Parte, Capítulo 2. 71 Sheila Siqueira de Castro. Op. cit., p. 67. Por mais espantosa que possa parecer, situação similar à descrita por Sheila Faria foi percebida por Cristina Donza Cancela, ao estudar processos por crimes de defloramento em Belém do Pará em fins do século XIX e início do século XX. Cristina Donza sugere que, menos do que o tipo de relacionamento mantido com a ofendida e “o conhecimento dela ser ou não uma mulher virgem”, o que realmente importaria aos homens seria “a imagem que sua possível esposa teria aos olhos de todos”, se essa imagem pública apontasse para a desconfiança de que ele, casando-se, serviria de “pedreiro”, motivo de chacotas, ele tenderia a romper o compromisso. Cf. CANCELA, Cristina Donza. Adoráveis e Dissimuladas: As relações amorosas das mulheres das camadas populares em Belém no final do século XIX e início do XX. Campinas: Dissertação de Mestrado, UNICAMP, 1997, pp. 126-130. 72 Para uma história dos sentidos e aplicações dos conceitos e honra e virtude, ver ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit., especialmente o capítulo 3 da segunda parte. 73 Id. Ibid., p. 115. Ver também ARAÚJO, Emanuel. Op. cit., pp. 49-53. 40 reconhecimento de ser a mulher, mesmo a “honesta”, dotada de sexualidade, de desejos, daí a imperiosidade do controle, tido como muito difícil de ser exercido74. A mulher honrada era definida, na sociedade colonial, como sendo aquela que: (...) vive reclusa no interior do lar, ocupada nos afazeres domésticos, distante do espaço público. Tutelada pelo marido, que lhe ministra sempre em pequenas doses - alguns prazeres e atenções, ela deve (...) viver inteiramente para o esposo (...) pouco dinheiro à disposição, a esposa ideal deve governar a casa evitando intimidades até mesmo com aqueles que vivem sob seu teto (...) Nada de folguedos, de adornos e modismos. Nada de risos e danças fora de casa, olhares, galanterias75. [grifos nossos] Porém, não apenas vigilância e repressão configuraram o discurso em torno da preservação da honra feminina. Se, por um lado, a punição da mulher desonrada “era uma conduta aceita sem restrições pela sociedade como um todo”, o perdão também era possível e a recuperação da honra almejada. (...) a perda não era necessariamente definitiva e, como outros bens, a honra poderia ser recuperada através de mecanismos criados e acionados tanto pela Igreja como pelo Estado e pelos familiares. O casamento, a indenização ou a internação num recolhimento poderiam significar a recuperação da honra perdida (...) O Estado segregava e expurgava as mulheres sem honra ou desonradas, enquanto a família as confinava. A Igreja, por sua vez, condenava-as à danação eterna. Mas as três instâncias também podiam perdoá-las76. [grifo nosso] É claro que houve mudanças nos conteúdos ou sentidos dos códigos e valores utilizados para a caracterização simbólica da mulher. Porém, queremos chamar atenção para o fato de que a compreensão da honra feminina como sinônimo de virgindade e virtuosidade um bem cuja perda acarretava grandes malefícios à pessoa, à sociedade e à família, exigindo pois severa punição, mas para a qual também eram deixadas margens de perdão, instituindose mecanismos de recuperação do que fora 74 ARAÚJO, Emanuel. Op. cit., p. 45. Dom Francisco de Melo. Carta de guia de casados. Apud. ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit., p. 116. 76 Id. Ibid., pp. 129-130. 75 41 perdido -, reaparece na historiografia de diferentes conjunturas e diferentes épocas, como veremos. 2. ENTRE A ORDEM E A ALTERIDADE: CONFLITOS E CONTINUIDADES APONTADAS PELA HISTORIOGRAFIA Rachel Soihet, estudando as relações entre mulheres e violência no Brasil urbano da Belle Époque (1890-1920), argumenta que, com “a plena instauração da ordem burguesa”, os grupos ascendentes fizeram da “modernização” e “higienização” do país suas bandeiras, apresentando-as como inexoráveis à “civilização” da nação, nos moldes das metrópoles européias, especialmente Paris. No momento histórico em que se dava a extinção do escravismo e predominava o “trabalho livre”, o projeto “civilizador” exigirá, à sua consecução, a adoção de medidas “para adequar homens e mulheres dos segmentos populares ao novo estado de coisas”, inculcando-lhes valores e formas de comportamentos, fazendo recair especialmente sobre as mulheres “uma forte carga de pressões acerca do comportamento pessoal e familiar desejado”. (...) A implantação dos moldes da família burguesa entre os trabalhadores era encarada como essencial, visto que no regime capitalista que então se instaurava, com a supressão do escravismo, o custo de reprodução do trabalho era calculado considerando como certa a contribuição invisível, não remunerada, do trabalho doméstico das mulheres (...)”77. [grifo nosso] Nas palavras de Magali Engel: (...) as transformações que a partir da década de 1850 começaram, lenta e contraditoriamente, a se delinear nos horizontes da sociedade brasileira tornavam-se mais profundas e definidas (...) Impunham, de acordo com as expectativas e interesses dominantes, a formulação e a execução de 77 SOIHET, Rachel. “Mulheres Pobres e Violência no Brasil Urbano”. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, pp. 362-363._______. “A Interdição e o Transbordamento do Desejo: Mulher e Carnaval no Rio de Janeiro (1890-1945)”. In: Caderno Espaço Feminino, volume 2, ano II, nº 1/2. Uberlândia: Núcleo de Estudos de Gênero e Pesquisa Sobre a Mulher da Universidade Federal de Uberlândia, 1995, pp. 53-57. 42 novas estratégias de disciplinarização e de repressão dos corpos e mentes sedimentados, por exemplo, sobre uma nova ética do trabalho e sobre novos padrões de moralidade para os comportamentos afetivos, sexuais e sociais. O advento da República anunciava o começo de um tempo marcado pelo redimensionamento das políticas de controle social, cuja rigidez e abrangência eram produzidas pelo reconhecimento e legitimidade dos parâmetros burgueses definidores da ordem, do progresso, da modernidade e da civilização78. [grifos nossos] Percebemos então que as políticas de normalização comportamental, inclusos os comportamentos sexuais, estiveram vinculadas a projetos de estruturação e/ou reorganização de toda a vida social. Inseriam-se num ou noutro projeto de sociedade e foram concebidos e postos em prática (com resultados discutíveis) em momentos de grande significação histórica79. Rachel Soihet atenta para o choque entre os desejos “civilizadores” dos novos grupos dirigentes do Brasil pós-escravista e republicano, e a multiplicidade de formas assumidas pela “organização familiar dos populares”, onde, pululavam “as famílias chefiadas por mulheres sós”80. Para a autora, as explicações para os antagonismos entre os padrões comportamentais, morais e familiares ensejados e vivificados pelas elites e pelas camadas populares, estariam, tanto nas diferenciações sócio-econômicas, nas diferentes condições materiais de vida como nas distintas opções 78 ENGEL, Magali. “Psiquiatria e Feminilidade”. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, p. 322. 79 Para refletir sobre as mudanças históricas em curso nos momentos em que as políticas de disciplinarização sexual foram implementadas e/ou refeitas, sugerimos as seguintes leituras. ABREU, Martha Campos e CAULFIELD, Sueann. “50 Anos de virgindade no Rio de Janeiro: as políticas de sexualidade no discurso jurídico e popular (18901940)”. In: Caderno Espaço Feminino. Volume 2, ano II, Nº 1/2. Uberlândia, 1995. ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit. CANCELA, Cristina Donza. Op. cit. CAULFIELD, Sueann. “’Que virgindade é esta?’ A mulher moderna e a reforma do Código Penal no Rio de Janeiro, 1918-1940”. In: Acervo, v. 9, no 1-2. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, janeiro/dezembro, 1996. ________. “Raça, Sexo e Casamento: crimes sexuais no Rio de Janeiro, 1918-1940". In: Afro-Ásia, nº 18. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, 1996. DEL PRIORE, Mary. Op. cit. CUNHA, Maria Clementina Pereira. Loucura, Gênero Feminino: Internação Psiquiátrica de Mulheres em São Paulo no Início do Século XX. Campinas: UNICAMP, mimeo. 1995.ENGEL, Magali. Op. cit. ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas Perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. SOIHET, Rachel. “A Interdição e o Transbordamento do Desejo: Mulher e Carnaval no Rio de Janeiro (1890-1945)”. In: Caderno Espaço Feminino. Volume 2, ano II, Nº 1/2. Uberlândia, 1995. _______. “Mulheres pobres e violência no Brasil urbano”. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. 80 Cristina Donza Cancela e Martha Abreu afirmam que o fato de muitas mulheres aparecerem qualificadas nos processos criminais como solteiras ou viúvas não significava, sempre, a ausência de um companheiro. Às vezes, o amasiamento era omitido pela mulher ou, mais freqüentemente, pelo funcionário da polícia ou do judiciário que registrava a mulher amancebada como solteira ou viúva. Ver CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., e ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit. 43 culturais e morais construídas e vivenciadas pelos “populares”, incluindo “as concepções de honra e de casamento das mulheres pobres (...) consideradas perigosas à moralidade da nova sociedade que se formava” 81. [grifo nosso] Apesar da diferenças que apontaremos à frente, queremos destacar certas continuidades reveladas pela historiografia. As tentativas da elite republicana - e seus intelectuais orgânicos82 em disseminar um modelo de família e de exercício lícito da sexualidade, contrapondo-se e buscando obnubilar o pluralismo das práticas sexuais e vivências familiares difundidas entre os setores populares; o panegírico da honra feminina vinculada à virgindade pré-nupcial; a instituição de normas legais voltadas à proteção da virgindade e da honra feminina, aproximamse das atitudes dos reformistas da Colônia. Tanto em um como em outro período, manifestaramse o desejo por generalizar um modelo único de família (oficializada pelo casamento) e pelo adestramento da sexualidade feminina. Mudaram os enfoques, os métodos, mas não os objetivos. Também nos séculos XIX e XX, como demonstrou Mary Del Priori para a Época Moderna e para a Colônia, a historiografia identificou “saberes médicos”, apresentados como “científicos”, que deram caução às novas políticas de normatização. (...) A medicina social assegurava como características femininas, por razões biológicas: a fragilidade, o recato, o predomínio das faculdades afetivas sobre as intelectuais, a subordinação da sexualidade à vocação maternal. Em oposição, o homem conjugava à sua força física uma natureza autoritária, empreendedora, racional e uma sexualidade sem freios (...) Aquelas dotadas de erotismo intenso e forte inteligência, seriam despidas do sentimento de maternidade, característica inata da mulher normal, e consideradas extremamente perigosas. Constituíam-se 81 SOIHET, Rachel. Op. cit., pp. 362-363. Martha Abreu também aponta essa combinação, não necessariamente derivada, entre condições materiais (ou sociais) de existência das mulheres pobres (no espaço urbano em processo de transformação nos primórdios do capitalismo brasileiro) e as “opções culturais” exercidas pelos(as) populares que constituem uma cultura com especificidade fazendo com que a cultura popular não seja ou não possa ser uma reprodução dos valores “civilizados”. Ver ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., passim. 82 O conceito de intelectual orgânico visa afirmar nossa convicção de que as políticas de normatização não foram eventos casuais, mas ações conscientes voltadas a responder ao desafio posto a todos os grupos dirigentes: a formulação e execução dos mecanismos necessários e adequados à reprodução da ordem social e do status quo, concernentes a determinados interesses de classe. Isto é, as discriminações de gênero, assim como as discriminações culturais contidas nas políticas e nos discursos normatizadores, refletiam, também, determinações de classe. Cf. GRAMSCI, Antonio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 7ª ed., 1989. 44 nas criminosas natas, nas prostitutas e nas loucas que deveriam ser afastadas do convívio social83. [grifos nossos] A citação de Rachel Soihet revela-nos continuidades, mas também, modificações em relação ao que fora percebido para a Colônia. Vejamos. Uma primeira diferenciação que se pode evidenciar está exatamente na importância que adquiriram os “discursos acadêmicos”, difundidos por médicos e juristas, na caracterização da “natureza feminina” e na justificação da sua disciplinarização. A valorização dos argumentos “científicos”, registrada pela historiografia, contribuiu para uma mudança no olhar sobre as mulheres. Elas deixam de ser concebidas como um agente de satã. Sua “natureza” concupiscente, ladina, pecaminosa - tão propagada na Colônia -, deu lugar ao “recato” “natural” (o recato anterior só poderia ser conseguido e mantido com controle e vigilância), sua lascívia incontrolável cedeu a uma “natural” subordinação da sexualidade à vocação maternal. Por outro lado, mudaram também as representações sobre homem. Ele, de vítima potencial das tentações femininas, possuidor de um maior autocontrole sexual, passou a ser representado como portador de uma “sexualidade sem freios”. Porém, essas novas representações da mulher tornaram-se justificação “científica” para que se estabelecesse e advogasse uma severa vigilância e controle sobre elas. Sendo agora recatadas, eram inexperientes e ingênuas; o predomínio da afetividade tornava-as incapazes de decidirem racionalmente, pesando as conseqüências de cada ato. Ingênuas e emotivas poderiam ser presas fáceis para homens “viris”, “dominadores”, “empreendedores”, “racionais”, e sexualmente “sem freios”. Mister seria mantê-las sob guarda e punir exemplarmente as transgressões84. Não devemos, no entanto, pensar que o discurso médico e jurídico produziu um consenso pleno e total homogeneidade nas representações sobre as mulheres, as dicotomias continuaram a existir, e a mulher também foi apontada como naturalmente 83 84 SOIHET, Rachel. Op. cit., p. 363. Ver também CUNHA, Maria Clementina Pereira. Op. cit., pp. 4-8. Cf. SOIHET, Rachel. Op. cit. passim. 45 pérfida e ardilosa, porém, tal se devia exclusivamente à sua natureza ambígua85, não resultando de intimidades com o “senhor das sombras”86. Uma outra diferenciação importante em relação ao que a historiografia registra para a Colônia está no fato do discurso médico e burguês, de fins do século XIX e início do XX não mais pretender que a casa fosse o limite da existência feminina, como se apregoava nos manuais eclesiásticos difundidos na Colônia. Apesar do território feminino continuar sendo, preferencialmente, o espaço privado e o do homem o espaço público, passou-se a aceitar e mesmo recomendar, que as mulheres freqüentassem certos lugares públicos: teatros, chás, confeitarias e até algumas das avenidas centrais visitando suas lojas, porém, sempre acompanhadas. A mulher honesta continuava não podendo andar sozinha pelas ruas. Esta norma, salienta Rachel Soihet, era impossível de ser cumprida pelas mulheres pobres que precisavam sair às ruas, desacompanhadas, por necessidade de sobrevivência87. Para a autora, a mentalidade e a moralidade predominante nos grupos dominantes e nos órgãos públicos e privados, que eles controlavam eram a da “completa dominação” masculina “sobre a mulher submissa”88. No tocante ao conceito de honra feminina, ela continuava diretamente vinculada à virgindade, à castidade anterior ao casamento e à fidelidade após. Sendo que a infidelidade masculina não era criminalizada, exceto nos casos de possuir o homem concubina teúda e manteúda. Como observou Leila Algranti para a Colônia, a virgindade e a fidelidade conjugal da mulher (cuja violação poderia implicar na sua morte, que geralmente ficava sem punição), não era assunto atinente somente à mulher, era do interesse da família, pois a desonra da mulher (tornada pública) comprometia o bom nome da família ou os brios do marido89. Rachel Soihet, por um lado, considera que muitas mulheres não se subordinaram aos valores e desejos disciplinares dos grupos dirigentes. Tais mulheres 85 A respeito da reformulação e disseminação da imagem da mulher como dona de uma natureza ambígua, e o uso dessa representação para legitimar a repressão sexual da mulher, ver ENGEL, Magali. “Psiquiatria e Feminilidade”. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, p. 332 e passim. Cf. SOIHET, Rachel. Op. cit., p. 381. 86 Cf. DEL PRIORE, Mary. Op. cit., passim e ALGANTI, Leila Mezan. Op. cit. passim. 87 SOIHET, Rachel. Op. cit., pp. 365-366. 88 Id. Ibid., p. 382. 89 Id. Ibid., pp. 389-399. 46 adotavam, em virtude das condições sociais de existência das “camadas populares”, práticas de vida que conflitavam com os “pressupostos estabelecidos pela ordem hegemonicamente burguesa e masculina”. Para a historiadora, algumas mulheres teriam recorrido até mesmo ao homicídio (justificado pela ‘legítima defesa da honra’ e pela passionalidade do ato), como forma de resistência aos ultrajes a que eram submetidas90. Por outro lado, a historiadora destaca a importância da absorção, pelas moças e mulheres pobres, dos valores e normas do discurso disciplinado: a honra identificada com a virgindade e a fidelidade; o desejo do casamento oficial (só possível com a posse do hímen) ou a “proteção” de um homem para as “desonradas”91. As conclusões de Raquel Soihet sobre as atitudes femininas diante das políticas de controle moral e comportamental implementadas pelas elites republicanas, podem ser comparadas às de Mary Del Priori, para quem o projeto normatizador das autoridades coloniais não obteve o êxito desejado e, dentro da sociedade colonial, formas de resistências femininas, atos dissonantes se fizeram presentes: a vida nos conventos, o lesbianismo ou o infanticídio teriam sido formas de recusa à maternidade instituída e muitas vezes vivida como uma obrigação e medida profilática contra as más tendências da mulher. Mas o agir feminino na Colônia não se reduziu à aceitação ou recusa dos valores dominantes (que afirmavam a superioridade masculina), constituiu-se também de apropriações e usos próprios desses mesmos valores: Importante foi ainda detectar como a mãe tornou-se o canal condutor dos propósitos metropolitanos de adestramento da mal-ossificada sociedade colonial: ao passar os valores instituídos para seus filhos, a mulher se autonormatizava. Mas crucial, mesmo, foi compreender que se as mulheres interiorizavam os preconceitos e estereótipos de uma sociedade machista e androcêntrica, o fizeram porque nesse projeto encontraram benefícios e compensações. Sua revanche traduziu-se numa forte rede de micropoderes em relação aos filhos e num arsenal de saberes e fazeres sobre o corpo, o parto, a sexualidade e a maternidade92. [grifo nosso] 90 Mariza Corrêa, ao estudar processos por crimes de homicídio ocorridos entre 1952 e 1972 na cidade de Campinas, onde os envolvidos formavam casais, constatou que a legitima defesa da vida e não da honra, constitui-se na principal estratégia da defesa dos casos em que as mulheres apareceram como acusadas. Também a perda dos sentidos frente à forte emoção foi alegada. Cf. CORRÊA, Mariza. Morte em Família: Representações Jurídicas de Papéis Sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983, pp. 243-245. 91 Ver SOIHET, Rachel. Op. cit., pp. 392-399. 92 DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Edunb, 1993, p. 335. Ver ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit., pp. 25-26. 47 Podemos perceber pela historiografia, que ambigüidade parece ter sido a regra das atitudes femininas com as mulheres (e homens), oscilando entre a aceitação ou utilização dos valores moralizados e a vivência de valores e comportamentos que se chocavam com as normas apregoadas pelos moralizadores. 3. IMAGENS PERSISTENTES: LOUCURA E GÊNERO Dentre as linhas de pesquisa que afloraram com a emergência da História das Mulheres, uma das que mais tem contribuído para o deslindamento das relações entre as políticas de normatização e as relações de gênero são os estudos dedicados à psiquiatria. Perquirindo as relações entre a psiquiatria e a reconstrução do imaginário sobre as mulheres em fins do século XIX e início do XX, Magali Engel constatou que na localização das razões da loucura interferiam as representações de gênero. Enquanto as situações que conduziriam a mulher à loucura seriam decorrentes da sua “natureza” - particularmente vinculada à sua sexualidade -, simultaneamente resultando e expressando o seu desvio dos papéis “natural” e socialmente a ela atribuídos; a loucura do homem tendia a ser provocada pelo exercício ou recusa dos papéis masculinos, sendo, ao mesmo tempo, uma expressão de como o homem vivera ou não seus papéis sociais93. Vinculando a insanidade feminina às violações ou desdobramentos da sua “natureza”, os alienistas reforçavam a exigência de que a mulher se subordinasse e cumprisse adequadamente as suas determinações biológicas, cuja infração, por devassidão, onanismo, homossexualismo, recusa ao casamento e à maternidade, poderia redundar em malefícios, inclusive a alienação mental. Entretanto, não só a violação da sua “natureza” levava a mulher à loucura, mas também a sua própria “natureza” a predispunha a isto94. 93 Cf. ENGEL, Magali. Op. cit., p. 333. À igual conclusão chegou Maria Clementina, notando que a loucura masculina será expressa como pertencente à esfera “do anti-social”, enquanto a alienação feminina será localizada “na escala mais perigosa e ameaçadora do antinatural”. Ver CUNHA, Maria Clementina Pereira. Op. cit., p. 10 e passim. 94 Ver ENGEL, Magali. Op. cit., passim. 48 Ao analisar as atividades de trabalho destinadas a internos e internas (pobres) do hospício do Juquery, como parte da sua terapêutica de recuperação, Maria Clementina Pereira Cunha demonstra a persistência em atribuir-se papéis sociais e profissionais conforme o gênero, afirmando como femininas as funções domésticas, destino “natural” das mulheres. (...) Tratava-se, além disso, de um trabalho regenerador - e portanto, pensado em termos da atividade adequada para normatizar espíritos ‘doentes’. Assim, para os homens perturbados pela turbulência das cidades, o trabalho do campo; para as mulheres, qualquer que fosse sua procedência ou experiência anterior de trabalho, as atividades da agulha, do fogão, dos baldes e vassouras em um simulacro de lar coletivo, capaz de trazê-las de volta à normalidade projetada sobre a figura feminina sob a forma da domesticação95. [grifos nossos] Maria Clementina nos relata casos de mulheres sendo apontadas e mesmo internadas como loucas por terem comportamentos tidos como inadequados, estranhos ao seu sexo e reveladores de enfermidades, de insanidade. Eram mulheres que se mostravam por demais inteligentes, intelectualmente ativas e notáveis (mesmo que em pequenos círculos), profissionalmente dedicadas e reconhecidas, mulheres que se destacavam pelo mérito, pela disposição de viverem sós e serem independentes não permitindo um controle masculino (paterno, fraterno ou marital) sobre suas vidas96. Entretanto, mulheres que optavam por viverem sem a companhia de um marido não eram bem vistas, pois o celibato era tido como um dos sintomas - e mesmo gênese - da loucura feminina. Ainda que não levasse à alienação mental, a recusa da mulher em cumprir a sua determinação “natural” - e social - de ser esposa e mãe, redundava, inexoravelmente, em “infelicidade e frustração”. Porém, mesmo a decisão de contrair núpcias teria de provir ou ser mediada pelo pai, a primeira autoridade masculina a quem a mulher deveria subjugar-se97. Ao pai ou ao marido, a mulher deveria estar sempre subordinada à autoridade de um homem. Mas como ficava a questão do prazer sexual feminino? Os médicos do século XIX não produziram um consenso a este respeito. 95 CUNHA, Maria Clementina Pereira. Op. cit., pp. 2-3. Id. Ibid., p. 5. 97 Id. Ibid., p. 10. 96 49 Uma corrente da medicina que emergiu em meados do XIX e aprofundou-se em fins do mesmo século, representada por médicos como os doutores William Acton, Kraft-Ebing, Cesare Lombroso e Guglielmo Ferrero, asseverava a frigidez “natural” das mulheres, pois nelas o instinto sexual era, por “natureza”, anulado pelo instinto de maternidade. Assim, apenas as anormais, as ninfomaníacas seriam movidas por desejos e prazeres sexuais. Para esses médicos, a maternidade seria não só a razão de ser de toda mulher normal, como também o melhor remédio contra a possibilidade de caírem na loucura. Razão pela qual, mesmo possuindo uma “natural” repulsa ou desinteresse pelo sexo, a mulher não deve recusar o ato sexual, imprescindível à realização da maternidade98. Destarte, a maternidade continuava a ser, como fora para a época colonial, a finalidade da existência feminina. Contudo, modificou-se a motivação para que a mulher procurasse exercer a maternidade. Na Colônia, a maternidade era apresentada como uma determinação divina e fator de purificação do ato sexual99. Em fins do século XIX, a medicina propagava que a maternidade era uma determinação, uma necessidade natural e fundamental à conservação do equilíbrio psíquico da mulher100. Outra corrente, representada por médicos como os doutores Auguste Debay, J. Matthews Duncan, Clélia Duel Mosher e Iwan Bloch, veio à luz em meados do século XIX e influenciou o pensamento médico até o início do século XX. Esta tendência da medicina “reconhecia não apenas a existência do desejo e do prazer sexual feminino, mas também a necessidade - e em alguns casos o direito - da mulher realizá-los”. Para Magali Engel, esse reconhecimento não se configuraria numa singularidade histórica101. Ele era a retomada de noções que, com significações diversas, estiveram presentes em outros lugares, em outras épocas102. 98 Id. Ibid., pp. 340-341. Sobre a maternidade na colônia ver, DEL PRIORE, Mary. Op. cit., passim. Cf. ARAÚLO, Emanuel. Op. cit., passim. 100 ENGEL, Magali. Op. cit, p. 332 et. seq. 101 Certamente a profusão de regras, normas e leis voltadas ao controle e à submissão da sexualidade feminina, deste a Antigüidade, denota que, de um jeito ou de outro, reconhecia-se ter a mulher desejos sexuais e que o sexo poderia proporcionar-lhe prazer, tanto que poderia descontrolá-la e levá-la à devassidão; o que não se tinha era o reconhecimento da legitimidade e do direito da mulher a essa sexualidade prazerosa, advinda do desejo e não da instinto “natural” da maternidade. Cf. DEL PRIORE, Mary. Op. cit., ver também, ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit. passim. 102 Ver ENGEL, Magali. Op. cit., p. 341. 99 50 Contudo, não adveio desta última posição difundida pelos médicos, nenhuma política de liberalização sexual, ao contrário. Convictos de que tanto a ausência ou insuficiência de vida sexual como os “excessos” ou “perversões” eram funestos à vida sadia da mulher, os médicos afirmavam ser preciso que as mulheres satisfizessem as suas necessidades sexuais, mas nos limites do “leito conjugal”. Dessa forma, a correta realização da sexualidade feminina continuava a passar pelo casamento103, sua prática fora deste contexto, diz Martha Abreu, expressaria leviandade ou um comportamento doentio. Assim, “Incutir responsabilidade sexual na mulher tornava-se fundamental para que ela cumprisse convenientemente seu papel social e sexual (...)”104: cuidar da casa, do marido e dos filhos. [grifo nosso] Para Martha Abreu, se “os médicos do século XIX promoveram a sexualidade feminina, ensinando às mulheres que poderiam ter prazer sexual”, os “seus objetivos eram de conter a prostituição, diminuir a sífilis e garantir a saúde física e moral das famílias”105 e não a liberdade sexual das mulheres. 4. ENTRE A DISCIPLINA E O DESEJO Martha Abreu e Sueann Caulfield, estudando os discursos produzidos pelos juristas e os códigos penais, perceberam que, por todo o século XIX Tanto a proteção da honra feminina, como pretendia o código de 1830, ou a honestidade das famílias, como acrescentava o de 1890, estavam sempre associadas, em última instância, à virgindade feminina (...)106. [grifo nosso] 103 A respeito do vínculo entre casamento, sexualidade e procriação nos discursos propagados no Brasil Colonial, ver também SOUZA, Laura de Mello e. “O Padre e as Feiticeiras: Notas sobre a Sexualidade no Brasil Colonial”. In: VAINFAS, Ronaldo (org.). História da Sexualidade no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1986. 104 ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., pp. 54-55. 105 Id. Ibid., p. 54. 106 ABREU, Martha e CAULFIELD, Sueann. Op. cit., p. 23. O referencial para a honra feminina, no Império era o mesmo do período colonial. 51 Por sua vez, Cristina Donza Cancela, pesquisando crimes de defloramento acontecidos entre fins do século XIX e início do século XX, na cidade de Belém do Pará, observou que: Na Belém do final do século XIX e início do XX, a perda da virgindade significaria para a mulher, na visão dos literatos, poetas, advogados e promotores, uma abertura a todos os males do mundo. A perda da virgindade era vista como a perda da inocência, uma desonra107. [grifo nosso] Martha Abreu e Sueann Caulfield, demonstraram como foram intensos, em fins do século XIX e início do XX, os debates sobre os meios para se comprovar a virgindade e, portanto, a honra e a honestidade de uma mulher. Uma primeira corrente de juristas - num momento em que a medicina legal engatinhava -, vinculava a virgindade feminina, “presunção da sua honestidade”, à integridade do hímen. Tal vínculo deveria ser estabelecido não só pelos “conhecimentos” que então se tinha sobre os órgãos sexuais femininos, mas também, segundo Viveiros de Castro108, por serem os brasileiros himenófilos109. Esta “himenolatria”, ao menos no judiciário, foi abalada a partir da década de 1920 quando as pesquisas do médico-legista Afrânio Peixoto, demonstraram a existência de uma grande diversidade de himens e que a presença ou ausência deste não provaria, de forma induvidosa, ser ou não a mulher virgem. Além disso, suas pesquisas desmoralizaram um dos mais expressivos mitos do período, o de que se poderia identificar o caráter de uma mulher (se virgem e honesta ou prostituída) a partir de características corpóreas: tamanho e densidade dos seios, presença ou ausência do hímen, tamanho e densidade da vagina e dos lábios vaginais110. 107 CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., p. 5. A pesquisa da Cristina Donza recobre o mesmo período da pesquisa feita por Martha Abreu para a cidade do Rio de Janeiro 108 CASTRO, Francisco José Viveiros de. Apud. ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., capítulos 1 e 2. 109 Para uma análise das disputas entre os juristas sobre os sentidos da virgindade e as formas da sua comprovação, bem como, as transformações ocorridas na legislação, ver ABREU, Martha e CAULFIELD, Sueann. Op. cit., passim. Ver também, ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., especialmente os capítulos 1 e 2. 110 Cf. ABREU, Martha e CAULFIELD, Sueann. Op. cit., pp. 25-29., ver, também, ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., pp. 54-82. 52 Analisando a obra de Afrânio Peixoto, Sueann Caulfield concluiu que o seu posicionamento por mudanças nos códigos de honra herdados do século XIX, onde ainda se vinculava a honra feminina à “virgindade física”, à presença do hímen, expressava a condenação dele - e da classe média de então - à Velha República. Peixoto estaria a difundir e a defender “normas modernas do gênero burguês” onde a honra não é um símbolo de precedência, mas uma virtude, um status adquirido em conseqüência do que se fez e do que se faz, isto é, das atitudes. Daí sua proposta de substituir-se a “virgindade física” pela “virgindade moral” como verdadeiro objeto da proteção legal. Esta postura assumida por Afrânio Peixoto e vários juristas levou ao desprestígio do hímen como símbolo da honestidade feminina; esta, paulatinamente, passou a ser considerada, sobretudo, em razão dos comportamentos e hábitos das mulheres. As condições sociológicas e psicológicas das mulheres ofendidas - e não mais as fisiológicas - é que deveriam ser centralmente consideradas pelos juízes quando dos julgamentos111. No conjunto das políticas normativas do judiciário, percebe-se o interesse em controlarse os movimentos da mulher, estabelecendo interditos à sua presença nos lugares públicos desacompanhada dos pais ou responsáveis legais. Pretendia-se restringir não só os lugares aonde uma mulher honesta poderia ir, mas também seus horários e companhias. Estava presente a idéia de que a mulher ao sair sozinha sujeitava-se ao assédio dos homens, o que não era recomendável. Da mesma forma, permanecer com o namorado em lugares pouco iluminados, a altas horas e permitir carícias como beijos e abraços poderiam sugerir a existência de relações amorosas inaceitáveis para uma moça honesta e de família112. Sair só e participar de festejos populares eram práticas comuns às mulheres pobres, mas que, aos olhos das elites, enodoava-as113. Porém, se nem para as mulheres da elite continuava-se a exigir a clausura absoluta, mais anacrônico seria continuar tê-la como referência de honestidade para as mulheres pobres. Ao que parece, o 111 Ver CAULFIELD, Sueann. “‘Que virgindade é esta?’ A mulher moderna e a reforma do Código Penal no Rio de Janeiro, 1918-1940”. In: Acervo, v. 9, no 1-2. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, janeiro/dezembro, 1996, p. 181. 112 Ver CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., p. 30. 113 Id. Ibid., p. 53. Sobre a participação feminina no carnaval e as imagens a respeito desta participação, ver SOIHET, Rachel. Op. cit. Para as representações em torno das festas populares no século XIX e início do século XX, ver ABREU, Martha Campos. “O Império do Divino”: Festas Religiosas e Cultura Popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Campinas: Tese de Doutorado, UNICAMP, 1996. 53 entendimento da dissimetria entre o texto da lei (Código Penal de 1890) e os “novos costumes sociais” do início do século XX levaram a modificações nos critérios de julgamento do judiciário. Ao longo do período estudado, houve mudanças nas descrições acerca do comportamento ‘desonesto’. Sem dúvida, estas mudanças refletiam a paulatina expansão do espaço público ocupado por mulheres ‘honestas’ na cidade do Rio de Janeiro e as tentativas por parte das autoridades de ‘protegê-las’ das mulheres ‘desonestas’ (...) Enquanto na virada do século a defesa do réu baseava-se principalmente na evidência de que a mulher tinha o costume de sair só (para indicar que ela era ‘desonesta’), nos anos 20 e 30 a ênfase caía na impropriedade das horas e lugares que ela freqüentava 114. Dessa forma, ao menos formalmente, admitia-se que uma mulher pobre pudesse sair à rua só e permanecer “honesta”. Porém, a rua continuava a ser um lugar de muitos perigos e se houvesse a necessidade de sair, o prudente seria a mulher ser vigiada 115. Assim, no início do século XX, a casa continuava a ser o lugar mais adequado para o cotidiano feminino. Mas qual seria o sentido do(s) projeto(s) de disciplinarização dos comportamentos, no início do século XX? Para os juristas, a questão dos comportamentos dos “populares” tinha uma dimensão política mais ampla, não se reduzindo à condição de critério complementar na definição de um crime sexual. Na verdade, escreve Martha Abreu, a punição do crime visava a proteção de toda a sociedade. Daí que: 114 ABREU, Martha. e CAULFIELD, Sueann. Op. cit., p. 34. Este artigo condensa as conclusões das pesquisas feitas, separadamente, pelas autoras no período entre 1890-1940, tendo Martha Abreu trabalhado o período de 1890 a 1911 e Sueann Caulfield as décadas de 1918 a 1940. 115 ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., pp. 46-54. 54 (...) Os juristas estavam, como os médicos, imbuídos da missão de formar cientificamente o cidadão completo, cumpridor de papéis interdependentes: trabalhador, membro de uma família e indivíduo higienizado (moradia, lazer e corpo saudáveis, por exemplo). O aprofundamento das correlações entre honestidade, moral e bom trabalhador, no meio jurídico, formavam um triângulo referencial riquíssimo na sociedade que se desejava formar116. Caberia à mulher ser, numa sociedade disciplinada, “o centro difusor da moralização dos costumes”117. [grifo nosso] Um dos principais eixos do processo educacional, dentro do qual se inseria a pedagogia de médicos e juristas, era precisamente a mulher pobre. Ela era um dos principais agentes reformadores, responsáveis pela saída do homem das ruas, dos cabarés, dos botequins, da “vida fácil”. E jamais chegou a saber disso118. A diretriz de centralizar na mãe/esposa/mulher as responsabilidades sobre o comportamento familiar parece, então, ter assumido dimensões planetárias. Qualquer semelhança com a expansão do sistema capitalista durante o século XIX, concomitantemente com a difusão de suas concepções sobre as relações sociais, não será mera coincidência119. [grifo nosso] Acreditamos ser possível perceber uma certa aproximação entre os objetivos dos juristas só início do século XX, no tocante à morigeração dos comportamentos femininos, e o que nos é descrito por Leila Algranti em relação aos interesses das autoridades frente as mulheres da Colônia. Notadamente na insistência do casamento oficial como a única forma de se legitimar o exercício da sexualidade120. As diferenciações nos papéis atribuídos aos gêneros, pelos juristas e moralizadores do início do século XX, ficam evidentes, por exemplo, nos critérios empregados para se julgar o caráter de homens e mulheres, acusados e ofendidas, nos processos criminais. Enquanto os 116 Id. Ibid. p. 41. Id. Ibid., pp. 41 e 42. 118 ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 47. Ver, também, RAGO, Luzia Margareth. Op. cit., especialmente os capítulos 2 e 4. 119 ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p.74. 120 “O projeto de colonização traçado pelo Estado português e pelos representantes da Igreja Católica não excluiu as mulheres. Pelo contrário, elas foram consideradas, enquanto mães e esposas, o receptáculo das tradições culturais e das virtudes morais que se desejava transmitir aos colonos, para que desempenassem os esperados papéis de súditos fiéis e bons cristãos”. ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit. p. 53. Ver também, DEL PRIORI, Mary. Op. cit., especialmente os capítulos 1 e 2 da terceira parte. 117 55 homens eram julgados por seus vínculos com a atividade produtiva, por serem trabalhadores ou não, as mulheres eram julgadas pelo comportamento sexual121. Refletindo sobre o julgamento dos comportamentos masculinos, Martha Abreu concluiu que: Nos processos em que os advogados aprofundavam o comportamento dos acusados, os atributos de trabalhador sempre se associavam com os de honestidade, seriedade, respeitabilidade, honra, ideal de família, ou seja, atributos morais. Isso reforça, mais uma vez, a idéia de que as imagens do trabalhador eficiente incluíam as de moralidade e vice-versa. A nova ética de trabalho que se introduziria (...) vinha de mãos dadas com a formação do cidadão morigerado (...) para os juristas, (...) e reformadores de várias origens, um trabalhador livre das obrigações domésticas não se adaptaria facilmente à nova disciplina do trabalho. Nesse sentido, a existência dos processos criminais contra a honra das famílias constituía um excelente caminho utilizado pela Justiça para introjetar nas camadas populares essa nova ética de trabalho através da porta dos fundos da nova ordem burguesa, através da ‘moral e dos bons costumes122. [grifos nossos] Para Martha Abreu, o triunfo dessa nova abordagem que enfatizava a observação do cotidiano das mulheres e suas práticas culturais como condição para fazer-se um julgamento onde o fundamental era o reconhecimento ou não dos comportamentos da mulher como sendo honestos, merecedores da proteção legal -, não implicou na aceitação de que as mulheres pobres viviam segundo referencias culturais distintos dos esposados pela elite, porém, igualmente válidos. O judiciário reconhece a diferença comportamental apenas para melhor normatizar e punir, pois continuará julgando as mulheres pobres pelos critérios morais produzidos para “civilizar” e disciplinar, funcionalmente, as mulheres da elite, e que foram universalizados, apontados como regras a serem seguidas igualmente por todos setores sociais. O conflito entre valores da elite (expressos no discurso jurídico e na legislação) e os valores das camadas populares (expressos nas práticas cotidianas de homens e mulheres) foi, segundo os relatos historiográficos, inevitável123. 121 Id. Ibid., pp. 78-82. A mesma lógica que se usava para “diagnosticar” e “tratar” a “loucura masculina” e a “loucura feminina”. Cf. CUNHA, Maria Clementina Pereira. Op. cit., passim. 122 ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 82. 123 Id. Ibid., p. 75. 56 Martha Abreu considera que entre os “populares” a honestidade feminina estava mais ligada à fidelidade no namoro (não ser namoradeira, não andar com um e com outro simultaneamente) do que com as formas, lugares, horas e intimidades nos contatos físicos124. As moças pobres dos processos por defloramento que ela pesquisou no Rio de Janeiro, namoravam nas ruas, no mais das vezes sem a autorização dos parentes e responsáveis; saíam sozinhas para encontros amorosos em lugares e horários não recomendáveis; freqüentavam festas e bailes sem companhia responsável; iniciavam namoro nos primeiros contatos sem prévia investigação do pretendente; copulavam antes do matrimônio e chegavam a aceitar uniões consensuais. Por mais que também partilhassem certos valores e expectativas do discurso dominante, sobretudo o desejo do casamento oficial, elas não eram morigeradas, não viviam disciplinadamente, não correspondiam aos anseios da moral burguesa e do judiciário125. Estudando os discursos relativos ao crime de defloramento e às mulheres, produzidos pelos agentes do poder judiciário, Sueann Caulfield mostra que uma das maiores preocupações dos juristas na primeira metade do século XX, especialmente nos anos 20, 30 e 40, era com os efeitos dos “tempos modernos” sobre os comportamentos femininos, mormente o comportamento sexual126. As manifestações dos juristas frente aos “novos tempos” (os anos 20, 30 e 40 do século XX) foram marcadamente ambíguas. A “modernidade” tanto podia significar “progresso social e econômico”, “relações sexuais e familiares saudáveis e racionais”, quanto a “degeneração moral”, a “degradação nos valores tradicionais da família e dissolução dos ‘costumes’”127. (...) Quando atribuída ao homem, a modernidade era geralmente entendida em seu sentido positivo de racionalidade progressiva. Por outro 124 Id. Ibid., pp. 156-160. Tanto Martha Abreu quanto Cristina Donza Cancela e Karla Adriana Martins Bessa, destacam a brevidade dos namoros declarados ou a indefinição quanto à sua duração. Esta seria mais uma demonstração da particularidade do namoro dos populares em relação ao das elites. Ver, BESSA, Karla Adriana Martins. Jogos da Sedução: Práticas Amorosas e Práticas Jurídicas - Uberlândia 1950/1970. Dissertação de Mestrado, UNICAMP, 1996. 