crimes de sedução em campos dos goytacazes - Pagu

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crimes de sedução em campos dos goytacazes - Pagu
LUIZ CLÁUDIO DUARTE
CRIMES DE SEDUÇÃO EM CAMPOS DOS
GOYTACAZES – 1960/1974
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal Fluminense, como
requisito para obtenção do título de Mestre: Linha de
Pesquisa: História Cultural.
ORIENTADORA: PROFª.
Drª. MARTHA CAMPOS ABREU
NITERÓI - RJ
1999
LUIZ CLÁUDIO DUARTE
CRIMES DE SEDUÇÃO EM CAMPOS DOS
GOYTACAZES – 1960/1974
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal Fluminense, como
requisito para obtenção do título de Mestre: Linha de
Pesquisa: História Cultural.
BANCA EXAMINADORA
Profª. Drª. Martha Campos Abreu (Orientadora) - Universidade Federal Fluminense
Profª. Drª. Sueann Caulfield – Universidade de Michigan
Profª. Drª. Magali Gouveia Engel - Universidade Federal Fluminense
Profª. Drª. Rachel Soihet (Suplente) - Universidade Federal Fluminense
NITERÓI - RJ
1999
DEDICATÓRIA
Aos meus pais,
Luiz Duarte e Maria José Mesquita Duarte, pois este trabalho é também o
resultado dos seus sacrifícios e do seu amor.
A José Marcos Duarte, irmão de quem a saudade não cessa.
À Sheila Siqueira de Castro Faria, pela amizade, confiança e afeto.
À Odete, Maria Tereza e João Luiz, por nossa história em construção.
AGRADECIMENTOS
Olhando para os últimos três anos em que o meu cotidiano resumiu-se,
essencialmente, às atividades ligadas a esta pesquisa, percebo o quanto se trata de um
trabalho coletivo. Como não reconhecer as contribuições de todos(as) os(as) autores(as),
das mais diversas áreas do conhecimento, que, de alguma forma, influenciaram minha
formação intelectual? O que consegui produzir reflete também a contribuição deles(as).
Agradeço aos colegas do Departamento de Serviço Social de Campos da
Universidade Federal Fluminense que me concederam a liberação das atividades
docentes, especialmente aos professores Aristides Arthur Soffiati Netto, José Luís
Vianna da Cruz e Hélio de Freitas Coelho por terem assumido as disciplinas que a mim
cabiam; à CAPES pela bolsa de estudos que viabilizou todo o trabalho de pesquisa; à
PROPP, especialmente ao Professor Marcos e às funcionárias Virgínia e Rita por toda
atenção que me dispensaram; aos juízes e funcionários do Fórum Nilo Peçanha da
Comarca de Campos dos Goytacazes, que possibilitaram o acesso aos processos que
utilizei; aos professores do mestrado com os quais muito aprendi, ainda que nossas
conversas, quase sempre, seguissem por caminhos bem distantes do tema desta
pesquisa; às professoras Angela Maria de Castro Gomes e Magali Gouveia Engel
agradeço a participação na banca que aprovou o projeto desta pesquisa; à minha
orientadora, Professora Martha Campos Abreu agradeço por toda dedicação, pelo
entusiasmo demonstrado com o tema, por ter sido sempre uma fonte de estímulo e, ao
mesmo tempo, uma voz crítica apontando falhas, orientando correções e aplaudindo os
acertos. A Márcio de Souza Soares, companheiro de viagem com quem pude
compartilhar muitas das incertezas e expectativas vivenciadas na construção deste texto,
agradeço as boas “dicas” e o apoio sempre constante. À Maria Luiza dos Santos
Moutinho agradeço por ter limpado o texto das suas imperfeições gramaticais,
permitindo-me o devido respeito a nossa língua, tão carente de cuidados e proteção, tão
bela na sua capacidade de expressar idéias e emoções.
De forma muito especial agradeço a amizade, a generosidade e o apoio de
Sheila Siqueira de Castro Faria. Sem o seu estímulo, esta pesquisa não teria sido feita e,
por isso, quero compartilhá-la com você.
(...)Certa manhã, Sara da Conceição saiu de casa, era Maio o mês, e
atravessou os campos até o lugar onde combinara encontrar-se com
Domingos Mau-Tempo. Ali estiveram nem tanto como meia hora, deitados
entre o trigo alto, e quando Domingos regressou às formas e Sara a casa
dos pais, ele ia assobiando de comprazio e ela tremia como se o sol não
queimasse já. E, quando atravessou a ribeira a vau, teve de ir agacharse e lavar-se debaixo de uns salgueiros porque o sangue não parava de
escorrer-lhe pelas pernas.
José Saramago
SUMÁRIO
FOLHA DE ROSTO
FOLHA DE APROVAÇÃO
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
EPÍGRAFE
LISTA DE TABELAS
LISTA DE GRÁFICOS
RESUMO
ABSTRACT
INTRODUÇÃO....................................................................................................................14
CAPÍTULO I: HONRA, VIRGINDADE E CONTROLE MORAL NA HISTÓRIA E NA
HISTORIOGRAFIA.........................................................................................................33
1. AS REPRESENTAÇÕES DO FEMININO NA HISTORIOGRAFIA DA COLÔNIA.........................34
2.
ENTRE A ORDEM E A ALTERIDADE: CONFLITOS E CONTINUIDADES APONTADAS PELA
HISTORIOGRAFIA..........................................................................................................41
3. IMAGENS PERSISTENTES: LOUCURA E GÊNERO..............................................................47
4. ENTRE A DISCIPLINA E O DESEJO....................................................................................50
CAPÍTULO
II:
APRESENTAÇÃO
– A CIDADE, SUA POPULAÇÃO E OS
PERSONAGENS..............................................................................................................65
1. APRESENTANDO A CIDADE E SUA POPULAÇÃO...............................................................66
1.1- Economia, Educação e Gênero – As Condições da Planície....................................68
1.2- Nos Laços do Matrimônio........................................................................................73
1.3- Nas Páginas, Nas Ondas e Nas Telas.......................................................................76
2. AS CONDIÇÕES SOCIAIS DE EXISTÊNCIA........................................................................79
2.1- Trabalho e Papéis Sexuais........................................................................................80
2.2- Morando com os Pais...............................................................................................84
3. EDUCAÇÃO E “COR”......................................................................................................90
CAPÍTULO III: O NAMORO – MOÇAS, RAPAZES E JUÍZES ....................................................96
1. RUAS, PORTÕES E QUINTAIS..........................................................................................97
2. A “MORAL FAMILIAR”, A MORAL DOS JUÍZES..............................................................100
3. MULHERES ATIVAS......................................................................................................105
3.1- As “Moças de Hoje em Dia”..................................................................................116
4. HONESTIDADE E MORAL – OS OLHARES DAS TESTEMUNHAS.......................................120
5. OS PAIS, AS MÃES E OS PAPÉIS DE GÊNERO..................................................................130
CAPÍTULO IV: PRÁTICAS SEXUAIS...................................................................................140
1. JUSTIFICANDO A SEDUÇÃO: AS OFENDIDAS.................................................................141
2. ATITUDES MASCULINAS..............................................................................................145
3. A HIERARQUIA DAS “CORES” NAS RELAÇÕES SEXUAIS................................................156
CAPÍTULO V: AMIGADO COM FÉ, CASADO É....................................................................162
1. OS PAPÉIS SOCIAIS, A MORAL E O MATRIMÔNIO..........................................................163
2. ELA PENSA EM CASAMENTO? O SENTIDO DAS UNIÕES.................................................168
CONCLUSÃO....................................................................................................................182
PALAVRAS FINAIS............................................................................................................183
LISTAGEM DAS FONTES...................................................................................................187
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................190
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Anos de Estudos das Pessoas de 5 Anos e Mais, Por Sexo.............................73
Tabela 2: Casamentos no Município de Campos – 1960/1981.......................................74
Tabela 3: Estado Conjugal da População de Campos, Por Sexo.....................................74
Tabela 4: Atividades Exercidas Pelos Populares.............................................................80
Tabela 5: Profissões das Testemunhas............................................................................81
Tabela 6: Estado Civil das Testemunhas, Por Sexo........................................................82
Tabela 7:Estado Civil dos(as) Queixosos(as)..................................................................85
Tabela 8:Estrutura Familiar das Ofendidas – Onde Elas Moravam................................85
Tabela 9:A Herança Matrimonial das Ofendidas............................................................85
Tabela 10: Estrutura Familiar dos Acusados – Com Quem Eles Viviam.......................88
Tabela 11: Estado Civil dos Acusados............................................................................88
Tabela 12:Estrutura Familiar dos Acusados – A Herança Matrimonial..........................88
Tabela 13: Classificação dos Populares Pelo Item “Cor”................................................91
Tabela 14: Escolaridade das Ofendidas...........................................................................91
Tabela 15: Escolaridade e “Cor” das Ofendidas.............................................................91
Tabela 16: Escolaridade e “Cor” das Ofendidas Conforme a Composição Étnico/Racial
dos Processos................................................................................................92
Tabela 17: Escolaridade dos Acusados...........................................................................93
Tabela 18: Escolaridade e “Cor” dos Acusados..............................................................93
Tabela 19: Escolaridade e “Cor” dos Acusados Conforme a Composição Étnico/Racial
dos Processos................................................................................................93
Tabela 20: Tempo de Namoro Segundo as Ofendidas....................................................98
Tabela 21:Tempo Entre o Início do Namoro e a Primeira Cópula, Segundo as
Ofendidas......................................................................................................98
Tabela 22: Local da Primeira Cópula, Segundo as Ofendidas........................................99
Tabela 23: Casos em Que as Ofendidas Admitiram Intimidades com os Acusados.....100
Tabela 24: Sexo das Testemunhas.................................................................................122
Tabela 25: Relações das Testemunhas com os Acusados e com as Ofendidas............122
Tabela 26: Comentários Positivos das Test. da Acusação Sobre as Ofendidas............126
Tabela 27: Relação de Parentesco Entre os (as) Queixosos(as) e a Ofendida...............132
Tabela 28: Posição do(a) Queixoso(a) Diante do Namoro da Filha..............................133
Tabela 29:Através de Quem o(a) Queixoso(a) Disse ter Tomado Ciência do
Desvirginamento........................................................................................134
Tabela 30: Justificativas das Ofendidas Para Terem Copulado....................................141
Tabela 31: Posições dos Ofensores Diante das Acusações...........................................146
Tabela 32: Comentários dos Acusados Sobre as Ofendidas..........................................152
Tabela 33: Número de Coitos Segundo os Acusados....................................................152
Tabela 34: “Cor” Dos Casais.........................................................................................157
Tabela 35: Razões Para a Queixa Segundo as Ofendidas.............................................172
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1: População de Campos 1940-1980..................................................................67
Gráfico 2: Área de Residência dos Populares.................................................................68
Gráfico 3: Setor de Atividades das Pessoas de 10 Anos e Mais, Por Sexo.....................69
Gráfico 4: Pessoas De 10 Anos e Mais, Por Rendimento Médio Mensal (Salário
Mínimo), Por Sexo........................................................................................69
Gráfico 5: Rendimento Médio Mensal das Mulheres em Salário Mínimo......................70
Gráfico 6: Pessoas de 10 Anos e Mais, Por Rendimento Médio Mensal em Salário
Mínimo.........................................................................................................71
Gráfico 7: Rendimento Médio Mensal Familiar, em Salário Mínimo............................72
Gráfico 8: Estado Conjugal das Pessoas de 15 Anos e Mais, Por Sexo..........................74
Gráfico 9: Domicílios Permanentes, Por Utilidades Existentes......................................77
Gráfico 10: Freqüência a Festas e Bailes Segundo Relatos das Ofendidas...................110
Gráfico 11: Número de Coitos Segundo as Ofendidas..................................................144
RESUMO
O estudo da criminalização da sedução e/ou defloramento de moças virgens fora do
casamento tem-se constituído numa das linhas de pesquisa que estão a contribuir para o
entendimento tanto das políticas de normatização como das relações de gênero no
Brasil.