107-108; CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., pp. 28-43; ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., especialmente o capítulo 5. 126 CAULFIELD, Sueann. Op. cit., p. 182 e passim. 127 Id. Ibid., p. 182. 125 57 lado, quando atribuída à mulher, a modernidade implicava em moral licenciosa e estilo de vida desregrado 128. Ao lado da crítica formulada por Afrânio Peixoto “de que a veneração da virgindade era uma barbárie”, outros profissionais da medicina e do direito, nos anos 30 do século XX, assumiram um posicionamento mais conservador e buscaram demonstrar a incompatibilidade das inovações trazidas pela “modernização dos costumes” - como a idéia da igualdade, inclusive sexual, entre homens e mulheres - com a fisiologia e a natureza das mulheres, sendo o desejo da igualdade um desvio psíquico: “inveja do pênis ”. Foi o que escreveu, em 1930, o psicólogo J. P. Porto Carrero129. O mesmo psicólogo considerava que a fisiologia induziria as mulheres a desempenhar nas relações sexuais um posicionamento distinto do masculino. ‘Se observarmos a atitude psíquica dos sexos, veremos que ela não é diversa da atitude física dos mesmos no ato amoroso. A mulher é o ser que espera, que a princípio se esquiva, ou resiste, que por fim se entrega, se abre, suporta a agressão; o homem é o ser que procura, que excita, que penetra, que agride... Ela entrega-se, é ‘possuída’; ele busca e ‘possui’’130. Para Sueann Caulfield, esta abordagem das relações de gênero, mediada pela leitura misógina da “modernidade”, induziria à premissa de que “‘a mulher moderna’ era totalmente suspeita e não merecia proteção legal, apesar da ‘virgindade material’ anterior”; levando os juristas, de uma forma geral, a uma postura de hostilidade em relação às “mulheres independentes” 131. As mulheres “modernas” dos anos 20 e 30 foram classificadas de ‘semi-virgens’, pois estimuladas pelo estilo “moderno” de vida e pela “liberalidade dos costumes”, pouco bastaria para que deixassem de ser virgens. Entre as motivações que poderiam levar ao passo definitivo para a desonra, estaria o interesse da mulher em forçar um casamento e, neste caso, permitir o seu defloramento poderia ser parte de um ardiloso plano. Esta possibilidade precisaria ser considerada pelo juiz já que, pela 128 Id. Ibid. Cf. CARRERO, J. P. Porto. Apud. CAULFIELD, Sueann. Op. cit., pp. 186-187. 130 Id. Ibid., p. 187. 131 CAULFIELD, Sueann. Op. cit., p. 182. 129 58 “modernização dos costumes”, pelas condições sociológicas e psicológicas em que viviam as moças pobres, por seu maior acesso a informações e apelos eróticos, a moça casta, pura, ingênua e controlada de outrora seria peça rara132. Podemos ver, pela historiografia, que no simbólico construído sobre a mulher na Primeira República, ela foi aprisionada entre dois pólos, ladeada pela contraposição entre o modelo da mulher honesta (a esposa-mãe) e a prostitua. No dizer de Martha Abreu: (...) a noção de mulher honesta associou-se intrinsecamente à noção de mãe ideal. A dicotomia mãe-prostituta, presente nos discursos médicos, foi também reproduzida, embora com outro linguajar, nos discursos jurídicos133. Segundo Sueann Caulfield, nas décadas iniciais do século XX (os anos 30 e 40), a prática de se representar o ser mulher por paradigmas dicotômicos e excludentes foi refeita, em outros termos, na contraposição entre a mulher “moderna”, “independente”, “emancipada” e “livre” e a mulher casta, sujeita à autoridade da família, disciplinada sexualmente, passiva na relação - como seria próprio do seu sexo - e voltada aos ideais do casamento e da maternidade. Ainda que a expressão “mulher moderna” não fosse empregada pelos juristas como sinônimo de prostituta, ela era utilizada com uma conotação pejorativa. O ideal de mulher para os juristas do início dos anos 30 e 40 era o da mulher recatada e voltada ao casamento e à maternidade134. A representação da “mulher moderna” como mulher “sexualmente liberada”, não casta, não foi exclusiva dos juristas135. Segundo Karla Bessa, também entre os homens trabalhadores, mas certamente não só entre os trabalhadores, encontra-se a crença de que ‘mulher livre’ seria “mulher disponível” para o coito, sendo lícito 132 Id. Ibid., pp. 182-183. ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 52. 134 Cf. CAULFIELD, Sueann. Op. cit., passim. 135 Martha Abreu e Sueann Caulfield consideram que o vínculo entre virgindade e casamento não era patrimônio exclusivo do discurso normatizador dos médicos e juristas, mas um valor compartilhado por muitas mulheres pobres, mesmo que de forma matizada. Cf. ABREU, Martha e CAULFIELD, Sueann. Op. cit., pp. 33 e 35. A respeito da função social atribuída, pelo discurso normatizador, à maternidade na Primeira República, ver RAGO, Luzia Margareth. Do Cabaré ao Lar: A Utopia da Cidade Disciplinar - Brasil: 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2ª ed., 1985, pp. 191-206 133 59 “aliviarem-se” sexualmente com elas136. Porém, a ‘mulher livre’ não era necessariamente prostituída. A expressão não tinha a mesma significação atribuída ao termo ‘mulher pública’ em fins do XIX. Contudo, mesmo não sendo equiparadas às prostitutas, as ‘mulheres livres’ não seriam merecedoras da proteção legal posto que, eram ‘precoces na ciência dos mistérios sexuais’137. Para Sueann Caulfield, as imagens do feminino e os paradigmas que deveriam simbolizar o seu comportamento estavam em disputa138. Porém, podemos concluir que todos os modelos comportamentais ambicionados para as mulheres, objetivavam, por diversos caminhos e matizes, obter o controle e a morigeração das suas atitudes, particularmente da sua sexualidade. Talvez por isso os juristas e legisladores mantiveram no Código Penal de 1940 o vínculo entre sedução e promessa de casamento, revelando qual era, ainda, o principal papel a ser desempenhado pelas mulheres: o casamento e a maternidade. Dado ao importante papel que na qualidade de esposa e mãe viriam desempenhar na constituição da família brasileira e na “civilização dos costumes”, a mulher demandava “proteção” e “controle”. Neste sentido, o resguardo da virgindade feminina seria assunto do interesse social, legitimando que sobre ela se legislasse e se exercesse severa vigilância, até porque, como disse Nelson Hungria: “a lei criminal não protegia os direitos do cidadão per se, mas sim porque e quando eles coincidem com o interesse público e social”. Era, segundo Sueann Caulfiled, o triunfo das posições antiliberais. nos tempos do Estado Novo139. Por sua vez, Karla Adriana Martins Bessa, estudando processos por crimes de sedução na cidade de Uberlândia nas décadas de 1950 e 1960, percebeu que, ainda nos anos 50, para o judiciário, o dano primordial que o “jogo da sedução” trazia à 136 BESSA, Karla Adriana Martins. Op. cit., pp. 107-108. As conclusões são basicamente as mesmas de Martha Abreu, Sueann Caulfield e Cristina Donza Cancela. Sobre a noção de “mulher livre”, ver CAULFIELD, Sueann. Op. cit. 184 e passim. 137 CAULFIELD, Sueann. Op. cit., pp. 184-186. Martha Abreu, ao fazer um balanço sobre os estudos relativos aos crimes de defloramento/sedução, comenta - mas sem se debruçar sobre o assunto -, a ocorrência de continuidades nas políticas que visaram introjetar na população brasileira, tanto nos “dominantes” quanto nos “dominados”, uma moral sexual disciplinada (cujos resultados são duvidosos). Essas continuidades também seriam perceptíveis no tocante aos comportamentos sexuais da população trabalhadora. Cf. ABREU, Martha. “Meninas Perdidas: moralidade e sexualidade entre as jovens das camadas populares, 1890-1970”. Artigo a ser publicado. 138 CAULFIELD, Sueann. Op. cit., pp. 187-188. 139 Id. Ibid., pp. 193-195. 60 mulher era a perda da “honra”, esta entendida como sinônimo de virgindade (física e moral)140. Para as casadas, a honra era localizada na monogamia e na prática do sexo voltada à reprodução; para as viúvas, seria sinônimo de castidade. De qualquer forma, as discussões sobre a honra feminina em Uberlândia continuavam apontando para a necessidade de se buscar o controle do seu corpo e da sua sexualidade141, enquanto reafirmavam seus antigos papéis sociais: ser esposa e mãe. Estas são também as conclusões de Carla Bassanezi que pesquisou as imagens e valores ideológicos propalados pelas revistas que, nos anos 50, eram destinadas ao público feminino. Nelas, segundo a historiadora, a virgindade continuava a ser valorizada como uma espécie de “selo de garantia de honra e pureza feminina” e as diferenciações nos papéis e nas caracterizações do masculino e do feminino “continuavam nítidas”142. Ao mesmo tempo em que alertavam às “moças de boa família” quanto aos cuidados que deveriam ter nas suas relações românticas para não caírem em leviandades e comprometerem às suas possibilidades matrimonias, ‘o objetivo de vida’ de todas as moças solteiras, as revistas difundiam o paradigma da família perfeita e da mulher ideal para esta família. Na família-modelo dessa época, os homens tinham autoridade e poder sobre as mulheres e eram os responsáveis pelo sustento da esposa e dos filhos. A mulher ideal era definida a partir dos papéis femininos tradicionais ocupações domésticas e o cuidado dos filhos e do marido - e das características próprias da feminilidade, como instinto materno, pureza, resignação e doçura. Na prática, a moralidade favorecia as experiências sexuais masculinas enquanto procurava restringir a sexualidade feminina aos parâmetros do casamento convencional. A vocação prioritária para a maternidade e a vida doméstica seriam marcas da feminilidade, enquanto a iniciativa, a participação no mercado 140 BESSA, Karla Adriana Martins. Op. cit., pp. 103. Id. Ibid., pp. 103 e 104. Para comparar as continuidades e diferenças com outras épocas da história brasileira e, até mesmo com o que foi formulado para outros lugres, ver ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit.; DEL PRIORE, Mary. Op. cit.; ENGEL, Magali. Op. cit.; ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit.; CAULFIELD, Sueann. Op. cit.; CANCELA, Cristina Dona. Op. cit.; FARIA, Sheila Siqueira de Castro Faria. Op. cit. e ARAÚJO, Emanuel. Op. cit. 142 BASSANEZI, Carla. “Mulheres dos Anos Dourados”. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, passim. 141 61 de trabalho, a força e o espírito de aventura definiriam a masculinidade (...)143. A esposa ideal, portanto - aquela por quem os homens procuravam - seria, no dizer das revistas, “uma pessoa recatada, dócil, que não lhes trouxesse problemas - especialmente contestando o poder masculino - e que se enquadrasse perfeitamente aos padrões da boa moral”144. Para Karla Bessa, a prática de vincular-se a honra feminina à virgindade e a um comportamento “virtuoso” parece remontar à Colônia. E, mais de um século e meio depois de superada a condição colonial, aparentemente, “as relações entre a moral e a mulher mudaram muito pouco”. Contudo, diz a historiadora, se “vários discursos, provenientes das mais diferentes instituições sociais, ostentavam a importância da honra feminina (...) não se pode generalizar que este princípio fosse vivenciado uniformemente”145. Essa afirmação de que os grupos sociais interpretaram e vivenciaram distintamente as políticas de moralização comportamental está, de uma ou de outra forma, presente em todos os estudos relacionados ao tema que analisamos. Parece ter sido firmado como um consenso historiográfico. Iniciamos este capítulo, este breve passeio por uma parte da historiografia relativa às relações de gênero, preocupados em perceber as continuidades ou aproximações entre as maneiras, modelos e paradigmas, através dos quais os setores que denominamos, genericamente, de dirigentes, buscaram formular, difundir e efetivar a normatização dos comportamentos e a domesticação da sexualidade feminina. Ao concluí-lo, percebemos que a historiografia registra continuidades, mas sobretudo, mudanças. Quando não nos termos em que se pretendeu definir as formas de 143 Id. Ibid., pp. 608-609. A autora destaca que as revistas dirigiam-se às jovens das classes média e alta (?), contudo, consideramos plausível supormos que os seus valores fossem, ao menos em termos formais, compartilhados pelos homens e mulheres dos grupos dirigentes, tanto intelectuais como políticos, incluindo os juristas. Não por acaso, os valores e referências de masculinidade e feminilidade que deveriam configura, na visão das revistas, o masculino e o feminino, serão os mesmos que irão balizar a análise moral de acusados e ofendidas nos processos por crimes de sedução, ainda que tais processos, na prática, envolvessem tão só homens e mulheres das camadas de baixa renda. 144 Id. Ibid., pp. 612-613. Grifo no original. 145 BESSA, Karla Adriana Martins. Op. cit., p. 104 e passim. 62 ser mulher (honra, honestidade, recato, virgindade, casamento, maternidade e outros), ao menos em seu significado. Se na Colônia as autoridades eclesiásticas e civis propugnavam pela contenção da mulher no espaço doméstico, a historiografia registra, para o início do século XX, a presença de médicos e juristas a defenderem um outro papel para as mulheres. Elas deveriam acompanhar seus maridos às reuniões sociais, freqüentar chás e teatros, desde que devidamente acompanhadas. Também os referenciais a partir dos quais foram criadas as imagens positivas e negativas a respeito da “condição feminina” se transformaram. De acordo com a historiografia analisada, a mulher aparecia nos discursos eclesiásticos da Colônia como um ser criado por Deus para cooperar no ato da criação (cujos modelos seriam as “santas-virgens” ou a “santamãezinha”) mas que, pela ação do demônio, poderia se transformar em agente da corrupção e queda do homem. A solução estaria na vigilância familiar, no casamento e na maternidade, isto é, no cumprimento, pelas mulheres, do papel a elas atribuído por Deus: serem esposas e mães. Entretanto, na segunda metade do século XIX, a historiografia identifica a emergência de um duplo discurso médico a respeito das mulheres. A par das suas diferenças, ambas as correntes da medicina, conforme demonstramos, buscaram afirmar a “naturalização” das atitudes, da sexualidade, das características e da personalidade das mulheres. Uma corrente afirmava serem as mulheres “naturalmente” assexuadas, enquanto a outra, reconhecia o direito das mulheres ao prazer sexual. Nos dois casos temos uma significativa mudança em relação ao que vimos para a Colônia. Contudo, as duas correntes da medicina recomendavam a maternidade como ato essencial ao equilíbrio psíquico das mulheres. Sendo que, a maternidade e o relacionamento sexual imprescindível à sua realização, deveriam ocorrer dentro de relações conjugais oficializadas, ou seja, dentro do casamento. Dessa forma, casar e ter filhos continuava ser uma regra a ser seguida pelas mulheres, se não por ordem divina, por determinação natural. Se a virgindade pré-nupcial persiste como uma recomendação às mulheres, nas primeiras décadas do século XX seu significado, médico e jurídico, sofreu alterações. Como demonstram os estudos de Martha Abreu e Sueann Caulfield, declinou a referência nos aspectos físicos da virgindade, sobretudo o hímen, e ganhou maior 63 destaque a “virgindade moral”. Esta, no entender dos juristas do início do século, seria demonstrável, não pelo exame de conjunção carnal, mas pela avaliação dos comportamentos cotidianos das mulheres. Com isso, também se modificaram os critérios de honra e honestidade. Por outro lado, a “recente história das mulheres” que pesquisou as relações de gênero no século XX, tem registrado a existência, em diversos momentos e lugares, de conflitos entre os desejos normatizadores dos “setores dirigentes” e os valores e práticas vivificadas pelas camadas populares. Na primeira metade do século XX, a reconstrução das imagens femininas a partir de modelos comportamentais (negativos e positivos), foi operada através da contraposição da mulher casta, recatada e voltada ao casamento e à maternidade, versos a “mulher livre”, a “mulher independente”. Nos anos 50, segundo Carla Bassanezi, os termos que se contrapunham eram os da “moça de família” versos as “moças levianas”. As primeiras seriam recatadas, comedidas, virgens e voltadas ao casamento e à maternidade. As segundas, ainda que não fossem necessariamente prostitutas, seriam moças que se permitiriam “liberdades” nas relações amorosas. Seriam namoradeiras, tomariam a iniciativa de buscarem o romance, permitiriam beijos nos primeiros encontros e contatos íntimos antes do casamento, chegando mesmo a entregarem suas virgindades a homens como os quais não eram casadas. Estas “moças levianas”, por sua imagem negativa, corriam o sério risco de não conseguirem o “objetivo de todas as moças”: o casamento. Em resumo, pudemos perceber, pelo que nos narra a historiografia, que os diversos setores dirigentes, em vários momentos, esforçaram-se para fazer do casamento e da maternidade valores morais socialmente aceitos e praticados, concebendo-os como mecanismos de ordenação social. A luta pela ordenação, onde o casamento oficializado e a maternidade legitimada pelo casamento são elementos importante, se conjugou, constantemente, com as tentativas, várias vezes refeita, de se controlar os comportamentos femininos, especialmente a sua sexualidade. Esse parece-nos ser um elemento comum aos variados estudos históricos analisados neste capítulo: a mulher como objeto (não necessariamente passivo) de variadas propostas de normatização e morigeração. A partir desta conclusão nos indagamos se essas propostas ou políticas influíram e se expressaram nos comportamentos dos homens e mulheres que 64 protagonizaram os processos por crimes de sedução, que pesquisamos. Ao acionarem o judiciário, em busca do que consideravam justiça, estariam esses homens e mulheres das camadas populares de Campos, nos anos sessenta e setenta do século XX, expressando adesão aos mesmos valores esposados pelos juristas? Para estabelecer respostas plausíveis para estas questões é que procuramos compreender, no capitulo II, o ser social das camadas populares de Campos nos anos sessenta e setenta, e dos homens e mulheres envoltos nos processos. CAPÍTULO II APRESENTAÇÃO - A CIDADE, SUA POPULAÇÃO E OS PERSONAGENS 66 1. APRESENTANDO A CIDADE E SUA POPULAÇÃO Campos dos Goytacazes - lugar onde se passaram as relações de amor e as quizilas jurídicas que motivaram esta pesquisa - ocupa 10% do território do Estado do Rio de Janeiro, sendo o município de maior extensão territorial do estado, já tendo ocupado um lugar de destaque na economia e na vida política do Estado e mesmo do país146. Sua posição econômica e política no estado o tornou objeto de variadas pesquisas. As fontes que utilizamos constituem-se numa pequena parte de um grande e desorganizado acervo que, apesar de estar carecendo de medidas urgentes de conservação, tem viabilizado diversos estudos, especialmente, nas áreas de História e Antropologia147. 146 Segundo Jorge Renato Pereira Pinto, entre 1929 e fins dos anos 50, o município de Campos era o maior produtor de açúcar do Brasil e a produção da ‘região campista produtora de açúcar’ que além das usinas de Campos incluía as de Macaé, São João da Barra e São Fidélis, só era superada pela produção do Estado de Pernambuco. Nos anos 60, após o golpe militar de 1964, a economia açucareira da região foi fortemente atingida pela compressão dos preços do açúcar e do álcool o que implicou em maiores perdas salariais para os trabalhadores que dela dependiam direta ou indiretamente. Entretanto, o setor teve, nos anos sessenta e setenta, em termos de volume de produção, o melhor desempenho da sua história e, até meados dos anos 70, a economia local ainda estava pautada na cana-de-açúcar e na pecuária. Ao se iniciar os anos oitenta, a agroindústria açucareira viverá uma situação crescente de crises e falências. Enquanto a indústria açucareira começava o seu ocaso, a partir de 1974 a Petrobrás iniciou a prospecção e exploração do petróleo na Bacia de Campos, que hoje é a maior produtora do país, contudo, com a crise do setor sucro-alcooleiro, apesar do aparecimento de novas fábricas de pequeno e médio porte, será o setor terciário, especialmente o comércio varejista, que se transforma no principal empregador (em termos quantitativos). Para o período desta pesquisa, 1960-1974, a economia campista e suas possibilidades de trabalho e renda, ainda estavam profundamente condicionadas pelo desempenho da agroindústria do açúcar e do álcool. Ver PINTO, Jorge Renato Pereira. Um Pedaço de Terra Chamado Campos: sua geografia e seu progresso. Campos dos Goytacazes: Almeida Artes Gráficas, 1987, p. 73-92. O autor não leva em conta que na explicação do agravamento das condições salariais dos trabalhadores rurais de região, depois do golpe militar de 1964, deve-se considerar os efeitos da repressão sindical que se seguiu à tomada do poder pelos militares e que desorganizou as ações políticas e reivindicatórias dos trabalhadores rurais e industriários. 147 Ver, por exemplo, FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Op. cit. LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. LIMA, Lana Lage da Gama. Rebeldia Negra e Abolicionismo. Rio de Janeiro: Achimé, 1981. NEVES, Delma Pessanha. Lavradores e Pequenos Produtores de Cana: estudos das formas de subordinação dos pequenos produtores agrícolas ao capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. ________. “Políticas Públicas: Intenções Previstas e Desdobramentos Inesperados”. In: Cadernos do ICHF nº 59. Niterói: UFF, agosto, 1993. OSCAR, João. Escravidão e Engenhos. Rio de Janeiro: Achimé, s.d.. A maior parte da produção acadêmica sobre Campos ou que tem Campos como referência, relaciona-se com o estudo do escravismo e com a questão agrária. São recentes e ainda escassas as pesquisas voltadas a outros temas e períodos. Atualmente, além da nossa, voltada a um tempo e período até então inexplorados na documentação campista, há também, na UFF, a pesquisa da mestranda Juliana Carneiro sobre Nina Arueira, jovem militante comunista dos anos 30. Assim, aos poucos, novas linhas de pesquisa estão sendo abertas e novas fontes utilizadas. Há também, estudos realizados a partir dos anos 80 por professores do DSSC/UFF e da Faculdade Cândido Mendes voltados, centralmente, à pesquisa das condições sociais de existência das famílias de baixa renda mas que ainda não foram publicados. 67 Não pretendemos fazer uma História de Campos, mas somente traçar um perfil do ambiente sócio-econômico onde viveram os homens e mulheres encontrados nos processos e, ao longo do capítulo, refletir sobre as possíveis relações entre este ambiente sócio-econômico, as escolhas e as atitudes dos rapazes e moças envolvidos nos processos por sedução que pesquisamos. Analisando as estatísticas, verificamos que o crescimento da indústria agro-açucareira foi acompanhado de mudanças na composição demográfica da cidade, com a população urbana, no decorrer dos anos sessenta, ultrapassando a rural (Gráfico 1). Isso provavelmente explique por que encontramos um número razoável de ofendidas e acusados que viviam na área urbana apesar de ser Campos um município interiorano de base agrícola -, mas preservando laços de parentesco ou de namoro na área rural (Gráfico 2). GRÁFICO 1 POPULAÇÃO DE CAMPOS 1940-1980 350.000 300.000 250.000 200.000 População Total 150.000 100.000 50.000 0 População Rural População Urbana População Total 1940 1950 1960 1970 1980 Anos Fonte: IBGE, Agência Campos dos Goytacazes. 68 Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes148. Interessa-nos, particularmente, observar as condições do mercado de trabalho e seu recorte de gênero. 1.1- Economia, Educação e Gênero – As Condições da Planície Sendo Campos uma região agrícola, o mercado de trabalho era, em geral, restrito, situação que se acentuava no caso da força de trabalho feminina, conforme demonstram os Gráficos 3, 4 e 5149. 148 Para compormos este gráfico, utilizamos como referência a área geográfica onde se localizava o endereço da residência dado pelas ofendias e pelos acusados no momento em que foram qualificados na delegacia. Como algumas ofendidas eram do interior, isto é, residiam genesicamente em algum distrito ou subdistrito de Campos, mas moravam na cidade no momento do delito, enquanto seus pais continuavam a residir na “roça”, vamos ter então um menor número de ofendidas registradas como da área rural em comparação aos(as) queixosos(as). 149 O IBGE não produziu para os anos anteriores a 1980 levantamentos sobre renda com a diferenciação por sexo. Por esta razão fomos obrigados a trabalhar com os dados de 1980, porém, nada indica que as condições de vida econômica das mulheres fossem melhores antes de 1980. Assim, consideramos que os dados dos gráficos 4 e 5, permitem-nos concluir, com segurança, ter sido o mercado de trabalho campista altamente desfavorável às mulheres. 69 CRÁFICO 3 SETOR DE ATIVIDADE DAS PESSOAS DE 10 ANOS E MAIS, POR SEXO Outras Atividades Mulheres Adminstração Pública Homens Setor de Atividade Atividades Sociais Transp., Comum., Armazenagem Prestação de Serviços Comércio de Mercadorias Setor Secundário Setor Primário 0 5.000 10.000 15.000 20.000 25.000 30.000 35.000 Número de Pessoas Ocupadas Fonte: IBGE – VIII Recenseamento Geral, 1970, Série Regional, Volume I, Tomo XVI. GRÁFICO 4 PESSOAS DE 10 ANOS E MAIS, POR RENDIMENTO MÉDIO MENSAL (EM SALÁRIO MÍNIMO), POR SEXO, EM % 3 ais to s m Re nd im en de 2 0 20 ais de 1 de 5 ais M 12 0a a1 0 a5 de 3 ais de 2 a3 a2 ais 26,4 21,5 Se ais M M e1 a1 /2 e1 /2 a1 ais 73,6 M 72,9 97 88 78,5 27,1 20,3 16,9 M 21,4 de 1 de 1 M M ais /4 de 1 /2 a1 /2 1/ 4 At é 35,2 de 1 37,2 ais 79,7 64,8 62,8 25,4 M 83,1 78,6 74,6 Homens M Mulheres Fonte: IBGE, IX Recenseamento Geral, 1980. Obs: Do total de entrevistados, apenas 274 homens e 400 mulheres não declararam o rendimento. 70 GRÁFICO 5 RENDIMENTO MÉDIO MENSAL DAS MULHERES (EM SALÁRIO MÍNIMO), EM % 67,9 0,2 0,3 0,02 Sem Declaração 1 Sem Rendimentos Mais de 2 a 3 Mais de 1 e 1/2 a 2 Mais de 1 a 1 e 1/2 Mais de 1/2 a 1 2,3 Mais de 20 2 1,5 Mais de 10 a 20 5,6 Mais de 5 a 10 9,8 Mais de 3 a 5 6,5 Mais de 1/4 a 1/2 Até 1/4 2,8 Fonte: IBGE, IX Recenseamento Geral, 1980. A força de trabalho feminina em Campos estava concentrada em dois ramos: atividades sociais150 e prestação de serviços151. Temos, portanto, que as mulheres pobres de Campos viviam uma realidade de profunda desigualdade no mercado de trabalho, comparativamente aos homens. Exerciam, predominantemente, profissões com ínfimos resultados econômicos. Isto se comprova não só pelos ramos de atividades em que a força de trabalho feminina estava concentrada (e pelos dados dos processos) mas também pelo nível médio de remuneração da sua força de trabalho que, em sua grande maioria - 88,9% das mulheres que declararam possuir rendas -, não ultrapassava aos três salários mínimos mensais, sendo que 60,1% não recebiam mais do que um salário mínimo por mês trabalhado, e 8,8% da força de trabalho feminina de Campos recebia somente um quarto do salário mínimo por mês. Destarte, vis-à-vis a estas condições históricas, deveria ser muito 150 O IBGE inclui na categoria atividades sociais as seguintes atividades: ensino público; ensino particular; assistência médico-hospitalar pública; assistência médico-hospitalar particular; saneamento; abastecimento e melhoramentos urbanos – exclusive abastecimento de água, eletricidade, gás e serviço de esgoto; previdência social; assistência e beneficência; culto e atividades auxiliares; instituições culturais; sindicatos e associações de classe; outras classes e classe mal definida. 151 O IBGE inclui na categoria prestação de serviços as seguintes atividades: alojamento; alimentação; higiene pessoal; confecções sob medida; conservação e reparação de artigos do vestuário; conservação, reparação e instalação de máquinas e veículos; diversos; rádio e televisão; serviços domésticos remunerados; conservação de edifícios; outras classes e classe mal definida. 71 difícil para as mulheres pobres de Campos sobreviverem sem a presença de um marido, companheiro ou pai. Além disso, par e passo às desigualdades que podemos caracterizar como de gênero (menores oportunidades de emprego e salário para as mulheres), encontramos um quadro geral de desigualdade social que afetava a maior parte da população campista (homens e mulheres), em decorrência da elevada concentração da renda (Gráfico 6). O recenseamento do IBGE 152 localizou 47,2% da população sem rendimentos e, entre os que declararam renda, 44,6% recebiam até três salários mínimos enquanto apenas 1,2% disseram receber mais de dez salários mínimos por mês. O mesmo recenseamento, ao abordar a questão da renda familiar, confirma a condição de intensa pobreza de grande parte da população trabalhadora e a intensidade da concentração da renda no município, onde das famílias que declararam possuir rendimentos, 46,2% disseram que a soma dos rendimentos dos seus membros era de, no máximo, dois salários mínimos mensais (Gráfico 7). GRÁFICO 6 PESSOAS DE 10 ANOS OU MAIS, POR RENDIMENTO MÉDIO MENSAL EM SALÁRIO MÍNIMO 47,2 14,2 13,4 0,9 0,2 Sem Declaração 0,3 Sem Rendimentos Mais de 3 a 5 Mais de 2 a 3 Mais de 1e 1/2 a 2 Mais de 1 a 1 e 1/2 Mais de 1/2 a 1 Mais de 1/4 a 1/2 Até 1/4 2,4 Mais de 20 4,4 Mais de 10 a 20 5,2 Mais de 5 a 10 4,6 5,3 1,9 Fonte: IBGE, Censo Demográfico, Rio de Janeiro, 1980. 152 Não localizamos no IBGE, nem na delegacia de Campos nem no Centro de Documentação e Disseminação de Informações, dados sócio-econômicos sobre a população de Campos para os anos 60 e 70. Por esta razão, servimonos das estatísticas relativas ao ano de 1980, porém nada indica que as condições econômicas e sociais da população nos anos 60 e 70 fossem substancialmente diferentes do que se pode constatar pelos gráficos que apresentamos. 72 GRÁFICO 7 RENDIMENTO MÉDIO MENSAL FAMILIAR, EM SALÁRIO MÍNIMO, EM % 34 30,4 12,4 1,4 0,7 de c m Se di m en Re n Se m lar a to s 0 ais de 2 M ais de 1 0a 20 a1 0 M ais de 5 a5 M M ais 2 a2 M ais de 1 a1 M /4 ais de 1 /2 a1 /2 1/ 4 ais de 1 M 1,8 çã o 4,6 3 0,4 At é 11,3 Fonte: IBGE, Censo Demográfico, Rio de Janeiro, 1980. As estatísticas não nos fornecem provas da existência de vínculos diretos entre as condições econômicas da maioria da população campista e as dificuldades particulares das mulheres no mercado de trabalho. O que podemos ver com clareza, através das tabelas, é que num quadro geral de pobreza e exploração da força de trabalho - exercia-se sobre as mulheres pobres, que conseguiam ingressar na população economicamente ativa, uma exploração salarial ainda mais intensa que a praticada sobre os homens. Por um lado, é entre as mulheres que se localiza o maior contingente de pessoas sem rendimentos; por outro, a força de trabalho feminina só ultrapassa a masculina nas atividades cuja remuneração é irrisória, declinando grandemente conforme cresce o montante dos rendimentos. Dessa forma, verificamos que as desigualdades social e de gênero coexistiam - e, provavelmente se articulavam - dentro de uma mesma formação social. Entretanto, diferentemente do que ocorre no plano econômico, em relação ao acesso à educação - outro indicador importante das condições sociais da população campista - os homens e as mulheres aparecem em situação de equilíbrio, não se repetindo a discriminação de gênero verificada na composição do mercado de trabalho. Contudo, os dados também demonstram a influência da desigualdade social na vida escolar da população com os percentuais dos que foram classificados como “sem instrução” alcançando o índice mais expressivo da tabela. Certamente, os “sem instrução” não eram os homens e mulheres da classe média ou da burguesia. Por outro lado, os dados demonstram um significativo afunilamento a partir do sexto ano de estudos, indicando que os homens e mulheres oriundos do proletariado e que 73 conseguiam ingressar na escola, via de regra, não ultrapassavam o quinto ano de estudos. Temos, portanto, que os homens e mulheres das camadas populares possuíam um nível cultural e de informações que se assemelhava. TABELA 1 ANOS DE ESTUDO DAS PESSOAS DE 5 ANOS E MAIS, POR SEXO, EM % Anos de Estudo Homens Mulheres 1 Ano 2 Anos 5,8 6,7 5,2 6,3 3 Anos 5,7 6,1 4 Anos 4,1 4,5 5 Anos 3,4 3,6 6 Anos 1,1 1,1 7 Anos 0,9 0,8 8 Anos 0,9 0,9 9 Anos 1 0,9 10 Anos 0,3 0,3 11 Anos 0,3 0,4 12 Anos 0,9 1,8 13 Anos 14 Anos 0,06 0,07 0,06 0,03 15 Anos 0,06 0,04 16 Anos 0,1 0,1 17 Anos 0,2 0,01 Sem Instrução 17,4 18,3 Sem Declaração 0,06 0,04 Total*** 49,05 8 50,4 Fonte: IBGE, VIII Recenseamento Geral, 1970,Série Regional, Volume I, Tomo XVI. *Estes dados referem-se a um total de 276.497 pessoas sendo 50,8% de mulheres e 49,2% de homens. ** A população total de Campos no ano de 1970, segundo o próprio IBGE , era de 321.370 pessoas. *** A Diferença de 0,47% deve-se às aproximações. 1.2 - Nos Laços do Matrimônio Vimos que o quadro sócio-econômico dos trabalhadores campistas de baixa renda era desalentador: mercado de trabalho restrito, baixos salários e instrução elementar formavam um quadro que, provavelmente, produzia poucas expectativas em termos de “ascensão social”. Entretanto, verificamos que no decorrer dos anos 60 e 70 - especialmente a partir de 1965 - deu-se um crescimento no ritmo dos casamentos formais (41,5% entre 1960 e 1974) conforme demonstram as Tabelas 2 e 3 e o Gráfico 8. 74 Não só o casamento predominava sobre as uniões consensuais, como chama atenção o percentual dos casamentos realizados exclusivamente no civil. TABELA 2 CASAMENTOS NO MUNICÍPIO DE CAMPOS - 1960/1981 Ano Número Ano Número 1 1971 1 1.340 1960 1.097 1 1972 1 1.871 1961 1.039 1 1973 1 2.371 1962 1.086 1 1974 1 2.640 1963 1.058 1 1975 1 2.646 1964 1.088 1 1976 1 2.952 1965 1.159 1 1977 1 2.900 1966 1.154 1 1978 1 2.925 1967 1.202 1 1979 1 2.970 1968 1.204 1 1980 1 2.943 1969 1.339 1 1981 1 2.921 1970 1.346 Fonte: IBGE, Agência de Campos. TABELA 3 ESTADO CONJUGAL DA POPULAÇÃO DE CAMPOS, POR SEXO, EM % Tipos de Matrimônios* Sexo Civil e Religioso Só Civil Só Religioso Homens 62,8 36 1,2 Mulheres 62,9 35,9 1,2 Fonte: IBGE, VIII Recenseamento Geral, 1970, Série Regional, Volume I, Tomo XVI. * As estatísticas são referentes ao total de homens e mulheres, com 15 anos ou mais, legalmente casados, isto é, excluídas as uniões consensuais. GRÁFICO 8 ESTADO CONJUGAL DAS PESSOAS DE 15 ANOS E MAIS, POR SEXO, EM % 48,6 45,3 41,1 36,5 8,9 Homens Mulheres Sem Declaração 0,1 0,1 Solteriros Viúvos 1,4 2,6 1,9 Descasados Consensuais Casados 6,8 6,5 Fonte: IBGE, VIII Recenseamento Geral, 1970, Série Regional, Volume I, Tomo XVI. * O IBGE computou os dados de 185.700 pessoas maiores de 15 anos, sendo 90.200 homens (48,6%) e 95.500 mulheres (51,4%). O total computado corresponde a 58,2% da população total de Campos que era de 318.806 pessoas. ** Na elaboração das estatísticas, consideramos cada sexo separadamente e não a soma dos dois. *** O IBGE aglutinou, na categoria casados, os casais formalmente casados e as uniões consensuais. Para efeito deste gráfico, separamos os dados relativos aos homens e mulheres formalmetne casados dos unidos consensualmente. **** O IBGE incluiu no total de homens e mulheres os sem declaração de estado conjugal. Fizemos, porém, a separação. 75 Analisando as informações do Gráfico 8 e da Tabela 3, podemos tirar algumas conclusões. Verifica-se, por um lado, a imensa supremacia das uniões formais, civis e/ou religiosas sobre as formas consensuais, não formais, de matrimônio. Por outro, a importância específica dos casamentos exclusivamente civis que superavam a soma das uniões consensuais com àquelas celebradas somente na igreja. Fica evidente que a população campista, incluindo a população pobre, buscava e tinha acesso ao casamento como a principal forma de estabelecer uma união conjugal. A tendência ao casamento formal, civil e/ou religioso, não se configurava em uma singularidade de Campos nem em uma particularidade dos anos 60 e 70. Os dados do IBGE demonstram que pelo menos desde os anos 50, se não de antes, o casamento oficial se constituía na principal forma de união matrimonial, ao menos para todos os municípios do Estado do Rio de Janeiro153. A explicação do porquê dessa adesão dos setores populares ao casamento oficial extrapolaria os objetivos e possibilidades desta pesquisa. Contudo, consideramos pertinente levarmos em conta as vantagens que a legislação civil do período (Código Civil e Estatuto da Mulher Casada) estabelecia em termos de direitos de herança, pecúlio e previdência para a mulher que tivesse o reconhecimento oficial de esposa. Nos anos sessenta e setenta, o Código Civil ainda fazia a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos, dando maior segurança aos filhos cujo nascimento estivesse legitimado pelo casamento dos pais. Um outro fator que pode ter influenciado o interesse pelo casamento era a política de certas empresas e usinas de concederem casas ao seus funcionários, desde que eles fossem casados. Em Campos, várias usinas de açúcar e álcool construíram vilas com casas que eram cedidas aos funcionários com família. A mesma prática foi adotada pela antiga Fábrica de Tecidos cujos(as) funcionários(as) residiam no bairro da Lapa, o mesmo onde a fábrica estava localizada. Também a Rede Ferroviária Federal cedia casas aos seus funcionários casados. Em algumas fazendas da região, os proprietários cediam casas aos funcionários permanentes. 153 Ver, por exemplo, o Recenseamento Geral de 1950 feito pelo IBGE. 76 Como veremos à frente, o desejo e a prática do casamento fizeram parte das vivências de homens e mulheres envolvidos nos crimes de sedução, além de ser um elemento essencial nos pronunciamentos dos profissionais do judiciário154. Ao constatarmos a amplitude que o casamento alcançara em Campos como meio de constituição das relações matrimoniais, nos perguntamos se o interesse pelo casamento não seria uma das motivações ou mesmo a motivação mais significativa para a apresentação da queixa por sedução? E se assim fosse, o interesse pelo casamento decorreria do seu status como um valor moral ou da sua importância e utilidade social? Questões que procuraremos responder no Capítulo V. 1.3- Nas Páginas, Nas Ondas e Nas Telas A questão do casamento como valor remete-nos a outro assunto, vez por outra presente nos pronunciamentos dos profissionais do judiciário que conduziram os processos: a “modernização dos costumes” (a exemplo do uso da minissaia, do biquíni e da pílula anticoncepcional) e seu efeito deletério sobre a família, sobre os “bons costumes” e sobre o caráter dos jovens, induzindo a comportamentos sociais danosos, particularmente pelo estímulo “precoce” e “descontrolado” da sexualidade. Como tais comportamentos “modernos” dos anos 60 e 70 seriam, no dizer dos profissionais do judiciário de Campos, transmitidos pelos meios de comunicação, procuramos refletir até que ponto a população campistas, em especial a população pobre da qual faziam parte os rapazes e moças envolvidos nos processos, teria condições efetivas de absorver os “novos costumes” através dos meios de comunicação. Em 1974, último ano da nossa pesquisa, Campos possuía dois jornais diários com tiragem de 1.972 exemplares e três não-diários com tiragem 417 exemplares aos quais se somavam mais dois periódicos com tiragem de 112 exemplares, para uma 154 Denominamos, por profissionais do judiciário, os promotores, defensores públicos, juízes, procuradores e desembargadores. Em alguns processos aparecem as figuras do assistente da acusação, que é um advogado particular contratado pelo(a) queixoso(a) para auxiliar a promotoria na ação, e o assistente da defesa, que é um advogado particular contratado pelo acusado para auxiliar a defensor público. Apesar de não serem funcionários do aparelho judiciário, a medida que seu trabalho é feito dentro da esfera jurídica, também os incluímos na expressão, profissionais do judiciário. 77 população que em 1970 já era de 321.370 habitantes. Ou seja, a tiragem total dos periódicos locais correspondia a menos de 0,78% da população. Os dados, que conseguimos coletar junto ao IBGE, mostram-nos que durante o período por nós estudado, a grande maioria da população de Campos não dispunha de aparelhos de televisão. Porém, no decorrer dos anos sessenta, a maior parte teve acesso aos aparelhos de rádio. Ao longo dos anos sessenta, o rádio efetivamente transformou-se num importante veículo de transmissão de informações junto à população de baixa renda. Infelizmente, não temos como saber se a programação da época contribuía ou não para a difusão, entre a população pobre de Campos, da “modernização dos costumes” a que se referiam, vez por outra, os profissionais do judiciário. GRÁFICO 9 DOMICÍLIOS PERMANETES, POR UTILIDADES EXISTENTES, EM % 120 63,9 100 80 60 40 53,5 42,1 1970 1960 41,6 23,6 20 0 Energia Elétrica Rádio 0 Televisores Fontes: Para as estatísticas relativas a 1960 usamos o VII Recenseamento Geral do Brasil, 1960, Série Regional, Volume I, Tomo XI, do IBGE; para os dados relativos a 1970, usamos o VIII Recenseamento Geral, 1970, Série Regional, Volume I, Tomo XVI, do IBGE. Apesar da expansão do uso do rádio nos anos sessenta, ele não aparece, nos pronunciamentos dos profissionais do judiciário, como um dos veículos responsáveis pela propagação dos “comportamentos modernos”. Os veículos apontados são sempre a televisão e o cinema. A televisão, como se pode constatar pelo Gráfico 9, era um aparelho com presença em um número muito reduzido de lares campistas e, muito provavelmente, ausente nas casas dos homens e mulheres pobres que constam dos processos. Quanto aos cinemas, Campos contava em 1974 com 14 salas de projeção 78 somando 6.661 lugares, com a exibição de 139 sessões semanais. Entretanto, além da existência da censura (considerada insuficiente por alguns profissionais do judiciário), ele não era, conforme demonstraremos à frente, a opção de lazer preferencial das ofendidas. A primeira vista, os dados sobre circulação de jornais e o número de aparelhos de televisão em Campos poderiam nos levar a imaginar um alto nível de desinformação por parte da população pobre. Entretanto, é possível supor que, apesar de não ter acesso direto aos jornais e aparelhos de televisão, a parcela pobre da população (da qual fazem parte os personagens dos processos) poderia ter acesso indireto às informações e valores transmitidos pelos jornais e pela televisão. Por um lado, há a possibilidade de um mesmo exemplar de jornal ser lido por mais de uma pessoa e um mesmo aparelho de televisão ser utilizado por mais de uma família. Por outro, certamente as informações transmitidas por aqueles órgãos de comunicação circulavam também através dos contados entre os que liam jornais e assistiam aos programas de televisão e aqueles que não dispunham de acesso direto aos jornais e tevês. Temos ainda que as informações veiculadas pelos jornais e pelas emissoras de tevê, provavelmente, eram também difundidas pelas emissoras de rádio e estas, em 1960, já podiam ser captadas, diretamente, por quase a metade dos lares campistas. Dessa forma, parece-nos razoável supor que as informações e valores transmitidos pelos meios de comunicação chegavam, direta ou indiretamente, ao conhecimento das camadas de baixa renda da população campista. Porém, em nossa opinião, os dados não nos permite atribuir à televisão e ao cinema, como fizeram alguns profissionais do judiciário, a causa explicativa dos comportamentos amorosos e sexuais das ofendidas e acusados. Mas como eram os rapazes ofensores e as moças ofendidas? Como viviam e sobreviviam? Como eram seus laços familiares? Até que ponto se assemelhavam ou não ao conjunto da população pobre de Campos em condições e atitudes? 