Nesta pesquisa, recorrendo a uma parte da historiografia brasileira sobre relações de
gênero e à análise de 53 processos por crimes de sedução, ocorridos entre 1960 e 1974 e
recolhidos no Fórum da cidade de Campos dos Goytacazes, procuramos compreender as
construções e reconstruções das imagens sobre o feminino e o masculino; os valores
morais defendidos pelos profissionais do judiciário e as imagens sobre a condição
feminina, a partir das quais os juízes proferiram suas sentenças; os conflitos e
aproximações entre os pronunciamentos das autoridades judiciais e os depoimentos dos
homens e mulheres das camadas populares envolvidos nesse tipo de crime; procuramos
entender como viviam os homens e mulheres envoltos nos processos; as motivações que
levaram os populares a buscar a intervenção do poder judicial numa disputa amorosa;
buscamos perceber, a partir da historiografia examinada, as continuidades e
modificações nas formas de se representar o masculino e o feminino.
ABSTRACT
The study of the criminality of the seduction and/or deflowering of virgin girls out of
the marriage it has constituted in one of the research lines that contribute for the
understanding as much the normatization politics as the gender relationships in Brazil.
In this research, ressorting to upon a part of the Brazilian historiography about gender
relationships and to the analysis of 53 processes for seduction crimes, happened
between 1960 and 1974 picked up at the Forum of the city of Campos of Goytacazes,
we tried to understand the constructions and reconstructions of the images about the
feminine and the masculine; the moral values defended by the professionals of the
judiciary and the images about the feminine condition, from which the judges uttered
their sentences; the conflicts and approaches among the pronouncements of the judicial
authorities and men and women’s depositions of the popular strata involved in that type
of crime; we tried to understand how men and women involved in the processes; lived
motivations that took the popular ones to look for the intervention of the judicial power
in a loving dispute; we search to notice, starting from the examined historiography, the
continuities and modifications in the forms of representing the masculine and the
feminine.
INTRODUÇÃO
14
INTRODUÇÃO
O porão do 4º Ofício do Fórum Nilo Peçanha da Comarca de Campos dos Goytacazes
não era um lugar aprazível. A parca iluminação, o ar pesado e o desconforto induziam-me a sair,
a buscar ar e luz, mas eu precisava estar ali, precisava ficar. O ano era 1989 e me enfiara naquele
“buraco” em busca de um tema para pesquisar e das fontes que me permitissem abordá-lo. A
elaboração de um projeto de pesquisa em História, utilizando fontes existentes em Campos, era o
trabalho final para a disciplina de Teorias e Métodos da História do curso de Pós-Graduação
“Lato Sensu” em História do Brasil que estava concluindo.
A sugestão dada pela professora Heloiza de Cássia Manhães Alves - minha colega de
curso - de trabalhar com a História das Mulheres pareceu-me interessante e desafiadora. Em
busca das mulheres, passei a vasculhar as pilhas de processos que estavam “arquivados” em
maços cuja seqüência numérica não seguia uma ordem temática ou cronológica e, para completar
o caos daquele “arquivo”, não havia um livro de tombo. Dessa forma, localizar, no tempo
disponível para concluir o trabalho, processos com mulheres como protagonistas seria, como foi,
uma questão de sorte. Contudo, aos poucos eles foram aparecendo e, para minha surpresa,
tratavam de um assunto que jamais imaginara ser passível de criminalização: o defloramento.
Lendo os processos, o que mais intrigava não era tanto saber por que o Estado
criminalizava o defloramento, quando ocorrido em circunstâncias consideradas ilícitas, mas o
fato de o desvirginamento ter sido denunciado e transformado em processo.
Ao fim de alguns meses, o projeto estava pronto e a especialização concluída. Sete
anos se passaram até que, tendo ingressado no mestrado da Universidade Federal Fluminense,
voltei ao Fórum para reencontrar os ofensores e ofendidas, reler suas histórias e servir-me
delas para pensar as relações de gênero e os conflitos, em termos de valores, entre os
profissionais do judiciário e os homens e mulheres dos setores populares de Campos.
15
Muita coisa havia sido modificada, menos a desorganização e as más condições de
“armazenagem” dos processos. Com a reestruturação ocorrida no Fórum, todos os processos
criminais foram reunidos no “arquivo”/depósito da Primeira Vara Criminal e aglutinados em
maços numerados; porém, para localizarem um processo os funcionários do Fórum servem-se
do nome do acusado e então encontram o maço onde ele esta guardado. Ou seja, não é
possível fazer uma localização dos processos por temas ou datas e, mais uma vez, teria que
contar com a sorte para ir localizando os processos relativos aos crimes de defloramento ou de
sedução. Apesar de muito procurar, não localizei os que havia utilizado em 1989, mas, aos
poucos, foram surgindo processos por sedução produzidos entre 1960 e 1974. Foi um achado
que me animou. Primeiro porque estes processos estão em bom estado de conservação, se
comparados aos mais antigos; em segundo, porque teria a oportunidade de analisar as posturas
e discursos do judiciário e dos envolvidos (homens e mulheres) em conflitos decorrentes da
violação de uma norma social: a sedução e conseqüente desvirginamento de uma moça fora
do casamento, num período da história em que, no ocidente, tanto se falou em “liberação
sexual” e “revolução sexual”.
Não sei quantos processos existem no “arquivo” para o período, pois não há, segundo
me informou o funcionário do Fórum, livro de registro para antes de 1978, e não seria viável
abrir todos os maços. Tentei saber quantos processos foram abertos por sedução entre 1960 e
1974, recorrendo aos registros da delegacia de polícia. Infelizmente a tentativa foi frustrada, pois
vários livros de ocorrência foram queimados. Por isso, interrompi o levantamento ao ter
localizado 53 processos por crime de sedução, tendo deixado de lado alguns casos de estupro ou
tentativa de estupro.
***
As pesquisas que no Brasil têm estudado as relações de gênero e os conflitos culturais a
partir dos processos-crimes por defloramento ou sedução, vêm contribuindo para a afirmação do
que Leila Algranti denominou de a “recente história da mulher brasileira”. Segundo a
historiadora, esta nova historiografia sobre a mulher, “procurou
16
romper com a imagem quase monolítica, imputada pela história, de que a mulher foi sempre o
elemento subjugado, sem direitos civis ou participação política”1.
Como bem assinalou Leila Algranti, inspirada pelas inovações temáticas e teóricas
trazidas ao debate historiográfico pela nouvelle histoire e pela emergência da história das
mentalidades, têm frutificado novas abordagens da história centradas nas pesquisas das “práticas
cotidianas” e “representações sociais e culturais”, especialmente das camadas populares, dos
“excluídos da história”. Um dos temas que tem ocupado lugar de destaque nessa recente
historiografia brasileira é a ‘cultura feminina’, com o estudo do cotidiano das mulheres, da
diferenciação nos papéis sexuais, dos referenciais simbólicos que opõem e articulam o masculino
e o feminino2.
Dessa forma, a atual historiografia sobre gênero se diferencia das perspectivas teóricas
anteriores por conceber as mulheres como ativas, capazes de articular ações e usar o imaginário e
os valores do judiciário em seu próprio benefício, destacando a questão da autonomia feminina e
não vendo a mulher reduzida à condição de “vítima”.
A capacidade feminina de ser autônoma, ativa e sagaz, manifesta-se, na historiografia,
de diversas formas. Desde a resistência mais aberta com a recusa a aceitar as regras dos
comportamentos normatizados defendidos pelas elites intelectuais
- incluindo os juristas -
simplesmente exercendo um outro modus vivendi, até o uso dissimulado dos valores dos grupos
dominantes para tentar alcançar objetivos específicos. Seria o caso de muitas das ofendidas que
recusavam o casamento ou demonstravam seu desagrado com a existência do processo. Seria,
outrossim, o caso de outras que, ao contrário, buscaram servir-se da legislação e dos discursos
moralizadores para forçar seus namorados à união matrimonial3.
Depois da leitura dos processos, chegamos a uma conclusão geral a respeito da
historiografia relativa à História das Mulheres. A de que um dos perigos dessa linha de
1
Cf. ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e Devotas: Mulheres na Colônia: condição feminina nos conventos e
recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750-1822. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Edunb, 1993, pp. 57 et. seq.
2
Id. Ibid., pp. 55-62.
3
Cf. DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia.
Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Edunb, 1993, Segunda Parte, Capítulo 2. Ver também, CANCELA, Cristina
Donza. Adoráveis e Dissimuladas: As relações amorosas das mulheres das camadas populares em Belém no final
do século XIX e início do XX. Campinas: Dissertação de Mestrado/ UNICAMP, 1997, pp. 6-7.
17
pesquisa está na possibilidade do(a) historiador(a) deixar-se levar pela lógica formal na análise
dos fatos narrados nos documentos, mantendo-se preso a um sistema de pensamento onde
vigoram as exclusões. Segundo Leila Algranti, nesses casos, a mulher aparece como vítima ou
rebelde onde uma qualidade exclui, necessária e permanentemente, a outra4. Uma manifestação
matizada desta abordagem estaria na localização das qualidades de submissa ou rebelde,
conforme seja a classe social da mulher. Assim, as mulheres ricas seriam mais controladas,
“civilizadas” e, por isso, mais submissas; enquanto as mulheres pobres, por suas condições
sociais de existência (necessidade de trabalhar, condições de moradia e etc.) e por influências e
opções culturais (a exemplo de uma estrutura familiar mais flexível), seriam mais rebeldes
(rebeldia que se expressaria tanto em atos explícitos de contestação, como em comportamentos
ardilosos de subversão e/ou recusa implícita da ordem instituída). Assim, há o risco, salientado
por Leila Algranti, da “recente história das mulheres” ao concentrar-se nas “mulheres ativas”
obliterar a existência das mulheres que não foram rebeldes e viveram em conformidade com as
políticas de normatização do seu tempo5.
Uma crítica às abordagens dicotomizadas que contrapõem, em absoluto, submissão e
rebeldia, estaria nas leituras que reconhecem a submissão e a rebeldia como presentes em todos
os agrupamentos sociais, porém a submissão seria vivenciada por grande parte, provavelmente,
pela maioria das mulheres. Esta revisão crítica encontrada nos trabalhos de Leila Mezan
Algranti6 e Maria Clementina Pereira Cunha7, apesar da vantagem de reconhecer a generalidade
da submissão e da rebeldia como elementos caracterizadores do ser mulher na história brasileira
e admitirem a assimetria na vivência dos valores, reconhecendo a maior expressão quantitativa
da submissão e/ou menor disposição para o confronto por parte da maioria das mulheres,
também mostra-se presa à lógica formal, pois ainda raciocina em termos de contraposição;
admitindo, no máximo, variações na extensão e na intensidade da submissão ou da rebeldia, que
4
ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit., pp. 55-62.
Cf. LEITE, Miriam Moreira Leite. Apud. ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit., pp. 59-60. Ver ARAÚJO, Emanuel.
“A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia”. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das Mulheres no
Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, p. 53.
6
Cf. ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit. passim.
7
Cf. CUNHA, Maria Clementina Pereira. Loucura, Gênero Feminino: Internação Psiquiátrica de Mulheres em São
Paulo no Início do Século XX. Campinas: UNICAMP, mimeo, passim.
5
18
continuam como qualidades que se excluem mutuamente e não poderiam ser vivificadas,
simultaneamente, por uma mesma pessoa, por um mesmo grupo social ou comunidade.
Penso ser possível e necessária a superação das análises dicotômicas pelo
reconhecimento de que os indivíduos, independentemente das suas configurações sócioeconômicas e culturais são, tais quais as sociedades, perpassados por conflitos e contradições,
muitas das vezes antagônicas. Da mesma forma que não temos uma sociedade brasileira que seja
racista e outra que não o seja, mas uma sociedade que afirma e nega simultaneamente o
racismo; assim como não temos uma sociedade brasileira que seja misógina e androcêntrica e
outra que não o seja, mas uma formação social que tem simultaneamente reafirmado e negado a
misoginia e o androcentrismo; também os indivíduos não são “puros”, eles são, como percebeu
Karl Marx, “a síntese de múltiplas determinações”. Cada indivíduo porta em si a sua sociedade
e o seu tempo, além dos fantasmas do seu mundo. Não sendo, porém, redutível à condição de
receptáculo da cultura. É agente social vivo! Cultivado, é verdade, mas agente e não receptáculo.
Não é somatório, é a articulação complexa, contraditória, mutável, e assimétrica de tudo quanto
há e de quanto houve, é uma totalidade. Os indivíduos não guardam coerência absoluta, não são
retilíneos. Por serem totalidades são contraditórios. Negam e afirmam, submetem-se e insurgemse, são explícitos e dissimulados, corajosos e tementes; são socialmente constituídos.