79 2. AS CONDIÇÕES SOCIAIS DE EXISTÊNCIA Em relação às suas condições sócio-econômicas, todas as ofendidas foram classificadas como pobres, situação comprovada legalmente pela apresentação do atestado de miserabilidade, fornecido pelo delegado, após, aparentemente, proceder à investigação da vida econômica do(a) queixoso(a). Esta condição de moça pobre, imprescindível para que o ministério público pudesse oferecer a denúncia, foi aceita pelos promotores e juízes, mesmo nos casos em que o defensor a questionava por ter o queixoso contratado advogado particular para atuar como assistente da acusação, fato que ocorreu em apenas 4 casos ou 7,4% dos 53 processos pesquisados. Por sua vez, os acusados foram identificados como pobres pela autoridade policial em 90,7% dos casos; como remediados em 5,6% e, em 3,7% não consta nenhuma classificação. Dentre eles, apenas 6 ou 11,1% puderam pagar um advogado particular para funcionar como assistente da defesa. Também as profissões dos(as) queixosos(as), isto é, dos responsáveis legais pela ofendidas e a quem cabia, legalmente, o direito de apresentar a queixa, indica-os(as) como pessoas simples, com baixo nível de renda (Tabela 4). Não fica claro, nos processos, que critérios foram usados pela autoridade policial para qualificar os envolvidos (acusados, queixosos(as), ofendidas e testemunhas) como pobres ou miseráveis. Provavelmente, os policiais que procederam ao interrogatório inicial e fizeram os autos de qualificação basearam-se nas informações do(a) depoente sobre sua atividade profissional e, em alguns casos, sobre a renda do(a) depoente. De qualquer forma, a classificação profissional dos envolvidos nos processos coloca-os como integrantes da população de baixa renda do município155. Nesse sentido, entendemos ser plausível considerá-los como representantes do que estamos a denominar de populares, setores populares ou camadas populares de Campos. 155 Mesmo os classificados como Lavradores eram, certamente, pequenos proprietários rurais cujo padrão de renda, muitas vezes, os mantinham em condições modestas. Dados de 1970 demonstram que 60,7% dos proprietários rurais do município possuíam propriedades com até 10 hectares, sendo que 12% viviam em propriedades com menos de 1(um) hectare, 45% possuíam propriedades de até 5 hectares e somente 12% possuíam propriedades com mais de 50 hectares de extensão. 80 TABELA 4 ATIVIDADES EXERCIDAS PELOS POPULARES, EM % Populares Atividades Ofendida Acusados Queixosos(as) s Do lar* 64,1 0 37,7 0 Doméstica** 30,2 0 1,9 0 Estudante 3,8 1 0 1,9 Comerciário(a) 1,9 1 3,8 1,9 Funcionário Público 0 1 5,7 11,3 Industriário*** 0 3 0 3,8 Lavrador(a)**** 0 1 15,1 13,1 Motorista 0 7 0 7,5 Pedreiro 0 5 3,8 5,7 Trabalhador Rural***** 0 2 1,9 0 20,8 Não disponível 0 0 20,7 0 0 Outros****** 0 3 9,4 0 34 Total 1 1 100 100 100 Fonte: 53 processos arquivados no Fórum de Campos dos Goytacazes. * Ofendida ou queixosa que exercia atividade doméstica no próprio lar, sem indicação de que obtivessem ganho econômico. ** Ofendida ou queixosa que exerce atividade doméstica remunerada, empregada doméstica. *** Trabalhador da usina, com registro em carteira, que trabalha no fabrico do açúcar e do álcool, é um operário. **** Pequeno proprietário rural. ***** Trata-se do assalariado rural que trabalha no plantio e colheita da cana-de-açúcar, forma o proletariado rural do município e se subdivide em dois grupos: os que possuem registro em carteira e os que são contratados apenas no período da safra (os bóias-frias). Ele é classificado como trabalhador rural por desempenhar uma atividade agrícola que tanto poderia estar localizada na "roça" (área rural) como na área urbana, pois nos anos 60 e 70, algumas usinas estavam localizadas e possuíam canaviais na área urbana do município. ****** Inclui todas as profissões de baixa renda exercidas pelos acusados e queixosos que aparecem nos processos, como lanterneiro, bombeiro hidráulico, campeiro, mecânico de bicicleta, vendedor e tirador de areia. 2.1 – Trabalho e Papéis Sexuais Nos processos-crimes por sedução que pesquisamos em Campos, pudemos constatar que os homens dispunham de uma gama de opções profissionais e de possibilidades no mercado de trabalho bem mais amplas que as mulheres ofendidas156. De forma similar ao que foi constatado para o mercado de trabalho em sua totalidade, isto é, relativo ao total da população campista, também entre os homens e mulheres envoltos nos processos, observamos uma clara desigualdade no acesso às possibilidades profissionais presentes no mercado, sempre em 156 Situação idêntica foi percebia por Martha Abreu para o Rio de Janeiro da Belle Époque e por Cristina Donza para Belém, no mesmo período. Ver ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., pp. 150-151 e CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., pp. 53-57. No caso de Campos, os dados dos processos confirmam o que as estatísticas do IBGE já havia revelado, a desigualdade de gênero no acesso ao mercado de trabalho. 81 desfavor das mulheres. Manifesta-se assim, no plano micro (nos processos), a divisão sexual das funções com as mulheres, majoritariamente, envolvidas nas atividades domésticas dentro da própria casa ou prestando serviços em “casas de família”. A divisão sexual do trabalho fica também evidenciada quando analisamos as profissões das testemunhas. Quase todas as testemunhas femininas atuam no espaço doméstico - do qual os homens estão totalmente ausentes - como donas de casa ou empregadas domésticas, enquanto para os homens, o mercado de trabalho era mais variado. Ou seja, através dos processos, podemos perceber que o mercado de trabalho de Campos nos anos 60 e 70 era seletivo e altamente restritivo quanto às oportunidades de trabalho para as mulheres (Tabela 5). TABELA 5 Profissões Comerciante Comerciário(a) Desempregado(a) Do lar Doméstica Func.(a) Público Industriário Lavrador(a) Motorista Pedreiro Trab.(a) Rural Outras Total PROFISSÕES DAS TESTEMUNHAS, EM % Das Testemunhas Masculinas Das Testemunhas Femininas Dos acusados* Das ofendidas** Dos acusados*** Das ofendidas**** 6,7 6,7 5 0 0 8,3 5 28,3 5 3,3 5 26,7 100 8,2 6,1 0 0 0 6,1 10,2 22,5 4,1 2 16,3 24,5 100 0 0 0 100 0 0 0 0 0 0 0 0 100 0 1,3 0 79,2 16,9 0 0 0 0 0 0 2,6 100 Subtotal Por Sexo Masculinas***** Femininas****** 7,3 6,4 2,8 0 0 7,3 7,3 25,7 4,6 2,8 10,1 25,7 100 0 1,2 0 80,5 15,9 0 0 0 0 0 0 2,4 100 Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. * Percentuais referentes ao total das testemunhas masculinas dos acusados (60). ** Percentuais referentes ao total das testemunhas masculinas das ofendidas (49). *** Percentuais referentes ao total das testemunhas femininas dos acusados (5). ****Percentuais referentes ao total das testemunhas femininas das ofendidas (77). ***** Percentuais referentes ao total das testemunhas masculinas (109). ******Percentuais referentes ao total das testemunhas femininas (82). Obs: Há de se destacar que nenhuma testemunha foi qualificada como estudante, exceto as ofendidas, que são sempre classificadas como a primeira testemunha da acusação. Para efeito desta pesquisa, não incluímos as ofendidas entre as testemunhas Tal qual acontece com as ofendidas e com as queixosas, também entre as testemunhas femininas não só predominam as atividades ligadas aos cuidados com a casa, como outrossim, a função de dona de casa é percentualmente muito mais expressiva que a de “doméstica”, a da mulher que trabalha em “casas de família” em troca de salário. Este dado, revelado pela Tabela 5, deve ser conjugado aos da tabela 82 sobre estado civil das testemunhas (Tabela 6), que nos mostram ser a maioria das testemunhas femininas casada. Consideramos razoável supor ser forte, na época, a tendência entre os trabalhadores de baixa renda, que as mulheres, ao casarem, se entregassem, se não exclusivamente, ao menos de forma predominante, aos afazeres domésticos, não ingressando ou até mesmo saindo do mercado de trabalho, demonstrando estarem as suas relações conjugais e familiares baseadas na divisão sexual das funções. Cabia ao marido o sustento do lar, enquanto à mulher cabia a realização dos serviços domésticos e o cuidado dos filhos. É possível que algumas das mulheres classificadas como “do lar” realizassem, nas próprias casas, serviços domésticos “para fora”, porém, sem vínculo empregatício. TABELA 6 ESTADO CIVIL DAS TESTEMUNHAS POR SEXO, EM % Das Testemunhas Masculinas Das Testemunhas Femininas Subtotal Por Sexo Estado Civil Dos acusados* Das ofendidas** Dos acusados*** Das ofendidas**** Masculinas***** Femininas****** Casado(a) 58,3 57,2 40 55,8 57,8 54,9 Solteiro(a) 38,3 38,8 20 27,3 38,5 26,8 Viúvo(a) 3,4 2 40 15,6 2,8 17,1 Amasiado(a) 0 2 0 1,3 0,9 1,2 Separado(a) 0 0 0 0 0 0 Total 100 100 100 100 100 100 * Percentual referente ao total das testemunhas masculinas dos acusados (60). ** Percentual referente ao total das testemunhas masculinas das ofendidas (49). *** Percentual referente ao total das testemunhas femininas dos acusados (5). **** Percentual referente ao total das testemunhas femininas das ofendidas (77). ***** Percentual referente ao total das testemunhas masculinas (109). ****** Percentual referente ao total das testemunhas femininas (82). Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. Obs: O estado civil foi declarado pelas testemunhas em juízo. Observando o estado civil das testemunhas - onde o percentual daquelas que vivenciavam alguma forma de união matrimonial é superior ao das solteiras157 - verificamos, mais uma vez, a tendência dos populares a buscarem uma união matrimonial, preferencialmente o casamento158. 157 Diferentemente do que ocorre com os(as) queixosos(as), no caso das testemunhas, não localizamos, nos processos, documentos que pudessem nos confirmar o estado civil declarado nos depoimentos. Porém, em apenas um caso a testemunha disse ser casada, mas foi desmentida pelo companheiro, que também era testemunha na mesma ação, e que afirmou não serem casados mas viverem juntos, como companheiros. A testemunha inclusive afirma não saber por que da sua companheira ter declarado serem casados. 158 No caso dos(as) queixosos(as), a diferença entre os(as) que estavam maritalmente unidos(as) - casados(as) ou amasiados(as) - mais os(as) que vivificaram uma experiência matrimonial [viúvos(as)], contraposta aos(as) solteiros(as) é de 39,6% a favor dos(as) casados(as); em se tratando das testemunhas, temos 23% a mais de testemunhas masculinas casadas, amasiadas ou viúvas e 46,4% a mais de testemunhas femininas na mesma situação, em comparação com as solteiras. 83 O(a) leitor(a) ao comparar as informações sobre o estado conjugal da população campista fornecidas pelo IBGE e expressas no gráfico 8, com os dados sobre estado civil das testemunhas que levantamos através dos processos e que estão expostos na tabela 6, poderá ficar com a impressão de que os dados são conflitantes. Os percentuais de solteiros e casados do gráfico 8 são inferiores aos constantes na tabela 6. A aparente contradição entre os dados poderia sugerir que entre os classificados como solteiros, tanto no gráfico 8 como na tabela 6, poderiam estar também pessoas que viviam amasiadas e que não quiseram relatar seu verdadeiro estado conjugal. A hipótese é razoável e não a descartamos por completo, porém pensamos que os dados não são conflitantes e que há uma outra explicação para as diferenças entre os percentuais. Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que os dados servem de referência, indícios para o desenvolvimento das reflexões e conclusões. Não são “provas” absolutas de nada. Em segundo, as diferenças entre os percentuais do gráfico 8 e da tabela 6, provavelmente se expliquem pelo fato do gráfico 8 ter sido produzido com dados relativos a pessoas com 15 (quinze) anos ou mais, enquanto a faixa etária das testemunhas é mais alta. Consideramos plausível supor que na faixa entre os 15 e os 20 anos existia um número de jovens solteiros que explique o maior percentual de solteiros no gráfico 8 em relação à tabela 6. Por outro lado, se estivermos corretos em nosso raciocínio, o percentual de casados revelado pelo gráfico 8 ganha um relevo ainda maior159. 159 A partir das informações constantes dos processos, pudemos constatar que somente 20% das testemunhas femininas dos acusados, o que corresponde a 1 (uma) testemunha, estava na faixa etária entre os 17 e os 20 anos; 40% (duas testemunhas) na faixa entre os 21 e os 40 anos e 40% (duas testemunhas) na faixa acima dos 40 anos. No caso das testemunhas femininas das ofendidas, 1,3% (uma testemunha) estava entre os 14 e os 16 anos; 9,1% (sete testemunhas) estavam entre os 17 e os 20 anos; 20,8% (dezesseis testemunhas) entre 21 e 30 anos; 27,3% (vinte e uma testemunhas) entre 31 e 40 anos e 40,2% (trinta e uma testemunhas) com mais de 40 anos. Em relação às testemunhas masculinas dos acusados, 6,7% (quatro testemunhas) estavam entre os 17 e os 20 anos; 36,7% (vinte e duas testemunhas) entre 21 e 30 anos; 20% (doze testemunhas) entre 31 e 40 anos; 26,7% (dezesseis testemunhas) com mais de 40 anos e 10% (seis testemunhas) não tiveram a idade identificada. No tocante às testemunhas masculinas das ofendidas, 2% (uma testemunha) estava na faixa de 17 à 20 anos; 22,4% (onze testemunhas) entre 21 e 30 anos; 38,8% (dezenove testemunhas) estavam entre os 31 e os 40 anos; 34,7% (dezessete testemunhas) estavam com mais de 40 anos e 2% (uma testemunha) não teve a idade registrada. 84 2.2- Morando Com os Pais Uma outra característica importante das jovens ofendidas de Campos nos anos 60 e 70 era a sua estrutura familiar. Observando o tipo de família em que viviam as moças ofendidas nos processos-crimes que analisamos, verificamos que seus laços familiares eram bem diferentes dos vivificados pelas moças ofendidas, cariocas e belenenses da Belle Époque, estudadas, respectivamente, por Martha Abreu e Cristina Donza, conforme demonstram as Tabelas 7, 8 e 9. No caso das ofendidas campistas, 81,5% viviam dentro de uma família nuclear, isto é, com os pais (pai e mãe) 160. Essa constatação é fortalecida pelos dados de outro levantamento estatístico possibilitado pela análise das cópias das certidões de nascimento das ofendidas anexadas aos processos, as quais indicam a situação dos avôs (paternos e maternos) das ofendidas. Apenas 21% dos avôs não reconheceram os seus filhos e filhas - pais e mães da ofendidas - mas não sabemos se viveram ou não com as avós; 45,3% dos avôs (paternos e maternos) reconheceram seus filhos e filhas, mas não eram oficialmente casados com as avós (não sendo possível perquirir o percentual de amasiados); 33,7% dos avôs (paternos e maternos) reconheceram seus filhos e filhas e casaram-se oficialmente com as avós (não sendo possível verificar o percentual de separados). Quanto aos pais das ofendidas, 20,4% não são conhecidos (não registraram as filhas); 25,9% dos pais são conhecidos (registraram as filhas), mas não eram casados oficialmente com as mães das ofendidas (sendo que uma parte deles vivia amasiada com as mães das ofendidas) e, o mais importante, 160 Martha Abreu constatou em sua pesquisa que a maioria das ofendidas não possuía uma família do tipo nuclear (pai e mãe). 15,9% viviam com o pai e a mãe; 7,9% viviam somente com o pai; 48,9% viviam somente com a mãe e 27,2% não viviam nem com o pai nem com a mãe. Concluiu, então, ser predominante a chefia feminina nessas famílias. Por sua vez, Cristina Donza localizou, em Belém do Pará, uma estrutura familiar que se assemelhava à encontrada por Martha Abreu no Rio de Janeiro. Em Belém, 35% das ofendidas viviam somente com a mãe; 1% somente com o pai; 15% com o pai e a mãe; 17% com tutores; 17% com outros familiares; 3% com o ofensor e 12% não deram informações de com quem viviam. Cristina Donza conclui que as ofendidas residiam predominantemente com as mães, “em lares onde predominava a matrifocalidade”. Sendo que as mães, algumas vezes, se declaravam viúvas ou solteiras, porém mantinham relações de amasiamento, “evidenciando que a despeito de haver a predominância de lares chefiados por mulheres, isto não implicava necessariamente na ausência masculina nos mesmos”. Ver ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 160 e CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., pp. 60-61. 85 54,7% dos pais (pai e mãe) eram oficialmente casados (aqui, certamente, estão incluídos alguns poucos casos nos quais a mãe era viúva)161. TABELA 7 ESTADO CIVIL DOS(AS) QUEIXOSOS(AS), EM % Estado Civil % Casado(a) 54,7 Solteiro(a)* 30,2 Viúvo(a) 7,5 Amasiado(a) 5,7 Separado(a) 1,9 Total 100 Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. * Não separamos pai solteiro e mãe solteira. TABELA 8 ESTRUTURA FAMILIAR DAS OFENDIDAS EM % ONDE ELAS MORAVAM Morada % Com os pais (pai e mãe) 81,1 Com os patrões 11,3 Com parentes* 7,5 Total 100 Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. * Não encontramos a figura do parente fictício. TABELA 9 A HERANÇA MATRIMONIAL DAS OFENDIDAS, EM % Herança Matrimonial % Avô materno desconhecido** 8,4 Avô paterno desconhecido** 12,6 Avôs maternos conhecidos e casados*** 21,1 Avôs maternos conhecidos mas não casados**** 20 Avôs paternos conhecidos e casados*** 12,6 Avôs paternos conhecidos mas não casados**** 25,3 Pai desconhecido***** 20,4 Pais conhecidos e casados****** 53,7 Pais conhecidos mas não casados******* 25,9 Fonte: 53 processos arquivados no Fórum de Campos dos Goytacazes. *Refere-se à existência ou não, nas famílias das ofendidas, da prática de registrar-se oficialmente os filhos e filhas e realizar-se ou não o casamento civil. **Casos em que os avôs não fizeram o reconhecimento oficial do filho ou filha, pai ou mãe da ofendida. Não temos como saber se os avôs viveram ou não com as avós. *** Casos em que os avôs registraram os filhos e filhas e eram legalmente casados com as avós. **** Casos em que os avôs fizeram o registro civil dos filhos e filhas mas não casaram oficialmente com as avós. Não sabemos se viveram com elas. *****Casos em que os pais não fizeram o registro civil das filhas. Não sabemos se viviam amasiados com as mães. ******Casos em que os pais registraram as filhas e casaram legalmente com as mães. *******Casos em que os pais registraram as filhas, mas não casaram oficialmente com as mães. Não sabemos se viviam juntos. 161 Estes dados são coerentes com as estatísticas do IBGE que demonstram a predominância, no conjunto da população, do casamento como meio de realização das uniões conjugais. As diferenças entre os percentuais do IBGE (Gráfico 8) e estes constantes do parágrafo, deve-se ao fato de o IBGE fazer sua pesquisa com pessoas a partir dos 15 anos, enquanto a faixa etária dos(as) queixosos(as) era bem mais elevada. 3,8% dos(as) queixosos(as) [dois queixosos(as)] estavam entre 25 e 35 anos; 47,2% [vinte e cinco queixosos(as)] entre 36 e 46 anos; 32,1% [dezessete queixosos(as)] entre 47 e 57 anos; 9,4% [cinco queixosos(as)] entre 58 e 68 anos e 7,5% [quatro queixosos(as)] não tiveram a idade registrada. 86 As estatísticas produzidas a partir dos dados coletados nos processos (através dos depoimentos, cópias das certidões de nascimento, atestados de antecedentes criminais e boletins individuais dos acusados), mostram-se coerentes com os dados apresentados pelo IBGE, relativos ao estado civil da população campista nos anos 70. Podemos ver a importância do casamento, entre os pais e mães das ofendidas, como mecanismo de regulação das uniões conjugais e a tendência à formação de famílias nucleares. Temos, portanto, um quadro distinto do que foi demonstrado por Martha Abreu e Cristina Donza para a Belle Époque carioca e belenense, respectivamente162. No Capítulo I, vimos que as políticas e discursos voltados à morigeração dos comportamentos sociais, particularmente das atitudes femininas, buscaram, desde a Colônia, estabelecer o casamento como o meio legítimo de constituição das uniões conjugais e o “lar” como sendo o lugar ideal para o cotidiano das mulheres. No caso das jovens ofendidas de Campos, à primeira vista, poder-se-ia imaginar que elas viviam em conformidade com as antigas políticas de normatização posto que, em sua maioria, eram filhas de pais casados e a maior parte delas foi classificada como sendo “do lar”, ou seja, moças que não possuíam emprego - poucas eram estudantes - e, portanto, realizavam seus afazeres domésticos cotidianos dentro da própria casa163, conforme demonstra a tabela 4. Uma constatação importante é que a soma dos percentuais das atividades que tornavam necessária a saída das moças para fora do lar, para estudar ou trabalhar, é de 35,9%, um pouco mais da metade das que atuavam dentro da própria casa, 64,1%. Isto, porém não significa que as ofendidas classificadas como “do lar” viviam enclausuradas, sem contatos com a rua. Em alguns depoimentos dessas moças, pudemos 162 Cf. ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 160. Cf. CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., pp. 60-61. Na classificação profissional das ofendidas, feita com base nos processos, usamos a denominação de “doméstica” para aquelas mulheres que vendiam a sua força de trabalho em “casas de família” (geralmente consta dos processos o endereço do emprego ou referências a ele); e, denominamos como “do lar” as mulheres que atuavam dentro da própria casa, a princípio, sem remuneração. Esta forma de conceituar os termos corresponde aos sentidos com que eles são empregados nos processos. Entretanto, mesmo que no grupo das mulheres “do lar” existissem algumas que exercessem trabalho remunerado, isto não invalidaria a tabela 4 (ver página 80), visto que a contraposição que pretendemos visualizar - e que marcaria uma diferenciação entre as mulheres campistas dos anos 60 e 70 do século XX em relação às mulheres cariocas e belenenses da Belle Époque - não é entre mulheres com e sem remuneração, mas entre mulheres que, por necessidade de sobrevivência, precisavam circular pelas ruas, sair de casa, e as que não precisavam. 163 87 constatar que ser “do lar” não impedia o contato com pessoas de fora do círculo familiar, nem reduzia à família os grupos de contato e convivência das ofendidas. A leitura dos processos nos permitiu ver que, através das atividades de lazer, principalmente, festas e bailes, as moças ofendidas tinham contatos com pessoas de fora do seu círculo familiar; inclusive com os namorados. Além desses, havia também os relacionamentos com vizinhos e conhecidos. Entretanto, se a casa não era uma clausura e não impedia contatos com os “de fora”, para a maioria das ofendidas a casa era o lugar onde o cotidiano se desenvolvia. Ressalte-se, porém, não haver indícios claros de que ser “do lar” fosse uma opção das moças e nem mesmo o resultado de uma postura rigidamente zelosa por parte dos seus pais ou responsáveis. Esta condição de ser “do lar” tanto poderia advir do desvelo dos pais por suas filhas, uma tentativa de mantê-las sob controle, sob maior vigilância e, quiçá, preservá-las “puras” para o casamento; como também poderia ser uma conseqüência da estrutura do mercado de trabalho regional (mas não só regional), onde as oportunidades de trabalho, para as mulheres, eram mais restritas e o preço da força de trabalho feminino era significativamente menor do que o da força de trabalho masculina. Assim, talvez não compensasse, em termos econômicos, a sua entrada na população economicamente ativa, desde que os seus pais tivessem condições mínimas de sustentá-las até um futuro casamento, quando elas passariam à “responsabilidade dos maridos”. Na historiografia sobre crimes de defloramento ou sedução produzida por Martha Abreu, Sueann Caulfield e Karla Bessa, não constam referências às relações familiares dos acusados. Cristina Donza registra somente o estado civil dos acusados164. Em nossa pesquisa, foi-nos possível somente registrar com quem viviam os acusados assim mesmo de forma incompleta, pois vários indicaram o endereço, mas não revelaram se residiam sozinhos ou com alguma companhia (Tabela 10). Pudemos, também, constatar o estado civil (Tabela 11). Em relação a herança matrimonial165, 164 Em 75 processos Cristina Donza localizou 59% de solteiros, 15% de casados e 26% de acusados sem registro do estado civil. Cf. CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., p. 64. 165 Denominamos por “herança matrimonial” o tipo de atitude dos pais (pai e mãe) e dos avós (avô e avó) das ofendidas e acusados no estabelecimento das suas uniões conjugais, se o casamento ou formas consensuais; se com ou sem a prática de registrar-se os(as) filhos(as). Claro que a “herança familiar” não implicava em uma norma inflexível que teria de ser inexoravelmente reproduzida pela ofendida ou pelo acusado, mas serve para demonstrarnos até que ponto o casamento e o reconhecimento dos(as) filhos(as) era ou não uma prática presente nas famílias dos envolvidos nos processos. A noção de “herança matrimonial” leva-nos a refletir se a existência, nas famílias dos acusados e ofendidas, do “habitus” de casar e registrar a prole, influenciou a decisão de apresentar a queixa, 88 somente conseguimos informações relativas aos pais, não tendo sido possível levantar dados suficientes em relação aos avôs dos acusados (Tabela 12). TABELA 10 ESTRUTURA FAMILIAR DOS ACUSADOS, EM % COM QUEM ELES VIVIAM Morada % Pais 51,8 Esposa 7,4 Outros 7,4 Amásia 3,7 Emprego 3,7 Sós 1,9 Sem referência 24,1 Total 00 Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. TABELA 11 ESTADO CIVIL DOS ACUSADOS, EM % Estado Civil % Solteiro 83,0 Casado 13,2 Amasiado 3,8 Total 100 Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. TABELA 12 ESTRUTURA FAMILIAR DOS ACUSADOS, EM % A HERANÇA MATRIMONIAL Herança Matrimonial % Pais conhecidos e casados** 47,2 Pais conhecidos mas não casados*** 20,8 Pais desconhecidos **** 32 Total 100 Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. *Esta tabela contém somente os dados relativos aos pais (pai e mãe) dos acusados por não ter sido possível obtermos informações suficientes sobre os avôs. **Casos em que os pais eram legalmente casados com as mães e reconheceram o filho. Pode haver casos de pais separados, mas legalmente ainda casados *** Casos em que os pais reconheceram legalmente os filhos, mas não casaram com as mães. Não sabemos quantos eram amasiados. **** Casos em que os pais não fizeram o reconhecimento legal dos filhos. Não sabemos se viviam ou não com as mães dos acusados. tornando pública uma situação constrangedora. Perguntamo-nos se a herança matrimonial descoberta nos processos não tendia a produzir, nas ofendidas e nos seus pais, expectativas matrimoniais. 89 Analisando as tabelas, percebemos que, similarmente às ofendidas, mas não sabemos se pelas mesmas razões, a maioria dos acusados vivia com os pais. Dentre os que deram informações sobre com quem viviam, o número dos que afirmaram viver com a esposa é o dobro dos que admitiram viver com amásias166. O percentual dos que afirmaram viver com os pais é compatível com o percentual de acusados solteiros, o que talvez esteja a indicar que, assim como as ofendidas, também os rapazes tendiam a ficar no interior do lar paterno, até que saíam para constituir a própria família. É claro que ficar na casa paterna até o casamento não deveria ter, para os rapazes, em termos de sentido moral, o mesmo significado que para as moças. Pela tabela 12, podemos perceber uma “herança matrimonial” onde o casamento e o reconhecimento legal dos filhos pelos pais se dava em escala menor que com as ofendidas. Entretanto, é expressivo o percentual de pais casados e que reconheceram “legitimamente” seus filhos, constituindo, ao menos em termos formais e, por um certo período, famílias nucleares. Entre os acusados, 9,3% disseram ter filhos, não nos sendo possível quantificar o percentual dos que foram reconhecidos legalmente pelos acusados. Percebemos, portanto, que havia uma considerável diferença entre as estruturas familiares das moças ofendidas e demais envolvidos nos crimes de sedução/defloramento, do Rio de Janeiro e de Belém da Belle Époque167, em relação à estrutura familiar das ofendidas campistas e demais envolvidos nos processos dos anos sessenta e setenta do século XX. Entre as ofendidas de Campos, predominava a família do tipo nuclear e o casamento era um elemento importante, presente na constituição dos laços matrimoniais. Devia, portanto, ser um referencial, um elemento com significação para os homens e mulheres das camadas populares de Campos. 166 Se tomarmos como referência os acusados casados e amasiados que, supostamente, mantiveram relações sexuais com as ofendidas, teríamos um percentual de 17% de maridos ou amásios infiéis. Um percentual talvez baixo para uma sociedade que se tem mostrado indulgente com a violação masculina das normas que o Código Civil institui para o matrimônio. Sobre a infidelidade masculina e feminina no olhar jurídico, ver OLIVERIA, José Lopes de. Manual de Direito de Família. Apud. CORRÊA, Mariza. Op. cit., p. 89. 167 Ver ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., pp. 160-163. Cf. CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., p. 60. 90 3. EDUCAÇÃO E “COR” Analisando as condições educacionais dos homens e mulheres presentes nos processos, notamos que, apesar de ser expressivo o percentual de ofendidas “alfabetizadas” (Tabelas 14 e 15), o percentual das que se declaram estudantes no momento em que depuseram na delegacia (3,8%), é indicativo de que a permanência dessas jovens na escola era curta, o suficiente para aprenderem os rudimentos da escrita e da leitura168. O nível de escolaridade atingido não indica uma busca pela qualificação profissional e a maioria das ofendidas não saiu da escola para o mercado de trabalho, mas para as funções “do lar” (64,1%). Provavelmente, no universo cultural dos homens e mulheres de baixa renda pesquisados, por suas parcas expectativas de ascensão sócio-econômica, bastasse a uma rapariga - para o exercício das suas futuras e desejadas funções de dona de casa, esposa e mãe - o saber “ler e escrever” (que, às vezes, significava somente saber assinar o próprio nome) e o conhecimento dos afazeres domésticos. É o que podemos deduzir, por exemplo, do que disse a queixosa Marta Barcelos ao depor em juízo no dia 20 de setembro de 1974, “que sua filha era alfabetizada e sabia muito de serviços domésticos e era muito inteligente”169. A análise dos processos permitiu-nos, outrossim, observar os vínculos entre a “cor” dos homens e mulheres presente nos processos e o acesso desse setor da população pobre de Campos à educação. Para isso nos favoreceu o fato de sempre ter-mos podido localizar a “cor” das ofendidas e comparar a informação registrada na certidão de nascimento com a constante no exame de conjunção carnal, no termo de declarações prestadas pelo(a) queixoso(a) na delegacia, nos termos de qualificação e nos depoimentos prestados, tanto na delegacia como em juízo, onde o quesito “cor” geralmente foi registrado170. 168 Na pesquisa da Cristina Donza temos 45% de alfabetizadas; 22% de analfabetas e 33% sem registro de escolaridade. Ver CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., p. 59. 169 Processo nº 10.803, maço 567, folha 33. 170 Não nos cabe, por extrapolar os objetivos específicos desta pesquisa, uma discussão teórica sobre os conceitos de raça, “cor” e etnia. Também não sabemos dizer com quais critérios as pessoas envolvidas nos processos foram classificadas como brancas, pardas ou pretas; provavelmente o foram a partir da “percepção” da tonalidade da pele por quem fez o registro, o que certamente não é um “bom” critério por sua grande carga de subjetividade. Porém, esses registros são oficiais e não foram contestados quer pelas autoridades quer pelos envolvidos, sendo, portanto, o referencial que dispomos e que, pensamos, devem expressar o “senso comum” sobre a condição “racial” das pessoas registradas. 91 No tocante aos acusados, também foi possível localizar referências à “cor” de todos eles. Geralmente, a “cor” dos acusados pôde ser identificada através do boletim individual anexo no final de cada processo. Outras referências foram as declarações dos(as) queixosos(as), os autos de qualificação e os depoimentos dos acusados, prestados tanto na polícia quanto em juízo, onde o item “cor”, via de regra, foi informado. Em alguns processos em que o acusado era menor de 21 anos, pudemos localizar cópias das certidões de nascimento. Também a “cor” de quase todos(as) os(as) queixosos(as) foi registrada. Somente a “cor” das testemunhas é que não mereceu registro nem na polícia, nem em juízo. A Tabela 13 revela-nos, primeiramente, a proximidade dos índices relativos à “cor” dos(as) queixosos(as) com os das ofendidas, o que talvez seja um indício de coerência nos dados. TABELA 13 CLASSIFICAÇÃO DOS POPULARES PELO ITEM "COR", EM % Os Populares, em % "Cor" Acusados Ofendidas Queixosos(as) Branca 50,9 37,8 32,1 Parda 35,9 39,6 32,1 Preta 13,2 22,6 26,4 Sem referência 0 0 9,4 Total 100 100 100 Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. TABELA 14 ESOLARIDADE DAS OFENDIDAS, EM % Nível % Alfabetizada* 94,3 Analfabeta 5,7 Total 100 Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. * Raramente foi informada a série, a mais elevada que encontramos foi a 3ª série primária. TABELA 15 ESCOLARIDADE E “COR” DAS OFENDIDAS EM % Nível/Cor % Branca lê e escreve 37,7 Branca não lê nem escreve 0 Parda lê e escreve 37,7 Parda não lê nem escreve 1,9 Preta lê e escreve 18,9 Preta não lê nem escreve 3,8 Total 100 Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. 92 TABELA 16 ESCOLARIDADE E “COR” DAS OFENDIDAS CONFORME A COMPOSIÇÃO ÉTNICO/RACIAL DOS PROCESSOS, EM % Nível/Cor % Branca lê e escreve* 100 Branca não lê nem escreve 0 Parda lê e escreve** 95,2 Parda não lê nem escreve 4,8 Preta lê e escreve*** 83,3 Preta não lê nem escreve 16,7 *Para a estatística das moças brancas utilizamos 20 processos. ** Para a estatística das moças pardas utilizamos 21 processos. *** Para a estatística das moças pretas utilizamos 12 processos. A Tabela 16, elaborada de acordo com a composição étnico/racial 171 dos processos, permite-nos perceber que, por um lado, é significativo o percentual das ofendidas “pretas” classificadas como sabendo “ler e escrever”, por outro, é exatamente neste grupo de ofendidas que encontramos o maior percentual de analfabetas. Entre as moças “brancas”, o analfabetismo não foi detectado e entre as “pardas” ele é inexpressivo. O percentual de “pretas” alfabetizadas (83,3%; pela Tabela 16) não significa a igualdade racial no acesso às oportunidades nos Campos dos Goytacazes. A Tabela 15 mostranos a distância existente entre “brancas”, “pardas” e “pretas” em relação à instrução. A estatística revelada pela Tabela 16, provavelmente, reflete a expansão da rede pública de ensino, na qual as moças “pretas”, ao que parece, ingressaram de forma expressiva, fazendo crescer consideravelmente, no próprio grupo étnico/racial, o número das alfabetizadas. Porém, comparativamente aos demais grupos étnicos/raciais, este crescimento continuava a revelar um quadro de acesso desigual ao ensino. Este é um fato que podemos, ao menos nesta pesquisa, somente constatar escapando-nos a possibilidade de oferecer explicações. No tocante aos acusados, temos também um grande percentual dos que foram classificados como sabendo “ler e escrever” (Tabelas 17 e 18)172. Porém, 171 Para esta tabela a referência foi o que ocorre dentro de cada grupo étnico/racial, ou seja, dentro do grupo das ofendidas “brancas” (20) quantas eram alfabetizadas e quantas não. A comparação, portanto, foi feita dentro de cada grupo e não entre eles como ocorreu na tabela anterior “Escolaridade e “Cor” das Ofendidas em %” (tabela 15, página 91). O mesmo método foi utilizado com as ofendidas “pretas” e “pardas”, e para as tabelas relativas à escolaridade dos acusados. 172 Cristina Donza apresenta a seguinte estatística: 57% de alfabetizados; 7% de analfabetos e 36% sem registro quanto à escolaridade. Ver CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., p. 60. 93 constata-se que o total dos acusados “alfabetizados” 85,2% é inferior ao das ofendidas 94,3%; em ordem inversa os “analfabetos” somavam 14,8% enquanto entre as ofendias o índice era de 5,7%. TABELA 17 ESCOLARIDADE DOS ACUSADOS, EM % Nível % Alfabetizados 85,2 Analfabetos 14,8 Total 00 Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. TABELA 18 ESCOLARIDADE E “COR” DOS ACUSADOS, EM % Nível/Cor % Branca lê e escreve 50 Branca não lê nem escreve 1,8 Parda lê e escreve 27,8 Parda não lê nem escreve 7,4 Preta lê e escreve 7,4 Preta não lê nem escreve 5,5 Total 100 Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. TABELA 19 ESCOLARIDADE E “COR” DOS ACUSADOS CONFORME A COMPOSIÇÃO ÉTNICO/RACIAL DOS PROCESSOS, EM % Nível/Cor % Branca lê e escreve* 96,4 Branca não lê nem escreve 3,6 Parda lê e escreve** 78,9 Parda não lê nem escreve 21,5 Preta lê e escreve*** 57,1 Preta não lê nem escreve 42,7 *Para a estatística dos acusados brancos utilizamos 28 processos. **Para a estatística dos acusados pardos utilizamos19 processos. ***Para a estatística dos acusados pretos utilizamos 07 processos. Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. A Tabela 19 confirma-nos a suposição de que os homens das camadas populares tinham maiores dificuldades para acessar o saber escolar do que as mulheres da mesma classe social. Esta dificuldade fica mais visível ou mais forte conforme a “cor” da personagem masculina. Se entre as ofendidas encontramos coincidência entre “brancas” e “pardas”, no tocante ao fato de saberem “ler e escrever”, sendo inexpressivo o índice de analfabetismo, ficando a desigualdade explícita apenas na comparação com os dados 94 relativos às ofendidas “pretas” (Tabela17). No caso dos acusados, as diferenciações entre “brancos” e “pardos” e destes dois grupos com os “pretos” chegam a ser gritantes (Tabela 18). Quando olhamos para o interior de cada grupo étnico/racial (“brancos”, “pretos” e “pardos”), percebemos uma situação similar a das ofendidas. De um lado o esforço de homens e mulheres “brancos”, “pretos” e “pardos”, em conquistar a escolarização e, por outro, a desigualdade quantitativa com que esta escolarização é conquistada. Pelo que apresentamos, até o momento, podemos concluir pela correspondência entre os dados relativos à população de Campos, em sua totalidade (obtidos através dos recenseamentos) e os referentes aos personagens que estudamos através dos processos. O que nos permite conceber os homens e mulheres que protagonizaram os 53 processos-crimes por sedução que analisamos como representativos das camadas ou setores populares de Campos, nos anos sessenta e setenta do século XX. Verificamos que as diferenças entre homens e mulheres se manifestavam numa desigualdade de oportunidades no mercado de trabalho, em desfavor das mulheres, configurando relações de gênero, onde o ser masculino e o ser feminino impunham papéis sociais distintos e desiguais. A discriminação de gênero mostra-se gritante nas diferenças salariais onde não só encontramos a penosa exploração das classes trabalhadoras (homens e mulheres), mas também a exploração econômica mais intensa das mulheres trabalhadoras cuja presença no mercado de trabalho diminui significativamente conforme se elevem o valor do salário e o nível de escolarização. Esse quadro regional (mas não só regional), onde exploração de classe e de gênero se manifestavam pari passu, deve ter, é o que supomos, influenciado nas posturas amorosas, sexuais e matrimoniais dos homens e mulheres das camadas populares. Não se trata de conceber as relações afetivas como epifenômenos das condições materiais de existência, mas sim, de compreender a realidade social como totalidade articulada, onde as “escolhas” e práticas afetivas não estão absolutamente desassociadas do ser social dos indivíduos. No Capítulo I, procuramos entender, através da historiografia como, em diversos momentos e lugares da formação social brasileira, os setores dirigentes 95 buscaram difundir o casamento como mecanismo legítimo de constituição das relações conjugais e fator de moralização dos comportamentos sociais e sexuais. De uma forma ou de outra, se difundiam vínculos entre casamento, virgindade, honestidade, honra e comportamentos femininos. Ao concluir o Capítulo II, constatamos que o casamento se constituíra em uma prática social expressiva entre as camadas populares de Campos e, nos anos 60 e 70, era a principal forma de realização das uniões conjugais. Fato comprovado tanto pelos índices do IBGE como pelos dados dos processos. Diante disto, nos perguntamos se a prática de casar tinha entre os homens e mulheres dos setores populares as motivações moralistas e normatizadoras apregoadas pelos setores dirigentes conforme examinamos no Capítulo I? Para avançar na resposta dessa questão, é que vamos, no Capítulos III, analisar as práticas amorosas dos personagens que pesquisamos e os conflitos entre as concepções de namoro dos jovens das camadas de baixa renda envolvidos nos processos e as visões dos profissionais do judiciário sobre a maneira adequada de se vivenciar relações amorosas. CAPÍTULO III O NAMORO - MOÇAS, RAPAZES E JUÍZES 97 1. RUAS, PORTÕES E QUINTAIS O amor é um grande laço um passo pr’uma armadilha um lobo correndo em círculos pra alimentar a matilha comparo sua chegada com a fuga de uma ilha tanto engorda quanto mata feito desgosto de filha... Djavan A pesquisa em processos criminais possibilita perceber, nas entrelinhas dos pronunciamentos e depoimentos, manifestações e valores que balizam as atitudes e estabelecem os referenciais do que é lícito ou ilícito para as pessoas que deles participam. Ao relatar o “fato”, isto é, ao apresentar a sua versão do que teria ocorrido, cada lado da disputa judicial revela não só o texto da lei, mas também os princípios e códigos sociais (culturais) que legitimam ou se conflitam com a lei e que, de uma forma ou de outra, orientam as condutas dos envolvidos. As contradições que emergem quando se comparam os depoimentos, revelam-nos que há nos processos mais do que encenações e que, apesar dos filtros a que os depoimentos dos envolvidos são submetidos desde a apresentação da queixa, nos é possível capturar, ao menos fragmentos, dos seus valores e das sua práticas cotidianas. Podemos acessar o seu universo moral, conhecer mais dos seus códigos de conduta e dos seus referenciais de julgamento. Na análise das relações de namoro nos Campos dos Goytacazes, verificamos a ausência de formalismos nos envolvimentos entre moças e rapazes das camadas de baixa renda que participaram dos processos173. Isto pode ser percebido mesmo quando a ofendida declara, na delegacia e/ou em juízo, que fora “assediada” pelo acusado “para fins de namoro” 174. Pelo que se pode extrair dos depoimentos das ofendidas, o “assédio” ou “aproximação” a que fazem referências não demandava apresentações, não implicava em um tempo prolongado de conquista e nem envolvia sondagens, por parte 173 Martha Abreu também percebeu o mesmo para as moças e rapazes da Belle Époque carioca. Cf. ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., pp. 141-146. 174 O termo “assédio” aparece nos processos mas, provavelmente, era uma expressão empregada pelo escrivão e não pela ofendida. 98 das moças ou de seus pais sobre os rapazes. O tempo entre o primeiro olhar e a proposta de romance é quase imediato. Pelos depoimentos das 46 ofendidas onde se registrou a duração do namoro (86,8% do total de ofendidas), pudemos constatar que 52,1% dos relacionamentos amorosos duraram até 6 meses (Tabela 20). Além da brevidade na duração do namoro, o lapso de tempo entre o início do romance e a conjunção carnal, via de regra, não era longo. Segundo declaram as 46 ofendidas que informaram o tempo decorrido entre o início do namoro e a primeira cópula, em 61,8% dos casos o desvirginamento teria ocorrido até 6 meses após o início do namoro (Tabela 21). TABELA 20 TEMPO DE NAMORO SEGUNDO AS OFENDIDAS, EM % Tempo %* %** De 1 a menos de 2 anos 20,7 23,9 Sem Referência 13,2 0 De 2 a menos de 3 anos 11,3 13 2 meses 11,3 13 Até 1 mês 9,3 10,9 4 meses 7,5 8,7 3 meses 7,5 8,7 De 4 a 5 anos 5,7 6,5 6 meses 5,7 6,5 5 meses 3,8 4,3 8 meses 1,9 2,2 10 meses 1,9 2,2 * Dados referentes aos 53 processos recolhidos no Fórum de Campos dos Goytacazes. ** Dados relativos aos 46 processos em que as ofendidas informaram o tempo do namoro. TABELA 21 TEMPO ENTRE O INÍCIO DO NAMORO E A PRIMEIRA CÓPULA, SEGUNDO AS OFENDIDAS, EM % Tempo Menos de 1 mês 1 mês 2 meses Sem Referência De 7 a 9 meses 1 ano 2 anos De 3 a 5 meses 6 meses 3 anos Mais de 4 anos %* 17 15,1 13,2 13,2 11,3 11,3 5,7 5,7 3,8 1,9 1,9 %** 18,4 17,4 15,2 0 13 13 6,5 6,5 4,3 2,2 2,2 * Dados relativos aos 53 processos recolhidos no Fórum de Campos dos Goytacazes. ** Dados referentes aos 46 processos em que as ofendidas informaram o tempo entre o início do namoro e a primeira cópula. 99 Verificamos, através dos depoimentos, que, entre as moças ofendidas e rapazes ofensores, eram comuns os encontros noturnos nas ruas e sem acompanhantes, os afagos libidinosos nos portões, nos cantos escuros dos muros, nos fundos dos quintais (Tabela 22). Relacionamentos amorosos dessa natureza contrariavam as posições e discursos dos representantes da Justiça (promotores, assistentes da acusação, defensores, assistentes da defesa, juízes, procuradores e desembargadores) para os quais, segundo os seus pronunciamentos, o namoro deveria sempre acontecer com a autorização dos pais da moça, com o casal se encontrando em dias e horários pré-estabelecidos, sempre contando com a companhia ou vigilância de uma pessoa adulta responsável pela moça e, de forma alguma, o casal poderia darse a contatos íntimos, à prática de atos libidinosos. TABELA 22 LOCAL DA PRIMEIRA CÓPULA SEGUNDO AS OFENDIDAS, EM % Local % Casa da ofendida* 22,6 Na rua** 20,8 Mato*** 18,9 Outros 15 Casa de conhecido 9,4 Casa do acusado 7,6 Emprego dela 3,8 Emprego dele 1,9 Total 100 Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. * Em apenas 2 casos, a cópula deu-se dentro da casa, nas demais a relação ocorreu em pé nos portões, muros e fundo de quintais. ** Nesses casos, segundo os relatos dos acusados e/ou ofendidas, as relações eram praticadas em logradouros públicos, com o casal geralmente encostado em um muro, sempre de pé. *** Nesses casos, segundo os relatos dos acusados e/ou ofendidas, as relações ocorreram em terrenos baldios e desertos, com o casal quase sempre de pé. Entre os casais formados por jovens de baixa renda foi expressivo o percentual de moças que relataram a prática de carícias íntimas durante o namoro, em muitos casos, desde o seu início175 (Tabela 23). Em vários processos, a excitação (apresentada como atos de libidinagem pelo judiciário), decorrente das carícias relatadas 175 Ver, por exemplo, os processos de número 282; 7.795; 8.921;10.529; 10.569; 10.745; 10.793; 10.803; 10.937; 11.098; 11.172; 11.260; 11.430; 11.464; 11.486; 11.500; 11.622; 11.627; 11.688; 11.716; 11.731; 11.733; 11.842; 11.924; 11.927; 12.361. 100 (beijos, toques nos seios e/ou na vagina), foi apontada pelas ofendidas e/ou pelos promotores como um dos fatores responsáveis por terem cedido aos desejos sexuais dos ofensores, demonstrando, assim, que elas não eram desprovidas de desejos sexuais e não se furtavam do direito de satisfazê-los (Tabela 24). Efetivamente essas moças das camadas mais simples da população campista não viviam o amor e o sexo em conformidade com os códigos morais do judiciário que definia o namoro dentro de padrões morais bem mais rígidos. TABELA 23 CASOS EM QUE AS OFEDIDAS ADMITIRAM INTIMIDADES COM OS ACUSADOS, EM % Situação %* %** Permitiu intimidades somente no dia ou pouco antes do desvirginamento 28,3 48,4 Permitiu intimidades desde o início do namoro 24,5 41,9 Admitiu carícias mas sem especificar em que situação 3,8 6,5 Rompeu namoro por tentativas de intimidades 1,9 3,2 Total 58,5 100 * Fonte: todos os 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. **Fonte: 31 processos em que as ofendidas relataram a prática de carícias íntimas com os acusados. 2. A “MORAL FAMILIAR”, A MORAL DOS JUÍZES A punição dos crimes de sedução pelos juízes de Campos seguiu, via de regra, as indicações constantes da jurisprudência firmada nas obras de juristas como Nelson Hungria176, Heleno Fragoso177 e Magalhães Noronha178 e nos pareceres e súmulas dos tribunais superiores. Conforme orienta a jurisprudência, os julgamentos se processavam pela aferição das atitudes e comportamentos das ofendidas onde, através da análise e confrontação dos depoimentos da jovem, do acusado e das testemunhas, os juízes emitiam os seus pareceres quanto à existência ou não de indícios ou provas de ser ou 176 HUNGRIA, Nélson. e LACERDA, Romão Côrtes de. Comentários ao Código Penal, Vol. VIII. Rio de Janeiro: Forense, s.d. 177 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal (parte especial). Rio de Janeiro: Forense, 5ª ed., 1986. 178 NORONHA, E. Magalhães. Direto Penal. São Paulo: Saraiva, 1964. 101 não a ofendida moça inexperiente. Se havia ou não razões para que a ofendida depositasse justificável confiança nas alegadas promessas de casamento, supostamente feitas pelos acusados. Destarte, as sentenças dependiam do juízo que os magistrados viessem a fazer da moralidade das ofendidas. Se os juízes considerassem que por suas atitudes e comportamentos (recato e obediência aos pais) as moças eram “merecedoras da proteção legal”, o réu tendia à condenação. Caso contrário, se as jovens ofendidas não fossem consideradas “merecedoras da proteção legal” (por serem namoradeiras, freqüentadoras de festas e bailes sem a companhia paterna e/ou materna, dadas a namoros curtos sem noivado, desconhecidos ou sem a autorização dos pais, não indicando uma intenção matrimonial), era praticamente certa a absolvição do réu. Um bom exemplo dos padrões morais a partir dos quais os magistrados julgavam os crimes de sedução nos anos sessenta e setenta é encontrado no “Acordam” do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro para o processo 8.921, proferido em 21 de fevereiro de 1972. No referido processo, Karina Sarmet Monteiro, brasileira, parda, fluminense, com 16 anos de idade, do lar, alfabetizada, acusou Neilson da Gama, brasileiro, branco, católico, fluminense, com 21 anos de idade, solteiro, policial militar, sabendo ler e escrever, de havê-la seduzido e desvirginado em abril de 1966. No “Acordam” os desembargadores afirmaram: Rejeitadas, pois, as preliminares e passando a apreciação do mérito, verificase que o apelado, efetivamente, manteve namoro, por período aproximado de um ano, com a ofendida, pois, como afirmam as testemunhas arroladas pela acusação, os dois, freqüentemente, eram vistos juntos no portão da residência da vítima, o que, aliais, em parte, recebeu confirmação de testemunhas arroladas pelo próprio acusado (...) Do cotejo da prova resulta, ainda, que a vítima levava vida regular e honesta, em companhia dos seus familiares, pois, embora as testemunhas arroladas pela defesa tivessem tentado denegrir a reputação da vítima, não conseguiram, contudo, contra ela carrear elementos no aludido sentido (...) resultando, enfim, que a vítima mantinha o comportamento comum às jovens do seu meio social, assistindo a competições esportivas e freqüentando bailes em companhia de sua genitora. Não obstante, seja certa a existência do namoro e a vida honesta da ofendida, não se pode, entretanto, tê-la como inexperiente, não só pelas atividades sociais a que se entregava, como também porque, anteriormente ao apelado, já tivera dois outros namorados, como ela própria admitiu no depoimento que prestou em juízo. Das declarações da ofendida, por sua vez, não se consegue extrair pudesse ela depositar justificável confiança no apelado, pois, como deixou ela bem claro, o apelado apesar de convidado, nunca consentiu em freqüentar a sua casa, mantendo namoro apenas no portão, em 102 demonstração eloqüente de não pretender assumir compromissos mais sérios, sob o ponto de vista matrimonial. Não configurados, portanto, os fatores morais do delito, isto é, a justificável confiança ou a inexperiência da ofendida, insustentáveis, em conseqüência, hão de ser, data vênia, as conclusões da decisão recorrida, no sentido da configuração do crime de sedução, previsto no art. 217 do Código Penal, patenteando-se, entretanto, claramente, a presença, na espécie, do crime de corrupção de menor, eis que, convincentes sem dúvida, são as declarações da ofendida de que o acusado foi corrompendo-a, durante o namoro, através de uma série de atos libidinosos, culminados, finalmente, com a cópula vaginal; (...) Na hipótese em exame, represa-se, o apelado manteve conjunção carnal, após prolongado namoro, com menor que levava vida honesta e regular, provocando, assim, alteração evidente em tal status e incorrendo, destarte, nas sanções do art. 218; o caso, assim, não pode afeiçoar-se aos daquelas outras jovens que, apesar de menores, aos primeiros instantes do namoro, entregam-se aos parceiros, em demonstração eloqüente de que já haviam se afastado dos bons costumes e, como tal, não mais fazendo jus à tutela penal, pois como bem já se acentuou: ‘Em todos os crimes dessa natureza o que se tutela fundamentalmente é a liberdade sexual, como expressão dos bons costumes, que pode ser garantida como direito subjetivo ou mero interesse’. Merece, portanto, o apelo provimento parcial para desclassificar o delito imputado ao apelado para o art. 218 do C. Penal, e, em conseqüência, reduzir a pena que lhe foi imposta para um ano e cinco meses de reclusão, eis que, não obstante seja ele primário e com posição definida, intenso foi o dolo com que se houve e graves, sem dúvidas, as conseqüências do seu crime, não fazendo jus portanto ao pretendido apenamento mínimo. A desclassificação ora operada arrima-se na orientação jurisprudencial dessa Câmara e do Supremo Tribunal Federal, consoante arrestos estampados na Rev. Trim., vol.49, p. 537 e 534 d. Por tais fundamentos, A C O R D A M os Juízes que integram a Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, rejeitar, à unanimidade, as preliminares suscitadas, (...) e no mérito, também é unanimidade, dar parcial provimento ao apelo para desclassificar o delito para o art. 218 do C. P. Penal e reduzir a pena imposta para um ano e cinco meses de reclusão, mantidas as demais combinações da decisão recorrida179. [grifos nossos] Esta sentença demonstra, por um lado, a possibilidade dos magistrados reconhecerem como legítimas certas atitudes vivenciadas por algumas moças pobres, a exemplo de Karina, como freqüentar campos de futebol e ir a festas e bailes - desde que devidamente acompanhadas - por serem atividades comuns ao seu meio social. É, certamente, um padrão de julgamento diferente do que adotavam os juízes que julgaram 179 Processo nº 8.921; maço 524; folhas 139 à 142. 103 os processos pesquisados por Martha Abreu e Cristina Donza180. Entretanto, se ir a campos de futebol e freqüentar festas e bailes, sob a vigilância materna, não fazia de Karina moça desonesta, era o suficiente para descaracterizá-la como inexperiente181. Além disso, o fato, por ela relatado, de Neilson recusar-se a namorá-la dentro da sua casa, seria, no entender dos juízes, indício de que ele não tinha intenções matrimoniais e, por isso, Karina não teria motivos para depositar justificável confiança nas alegadas promessas de casamento e permitir a cópula desvirginadora. Sem a prova da inexperiência ou da justificável confiança de Karina, Neilson foi absolvido da acusação de sedução sendo, contudo, condenado por corrupção de menores, tendo em vista a reconhecida honestidade de Karina e a intensidade do dano causado a ela pelo ato do réu. Ao analisarmos os processos, notamos que os juízes e promotores, assim como os procuradores e desembargadores dos tribunais superiores que firmavam a jurisprudência, propugnavam uma maneira moralizada e adequada de se namorar. (...) um rapaz que pretende mesmo se casar com uma moça a namora às claras, freqüenta a sua casa indissimuladamente, demonstra de público os seus bons propósitos, fica noivo de aliança no dedo e procura marcar data para o casamento182. Os profissionais do judiciário (promotores, defensores, assistentes da acusação, assistentes da defesa, juízes, procuradores e desembargadores), ainda nos anos sessenta e setenta, consideravam que os crimes contra os costumes, a exemplo do crime de sedução, afetavam à moral, cabendo ao judiciário zelar pela moral e pela família. Esta posição foi claramente assumida pelo juiz que julgou o processo número 6.727. Em sua sentença ele afirmou: 180 Cf. ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., especialmente os capítulos 1 e 2. Cf. CANCELA, Cristina Donza. op. cit. passim. 181 43,4% das ofendidas admitiram freqüentar bailes e/ou festas, enquanto 41,5% negaram tal hábito. Se podemos considerar expressivo o número de ofendidas que reconheceram participar, de alguma forma, de festas e bailes, o percentual das que admitiram freqüentar sessões de cinema foi de 9,4%, enquanto 56,6% disseram não freqüentarem os cinemas da cidade ou do interior. A acusação de participar de festas e bailes, bem como a de ir a cinemas, quase sempre pesou negativamente na avaliação moral das jovens que tinham essas práticas. 182 Processo nº 11.177, maço 570, folhas 67-70. 104 (...) ocorrências dessa espécie são altamente lesivas à moral familiar, de forma a tornar-se presumido o interesse de agir, no sentido de ser obtida reparação do dano causado (...). Delitos de tal natureza, por dizerem respeito à moral familiar, exigem pronunciamentos dos interessados, no sentido de ser tomada qualquer medida judicial (...). O aspecto de afronta à moral, que envolve tais delitos, torna secundário qualquer outro interesse que, porventura, possa ditar a conduta de quem oferecer a representação183. [grifos nossos] Para assegurar a moral familiar é que se exige das moças e rapazes um comportamento amoroso moralizado. O sentido moral do namoro se expressaria não somente nas suas formas (dias e horários previamente estabelecidos, autorização e vigilância da família e sem a prática de atos libidinosos) mas, sobretudo, no seu desenvolvimento visando o matrimônio. O objetivo devia ser namorar para casar. Por isso, o tempo decorrido entre o início do namoro e a cópula, bem como as condições em que se dava o namoro (se com ou sem a aprovação dos pais, se na rua ou dentro de casa em dias e horas preestabelecidos, se com ou sem a vigilância materna, etc.) determinavam, em grande medida, o reconhecimento ou rejeição pelo juiz da tese da justificável confiança. Ou seja, uma curta temporalidade entre o início do namoro e a realização da cópula, não importando se o casal já se conhecia anteriormente, raramente não implicou na absolvição do réu por falta de justificável confiança na promessa de casamento. A brevidade e as condições em que se davam os namoros serão constantemente lembradas pelos juízes ao emitirem suas sentenças absolutórias184. Dessa forma, a admissão de namoros breves, com a entrega a contatos sexuais logo nos primeiros meses, assim como o relato da prática de relações anais, dá-nos a certeza de que as ofendidas não dominavam plenamente as regras pelas quais os casos seriam julgados, o que torna possível capturarmos, nas contradições dos seus depoimentos, na contraposição das suas declarações com as normas da moral judiciária, alguns dos elementos do seu universo cultural e das suas práticas sociais. O 183 Processo nº 6.727, folhas 71-72, maço 575. Processos em que os juízes, criticaram as ofendidas, negaram a justificável confiança e absolveram os réus, por causa do curto tempo de namoro: 282; 10.155; 10.569; 10.943; 10.959; 10.981; 11.096; 11.098; 11.138; 11.172; 11.177; 11.223; 11.413; 11.430; 11.464; 11.500; 11.622; 11.651; 11.926; 12.250. Não incluímos os casos em que a crítica ao curto tempo de namoro foi feita somente pelo promotor ou pelo defensor. 184 105 reconhecimento público de namoros curtos, muitas vezes sem a autorização familiar, não podia ser o discurso de quem dominasse a lógica do teatro jurídico, isto é, as regras legais (os códigos penal e civil e do processo penal) e os valores que precisariam ser defendidos durante o julgamento para se obter um reconhecimento positivo por parte do juiz. 3. MULHERES ATIVAS O quadro geral montado pelos depoimentos das ofendidas e testemunhas aponta, em sua maior parte, para um monopólio masculino das iniciativas sexuais onde as mulheres seriam sempre o elemento passivo, a “vítima” que “se perdeu”185. Ao analisarmos os depoimentos das ofendidas, encontramos imagens que, ao menos aparentemente, se confrontam. De um lado o namorado sedutor e carinhoso, atento em preparar a parceira para o coito com carícias e toques estimuladores do desejo. De outro, o mesmo namorado que, ao concretizar a penetração, o faz com fúria, “com extrema violência”, sem cuidados que reduzissem a possibilidade de dor e favorecessem o prazer. As imagens não combinam, a menos que as vejamos no interior de uma estratégia discursiva. A primeira imagem corresponde à necessidade de acentuar-se a ação sedutora do namorado. É dele a iniciativa e a ação criminosa; ele, com blandícias e juras, quebra a resistência moral - e através dela toda resistência física - da vítima. As carícias fariam parte de todo o ardil sedutor, além de cumprir o papel de facilitar o ato físico, a penetração. A segunda imagem decorre da necessidade que tem a ofendida em relatar dor, sangramento, sofrimento e desconforto com o primeiro coito, com a perda da virgindade física. Este não pode ser um momento de prazer e gozo para a mulher, mas um momento de perda e toda perda é sofrida. A violência do namorado, até bem pouco carinhoso e delicado, contribui para a construção do quatro traumático exigido para o momento. Não há acordo, combinação, mútuo desejo e prazer. Ele se impõe, ele penetra, ele machuca, ele faz sangrar, ele domina e é o único a satisfazer-se. Ela sente, sangra e se submete: por amor e inexperiência. 185 Ver os processos de número 524/73; 6.727; 8.921; 10.569; 10.745; 10.793; 10.943; 11.096; 11.172; 11.177; 11.223; 11.413; 11.426; 11.430; 11.464; 11.486; 11.500; 11.622; 11.627; 11.651; 11.733; 11.924; 11.926; 11.927; 12.249; 12.250; 12.285. 106 Entretanto, no acompanhamento das tramas amorosas contidas nos processos, encontramos ofendidas que “confessaram” terem agido no sentido de conquistar o acusado e, não o tendo conseguido, fizeram a acusação por vingança ou como meio de afastá-lo de outro relacionamento, assumindo, portanto, um papel ativo na determinação das relações amorosas. Este papel não era condizente com as expectativas dos juristas quanto ao comportamento amoroso de uma moça. Destarte, apesar de a maioria das ofendidas ter buscado apresentar o acusado como o responsável mais direto pelo início do namoro e seus desdobramentos, produzindo um confronto de acusações entre elas e os supostos sedutores, sobre as responsabilidades de cada um nos acontecimentos, algumas reconheceram, ou nos permitiram descobrir, ter partido delas a iniciativa. Assim, encontramos ofendidas campistas que vivenciaram o amor e o sexo em conflito com as normas morais apregoadas pelo judiciário186, dispensavam sondagens prévias sobre o caráter e as intenções dos namorados e entregavam-se a “intimidades inadequadas”, à “fornicação”187. Foi, por exemplo, o caso de Rita Barbosa, ofendida, brasileira, branca, capixaba, com 16 anos de idade, do lar, sabendo ler e escrever que, depondo na delegacia no dia 15 de maio de 1972, disse: que a depoente passou a namorar o acusado Leandro Silva no mês de janeiro do ano em curso (...), desde o princípio deste namoro, seu namorado freqüentava a casa da depoente, com o consentimento dos pais da ofendida; que, desde o início do namoro seu namorado tinha intimidades com a depoente, tais como pôr-lhe as mãos nos seus seios, chegando mesmo a introduzir, em parte, o dedo em sua vagina, a fim de excitá-la; que, (...) seu namorado passou a assediá-la, então pedindo para que ela, depoente, o deixasse introduzir o membro viril em sua vagina, dizendo inclusive, que se assim ela fizesse, ele, seu namorado, se casaria com ela, depoente; que, apesar das promessas de casamento, a depoente ainda relutou um pouco, porém, dada a insistência mais forte do seu namorado e, já gostando do mesmo, e, acreditando que ele (...) fosse realmente cumprir a promessa feita, para a depoente, de casamento, a depoente, aproveitando-se de um descuido dos seus familiares, foi com 186 Como exemplo de processos em que os juízes condenaram, explicitamente, os comportamentos das ofendidas, como inadequados, ver os processos de número 282; 10.155; 10.569; 10.981; 11.096; 11.138; 11.138; 11.172;11.177; 11.223; 11.260; 11.413; 11.430;11.464;11.500;11.622; 11.651;11.962;12.250. 187 Ver FOUCAULT, Michel. “O combate da castidade”. In: ÁRIES, Philippe e BÉJIN, André (orgs.). Sexualidades Ocidentais. São Paulo: Brasiliense, 3ª ed., 1987, p. 29. 107 o seu namorado para o quintal da residência e, ali, encostada em um muro, deixou-se desvirginar pelo seu namorado; (...)188. [grifo nosso] Muitas delas mostravam “despudor”, ao copularem em vias públicas ou em terrenos baldios. Um bom exemplo foi o de Clara dos Santos, brasileira, preta, fluminense, com 16 anos de idade, estudante, que ao depor na delegacia no dia 10 de março de 1970, disse que há quatro meses começara a namorar Luís Barreto, brasileiro, pardo, católico, fluminense, 20 anos de idade, trabalhador rural, solteiro, alfabetizado, por insistência dele189. Desde o início, afirmou Clara, Luís Barreto freqüentava a sua casa e manifestava o desejo de casar-se com ela. Tantas foram as promessas de casamento, que Clara jura ter acreditado nelas. Então, certa noite, (...) o acusado, sob juras de amor, passou a excitar a declarante, beijando-lhe os lábios e esfregando-a com sofreguidão e, enquanto isso fazia, o acusado conduzia, habilidosamente, a declarante para fora do portão, levando-a em um local não distante, porém mais escuro; que, naquele local, sob juras de amor e prometendo-lhe casamento, Luís Barreto acabou convencendo a depoente a manter com ele relações sexuais; que, enquanto fazia tais promessas, Luís Barreto, suspendeu a saia da declarante para poder tirar-lhe a calcinha; que, em seguida, já estando Luís Barreto com o seu membro viril à mostra, o mesmo insinuou-se por entre as coxas da declarante e, após muita dificuldade, passou o mesmo a introduzir o seu membro na vagina da declarante; que, ao ser penetrada e conseqüentemente desvirginada, a declarante sentiu intensas dores na sua vagina; que, após a cópula a declarante verificou que de sua vagina saía sangue (...). (...) que a ofendida foi deflorada no dia 9 de novembro de 1969, à noite, perto de sua residência; que o defloramento aconteceu de pé; que o acusado foi quem tirou a calça da ofendida; que o acusado prometeu a ela que ia ficar noivo para se casar, (...)190. [grifos nosso] 188 Processo n° 11.500, maços s/nº, folha 10. O acusado Luís Barreto afirmou ter namorado a ofendida Clara dos Santos, somente por dois meses e negou ter mantido contado sexual com ela. Processo nº 10.529, maço 568, folha 24. Na folha 34 há uma declaração assinada por Clara dos Santos na qual ela afirma que não era virgem quando namorou com o acusado, que este nunca manteve intimidades com ela e que o acusara por amor, pretendendo resgatar sua honra casando com o acusado, o qual é um ótimo rapaz, honesto e trabalhador. O juiz considerando a declaração anexada ao processo e afirmando não haver indícios de ser Clara inexperiente e muito menos ter razões para uma justificável confiança, absolveu Luís Barreto. 190 Processo nº 10.529, maço 568, folhas 9, 32 e 33. Alguns outros processos em que a cópula deu-se na rua o no mato: processos 10.793; 10.745; 10.569; 11.172; 11.426; 11.622; 11.413; 10.448; 11.098; 11.688 e 11.627. 189 108 Em outro caso, Geraldina Amparo, brasileira, parda, fluminense, com 15 anos de idade, do lar, alfabetizada; depondo na delegacia no dia 11 de agosto de 1971, declarou que começou a namorar Valdenir Silvério, brasileiro, pardo, católico, fluminense, solteiro, com 20 anos de idade, trabalhador rural e analfabeto; quando ainda morava na localidade de Santa Rita, sendo que o namorado era campeiro em uma fazenda vizinha. Após mudar-se para a favela onde mora, ele continuou a visitá-la, sempre solicitando-lhe os favores sexuais, sendo então os seus pedidos acompanhados das promessas de casamento. Disse que, no dia 28 de junho de 1971, foi à fazenda em que trabalhava Valdenir e, frente aos pedidos e juras do namorado, já estando a ofendida gostando bastante dele, combinou de encontrá-lo à noite no curral onde, então, ele retirou-lhe a calça, possuindo-a, tendo sentido dores e percebido sangramento em sua vagina. Disse que há um mês contou o acontecido à sua mãe que procurou Valdenir, mas este tem “fugido do compromisso de reparar o mal praticado”. Talvez possamos, com algum esforço, alcançarmos a dimensão romântica desse encontro. O amor praticado sob a luz do luar, na discreta companhia de bois, vacas, cavalos e éguas. Infelizmente, para Geraldina, que sequer compareceu em juízo, o magistrado não se mostrou sensível a tão bucólica forma de amar e considerou-a “não merecedora da proteção legal”, absolvendo Valdenir. Claro está que, se efetivamente ocorreu a relação sexual, Geraldina não foi a mocinha passiva ao agrado do judiciário. Ela foi ao encontro do namorado na “roça”, combinou com ele dia, hora e local (e que local) para a cópula, tendo, portanto, no mínimo, co-participado da iniciativa. Além de Rita, Clara e Geraldina, outras ofendidas afirmaram ou deixaram transparecer indícios de que não foram passivas, meras “vítimas” do sedutor, mas que manifestaram o interesse amoroso ou, ao menos, compartilharam a iniciativa pelo namoro191. 191 Afirmar ter partido da ofendida a iniciativa pelo relacionamento amoroso e/ou sexual foi uma das táticas utilizadas com mais freqüência pelos acusados. A acusação, feita pelo querelado e/ou por seu defensor, eqüivalia a apontar a ofendida como “atirada”, “para frente”, “liberada”. Era a negação do recato que deveria caraterizar uma “moça de bem”, de “boa família”, de “boa conduta”. Entretanto, o reconhecimento de que a ofendida tomou a iniciativa ou, ao menos, compartilhou da iniciativa pelo namoro, não será suficiente para levá-la a uma condenação moral e a absolvição do réu, desde que se conseguisse demonstrar que o seu comportamento cotidiano, mesmo não sendo modelar, era moralmente compatível com o seu meio social. Desde que ela demonstrasse viver sob o controle familiar e ser suficientemente moralizada para cumprir os papéis de esposa e mãe. Ver os processos 8.921 e 10.943. 109 Foi o caso da nossa conhecida Karina Sarmet Monteiro. Depondo na delegacia no dia 06 de outubro de 1966, Karina Sarmet Monteiro, disse viver desde maio do mesmo ano em companhia da sua irmã, Sonja Sarmet Monteiro, em virtude do falecimento da sua mãe sendo agora órfã de pai e mãe. Disse ainda que sua irmã é amasiada com o senhor Ernani Rosas. Declarou que no dia 24 de abril de 1965, conheceu Neilson da Gama, ao assistir a uma partida de futebol em um campo próximo a sua casa logo que viu o acusado dele teve simpatia e manifestou o desejo de namorá-lo; que o acusado também notou aquele interesse da depoente e também manifestou desejo de conversar com a depoente, mas não chegaram a conversar; que à noite, na mesma data, a depoente passeava ao redor de um circo de touradas, próximo da sua casa, quando o acusado foi ao seu encontro, tendo ambos conversando acerca de namoro (...), a depoente pediu ao acusado que o namoro poderia continuar, mas no portão da sua casa, pedido que foi aceito pelo acusado, que a acompanhou até o portão da casa (...) dois dias depois, o acusado apareceu em seu portão, ali retornando às terças, quintas, sábados e domingos, conversando com a depoente das dezenove horas e trinta minutos até as vinte e duas horas, mais ou menos (...)192. [grifo nosso] Similar é o caso em que Catarina de Almeida Flores, queixosa, brasileira, branca, fluminense, solteira, com 50 anos de idade, do lar, analfabeta, compareceu à delegacia de polícia no dia 20 de maio de 1971, para representar contra Bernadino Pires, brasileiro, pardo, católico, fluminense, com 30 anos de idade, casado, recepcionista, sabendo ler e escrever, por este ter seduzido, raptado e deflorado sua filha menor Eva de Jesus Flores, brasileira, branca, fluminense, com 17 anos de idade, solteira, e alfabetizada. Eva de Jesus Flores, ofendida, depondo em juízo no dia 18 de março de 1974, disse que: conheceu o acusado no dia 9 de maio de 1971 (...) no carnaval da páscoa, em via pública; que isso se deu sem que houvesse qualquer apresentação, vindo o conhecimento por simpatia mútua (...) a depoente passou a namorar o acusado que (...) não freqüentou a sua residência, nem tão pouco os seus pais deram consentimento para esse namoro; que o acusado 192 Processo nº 8.921, maço 524, folhas 10 a 12. 110 declarou para a ofendida que era casado, mas mesmo assim a depoente prosseguiu com o namoro, porque gostava do acusado (...) a depoente, várias vezes, chamou o acusado para fugir de casa, mas que o acusado sempre recusou, mas por fim, ante a insistência o fato se deu; que no dia 17 de maio de 1971, a depoente conseguiu vencer a resistência do acusado e embarcar em um táxi para casa de um irmão do acusado (...), lá teve relações sexuais com o acusado, mas anteriormente já tivera relações sexuais com outra pessoa; que acredita que quando manteve relações sexuais com o acusado já não era mais virgem (...) que a depoente não quis voltar à casa dos seus pais, porque eles a maltratavam muito, preferindo ficar com o acusado, mas que só voltou para casa, porque o acusado foi preso e a ofendida foi entregue aos seus pais pelo juiz; que o seu depoimento prestado perante a autoridade policial, não corresponde a verdade. Às perguntas do promotor (...) respondeu: que usa aliança na mão esquerda, mas não é casada e que atualmente vive em companhia do acusado, isso desde os fatos; que não tem filhos com o acusado; que o acusado é muito bom para a ofendida e dá toda assistência que precisa. Às perguntas da defesa respondeu que o acusado nunca prometia casamento à ofendida (...)193. [grifos nossos] O comportamento ativo das moças podia se manifestar também numa atitude de independência diante dos pais, na liberdade de locomoção sem controle de lugares e horas e na vivência do lazer. Nos casos que localizamos, o lazer dava-se, principalmente, em festas e bailes realizados em clubes ou nas casas de parentes e conhecidos (Gráfico 10). GRÁFICO 10 FREQÜÊNCIA A FESTAS E BAILES SEGUNDO RELATO DAS OFENDIDAS, EM % 5,7 Não freqüenta 3,8 41,5 7,5 Freqüenta* Sem referência Freqüenta com o namorado 15,1 Freqüenta com os pais Freqüenta com amigas 26,4 * Casos em que as ofendidas não especificaram se freqüentavam sós ou acompanhadas. Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. 193 Processo nº 11.177, maço 570, folha 61. 111 Comentando as relações amorosas das moças e rapazes de Uberlândia nos anos 50, Karla Bessa valoriza as mensagens românticas transmitidas pelo cinema, já que este aparece nos processos que estudou como um dos locais de namoro mais freqüentado pelos casais, o que tornava público o relacionamento194. Nos processos que estudamos em Campos dos Goytacazes, o cinema aparece nos pronunciamentos de alguns profissionais do judiciário (notadamente defensores) que o responsabilizam, e à televisão, pela transmissão, aos jovens, de estímulos à sexualidade e aos “novos costumes”, como a “liberalização das mulheres”. Porém, poucos acusados e ofendidas disseram freqüentar os cinemas do município195. Para os jovens pobres de Campos, nos anos 60 e 70, não eram os cinemas e teatros os lugares mais acessíveis para os encontros amorosos. Em apenas um caso a ofendida disse ter o namoro sido iniciado após uma sessão de cinema no interior do município, onde comparecera com seus familiares196. Várias moças, ofendidas e testemunhas, admitiram freqüentar festas, bailes e, em menor escala, sessões de cinema. Nem sempre devidamente acompanhadas por seus responsáveis, quando não gozando apenas da companhia dos namorados. Apesar de ser, sob a ótica dos profissionais do judiciário, uma prática social desabonadora, encontramos uma parte expressiva das moças não só freqüentando, com liberdade e por iniciativa própria, as festas e bailes da sua localidade como não se eximiam de relatar o fato. Foi como agiu Milena de Jesus, brasileira, parda, fluminense, com 15 anos de idade, do lar, alfabetizada. Ela acusou Deonísio Macedo, brasileiro, branco, católico, fluminense, com 20 anos de idade, solteiro, auxiliar de almoxarifado e alfabetizado, de havê-la seduzido e desvirginado em 18 de janeiro de 1973. Depondo em juízo no dia 05 de março de 1974, Milena de Jesus disse que conheceu o denunciado um ano antes dos fatos narrados na denúncia e que antes dele, 194 BESSA, Karla Adriana Martins. Jogos da Sedução: práticas amorosas e práticas jurídicas. Uberlândia, 1950 a 1970. Dissertação de Mestrado, Campinas: UNICAMP, 1994, p. 49. 195 Em concernência ao cinema, 3,8% das ofendidas disseram freqüentar (sem especificar se sós ou acompanhadas); 1,9% disseram ir com amigas; 1,9% com os namorados; 1,9% com os pais; 56,6% disseram que não freqüentavam sessões de cinema e 33,9% não fizeram referências a este fato. 196 Ver processo nº 9.529; maço 582. Neste caso, o réu foi condenado, evadiu-se e obteve a extinção da punibilidade porque a ofendida casou-se com outro e não manifestou desejo de continuar com a ação. 112 quando tinha 13 anos, namorara vários outros rapazes. Disse ainda que quando namorou o acusado, presente ao depoimento, tinha 15 anos e era virgem, e o acusado lhe prometera casamento. Afirmou que Deonísio freqüentava a sua casa, mas que sua mãe e seu padrasto não faziam gosto no namoro. Disse que o acusado, após tê-la desvirginado e com ela mantido congressos sexuais por mais quatro vezes, deixou de procurá-la. Respondendo ao advogado da defesa, afirmou que a sua mãe vive concubinada com Manolo Martins e nem foi casada com Edvan Santos, seu pai. Contou Milena que freqüentava, desde os 14 anos, bailes noturnos em Outeiro, onde namorou vários rapazes listando os nomes de cinco ex-namorados. Disse ainda que os clubes onde os bailes eram realizados ficavam ‘um pouco distantes’ da sua casa e que no caminho havia canaviais e que tais bailes começavam às 22h terminando às 5 horas. Afirmou também que o acusado era noivo à época dos fatos, mas que teria desmanchado após o ocorrido. Esclareceu que esteve trabalhando na cidade do Rio de Janeiro entre dezembro de 1972 e fevereiro de 1973, mas lá não teve namorado. Terminou por dizer que o acusado goza de bom conceito na localidade onde reside197. Milena não se mostrou, aos olhos do juiz, uma “moça de boa conduta”198, não tinha como, ou não quis, mostrar-se inexperiente e com razões para depositar justificável confiança na suposta promessa de casamento que alegou. O resultado não poderia ser outro, ela foi condenada moralmente e, Deonísio, absolvido, teve resgatada a sua honra de rapaz trabalhador, noivo sério e respeitador199. 197 Processo nº 11.924, maço 562, folhas 24-25. A respeito da freqüência aos bailes, festas e cinemas, ver também os processos 11.464; 11.731;11.138; 11.098; 11.926; 11.651; 11.733; 10.943; 10.937; 10.155; 282; 7.816; 7.795; 8.921 e 9.529. 198 Os termos mais comumente empregados pelos profissionais do judiciário eram: “moça de boa família”, “moças de família”, “moça de bem”, “moça de boa ou má conduta”, “filha obediente ou desobediente”, “submissa ou insubmissa”, de “boa moral”, de “moral duvidosa” ou “sem moral” e “corrompida”. 199 Deonísio Macedo, depondo na delegacia no dia 10 de abril de 1973, disse, apenas conhecer a ofendida por morar próximo a casa da mesma, mas negou tê-la namorado e com ela mantido contatos sexuais conforme a acusação. Segundo sua versão, e de várias testemunhas, Milena seria uma “jovem conhecida na localidade como uma garota muito leviana eis que também freqüenta todo tipo de festa, geralmente só ou em companhias inidôneas (...) no fim do ano de 1972, a mesma ausentou-se da localidade, indo, segundo consta, trabalhar no Estado da Guanabara, onde ali permaneceu por cerca de trinta dias e, retornando à localidade, a mesma voltou muito modificada, muito ‘para frente’ (...) vindo mais uma vez dizer que jamais manteve com a mesma relações sexuais (...)”. Processo nº 11.924, maço 562, folha 13. [grifos nossos]. A expressão “muito ‘para frente’”, que aparece também em outros processos, indica moça que estaria vivendo em desacordo com os “bons costumes”, que teria aderido aos “costumes modernos” nas vestimentas (o uso do biquíni, por exemplo) e nas atitudes sendo “namoradeira” e, especialmente, sendo “livre” isto é, sem submissão aos pais. Na folha 36 deste processo, há uma carta manuscrita e assinada por Milena na qual ela pede a Deonísio que a perdoe por tê-lo acusado falsamente de havê-la seduzido, dizendo que assim agiu por admirá-lo e não suportar vê-lo com a noiva, tendo sido a acusação o meio que encontrou para tentar separá-los. 113 Outros “pecados” também comprometeram as possibilidades legais das ofendidas. Dentre eles a prática de relações sexuais “contrárias à natureza”, o coito anal. Sendo uma prática sexual condenada pela moral cristã e jurídica, a sua admissão implicou, quase sempre, na reprovação moral da ofendida e na absolvição do réu200. Diferentemente de 7,5% das ofendidas, que disseram ter realizado o sexo nefário, nenhum dos acusados fez referência ao fato. Clara, Karina, Eva, Milena e outras ofendidas manifestaram atitudes e valores que as afastavam do “ideal” da moça casta, submissa, recatada e sem iniciativa sexual, a quem a lei, segundo os juízes, visava proteger201 - elas não se conformaram no modelo ideológico que tipifica o homem ativo e a mulher passiva - a adoção pelas mulheres de atitudes amorosas ativas foi sempre recriminada nos pronunciamentos dos defensores, dos assistentes da defesa, dos juízes e desembargadores. A reprovação da mulher reconhecida como sexualmente ativa ou como não casta, geralmente favoreceu à defesa, contribuindo para a absolvição dos réus. Entretanto, houve casos em que, apesar de terem assumido atitudes consideradas impróprias pelo judiciário, as mulheres conseguiram um “final feliz” para as suas relações amorosas. Foi, por exemplo, o que aconteceu no processo número 132/70. Neste caso, segundo o testemunho da ofendida, o seu pai se opunha ao casamento pelo fato do acusado estar desempregado. Este caso contém uma dupla particularidade, é o único em que encontramos um relacionamento sexual entre uma moça “branca” e um rapaz “preto” e, simultaneamente, um dos poucos com “final feliz”. Mas vamos ao caso. Nele, Marivalda Beneze, queixosa, brasileira, fluminense, casada, do lar, com 32 anos de idade, analfabeta, compareceu à delegacia no dia 29 de abril de 1970, para representar contra Antônio Barbosa, brasileiro, “preto”, católico, fluminense, com 21 anos de idade, solteiro, servente, sabendo ler e escrever, acusando-o de, em 200 Apenas no processo nº 8.921 a confissão do coito anal não contribuiu para a absolvição plena do réu, que, contudo, não foi condenado por sedução mas por corrupção de menores. Outros processos em que as ofendidas disseram terem mantido coito anal com os acusados e foram recriminadas pelos juízes: 467/73; 11.172 e 11.223. no processo número 10.943, uma testemunha da acusação afirmou ter mantido cópula anal com a ofendia antes de ela ter sido supostamente desvirginado pelo acusado. 