Reconhecer que os indivíduos são constituídos e se constituem a partir das suas relações
sociais e das múltiplas determinações que sobre eles agem, ou seja, historicamente, não implica
vê-los iguais, idênticos. São distintos. Diferenciações de classe, gênero, raça/etnia, condição
econômica, instrução, cultura, institucionalidade, características corpóreas etc., se combinam
influenciando as diferenciações e semelhanças entre os indivíduos. Demarcam as formas como
cada referencial marcará, o pensamento, os sentimentos e as ações dos indivíduos. As
diferenciações existentes nas sociedades humanas, antagônicas ou não, não são epifenômenos
umas das outras, possuem autonomia, porém, estão sempre sendo produzidas e reproduzidas,
afirmadas e contestadas conforme o contexto e as necessidades. No caso específico das mulheres
e sua história, não temos porque vê-las como submissas ou rebeldes se, provavelmente, elas
eram submissas e rebeldes simultaneamente. As razões pelas quais e as formas
19
como vivenciaram, desigualmente, adesões e recusas, aceitações e releituras (explícitas ou
dissimuladas) dos valores socialmente difundidos foram, certamente, mediadas por outras tantas
diferenciações, que marcaram o seu contexto histórico, além das diferenciações de gênero.
Assim, é possível que uma mulher seja, ao mesmo tempo, insubmissa quanto à superioridade
masculina e à autoridade do pai ou marido, mas legitime a exploração étnico/racial (da qual
muitas mulheres brancas que aparecem como “vítimas”
da opressão masculina foram
promotoras e beneficiárias). Ela pode não compactuar com o poder supremo do marido, mas
impor-se aos filhos e filhas, reconhecendo o direito de autoridade plena dos pais sobre a prole.
Mais do que atentar “a multiplicidade dos comportamentos femininos”, como pede Leila
Algranti8, é mister antenar para o caráter intrinsecamente contraditório dos comportamentos
femininos e masculinos. Ser contraditório não é defeito, é uma condição. Iludidos foram os
normatizadores, civilizadores e reformadores sociais (médicos, juristas, jornalistas, higienistas,
moralistas, pregadores e tantos outros) que sonharam com a imposição de comportamentos
retilíneos.
***
O leitor não encontrará nesta dissertação um capítulo dedicado a reflexões teóricas e
metodológicas. Procurei fazer da teoria e da metodologia ferramentas que me auxiliassem na lida
com a documentação e, por isso, acredito que elas estejam incutidas no texto, no resultado do
trabalho empírico, na práxis da pesquisa.
Entretanto, para que o(a) leitor(a) possa comprovar se a práxis foi efetuada a contento, é
que vou, de forma breve, expor as linhas gerais das premissas teóricas e metodológicas que me
serviram de farol no trabalho empírico.
Sendo uma pesquisa na área da História Cultural e um dos seus objetivos estudar os
usos que os setores populares, especialmente as querelantes, fizeram ou buscaram fazer dos
processos por crime de sedução de que tomaram parte, empreguei como referencial teórico as
reflexões de historiadores ligados tanto a História Cultural
8
ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit., p. 61.
20
como à chamada “história vista de baixo” e/ou microhistória; dentre eles Edward P. Thompson9,
Jim Sharpe10, Giovanni Levi11 e Martha Abreu12.
Thompson, um dos precursores da história vista de baixo, traz à historiografia em geral
e à historiografia marxista em particular, uma importante reflexão sobre as possibilidades de uso
da lei pelos dominados, questão relevante para uma pesquisa como esta que tem em processoscrimes a sua fonte primária.
Para Thompson, a lei contém um nível de flexibilidade que permite o seu uso pelos
dominados, em suas disputas com os poderosos, ou seja, os “populares” podem servir-se dela
para reclamar o que consideram como direito seu13.
Os “populares”, diz-nos Thompson, possuem um sentido de direito o qual é capaz de
levá-los a querelas judiciais (ou a outras modalidades de reivindicações ou protestos), quando
sentem tais direitos violados. Neste caso, entenderiam como legítimas suas reivindicações ou
protestos, face à violação de um direito ou norma social14.
Os dominados, diz Thompson, adotam partes dos modelos (morais e jurídicos) dos
dominadores, incorporando-as ao seu patrimônio cultural, integrando-as ao rol de direitos pelos
quais estarão dispostos a lutar legal ou extralegalmente. No entanto, esta incorporação não deve
ser compreendida como adição ou pura absorção, pois que é mediada pelas experiências dos
próprios “populares”, os quais se utilizam dos modelos gerados e difundidos pelos dominadores
a partir de uma lógica própria15.
Reconhecendo, por um lado, a dimensão institucional da lei (que se expressa nos
tribunais, nos juízes e advogados; enfim, no conjunto de instituições e práticas
9
THOMPSON, Edward. P. Senhores e Caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987.___________. Tradición, Revuelta y Consciencia de Clase: estudios sobre la crisis de la sociedad
preindustrial. Barcelona: Editorial Crítica, s.d.
10
SHARPE, Jim. “A história vista de baixo”. In: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: Novas Perspectivas.
São Paulo: Editora da UNESP, 1992.
11
LEVI, Giovanni. “Sobre a micro-história”. In: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: Novas Perspectivas.
São Paulo: Editora da UNESP, 1992.
12
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas Perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle
Époque. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
13
THOMPSON, Edward. P. Op. cit., p. 315.
14
Id. Ibid., p.331. Sobre o conceito de legitimação ver ____________. Tradición, Revuelta y Consciencia de Clase:
estudios sobre la crisis de la sociedad preindustrial. Barcelona: Editorial Crítica, s.d., p. 65.
15
Id. Ibid.
21
próprias do poder judiciário) e por outro, sua condição de ideologia16, Thompson agrega ao
conceito de lei a idéia de que ela possa ser reconhecida “simplesmente em termos da sua lógica,
regras e procedimentos próprios - isto é, simplesmente enquanto lei”17.
Sendo, por um lado, um instrumento (institucional e ideológico) de imposição do poder
de uma classe18, a lei é também um lugar de conflitos e mediação dos conflitos
Assim, a lei (concordamos) pode ser vista instrumentalmente como
mediação e reforço das relações de classe existentes e,
ideologicamente, como sua legitimadora (...) se dizemos que as
relações de classe existentes eram mediadas pela lei, não é o mesmo
que dizer que a lei não passava da tradução dessas mesmas relações,
em termos que mascaravam ou mistificavam a realidade. Muitíssimas
vezes isso pode ser verdade, mas não toda a verdade19.
Mas para que possa cumprir eficazmente sua função de ideologia é condição sine qua
non que a lei mostre “uma independência frente a manipulações flagrantes e pareça justa”. O que
implica reconhecer não somente direitos para os dominados, mas que eles possam ter a
expectativa de poder recorrer ao judiciário como forma de obter proteção ou reparação, ou seja,
como meio de alcançar o que possam considerar como justiça20.
Thompson, portanto, coloca-nos o desafio teórico de pensarmos as possibilidades dos
dominados, dos “de baixo”, utilizarem-se - na defesa de valores e normas que concebam como
direitos seus - dos instrumentos legais produzidos e controlados pelos dominadores. Assim, o
que fora produzido como mecanismo de dominação pode ser empregado como instrumento de
resistência e luta. Mas, para ver isso, é preciso que o olhar do pesquisador esteja voltado para as
contradições e conflitos, entendendo que as relações sociais, inclusive as relações judiciais,
caracterizam-se por serem contraditórias e conflituosas.
16
“A lei também pode ser vista como ideologia ou regras e sanções específicas que mantêm uma relação ativa e
definida (muitas vezes em termos de conflito) com as norma sociais (...)”. Id. Ibid., p. 351.
17
Id. Ibid.
18
id. Ibid., p. 325.
19
Id. Ibid., p. 353.
20
Id. Ibid., p. 354.
22
Por sua vez, Jim Sharpe aponta como uma das mais expressivas contribuições dos
novos historiadores vinculados à história vista de baixo, o fato de que eles passaram a valorizar e
a empregar, em suas pesquisas, documentos e escritos produzidos por personagens ou
testemunhas dos acontecimentos históricos que ocuparam um papel subordinado, que não se
constituíram nos “grandes homens”, mas deixaram, muitas vezes, registros sobre os
acontecimentos. Assim, afirma Sharpe, nos últimos vinte anos as pesquisas históricas
fundamentadas nos relatos e fontes produzidos por personagens e testemunhas que atuaram ou
presenciaram os acontecimentos de uma posição subordinada, isto é, como comandados,
dominados ou simplesmente pessoas comuns, passaram a ser conceituadas como “a história vista
de baixo”.21
Para Sharpe, a utilidade das fontes empregadas pelos historiadores praticantes da
“história vista de baixo”, a exemplo das fontes cartorarias e inquisitoriais, está no fato dos seus
compiladores não terem tido a consciência de estar realizando registros para posteriores estudos
históricos. Tais fontes podem permitir uma aproximação com as experiências “das pessoas das
classes inferiores”22. E tanto se pode, sem comprometimento metodológico, recorrer a uma única
“fonte excepcionalmente rica”, como ao “exame minucioso de um vasto corpo de
documentação” 23.
Mas, para adquirir uma maior eficácia explicativa é preciso que a história vista de baixo
esteja situada dentro de um contexto24.
Esta suposição, por sua vez, presume que a história das ‘pessoas
comuns’, (...) não pode ser dissociada das considerações mais amplas
da estrutura social e do poder social. Esta conclusão, por sua vez, leva
ao problema de como a história vista de baixo deve ser ajustada a
concepções mais amplas da história. Ignorar este ponto, ao se tratar da
história vista de baixo ou de qualquer tipo de história social, é arriscar
a emergência de uma intensa fragmentação da escrita da história25.
21
SHARPE, Jim. Op. cit., pp. 40 e 41.
Id. Ibid., pp. 48 e 49.
23
Id. Ibid., pp. 50 e 51.
24
Id. Ibid., pp. 53 a 55.
25
Id. Ibid.
22
23
Quais seriam, pois, as contribuições trazidas pela “história vista de baixo”? Ela
favoreceu o recurso à imaginação - aliada à erudição - no uso e análise das fontes, em especial
de fontes que antes não eram empregadas ou privilegiadas. Contribuiu para recuperar e dar luz à
historia de grupos até então marginalizados das pesquisas históricas ou que não tinham a
dimensão da sua participação nos processos históricos valorizada. Tem contribuído para a
consciência de que “a nossa identidade não foi estruturada apenas pelos monarcas, primeirosministros e generais”. E, em especial, tem demonstrado que “os membros das classes inferiores
foram agentes, cujas ações afetaram o mundo (às vezes limitado) em que eles viviam”.
Recorri também à pesquisa de Martha Abreu26 como principal referência, tanto teórica
como metodológica, de como pensar e trabalhar - a partir das reflexões postas pela nova História
Cultural e pela microhistória - os processos por crimes de sedução por mim reunidos.
Martha Abreu, apesar de reconhecer “que os valores de honra, definidos e difundidos
pela Justiça influenciavam os valores das mulheres e homens pobres”27, vai enfatizar a idéia de
uma diversidade na significação daqueles valores por parte das mulheres e homens das camadas
“populares”. Ou seja, para os “populares”, no Rio de Janeiro do início do século XX, valores
como virgindade (física e moral), casamento e honestidade teriam significados diferentes ou
diversos dos emprestados àqueles termos pelos juristas28.
Porém, para terem chances de obter decisão favorável às suas querelas, as ofendidas
precisavam expressar diante da polícia e do judiciário a valorização da virgindade e do
casamento formal, nos moldes do discurso normatizador, o que nem sempre conseguiam realizar
com uma coerência constante, permitindo captar em seus depoimentos, assim como nos de
outros participantes dos processos, as diversidades29.
No entanto, a apreensão da diversidade - premissa teórica fundamental nas pesquisas de
História Cultural, por influência da antropologia30 - nos depoimentos das ofendidas, somente
pode ser alcançada pela “síntese intelectual de alguém que esteja preocupado com valores
26
ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit.
Id. Ibid., p. 118.
28
Id. Ibid.
29
Id. Ibid.
30
CARDOSO, Ciro Flamarion. “História e Paradigmas Rivais”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS,
Ronaldo (orgs.). Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
_________. “No Limiar do Século XXI”. (Artigo a ser publicado pela Revista Falas do DSSC/UFF). __________.
“O Significado Político das Posições Intelectuais Pós-estruturalistas e Pós-modernas” In: Jornal Inverta. Rio de
Janeiro: fevereiro de 1992. CARRION, Raul. “A Escola dos Annales e a Nova História”. In: Princípios nº 42. São
Paulo: Anita Garibaldi, 1996. CASTRO, Hebe. “História Social”. In: CARDOSO, Ciro. F.S. e VAINFAS, Ronaldo.
(orgs.). Op. cit.
27
24
diversos dos padrões (...)”31 o que implica um método de pesquisa que valorize “uma pequena
frase contraditória aqui, outra acolá (...)”32. [grifo meu]
A idéia ou premissa de que os “populares” recebem “influências externas” mas o
fazem de uma forma “não passiva”, não como receptáculos, mas como agentes históricos
capazes de operar uma leitura33 própria dos valores e leis produzidas e difundidas pela classe
dominante é pensada a partir de dois conceitos-chave, permanentemente ligados, no trabalho de
Martha Abreu: o conceito de circularidade cultural, formulado pelo marxista russo Mikhail
Bakhtin e acessado através de Carlo Ginzburg e o de “cultura popular” 34.
Ginzburg define a noção de circularidade cultural como sendo a influência recíproca
entre a cultura das classes subalternas e a cultura dominante. No entanto, o acesso aos elementos
dessa mútua influência, os seus modos e tempos, em particular aos elementos da cultura popular,
é feito, via de regra, de forma indireta o que exige um tratamento criterioso das fontes. A questão
essencial é saber até que ponto os possíveis elementos da cultura dominante presentes na cultura
popular, são resultantes de uma aculturação relativamente deliberada ou de uma confluência
mais ou menos espontânea, não sendo, pelo contrário, o resultado de uma inconsciente
deformação da documentação35.
A ênfase na busca das diferenças, das diversidades - que se constitui em uma das
premissas teóricas de Martha Abreu - é reforçada pela leitura de Robert Darnton para quem, ao
buscarmos conhecer a história dos homens e mulheres das
31
ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 119.
Id. Ibid.
33
“(...) a leitura é feita em busca do significado - o significado inscrito pelos contemporâneos no que quer que
sobreviva de sua visão de mundo (...)” DARNTON, Robert. O Grande Massacre de Gatos e Outros Episódios da
História Cultural Francesa. Rio de Janeiro: Graal, 2ª ed., 1986, p. XVI.
34
ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 120.
35
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987, pp. 24 a 26.
32
25
camadas populares, “precisamos começar com a idéia de captar a diferença” 36, para que
então possamos reconstruir ‘a fisionomia muitas vezes obscurecida, de sua cultura e contexto
social na qual ela se moldou’37.
A utilização dos processos por crimes de defloramento ou sedução permite acessar, nas
entrelinhas, nas contradições dos depoimentos e pronunciamentos38, nos seus indícios,
idéias, pensamentos, aspirações, comportamentos, relações de amor,
relações de vizinhança, relações de trabalho, sofrimentos, alegrias etc.,
de membros das camadas populares, tornando possível conhecer e
construir, mesmo que fragmentariamente, o que se costuma
denominar de ‘cultura popular’.39 [o itálico é meu]
O conceito de cultura, e ainda mais o de “cultura popular”, é deveras polissêmico
existindo várias tentativas de definição40. Minha opção foi trabalhar com uma definição de
cultura popular já experimentada por Martha Abreu e que deu bons resultados como perspectiva
teórica.
36
DARNTON, Robert. Op. cit., p. XV.
ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 120.
38
Depoimentos são as falas do queixoso(a), da ofendida, do acusado e das testemunhas; já os pronunciamentos são
as falas do delegado, do promotor, dos advogados, do defensor público, do júri (quando é o caso) e, finalmente, a
fala do juiz.
39
ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 120.
40
Uma visão panorâmica das disputas teóricas em torno dos conceitos de cultura, popular e cultura popular, bem
como dos seus usos pelos historiadores, é encontrada em CHALHOUB, Sidney; SLENES, Robert W. et alli. Projeto
Integrado de Pesquisa - Cultura Popular: um Problema Histórico e seus Desafios. Campinas: UNICAMP, 1995.
Ver também VAINFAS, Ronaldo. “História das Mentalidades e História Cultural”. In: CARDOSO, Ciro F.S. e
_____________. (orgs.). Op. cit.
37
26
Entendo cultura (...) como um ‘corpo de crenças e valores’, formando
uma espécie de guia de comportamento para um determinado grupo
ou classe social. Constantemente esse corpo é recriado em função do
processo de mudança, interação social e adaptação a novas e variadas
situações sociais. A recriação baseia-se no passado, na cultura herdada
e nas novas opções e limites impostos. Enquanto agentes da sua
própria história, os populares (...) criavam uma cultura diferente dos
padrões vigentes, resultado das suas próprias escolhas frente ao que
era importante ou possível conseguir. Sem deixar de receber
influências e limites, até pela força, dos valores e normas burgueses,
os trabalhadores construíram uma cultura relativamente autônoma
(...), decorrente de uma prática cotidiana de vida. Toda a política de
controle e repressão, atualizada pela República (...) comprova a
ameaça que representava essa autonomia41. [os grifos são meus]
A opção pela História Cultural, sob a influência de Ginzburg, Darnton e Thompson,
levará a que Martha Abreu não só formule os problemas relativos aos crimes sexuais
denunciados no Rio de Janeiro, no início do século XX (1900-1913), em novos termos, como
também a que chegue a conclusões diversas das encontradas, por exemplo, por Boris Fausto que
trabalhou com processos por crimes de defloramento e estupro em São Paulo (1880-1924). Se
para Boris Fausto, as normas de virgindade e casamento oficial estavam introjetadas por todas as
camadas sociais e as dificuldades da classe trabalhadora em viver plenamente segundo aquelas
normas, deviam-se às suas condições materiais de existência, expressas nas privações e na
irregularidade de trabalho. Para Martha Abreu, as condições materiais de existência não seriam
suficientes para explicar a diversidade de comportamentos, as quais seriam também “resultantes
de concepções e valores diversos dos dominantes, são fruto de determinadas opções culturais”42.
Se Boris Fausto aproxima-se de noções como alienação e reificação, Martha Abreu
pensa em termos de diversidade, autonomia e circularidade cultural43.
Uma das questões mais complexas das pesquisas históricas, especialmente das que
investigam os valores e práticas dos setores populares, através de documentos oficiais como os
processos-crimes, consiste na possibilidade de se produzir “provas” para as hipóteses e
conclusões.
41
ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., pp. 120 e 121.
Id. Ibid., p. 123.
43
CHALHOUB, Sidney; SLENES, Robert W. et alli. Op. cit.
42
27
A leitura dos processos forneceu certos indícios e impressões a respeito de valores e
atitudes dos homens e mulheres inseridos nos processos para os quais não pude obter “provas”
absolutas ou indiscutíveis (se é que tais provas existem para alguma área do conhecimento
científico). Mesmo sem “provas” irrefutáveis, resolvi expor as impressões, e mesmo convicções,
que os processos me possibilitaram e o fiz tendo em conta não só o meu trabalho empírico com a
documentação, mas também as reflexões metodológicas de Carlo Ginzburg e seu conceito mais
flexível de “prova”44.
Para Ginzburg, se o historiador não pode realizar experiências no sentido restrito do
termo, pode efetuar investigações elaborando critérios próprios de cientificidade, fundados
“sobre a noção de prova”. Esta é dada pelo nível de “possibilidade histórica” contida numa
“interpretação historiográfica”, à medida em que ela seja capaz de expressar com maior grau de
plausibilidade uma realidade histórica ou “realidade externa”45. Provar, portanto, significa
demonstrar algo, o que está para além da exclusividade narrativa e interpretativa.
Assim, se o processo histórico não pode ser reconstituído de maneira integral e o
historiador não pode recorrer às experiências de laboratório, sua alternativa é a reconstrução
intelectual dos acontecimentos pela análise criteriosa dos seus “vestígios”, que, dependendo das
fontes, podem ter um maior ou menor potencial revelador.
Desse modo, “provar” é estabelecer níveis de plausibilidade. E foi isso que procurei
fazer com as hipóteses que levanto e com as conclusões a que cheguei no decorrer da pesquisa.
A análise dos documentos cujas informações, muitas vezes sutis e implícitas, foram articuladas
com o contexto histórico de Campos nos anos 60 e 70. Procurei demonstrar a plausibilidade, a
“possibilidade histórica” das conclusões, e é isto o que considero possível de ser feito em
pesquisas dessa natureza.
(...) O problema da prova continua mais do que nunca no centro da
investigação histórica: mas o seu estatuto é inevitavelmente alterado
no momento em que são abordados temas diversos relativamente ao
passado, como o apoio de uma documentação também diversa (...)46.
44
Cf. GINZBURG, Carlo. A Micro-História e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil e Difel, 1989.
Id. Ibid., p. 210.
46
Id. Ibid., p. 201.
45
28
Cabe salientar, como faz Ginzburg, que algumas questões não puderam ser respondidas
se não de forma indireta e sugestiva, porque elas não foram formuladas nos processos, quer pelas
autoridades quer pelos envolvidos, pois os objetivos dos que participaram dos interrogatórios e
autos de qualificação não foram os mesmos do pesquisador. Por exemplo, nenhum juiz,
promotor ou defensor, perguntou às ofendidas se elas consideravam o casamento um valor moral
ou se o objetivo delas com o processo era conseguir casar com aqueles a quem acusavam. As
opiniões que formulo a respeito dessas questões foram construídas a partir dos indícios, dos
vestígios, constantes dos depoimentos e da análise das circunstâncias históricas em que se deram
os processos.
As particularidades de uma pesquisa histórica com o uso de fontes judiciais, levou-me a
adotar o comportamento cauteloso proposto por Montaigne, recorrendo a termos mais flexíveis
como ‘talvez’, ‘de certo modo’, “pensamos que” e “provavelmente”47.
Procurei então distinguir, no estilo da redação, o que pude considerar provado pelos
documentos, do que tenho - a partir da documentação e do contexto histórico em que viviam os
personagens, na Campos dos anos 60 e 70 -, como verossímil48.
Assim, conjecturando ou narrando, procurei manter sempre em mente o real49.
***
Ao iniciar a pesquisa inquietou-me - nestes processos produzidos nas décadas de 60 e
70 do século XX -, a presença marcante e decisiva de valores morais e regras de julgamento
próximos aos verificados em outras pesquisas sobre o tema, mas que abrangeram áreas e
períodos por demais diferentes de Campos dos Goytacazes dos anos 60 e 70 deste século.
47
M. de Montaigne. Apud. GINZBURG, Carlo. Op. cit. p. 180.
Cf. GINZBURG, Carlo. Op. cit. p. 180.
49
Id. Ibid.
48
29
Pude perceber uma divisão sexual das funções familiares onde coube às mães, na maior
parte dos processos, a tarefa de apresentar a queixa na delegacia. Nos depoimentos das
ofendidas, encontrei as afirmações de que seus namorados tiveram dificuldades para realizarem a
penetração e que, quando efetuada a cópula, elas sangraram e sentiram dor. Pelo que disseram as
ofendidas, a aludida dificuldade na penetração, a ocorrência da dor e do sangramento,
resultariam da sua condição de virgens. Inversamente, encontramos os acusados negando
qualquer envolvimento sexual com as ofendidas ou afirmando que elas não eram virgens por
ocasião da relação sexual. Os acusados que admitiram o envolvimento sexual com a ofendida,
via de regra, afirmavam a não virgindade das suas acusadoras por não terem, no momento do
coito, constatado sangramento, percebido manifestação de que a ofendida estivesse sentindo dor
ou por ter a penetração se dado “sem embaraços”. As proximidades são também encontradas nos
pronunciamentos dos profissionais do judiciário que reclamavam para todos uma prática
comportamental modelar com regras rígidas quanto às formas e ao sentido de se namorar. Os
profissionais do judiciário repetiam velhos chavões contra a “modernização dos costumes” e a
“liberalização feminina” que estariam estimulando os crimes contra os costumes. Dessa forma,
continuidades relativas e diferenças se fazem presentes nos processos de Campos dos anos 60 e
70 em relação às pesquisas feitas para outras épocas e lugares.
Ao focalizar os processos-crimes por sedução produzidos em Campos nos anos 60 e 70,
encontrei homens e mulheres pobres, adultos e jovens, “pretos”, “brancos” e “pardos”, com
diferentes atividades, vivendo em conflito e/ou conformidade com as políticas e leis através das
quais as elites têm buscado produzir, introjetar e fazer cumprir a normatização dos
comportamentos e a disciplinarização da sexualidade50. O que me levou a indagar se os
comportamentos e depoimentos desses homens e mulheres expressariam uma cultura popular
distinta dos valores esposados e difundidos pelos juristas?