201 Ver, por exemplo, o processo de número 11.098, maço 579. 114 dezembro de 1969, haver seduzido e desvirginado sua filha, Rosângela Beneze, brasileira, “branca”, fluminense, do lar, 16 anos de idade e alfabetizada202. Depondo na delegacia no dia 29 de abril de 1970, Rosângela Beneze disse que: (...) o indiciado com o pretexto de levar o pai da depoente a concordar com o casamento, pois o indiciado estando desempregado e querendo casar, o genitor da depoente não queria deixar que se casassem, convidou a depoente a manter relações sexuais com ele (...) que a depoente não relutou por gostar do indiciado e diante das promessas de casamento deste; que a depoente ainda esperou pelo indiciado alguns meses, pois o desvirginamento deu-se em dezembro, mas tendo o indiciado ido para a Guanabara para ver se encontrava serviço, não se casando e só escrevendo cartas, tendo vindo a Campos apenas uma vez; que a depoente não esperando mais, dado o desaparecimento do acusado, resolveu dar queixa; que o fato deu-se (...) dentro da casa da depoente, na sala (...) que a depoente sentiu muitas dores no momento da penetração (...) notando após o coito que da sua vagina saía um pouco de sangue; que logo depois de alguns dias a genitora de depoente notando que a regra da depoente não veio e ficando desconfiada resolveu perguntar se havia acontecido alguma coisa; que a depoente então disse que havia sido desvirginada pelo indiciado (...)203.[grifo nosso] Há uma carta de Antônio para Rosângela, datada de dezembro de 1969, na qual ele jura amor e fala em ficar noivo quando viesse vê-la no carnaval. Outra carta (que reproduzimos a baixo), é datada de 4 de janeiro de 1970. Jacarepaguá, 4 de janeiro de 1970. Saudações, Em primeiro lugar, desejo encontrar todos com saúde e que a paz de Deus esteja convosco. Rosângela, mando dizer que vou bem, graças a Deus. Rosângela, peço-lhe o favor de escrever para mim que eu já não agüento mais de saudade. Rosângela, estou muito preocupado com você, eu penso em seu pai porque ele não compreende ninguém. Diga alguma coisa sobre aquele nosso problema. Rosângela, eu ainda não fui aí porque não pude; é capaz de você pensar que eu tenha esquecido de você. Quanto mais longe mais amor, quanto mais longe mais saudade, e não há distância que me separe de você. Rosângela, espero que esteja correspondendo comigo. Rosângela, eu só vou aí no carnaval, se Deus quiser. Dê lembranças a todos que por mim perguntar, principalmente a Elma. Diga a Elma que estou com muita saudade (...). 202 Processo nº132/70, maço 562. Neste processo tanto os pais da “ofendida” como os do acusado eram formalmente casados. 203 Id. Ibid., folha 6. Pelos depoimentos da ofendida ficamos sabendo que o namoro era autorizado, com Antônio freqüentando a sua casa, e que a oposição do seu pai ao casamento devia-se, não a “cor” de Antônio, mas ao fato de ele estar desempregado e não poder sustentar uma família. 115 Rosângela, dê lembranças a mamãe e diga a ela que estou bem. Termino esta carta com muita saudade de todos. Antônio Barbosa204. As testemunhas da ofendida afirmam conhecê-la bem, disseram ser Rosângela “moça de bom procedimento” e que só a viram namorando o acusado, a quem atribuem o seu desvirginamento. Antônio Barbosa, depondo na delegacia no dia 20 de junho de 1970, confessa, “de livre e espontânea vontade”, haver desvirginado Rosângela Beneze, sua namorada, dizendo-se disposto a casar-se com ela, não só por a ter desvirginado e estar a mesma esperando um filho dele, mas por gostar muito dela, “achando-a digna de ser sua esposa”. Afirma que não se casou ainda por ser muito pobre e estar sem condições de dar andamento nos papéis. O delegado, em seu relatório, propôs o arquivamento do processo por considerar não ter havido sedução mas conjunção carnal espontânea por parte da ofendida. O promotor, em despacho datado de 5 de junho de 1974, diverge do delegado entendendo que os autos apontam para um caso de sedução em que “a vontade da jovem é quebrada, captada pelo trabalho de conquista do sedutor. Se houver relutância pela jovem e o rapaz a forçar o que acontece é estupro”. Porém, o promotor pede que se ouça novamente a ofendida “sobre a sua vontade no que concerne ao prosseguimento de sua representação contra o indiciado (...) em face do grande tempo decorrido desde quando aconteceu a representação (...) mesmo porque, não sabemos qual o atual estado civil da ofendida”205. No dia 17 de julho de 1974, Rosângela, que agora assina Rosângela Beneze Barbosa, voltou a depor na delegacia, conforme solicitara o promotor público, esclarecendo estar com 20 anos de idade, casada com Antônio Barbosa há mais de três anos tendo com ele três filhos e estando a esperar o quarto. Afirmou não mais desejar manter a representação contra o acusado206. 204 Id. Ibid., folha 8. Id. Ibid., folha 22. 206 Tendo alcançado o seu intuito, “a reparação do mal praticado”, Rosângela desinteressara-se pelo processo e nem mesmo importou-se, nem ela nem Antônio, em dar baixa no mesmo. Certamente ambos consideraram que com o casamento tudo já estava devidamente resolvido, e o judiciário concordou. 205 116 Frente à declaração de Rosângela de que estava casada com o acusado, o promotor manifestou-se pelo arquivamento do processo no que foi acompanhado pelo juiz. Para Rosângela e Antônio, a diferença de “cor” não impediu o desejo de uma vida comum e, para vencerem a resistência do pai dela, pelo fato de Antônio estar desempregado e não poder manter uma família, ela aceitou copular com ele. Talvez a coisa não tenha se passado exatamente como nos contou Rosângela e os motivos para a cópula não tenham sido exatamente os apresentados, mas isto pouco nos importa. O importante é percebermos que moças e rapazes das camadas populares eram capazes de lutar e construir estratégias ardilosas para alcançar seus intentos amorosos/sexuais. E, em alguns casos, obtiveram um “final feliz”207. 3.1 – As “Moças de Hoje em Dia” A adoção de comportamentos ativos no estabelecimento das relações amorosas, sexuais e familiares fez com que algumas ofendidas fossem classificadas, pelos profissionais do judiciário, como mulheres ou moças “modernas”, “livres” ou “independentes”, eram as “moças de hoje em dia”. Juízes e defensores apontaram a “modernização dos costumes e a “independência da mulher” como explicações para a existência dos crimes de sedução208. O reconhecimento (que não implicava em aceitação) de que as mulheres dos anos sessenta e setenta mostravam-se mais livres e ativas, inclusive nas relações amorosas e sexuais, será esgrimido, em alguns casos, pelos profissionais do judiciário (defensores, juízes, procuradores e desembargadores), para negar a possibilidade de 207 Além do processo 132/70, ver também os de número 9.529; 10.155; 10.569; 10.793; 11.223; 11.457; 11.627; 11.927; 12.285 e 12.370. São casos em que ocorreu o casamento ou amasiamento da ofendida com o acusado ou com outro homem. O casamento, mesmo que com outro que não o acusado era considerado pelo profissionais do direito como um “final feliz”. 208 Processos em que, de forma explicita, algum profissional do judiciário, vinculou a análise do caso à “modernização dos costumes” e dos “comportamentos femininos”: 9.529; 11.413; 11.464; 11.622; 11.651; 11.731; 11.842. Diferentemente do que foi concluído por Sueann Caulfield, em nossa pesquisa as referências à “modernidade”, sempre apareceram com um sentido pejorativo, desabonador, talvez por que ao se referirem à “modernização dos costumes”, os profissionais do judiciário o fizessem, quase sempre se dirigindo aos comportamentos dos jovens em geral (rapazes e moças) ou, quando de forma mais específica, sempre às atitudes femininas. Cf. CAULFIELD, Sueann. Op. cit., p. 182 e passim. 117 inexperiência por parte das ofendidas, que estariam influenciadas pela “modernização dos costumes” e se portariam como “mulheres livres”, (ensejando inclusive apelos a mudanças na legislação). Em nossa pesquisa, pudemos detectar, na literatura do direito e, sobretudo nos processos dos anos sessenta e setenta, o pleito por modificações na criminalização da sedução em virtude, diziam os profissionais do judiciário, das transformações que ocorriam nos costumes e que estavam levando a uma maior independência das mulheres, fazendo com que a moça dos anos 60 e 70 não fosse mais “a donzela ingênua e tutelada” dos anos 30 e 40. As moças dos “tempos modernos” (no caso as décadas de 60 e 70) transitavam livremente pelas ruas, trabalhavam, estudavam, tinham acesso fácil a informações sobre sexo, recebiam estímulos à sensualidade através dos cinemas com seus filmes eróticos, do rádio, das fotonovelas, das festas, das danças etc. Ao contrário das moças de outrora, do momento em que o Código Penal de 1940 foi produzido, as “de hoje” (dos anos 60 e 70) não se submetiam ao controle, não se sujeitavam à autoridade da família (leia-se, da mãe). Não eram moças que, aos 16, 17 e 18 anos fossem sexualmente inexperientes (no sentido de desconhecedoras dos “mistérios do sexo” e seus conseqüências). Eram, diziam alguns profissionais do judiciário, perfeitamente capazes de defenderem a sua honra, se assim o desejassem. A “modernização dos costumes” e a “independência da mulher” são os argumentos culturais básicos a partir dos quais se reivindicava a revisão dos critérios de criminalização e julgamento dos crimes sexuais. Nos anos 20 e 30 o próprio conceito foi alterado com a revisão da noção de virgindade que passou a ser concebida mais em termos morais que físicos. Também a idade limite foi alterada, passando, com o Código Penal de 1940, de 21 para 18 anos209. Nos anos 60 e 70, questiona-se o “anacronismo” do crime de sedução210, visto ser improvável a existência de moças inexperientes nos moldes das que existiriam 209 Id. Ibid., pp. 182-188. O crime de sedução é definido pelo artigo 217 do Código Penal brasileiro como sendo o ato de “Seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de quatorze, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança”. Cf. Código Penal (Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940). São Paulo: Saraiva, 33ª ed., 1995, p. 99. Os requisitos-objetivos para o reconhecimento do crime são: a virgindade anterior da mulher, o limite de idade e a ocorrência da conjunção carnal; os requisitos-subjetivos são: a inexperiência da mulher ou a justificável confiança na promessa de casamento. Cf. MEDEIROS, Darcy Campos de e MOREIRA, Aroldo. Do Crime de Sedução. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1967, pp. 33 et. seq. 210 118 quando da elaboração do estatuto penal. É interessante observar que os profissionais do judiciário dos anos 30 consideravam improcedente a manutenção do limite de idade de 21 anos para o crime de defloramento porque as moças de então, com 18 anos, seriam plenamente cientes dos “segredos do sexo”, não sendo tão controladas, vigiadas nem ingênuas como as que existiam em fins do século XIX, quando da promulgação do Código Penal de 1890. Já os profissionais do judiciário dos anos 60 e 70 eram saudosistas exatamente do recato, da ingenuidade e da vigilância, que, segundo eles, caracterizavam as moças dos anos 20 e 30 e não mais existia, tornando um contra-senso atribuir inexperiência sexual a moças com 16, 17 e 18 anos211. Analisando certos pronunciamentos existentes nos processos, observamos que alguns profissionais do judiciário mesclavam o desabono à “modernização dos costumes” expressa, por exemplo, na precocidade com que os jovens estariam adquirindo conhecimentos sobre sexo, com manifestações de discriminação sócio-econômica na avaliação das ofendidas. Mesmo que de forma sutil, alguns profissionais do judiciário deixaram transluzir, de esguelha, um olhar classista no julgamento das ofendidas212. Vejamos alguns exemplos. No processo em que Rosa Dutra, brasileira, branca, fluminense, do lar, com 15 anos de idade, alfabetizada, denunciou Josué Nunes, brasileiro, branco, fluminense, com 21 anos de idade, solteiro, trabalhador rural, sabendo ler e escrever, de havê-la seduzido e desvirginado. O defensor do réu, na defesa que apresentou no dia 27 de junho de 1973, afirmou: É inegável que uma jovem de 17 anos, vivendo num meio deletério e presenciando licenciosidades, não pode ser equiparada a moça que viva no recesso de um lar recatado. Em tais condições, justo é se admitir não fosse inexperiente, capaz de deixar-se embair213. [grifo nosso] 211 Cf. os processos de número 9.529; 11.413; 11.464; 11.622; 11.651; 11.731; 11.842. a respeito da necessidade do judiciário não produzir de si uma imagem explicitamente classista, ver THOMPSON, Edward P. Senhores e Caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 213 Processo nº 11.464, maço 565, folha 65. 212 119 Em 18 de novembro de 1973, o desembargador responsável por relatar o recurso impetrado pelo queixoso deu parecer contrário, confirmando a decisão do juiz da primeira instância, que havia absolvido Josué, por considerar que Rosa não apresentava um comportamento indicador de inexperiência, nem o namoro entre eles teria apresentado a seriedade necessária para que ela desenvolvesse justificável confiança em Josué. Em seu parecer, que foi unanimemente referendado pelo acórdão da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, proferido em 10 de dezembro de 1973, o desembargador escreveu: a inexperiência argüida pela acusação é incompatível, salvo raras exceções, com a época atual, de franco predomínio entre a mocidade feminina de tendência de alcançar a liberdade sexual observada geralmente pelos homens, com a precoce e perfeita noção do que se relaciona com isso e suas conseqüências, é aqui inadmissível214. [grifo nosso] No processo em que Luiz da Conceição, brasileiro, branco, católico, fluminense, com 40 anos de idade, casado, ferroviário, sabendo ler e escrever, foi acusado de haver seduzido e desvirginado a jovem Tatiana Barbosa Ribeiro, brasileira, preta, fluminense, empregada doméstica, com 17 anos de idade e alfabetizada; fato que teria ocorrido em 24 de junho de 1971, o defensor do réu além de buscar desqualificar Tatiana moralmente, inclusive dizendo que ela viu no acusado uma possibilidade de apoio material, lançou ao juiz a seguinte questão: Antes de terminarmos perguntamos: Jovem de 17 anos pode ser seduzida? Jamais, apenas escolheu e viu no acusado um amparo material e por isto, seduzida por outro, acusa o réu215. [grifo nosso] Na sentença, proferida em 30 de junho de 1973, o juiz argumenta que 214 215 Id. Ibid., folha 98. Processo nº 11.260, maço s/nº, folha 36. 120 (...) a menor já tinha 17 anos de idade e trabalhava como doméstica, tornando-se indispensável a perquirição pormenorizada de sua alegada inexperiência (...)216. [grifo nosso] Ter 17 anos e trabalhar de doméstica, tendo obviamente de transitar pelas ruas da cidade, faziam de Tatiana moça suspeita de não ser inexperiente, praticamente liquidavam as suas possibilidades de ser aplaudida no teatro forense. Dessa forma, discriminações de gênero e de classe são articuladas nos pronunciamentos de alguns profissionais do judiciário. Assim, nos anos 60 e 70, o limite de 18 anos estava sendo questionado a partir de referenciais que podemos considerar, no mínimo, parecidos com os que animaram as críticas dos profissionais do judiciário dos anos 20 e 30 ao Código Penal de 1890: “as modificações dos costumes” e a “liberalização dos comportamentos femininos”. A imagem da mulher “ativa”, “livre” e “independente”, continuava, aos olhos dos juízes dos anos 60 e 70, a ser uma imagem negativa, ao menos para os profissionais do judiciário de Campos que julgaram os processos estudados nesta pesquisa217. 4. HONESTIDADE E MORAL – OS OLHARES DAS TESTEMUNHAS Na solução das demandas por sedução, papel importante era reservado às testemunhas. Por tratar-se de um crime de difícil, se não impossível, comprovação “material” 218, o julgamento da ação sempre termina por constituir-se numa avaliação dos comportamentos da ofendida, de forma a conferir se ela possuiria hábitos e condutas capazes de caracterizá-la como moça recatada, obediente aos pais e inexperiente. Procurava-se, através dos testemunhos, comprovar se o namoro existia e se dava de 216 Id. Ibid., folha 37. Ver também os processos 6.727; 11.138; 10.448; 11.733; 11.731; 10.981; 11.651 e 11.413. Cf. os processos de número: 282; 524/73; 10.155; 10.448; 10.569; 10.793; 10.943; 10.959; 10.981; 11.096; 11.098; 11.138; 11.172; 11.177; 11.223; 11.260; 11.413; 11.430; 11.464; 11.500; 11.622; 11.651; 11.731; 11.842; 11.926; 11.962; 12.249; 12.250.. 218 Nem mesmo um atestado médico, o Laudo do Exame de Corpo de Delito: Conjunção Carnal, afirmando ser o desvirginamento recente será suficiente para assegurar, de forma induvidosa, a ocorrência do crime de sedução. 217 121 forma tal que ela tivesse razões para crer na sinceridade das alegadas promessas de casamento, de forma a configurar-se a justificável confiança. A escolha das testemunhas, portanto, era de grande importância219. Observando a composição sexual das testemunhas, percebemos que uma nítida divisão sexual aparece conforme elas sejam da defesa ou da acusação. Os acusados recorreram majoritariamente a outros homens, essencialmente aos amigos, para testemunharem em sua favor (Tabelas 24 e 25). Possivelmente por saberem que outros homens estariam menos propensos a condená-los por haver copulado ou mesmo desvirginado uma moça fora do casamento. Na seleção das testemunhas dos acusados, as relações de parentesco e vizinhança tornam-se insignificantes em relação às de amizade220. Como a defesa moral do acusado assentar-se-á na valorização das suas qualidades como “homem de bem”, “honesto”, “jovem trabalhador” e “benquisto em seu meio social”, os amigos, particularmente os colegas de trabalho, serão as escolhas preferidas para traçarem o perfil ideal para o acusado221. Por sua vez, as ofendidas recorreram, predominantemente, a outras mulheres como testemunhas, em que pese o fato da diferença entre os sexos, na escolhas das testemunhas, ter sido bem menor entre as ofendidas. Talvez este fato se explique pelo equilíbrio existente entre vizinhos(as) e amigas na composição das testemunhas selecionadas para a acusação (Tabelas 24 e 25)222. Ninguém melhor que as amigas, que viviam o mesmo cotidiano e partilhavam as intimidades, e os vizinhos que, muitas vezes, as conheciam “desde a mais tenra idade”, que acompanharam o seu crescimento, seu convívio com a família, e os próprios hábitos familiares, para darem testemunho do seu comportamento, 219 Processos em que as testemunhas desabonaram os comportamentos das ofendidas por elas serem, “namoradeiras”, “desobedientes aos pais” “pra frente” ou “independentes”. Ver os processos: 467/73; 7.795; 8.921; 10.155; 10.448; 10.793; 10.943; 10.959; 10.981; 11.096; 11.138; 11.172; 11.177; 11.413; 11.464; 11.500; 11.622; 11.627; 11.713; 11.924; 11.926; 12.249 220 As testemunhas masculinas correspondem a 57,1% do total das testemunhas. 221 Ver os processos: 6.727; 7.795; 8.921; 9.529; 10.448; 10.745; 10.793; 10.803; 10.937; 10.943; 10.959; 10.981; 11.098; 11.138; 11.172; 11.413; 11.426; 11.43; 11.464; 11.486; 11.487; 11.500; 11.622; 11.651; 11.713; 11.716; 11.731; 11.733; 11.842; 11.924; 11.926; 12.249. 222 As testemunhas femininas representam 42,9% do total das testemunhas. 122 comprovarem a existência do namoro e valorizarem suas qualidades morais de filhas obedientes e moças recatadas223. TABELA 24 Sexo e Percentual Personagens Acusados* Ofendidas** Masculino 92,3 38,9 SEXO DAS TESTEMUNHAS, EM % Subtotal Por Sexo*** Feminino 7,7 61,1 Total 100 100 Masculino 57,1 Feminino 42,9 Total 100 * Percentuais relativos ao total das testemunhas dos acusados (65). ** Percentuais relativos ao total das testemunhas das ofendidas (126). *** Percentuais relativos ao total das testemunhas (191). Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. TABELA 25 RELAÇÕES DAS TESTEMUNHAS COM OS ACUSADOS E COM AS OFENDIDAS, EM % Relações Com os acusados* Com as ofendidas** Amigo(a) 78,6 43,7 Vizinho(a) 9,2 42,9 Outro parentesco 4,6 4,7 Outras 4,6 1,5 Irmão(ã) 1,5 2,4 Ex-amásia 1,5 0 Pai 0 2,4 Mãe 0 2,4 Total 100 100 *Percentuais relativos ao total das testemunhas dos acusados (65). ** Percentuais relativos ao total das testemunhas das ofendidas (126). Fonte: 53 processos pesquisados em Campos dos Goytacazes. As testemunhas da ofendida, via de regra, depuseram de maneira a favorecê-la dizendo serem sabedoras do namoro224 e do desvirginamento225, falaram bem da ofendida226 enfatizando a sua boa conduta ou bom procedimento227 e submissão aos 223 Processos em que as testemunhas classificaram as ofendidas como moças recatadas: 524/73; 282; 6.727; 8.921; 9.529; 10.529; 10.745; 10.959; 11.457; 11.716; 12.250. 224 Ver os processos 132/70; 524/73; 282; 6.727; 7.816; 8.921; 9.529; 10.155; 10.448; 10.529; 10.569; 10.745; 10.803; 10.937; 10.943; 10.959; 10.981; 11.096; 11.098; 11.138; 11.172; 11.177; 11.223; 11.260; 11.413; 11.426; 11.430; 11.486; 11.622; 11.627; 11.651; 11.688; 11.731; 11.924; 11.926; 12.250; 12.285; 12.365; 12.370; 12.638. 225 Ver os processos 132/70; 467/73; 524/73; 282; 6.727; 7.816; 8.921; 9.529; 10.155; 10.448; 10.529; 10.569; 10.745; 10.803; 10.937; 10.943; 10.959; 10.981; 11.096; 11.098; 11.138; 11.177; 11.223; 11.260; 11.413; 11.426; 11.457; 11.622; 11.651; 11.688; 11.731; 11.733; 11.842; 11.924; 12.285; 12.365; 12.370; 12.638. 226 Ver os processos 132/70; 467/73; 524/73; 282; 6.727; 7.816; 8.921; 9.529; 10.155; 10.448; 10.529; 10.569; 10.745; 10.803; 10.937; 10.943; 10.959; 10.981; 11.096; 11.098; 11.138; 11.172; 11.177; 11.223; 11.260; 11.413; 11.426; 11.430; 11.457; 11.464; 11.486; 11.500; 11.622; 11.627; 11.651; 11.688; 11.716; 11.731; 11.733; 11.842; 11.924; 11.926; 11.927; 12.250; 12.285; 12.365; 12.370; 12.638. 227 Ver os processos 132/70; 282; 467/73; 524/73; 6.727; 7.816; 8.921; 9.529; 10.155; 10.448; 10.529; 10.569; 10.745; 10.803; 10.937; 10.943; 10.959; 11.096; 11.098; 11.138; 11.177; 11.223; 11.457;11.464; 11.622; 11.716; 11.731; 11.924; 12.250; 12.285; 12.365; 12.370; 12.638. 123 pais228. Afirmaram ter sido o acusado o único namorado da ofendida229 e estarem surpresas diante do fato. Muitas vezes, disseram-se convictas quanto à responsabilidade do réu no desvirginamento. Depondo na delegacia no dia 12 de janeiro de 1970, a testemunha da acusação, Úrsula Castro, brasileira, fluminense, como 41 anos de idade, viúva, do lar e alfabetizada, afirmou que: Conhece a ofendida (...) desde quando a mesma era ainda de tenra idade, afiançando ser esta menor de conduta irrepreensível, muito estimada por todos (...) mercê de suas boas qualidades; que, pode afirmar, há uns cinco meses a aludida ofendida iniciou namoro com o indiciado (...), o qual freqüentava a casa dela, assiduamente, que, (...) ficou sabendo que Suelen havia sido seduzida e desvirginada pelo referido indiciado, imputação esta que é aceita por todos (...)230. A outra testemunha da acusação, Andreia Ferreira Marins, brasileira, fluminense, com 48 anos de idade, solteira, do lar e analfabeta; depondo no mesmo dia afirmou que: Há seis anos conhece a ofendida (...) podendo afirmar ser a mesma, menor de procedimento exemplar, jamais tendo tido conhecimento de algo que pudesse desabonar o seu conceito (...) que Suelen iniciou namoro como o indiciado (...) o qual, inclusive, freqüentava a casa dela; que, (...) a declarante ficou sabendo, pela própria ofendida, que ela havia sido desvirginada pelo aludido indiciado; que, acredita nessa imputação (...) mesmo porque há dias ele, indiciado, retirou Suelen (...) de casa, estando ambos morando em comum (...)231. Na sentença que proferiu no dia 03 de agosto de 1972, o juiz afirmou: 228 Ver os processos 524/73; 282; 6.727; 7.816; 8.921; 9.529; 10.155; 10.448; 10.529; 10.569; 10.745; 10.803; 10.937; 10.959; 11.098; 11.172; 11.177; 11.223; 11.260; 11.413; 11.457; 11.464; 11.500; 11.627; 11.688; 11.733; 11.924; 11.926; 12.250; 12.285; 12.365; 12.370; 12.638. 229 Ver os processos 132/70; 7.816; 8.921; 9.529; 10.803; 11.096; 11.177; 11.223; 11.413; 11.716; 12.285; 12.365; 12.370; 12.638. 230 Processo nº 10.745, maço 574, folha 13. 231 Id. Ibid., folha 14. 124 (...) Todas a testemunhas inquiridas no feito atestaram a boa conduta da ofendida, dizendo ser ela moça recatada e namorara apenas o réu durante o período em que afirma ela ter sido deflorada. Mesmo as testemunhas ditas da defesa, dizem saber do namoro, visitar o réu a ofendida em sua residência e nunca terem ouvido falar nada contra o procedimento da menor. O réu confessou na Polícia (...) ter mantido relações sexuais com sua namorada, dando a costumeira desculpa de não a ter encontrado virgem (...)Não tem este Juízo dúvidas de que foi o réu o sedutor da ofendida, moça recatada a que ele namorava. Ressalte-se que logo após recebeu o acusado a ofendida em sua casa, passando com ela conviver maritalmente, o que não sucederia se não fosse ela moça honesta (...) de reputação duvidosa (...)232. [grifos nossos] Observando a Tabela 26 percebemos que dentre os comentários voltados à valorização moral da ofendida, grande ênfase era dada aos que a classificavam como filha obediente, sujeita à autoridade paterna. Os termos, “filha obediente”, “sujeita aos pais”, “moça presa”, “de bom comportamento ou boa conduta” e “moça recatada”, aparecem nos processos com a mesma significação que a expressão “moça de família”, segundo Carla Bassanezi, era empregada, nos anos 50, nas revistas e seções de revistas destinadas às jovens da classe média. As moças de família eram as que se portavam corretamente, de modo a não ficarem mal faladas. Tinham gestos contidos, respeitavam aos pais, preparavam-se adequadamente para o casamento, conservavam sua inocência sexual e não se deixavam levar por intimidades físicas com os rapazes (...)233. Outra referência importante era a de que ela (a ofendida) só namorara o acusado, ao menos, enquanto com ele mantinha o romance234. A questão da lealdade, da fidelidade, mostra-se fundamental. Lealdade aos pais, lealdade ao namorado, ao noivo e ao marido. Emana dos processos a imagem de que, para as testemunhas, em termos 232 Id. Ibid., folhas 56-57. Evidencia-se que o fundamental era o julgamento moral da ofendida, o julgamento das suas atitudes cotidianas. A medida que Suelen e suas testemunhas convenceram o juiz de que ela era “moça recatada” e o réu não conseguiu desqualificá-la, o juiz desconsiderou o fato de ela ter namorado o réu contra a vontade do pai e ter fugido passando alguns dias na companhia do réu, destacando na sentença que ela assim agiu por ter razões para confiar nas promessas de casamento, supostamente, feitas pelo réu. A expectativa crível do casamento justificaria o passo em falso e não conspurcaria a honestidade de Suelen. 233 BASSANEZI, Carla. Op. cit., p. 610. 234 Ver os processos: 132/70; 7.816; 8.921; 9.529; 10.803; 11.096; 11.177; 11.223; 11.413; 11.716; 12.285; 12.365; 12.370; 12.638. 125 ideais, uma moça de família seria recatada, obediente e fiel. Estas seriam as qualidades essenciais a uma moça que pretendesse uma união matrimonial e um reconhecimento público de mulher honesta. Se, entre os profissionais do judiciário de Campos, nos anos 60 e 70, a representação dicotomizada da mulher era feita pela contraposição de termos como “moça recatada”, “moça de família”, “filha obediente”, versus “moça moderna”, “moças de hoje em dia”, “filha insubmissa”, “mulher livre” e “mulher independente”, entre as testemunhas, alguns termos eram os mesmos, outros não. Nos depoimentos das testemunhas, encontramos como termos expressivos de atitudes femininas opostas, expressões como: “moça recatada”, “boa filha”, “filha obediente”, “moça benquista”, “moça de bom procedimento”, “moça presa”, “moça de bons princípios”, “moça de família”, “boa moça”, “moça séria”, versus “moça de comportamento avançado”, “moça largada”, “mulher falada”, “moça de embalo”, “namoradeira”, “moça que anda com um e com outro”, “moça de má conduta”, “moça de mau procedimento”, entre outros. As testemunhas, assim como os acusados e queixosos(as), não empregavam em seus depoimentos expressões como “modernização dos costumes” e “mulher independente”, que eram da lavra dos profissionais do judiciário. As diferenças contudo não se resumiam aos termos, eram de significação. Nos pronunciamentos dos profissionais do judiciário, os termos que qualificavam as mulheres adquiriam uma rigidez maior. 126 TABELA 26 COMENTÁRIOS POSITIVOS DAS TESTEMUNHAS DA ACUSAÇÃO SOBRE AS OFENDIDAS, EM %* Comentários Percentual** Testemunhas falam bem da ofendida 90,6 Ela é moça de família (recatada ) criada pelos pais e obediente Testemunhas dizem saber do namoro 88,7 75,5 Testemunhas dizem saber do desvirginamento Ela tem bom procedimento 71,7 50,9 O acusado freqüentava a casa da ofendida Ela namorava com o consentimento dos pais 34 30,2 Testemunhas não sabem de nada que desabone a conduta da ofendida O acusado foi o único namorado da ofendida 30,2 26,4 Ela só saía com os pais Ouviu comentários sobre o desvirginamento 24,5 18,9 Ela é moça benquista Ela não freqüenta festas nem bailes 17 11,3 Vizinhos comentam que foi o acusado Ouviu do acusado que ele prometeu casamento 7,5 3,8 * Estes são apenas alguns dos comentários positivos ditos pelas testemunhas da acusação a respeito das ofendidas. ** Os percentuais são relativos ao total de processos (53), e não ao total das testemunhas da acusação (126). Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. Percebe-se claramente a necessidade de se caracterizar a ofendida como “boa filha”, “moça de bom procedimento” e “moça recatada”. Mas é possível que tais caracterizações não se reduzissem a uma estratégia discursiva das testemunhas, sendo, também, valores, padrões de comportamentos, que as testemunhas desejassem ver seguidos pelos(as) jovens. Encontramos também testemunhas da acusação, que, ao deporem, fizeram comentários que comprometeram, frente ao juiz, a representação da ofendida como “moça recatada”, inexperiente ou que tivesse motivos para depositar justificável confiança no réu. Aqui encontramos desde aquelas testemunhas que, pensando estarem ajudando a justificar e legitimar certas atitudes da ofendida, acabaram por comprometê-la, até aquelas que, disseram não poder “mentir” para ocultar hábitos e práticas da ofendida de forma a representá-la positivamente perante a autoridade policial ou judiciária235. 235 Ver os processos 467/73; 7.795; 8.921; 10.155; 10.448; 10.793; 10.943; 10.959; 10.981; 11.096; 11.138; 11.172; 11.177; 11.413; 11.464; 11.500; 11.622; 11.627; 11.713; 11.924; 11.926; 12.249. 127 Eliézio Fernandes, brasileiro, fluminense, viúvo, ferroviário, analfabeto e testemunha da acusação, depondo em juízo no dia 01 de fevereiro de 1974, declarou conhecer o acusado e a ofendida ‘desde garotos’, tendo-os como “boas pessoas”, e mais, (...) que nunca viu o acusado namorando a ofendida; que, nem mesmo, (...) soube do namoro entre o acusado presente e a ofendida (...) nunca viu o acusado presente na residência da ofendida; que (...) é vizinho da ofendida (...) que o depoente nunca viu a ofendida namorar qualquer rapaz (...) nunca ouviu qualquer fato desabonador à moral da ofendida; (...) que a ofendida esteve na cidade do Rio de Janeiro (...) que em Outeiro há dois salões de bailes; que é comum a ida de moças da localidade de Taquaruçu a Outeiro, para participarem de bailes; que tais bailes se iniciam às 22 horas, terminando por volta de 4 horas do dia seguinte, que o depoente, por diversas vezes, viu a ofendida em tais bailes; que (...) já teve a oportunidade de ver a ofendida acompanhada de dois ou três rapazes nos bailes (...)236. [grifos nossos] Tratando-se de uma testemunha da acusação, podemos supor que Eliézio não quis, deliberadamente, prejudicar a nossa conhecida Milena de Jesus. Em verdade, parece-nos que Eliézio procurou justificar os hábitos noturnos de Milena, ao apontar como comum a ida de moças da localidade de Taquaruçu, onde residiam, aos bailes de sábado em Outeiro. Talvez, também, por não recriminar a conduta de Milena e não considerá-la desabonadora da sua moral, já que dentro dos padrões da sociabilidade local. Mas, ao confirmar que ela ia, desacompanhada dos pais e por entre canaviais a bailes que se iniciavam às 22 e terminavam às 4 horas, e que nestes bailes já a vira acompanhada de dois ou três rapazes, Eliézio comprometeu qualquer possibilidade de Milena ser reconhecida como “recatada”, “moça de família” e de “boa conduta”. Apesar de ser testemunha da acusação, o seu depoimento foi de grande valia para a defesa do réu. Em outra ação, a testemunha da querelante, Eugênio Cintra, brasileiro, fluminense, viúvo, funcionário público municipal, com 45 anos de idade e alfabetizado; depondo em juízo no dia 03 de julho de 1973, muda a linha do depoimento prestado na delegacia afirmando que, ao depor, o fizera a favor da vítima por achar, à época, que ela merecia, 236 Processo nº 11.924, maço 562, folha 26. 128 (...) mas depois disso, só pode depor contra ela, dado o procedimento que ela vem tendo (...) que o depoente acha que a ofendida não tem condições de ser uma chefe de família; que diz isso em razão do ambiente que a ofendida freqüenta, o Kazarão, BR 3, etc.; que essas casas são de tolerância; que o depoente já viu a vítima com um amante (...) até a época em que o depoente prestou depoimento na delegacia de polícia, a ofendida tinha boa conduta, pois depois de uns quinze dias que ela começou a decair (...)237. [grifo nosso] O principal papel de uma testemunha da acusação era contribuir para que o juiz traçasse um perfil moral positivo da ofendida. Neste sentido, o depoimento de Eugênio foi um desastre para as pretensões de Marília Guimarães, a ofendida. Se a perda da virgindade fora do casamento, não eqüivalia a uma inexorável queda na prostituição, e as ofendidas não eram, necessariamente, mulheres prostituídas, a acusação de Eugênio de que Marília dera a freqüentar “casas de tolerância”, era gravemente desabonadora da sua conduta, negação de qualquer recato ou predicado moral, ainda mais porque partia de alguém insuspeito, uma testemunha escolhida e trazida ao processo pela própria ofendida. Processo similar ocorreu com os acusados, as testemunhas deles depuseram quase sempre no sentido de dar caução às táticas defensivas. Tais táticas, via de regra, consistiram em redargüir e menoscabar a moral e os comportamentos das ofendidas, a exemplo dos depoimentos que se seguem. Claudiney do Amaral, testemunha da defesa, brasileiro, casado, comerciante, com 28 anos de idade, sabendo ler e escrever, depondo em juízo no dia 13 de março de 1973, disse que: conhece o acusado há uns dois anos sabendo que ele trabalha na CELF; que passou a conhecer a ofendida quando esta fazia compras no Mercado Municipal, onde trabalha o depoente. Às perguntas da defesa respondeu: que o depoente, por volta de 1971, teve ocasião de manter relações sexuais com a ofendida, por mais de uma vez, tendo ela lhe dito que havia se perdido com um outro homem; que isto ocorreu no meado para o final de 1971; que ficou uns dois meses com a ofendida; que foi o depoente quem procurou se esquivar dela (...)238. [grifo nosso] 237 Processo nº 11.622, maço 570, folha 38. Processo nº 11.413, maço 565, folha 34. Ver também os processos 6.727; 7.795; 8.921; 10.448; 10.529; 10.745; 10.793; 10.943; 10.959; 11.098; 11.138; 11.464; 11.651; 11.731; 11.924; 12.249; 12.250. 238 129 No mesmo processo, Gileno Ferreira Borges, testemunha da defesa, brasileiro, solteiro, balconista, com 23 anos de idade, sabendo assinar, disse que: (...) que conheceu a ofendida certa noite na rua 7 de Setembro (...) que procurou se aproximar dela, que, a princípio, fingiu não querer nada, mas acabou concordando em que conversassem perto de um portão de uma casa, onde disse trabalhar; (...) o depoente passou a mão nela e notou que estava sem a peça de baixo e então a convidou para ir a um Jardim próximo; (...) lá indo acabaram mantendo relações sexuais em pé mesmo, notando o depoente que ela não era mais moça; (...) depois desta noite ainda continuou mantendo relações sexuais com a ofendida por umas duas semanas, até que o depoente foi trabalhar no Rio (...) isto ocorreu no começo de 1972 (...)239. [grifo nosso] O juiz, ao sentenciar argumentou: Reza a denúncia que o réu teria seduzido a ofendida. O acusado sempre negou a prática do crime que lhe foi imputado, muito embora admitisse a prática de relação sexual, afirmando não ser virgem a pretensa ofendida. A testemunha Juliano Freitas D’Ouriol (...) disse e repetiu que ouviu quando a ofendida dizia para a própria mãe que não tinha sido o réu o autor do seu defloramento, mas, sim, outro rapaz. Afirmou ainda ter encontrado facilidade demais por parte da ofendida em um baile que houve em casa do tio dela. Claudiney do Amaral (...) afirmou textualmente ter mantido relação sexual com a menor, por mais de uma vez, no final de 1971, tendo ela lhe afirmado haver se perdido com um outro homem. Gileno Ferreira Borges (...) também declarou ter mantido relação sexual com a ofendida, que não era mais virgem, isto no começo de 1972. A Promotoria Pública entende que ditas testemunhas não merecem fé, não sabendo por que se faz dita alegação, uma vez que não foram elas contraditas nem se comprovou nenhum motivo para que não se desse crédito a seus depoimentos. Não há razão para se acreditar exclusivamente nas testemunhas arroladas na denúncia e se desprezar as de defesa, apenas porque o são240. [grifos nossos] As testemunhas da defesa haviam cumprido a sua missão. Conseguiram fomentar no juiz uma imagem desqualificadora da ofendida e foi com base nessa representação que ele formou seu juízo de valor sobre ela e definiu a sentença absolutória. 239 240 Id. Ibid., folha 35. Id. Ibid., folhas 42 a 44. Ver também os processos 10.943; 10.155; 10.959; 11.096; 11.464; 11.500. 130 Para entendermos bem a importância das testemunhas nesse tipo de processo é preciso termos em conta que, assim como não estudamos o fato - em nosso caso, a sedução e o desvirginamento - mas a sua denúncia, os seus relatos e conseqüências; o julgamento que os juízes fazem não é, efetivamente, o julgamento do fato - ao qual não se pode mais voltar - o que se julga são as imagens produzidas pelas narrativas a respeito do fato. A conclusão a que se chega a partir das diversas narrativas - e dos outros procedimentos analíticos - constitui-se na “verdade jurídica”, a sentença, que pode ou não ser coincidente com a “verdade real”, isto é, com o fato. Mas esta coincidência não é imprescindível à produção da “verdade jurídica” - apesar de ela ser apregoada como o fim último da ação judiciária - pois a sentença, em última instância, será formulada tão somente pelo julgamento das narrativas e pela aplicação dos elementos estruturantes da dinâmica jurídica, isto é, os diversos códigos e normas que organizam o poder judiciário e sua práxis241. As testemunhas, portanto, tinham papel chave na construção, perante as autoridades policiais e judiciárias, das imagens positivas e negativas das ofendidas e acusados. Imagens a partir das quais os juízes proferiram as suas sentenças. Mas não se esgotava aí a participação das testemunhas, ao menos para o historiador. As testemunhas, ao deporem, revelavam de forma mais ou menos fragmentária aspectos do cotidiano dos envolvidos, além de valores do grupo social ou comunidade em que estavam inseridas. 5. OS PAIS, AS MÃES E OS PAPÉIS DE GÊNERO Ó mãe, me pega me ensina me diz como é feminina... Joice Um processo por sedução tinha seu início com a apresentação da queixa na delegacia, sendo que o(a) queixoso(a) deveria ser pessoa legalmente responsável pela menor ofendida, preferencialmente o pai ou, na ausência deste, a mãe242. A condição de pessoa responsável pela 241 A respeito dessa relação entre o fato e nossa condição de só podermos lidar com as suas conseqüências, ver CORRÊA, Mariza. Morte em Família: Representações Jurídicas de Papéis Sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983. 242 Na pesquisa da Martha Abreu, 10,3% das queixas foram apresentadas pelas próprias ofendidas; 9,1%, pelos pais; 42%, pelas mães; 20,4%, por parentes reais ou fictícios; 11,4%, por patrões e 6,8%, pela polícia. No estudo da Cristina Donza temos que 51% das queixas foram apresentadas pelas mães; 16%, pelos pais; 12%, por tutores; 9%, por parentes; 4%, pelas próprias ofendidas; 1%, pela polícia e 7% não tem registro. Nos casos que estudamos em Campos dos Goytacazes, não localizamos nenhum em que a própria ofendida tenha tido a iniciativa de apresentar a queixa (o que não seria legalmente possível em virtude da sua menoridade), não localizamos a figura do “parente 131 ofendida, que por ser menor de idade não podia tomar a iniciativa da queixa, deveria ser comprovada pela apresentação do Registro Civil de Nascimento da ofendida. Sendo uma ação privada, pois atingia a honra do indivíduo, a autoridade policial não poderia tomar a iniciativa do processo. O ministério público somente ofereceria a denúncia, tornando a ação pública, mediante a comprovação, através do Atestado de Miserabilidade, da incapacidade econômica do(a) queixoso(a) em proceder a contratação de advogado para representá-lo(a) numa ação privada. Assim, o primeiro quesito para a apresentação da queixa exigia a identificação do tipo de laço que unia o(a) queixoso(a) à ofendida, do qual pudemos ter conhecimento através dos Termos de Representação e dos Termos de Ratificação de Queixa. Procedimentos burocráticos que nos permitiram conhecer, quantitativamente, a figura do(a) queixoso(a) e aventurar algumas reflexões a seu respeito. Da mesma forma que nos processos estudados por Martha Abreu e Cristina Donza243, também em Campos, nos anos sessenta e setenta do século XX, foi sobre as mães que recaiu, na maior parte das vezes, a responsabilidade de ir à delegacia apresentar a queixa contra o suposto sedutor, mesmo quando ela era formalmente casada ou vivia com o pai da ofendida. De acordo com a legislação, seria do pai o atributo legal de representar a família na qualidade de seu chefe244. É o que demonstra a Tabela 27. fictício” nem tutores (o que localizamos foram casos em que os acusados eram menores, 22,6%, e compareceram à delegacia sem a presença de um responsável legal; nestes casos, foram nomeados, na própria delegacia, curadores para acompanharem e assinarem os depoimentos). Também não localizamos referências aos processos nos jornais campistas do período. Cf. ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 162. Ver também CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., p. 62. Deve-se ter em conta que o fato de as ofendidas não poderem legalmente apresentar a queixa, não as impedia de induzir os pais a fazê-lo. 243 Cf. ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., pp. 160-163. Ver CANCELA Cristina Donza. Op. cit., p 62. 244 A chefia da família pelo marido era legalmente reconhecida pelo Código Civil. Apesar de obrigar, a partir do Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121 de 27/8/1962), a que a esposa contribuísse para a manutenção da família, “com os rendimentos de seus bens, na proporção de seu valor, relativamente aos do marido” (art. 277), o Código Civil em seu artigo 233, ainda definia como sendo uma das obrigações do marido: “Prover a manutenção da família (...) ao mesmo tempo que o mantém na chefia ‘da sociedade conjugal’ que deverá ser exercida com a colaboração da mulher”. Cf. NEGRÃO, Theotonio (org.). Código Civil e Legislação Civil em Vigor. São Paulo: Saraiva, 15ª, [1ª ed., 1980], 1996, pp. 80-89. Ver também, WALD, Arnoldo. Direito de Família. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 7ª ed., revista, ampliada e atualizada, 1990, p. 48. 132 TABELA 27 RELAÇÃO DE PARENTESCO ENTRE O(A) QUEIXOSO(A) E A OFENDIDA, EM % Parentesco % Mãe 58,5 Pai 39,6 Irmã 1,9 Total 100 Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. Quanto às concernências “amorosas” das suas filhas, a maioria dos(as) queixosos(as) afirmou ter conhecimento e aprovar o namoro (Tabela 28). A maioria também declarou ter tomado conhecimento do desvirginamento através da própria ofendida (Tabela 29)245. Não temos como saber, através dos processos, o quanto desses depoimentos foram mentiras contadas com o intuito de apresentar as “ofendidas” como moças recatadas, que só namoravam com a autorização dos pais e que, caídas em sedução, se arrependiam e tudo revelavam às famílias. Pela análise dos processos, pudemos perceber que o fato dos pais terem ciência dos namoros das suas filhas não implicava no exercício sobre elas de uma vigilância cerrada, ao menos, não nos moldes do namoro moralizado defendido pelos juristas246. 245 Esta é uma situação bem diferente da relatada por Cristina Donza. Segundo a antropóloga paraense, em Belém, o conhecimento do relacionamento amoroso e sexual pelos parentes, só se dava quando: ocorria gravidez, os pais recebiam bilhetes ou cartas anônimas denunciando, liam nos jornais sobre o defloramento, a mãe deparava-se com a falta da filha na cama de madrugada. As menores, na maior parte das vezes, só relatavam o envolvimento com o acusado quando ele fugia ou se descobriam grávidas. Ver, CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., pp. 79-80. 246 Estamos denominando de namoro moralizado o tipo de namoro apregoado pelos profissionais do judiciário o qual, como já dissemos, se caracterizaria por ser autorizado e acompanhado pelos pais da moça, realizado dentro da casa da moça sob as vistas dos pais, em dias e horários previamente estabelecidos. Nesse namoro moralizado, não haveria lugar para atos libidinosos tais como toques nos seios e na vagina, o rapaz deixaria explicitas suas intenções matrimoniais e, após certo tempo, celebrar-se-ia o noivado e marcar-se-ia a data para o casamento. A respeito do namoro “moralizado”, ver AZEVEDO, Thales de. As Regras do Namoro à Antiga (Aproximações Sócioculturais). São Paulo: Ática, 1986. Cf. ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., pp. 139 e seguintes. Cf. CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., p. 84. 133 TABELA 28 POSIÇÃO DO(A) QUEIXOSO(A) DIANTE DO NAMORO DA FILHA, EM % Cor dos Namorados Posição do(a) Queixoso(a) Total "branca" "parda" "preta" Não sabia 41,5 20,7 18,9 1,9 Sabia e aprovava 50,9 26,4 15,1 9,4 Sabia e desaprovava 3,8 1,9 0 1,9 Sem referência 3,8 1,9 1,9 0 Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. Obs: 27 acusados (50,9%) foram classificados como “brancos”, 19 (35,8%), como “pardos” e 7 (13,2%), como “pretos”. Analisando a Tabela 28, apesar de ser expressivo o percentual dos pais que disseram não saber dos relacionamentos “amorosos” das suas filhas, o que nos chamou mais a atenção foi o percentual insignificante daqueles que, sabendo do namoro, disseram desaprová-lo. Este dado pode ser indicativo de que os pais tinham grande interesse em casar suas filhas, daí não imporem muitos obstáculos às suas escolhas amorosas (não temos nenhum indício de que os relacionamentos dessas jovens resultassem de arranjos entre famílias e, por isso, consideramos que os mesmos decorriam de livres escolhas)247. Observamos que enquanto o total de namorados “brancos” somava 50,9%, o índice de desaprovação desses namorados por pais que disseram saber do namoro foi de apenas 1,9%; por sua vez, num total de 35,8% de namorados “pardos” não houve, da parte dos pais que afirmaram saber do namoro, nenhuma desaprovação; por outro lado, dos 13,2% de namorados “pretos”, houve somente 1,9% (um caso) de rejeição por parte do pai que alegou ter ciência do namoro. É o mesmo índice de rejeição encontrado para namorados “brancos”248. Os pais, em sua maioria, talvez para causar uma boa impressão, não só disseram ter conhecimento do namoro, como afirmaram ter sido informados do desvirginamento pelas próprias ofendidas (Tabela 29). Se elas não foram ciosas na guarda das suas virgindades, ao menos, por arrependimento, constrangimento ou necessidade, confessaram aos pais o “mal passo” dado. A imagem da filha arrependida é, diante das circunstâncias, a mais apropriada. Certamente os pais tentaram passar a imagem de que exerciam vigilância em relação às suas 247 Este é, por exemplo, o caso da nossa conhecida Eva de Jesus Flores (processo 11.177) que, segundo contou, namorou sem o conhecimento familiar e, para livrar-se dos pais, teria convencido o namorado a tirá-la de casa e com ela viver amasiado apesar do mesmo ser casado e ter uma outra amante. 248 Sobre a seletividade étnico/racial das ofendidas e acusados em suas relações amorosas/sexuais, ver no Capítulo IV- Práticas Sexuais, o item 3: A Hierarquia das “Cores” nas Relações Sexuais. 134 filhas e que dispunham de autoridade sobre elas. Contudo, menos da metade das ofendidas afirmou ter revelado aos pais o desvirginamento249. TABELA 29 ATRAVÉS DE QUEM O(A) QUEIXOSO(A) DISSE TER TOMADO CIÊNCIA DO DESVIRGINAMENTO, EM % Soube Através: % Da ofendida 62,3 De outras pessoas 13,2 De outro parente 11,3 Do cônjuge 7,5 Do vizinho 3,8 Do filho 1,9 Total 100 Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. Considerando os lugares do defloramento, Martha Abreu, ao pesquisar processos da Belle Époque carioca, concluiu que: (...) as mães (ou responsáveis) não tiveram muitas possibilidades de exercer controle sobre as vida de moças pobres: elas ‘saíam das vistas do privado’ e amavam em diversos locais. Em apenas 25% dos casos de amor, as mães poderiam tentar fiscalizar suas filhas dentro de casa. Mas, afinal, não teriam muitas outras coisas com que se preocupar?250. Por sua vez, Cristina Donza verificou, para a Belém do início do século XX, ser a casa, da ofendida ou do acusado, de todos os lugares, aquele onde ocorreram a maioria dos encontros amorosos entre o casal de namorados251. Estes encontros, observou Cristina Donza, 249 37,7% das ofendidas disseram terem relatado às mães o desvirginamento; 11,4% afirmaram terem contado para amigas; 9,4% disseram terem contado para as irmãs; 5,7%, para os pais; 11,3% não contou para ninguém; 1,9%, para vizinhos; 9,4% disseram terem contado para outras pessoas; 13,2% não registraram esse dado 250 ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 163. Na pesquisa de Martha Abreu, 25% das ofendidas disseram ter sido defloradas na própria casa; 12,5%, na casa dela e do acusado (casa de cômodos); 2,2%, na casa de parentes; 20,4%, na casa do acusado; 21,6%, em lugares externos como hospedarias ou no mato e 18,2%, na casa de trabalho da ofendida. 251 Nos processos analisados por Cristina Donza, 36% dos defloramentos teriam ocorrido na casa da ofendida (sem especificar se dentro ou fora); enquanto 29% se teriam passado na casa do ofensor; 3%, na casa de conhecidos; 1%, em casas de aluguel; 3%, no mato; 1%, das ofendidas não foi deflorada; 1% não se lembrou do local e 26% não tiveram o lugar identificado na pesquisa. Ver CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., p. 73. 135 (...) evidenciam antes de mais nada a elasticidade e o controle tíbio da família das meninas no que se refere aos seus passos cotidianos. Seja vivendo com o pai e/ou mãe, seja vivendo em companhia de um tutor, os parentes não conseguiam ter controle sobre suas vidas. Os momentos de trabalho das pessoas da casa, ou mesmo os momentos de repouso, eram usados por elas para realizarem seus encontros amorosos. Driblando a vigilância de seus familiares e tutores, elas encontravam modos de se encontrar a sós com seus namorados (...)252. Dessa forma, a pesquisa de Cristina Donza ao demonstrar que apenas 36% dos defloramentos ter-se-iam dado nas casas das ofendidas - significando que 64% deram-se fora da casa -, fortalece a conclusão de Martha Abreu de que os encontros sexuais davam-se, majoritariamente, em lugares longe do controle e vigilância das mães e responsáveis pelas ofendidas, as quais, certamente, gozavam de grande mobilidade. Mesmo quando o namoro era autorizado pelos pais e realizado “em casa”, muitas vezes, não tinha dias e horários pré-determinados e os namorados ficavam a sós, mesmo no interior da casa, sem uma vigilância específica e, normalmente, até “altas horas”. Tais práticas indicariam, diz Cristina Donza, uma maior flexibilidade dos pais e/ou mães, além dos tutores das meninas pobres, no que tangia aos seus encontros e relacionamentos “amorosos”253. Uma explicação proposta por Cristina Donza é a de que, talvez, para os pais dessas meninas o essencial fosse que os vizinhos soubessem do namoro (satisfação social), não sendo negativo para a honra da moça o fato de namorar até “altas horas”. Nos processos que analisamos em Campos, a grande maioria das ofendidas, 77,4% disse ter tido a primeira relação sexual com o acusado longe do lar materno; sendo que desse total, 51,3% (ou 39,7% do total dos processos) foram realizadas no mato ou na rua (Tabela 22). Apenas 22,6% das cópulas teriam sido praticadas nas residências das ofendidas; porém, somente duas ocorreram no interior das casas, as outras foram realizadas com os casais encostados nos muros, nos portões ou deitados nos quintais. Podemos concluir que os pais das moças via de regra, permitiam certo nível de intimidade e privacidade ao casal, aceitavam que eles pudessem ficar, no espaço da casa, 252 253 Id. Ibid., p. 82. Id. Ibid., p. 84 e passim. 136 namorando sem a presença permanente de um “responsável”. Certamente esta atitude dos pais não significava desmazelo para com as filhas, mas uma compreensão do ato de namorar, onde a escolha do parceiro era de responsabilidade - ainda que não exclusiva, ao menos principalmente - da moça. Cabia a ela, nos encontros com o namorado, decidir se o queria ou não para marido254. Certamente a virgindade tinha valor e os pais não desejavam que suas filhas se entregassem a outro que não o seu marido, contudo, em nenhum dos processos encontramos a ofendida sendo rejeitada pelos pais e posta para fora de casa por causa do desvirginamento255. Assim, verificamos uma aproximação com as conclusões de Martha Abreu e Cristina Donza256, relativa à vigilância familiar sobre as meninas ofendidas do Rio de Janeiro e de Belém na Belle Époque. Também em Campos, os pais não conseguiram ou não desejaram exercer uma severa e absoluta vigilância sobre as práticas amorosas das suas filhas. Mesmo com 81,5% das ofendidas vivendo com os pais em famílias do tipo nuclear e 64,1% exercendo suas atividades domésticas no próprio “lar”, o controle familiar sobre elas era relativo, parcial e possibilitava margens de manobra para as moças, que aproveitavam para manter contatos íntimos e relações sexuais com os namorados. O controle, se havia, era certamente, menos rígido do que o desejado e pregado pelos profissionais do judiciário e por outros setores que, em diversos momentos, receitaram a vigilância familiar como necessária à contenção e disciplinarização da sexualidade feminina, conforme demonstramos no Capítulo I. Uma outra aproximação entre os resultados da nossa pesquisa e as pesquisas de Martha Abreu e Cristina Donza257 diz respeito à divisão das responsabilidades entre pais e mães nos cuidados para com as filhas. Se nem sempre as ofendidas confessaram às suas mães e pais o seu desvirginamento e se estes não possuíam sobre elas o controle desejado pelo judiciário, quando o problema surgia e as moças se encontravam desvirginadas e abandonadas pelos namorados, elas recorriam mais às mães (que aos 254 Um dado a favor dessa nossa hipótese de que as moças pobres gozavam de grande liberdade para escolher seus próprios namorados está no fato de apenas 3,8% dos pais que sabiam do namoro o terem desaprovado. Mesmo para os grupos sociais de maior poder econômico, a escolha do esposo, ainda que devendo ser aprovada pela família, já era nos anos 60 e 70, um direito e dever das moças. Cf. BASSANEZI, Carla. Op. cit. pp. 614-620. 255 Contrariamente, Cristina Donza localizou em Belém três casos em que os pais expulsaram as filhas de casa após descobrir o defloramento. Ver CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., p. 87. 256 Cf. ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 158. Cf. CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., pp. 72-91. 257 Cf. Id. Ibid., passim. Cf. Id. Ibid., 62. 137 pais) para contarem do desvirginamento, ou partia das mães (mais que dos pais) a desconfiança de que algo havia acontecido. Numa ou noutra situação, evidencia-se como feminina, materna, a responsabilidade no acompanhamento da conduta das meninas258. Ao concluirmos este capitulo, consideramos possível estabelecermos alguns paralelos com as pesquisas de Martha Abreu e Cristina Donza259 e com alguns valores analisados no Capítulo I. Assim como entre as ofendidas cariocas e belenenses da Belle Époque estudadas, respectivamente, por Martha Abreu e Cristina Donza, as querelantes campistas, também mantiveram, em sua maioria, relações amorosas de curta duração. A brevidade entre o início do namoro e o alegado desvirginamento, confrontava-se diretamente com as normas dos juízes que consideravam um namoro longo e o noivado como elementos capazes de demonstrar a seriedade e a intenção matrimonial do namoro260. Se a maioria das ofendidas de Campos namorou, segundo depuseram os(as) queixosos(as), com o conhecimento dos pais261, elas também mantiveram “contatos íntimos” com os namorados nas ruas, nos portões e quintais, contrariando os princípios do namoro moralizado e da “moral familiar” apregoados pelos juízes262. Nas histórias relatadas nos processos, encontramos, para o desagrado dos juízes, mulheres ativas em suas relações amorosas e que foram classificadas pelos profissionais do judiciário de Campos como “mulheres independentes”, “mulheres livres” ou “mulheres modernas”. A expressão “mulher moderna” ou “mulher livre”, 258 No caso dos acusados, 5,7% disseram ter revelado o seu relacionamento sexual com a ofendida para um amigo, enquanto 94,3% não declararam nenhum comentário. 259 Cf. ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit. Cf. CANCELA, Cristina Donza. Op. cit. 260 Processos em que os juízes, explicitamente, recriminaram as ofendidas por terem copulado sem a existência de um noivado, que tornasse crível as promessas de casamento dos acusados, ou por terem copulado sendo curto o namoro, o que não permitiria que elas depositassem justificável confiança nas promessas de casamento dos acusados: 282; 10.155; 10.529; 10.569; 10.943; 10.959; 10.981; 11.096; 11.098; 11.138; 11.172; 11.177; 11.223; 11.413; 11.430; 11.464; 11.500; 11.622; 11.651; 11.716; 11.733; 11.926; 12.249; 12.250. 261 Processos em que os juízes recriminaram as ofendidas por terem namorado sem o consentimento dos pais: 282; 10.155; 10.529; 10.569; 10.943; 10.959; 10.981; 11.138; 11.177; 11.223; 11.413; 11.464; 11.622; 11.651; 11.733; 11.842; 12.249; 12.250. 262 Ver os processos: 282; 7.795; 10.937; 11.098;11.172; 11.430; 11.486; 11.500; 11.716; 11.731;11.733; 11.842; 11.924. 138 adquire nos pronunciamentos um tom e sentido sempre pejorativo, como notara Sueann Caulfield para os anos 30263. As testemunhas também empregaram termos que configuravam modelos ideais para os comportamentos femininos. Alguns próximos, outros diferentes dos utilizados pelos profissionais do judiciário. Nos depoimentos das testemunhas encontramos a contraposição entre a “moça recatada”, a “moça de família” e obediente aos pais versus a “moça largada” e desobediente. A oposição entre a “moça de família” e a “moça largada”, como referências de comportamentos femininos positivos e negativos, foi localizada por Carla Bassanezi264 em revistas femininas dos anos 50. A constatação da existência, entre os setores populares, de referenciais binários e dicotômicos na representação dos comportamentos femininos, não significa que os homens e mulheres das camadas populares vivessem suas vidas dentro dos estreitos limites dos modelos. O que se evidencia nos depoimentos são comportamentos plurais e contraditórios, aos quais se busca dar uma coerência discursiva durante os depoimentos. Em alguns casos, os juízes mostraram-se dispostos a relevar certos comportamentos “impróprios” das ofendidas, como namorar sem o consentimento dos pais e mesmo ceder a virgindade antes do casamento se, pela avaliação dos seus comportamentos e hábitos, possibilitada pelos depoimentos das testemunhas, ficasse para o magistrado a impressão ou certeza de serem as ofendidas “moças de família”, que concordaram com a relação sexual em razão de insistentes e críveis promessas de casamento. Como disse um assistente da acusação, o casamento é “o sonho de uma jovem” e, “a certeza do casamento próximo, a antevisão do lar, da prole, a seriedade demonstrada na formulação do connubii promissionis desmoraliza e desnorteia ”. 265 Assim, o Estado que criminalizava e punia a sedução, também deixava margens para o perdão, que também podia ser estendido ao acusado condenado, se ele casasse com a ofendida ou se ela contraísse matrimônio com outro homem. O 263 CAULFIELD, Sueann. Op. cit., passim. BASSANEZI, Carla. Op. cit., passim. 265 Processo 11.464, maço 565, folhas 50-51. 264 139 casamento da ofendida com o acusado, mesmo que ele já tivesse sido condenado, ou com outro homem, possibilitava a extinção da punibilidade, cessando toda ação penal266. Para os profissionais do judiciário, o casamento era a solução ideal para a desdita de uma jovem seduzida e desvirginada. Mas será plausível supor que a perspectiva ou o desejo do casamento possa ter influído nas relações amorosas e sexuais das jovens que protagonizaram os processos-crimes por sedução em Campos? Teria a perspectiva ou desejo do casamento influenciado a decisão das jovens e/ou seus pais de processar seus supostos defloradores? 266 Onze acusados obtiveram o benefício. Sete (63,6%) por terem casado com a ofendida; três (27,3%) por ela ter casado com outro homem e um (9,1%) por não ter sido intimado dentro do prazo legal. CAPÍTULO IV PRÁTICAS SEXUAIS 141 1. JUSTIFICANDO A SEDUÇÃO – AS OFENDIDAS Moça, sei que já não és pura teu passado é tão forte pode até machucar... Vando A maior parte das ofendidas tentou justificar a cópula pré-nupcial alegando ter confiado nas promessas de casamento dos acusados (Tabela 30)267. TABELA 30 JUSTIFICATIVAS DAS OFENDIDAS PARA TEREM COPULADO, EM % %* JUSTIFICATIVAS Excitação e promessa de casamento Gostar e promessa de casamento Somente por promessa de casamento** Gostar, excitação e promessa de mancebia*** Gostar do acusado, carícias e promessa de casamento Provar para o acusado ser "moça"**** Gostar do acusado que ameaçou romper o namoro Carícias, sem falar em promessa de casamento Gostar do acusado, ameaça de rompimento e promessa de casamento Inexperiência e promessa de casamento Somente por promessa de mancebia Vencer a oposição da família dele Vencer a oposição do pai dela 26,4 26,4 17 11,3 9,4 7,5 5,7 1,9 1,9 1,9 1,9 1,9 1,9 Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. *Os percentuais não fecham em 100% porque algumas motivações aparecem em mais de um processo. Ocorre também da ofendida apresentar em juízo motivos que não declarou na delegacia ** Casos em que a ofendida não apresentou nenhuma outra motivação para a cópula que não a promessa de casamento. ***A mancebia aparece nos processos como a promessa de “cuidar dela”, “tomar conta dela” ou “montar casa para ela”. **** Significa provar ser virgem. Entretanto, 32,1% das ofendidas (percentual resultante da soma de todos os itens em que não há referência à promessa de casamento) alegaram razões outras, que não uma promessa explícita de casamento, especialmente a promessa de mancebia 267 Ver os processos de número, 132/70; 524/73; 6.757; 7.795; 7.816; 8.921; 9.529; 10.448; 10.569; 10.745; 10.793; 10.803; 10.937; 10.943; 10.959; 11.096; 11.138; 11.223; 11.413; 11.430; 11.457; 11.464; 11.486; 11.500; 11.627; 11.651; 11.688; 11.731; 11.733; 11.842; 11.924; 11.926; 11.927; 12.285; 12.365. 142 (13.2%)268 como justificativa para a cópula desvirginadora269. Em 83% das declarações, nas quais aparece a alegação da promessa de casamento270, somente em 17% as ofendidas apontaram a promessa de casamento como a única motivação para se deixarem desvirginar271. Por outro lado, 66% das ofendidas272 reconheceram que além da promessa de casamento teriam cedido sob a influência de carícias e da excitação, produzida por seus namorados através de blandícias e atos libidinosos. Isto é, reconheceram que copularam, também, por tesão273. Temos ainda que dentre as 13,2% de ofendidas que disseram ter aceitado a cópula desvirginadora em função de uma promessa de mancebia, 11,3% agregaram à promessa o fato de gostarem dos namorados e estarem muito excitadas274. Certamente não eram esses os depoimentos que os juízes gostariam de ouvir275 e as ofendidas, em sua maioria, não souberam, não quiseram ou não viam razão para esconder em seus depoimentos (especialmente o prestado na delegacia, antes de terem uma possível orientação do promotor ou de um assistente da acusação), seus sentimentos, suas punções e seus hábitos - sociais e amorosos - conflitantes com os valores da “moral familiar” que orientavam juízes e promotores nos crimes contra os costumes. A constância com que a admissão de estarem muito excitadas no momento em que permitiram a cópula desvirginadora é feita nos processos, sugere-nos duas 268 Percentual relativo à soma de todos os itens em que há referência à promessa de mancebia. Ver os processos de número 10.155; 11.172; 11.177; 11.260; 11.426; 11.622; 11.716. 270 O percentual de 83% se refere à soma de todos os itens em que há referência à promessa de casamento. 271 Ver os processos número 6.757; 7.795; 10.937; 10.959; 11.223; 11.926; 12.285; 12.365. 272 O percentual de 66% é à soma de todos os itens onde se combina promessa de casamento com outros fatores. 273 Ver os processos de número 8.921; 10.569; 10.745; 10.793; 10.803; 11.260; 11.430; 11.464; 11.486; 11.500; 11.627; 11.688; 11.731; 11.733; 11.842; 11.927. 274 Ver os processos de número 11.172 e 11.716. 275 Apesar da jurisprudência relativa ao crime de sedução conceber a possibilidade de uma moça “honesta” ceder sua virgindade antes do casamento sob a influência de um estado de excitação produzido pelas carícias e atos libidinosos do namorado, situação na qual a moça poderia ficar privada da sua capacidade de discernimento com o “viciamento” da sua vontade, nos processos que analisamos em Campos, a confissão por parte das ofendidas que copularam também em virtude de estarem excitadas com as carícias íntimas dos namorados, foi, via de regra, recebida pelos juízes como uma prova de que elas não seriam moças recatadas (que não permitiriam liberdades por parte dos namorados), nem inexperientes. Dessa forma, o reconhecimento da excitação, geralmente, pesou contra as ofendidas. Cf. ABREU, Martha Campos e CAULFIELD, Sueann. “50 Anos de virgindade no Rio de Janeiro: as políticas de sexualidade no discurso jurídico e popular (1890-1940)”. In: Caderno Espaço Feminino. Volume 2, ano II, nº 1/2. Uberlândia, 1995, passim. Cf. MEDEIROS, Darcy Campos de e MOREIRA, Aroldo. Op. cit, pp. 31 e passim. Ver, por exemplo, os processos de número 11.223; 11.731 e 11.842. 269 143 interpretações. Numa primeira, podemos supor que as moças não sabiam que o simples fato de autorizarem carícias íntimas a um namorado (no mais das vezes um namorado de pouco tempo, quando não clandestino para os seus responsáveis), já tendia a desqualificá-las perante os profissionais do judiciário. Nesta hipótese, elas não consideravam impróprio sentir “desejos” nos braços dos seus namorados, e revelaram tais sentimentos como justificativa para o que fizeram. Entretanto, para os profissionais do judiciário de Campos, especialmente os juízes, o fato de elas permitirem contatos íntimos - como toques nos seios e vagina - era o suficiente para descaracterizá-las como “moças recatadas”, predicado fundamental à obtenção de uma avaliação moral positiva276. Numa outra interpretação, podemos supor que as ofendidas tentaram se desresponsabilizar pelo acontecido, dando a entender que agiram de forma concupiscente inebriadas pelas juras, blandícias e carícias dos namorados que, excitando-as intensamente, lhes retiraram a liberdade de escolha, “a liberdade sexual” prevista no Código Penal de 1940 e em nome da qual a sedução é - formalmente - criminalizada. Neste caso, elas estariam tentando usar em seu benefício o “papel sexual feminino”, isto é, a imagem da mulher como frágil e sem iniciativa, reforçando, no namorado, o papel sexual masculino. Ele, por ser o homem, é que teria tomado toda a iniciativa e, portanto, teria toda a responsabilidade. Ingênuas ou ardilosas? Talvez, ambos. Esse misto de ingenuidade e sagacidade pode ser percebido no fato de 60,4% das ofendidas terem confessado mais de uma relação com o acusado (Gráfico11). Provavelmente, buscavam com isso agravar a situação dos réus, pois, estes teriam 276 Pela leitura dos processos pudemos perceber que os juízes recriminavam a prática de “atos libidinosos”, independentemente do tempo do namoro e ter ou não ocorrido o noivado. Fica evidente que intimidades entre um casal somente seria possível, em termos morais, após o casamento. Apenas no processo 10.793, o juiz considerou que a “relação sexual primeira entre ambos verificou-se após a prática eficiente de atos libidinosos vários, quais foram, carícias nas regiões genitais da ofendida, com o intuito de excitá-la”. Tendo em conta o longo namoro, mais de um ano, o que tornava crível a principal razão apontada pelo juiz para que a ofendida consentisse na cópula: o casamento e, afirmando não ser a ofendida “uma vadia”, mas “moça do interior” e “inexperiente”, ele condenou o acusado que foi preso. Algum tempo após a prisão do réu (que era casado), os seus advogados entraram com um pedido de Suspensão Condicional da Pena apresentando como um dos argumentos a favor do condenado o fato da ofendida estar vivendo “maritalmente com outro no estado da Guanabara; outro que é realmente aquele que o destino lhe reservou, vivendo num verdadeiro paraíso com este homem que um dia a compreendeu e a aceitou”. Com a concordância do Ministério Público, o juiz concedeu a Suspensão Condicional da Pena e Joanes Lima, o réu, foi posto em liberdade. Cf. Processo n 10.793, maço 562, passim. 144 “abusado delas”, por várias vezes. Entretanto, ao reconhecer que não só se deixaram desvirginar fora do casamento, mas também que mantiveram outros contatos sexuais com o suposto desvirginador, repetindo o erro, não caindo logo em arrependimento, cada ofendida dificultou a sua valorização moral - como boa filha, moça recatada e submissa aos pais - perante os profissionais do judiciário277. GRÁFICO 11 NÚMERO DE COITOS SEGUNDO AS OFENDIDAS, EM % 39,6 34 26,4 1 vez 2 a 4 vezes Mais de 5 vezes Fonte: 53 Processos Pesquisados No Fórum De Campos Dos Goytacazes. As moças dos processos mostram-se ambíguas e contraditórias, pois adotam um posicionamento que se confronta com a moral defendida pelos juízes, ao reconhecerem que vivenciaram atos “inadequados” em suas relações amorosas, tais como, permitirem carícias íntimas aos namorados e manterem congressos sexuais pré-nupciais. Ao mesmo tempo, ao relatarem o “acontecido”, aproximam-se dos valores morais dos profissionais do judiciário, ao se retratarem, em sua maior parte, como moças passivas que foram levadas a se “perderem” pela “lábia” e pelas promessas dos seus namorados ardilosos. Nelas ou nas auto-imagens que constroem de si mesmas, as atitudes passivas e ativas não só se contrapõem como coexistem. 277 Em alguns processos, o promotor, o defensor ou mesmo o juiz comentam o fato de ter a ofendida, segundo a sua versão, continuado a manter contatos sexuais com o acusado não revelando, de imediato, o acontecido aos pais. Esta postura era considerada, pelos defensores e juízes, como comprovação da falta de recato da ofendida e de não ser ela plenamente obediente aos pais. Por outro lado, temos casos em que o fato de ter a ofendia, segundo o seu relato, contado logo o desvirginamento a seus pais foi apresentado, pelos promotores e juízes, como argumento a favor da sua moralidade, pois ela teria se arrependido do erro e buscava repará-lo. 145 Elas se mostram passivas no namoro e no ato sexual, mas afirmam, em vários casos, terem namorado contra a vontade dos pais ou sem o conhecimento deles278. Se declararam passivas na decisão de copular, mas freqüentavam festas e bailes, às vezes, sem a companhia familiar. Eram submissas aos pais, mas, ao mesmo tempo, planejaram fugir com os namorados ou aceitaram proposta de mancebia. Aceitavam copular com um homem casado ou se tornarem suas amásias e assumiam plenamente as funções domésticas. Complexas em suas atitudes, poucas foram as moças ofendidas que conseguiram manifestar uma “coerência” nos depoimentos, capaz de convencer os juízes do seu recato, obtendo então a condenação do réu279. 2. ATITUDES MASCULINAS Só me resta agora o adeus final e amar de mais ser um bom rapaz foi o meu mal... Wanderley Cardoso No que tange às posições dos acusados diante das denúncias, encontramos muitas semelhanças com o que foi observado por Martha Abreu e Cristina Donza280 ao pesquisarem, respectivamente, processos crimes ocorridos na Belle Époque carioca e belenense. 278 Ver os processos de número, 524/73; 10.155; 10.448; 10.569; 10.943; 10.981; 11.098; 11.138; 11.177; 11.413; 11.426; 11.464; 11.622; 11.688; 11.842; 12.249. 279 Processos com condenação do réu: 6.727; 7.816; 8.921; 9.529; 10.745; 10.793;11.627. Tivemos, portanto, 13,2% dos acusados condenados. Estes processos onde ocorreu a condenação do réu, são os mesmos em que os juízes valorizaram os depoimentos das testemunhas da ofendida. Trinta e quatro acusados (64,2%) obtiveram absolvição, onze (20,7%) beneficiaram-se da extinção da punibilidade e um (1,9%) teve o processo arquivado. 280 Ver ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., passim. Cf. CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., pp. 111-133. 146 Basicamente, os homens denunciados adotavam duas atitudes: desmentiam as ofendidas e procuravam desmoralizá-las281 ou admitiam parte das acusações, mas responsabilizando-as pela ocorrência das relações sexuais282. Nos casos em que admitiram o relacionamento sexual, os acusados esmeraram-se para convencer o juiz que a ofendida não fora seduzida, por não possuir os atributos físicos e/ou morais necessários à configuração do crime de sedução283. A Tabela 31 ajuda-nos a perceber não só as táticas de defesa dos acusados, como também alguns valores que esses homens trabalhadores declaravam e como concebiam o ser mulher. TABELA 31 POSIÇÃO DOS OFENSORES DIANTE DAS ACUSAÇÕES, EM % Posição Nega promessa de casamento Admite namoro Nega coito Admite coito Admite coito mas diz que a ofendida não era virgem Nega o namoro Nega intimidades com a ofendida (libidinagens) Nega namoro e coito Admite namoro mas nega coito Nega a sedução Nega que freqüentava a casa da ofendida Admite que freqüentava a casa da ofendida Admite coito mas nega promessa de casamento Admite desvirginamento Admite atos de libidinagem Admite promessa de casamento Nega relacionamento mas diz saber ser a ofendida "mulher" Admite namoro mas nega coito para verificação de virgindade Nega promessa de casamento mas admite a de mancebia Admite namoro mas só em casa na frente dos pais da ofendida Admite noivado % 81,5 60,4 52,8 47,2 34 30,2 24,5 24,5 20,8 18,9 17 15,1 13,2 13,2 11,3 9,4 7,5 3,8 3,8 1,9 1,9 Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. Obs: A soma dos percentuais ultrapassa os 100% porque em um mesmo depoimento o acusado, às vezes, expressava mais de uma posição frente à acusação e todas elas foram consideradas. Nos casos em que foram diferentes os depoimentos na delegacia e em juízo, utilizamos, nas estatísticas, as informações dos depoimentos em juízo por serem estes os de maior peso para as sentenças. 281 Processos nos quais os acusados negaram a relação sexual com a ofendida: 282; 467/73; 524/73; 7.795; 7.816; 8.921; 9.529; 10.155; 10.448; 10.529; 10.569; 10.943; 10.959; 10.981; 11.138; 11.260; 11.464; 11.651; 11.731; 11.842; 11.924; 12.249; 12.250; 12.365; 12.638. 282 Processos nos quais os acusados, ao se defenderem, detrataram as ofendidas: 524/73; 6.727; 7.795; 7.816; 8.921; 10.448; 10.529; 10.569; 10.739; 10.745; 10.793; 10.937; 10.937; 10.943; 10.981; 11.096; 11.098; 11.138; 11.172; 11.177; 11.223; 11.260; 11.413; 11.426; 11.457; 11.464; 11.486; 11.622; 11.716; 11.731; 11.842; 11.924;11.926; 12.249; 12.250; 12.365; 12.370. 283 Processos nos quais os acusados reconheceram terem copulado com as ofendidas: 132/70; 6.727; 10.745; 10.793; 10.937; 10.943; 11.096; 11.098; 11.172; 11.177; 12.223; 11.413; 11.426; 11.430; 11.457; 11.622; 11.688; 11.716; 11.733; 11.926; 11.927; 12.285; 12.370; 12.638. 147 Enquanto 56,6% das ofendidas disseram ter praticado algum tipo de lascívia com os namorados e 49% confessaram que tais carícias influenciaram na concordância com o ato sexual, apenas 11,3% dos acusados reconheceram ter praticado carícias íntimas com as suas acusadoras284. Provavelmente os que negaram a prática de atos libidinosos, tentavam fugir da imagem de homens imorais e desrespeitadores, capazes de seduzir suas namoradas através de atos “imorais”285. Alguns, ao reconhecerem a ocorrência das carícias, responsabilizaram as ofendidas. Foi o que fez Salvador da Cruz, brasileiro, pardo, católico, fluminense, com 33 anos de idade, solteiro, ferroviário e alfabetizado. Acusado de haver, em setembro de 1970, seduzido e desvirginado Valéria da Silva, brasileira, preta, fluminense, com 16 anos de idade, do lar e alfabetizada. Ao depor na delegacia no dia 19 de abril de 1972, Salvador contou: (...) que nunca namorou a ofendida Valéria da Silva, sendo que veio a conhecê-la em bailes que o depoente freqüentava (...) daí, quando fora a um baile na roça e, na volta, já na cidade (...) o depoente fora levar a ofendida em casa, a mesma passou a acariciá-lo, e, então o depoente percebeu que a ofendida estava querendo qualquer coisa com ele depoente; (...) tanto ele como a ofendida haviam tomado bebidas no baile, estando mesmo os dois um pouco tontos; que, sendo um homem, já com certa idade, o depoente percebeu perfeitamente a intenção da ofendida, aceitando de pronto as carícias da mesma; que, então, em um mato próximo, o depoente levou a ofendida para ali, mantendo com a mesma relações sexuais, embora não tivesse introduzido o seu membro viril na vagina da ofendida fazendo-o apenas pela metade, por estar a ofendida reclamando que estava doendo (...) que dias depois o depoente veio a tomar conhecimento de que esta mesma ofendida, dormira com vários outros amigos do depoente, chegando pois a conclusão que a mesma já não era mais ‘virgem’ (...)286. [grifos nossos] Mesmo tendo admitido o coito e dito ter acreditado na virgindade de Valéria, crença que se dissipou pelo conhecimento que teve de que ela copulara com amigos seus, Salvador foi absolvido. Deve-se notar que a única testemunha masculina da defesa disse não saber quem desvirginara a ofendida e não mencionou nenhum 284 Processos em que os acusados reconheceram a prática de atos libidinosos com as ofendidas: 10.529; 11.413; 11.457; 11.627; 11.926; 12.638. 285 Processos nos quais os acusados negaram a prática de carícias íntimas com as ofendidas: 282; 524/73; 7.795; 9.529; 10.793; 10.981; 11.464; 11.651; 11.716; 11.842; 11.924; 12.249;12.365; 12.638. 286 Processo n°11.098, maço 579, folha 17. 148 contato íntimo com a mesma. Os tais amigos de Salvador que teriam mantido relações sexuais com Valéria nunca foram apresentados, nem seus nomes mencionados. Mesmo assim Salvador foi inocentado, e certamente contou a seu favor a condenação moral de Valéria feita pelo juiz. Valéria confessou que namorava sem o conhecimento dos pais, foi acusada, por testemunhas, pelo defensor e pelo juiz, de não ser obediente, “sujeita”, à mãe. Ela freqüentava bailes noturnos sem a companhia de seus responsáveis, andava às altas horas em companhia masculina e, entregou-se ao coito sem uma promessa séria de casamento. Diante da imagem que se constrói de Valéria no processo, o juiz, ao proferir a sentença, foi taxativo: Sedução não existe porque é a própria ofendida quem afirma que os fatos ocorreram após um curto namoro de quatro meses e que o acusado não lhe prometera casamento. Corrupção de menores também inexistente vez que a prova dos autos é de que a ofendida não tinha procedimento elogiável, pois saía de casa sete horas da noite e voltava no outro dia às sete da manhã. Inadmissível a corrupção do que já está eivado de irregularidade de conduta287. [grifos nossos] Valéria, como outras ofendidas, foi redargüida por seus comportamentos, considerados inadequados a uma moça. Ela mostrou-se uma mulher com iniciativa e independente quanto aos seus horários e hábitos de lazer. E, como já vimos, a imagem da “mulher livre”, da mulher que busca o contato amoroso e sexual, da mulher sexualmente ativa e insubmissa será uma das figuras simbólicas de maior presença e de forte peso negativo nos processos. A caracterização da ofendida como “mulher livre”, “independente” e “insujeita” favorecia a defesa que, a partir desta imagem, procurava negar a virgindade da ofendida quando do namoro com o acusado. Dentre os acusados que reconheceram ter mantido contado sexual com as namoradas (47,2%), a grande maioria, 72%, alegou que a moça não era virgem, e, assim, não teria cometido o crime de sedução288. 287 Id. Ibid., folhas 48-49. Outros casos em que o juiz criticou as condutas das ofendidas, favorecendo a absolvição dos réus: 524/73; 282;10.155; 10.448; 10.569; 10.793; 10.943;10.959; 10.981; 11.096; 11.098; 11.138; 11.172; 11.177; 11.223; 11.260; 11.413; 11.430; 11.464; 11.500;11.622; 11.651; 11.731; 11.842; 11.926; 12.249; 12.250. 288 Processos nos quais os acusados reconheceram o relacionamento sexual mas disseram que a ofendida já não era virgem: 6.727; 10.448; 10.569; 10.745; 10.793; 10.937; 10.943; 11.096; 11.098; 11.172; 11.413; 11.426; 11.430; 11.457; 11.622; 11.688; 11.716; 11.733; 11.926; 12.365. 149 Pode-se observar que o percentual de acusados que admitiu ter mantido relações sexuais com a ofendida, mas nega a promessa de casamento (13,2%), é exatamente o mesmo daqueles que reconheceram o desvirginamento (13,2%). Destes, a maioria, 71,4% (ou 9,4% do total dos processos) reconheceu que havia prometido casamento às suas namoradas como meio de convencê-las a copularem289. O reconhecimento do desvirginamento não implicou em condenação. Nos processos 132/70, 11.927, 12.285, 12.370 e 12.638; os acusados admitiram o desvirginamento, mas a punibilidade foi extinta, ainda no decorrer dos processos, por ter havido o casamento do acusado com a ofendida. No processo 11.177, o réu confessou o desvirginamento, mas foi inocentado pelo juiz que considerou não haver provas do crime de sedução. O juiz entendeu que a ofendida não se mostrou inexperiente e não possuía motivos para depositar justificável confiança no réu, já que ele ao convidá-la a fugir fizera uma “proposta de mancebia, repelida pela moral e descaracterizadora do delito de sedução”. No processo 11.223, onde o réu também confessou o desvirginamento, o juiz também o absolveu alegando falta de provas quanto à ocorrência da sedução. Para o juiz, a ofendida não se mostrara inexperiente por ter admitido a prática do sexo anal com o réu, além de não possuir motivos para nele depositar justificável confiança, pela brevidade do namoro, e por ele não ter assumido o compromisso de casar-se com ela. A decisão do juiz de primeira instância foi referendada pelo juiz do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que analisou o recurso impetrado pela queixosa. Para o juiz do Tribunal de Justiça, a falta de um namoro prolongado e do noivado descaracterizavam a justificável confiança, tendo então mantido a sentença absolutória do juiz da primeira instância. Pela leitura dos depoimentos, pronunciamentos e sentenças, fica claro que a primeira e mais importante preocupação de um acusado que pretendesse escapar à condenação era negar a promessa de casamento (81,5%). 