Tratando especificamente dos valores morais e suas representações, pude perceber que
não havia somente semelhanças com o que fora estudado em outras
50
Mesmo sabendo que tais políticas e leis não foram formuladas exclusivamente e nem inicialmente para as
camadas populares, é para as suas relações com este grupo social que voltamos nossa atenção, até pelo tipo de
documentação com a qual estamos trabalhando na qual não localizamos a presença de “moças ricas”.
30
pesquisas, diferenças também ficaram visíveis, particularmente no tocante às ofendias. Estas, se
guardavam semelhanças comportamentais com as mulheres estudadas por Martha Abreu, Sueann
Caulfield, Cristina Donza Cancela, Karla Adriana Martins Bessa, Magali Gouveia Engel, Maria
Clementina Pereira Cunha, Mary Del Priore, Leila Mezan Algranti, Carla Bassanezi, Luzia
Margareth Rago, Rachel Soihet e outras, também possuíam várias e importantes diferenças que
serão esclarecidas na dissertação.
O reconhecimento de que continuidades e singularidades emergiam da documentação
indicou ser preciso
- para um melhor entendimento dos dilemas e conflitos em torno da
moralidade e das práticas sexuais nos anos 60 e 70 - dar um breve e pontual passeio pela
historiografia brasileira especializada e dedicada à História Social dos Gêneros. Não por toda ela
- o que, de resto, ser-nos-ia impossível - mas por algumas pesquisas diretamente úteis ao
entendimento das origens, significações e transformações dos valores morais e das
representações de honestidade e honra, do masculino e do feminino.
Assim, o Capítulo I, Honra, Virgindade e Controle Moral na História e na
Historiografia se propõe, através da historiografia, a fazer uma breve exposição de como a
mulher foi sendo representada, no tocante aos critérios definidores da sua honra, em
determinados momentos e lugares. Verificar os valores, imagens e papéis, através dos quais,
segundo a historiografia analisada, os setores dirigentes têm buscado construir o feminino e o
masculino e a relação entre os sexos, com a atribuição de papéis sociais distintos conforme o
gênero. Conhecer como as mulheres, especialmente as mulheres pobres, lidaram com os
estereótipos do ser mulher e com os paradigmas comportamentais difundidos pelas elites (leigas
e eclesiásticas) em variados momentos da nossa história; acompanhar, na longa duração, as
construções, reconstruções e os conflitos em torno das políticas de normatização procurando
compreender o que há de continuidade e de novo51 nos processos que pesquisei; perceber quais
foram os agentes sociais formuladores, difusores e fiscalizadores das políticas sexuais ao longo
desse
51
E continuidade não significa a repetição literal do passado, não é o “mesmo” passado, ou a inalterabilidade dos
fatos, fatores ou acontecimentos. A continuidade é também parte constituinte da história, muitas vezes é o que dá
inteligibilidade às relações entre o hoje e o ontem e consubstancia a própria noção de processo histórico que não é o
ajuntamento narrativo de fatos e acontecimentos. A continuidade é formada pelas nossas heranças e lembranças, por
todos os fantasmas que o presente carrega. O novo também tem suas raízes no passado, traz a herança dos seus
mortos, resulta dos conflitos entre o que existe, o que não faz mais sentido e o que deseja nascer.
31
passeio histórico, foram as questões que me levaram a fazer o breve balanço historiográfico em
que se constitui o Capítulo I,.
O Capítulo II, Apresentação – A Cidade, sua População e os Populares, é dedicado a
dois assuntos. Por um lado, objetiva possibilitar ao leitor um conhecimento, ainda que sucinto,
do município de Campos dos Goytacazes nos anos sessenta e setenta do século XX. Para tanto
fizemos uma descrição geral das condições sociais e econômicas dos habitantes de Campos,
especialmente das mulheres. Seu objetivo é ajudar a pensar as possibilidades e limites para as
ações femininas.
Por outro, procurei demonstrar que os homens e mulheres que protagonizam os
processos-crimes pesquisei compunham, por suas condições sociais, uma parte da população
pobre de Campos e que, em vários aspectos, notadamente na questão das rendas e das relações
matrimoniais, os dados relativos aos envolvidos nos processos se assemelham aos levantados
para a população campista de forma geral. Com isso, objetivamos possibilitar ao leitor conhecer
as características econômicas, familiares, étnicas e educacionais dos personagens das histórias
que estão registradas nos processos.
No Capítulo III, O Namoro, abordo as formas como se deram as práticas amorosas, o
namoro, entre as ofendidas e os acusados. Como se dava o início do namoro e os lugares dos
encontros; o posicionamento dos pais diante das relações amorosas e do desvirginamento das
suas filhas; a divisão sexual das funções entre os casais das camadas populares; as posturas das
testemunhas e dos profissionais do judiciário; as representações em torno das ofendidas no
tocante a seu posicionamento “ativo” ou “passivo” na relação amorosa e as noções de
honestidade e moral.
No Capítulo IV, As Práticas Sexuais, os assuntos tratados são: as justificativas para a
sedução e para o desvirginamento e as posturas adotadas por acusados e ofendidas diante da
denúncia. Também examino o que denominei de “A Hierarquia das “Cores” nas Relações
Sexuais”, analisando a questão das preferências sexuais a partir do recorte étnico.
O Capítulo V, Amigado Com Fé, Casado É, trata dos motivos que levaram à formulação
das queixas, da moral popular e dos significados de uma união matrimonial. Nele procurei
mostrar as coincidências e conflitos entre os valores e atitudes dos homens e mulheres das
camadas populares e os profissionais do judiciário.
32
O(a) leitor(a) poderá sentir falta de um capítulo especialmente dedicado ao judiciário.
Realmente ele não existe porque minha opção foi por diluir as questões referentes ao judiciário
no decorrer da dissertação, retomando-as sempre que necessárias às argumentações.
CAPÍTULO I
HONRA, VIRGINDADE E CONTROLE MORAL
NA HISTÓRIA E NA HISTORIOGRAFIA
34
1. AS REPRESENTAÇÕES DO FEMININO NA HISTORIOGRAFIA DA COLÔNIA
Lava roupa todo dia, que agonia
na quebrada da soleira, que chovia
até sonhar de madrugada
uma moça sem mancada
uma mulher não deve vacilar...
Luís Melodia
Em estudo publicado em 1988, Mary Del Priore demonstra que as formas de
relacionamentos amorosos praticadas largamente pelas “camadas populares” da Colônia:
concubinato, mancebia, amasiamento, adultério, prostituição e etc., eram vistas, pelas
autoridades leigas e eclesiásticas, como ameaçadoras. Daí os desejos e tentativas de fazer da
família cristã (católica) a base da organização da população. As autoridades coloniais partiam da
premissa de que o enquadramento das pessoas na ordem familiar as tornariam mais propensas a
adaptarem-se à ordem institucional, política e econômica52.
Para consolidar a imagem do casamento como a forma correta de constituir-se a família
e estabelecer socialmente as relações amorosas, foi construído por setores católicos o modelo da
mulher ideal para o casamento como sendo a mulher dócil, casta, recatada, “honesta”, meiga e
submissa53, voltada à maternidade e à família54.
Objetivando realçar as vantagens dessa mulher idealizada, as autoridades leigas e
eclesiásticas, acentuaram o seu contrário: a prostituta e a concubina. Ambas eram mulheres
degradadas por vivificarem relações amorosas e sexuais fora do casamento oficial e sem ter por
finalidade a maternidade55.
52
Cf. DEL PRIORE, Mary. A Mulher na História do Brasil. São Paulo: Contexto, 1988. _______. Ao Sul do Corpo:
condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Edunb,
1993, p. 133. Ver também, ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e Devotas: Mulheres na Colônia: condição
feminina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750-1822. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília:
Edunb, 1993, p. 53.
53
Ver ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit., pp. 114-121.
54
Cf. DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia.
Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Edunb, 1993, pp. 27-32.
55
Sobre o sentido etimológico da palavra matrimônio e sua vinculação com a função procriadora da mulher e da
sexualidade, ver ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit., p. 115. Sobre as funções do casamento e a normatização dos
comportamentos conjugais pela igreja, ver ARAÚJO, Emanuel. “A arte da sedução: sexualidade feminina na
Colônia”. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, pp. 51-53.
35
Assim, ter-se-ia iniciado na Colônia
(...) o longo processo de domesticação da mulher no sentido de torná-la
responsável pela casa, a família, o casamento e a procriação, na figura da
‘santa-mãezinha’56. [grifo nosso]
E a “domesticação” das mulheres, assim como das famílias, passava pela
disciplinarização dos corpos e dos desejos femininos.
(...) A sensualidade, abandonada às impulsões desregradas, rebaixava a alma
dos homens ao nível dos animais, e por isto era fundamental evitar que a
mulher, criada por Deus para cooperar no ato de criação, acabasse por
tornar-se para o homem uma oportunidade de queda e perversão. Ela deveria
apagar todas as marcas da carnalidade e animalidade do ato pela imediata
concepção. Daí serem malditas as infecundas, as incapazes de revestir com a
pureza da gravidez a dimensão do coito. Daí também a importância do
casamento em dar uma ordem e uma regra para a natureza, a priori
corrompida57. [o negrito é nosso]
Na execução deste “projeto normatizador” das autoridades coloniais, a que se referem
tanto Mary Del Priori quanto Leila Algranti, teve especial importância a padronização discursiva
dos comportamentos, através da reutilização e propagação de valores androcêntricos - presentes
no imaginário popular lusitano - e que foram adaptados pela igreja e difundidos pela ação dos
moralistas, pregadores e confessores.
As mulheres apareciam no discurso religioso do clero renascentista e colonial como
sendo um dos caminhos capazes de levar o homem à perdição58. Agentes de satã, elas seriam
concupiscentes, melífluas, fétidas, infectas, gastadoras, desbocadas
56
DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio
de Janeiro: José Olympio; Brasília: Edunb, 1993, p. 26.
57
Id. Ibid., pp. 30-31. Itálico no original.
58
Leila Algranti, como Mary Del Priori, localiza na Idade Moderna a mudança discursiva onde a imagem
tradicionalmente conflituosa sobre a mulher, que oscilava entre a atração e a repulsa, a admiração e a hostilidade,
“assumiu uma intensa malevolência”; no entanto, a emergência deste discurso renascentista, traduzido em várias
obras que estigmatizaram as mulheres, foi simultâneo ao aparecimento de outro discurso, entre os séculos XVI e
XVIII, valorizando a “intimidade individual”, “alterando o sentido da família” que passa a ser ‘o que nunca havia
sido antes: lugar de refúgio onde se escapa aos olhares de fora, lugar da afetividade onde se estabelecem relações de
sentimento entre o casal e os filhos, lugar de atenção à infância’. ALGRANTI, Leila. Op. cit., p. 118.
36
e sexualmente insaciáveis; estando sempre prontas a corromperem o corpo e a alma dos
homens59.
Segundo Mary Del Priori, conjuntamente ao discurso eclesiástico, manifestou-se, nos
séculos XVI, XVII e XVIII, na Europa e, por extensão, em Portugal e no Brasil, um discurso
médico sobre o funcionamento do corpo feminino cujo escopo era dar “caução ao religioso na
medida em que asseverava, cientificamente, que a função natural da mulher era a procriação”. Os
médicos renascentistas esmeravam-se em coadjuvar os esforços eclesiásticos na confirmação da
inferioridade feminina e da necessidade de disciplinar as mulheres para o casamento e o
exercício da função reprodutora, para a qual teriam sido criadas. A inferioridade feminina estaria
inscrita no corpo da mulher, na sua natureza, no seu temperamento. Ela é melancólica, débil,
frágil física e emocionalmente, imbecil e malsã60.
Essa conflitante natureza feminina: satânica, matreira, lasciva, mas também,
melancólica, frágil, imbecil e enfermiça ditava a necessidade de sobre elas exercer-se um severo
controle induzindo-as a copiarem “as santas-virgens” - o que implicava na valorização da
virgindade pré-nupcial - e legitimava a sua contenção no território que será para elas difundido
como ideal, onde poderiam viver sua determinação divino/natural de serem mães: o lar, a casa, o
privado, a família. Tais premissas e perspectivas foram transpostas da Europa para a Colônia,
onde a normatização dos comportamentos seria ainda mais necessária61.
(...) Os esforços convergentes tanto da Igreja quanto do Estado moderno para
a normatização do corpo social passava pela valorização do casal legalmente
constituído e da repressão de toda atividade extraconjugal62.
Compreendendo as construções e reconstruções das representações sobre o feminino e
as relações de gênero como possuidoras de uma longa duração histórica,
59
DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio
de Janeiro: José Olympio; Brasília: Edunb, 1993. Ver, especialmente o capítulo 2 da primeira parte e o capítulo 4 da
terceira parte.
60
Id. Ibid., pp. 34-37. Sobre o saber médico e sua caracterização da mulher, ver a Quarta Parte – O Olhar da
Medicina. Cf. DEL PRIORE, Mary. “Magia e medicina na Colônia: o corpo feminino”. In: ______. (org.). História
das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.
61
Id. Ibid., pp. 36-37.
62
Id. Ibid., p. 38.
37
objeto da História das Mentalidades, Del Priori aponta a persistência, no século XIX, das
caracterizações negativas - que se refaziam desde o Antigo Regime e foram transpostas para o
Brasil - das mulheres não disciplinadas cujos corpos ardentes, insaciáveis, seriam pecaminosos e
malsãos. Daí, conclui a historiadora, a história da condição feminina e das mentalidades sobre a
mulher na Colônia confunde-se com a história dos esforços e discursos empreendidos por
clérigos, médicos, moralistas e autoridades visando a disciplinarização do seu corpo63.
O desejo eclesiástico de moralizar os comportamentos femininos não era uma novidade.
Leila Algranti informa-nos que desde os primórdios da cristandade, já para as primeiras
mulheres que se consagraram à veneração do Cristo, a virgindade era representada como
“símbolo da pureza do corpo e por extensão da alma”, adquirindo desde então um papel
destacado na vida religiosa das mulheres64.
Segundo Leila Algranti, nos compêndios morais do século XVI ao XVIII, e na
documentação do período colonial brasileiro, a honra feminina - que deveria ser amada pelas
mulheres mais do que a própria vida - esteve diretamente vinculada à sexualidade da mulher e
ao seu controle sobre os impulsos e desejos do corpo. Isto significava para as solteiras a
castidade pré-nupcial e para as casadas a fidelidade ao marido. Um mulher que se desonrasse,
arrastava na sua queda a honra do pai (no caso da filha deflorada antes do casamento) ou do
marido (no caso das adúlteras). Assim, a honra da mulher era um bem pessoal pelo qual ela devia
zelar, mas era também assunto do interesse da família que poderia ser atingida e da sociedade
(representadas pelo Estado e pela igreja) visto afetar os bons costumes65.
(...) Das leis do Estado e da Igreja, com freqüência bastante duras, à
vigilância inquieta de pais, irmãos, tios, tutores, e à coerção informal, mas
forte, de velhos costumes misóginos, tudo confluía para o mesmo objetivo:
abafar a sexualidade feminina que, ao rebentar as amarras,
63
Id. Ibid., pp. 177,178 e 199; 180-200 e 333.
Ver ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit., pp. 36-37. Assim como Mary Del Priore, Leila Algranti, vê “a submissão
da mulher ao homem como fenômeno cultural de longa duração presente tanto em certas civilizações da
Antigüidade, como nas sociedades cristãs”. Id. Ibid., pp. 109-110. [grifo nosso]
65
Id. Ibid., 111-121. Posição semelhante foi percebida entre os juristas do século XIX e início do XX. Ver ABREU,
Martha e CAULFIELD, Sueann. “50 Anos de virgindade no Rio de Janeiro: as políticas de sexualidade no discurso
jurídico e popular (1890-1940)”. In: Caderno Espaço Feminino. Volume 2, ano II, nº 1/2. Uberlândia, 1995. Cf.
CAULFIELD, Sueann. “‘Que virgindade é esta?’ A mulher moderna e a reforma do Código Penal no Rio de
Janeiro, 1918-1940”. In: Acervo, v. 9, no 1-2. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, janeiro/dezembro, 1996.
64
38
ameaçava o equilíbrio doméstico, a segurança do grupo social e a própria
ordem das instituições civis e eclesiásticas66. [grifo nosso]
Analisando a relação entre virgindade e casamento no período colonial, Sheila Faria
reafirma a importância do casamento, o qual, mais do que um valor moral, era uma vantagem
na luta pela sobrevivência67.
Demonstra a historiadora como casais dos extratos subalternos da sociedade colonial:
índios, escravos e mesmo crioulos, serviram-se da moral valorizadora do casamento - vinculado
à virgindade feminina anterior -,
para, através dos processos de banho e dispensas de
impedimentos matrimoniais, obterem o casamento oficial. Eram casos em que o casamento
estaria interditado frente os critérios de consangüinidade estabelecidos pela igreja, que impedia
uniões matrimoniais entre parentes até o quarto grau. O defloramento então teria sido utilizado
como estratagema para pôr a autoridade eclesiástica diante de um fato consumado e constrangêla a dispensar o casal dos laços de consangüinidade, de forma a possibilitar o casamento e a
recuperação, pela noiva, da “honra perdida”. Do contrário, ela estaria, no discurso da igreja,
fadada às ‘misérias do mundo’ e ao amasiamento, o que seria um mal maior68.
Sheila Faria acentua que, até mesmo pelas condições de morada da população colonial,
a ocorrência dessas relações sexuais pré-nupciais era do conhecimento dos parentes e vizinhos
do casal, e o uso do defloramento como estratagema para obter a dispensa do impedimento
canônico por consangüinidade, contava, no mínimo, com a aquiescência dos pais da moça69.
Por um lado, se a perda da virgindade fora do casamento significava uma desonra para a
mulher que teria sido “desonestada” e “levada da sua honra”, como diz Mary Del Priore, por
outro, o estar desvirginada não implicava, necessariamente, num embargo à obtenção de uniões
conjugais (preferencialmente o casamento oficial). Esta hipótese foi demonstrada por Sheila
Faria que, ao estudar 27 processos de banho de forros e seus descendentes, constatou que, “em
29% a mulher não era mais virgem e,
66
ARAÚJO, Emanuel. Op. cit. p. 45.
Ver FARIA, Sheila Siqueira de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp. 61-68.
68
Id. Ibid. A respeito do sentido dos processos de banhos e impedimentos matrimoniais, ver pp. 58-61.
69
Id. Ibid., pp. 65-68.
67
39
dentre estes, o noivo não era o deflorador em 57% dos casos”. E mais, para Sheila Faria, “a
virgindade tinha pouco sentido ou influência no mercado matrimonial”70. [grifo nosso]
Porém, complementa a pesquisadora fluminense:
Se virgindade e casamento não estavam necessariamente ligados para a
população mais pobre, o mesmo não pode ser dito para os que detinham
prestígio econômico e social. Idealmente, pelo menos, as noivas ricas
deveriam ser virgens. Foram raros os processos de banhos envolvendo
pessoas designadas como ‘dona’, ‘sargento-mor’, ‘capitão-mor’ e titulações
afins que tivessem referidos relacionamentos sexuais antes dos matrimônios.
Certamente isso não significa necessariamente abstinência sexual por parte
das mulheres, mas sim que, com maior facilidade, tais práticas puderam ser
encobertas. A publicidade é que poderia impedir casamentos. Desde que
tudo se mantivesse longe do domínio público, estava salvaguardada a honra
da família (...)71. [grifos nossos]
Segundo Leila Algranti, para conter a sexualidade da mulher, tida como normalmente
incontrolável, e garantir que ela permanecesse virtuosa e honrada72 as autoridades colônias e seus
propagadores pregavam que sobre elas fosse exercida estrita vigilância pelo pai ou pelo marido73.
A exigência do controle e da fiscalização
- aliada à montagem de paradigmas
referenciais do que deveria ser o modelo de comportamento “que se esperava no despertar da
sexualidade feminina” na Colônia -, denotava um
70
FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Op. cit., pp. 64 e 67. Ver, DEL PRIORE, Mary. Op. cit., p. 76. A respeito do
crime de defloramento no período colonial, ver DEL PRIORE, Mary. Op. cit., Segunda Parte, Capítulo 2.
71
Sheila Siqueira de Castro. Op. cit., p. 67. Por mais espantosa que possa parecer, situação similar à descrita por
Sheila Faria foi percebida por Cristina Donza Cancela, ao estudar processos por crimes de defloramento em Belém
do Pará em fins do século XIX e início do século XX. Cristina Donza sugere que, menos do que o tipo de
relacionamento mantido com a ofendida e “o conhecimento dela ser ou não uma mulher virgem”, o que realmente
importaria aos homens seria “a imagem que sua possível esposa teria aos olhos de todos”, se essa imagem pública
apontasse para a desconfiança de que ele, casando-se, serviria de “pedreiro”, motivo de chacotas, ele tenderia a
romper o compromisso. Cf. CANCELA, Cristina Donza. Adoráveis e Dissimuladas: As relações amorosas das
mulheres das camadas populares em Belém no final do século XIX e início do XX. Campinas: Dissertação de
Mestrado, UNICAMP, 1997, pp. 126-130.
72
Para uma história dos sentidos e aplicações dos conceitos e honra e virtude, ver ALGRANTI, Leila Mezan. Op.
cit., especialmente o capítulo 3 da segunda parte.
73
Id. Ibid., p. 115. Ver também ARAÚJO, Emanuel. Op. cit., pp. 49-53.
40
reconhecimento de ser a mulher, mesmo a “honesta”, dotada de sexualidade, de desejos, daí a
imperiosidade do controle, tido como muito difícil de ser exercido74.
A mulher honrada era definida, na sociedade colonial, como sendo aquela que:
(...) vive reclusa no interior do lar, ocupada nos afazeres domésticos,
distante do espaço público. Tutelada pelo marido, que lhe ministra sempre em pequenas doses - alguns prazeres e atenções, ela deve (...)
viver inteiramente para o esposo (...) pouco dinheiro à disposição, a
esposa ideal deve governar a casa evitando intimidades até mesmo
com aqueles que vivem sob seu teto (...) Nada de folguedos, de
adornos e modismos. Nada de risos e danças fora de casa, olhares,
galanterias75. [grifos nossos]
Porém, não apenas vigilância e repressão configuraram o discurso em torno da
preservação da honra feminina. Se, por um lado, a punição da mulher desonrada “era uma
conduta aceita sem restrições pela sociedade como um todo”, o perdão também era possível e a
recuperação da honra almejada.
(...) a perda não era necessariamente definitiva e, como outros bens, a honra
poderia ser recuperada através de mecanismos criados e acionados tanto pela
Igreja como pelo Estado e pelos familiares. O casamento, a indenização ou
a internação num recolhimento poderiam significar a recuperação da
honra perdida (...) O Estado segregava e expurgava as mulheres sem honra
ou desonradas, enquanto a família as confinava. A Igreja, por sua vez,
condenava-as à danação eterna. Mas as três instâncias também podiam
perdoá-las76. [grifo nosso]
É claro que houve mudanças nos conteúdos ou sentidos dos códigos e valores
utilizados para a caracterização simbólica da mulher. Porém, queremos chamar atenção para o
fato de que a compreensão da honra feminina como sinônimo de virgindade e virtuosidade um bem cuja perda acarretava grandes malefícios à pessoa, à sociedade e à família, exigindo
pois severa punição, mas para a qual também eram deixadas margens de perdão, instituindose mecanismos de recuperação do que fora
74
ARAÚJO, Emanuel. Op. cit., p. 45.
Dom Francisco de Melo. Carta de guia de casados. Apud. ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit., p. 116.
76
Id. Ibid., pp. 129-130.
75
41
perdido -, reaparece na historiografia de diferentes conjunturas e diferentes épocas, como
veremos.
2.
ENTRE A ORDEM E A ALTERIDADE: CONFLITOS E CONTINUIDADES APONTADAS
PELA HISTORIOGRAFIA
Rachel Soihet, estudando as relações entre mulheres e violência no Brasil urbano da
Belle Époque (1890-1920), argumenta que, com “a plena instauração da ordem burguesa”, os
grupos ascendentes fizeram da “modernização” e “higienização” do país suas bandeiras,
apresentando-as como inexoráveis à “civilização” da nação, nos moldes das metrópoles
européias, especialmente Paris. No momento histórico em que se dava a extinção do escravismo
e predominava o “trabalho livre”, o projeto “civilizador” exigirá, à sua consecução, a adoção de
medidas “para adequar homens e mulheres dos segmentos populares ao novo estado de coisas”,
inculcando-lhes valores e formas de comportamentos, fazendo recair especialmente sobre as
mulheres “uma forte carga de pressões acerca do comportamento pessoal e familiar desejado”.