289 A respeito ver os processos de número 132/70; 11.223; 11.927; 12.285 e 12.370. Os acusados que admitiram o desvirginamento são encontrados nos processos, 132/70; 11.177; 11.223; 11.927; 12.285; 12.370 e 12.638. Nos processos de número 11.172 e 11.430, os acusados negaram a promessa de casamento, mas reconheceram ter proposto mancebia às ofendidas como meio de convencê-las a manter relações sexuais com eles. 150 É provável que a promessa de casamento, além de ser um critério legal capaz de ensejar a condenação pelo crime de sedução, também fosse tida, na cultura dos homens e mulheres envoltos nos processos, como um valor de grande significação (até pela extensão que o casamento havia alcançado na população campista como meio de estabelecimento das relações conjugais, conforme demonstramos no Capítulo II), sendo, portanto, um elemento com forte apelo sedutor290. Dessa forma, a admissão da promessa de casamento, talvez equivalesse, no círculo social dos acusados, a uma confissão de culpa. Se é pequena a diferença entre os que negaram e os que admitiram ter tido relações sexuais com as ofendidas (5,6%), é abissal a diferença que separa os que reconheceram dos que negaram a promessa de casamento (72,1%). São duas as nossas hipóteses. A primeira é que a promessa de casamento, era efetivamente uma questão séria e valorizada nas camadas pobres da população, além de ser um elemento capaz de produzir a condenação. A segunda é que os homens das camadas populares não viam constrangimentos em manter relações sexuais com moças solteiras e menores de idade (mesmo quando eles eram casados), o que violava, flagrantemente, o Código Civil. Eles não punham embargos a contar ou confessar publicamente o fato de ter copulado com suas namoradas, nisto não viam problemas. Porém, foram enfáticos na negativa de que obtiveram a permissão para a cópula mediante a promessa de casamento. O fundamental não era negar a cópula, mas a acusação de quebra da palavra, de que enganaram as namoradas para satisfazer o desejo sexual. O “método” poderia ser recriminado, o fato em si, nem tanto. Na prática, os homens das camadas pobres da população exerciam uma efetiva liberdade sexual e raramente serviram-se de chavões moralizantes, na questão sexual, para representar uma imagem autovalorizadora. Isto é, não foi recorrendo ao discurso de um comportamento sexual moralizado, que os acusados buscaram mostrar-se como “homens de bem”. O ser “homem de bem” significava, essencialmente, pelo que se observa nos processos, tanto nos pronunciamentos dos profissionais do judiciário como nos depoimentos das testemunhas, ser trabalhador e “benquisto”. Isto é, possuir uma boa 290 Ver tabelas 2, 3, 6 e 7, páginas 74, 82 e 85. 151 imagem no seu “meio social”. Se para a moça ser “de bem” implicava em obediência aos pais e recato nas atitudes, para os rapazes implicava em trabalhar e ser bem visto por todos, ou seja, dispor de um reconhecimento social positivo291. O discurso do comportamento moralizado foi utilizado pelos acusados em vários momentos, mas como elemento de crítica aos hábitos e práticas das ofendidas, por terem aceitado carícias íntimas, por se mostrarem sexualmente “experientes”, por freqüentarem festas e bailes, sem a companhia dos pais, por andarem em “companhias suspeitas”, por serem “namoradeiras” ou “faladas”, por não terem manifestado dor nem sangramento durante o suposto coito desvirginador, por ter a penetração ocorrido “sem embaraços”, por terem cedido “facilmente”, por se portarem como “mulher livre”, por serem desobedientes aos pais, por tomarem a iniciativa em buscar o contato amoroso mesmo quando o acusado era casado. No momento do conflito, sobretudo em juízo, os denunciados, via de regra, sacaram estas e outras acusações contra as ofendidas. Mesmo que eles tivessem co-participado das “atitudes condenáveis” das ofendidas, era como se tais “atitudes” somente condenassem as ofendidas. A Tabela 32 confirma que, além de quase sempre negarem as promessas de casamento, os acusados também se defendiam lançando suspeitas sobre as atitudes, sobre o comportamento moral das ofendidas292. Podemos observar a proximidade entre a acusação de que a ofendida freqüentava festas e bailes (11,3%), de que teve outros namorados (15,1%), e de que não era mais “moça” ou era “mulher” (15,1%). A mensagem fica evidente. Moças que se permitiam freqüentar, livremente, festas e bailes - ficando fora da vigilância familiar - e passavam de um a outro namorado, provavelmente, “perdiam-se” logo com um desses namorados. Toda a disputa dava-se, então, em torno das representações sobre os 291 Ver os processos: 6.727; 7.795; 8.921; 9.529; 10.448; 10.745; 10.793; 10.803; 10.937; 10.943; 10.959; 10.981; 11.098; 11.138; 11.172; 11.413; 11.426; 11.430; 11.457; 11.464; 11.486; 11.500; 11.622; 11.651; 11.713; 11.716; 11.731; 11.733; 11.842; 11.924; 11.926; 12.249. 292 O mesmo foi percebido por Cristina Donza e Martha Abreu. Ver CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., pp. 111130. Cf. ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit. Nas quizilas que analisamos em Campos, o que mais comumente se dizia sobre uma ofendida é que ela não seria “virgem”, “moça” ou que já seria “mulher”; que freqüentava festas e bailes sozinha; que não era submissa aos pais ou que era “namoradeira”, “pra frente” e “avançada”. O termo “honesta” foi menos empregado e quando o foi, quase sempre pelos profissionais do judiciário, indicava, sobretudo, recato e fidelidade. Processos em que os acusados atacaram os comportamentos e puseram em dúvida a moral das ofendidas: 524/73; 6.727; 7.795; 7.816; 8.921; 10.448; 10.529; 10.569; 10.739; 10.745; 10.793; 10.937; 10.937; 10.943; 10.981; 11.096; 11.098; 11.138; 11.172; 11.177; 11.223; 11.260; 11.413; 11.426; 11.457; 11.464; 11.486; 11.622; 11.716; 11.731; 11.842; 11.924;11.926; 12.249; 12.250; 12.365; 12.370. 152 comportamentos cotidianos - e não só amorosos - das ofendidas. Isto é, em torno das suas condutas para com os pais, na vizinhança e, sobretudo, seus hábitos de lazer e suas relações amorosas anteriores. Esses critérios de avaliação moral das ofendidas foram compartilhados ou empregados nos processos, ainda que com diferentes graus de intensidade, pelos acusados, por várias testemunhas e pelos profissionais do judiciário. TABELA 32 COMENTÁRIOS DOS ACUSADOS SOBRE AS OFENDIDAS, EM % Comentários % Dizem que elas não eram virgem* 45,3 Dizem que foram assediados pelas ofendidas 22,6 Ouviram dizer que as ofendidas não eram "moça" 18,9 Copularam por saber que outros já tinham feito 18,8 Elas tiveram outros namorados 15,1 Acusam as ofendidas de freqüentarem bailes e festas 11,3 Elas sabiam que eles eram casados 11,3 Acusam as ofendidas de se oferecerem facilmente 9,4 Elas procuraram o coito 9,4 Elas estiveram na Guanabara 3,8 Não têm nada contra a ofendida 3,8 Depois do noivado ela tornou-se desobediente a ele 1,9 Os pais dela davam “festinhas” com rapazes do RJ 1,9 Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. * Todos os processos em que os acusados disseram não serem as ofendidas virgens, “moças’ ou já serem “mulheres”. Obs.: Por ser muito grande a quantidade de comentários feitos pelos acusados, selecionamos alguns, preferencialmente, os mais recorrentes. TABELA 33 NÚMERO DE COITOS SEGUNDO OS ACUSADOS, EM % Quantidade 1 vez %* 24,5 %** 52 2 a 4 vezes 3,8 8 Mais de 5 vezes 18,9 40 Sem referência*** 52,8 100 0 100 Total * Percentuais relativos aos 53 processos pesquisados. ** Percentuais relativos aos 25 processos nos quais os acusados admitiram a conjunção carnal. *** Percentual igual ao dos acusados que negaram a relação sexual. Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. 153 Os acusados, quando admitiram a relação sexual, tenderam a diminuir a sua freqüência, talvez por pensarem que assim diminuíam a responsabilidade pelo fato. Somente 22,7% dos acusados, contra 60,4% das ofendidas, admitiram mais de uma cópula, o que corresponde a 48% dos acusados que reconheceram terem mantido relações sexuais com as ofendidas (Tabela 33). nunca namorou a ofendida Marilene Trindade, tendo conversado com a ofendida por umas duas vezes (...) o depoente se encontrava no centro da cidade, quando, por acaso, se encontrou com a ofendida; que a mesma, vendo-o, cumprimentou-o e passaram então a conversar; (...) foram conversando até o Jardim São Benedito (...) deveriam ser mais ou menos vinte e uma e trinta horas (...) no decurso da conversa, (...) procurou manter com essa moça umas certas liberdades, (...) de pronto aceitas pela ofendida; (...) assim ficaram até às vinte e três horas, mais ou menos, nada tendo feito o depoente contra a mesma; (...) tendo a ofendida pedido ao depoente para a procurar na quarta-feira (...) o depoente foi até o emprego da ofendida, saindo então a conversarem; (...) foram andando pela rua Sete de Setembro até depois do Horto Municipal, parando então para conversarem; (...) em meio a conversa havida, a ofendida confessou para o depoente que já não era mais ‘virgem’; que, o depoente ainda perguntou para a ofendida quem havia feito aquilo com ela, sem contudo a mesma dizer quem fora o autor do seu defloramento; (...) ciente deste fato, o depoente voltou a acariciar a depoente, aceitando a mesma as carícias, tendo então o depoente mantido com ela relações sexuais; (...) somente manteve relações sexuais com a ofendida naquela noite, não a tendo procurado mais, estando inclusive arrependido do que fizera; (...)293. [grifos nossos] O depoimento do acusado, Djanir Magalhães, brasileiro, branco, católico, fluminense, com 24 anos de idade, solteiro, ajudante de eletricista, alfabetizado, reafirma uma concepção expressa ou insinuada em vários processos, por acusados, testemunhas e profissionais do judiciário de que o fato de ser a ofendida Marilene Trindade, brasileira, parda, fluminense, com 16 anos de idade, empregada doméstica e alfabetizada, “mulher”, a tornaria disponível para tantas outras relações sexuais quanto se lhe apresentasse294. Isto é, ela não tinha mais recato a guardar, não precisava mais resistir a assédios, pois não tinha mais nada a preservar; poderia darse a todo desfrute, e ele não tinha nada a temer, ela estava disponível. Para obter dela os favores sexuais não 293 Processo nº 11.413 (1ª instância), maço 565, folha 12. Em 2ª instância, recebeu o nº 20.422. Processos em que o acusado afirma, explicitamente, que sabendo já não ser a ofendida virgem não viu perigo em manter relações sexuais com ela: 10.448; 10.569; 10.937; 11.096; 11.098; 11.172; 11.426; 11.430; 11.457; 11.622; 11.688; 11.716; 11.733; 11.926; 12.365. Especialmente os de número 6.727; 10.745; 10.793; 10.943 e 11.413. Essa mesma idéia aparece em pronunciamentos de defensores e em alguns depoimentos de testemunhas da defesa. 294 154 seria preciso casar, nem pagar. Nem pura nem prostituta, apenas “livre”295. Pelos depoimentos de diversos acusados, parece-nos que, declarar não ser mais virgem eqüivaleria, da parte das moças, a uma autorização para que eles tomassem a iniciativa do sexo; uma espécie de sinal verde. Aparentemente, uma vez desvirginadas, as moças, agora mulheres, sentiam-se liberadas de todo interdito moral, livres para o prazer sexual. Por outro lado, temos o esforço de Djanir para se desresponsabilizar ou amenizar sua responsabilidade quanto ao comportamento, se não ilegal, certamente “imoral”, de Marilene. Segundo ele, ela o abordara na rua e, voluntariamente, o acompanhara até o jardim, uma área pública, onde lhe permitira “liberdades” até altas horas. Ela o convidou para um novo encontro e com ele fora a um local ermo, à noite, onde, após confessar já não ser virgem, aquiescera seus favores sexuais. Djanir, apesar da “facilidade” de Marilene, afirma que somente uma vez manteve relações sexuais com ela e estava arrependido. Podemos perceber que não somente as moças pobres declaravam adotar comportamentos amorosos e cotidianos antinômicos aos valores morais do judiciário que fazia o panegírico do recato e do namoro moralizado. Também os homens pobres que aparecem nos processos manifestaram posturas que seriam consideradas, pelos promotores, pelos juízes, pelos(as) queixosos(as) e por algumas testemunhas, como inadequadas ao que se entendia como sendo um moço de “boa formação” e “boas intenções”. Um “bom moço”, um “bom rapaz” (independentemente da sua condição 295 Mesmo entre os namorados que disseram ter copulado por saber da não virgindade da ofendida, poucos insinuaram serem as namoradas prostitutas ou andarem com prostitutas. Via de regra, não se referiram às namoradas ou amantes como prostitutas, mesmo quando insinuaram um comportamento de “mulher livre”, não moralizado. A acusação ou insinuação de que a ofendida seria mulher prostituída apareceu em poucos casos e, a exceção de dois. Em todos os demais, os homens negaram o namoro. Ver os processos de número 10.937 e 11.651 (neste último, o acusado reconheceu dois encontros com a ofendida mas negou ter mantido relações sexuais com ela). Localizamos nove processos (17%) onde aparecem acusações ou insinuações de que a ofendida seria “mulher prostituída”. Em três casos (5,7%), a afirmação de que a ofendida andava com prostitutas ou “mulheres de vida fácil” partiu exclusivamente das testemunhas da defesa (processos 8.921;11.646 e 11.622); em dois casos, a insinuação foi feita pelas testemunhas da defesa e pelos acusados (processos 10.924 e 11.138); em um processo (1,9%), a acusação foi feita por uma testemunha da acusação (processo 10.155); em outro, o defensor a acusou de “levar vida fácil” (processo 11.731); e, em apenas um processo a acusação partiu exclusivamente do acusado (processo 10.937). No processo 11.651 a ofendida não foi acusada de ser ou andar com prostitutas, mas o promotor afirmou que, uma vez deflorada, ela poderia prostituir-se, tese rebatida pelo defensor (por ser a ofendida “moça de família”, sujeita aos pais) e recusada pelo juiz. 155 social)296, que estivesse seriamente interessado numa jovem, não se prestaria a namorá-la às escondidas, por ruas e becos escuros, não a submeteria a atos de lascívia no canto escuro do muro ou no fundo do quintal. Um “bom rapaz”, de “boas intenções”, também não se envolveria com uma jovem que soubesse não ser de “boa conduta”. Foi o que expressou um dos juízes ao julgar o caso em que a nossa conhecida Eva de Jesus Flores, acusou seu namorado Bernadino Pires de havê-la seduzido e desvirginado em 17 de maio de 1971. Em sua sentença afirmou o juiz: (...) Por outro lado, o convite do réu para que fugissem era desarrazoado e deveria, ao contrário, levantar a mais justa desconfiança da menor. Este convite para a fuga demonstrava os maus propósitos do acusado, pois um rapaz que pretende mesmo se casar com uma moça a namora às claras, freqüenta a sua casa indissimuladamente, demonstra de público os seus bons propósitos, fica noivo de aliança no dedo e procura marcar data para o casamento. O modo como o denunciado procedeu deveria apenas servir para que a ofendida desconfiasse dos seus propósitos e o convite para a fuga implicava numa proposta de mancebia, repelida pela moral e descaracterizadora de delito de sedução297. [grifo nosso] Em outro processo, Licurgo Veriato, brasileiro, branco, católico, fluminense, com 21 anos de idade, solteiro, lavrador, sabendo ler e escrever; depondo na delegacia no dia 02 de dezembro de 1972, afirmou ter namorado a ofendida por oito meses, freqüentando, desde o início, a casa da namorada. O namoro havia sido consentido pelos pais da mesma. Segundo Licurgo gostava bastante da sua namorada, tendo mesmo pretensões de se casar com sua namorada; jamais, em tempo algum, (...) procurou com a mesma manter relações sexuais, a fim de verificar a virgindade da mesma, pois, sabia que sua namorada deveria ser moça, embora (...) tivesse tido conhecimento de que sua namorada passara toda uma noite com um rapaz na praia de Atafona (...) e por este motivo, resolveu desmanchar o namoro; que, (...) sempre a tratara com o maior respeito e todas as vezes que fora à casa dela, sempre se encontravam presentes os pais da mesma (...) jamais saíra a passeios com sua namorada, limitando-se apenas a visitas à casa dela (...)298. 296 Processos em que o acusado foi qualificado como sendo um “bom rapaz” ou um “homem de bem”: 11.172; 11.713; 11.926; 11.464; 11.716; 11.651; 11.430; 11.487; 10.745; 11.500; 10.937; 10.981; 8.921. 297 Processo nº 11.177, maço 570, folhas 67-70. 298 Processo nº 11.731, maço 562, folha 12. 156 Esta seria a maneira de agir de um “bom rapaz” que namorasse seriamente. Em sua sentença, o juiz, dentre outras coisas, afirmou: (...) O jovem acusado me deixou boa impressão e disse haver terminado o namoro em virtude da má conduta da ofendida (...)299. Apesar deste acusado declarar todas as regras do namoro moralizado, bem distintos foram os comportamentos descritos nos depoimentos da maioria dos acusados. Namoravam sem o consentimento dos pais das moças, tinham relacionamentos extraconjugais (namoravam e copulavam com a ofendida mesmo sendo casados, fato que, às vezes, era escondido da ofendida), davam-se à concupiscência em vias públicas e não demonstravam uma intenção matrimonial, posto que logo declararam ter abandonado as namoradas, e, desta forma, punhamse “fora das regras” defendidas pelo judiciário. Mas o que fica evidente na leitura dos processos é que os julgamentos dos crimes de sedução se constituíam em avaliações morais onde o que efetivamente se julgava eram os comportamentos e atitudes das mulheres, levando, como observou Karla Bessa, as “vítimas”, as mulheres, a se transformarem em rés300. 3. A HIERARQUIA DAS “CORES” NAS RELAÇÕES SEXUAIS Analisando os processos e a relação entre as “cores” dos casais, pudemos constatar a existência de uma hierarquia nas escolhas amorosas onde, ao que parece, relações de gênero e discriminação racial, se articulavam301. 299 Id. Ibid., folha 47. Licurgo, aos olhos do juiz, mostrou-se portador de uma concepção “séria” de namoro tendo uma conduta “correta”. Outros processos em que o acusado teve a sua imagem, a sua moral, valorizada: 6.727; 7.795; 8.921; 9.529; 10.448; 10.745; 10.793; 10.803; 10.937; 10.943; 10.959; 10.981; 11.098; 11.138; 11.172; 11.413; 11.426; 11.430; 11.464; 11.486; 11.487; 11.500; 11.622; 11.651; 11.713; 11.716; 11.731; 11.733; 11.842; 11.924; 11.926; 12.249. 300 Cf. BESSA, Karla Adriana Martins. “O Crime de Sedução e as Relações de Gênero” In: Cadernos Pagu: sedução, tradição, transgressão (2). São Paulo: Núcleo de Estudos de Gênero, UNICAMP, 1994, pp. 176-188. 301 A classificação dos populares pelo item “cor” está na tabela 13, na página 91. 157 TABELA 34 “COR DOS CASAIS, EM % “Cor” % Ele e ela “brancos” 22,6 Ele “branco” e ela “parda” 20,8 Ele “branco” e ela “preta” 5,7 Ele e ela “pardos” 13,2 Ele “pardo” e ela “branca” 13,2 Ele “pardo” e ela “preta” 13,2 Ele “preto” e ela “parda” 5,6 Ele e ela “pretos” 3,8 Ele “preto” e ela “branca” 1,9 Total 100 Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. Analisando os processos, observamos que as moças “pretas” buscaram ou aceitaram, preferencialmente, relacionamentos amorosos/sexuais com rapazes dos grupos étnicos/raciais cuja tonalidade da pele seria mais clara do que a sua302. 58,3% no caso de rapazes “pardos”, 25% no caso de rapazes “brancos” e, apenas, 16,7% no caso de rapazes “pretos”. Também as moças “pardas”303 procuraram ou aceitaram, majoritariamente, namorar rapazes “brancos” (52,4%), vindo depois (mas com uma distância muito grande em relação à preferência anterior) a procura por rapazes do próprio grupo étnico/racial (33,3%) e, por último, aceitavam-se os “pretos” (14,3%). Inversamente, as moças brancas davam preferência ao namoro racialmente endogâmico(60%), vindo depois (mas também com uma grande distância em relação aos rapazes “brancos”) a aceitação por “pardos” (35%) e, praticamente nenhuma aceitação por rapazes “pretos”(5%). Em apenas um caso ele era “preto” e ela era “branca”304. 302 Martha Abreu percebeu situação semelhante no Rio de Janeiro da Belle Époque. Ver ESTEVES, Martha de. Op. cit., p. 151. 303 Devemos ter em conta que a categoria “pardo” é por demais lata. Nela, via de regra, inclui-se todos os que não se quer ou não se consegue classificar como “brancos” ou “pretos”, incluindo os “mamelucos”, os “caboclos”, os “cafuzos”, os “índios”, os “ciganos”, e todos os biótipos expressivos de mestiçagem. Temos ainda que as classificações dos populares foram feitas por funcionários dos cartórios, no caso das certidões de nascimento, e por elementos das burocracias policial e judiciária nos autos de qualificação, nos depoimentos e nos exames de conjunção carnal e não sabemos que critérios foram usados na classificação dos indivíduos como sendo desta ou daquela “cor”. É, portanto, possível que pessoas classificadas como “brancas” pudessem também ser consideradas “pardas” e outras classificadas como “pardas” pudessem ser incluídas entre as “pretas”. 304 Os percentuais empregados, neste parágrafo, diferem dos constantes da tabela com dados sobre a cor dos casais (tabela 34, página 157) porque a referência entre os gêneros foi elaborada a partir do recorte intra-racial. 158 Pensamos ser plausível supor que a seletividade étnica constatada estava vinculada com expectativas de ascensão, se não econômica, ao menos “racial”, por parte das moças “pardas” e “pretas”. Quanto às moças “brancas”, é possível que tendessem a considerar desvantajosa uma união amorosa com rapazes localizados numa escala inferior da hierarquia racial. No caso dos acusados, podemos observar algumas “pequenas” diferenças em relação ao comportamento das ofendidas. Notamos, de imediato, uma maior aceitação entre os rapazes “brancos” por relacionamentos sexuais com moças “pretas” do que a aceitação de homens “pretos” por moças “brancas”. Enquanto somente 5% das moças “brancas” aparecem envolvidas sexualmente como um homem “preto”, temos 11,1% dos homens “brancos” relacionando-se sexualmente com moças “pretas”. Na seqüência das opões raciais, aparentemente os rapazes “brancos” seguiam a mesma hierarquia das moças “brancas”, com uma aceitação maior das moças “pardas” (40,7%) em relação às moças “pretas”(11,1%) e uma maior aceitação por moças “brancas”(44,4%). Porém, aqui também notamos diferenciações. A aceitação das moças “pardas” pelos homens “brancos” foi mais significativa do que a aceitação dos homens “pardos” pela moças “brancas”. Enquanto 35% das moças “brancas” aceitaram relacionamentos sexuais com homens “pardos”, 40,7% dos homens “brancos” envolveram-se sexualmente com moças “pardas”. Por outro lado, temos 60% das moças “brancas” optando por relacionarem-se sexualmente com rapazes “brancos”, enquanto somente 44,4% dos homens “brancos” envolveram-se sexualmente com moças “brancas”. Ou seja, os homens “brancos” mostraram-se racialmente mais exogâmicos do que as mulheres “brancas”305. Por sua vez, os homens “pardos” mostraram-se os menos seletivos, em termos raciais, entre os três grupos. É, no mínimo, curioso observarmos que 36,8% dos homens “pardos” relacionaram-se sexualmente com moças “brancas”, 36,8% com moças “pardas” e 36,8% com moças “pretas”306. O mais interessante é vermos ser este o único grupo onde as moças “pretas” ocupam o mesmo nível de preferência ou aceitação que as “brancas” e “pardas”. Seriam os homens “pardos” menos racistas? Sendo uma 305 306 Para este parágrafo é válida a mesma observação constante na nota 303. Para este parágrafo é válida a mesma observação constante na nota anterior. 159 das expressões da mestiçagem brasileira teriam os “pardos” introjetado os valores da “democracia racial”? Os processos não nos permitem responder a estas questões. Provavelmente o grupo mais difícil de ser compreendido seja o dos “pretos”, pois nele, possivelmente, os dados expressem mais o resultado das contingências que das “opções”. De qualquer forma, as opções nas relações entre gênero e raças parece-nos seguir também uma lógica seletiva, mas em sentido inverso do que ocorre no grupo “branco”. Nos casos dos(as) “pretos(as)” temos que 28,6% dos homens “pretos” buscaram ou aceitaram relacionamentos sexuais com moças “pretas” enquanto somente 16,7% das moças “pretas” procuraram ou aceitaram relacionar-se sexualmente com homens “pretos”. Por outro lado, 42,9% dos homens “pretos” mantiveram contatos sexuais com moças “pardas”, enquanto 58,3% das moças “pretas” relacionaram-se sexualmente com homens “pardos”. Contrariamente, 14,3% dos homens “pretos” envolveram-se sexualmente com moças “brancas”, enquanto 25% das moças “pretas” buscaram ou aceitaram o relacionamento sexual com homens “brancos”. As estatísticas mostram claramente o desfavorecimento de “pretos” e “pretas” frente a “pardos(as)” e “brancos(as)”. Certamente, a discriminação por motivos raciais 307 atuou na composição dos casais das camadas populares cujos relacionamentos sexuais terminaram por constituir-se em processos por crimes de sedução. Apesar de compartilharem uma mesma situação sócio-econômica, de possuírem uma estrutura familiar similar, além de níveis de instrução escolar próximos; rapazes e moças praticavam uma seletividade de “cor” nas suas escolhas amorosas. Não temos, com os dados desta pesquisa, como explicar as razões para a existência dessa seletividade e as formas que ela adquire concretamente (desfavorecimento maior dos rapazes “pretos”)308, o máximo que podemos constatar é que a discriminação racial 307 Utilizo o termo racismo entendendo-o como manifestação ideológica (no sentido marxista clássico de falsa consciência) nascida em fins do século XVIII e que procura, a partir das ciências da natureza, mormente da biologia, legitimar o conceito de raça e valorizar ou negativar os grupos sociais e os indivíduos a partir das suas características biológicas exteriores (fenótipos). Cf. OLIVEIRA, Fátima. Engenharia Genética: O Sétimo Dia da Criação. São Paulo: Moderna, 1995, pp. 99-120. 308 Não sabemos, por exemplo, se os homens “pretos” tinham menores vantagens no mercado de trabalho ou no próprio meio social em que viviam, em relação aos homens “brancos”. É provável que sim, mas faltam-nos estudos a este respeito em Campos. 160 esteve presente, ao menos em uma parte dos homens e mulheres das camadas populares de Campos envolvidos nos processos por crimes de sedução que pesquisamos. Ao concluirmos o capítulo, consideramos possível estabelecermos algumas ligações com os assuntos tratados no Capítulo I. Por um lado, temos a insistência dos profissionais do judiciário em receitarem a passividade, o recato e a obediência como padrão ideal para os comportamentos femininos. De forma mais ou menos direta os juristas pelejam pela domesticação da sexualidade feminina. Ao sentenciarem ou ao estabelecerem os princípios para o julgamento dos crimes de defloramento/sedução, os juízes cobram das ofendidas que ao namorarem o fizessem dentro de certas normas, a exemplo da autorização familiar e sem a permissão de atos concupiscentes. Mas, além do namoro feito de maneira adequada, os juízes exigiam que o namoro, para ser moralizado, visasse ao casamento. Analisando os processos, observamos que submissão, recato, namoro moralizado e perspectiva matrimonial eram elementos-chaves na caracterização positiva da mulher pelos profissionais do judiciário. O casamento reaparece como finalidade da existência feminina e meio de moralização das relações sexuais. Vimos, neste capítulo, que as moças e rapazes das camadas populares presentes nos processos não viveram suas relações de namoro em conformidade com as regras do judiciário e do namoro moralizado. Mas, ao terem suas práticas sexuais transformadas em objeto da intervenção policial e judiciária, moças e rapazes, de uma forma geral adotaram atitudes conflituosas. Elas buscaram responsabilizá-los por todo o enlace amoroso até a realização da cópula onde, em geral, afirmaram terem desempenhado uma papel passivo, como “vítimas” dos ardis sedutores dos namorados. Justificaram a concordância com o relacionamento sexual em virtude de supostas promessas de casamento, mas também em decorrência de um estado de excitação provocado pelas carícias dos namorados pelos quais, secundo disseram, nutriam grande afeto. Por sua vez., os rapazes, quando não assumiram “a culpa” pelo desvirginamento das ofendidas e se declararam desejosos de com elas casarem, procuraram se mostrar inocentes, negando o envolvimento sexual com a ofendida ou afirmando que as mesmas já não eram virgens no momento em que copularam. Contudo, como demonstramos, o reconhecimento do desvirginamento não implicava 161 necessariamente na condenação do réu, desde que ele se casasse com a ofendida ou conseguisse convencer ao juiz que ela não era “moça recatada”, “moça de família”. O mais importante na estratégia defensiva dos acusados era a negação da promessa de casamento, assim como o mais importante na estratégia da acusação era provar ou tornar crível para o juiz ter sido a promessa de casamento o motivo pelo qual a ofendida concordou com o desvirginamento. Mas o que significava casar, para os homens e mulheres da população pobre de Campos envolvidos nesses processos? Os processos e o contexto histórico de Campos nos permitiriam supor fosse o casamento uma expectativa presente nas camadas populares do município? É possível supor que a expectativa do casamento tenha influído na decisão de se apresentar a denúncia contra os acusados? O significado do casamento entre os setores populares seria o mesmo dos profissionais do judiciário? Essas são questões que compõem o Capítulo V. CAPÍTULO V AMIGADO COM FÉ, CASADO É 163 1. PAPÉIS SOCIAIS, MORAL E MATRIMÔNIO Ela pensa em casamento e eu nunca mais fui à escola sem lenço, sem documento... Caetano Veloso No estudo dos processos-crimes, chama a atenção a variedade de comportamentos e atitudes dos homens e mulheres das camadas populares. Ao mesmo tempo que depuseram manifestando posturas e valores condizentes com os códigos morais do judiciário (baseados na defesa da “moral familiar”, no recato feminino, na obediência dos(as) filhos(as) aos pais, no namoro sério e no casamento), também relatam práticas de vida antagônicas com um comportamento moralizado. Assim, os protagonistas dos processos depuseram valorizando o casamento formal, o qual, como vimos, configurava-se crescentemente como a principal opção de união matrimonial no conjunto da população, sendo também majoritário entre queixosos(as) e testemunhas. Simultaneamente, estes homens e mulheres aceitavam amasiamentos e constituíam famílias não legitimadas, evidenciando que os referenciais a partir dos quais formulavam seus valores e códigos de conduta guardavam diferenças em relação aos códigos do judiciário. Por isso, algumas ofendidas afirmaram na polícia e/ou em juízo ter copulado mediante uma suposta promessa de mancebia, de montagem de casa ou de ser cuidada pelo namorado 309 , pois, provavelmente para estas ofendidas, o amasiamento não se configurava imoral e também implicava na assunção das responsabilidades matrimoniais da parte de cada um dos cônjuges. Pelos relatos contidos nos processos, verificamos que nas propostas de mancebia, assim como nas de casamento, ficava implícito o dever do homem (marido ou companheiro) na manutenção da casa e da família, cabendo à mulher (esposa ou companheira) as funções domésticas, incluso o cuidado com os filhos. Configurava-se 309 Esses são processos em que as ofendidas disseram ter aceitado copular sob promessa de mancebia, de montagem de casa ou de ser cuidada pelo acusado, também temos, na lista, processos em que a ofendida passou a viver com o acusado ou com outro homem, vindo ou não a se casar. 10.155; 10.569; 10.745; 10.793; 10.803; 11.172; 11.177; 11.260; 11.413; 11.426; 11.430; 11.431; 11.500; 11.622; 11.716; 11.927; 12.285; 12.365. 163 assim o dever de mútua ajuda que, além de ser parte do senso comum dos casais, é também uma norma do Código Civil. Ou seja, a distinção entre os sentidos do matrimônio não estava no exercício dos papéis sexuais, mas na prescindibilidade para os homens e mulheres das camadas populares, das significações moralistas que o discurso normatizador dos juristas lhe embutia. Ou seja para os setores populares, o casamento não visava, centralmente, à moralização das relações sexuais e à disciplinarização dos comportamentos sociais, como foi concebido nas diversas políticas de normatização que analisamos no Capítulo I. Depondo em juízo no dia 13 de dezembro de 1971, a nossa já conhecida Suelen Camargo disse: que vai fazer um ano em janeiro que convive com o acusado e está grávida dele; que o acusado trata bem da ofendida; que o acusado mantém a casa regularmente fornecendo o necessário à depoente (...) que gosta do acusado e não tem raiva dele; que não tem raiva de nada do acusado, que deseja se casar com o acusado, que o acusado é homem trabalhador; que trata bem moralmente a depoente; que o acusado nunca manifestou o desejo de se casar com a ofendida (...)310. [grifos nossos] Outro exemplo do que as moças ofendidas entendiam por matrimônio (e que tanto podia se realizar no casamento como no amasiamento) é encontrado no caso de Keitiane Barcelos, brasileira, preta, fluminense, com 16 anos de idade, do lar e alfabetizada, que teria sido seduzida e deflorada, em janeiro de 1970, por seu noivo Juvenal Oliva, brasileiro, branco, católico, fluminense, solteiro, com 25 anos de idade e alfabetizado. Depondo em juízo em 20 de setembro de 1974, a queixosa, mãe da ofendida, afirmou que em maio último, a filha da depoente foi morar no Rio de Janeiro em companhia de uma rapaz de nome Josué Carvalho; que faz mais ou 310 Processo nº 10.745, maço 574, folha 34. Ver também o depoimento, já transcrito, de Eva de Jesus Flores onde afirma, perante o juiz, que o acusado com que passara a viver amasiada “é muito bom para a ofendida e dá toda assistência que precisa”, processo nº 11.177, maço 570, folha 61. 164 menos um ano e cinco meses que a filha da depoente passou a namorar Josué Carvalho e que em maio passado, sua filha já foi para o Rio grávida de Josué Carvalho; que atualmente sua filha já tem inclusive uma menina, fruto desse companheirismo; (...) que a depoente sabe que Josué Carvalho pretende até ao final do ano casar-se legalmente com sua filha (...) que a depoente sabe que sua filha mora com Josué Carvalho em Parada de Lucas, mas não sabe dizer precisamente o endereço (...) que sua filha era alfabetizada e sabia muito de serviços domésticos e era muito inteligente (...); que sua filha não gostava de diversões; que a depoente nunca viu sua filha sair sozinha com o acusado; que não deixava sua filha sair por causa de criação do interior, que é assim (...)311. [grifos nossos] A compreensão de que a seriedade, e mesmo a razão de ser da união conjugal, se fundamenta no cumprimento dos papéis sexuais, com o homem honrando o seu dever de protetor e mantenedor da casa, enquanto a mulher zela pela organização e funcionamento do lar, aparece, pelos relatos contidos nos processos, como sendo comum entre os homens e mulheres das camadas populares. Contudo, temos indícios de que essa compreensão também foi aceita por alguns profissionais do judiciário. É o que se pode apreender, por exemplo, do pronunciamento do defensor de Bernadino Pires, acusado no processo de nº 11.177, que afirmou em suas alegações finais MM. Juiz, o acusado errou, ou aparentemente errou. Se errou, reparou o seu erro. E quem assim define é a própria ofendida no seu depoimento. É casado o acusado, porém separado da mulher há mais de 10 anos. Casou, pensando encontrar naquela mulher a felicidade que sonhava, em vão. Crueldade seria condenar um homem nessas condições a viver infeliz para o resto da vida, sem amor, sem carinho. E este amor e este carinho, ele encontrou na ofendida. Quis o destino que a encontrasse tardiamente, quis ainda o destino que esse encontro fosse de maneira, até certo ponto, reprovável. Mas isso não importa, e assim se conheceram, se completam e se entendem. E nesses crimes contra os costumes, o que a lei visa, sem dúvida, é a proteção da menor. E protegida ela está com o acusado, e próprio M.P. reconhece nas suas alegações finais. E ademais condenar este homem é também condenar uma jovem ao sofrimento, à penúria; é destroçar um amor, é separar um casal que vive em harmonia e felicidade, é destruir um lar, enfim312. 311 312 Processo nº 10.803, maço 567, folha 33. Processo nº 11.177, maço 570, folhas 63-64. 165 Apesar do caráter “reprovável” do relacionamento entre o acusado e a ofendida, somente possível em termos de amasiamento já que ele era casado, o defensor, com o apoio do promotor, buscou convencer o juiz que o réu reparara o seu erro - ter desvirginado uma menor através de sedução - ao passar a viver com ela, protegendo-a e com ela ter constituído “um lar”, que seria destroçado caso ele fosse preso. O juiz o absolveu. O caso mais interessante e expressivo do sentido que a união matrimonial tinha para esses homens e mulheres presentes nos processos é o de Maurici Alves, brasileiro, preto, fluminense, católico, casado, com 41 anos de idade, industriário e alfabetizado que foi acusado de haver, no ano de 1966, seduzido e desvirginado a menor Marilene Fragoso, brasileira, preta, fluminense, com 15 anos de idade, do lar e alfabetizada. Maurici Alves, depondo na delegacia no dia 5 de setembro de 1969, declarou ser separado da esposa há cerca de onze meses e pouco, que se recorda de ter mantido relações sexuais com a ofendida pela primeira vez no dia 13 de maio de 1969313, tendo sido ele o seu desvirginador. Declarou ainda que tanto a ofendida quanto a sua genitora sabiam que o depoente era casado; que, desde o dia treze de maio do corrente, é o depoente quem concorre com todas as despesas da casa, residindo vizinho da ofendida, separado da referida menor, não estando até a presente data dormindo com a ofendida, como se fosse marido e mulher; que existe na Usina onde o depoente trabalha um livro onde se inscreve quem quiser de livre e espontânea vontade, cujo livro tem por finalidade de quando falece um daqueles inscritos, a pessoa que ele colocou como seu dependente tem direito a cinco por cento (5%) sobre o salário da pessoa ali inscrita; que, o depoente, neste livro, colocou como beneficiária Marilene Fragoso e seus filhos que porventura venham a nascer; que, o depoente não prejudicou os filhos da mulher casada, pois além da pensão que dá todos os meses aos mesmos, ainda eles têm um outro seguro feito pela própria Usina (...)314. [grifos nossos] 313 A ofendida, Marilene Fragoso, declarou, em seu depoimento, em 01de setembro de 1969, que namorava o acusado Maurici Alves há quatro anos, sendo por ele desvirginada em 1966, quando ainda tinha onze anos de idade dentro da residência da sua mãe, a qual somente há cerca de um mês ficara sabendo do desvirginamento e da gravidez. Disse que ela e a mãe sabiam que ele era casado, mas vivia separado da esposa. 314 Processo nº 178/69, maço 460, folha 11. 166 Mais impressionante foi a postura do promotor que, em seu parecer, pediu o arquivamento do processo por considerar que o mesmo não oferecia condições para denúncia. Disse ele: Trata-se de defloramento que não pode ser dado à conta de sedução, pois que, tanto a ofendida como sua genitora, nos informam o estado de casado do acusado. Por outro lado, não tem cabimento denúncia por corrupção de menor, provado que está a intenção do acusado de amparar a ofendida e sua genitora, as quais mantém, segundo informou (...) ainda que o processo oferecesse condições de denúncia por qualquer dos crimes seria de difícil admissibilidade, face à situação comprovada do conhecimento do estado civil do acusado (...)315. [grifo nosso] Maurici não tinha como criminosa ou imoral a sua conduta, porque cumpria o seu papel de homem, de marido e pai: sustentava, economicamente, tanto os filhos com a “mulher casada”, como provia o sustento de Marilene e sua mãe, tendo inclusive tomado as providências necessárias para ampará-la e aos filhos em caso de sua morte. Maurici, certamente, se considerava um homem “honrado”, responsável e cumpridor dos seus deveres maritais. Ao que parece não estava só nessa compreensão sobre o casamento, ao menos era acompanhado por Marilene e sua mãe. Até o promotor não viu crime em seus atos, visto que ele estava a sustentar a ofendida e a queixosa, isto é, cumpria, da forma como lhe era possível, o seu dever. Certamente esta não era a forma modelar de união matrimonial e nem mesmo a mais adotada pela maioria da população, contudo era aceitável e não devia produzir, entre os homens e as mulheres das camadas populares, constrangimentos morais insuportáveis. A moral das camadas populares mostra-se bem mais flexível, complexa e contraditória que a legislação civil e penal. Fica evidenciado, na leitura dos processos, que o que estamos a chamar de populares, setores populares ou camadas populares, não formava um bloco monolítico ou monocultural. O termo inclui tanto aqueles indivíduos que viveram a experiência matrimonial conforme o ideal moralizador do judiciário: o casamento oficial. E que, segundo os dados do IBGE, seria maioria da população. Quanto aos que adotaram posturas “desviantes” e conflitantes com a moral dos juízes, 315 Id. Ibid., f. 16. A atitude deste promotor não foi a regra, porém, temos alguns poucos casos em que os profissionais do direito deram mostras de que percebiam o conflito entre a letra da lei e a realidade da vida dos homens e mulheres julgados nos processos por sedução. 167 expressas nas normas da convivência amorosa legitimada pelos códigos legais (Código Civil e Penal), que reconheciam no casamento a única forma legitimada de se constituir uma família e moralizar as relações sexuais. Homens que, a princípio, teriam adotado um comportamento amoroso e sexual normatizado, por terem casado e constituído famílias “legítimas”, aparecem nos processos como possíveis sedutores de menores, adúlteros e bígamos. Diversidade e contradição, portanto, parecem-nos noções fundamentais para entendermos as vivências das camadas populares. 2. ELA PENSA EM CASAMENTO? O SENTIDO DAS UNIÕES Um dos pontos mais difíceis de ser tratado na análise de um processo por crime de sedução consiste exatamente naquele que nos parece ser o seu elemento nodal: o porquê da queixa. Karla Bessa, em seu estudo sobre crimes de sedução ocorridos em Uberlândia nos anos 50, afirma que os motivos das queixas não ficam explícitos nos processos, mas registra alguns que considera possíveis: desespero, ira ou fé na ‘justiça’316. Um detalhe intrigante, quando estamos diante de vários processos de sedução, é que, mesmo após a leitura de vários processos, não há uma compreensão clara a respeito de como uma disputa amorosa chega às vias de fato e se transforma em um caso de polícia. No caso específico do crime de sedução emergem várias conjecturas317. [grifo nosso] Apesar de fazer referência a “várias conjecturas”, não conseguimos localizar, na sua pesquisa, mais do que uma. 316 BESSA, Karla Adriana Martins. Op. cit., Capítulo 3,1994, p. 90. Id. Ibid. 317 168 A primeira se refere diretamente à própria dinâmica do relacionamento afetivo. Algo ocorreu durante os jogos amorosos que desencadeou o impasse. Estamos mais uma vez imersos nos jogos de sedução318. Cristina Donza também quase nenhuma atenção dedicou a este ponto. A antropóloga paraense informa que nem sempre a primeira atitude dos responsáveis pelas ofendidas, ao tomarem conhecimento do defloramento, foi procurar a polícia. Em vários casos o(a) queixoso(a) justifica a demora na apresentação da queixa, dizendo que antes buscara um entendimento com o acusado, objetivando a “reparação do mal feito” e que, somente após ouvir uma resposta negativa ou não ter o compromisso de reparação sido cumprido é que se viu a necessidade de recorrer à polícia319. Quanto à motivação para a queixa, a conclusão de Cristina Donza é que a (...) decisão de denunciar o defloramento à polícia geralmente também só era feita naqueles casos em que a menor ficava grávida. Os parentes de uma maneira geral não se mobilizavam com relação ao conhecimento da situação de amasiamento da menor, da realização de cópulas carnais ou de encontros a sós com seus namorados. Mas se a menor engravidava, as pressões se faziam presentes, (...) para que o amante não fugisse e assumisse a relação com a menor (...) mesmo que fosse amasiado (...)320. [grifo nosso] Martha Abreu atribui a queixa a várias possibilidades: a ocorrência de gravidez para qual estar-se-ia buscando o reconhecimento do parceiro; o desejo de realizar um casamento embargado pela família; uma possível pressão patronal ou policial; a tentativa de “não perder um ‘bom’ partido ou mesmo uma paixão”, são hipóteses levantadas pela historiadora. (...) A própria diversidade de motivos explicitada nos depoimentos indica que, pelo menos, a internalização do dever da honra não era a primeira necessidade na busca pelas reparações, como os juristas gostariam que fosse321. [grifo nosso] 318 Id. Ibid. CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., p. 92. 