(...) A implantação dos moldes da família burguesa entre os trabalhadores
era encarada como essencial, visto que no regime capitalista que então se
instaurava, com a supressão do escravismo, o custo de reprodução do
trabalho era calculado considerando como certa a contribuição invisível,
não remunerada, do trabalho doméstico das mulheres (...)”77. [grifo nosso]
Nas palavras de Magali Engel:
(...) as transformações que a partir da década de 1850 começaram, lenta e
contraditoriamente, a se delinear nos horizontes da sociedade brasileira
tornavam-se mais profundas e definidas (...) Impunham, de acordo com as
expectativas e interesses dominantes, a formulação e a execução de
77
SOIHET, Rachel. “Mulheres Pobres e Violência no Brasil Urbano”. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das
Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, pp. 362-363._______. “A Interdição e o Transbordamento do
Desejo: Mulher e Carnaval no Rio de Janeiro (1890-1945)”. In: Caderno Espaço Feminino, volume 2, ano II, nº 1/2.
Uberlândia: Núcleo de Estudos de Gênero e Pesquisa Sobre a Mulher da Universidade Federal de Uberlândia, 1995,
pp. 53-57.
42
novas estratégias de disciplinarização e de repressão dos corpos e
mentes sedimentados, por exemplo, sobre uma nova ética do trabalho e
sobre novos padrões de moralidade para os comportamentos afetivos,
sexuais e sociais. O advento da República anunciava o começo de um tempo
marcado pelo redimensionamento das políticas de controle social, cuja
rigidez e abrangência eram produzidas pelo reconhecimento e legitimidade
dos parâmetros burgueses definidores da ordem, do progresso, da
modernidade e da civilização78. [grifos nossos]
Percebemos então que as políticas de normalização comportamental, inclusos os
comportamentos sexuais, estiveram vinculadas a projetos de estruturação e/ou reorganização de
toda a vida social. Inseriam-se num ou noutro projeto de sociedade e foram concebidos e postos
em prática (com resultados discutíveis) em momentos de grande significação histórica79.
Rachel Soihet atenta para o choque entre os desejos “civilizadores” dos novos grupos
dirigentes do Brasil pós-escravista e republicano, e a multiplicidade de formas assumidas pela
“organização familiar dos populares”, onde, pululavam “as famílias chefiadas por mulheres
sós”80. Para a autora, as explicações para os antagonismos entre os padrões comportamentais,
morais e familiares ensejados e vivificados pelas elites e pelas camadas populares, estariam,
tanto nas diferenciações sócio-econômicas, nas diferentes condições materiais de vida como nas
distintas opções
78
ENGEL, Magali. “Psiquiatria e Feminilidade”. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil.
São Paulo: Contexto, 1997, p. 322.
79
Para refletir sobre as mudanças históricas em curso nos momentos em que as políticas de disciplinarização sexual
foram implementadas e/ou refeitas, sugerimos as seguintes leituras. ABREU, Martha Campos e CAULFIELD,
Sueann. “50 Anos de virgindade no Rio de Janeiro: as políticas de sexualidade no discurso jurídico e popular (18901940)”. In: Caderno Espaço Feminino. Volume 2, ano II, Nº 1/2. Uberlândia, 1995. ALGRANTI, Leila Mezan. Op.
cit. CANCELA, Cristina Donza. Op. cit. CAULFIELD, Sueann. “’Que virgindade é esta?’ A mulher moderna e a
reforma do Código Penal no Rio de Janeiro, 1918-1940”. In: Acervo, v. 9, no 1-2. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
janeiro/dezembro, 1996. ________. “Raça, Sexo e Casamento: crimes sexuais no Rio de Janeiro, 1918-1940". In:
Afro-Ásia, nº 18. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, 1996. DEL
PRIORE, Mary. Op. cit. CUNHA, Maria Clementina Pereira. Loucura, Gênero Feminino: Internação Psiquiátrica
de Mulheres em São Paulo no Início do Século XX. Campinas: UNICAMP, mimeo. 1995.ENGEL, Magali. Op. cit.
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas Perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle
Époque. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993. SOIHET, Rachel. “A Interdição e o Transbordamento do Desejo:
Mulher e Carnaval no Rio de Janeiro (1890-1945)”. In: Caderno Espaço Feminino. Volume 2, ano II, Nº 1/2.
Uberlândia, 1995. _______. “Mulheres pobres e violência no Brasil urbano”. In: DEL PRIORE, Mary (org.).
História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.
80
Cristina Donza Cancela e Martha Abreu afirmam que o fato de muitas mulheres aparecerem qualificadas nos
processos criminais como solteiras ou viúvas não significava, sempre, a ausência de um companheiro. Às vezes, o
amasiamento era omitido pela mulher ou, mais freqüentemente, pelo funcionário da polícia ou do judiciário que
registrava a mulher amancebada como solteira ou viúva. Ver CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., e ESTEVES,
Martha de Abreu. Op. cit.
43
culturais e morais construídas e vivenciadas pelos “populares”, incluindo “as concepções de
honra e de casamento das mulheres pobres (...) consideradas perigosas à moralidade da nova
sociedade que se formava” 81. [grifo nosso]
Apesar da diferenças que apontaremos à frente, queremos destacar certas continuidades
reveladas pela historiografia. As tentativas da elite republicana - e seus intelectuais orgânicos82 em disseminar um modelo de família e de exercício lícito da sexualidade, contrapondo-se e
buscando obnubilar o pluralismo das práticas sexuais e vivências familiares difundidas entre os
setores populares; o panegírico da honra feminina vinculada à virgindade pré-nupcial; a
instituição de normas legais voltadas à proteção da virgindade e da honra feminina, aproximamse das atitudes dos reformistas da Colônia. Tanto em um como em outro período, manifestaramse o desejo por generalizar um modelo único de família (oficializada pelo casamento) e pelo
adestramento da sexualidade feminina. Mudaram os enfoques, os métodos, mas não os objetivos.
Também nos séculos XIX e XX, como demonstrou Mary Del Priori para a Época
Moderna e para a Colônia, a historiografia identificou “saberes médicos”, apresentados como
“científicos”, que deram caução às novas políticas de normatização.
(...) A medicina social assegurava como características femininas, por
razões biológicas: a fragilidade, o recato, o predomínio das faculdades
afetivas sobre as intelectuais, a subordinação da sexualidade à vocação
maternal. Em oposição, o homem conjugava à sua força física uma natureza
autoritária, empreendedora, racional e uma sexualidade sem freios (...)
Aquelas dotadas de erotismo intenso e forte inteligência, seriam despidas do
sentimento de maternidade, característica inata da mulher normal, e
consideradas extremamente perigosas. Constituíam-se
81
SOIHET, Rachel. Op. cit., pp. 362-363. Martha Abreu também aponta essa combinação, não necessariamente
derivada, entre condições materiais (ou sociais) de existência das mulheres pobres (no espaço urbano em processo
de transformação nos primórdios do capitalismo brasileiro) e as “opções culturais” exercidas pelos(as) populares que
constituem uma cultura com especificidade fazendo com que a cultura popular não seja ou não possa ser uma
reprodução dos valores “civilizados”. Ver ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., passim.
82
O conceito de intelectual orgânico visa afirmar nossa convicção de que as políticas de normatização não foram
eventos casuais, mas ações conscientes voltadas a responder ao desafio posto a todos os grupos dirigentes: a
formulação e execução dos mecanismos necessários e adequados à reprodução da ordem social e do status quo,
concernentes a determinados interesses de classe. Isto é, as discriminações de gênero, assim como as discriminações
culturais contidas nas políticas e nos discursos normatizadores, refletiam, também, determinações de classe. Cf.
GRAMSCI, Antonio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 7ª ed.,
1989.
44
nas criminosas natas, nas prostitutas e nas loucas que deveriam ser afastadas do
convívio social83. [grifos nossos]
A citação de Rachel Soihet revela-nos continuidades, mas também, modificações em
relação ao que fora percebido para a Colônia. Vejamos.
Uma primeira diferenciação que se pode evidenciar está exatamente na importância que
adquiriram os “discursos acadêmicos”, difundidos por médicos e juristas, na caracterização da
“natureza feminina” e na justificação da sua disciplinarização.
A valorização dos argumentos “científicos”, registrada pela historiografia, contribuiu
para uma mudança no olhar sobre as mulheres. Elas deixam de ser concebidas como um agente
de satã. Sua “natureza” concupiscente, ladina, pecaminosa - tão propagada na Colônia -, deu
lugar ao “recato” “natural” (o recato anterior só poderia ser conseguido e mantido com controle
e vigilância), sua lascívia incontrolável cedeu a uma “natural” subordinação da sexualidade à
vocação maternal.
Por outro lado, mudaram também as representações sobre homem. Ele, de vítima
potencial das tentações femininas, possuidor de um maior autocontrole sexual, passou a ser
representado como portador de uma “sexualidade sem freios”.
Porém, essas novas representações da mulher tornaram-se justificação “científica” para
que se estabelecesse e advogasse uma severa vigilância e controle sobre elas. Sendo agora
recatadas, eram inexperientes e ingênuas; o predomínio da afetividade tornava-as incapazes de
decidirem racionalmente, pesando as conseqüências de cada ato. Ingênuas e emotivas poderiam
ser presas fáceis para homens “viris”, “dominadores”, “empreendedores”, “racionais”, e
sexualmente “sem freios”. Mister seria mantê-las sob guarda e punir exemplarmente as
transgressões84.
Não devemos, no entanto, pensar que o discurso médico e jurídico produziu um
consenso pleno e total homogeneidade nas representações sobre as mulheres, as dicotomias
continuaram a existir, e a mulher também foi apontada como naturalmente
83
84
SOIHET, Rachel. Op. cit., p. 363. Ver também CUNHA, Maria Clementina Pereira. Op. cit., pp. 4-8.
Cf. SOIHET, Rachel. Op. cit. passim.
45
pérfida e ardilosa, porém, tal se devia exclusivamente à sua natureza ambígua85, não resultando
de intimidades com o “senhor das sombras”86.
Uma outra diferenciação importante em relação ao que a historiografia registra para a
Colônia está no fato do discurso médico e burguês, de fins do século XIX e início do XX não
mais pretender que a casa fosse o limite da existência feminina, como se apregoava nos manuais
eclesiásticos difundidos na Colônia. Apesar do território feminino continuar sendo,
preferencialmente, o espaço privado e o do homem o espaço público, passou-se a aceitar e
mesmo recomendar, que as mulheres freqüentassem certos lugares públicos: teatros, chás,
confeitarias e até algumas das avenidas centrais visitando suas lojas, porém, sempre
acompanhadas. A mulher honesta continuava não podendo andar sozinha pelas ruas. Esta norma,
salienta Rachel Soihet, era impossível de ser cumprida pelas mulheres pobres que precisavam
sair às ruas, desacompanhadas, por necessidade de sobrevivência87.
Para a autora, a mentalidade e a moralidade predominante nos grupos dominantes e nos
órgãos públicos e privados, que eles controlavam eram a da “completa dominação” masculina
“sobre a mulher submissa”88.
No tocante ao conceito de honra feminina, ela continuava diretamente vinculada à
virgindade, à castidade anterior ao casamento e à fidelidade após. Sendo que a infidelidade
masculina não era criminalizada, exceto nos casos de possuir o homem concubina teúda e
manteúda. Como observou Leila Algranti para a Colônia, a virgindade e a fidelidade conjugal da
mulher (cuja violação poderia implicar na sua morte, que geralmente ficava sem punição), não
era assunto atinente somente à mulher, era do interesse da família, pois a desonra da mulher
(tornada pública) comprometia o bom nome da família ou os brios do marido89.
Rachel Soihet, por um lado, considera que muitas mulheres não se subordinaram aos
valores e desejos disciplinares dos grupos dirigentes. Tais mulheres
85
A respeito da reformulação e disseminação da imagem da mulher como dona de uma natureza ambígua, e o uso
dessa representação para legitimar a repressão sexual da mulher, ver ENGEL, Magali. “Psiquiatria e Feminilidade”.
In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, p. 332 e passim. Cf.
SOIHET, Rachel. Op. cit., p. 381.
86
Cf. DEL PRIORE, Mary. Op. cit., passim e ALGANTI, Leila Mezan. Op. cit. passim.
87
SOIHET, Rachel. Op. cit., pp. 365-366.