320 Id. Ibid., p. 93. 321 ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 203. 319 169 Assim como nas pesquisas anteriormente apontadas, também nos processos localizados em Campos, não se explicita claramente as motivações para a queixa. Como as próprias ofendidas, por serem menores, não podiam apresentar a queixa, sendo esta da responsabilidade dos seus pais, foram eles (e, na maior parte dos casos, às mães) que indicaram os motivos para a queixa. Não sabemos se por serem ou não instruídos na delegacia, os(as) queixosos(as) apresentaram sempre uma mesma razão: a filha havia sido seduzida e desvirginada sob promessa de casamento não cumprida. Os dois supostos atos do acusado, o desvirginamento e a quebra da promessa de casamento, são unidos numa só queixa e num só delito. A própria definição do crime de sedução se fundamenta nessa união. O delito só existe quando, além dos outros quesitos, ocorre tanto o desvirginamento quanto a violação da promessa de casamento. Esse vínculo entre desvirginamento e promessa de casamento para o reconhecimento, pelos juízes, do crime de defloramento/sedução, foi bem analisado por Martha Abreu e Sueann Caulfield322. Nós o abordamos no Capítulo I desta dissertação. De forma geral, a promessa de casamento, quando formulada no decorrer de um longo e adequado namoro, ou após o noivado, tendo o aspecto de comprometimento sério, crível, se constituía na mais importante justificativa para que uma “moça honesta” cedesse sua virgindade ao namorado ou noivo. Ao se apresentarem na delegacia, os(as) queixosos(as) não diziam pretender a realização do casamento. Alguns, porém, deixaram claro que recorreram ao judiciário porque o acusado recusara-se a “reparar o mal feito” e todos disseram-se em busca de justiça323. A leitura atenta dos processos permite-nos, perceber que a justiça pretendida era a “reparação do mal feito”, a qual poderia resultar de dois atos distintos (mas 322 ABREU, Martha Campos. e CAULFIELD, Sueann. Op. cit. passim. A respeito do sentido de justiça como fator de recurso ao judiciário pelos “populares”, ver THOMPSON, Edward P. Senhores e Caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ________. Tradición, Revuelta y Consciencia de Clase: estudios sobre la crisis de la sociedad preindustrial. Barcelona: Editorial Crítica, s.d. 323 170 às vezes articulados): a condenação do réu ou a realização de uma união conjugal entre ele e a ofendida, preferencialmente, o casamento324. A gravidez, que aparece nas pesquisas de Martha Abreu e Cristina Donza como uma das principais razões, se não a principal, para a queixa contra o suposto sedutor, nos processos que analisamos em Campos foi menos expressiva325, apesar de treze ofendidas (24,5%) terem ficado grávidas. Em dois processos (3,8%), as ofendidas afirmaram ter revelado o desvirginamento às suas mães por terem ficado grávidas326. No entanto, apenas no processo 11.426, a ofendida declarou que a mãe apresentou a queixa em razão da sua gravidez. (Tabela 35). Dos processos em que as ofendidas ficaram grávidas, apenas os acusados dos processos 6.727, 10.745 e 10.793 foram condenados (de um total de sete condenações), mas os juízes não afirmaram a gravidez como motivação para a condenação. Das sete ofendidas que casaram com os acusados, apenas a do processo132/70 estava grávida. Das duas ofendidas que amasiaram com os acusados, apenas a do processo 11.430 estava grávida. das três ofendidas que casaram com outros homens, apenas a do processo 11.457 estava grávida (segundo ela, do acusado). E das três ofendidas que amasiaram com outros homens, somente a do processo 10.793, estava grávida (segundo disse, do acusado). Os dados permitem-nos perceber que a gravidez não era razão suficiente para levar o acusado à condenação (até porque a paternidade nunca ficava “provada”). Também não era suficiente para produzir o casamento do acusado com a ofendida. Por outro lado, ao que parece, a gravidez da ofendida não embargava, de forma absoluta, suas possibilidades do obter o casamento ou o amasiamento com outro parceiro. Entretanto, os dados disponíveis não são suficientes para tirarmos conclusões mais amplas. 324 Apontar o desvirginamento e a quebra da promessa de casamento como o motivo para a queixa seria não só uma forma de portar-se conforme a lógica das normas jurídicas, mas também guardaria coerência com os motivos alegados pelas ofendidas para terem cedido aos desejos sexuais dos namorados. Por outro lado, é bem provável que o casamento fosse realmente a expectativa dos(as) queixosos(as). Tanto mais que eles mesmos, em sua maior parte, eram casados conforme nos mostram os dados dos processos (ver tabela 7, página 85), e as análises que desenvolvemos no Capítulo II (páginas 73-95). 325 Processos em que o Exame de Conjunção Carnal registrou estar a ofendida grávida: 132/70; 6.727; 10.745; 10.793; 10.959; 11.172; 11.413; 11.426; 11.430; 11.457; 11.464; 11.486; 11.688. 326 Processos nº 6.727 e 11.426. 171 Se a gravidez não foi, via de regra, a principal razão apontada para a queixa, a sua existência não deixou de ser usada como um argumento a mais para exigir-se que o réu “assumisse as suas responsabilidades”, reparando, pelo casamento, “o mal feito”. (...) resolveu contar o acontecido à sua irmã em virtude do atraso da sua menstruação, esta dera conhecimento do fato ao seu genitor que procurou o acusado tendo este se negado a ‘reparar o mal com o casamento’327. Quanto à oposição familiar, apenas uma ofendida alegou que cedera ao coito como forma de pressionar a família do namorado a aceitar o casamento328, enquanto, em três outros processos, a afirmação de que o desvirginamento teria sido uma tática usada pela ofendida como forma de escapar aos embargos postos pela família, dela ou do namorado, partiu do acusado ou do defensor329. Mesmo não sendo dita de forma explícita, na maior parte dos casos, fica patente que a perda da perspectiva de uma união conjugal - efetivamente prometida ou não - foi a motivação principal à maioria dos processos. Mesmo quando esta motivação não era a da ofendida, era a dos seus pais a quem, no frigir dos ovos, cabia a responsabilidade e o direito da representação jurídica. Daí para frente, em alguns casos, evidencia-se que a ofendida apenas desempenhava o papel que lhe era atribuído pela família na busca da união conjugal. Mas acreditamos, na maior parte dos casos, que a ofendida lutava, no judiciário, para conquistar ou manter uma união desejada. TABELA 35 RAZÕES PARA A QUEIXA SEGUNDO AS OFENDIDAS, EM % Razões %* %** Descumprimento da promessa de casamento 20,8 68,8 Ele a desprezou*** 5,7 18,8 Ele propôs amigar com ela e casar com outra**** 1,9 6,2 A ofendida declarou que a mãe apresentou a queixa por ela ter ficado grávida 1,9 6,2 * Percentuais relativos aos 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes. ** Percentuais relativos aos 16 processos em que as ofendidas disseram a razão da queixa. *** Nesse item, há casos de ofendidas que se disseram desprezadas pelo acusado após a cópula, não tendo ele cumprido a promessa de casamento, nestes casos, a queixa decorreu dos dois fatores. **** O que implicou também no não cumprimento da promessa de casamento alegada pela ofendida. 327 Processo nº 9.529, maço 582, folhas 18-19. Ver o processo 12.250. 329 Ver os processos 10.745; 11.77; 11.223. 328 172 Vejamos o caso do processo 11.430. Nele Elizete Antunes, brasileira, preta, fluminense, com 16 anos de idade, do lar, sabendo ler e escrever; acusou Olival Lopes, brasileiro, pardo, católico, fluminense, com 28 anos de idade, lavrador, sabendo ler e escrever de havê-la seduzido e deflorado em novembro de 1971. Segundo Olival Lopes, ele teria namorado Elizete Antunes por cerca de quinze dias e nunca teria prometido casamento à querelante, mas passou a viver com ela, na casa dela, fazendo inclusive as despesas da casa e, somente após passar a viver com a querelante, é que prometeu que tomaria conta dela, “mas o depoente abandonou a casa porque ela provoca muitas confusões” 330. Ao sentenciar, o juiz, tendo em conta o tempo do namoro, considerou não ter existido sedução, pois não haveria razão para a ofendida depositar justificável confiança no acusado. E mais, por lhe ter dado a impressão de ser pessoa “bisonha”, “meio retardado mental”, indagou ao réu sobre um possível tratamento médico, tendo sido informado pelo réu e depois confirmado pelo hospital que ele estivera internado no Sanatório por estar “meio doido”. O juiz então pergunta: “como se admitir fosse a ofendida ser enleada pela conversa de um indivíduo mentalmente retardado?”. E termina por concluir não haver prova para condenação do réu331. Apesar de demonstrar grande preconceito contra as pessoas ditas “doidas”, as quais seriam incapazes de realizar sedução, o juiz toca em algo que nos parece importante neste caso. Por que Elizete envolveu-se com um homem pobre e aparentemente sofrendo de problemas mentais? Amor? Talvez! Mas a resposta pode estar também nas condições da sua família. O pai havia falecido, a mãe estava hospitalizada por ocasião do seu envolvimento com Olival (certamente sem condições de trabalhar e prover o sustento dos oito filhos) e, pelo que declarou uma das testemunhas da ofendida, a família encontrava-se passando fome. Nestas circunstâncias, Olival, mesmo sendo pobre (como de resto toda a comunidade trabalhadora de Goitacases, onde ele morava) e com o seu jeito “bisonho, meio retardado mental”, no dizer do juiz, mas possuindo emprego e renda, pode ter sido visto por Elizete - moça 330 331 Processo nº 11.430, maço 572, folha 19. Os grifos são nossos. Id. Ibid., pp. 34-40. 173 preta, com 16 anos, apenas sabendo assinar o nome, desempregada e vivendo na miséria, como uma alternativa de sobrevivência. Devemos ter em conta que, segundo depoimentos, tanto do acusado como da ofendida, com poucos dias de namoro - e na ausência da queixosa, mas não sabemos se com ou sem o seu conhecimento - o acusado passou a viver com a ofendida na casa dela (certamente na companhia de seus irmãos e irmãs), fazendo, no dizer do acusado, “as despesas da casa”. Ou seja, sustentando Elizete e seus irmãos. Provavelmente foi quando Olival voltou a viver com os pais, abandonando a casa de Elizete, que ela e a família decidiram denunciá-lo, até porque, aquela altura, já era do conhecimento público o envolvimento sexual entre ambos. Isto, evidentemente, não implica em imprimir em Elizete nenhuma condição de prostituição, mas somente permitir-nos concebê-la no interior das suas condições sociais de existência e percebermos que essas condições, certamente, influenciavam as suas opções (possibilidades?) afetivas e sexuais. Certamente, a decisão de Elizete de viver com Olival, levando-o a assumir o sustento da casa, deve ter contado com respaldo nos valores culturais/morais dela e, possivelmente, dos seus familiares, bem como nos dos vizinhos que testemunharam em seu favor. Podemos supor, pelos depoimentos, pelas condições econômicas e pela altas taxas de casamento (tanto no caso da população campista em geral, como em relação aos protagonistas dos processos) que, para essa parcela das camadas populares envoltas nos processos, o desejo de uma união matrimonial consistia na procura por parceiros que dividissem as tarefas necessárias à sobrevivência. O matrimônio significava, sobretudo, um pacto de mútua ajuda, com uma certa divisão de tarefas e funções a partir dos sexos. O casamento formal seria uma espécie de ideal desejado, porém nem sempre alcançado. Contudo, os amasiamentos, a montagem da casa não eram recusados e não implicava, para esses homens e mulheres em imoralidade. O moral e o imoral seriam possivelmente definidos não exatamente pela forma com se efetuou a união marital, mas pelo cumprimento ou não dos compromissos conjugais assumidos. Ao homem, o dever de “cuidar da esposa e filhos”332, de prover a casa como estabelece o Código Civil333, à 332 333 Artigo 229 do Código Civil. Cf. NEGRÃO, Theotonio (org.). Op. cit., p. 80. Artigo 233 do Código Civil. Cf. NEGRÃO, Theotonio (org.). Op. cit., p. 80. 174 mulher, os cuidados com a casa e com os filhos, o cumprimento do seu dever legal e moral de auxiliar o marido na manutenção da família334 e, de não menos importância, a fidelidade sexual335. Assim, encontramos homens e mulheres dos setores populares compartilhando com o Código Civil alguns dos significados do matrimônio: ajuda mútua entre os cônjuges, a divisão sexual das tarefas, o dever provedor do marido (ou companheiro), a dedicação doméstica e materna da esposa (ou companheira). Entretanto, duas diferenças se evidenciam. Em primeiro, para os homens e mulheres dos processos, o casamento não era concebido como lugar exclusivo da realização sexual como almejaram as várias propostas de normatização dos comportamentos femininos que examinamos no Capítulo I. Em segundo, os populares, estendiam ao amasiamento os mesmos significados, em temos de funções e obrigações conjugais, atribuídos ao casamento oficial. Nisto, os homens e mulheres das camadas populares diferiam dos profissionais do judiciário que, em seus pronunciamentos, condenavam o amasiamento como contrário à “moral”. Em nossa opinião, para as ofendidas de Campos, o casamento era entendido como união matrimonial336, não lhe sendo imprescindível a ritualidade pública estabelecida no Código Civil e nas práticas religiosas que conferem ao casamento formal a função de moralizador das relações amorosas e sexuais, necessárias à reprodução social. A união matrimonial que estas moças parecem buscar exigia tão só o desejo da convivência e voltava-se, não à moralização das relações amorosas, mas à 334 Artigo 240 e seguintes do Código Civil. Cf. NEGRÃO, Theotonio (org.). Op. cit., pp. 81-84.Ver também a Lei 4.121 de 27 de agosto de 1963. Cf. NEGRÃO, Theotonio (org.). Op. cit., pp. 677-680. 335 Artigo 231, inciso I do Código Civil. Cf. NEGRÃO, Theotonio (org.). Op. cit., p. 80. 336 Denominamos por união matrimonial, a aliança conjugal entre um homem e uma mulher independentemente dos mecanismos da sua constituição, se formal (o casamento civil e/ou religioso) ou informal (amasiamento, concubinato, mancebia e outras) cuja finalidade vai da realização amorosa ao interesse material; tendendo, no mais das vezes, a unir tanto o desejo afetivo (ainda que unilateral) com a sua dimensão econômica (a sobrevivência do casal e de cada uma das suas partes) que, a nosso ver, é sempre considerada, mesmo nas camadas populares. A compreensão das relações conjugais entre os populares como sendo uniões matrimoniais permite superar o discurso metafísico e idealista (romântico) que dicotomiza a afetividade, o interesse afetivo, e as considerações materiais, econômicas, na constituição dos casamentos e/ou uniões consensuais entre as camadas populares. 175 obtenção de um companheiro com o qual desejassem e pudessem assegurar a existência social337. Destarte, “marido” ou “companheiro”, “esposa” ou “companheira”; o essencial não estava na ritualidade, na formalidade pública e oficial da união (casamento ou amasiamento), pois a moralidade e a honestidade dos cônjuges definiam-se, sobretudo, pelo cumprimento dos deveres e compromissos de cada um na união338, ou seja, pelo cumprimento dos papéis sexuais socialmente reconhecidos, como vimos no Capítulo I e estão codificados no Código Civil339. À medida que o objetivo das moças desvirginadas era a conquista de uma união matrimonial útil, necessária e desejada (e aqui não nos parece haver nenhuma ilegitimidade moral, que só poderia emergir de uma percepção idealista das relações humanas), os requisitos morais tidos pelo judiciário como necessários às pretendentes a um casamento formal, dentre os quais a virgindade, o recato e a sujeição não teriam para as moças dos processos que pesquisamos a mesma significação e importância340. Considerando não ser o casamento, para as moças inseridas nos processos, o lugar exclusivo para a realização sexual, entendemos ser plausível supor que as motivações para a busca de uma união matrimonial eram outras que não o desejo 337 “(...) atualmente vive em companhia do acusado, isso desde os fatos; que não tem filhos com o acusado; que o acusado é muito bom para a ofendida e dá toda assistência que precisa (...). Processo n° 11.177, maço 570, folha 61. “(...) que o acusado trata bem da ofendida; que o acusado mantém a casa regularmente fornecendo o necessário à depoente (...)”. Processo nº 10.745, maço 574, folha 34. Ver também os processos 178/69 e 12.365. 338 Ver, por exemplo, os processos de número 178/69; 10.155; 10.569; 10.745; 10.793; 10.803; 11.177; 11.430; 11.927 e 12.365. 339 Além de estabelecer as condições, impedimentos e a ritualidade necessária à realização do casamento civil, o Código Civil define uma série de direitos e obrigações para o marido e para a esposa. Sendo deveres comuns a fidelidade recíproca; a vida em comum, no domicílio conjugal; a mútua assistência; o sustento, guarda e educação dos filhos os quais são legitimados pelo próprio casamento que cria “a família legítima”. O Código Civil também define ser o marido “o chefe da sociedade conjugal”, exercendo essa função com a colaboração da mulher; cabendo a ele a representação legal da família; a administração dos bens comuns e dos particulares da mulher que lhe couberem administrar em virtude do regime matrimonial adotado ao do pacto antenupcial; o direito de fixar o domicílio da família; prover a manutenção da família; ter a decisão final em caso de divergência sobre o casamento dos filhos menores. À mulher cabe, a condição de companheira, consorte e colaboradora do marido nos encargos da família, cumprindo-lhe velar pela direção material e moral desta; ela poderá exercer atividades fora do lar desde que autorizada pelo marido; reivindicar bens que tenham sido doados pelo marido à concubina mesmo que ela não esteja mais vivendo com o marido e a doação tenha sido disfarçada sob a forma de venda; ela exercerá a direção administrativa do casal se o marido estiver impossibilitado. Ver NEGRÃO, Theotonio (org.). Op. cit., pp. 71-113; 677-680. 340 Cabe lembrar que o Código Civil previa em seu artigo 219 inciso IV, como um dos motivos capazes de possibilitar a anulação do casamento o “defloramento da mulher ignorado pelo marido”. Atualmente, estas e outras formulações do Código Civil foram superadas pela Constituição de 1988, porém estavam em pleno vigor legal entre 1960 e 1974, período da nossa pesquisa. 176 sexual, já que este podia e era satisfeito fora - e, mesmo antes - da união matrimonial (casamento ou amasiamento). Algumas características da conjuntura campista nos anos sessenta e setenta, e que já analisamos no Capítulo II, reforçam a nossa hipótese de que a união matrimonial era efetivamente procurada nas camadas populares por razões afetivas e/ou práticas e não por motivações moralistas. No caso de Campos nos anos 60 e 70, algumas particularidades, como já dissemos, reforçariam nossa divergência com a conclusão de Martha Abreu. Primeiro, o fato demonstrado pelo IBGE do caráter misógino do mercado de trabalho regional, com a redução da participação da força de trabalho feminina à medida que se eleva o valor do salário, com as mulheres mais presentes nos níveis de menor remuneração salarial. Os indicadores sócioeconômicos apontavam para uma realidade bastante adversa à mulher no tocante à sua capacidade de sobrevivência sem um companheiro. Segundo, o fato também demonstrado pelo IBGE do crescimento, a partir da segunda metade dos anos 60, dos casamentos formais (particularmente do casamento civil) no conjunto da população, inclusive entre os setores de baixa renda. Em terceiro, os processos que pesquisamos mostram que apenas um percentual insignificante de ofendidas disse não desejar o casamento com o acusado ou que ali estava sob pressão de outrem341. Das 53 ofendidas, sete (13,2%) casaram-se com o acusado342 durante o processo ou após a condenação dele (o casamento da ofendida com o condenado ou com outro homem possibilitava a extinção da punibilidade); três (5,7%) casaram-se com outros homens343 (nesses casos, nem as ofendidas nem os seus maridos manifestaram interesse na continuação do processo, o que permitiu, nos casos dos réus condenados a extinção da punibilidade e nos casos de absolvição a não existência de recursos); duas (3,8%) amasiaram-se com o acusado344 (sempre no decorrer do processo) e três (5,7%) amasiaram com outro homem345 (também durante o processo). Temos então que quinze (28,3%) das ofendidas obtiveram alguma forma de união matrimonial durante o 341 Apenas no processo 11.926 a ofendida declarou não querer mais casar com o acusado. Processos em que as ofendidas e os acusados casaram: 132/70;11.627; 11.927; 12.285; 12.365; 12.370; 12.638. 343 Processos em que as ofendidas casaram-se com outros homens: 9.529; 10.155; 11.457. 344 Processos em que as ofendidas “passaram a viver” com os acusados: 11.177 e 11.430. 345 Processos em que as ofendidas “passaram a viver” com outros homens: 10.569; 10.793; 10.803. 342 177 processo ou logo a seguir, sendo que dez (18,9%) conquistaram a forma que, considerando os motivos apresentados para a queixa e a extensão que o casamento oficial havia atingido junto à população de Campos (Capítulo II), supomos fosse a preferencial: o casamento. Por sua vez, cinco ofendidas (9,4%) aceitaram o amasiamento. A ida ao judiciário, portanto, nem sempre implicou em derrota para a ofendida e sua família346. O que estamos a concluir é que a realização de uma união matrimonial fazia parte dos horizontes de vida, das expectativas sociais dos populares, mas as suas motivações nada tinham a ver com os desejos normatizadores e moralizadores esposados pelos juízes. Quando pensamos na união matrimonial como uma das motivações ou mesmo como a principal razão para a apresentação da queixa, devemos levar em conta as condições econômicas e sociais da região, onde as possibilidades de sobrevivência de moças como as que aparecem nos processos não eram as mais alentadoras e não apontavam para perspectivas emancipacionistas. Em tais circunstâncias, casar poderia constituir-se na melhor estratégia de sobrevivência disponível347. Além do mais, não podemos esquecer que entre a população de Campos, incluindo a maioria dos(as) queixosos(as) e testemunhas presentes nos processo, o casamento já estava consagrando como a maneira legítima e mais utilizada de se constituir as relações conjugais. Diante de tal contexto histórico, parece-nos razoável supor que expectativas quanto a um casamento estivesse presente entre as jovens que se “perderam” e que tenha influenciado a ela ou aos seus pais, na decisão de apresentar a queixa contra o namorado que havia rompido o relacionamento, “deixando de aparecer” ou se recusava a “reparar, pelo casamento, o mal feito”. Uma outra possibilidade é que o recurso ao judiciário objetivasse, não necessariamente, o casamento com o acusado, mas limpar a honra da ofendida, tornando-a digna de casar-se com outro. Aqui o interesse estaria em obter-se do 346 Casos em que ocorreu a extinção da punibilidade pelo casamento do réu com a ofendida: 11.927; 11.627; 12.638; 12.285; 12.365; 12.370; pelo casamento da ofendida com outro homem: 9.529; 10.155; 11.457. 347 Também a necessidade de sobrevivência induzia homens e mulheres a buscarem uniões matrimoniais no Brasil colonial. Ver FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Op. cit., pp. 52 e passim. 178 judiciário, pela condenação do acusado, um atestado de moralidade para a ofendida que se deixara desonestar não por ter tendências à concupiscência, mas exatamente pelo seu contrário, por ser ingênua e inexperiente, o que possibilitara ao namorado espertalhão aproveitar-se dela. Esta hipótese pode ser exemplificada com o processo nº 9.529 no qual Célia de Souza, brasileira, branca, fluminense, com 16 anos de idade, do lar e alfabetizada acusou Cláudio de Farias, brasileiro, branco, católico, fluminense, com 22 anos de idade, solteiro, motorista de ônibus e alfabetizado, de havê-la seduzido com repetidas promessas de casamento e de tê-la deflorado na noite do dia 24 de janeiro de 1968, na casa do pai da ofendida, quando este não se encontrava. Em seu depoimento na delegacia, o acusado negou as promessas de casamento e a conjunção carnal com a ofendida, afirmando que a mesma tinha tido outro namorado antes dele. A desqualificação moral da ofendida e a valorização do acusado como honesto e trabalhador será a linha argumentativa da defesa. Depois de cumpridos os ritos do processo, o juiz decide pela condenação de Cláudio por estar convencido que Célia, sendo virgem, entregara-se a Cláudio e fora por ele deflorada devido a sua inexperiência, decorrente da sua condição de moça do interior recentemente chegada à cidade348 e ter justificável confiança nas promessas de casamento do namorado que, inclusive, freqüentava a casa dos seus pais. Tendo sido condenado, Cláudio evadiu-se não sendo pois a pena cumprida. Porém, em 23 de abril de 1970, seu advogado entrou com recurso pleiteando a prescrição da pena por ter Célia casado com Adalberto Alves Rodrigues, em 12 de julho de 1970 (a sentença condenatória de Cláudio é datada de 30 de junho de 1969), argumentando que ao ter se casado com outro, Célia teria, conforme estabelece o artigo 38 do Código Penal e a Súmula 388 do STF, o prazo de seis meses para requerer o prosseguimento da ação penal contra o réu, não o tendo feito, estava pois, a pena prescrita. A par das filigranas jurídicas que o caso envolve, o que nos interessa é indagar por que Célia e Adalberto não deram continuidade à ação? É impossível, contando somente com o processo, responder com certeza. Talvez simplesmente 348 Nos cinco casos em que o réu foi condenado as ofendidas eram de origem rural. 179 desconhecessem as exigências legais. Mas temos como plausível supor que não tinham mais interesse no caso. Para Célia, o fundamental já fora feito. Ela resgatara, na “justiça”, a sua condição de mulher honrada, provara a sua inexperiência e sua virgindade moral (ao menos aos olhos do juiz). Seu defloramento, antes do casamento não resultara, ao olhos do juiz, de um comportamento cotidiano promíscuo, mas da sua ingenuidade que a levou a confiar em um namorado “sedutor” que, por isto, fora condenado. Ao receber do judiciário o atestado de ingenuidade e honradez, ela se qualificara novamente para o casamento. Foi-lhe dada uma nova oportunidade de poder constituir-se em esposa honesta e cumprir seu papel social349. Quanto a Adalberto, provavelmente, estaria mais interessado no esquecimento do caso. Como já dissemos, nossa hipótese é que o importante para as jovens das camadas populares que estão processando seus namorados por sedução, era a busca de uma união matrimonial motivada por razões afetivas e/ou práticas e não por ilações moralistas. Como as dos juristas que vinculavam a “pureza” e a honestidade da mulher à virgindade e defendiam o casamento oficial como a única forma legítima e moral de se realizar a sexualidade e constituirse família. Verifica-se, por um lado, a imensa supremacia das uniões formais - civis e/ou religiosas - sobre as formas consensuais, não formais, de matrimônio, conforme demonstramos no Capítulo II. Por outro, a clara hegemonia dos casamentos exclusivamente civis sobre as demais formas, superando inclusive a soma das uniões consensuais com as celebradas somente na igreja350. É impossível não perceber, ao menos em Campos, a expansão das esferas de controle do Estado. Isto é, a supremacia dos casamentos civis pode estar demonstrando que a burocracia estatal conseguiu afirmar-se como a principal agência legitimadora das relações sociais e que os relacionamentos sociais, para serem legítimos, devem ser reconhecidos pelo Estado. É o Estado afirmando-se como poder concedente de legitimidades e constituidor de hegemonias. Ele amplia sua área de controle sobre a sociedade, ricos e pobres, e parece estar conseguindo estabelecer a noção de que união matrimonial legítima não é algo que diz respeito somente aos nubentes e às relações 349 “(...) O conceito de mulher honesta envolve assim, um juízo de valor, sendo, pois, um elemento normativo do tipo a ser estabelecido pelo juiz, de conformidade com os padrões vigentes em determinado meio e revelados pelo costume (...)”. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 10. [grifo nosso]. 350 Ver IBGE – VIII Recenseamento Geral, 1970, Série Regional, Volume I, Tomo XVI. 180 destes com Deus. Os casamentos e a constituição da família brasileira é assunto de interesse geral e, portanto, deve obedecer aos ritos de quem fala pela sociedade: o Estado. (...) ‘é no seio da família que o homem tem antes de tudo a escola, aprendendo os primeiros deveres de cidadão, que recebe a força do próprio valor. A família é que inspira o amor ao trabalho, a ordem e o respeito na vida social, as vias honestas e seguras do progresso civil. É na família que se prepara a Pátria, e não só a força material, mas sobretudo a força moral’ (...) o esposo com determinadas funções, a esposa com outras (...) concluímos que, se não houver o fortalecimento das famílias da classe média e média alta, mais difícil tornarse-á a problemática das famílias pobres e das famílias miseráveis (aquelas cujos membros vivem de biscates e não possuem emprego e rendimentos certos). O bom ou mau exemplo das classes mais elevadas, de um modo ou de outro, repercutirá nas classes inferiores (...) oriundas das famílias mais sacrificadas e, principalmente, desassistidas, mormente das áreas urbanas, o aumento crescente das meretrizes, atraídas pelo ganho fácil, mediante o aluguel do próprio corpo. É a conseqüente expansão do lenocínio alimentado por jovens saídas das famílias-problemas, de faixa pobre e miserável da sociedade (...)351. Em contrapartida, aqueles que reconhecem e buscam o casamento civil, como o meio legítimo de contrair-se matrimônio, recebem direitos e garantias e o reconhecimento imediato, mediante a certidão de nascimento, da legitimidade dos filhos advindos da união352. A certidão de casamento, cada vez mais, fará parte do rol de documentos imprescindíveis à identificação do cidadão honesto, assim como a carteira de trabalho. 351 ASSOCIAÇÃO DOS DIPLOMADOS DA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. “A Situação do Menor Carente. Influência do Problema no Processo de Desenvolvimento do País. Providências Objetivas [Enfraquecimento da Família, como Causa e Efeito]”. In: III Ciclo de Estudos Sobre Segurança Nacional e Desenvolvimento. Delegacia do Estado do Rio de Janeiro/Campos dos Goytacazes: 1978, pp. 4,5,14 e 15. 352 Nos anos sessenta e setenta, o Código Civil ainda diferenciava os filhos “legítimos”, os nascidos dentro do casamento, dos filhos “ilegítimos”, aqueles tidos fora do casamento. Tal diferenciação só deixou de ter fundamento legal após a promulgação da Constituição Federal de 1988. CONCLUSÃO 183 PALAVRAS FINAIS Iniciamos esta pesquisa com uma questão fundamental: por que, ainda nos anos sessenta e setenta do século XX - época da “revolução sexual” e da “liberação feminina” - pais e mães de moças juridicamente classificadas como “miseráveis”, isto é, moças pobres, recorreram à polícia e ao judiciário (ao Estado) para denunciar e processarem os namorados das suas filhas, acusando-os de as haver seduzido e desvirginado? Um processo por sedução submete os envolvidos, sobretudo a ofendida, a diversos constrangimentos. Ela tem de expor-se e/ou relatar suas relações amorosas e intimidades sexuais a vários funcionários do aparelho estatal: delegado, detetives, escrivães, médicos legistas e/ou peritos, promotores, defensores, assistentes, juízes e, às vezes, procuradores e desembargadores. Além do mais, sua história ultrapassa os limites das paredes da delegacia e do fórum, pois a necessidade de apresentar testemunhas (da acusação e da defesa) leva a que o fato seja narrado a parentes, amigos e vizinhos, tornando o desvirginamento fato público. Mas, por alguma razão, elas e seus responsáveis legais decidiram levar à frente a queixa. Mas que ou quais razões seriam essas? Em quase todos os processos aparece a afirmação de que a ofendida “se perdeu” com o acusado. Mas o que significaria essa “perda”? Uma conclusão a que chegamos é que, ao menos aos olhos dos seus pais (a quem cabia a responsabilidade legal pela queixa), o desvirginamento seguido da ruptura do relacionamento amoroso entre a ofendida e o acusado, ou quando este relacionamento se dava com um homem já casado, implicava na perda da expectativa matrimonial ou na redução das possibilidades da ofendida no mercado matrimonial. O mercado de trabalho e a extensão que o casamento formal havia atingido entre as camadas populares certamente reforçava a valorização social e moral do matrimônio. Havia pois, uma “perda” a ser reparada, ainda que o desvirginamento pré-nupcial não embargasse por completo as possibilidades matrimoniais das moças defloradas, como indicam alguns processos. Ora, uma moça pobre, geralmente sem emprego ou com um baixíssimo nível de renda e deflorada, provavelmente teria as suas possibilidades matrimoniais 184 reduzidas, ela estava “perdida”. Mas, se o acusado viesse a ser condenado, isto poderia eqüivaler a uma absolvição moral da ofendida. Era sua chance de provar que não era dada a liberalidades, que não “decaíra” pela falta de virtudes e do controle familiar, mas por ingenuidade e confiança. Ela era honesta, confiável, boa de casar. Neste sentido, o recurso ao judiciário podia ser a possibilidade, a brecha por onde as moças que se apresentavam como seduzidas podiam buscar o resgate da sua honra, o perdão para “o mal passo”, ainda que esse mesmo judiciário, no mais das vezes, tenha reprovado de forma incisiva os hábitos e comportamentos da maioria das jovens desvirginadas. Como observou Leila Algranti para o período colonial, o mesmo Estado que punia, podia, em certas circunstâncias, conceder o perdão353 mantendo, assim, uma possibilidade para que as jovens seduzidas contraíssem matrimônio, constituíssem famílias, podendo, então, cumprir seu papel social de esposa e mãe. À medida que constatamos, para Campos, um significativo crescimento dos casamentos entre 1965 e 1974, poderíamos nos perguntar se seria o triunfo das políticas disciplinadoras, a conquista da hegemonia ideológico-moral pelo Estado, com os populares introjetando os valores difundidos pelos juristas de forma integral? A princípio poder-se-ia supor uma identidade cultural entre setores populares envolvidos nos processos e os juristas, já que fazia parte do discurso jurídico a propagação do casamento e da família nuclear responsável, legalmente instituída e protegida por lei354. Crimes como atentado ao pudor, sedução e estupro são considerados pelo Código Penal de 1940 (em vigor nos anos sessenta e setenta) como sendo crimes contra os “costumes”. Ou seja, crimes que afetariam não só aos interesses privados das suas vítimas, mas, outrossim, à ordem pública, à moral familiar e à segurança social. Nos anos sessenta e setenta, a questão do “desregramento sexual” e sua conseqüente ameaça à família, chegará a ser apontada como ameaça à segurança nacional, como fizeram em Campos, homens vinculados a variadas profissões, incluindo advogados e professores da Faculdade de Direito, ligados à Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra355. 353 Cf. ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit., pp. 129-130. Cf. NEGRÃO, Theotonio (org.). Op. cit. 355 ADESG. Op. cit., passim. 354 185 Mas o possível triunfo das políticas de normatização em generalizar um determinado tipo de união matrimonial e uma forma padrão de família356 não significa que as motivações que levaram os populares a adotar o casamento formal e a família nuclear como formas privilegiadas de organização social tenham sido as propaladas nos panegíricos moralistas das diferentes elites que, em diferentes momentos e lugares difundiram diversas propostas, mais ou menos implementadas, de controle dos comportamentos sociais, em particular, a domesticação da sexualidade feminina e que foram por nós estudadas no Capítulo I. Nossa conclusão é que efetivamente os populares de Campos, nos aos 60 e 70, tinham interesse em conseguir uma união matrimonial e que esse interesse deve ter pesado de forma significativa na decisão de apresentar a queixa, ainda que não tenha sido a razão única e que outras tenham se combinado com ela ou mesmo tido importância especificamente maior para esta ou aquela ofendida. Porém, o interesse na união matrimonial (principalmente o casamento) decorria também, ou mesmo principalmente, de outras razões que não as de cunho moralista propaladas pelos juristas. Para os homens e mulheres das camadas populares, a conquista de uma união matrimonial estava também ligada às necessidades da sobrevivência cotidiana, além das óbvias razões afetivas. De qualquer forma, nos anos sessenta e setenta, apesar de toda a “modernização dos costumes” atribuída a este período, os homens e as mulheres ainda eram avaliados e julgados em função de papéis sociais claramente distintos, com os homens sendo positivados por sua condição de trabalhadores e mantenedores do lar, enquanto nas mulheres ainda se valorizava o recato, a obediência aos pais e o desejo do casamento. Isto tanto nos pronunciamentos dos profissionais do judiciário quanto nos depoimentos das testemunhas. Evidencia-se nos processos, tanto pelos pronunciamentos dos juízes como pelos depoimentos das testemunhas, a imagem da “boa moça”, o tipo ideal de moça, como sendo a ”moça recatada” e “obediente aos pais”. 356 Claro que o casamento oficial (civil e/ou religioso) e a família nuclear não se constituíram, na prática, em modelos únicos. Porém, é inegável, na Campos dos anos 60 e 70 do século XX, o seu avanço e a redução percentual das formas alternativas de relacionamentos. 186 A “boa moça”, a “moça de família” não estava impedida de ir a festas, bailes e competições esportivas, desde que devidamente acompanhada e vigiada por seus pais, particularmente, por sua mãe357. Ela podia namorar e, ao que nos parece, tinha liberdade para escolher o namorado, mas o namoro deveria ser consentido e dar-se sob às vistas dos pais. A referência da sua “honestidade” (para os juízes) ou da sua “boa conduta” (para os juízes e testemunhas) estava, grandemente, na sua condição de filha obediente. No balanço historiográfico que fizemos no Capítulo I, não localizamos nas outras pesquisas sobre crimes de defloramento/sedução, uma ênfase tão intensa na necessidade da sujeição das filhas aos pais, quanto localizamos nos pronunciamentos dos profissionais do judiciário e nos depoimentos das testemunhas de Campos, nos anos 60 e 70. Contudo, a analise dos processos mostrou-nos que nas vivências das moças e rapazes presentes nos processos, as normas do recato e da submissão foram por diversas vezes violadas, subvertidas e apropriadas, em função dos interesses específicos das ofendidas e acusados. 357 Processos em que os profissionais do judiciário criticaram as mães por não vigiarem suas filhas: 282; 524/73; 7.795; 10.793; 10.981; 11.622; 11.731. Processos em que as testemunhas criticaram as mães por não vigiarem as filhas: 7.795; 8.921;10.155; 10.745; 11.464; 11.924. 187 LISTAGEM DAS FONTES 1. FONTES PRIMÁRIAS Processo nº 132/70, maço nº 562. Processo nº 178/69, maço nº 460. Processo nº 282, maço nº 572. Processo nº 467/73, maço nº 562. Processo nº 524, maço s/nº. Processo nº 6.727, maço nº 575. Processo nº 7.795, maço nº 574. Processo nº 7.816, maço s/nº. Processo nº 8.921, maço nº 524. Processo nº 9.529, maço nº 582. Processo nº 10.155, maço nº 575. Processo nº 10.448, maço nº 565. Processo nº 10.529, maço nº 568. Processo nº 10.569, maço nº 583. Processo nº 10.581, maço nº 567. Processo nº 10.745, maço nº 574. Processo nº 10.793, maço nº 562. Processo nº 10.803, maço nº 567. Processo nº 10.937, maço nº 582. Processo nº 10.943, maço nº 570. Processo nº 10.959, maço nº 574. Processo nº 10.981, maço nº 564. Processo nº 11.096, maço nº 581. Processo nº 11.098, maço nº 579. Processo nº 11.138, maço nº 569. Processo nº 11.172, maço s/nº. Processo nº 11.177, maço nº 570. Processo nº 11.223, maço nº 581. Processo nº 11.260, maço s/nº. 188 Processo nº 11.413, maço nº 565. Processo nº 11.426, maço nº 570. Processo nº 11.430, maço nº 572. Processo nº 11.457, maço s/nº. Processo nº 11.464, maço nº 565. Processo nº 11.486, maço nº 581. Processo nº 11.500, maço s/nº. Processo nº 11.622, maço nº 570. Processo nº 11.627, maço nº 569. Processo nº 11.651, maço nº 562. Processo nº 11.688, maço nº 570. Processo nº 11.713, maço nº 582. Processo nº 11.716, maço nº 567. Processo nº 11.731, maço nº 562. Processo nº 11.733, maço nº 567. Processo nº 11.842, maço nº 562. Processo nº 11.924, maço nº 562. Processo nº 11.926, maço nº 562. Processo nº 11.927, maço nº 568. Processo nº 12.249, maço nº 564. Processo nº 12.250, maço nº 563. Processo nº 12.285, maço nº 563. Processo nº 12.365, maço nº 579. Processo nº 12.370, maço s/nº. Processo nº 12.638, maço s/nº. 2. FONTES COMPLEMENTARES CARVALHO, Beni. Sexualidade Anômala no Direito Criminal. Rio de Janeiro: Livraria Jacyntho, 1937. CÓDIGO PENAL. São Paulo: Saraiva, 33ªed., 1995. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal (parte especial). Rio de Janeiro: Forense, 5ª ed., 1986. 189 GOMES, Hélio. Medicina Legal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 31ª ed., [1ª ed., 1945], 1994. GUSMÃO, Chrysolito de. Dos Crimes Sexuais. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 5ª, 1981. HUNGRIA, Nélson. e LACERDA, Romão Côrtes de. Comentários ao Código Penal, Vol. VIII. Rio de Janeiro: Forense, s.d. 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