88
Id. Ibid., p. 382.
89
Id. Ibid., pp. 389-399.
46
adotavam, em virtude das condições sociais de existência das “camadas populares”, práticas de
vida que conflitavam com os “pressupostos estabelecidos pela ordem hegemonicamente
burguesa e masculina”. Para a historiadora, algumas mulheres teriam recorrido até mesmo ao
homicídio (justificado pela ‘legítima defesa da honra’ e pela passionalidade do ato), como forma
de resistência aos ultrajes a que eram submetidas90. Por outro lado, a historiadora destaca a
importância da absorção, pelas moças e mulheres pobres, dos valores e normas do discurso
disciplinado: a honra identificada com a virgindade e a fidelidade; o desejo do casamento oficial
(só possível com a posse do hímen) ou a “proteção” de um homem para as “desonradas”91.
As conclusões de Raquel Soihet sobre as atitudes femininas diante das políticas de
controle moral e comportamental implementadas pelas elites republicanas, podem ser
comparadas às de Mary Del Priori, para quem o projeto normatizador das autoridades coloniais
não obteve o êxito desejado e, dentro da sociedade colonial, formas de resistências femininas,
atos dissonantes se fizeram presentes: a vida nos conventos, o lesbianismo ou o infanticídio
teriam sido formas de recusa à maternidade instituída e muitas vezes vivida como uma obrigação
e medida profilática contra as más tendências da mulher. Mas o agir feminino na Colônia não se
reduziu à aceitação ou recusa dos valores dominantes (que afirmavam a superioridade
masculina), constituiu-se também de apropriações e usos próprios desses mesmos valores:
Importante foi ainda detectar como a mãe tornou-se o canal condutor dos
propósitos metropolitanos de adestramento da mal-ossificada sociedade
colonial: ao passar os valores instituídos para seus filhos, a mulher se
autonormatizava. Mas crucial, mesmo, foi compreender que se as mulheres
interiorizavam os preconceitos e estereótipos de uma sociedade machista e
androcêntrica, o fizeram porque nesse projeto encontraram benefícios e
compensações. Sua revanche traduziu-se numa forte rede de micropoderes
em relação aos filhos e num arsenal de saberes e fazeres sobre o corpo, o
parto, a sexualidade e a maternidade92. [grifo nosso]
90
Mariza Corrêa, ao estudar processos por crimes de homicídio ocorridos entre 1952 e 1972 na cidade de Campinas,
onde os envolvidos formavam casais, constatou que a legitima defesa da vida e não da honra, constitui-se na
principal estratégia da defesa dos casos em que as mulheres apareceram como acusadas. Também a perda dos
sentidos frente à forte emoção foi alegada. Cf. CORRÊA, Mariza. Morte em Família: Representações Jurídicas de
Papéis Sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983, pp. 243-245.
91
Ver SOIHET, Rachel. Op. cit., pp. 392-399.
92
DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Rio
de Janeiro: José Olympio; Brasília: Edunb, 1993, p. 335. Ver ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit., pp. 25-26.
47
Podemos perceber pela historiografia, que ambigüidade parece ter sido a regra das
atitudes femininas com as mulheres (e homens), oscilando entre a aceitação ou utilização dos
valores moralizados e a vivência de valores e comportamentos que se chocavam com as normas
apregoadas pelos moralizadores.
3. IMAGENS PERSISTENTES: LOUCURA E GÊNERO
Dentre as linhas de pesquisa que afloraram com a emergência da História das Mulheres,
uma das que mais tem contribuído para o deslindamento das relações entre as políticas de
normatização e as relações de gênero são os estudos dedicados à psiquiatria. Perquirindo as
relações entre a psiquiatria e a reconstrução do imaginário sobre as mulheres em fins do século
XIX e início do XX, Magali Engel constatou que na localização das razões da loucura
interferiam as representações de gênero. Enquanto as situações que conduziriam a mulher à
loucura seriam decorrentes da sua “natureza” - particularmente vinculada à sua sexualidade -,
simultaneamente resultando e expressando o seu desvio dos papéis “natural” e socialmente a ela
atribuídos; a loucura do homem tendia a ser provocada pelo exercício ou recusa dos papéis
masculinos, sendo, ao mesmo tempo, uma expressão de como o homem vivera ou não seus
papéis sociais93.
Vinculando a insanidade feminina às violações ou desdobramentos da sua “natureza”,
os alienistas reforçavam a exigência de que a mulher se subordinasse e cumprisse
adequadamente as suas determinações biológicas, cuja infração, por devassidão, onanismo,
homossexualismo, recusa ao casamento e à maternidade, poderia redundar em malefícios,
inclusive a alienação mental. Entretanto, não só a violação da sua “natureza” levava a mulher à
loucura, mas também a sua própria “natureza” a predispunha a isto94.
93
Cf. ENGEL, Magali. Op. cit., p. 333. À igual conclusão chegou Maria Clementina, notando que a loucura
masculina será expressa como pertencente à esfera “do anti-social”, enquanto a alienação feminina será localizada
“na escala mais perigosa e ameaçadora do antinatural”. Ver CUNHA, Maria Clementina Pereira. Op. cit., p. 10 e
passim.
94
Ver ENGEL, Magali. Op. cit., passim.
48
Ao analisar as atividades de trabalho destinadas a internos e internas (pobres) do
hospício do Juquery, como parte da sua terapêutica de recuperação, Maria Clementina Pereira
Cunha demonstra a persistência em atribuir-se papéis sociais e profissionais conforme o gênero,
afirmando como femininas as funções domésticas, destino “natural” das mulheres.
(...) Tratava-se, além disso, de um trabalho regenerador - e portanto,
pensado em termos da atividade adequada para normatizar espíritos
‘doentes’. Assim, para os homens perturbados pela turbulência das cidades,
o trabalho do campo; para as mulheres, qualquer que fosse sua procedência
ou experiência anterior de trabalho, as atividades da agulha, do fogão, dos
baldes e vassouras em um simulacro de lar coletivo, capaz de trazê-las de
volta à normalidade projetada sobre a figura feminina sob a forma da
domesticação95. [grifos nossos]
Maria Clementina nos relata casos de mulheres sendo apontadas e mesmo internadas
como loucas por terem comportamentos tidos como inadequados, estranhos ao seu sexo e
reveladores de enfermidades, de insanidade. Eram mulheres que se mostravam por demais
inteligentes, intelectualmente ativas e notáveis (mesmo que em pequenos círculos),
profissionalmente dedicadas e reconhecidas, mulheres que se destacavam pelo mérito, pela
disposição de viverem sós e serem independentes não permitindo um controle masculino
(paterno, fraterno ou marital) sobre suas vidas96.
Entretanto, mulheres que optavam por viverem sem a companhia de um marido não
eram bem vistas, pois o celibato era tido como um dos sintomas - e mesmo gênese - da loucura
feminina. Ainda que não levasse à alienação mental, a recusa da mulher em cumprir a sua
determinação “natural” - e social - de ser esposa e mãe, redundava, inexoravelmente, em
“infelicidade e frustração”. Porém, mesmo a decisão de contrair núpcias teria de provir ou ser
mediada pelo pai, a primeira autoridade masculina a quem a mulher deveria subjugar-se97. Ao pai
ou ao marido, a mulher deveria estar sempre subordinada à autoridade de um homem.
Mas como ficava a questão do prazer sexual feminino? Os médicos do século XIX não
produziram um consenso a este respeito.
95
CUNHA, Maria Clementina Pereira. Op. cit., pp. 2-3.
Id. Ibid., p. 5.
97
Id. Ibid., p. 10.
96
49
Uma corrente da medicina que emergiu em meados do XIX e aprofundou-se em fins do
mesmo século, representada por médicos como os doutores William Acton, Kraft-Ebing, Cesare
Lombroso e Guglielmo Ferrero, asseverava a frigidez “natural” das mulheres, pois nelas o
instinto sexual era, por “natureza”, anulado pelo instinto de maternidade. Assim, apenas as
anormais, as ninfomaníacas seriam movidas por desejos e prazeres sexuais. Para esses médicos,
a maternidade seria não só a razão de ser de toda mulher normal, como também o melhor
remédio contra a possibilidade de caírem na loucura. Razão pela qual, mesmo possuindo uma
“natural” repulsa ou desinteresse pelo sexo, a mulher não deve recusar o ato sexual,
imprescindível à realização da maternidade98. Destarte, a maternidade continuava a ser, como
fora para a época colonial, a finalidade da existência feminina. Contudo, modificou-se a
motivação para que a mulher procurasse exercer a maternidade. Na Colônia, a maternidade era
apresentada como uma determinação divina e fator de purificação do ato sexual99. Em fins do
século XIX, a medicina propagava que a maternidade era uma determinação, uma necessidade
natural e fundamental à conservação do equilíbrio psíquico da mulher100.
Outra corrente, representada por médicos como os doutores Auguste Debay, J.
Matthews Duncan, Clélia Duel Mosher e Iwan Bloch, veio à luz em meados do século XIX e
influenciou o pensamento médico até o início do século XX. Esta tendência da medicina
“reconhecia não apenas a existência do desejo e do prazer sexual feminino, mas também a
necessidade - e em alguns casos o direito - da mulher realizá-los”. Para Magali Engel, esse
reconhecimento não se configuraria numa singularidade histórica101. Ele era a retomada de
noções que, com significações diversas, estiveram presentes em outros lugares, em outras
épocas102.
98
Id. Ibid., pp. 340-341.
Sobre a maternidade na colônia ver, DEL PRIORE, Mary. Op. cit., passim. Cf. ARAÚLO, Emanuel. Op. cit.,
passim.
100
ENGEL, Magali. Op. cit, p. 332 et. seq.
101
Certamente a profusão de regras, normas e leis voltadas ao controle e à submissão da sexualidade feminina, deste
a Antigüidade, denota que, de um jeito ou de outro, reconhecia-se ter a mulher desejos sexuais e que o sexo poderia
proporcionar-lhe prazer, tanto que poderia descontrolá-la e levá-la à devassidão; o que não se tinha era o
reconhecimento da legitimidade e do direito da mulher a essa sexualidade prazerosa, advinda do desejo e não da
instinto “natural” da maternidade. Cf. DEL PRIORE, Mary. Op. cit., ver também, ALGRANTI, Leila Mezan. Op.
cit. passim.
102
Ver ENGEL, Magali. Op. cit., p. 341.
99
50
Contudo, não adveio desta última posição difundida pelos médicos, nenhuma política de
liberalização sexual, ao contrário. Convictos de que tanto a ausência ou insuficiência de vida
sexual como os “excessos” ou “perversões” eram funestos à vida sadia da mulher, os médicos
afirmavam ser preciso que as mulheres satisfizessem as suas necessidades sexuais, mas nos
limites do “leito conjugal”. Dessa forma, a correta realização da sexualidade feminina
continuava a passar pelo casamento103, sua prática fora deste contexto, diz Martha Abreu,
expressaria leviandade ou um comportamento doentio. Assim, “Incutir responsabilidade
sexual na mulher tornava-se fundamental para que ela cumprisse convenientemente seu
papel social e sexual (...)”104: cuidar da casa, do marido e dos filhos. [grifo nosso]
Para Martha Abreu, se “os médicos do século XIX promoveram a sexualidade feminina,
ensinando às mulheres que poderiam ter prazer sexual”, os “seus objetivos eram de conter a
prostituição, diminuir a sífilis e garantir a saúde física e moral das famílias”105 e não a liberdade
sexual das mulheres.
4. ENTRE A DISCIPLINA E O DESEJO
Martha Abreu e Sueann Caulfield, estudando os discursos produzidos pelos juristas e os
códigos penais, perceberam que, por todo o século XIX
Tanto a proteção da honra feminina, como pretendia o código de 1830, ou a
honestidade das famílias, como acrescentava o de 1890, estavam sempre
associadas, em última instância, à virgindade feminina (...)106. [grifo nosso]
103
A respeito do vínculo entre casamento, sexualidade e procriação nos discursos propagados no Brasil Colonial,
ver também SOUZA, Laura de Mello e. “O Padre e as Feiticeiras: Notas sobre a Sexualidade no Brasil Colonial”.
In: VAINFAS, Ronaldo (org.). História da Sexualidade no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
104
ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., pp. 54-55.
105
Id. Ibid., p. 54.
106
ABREU, Martha e CAULFIELD, Sueann. Op. cit., p. 23. O referencial para a honra feminina, no Império era o
mesmo do período colonial.
51
Por sua vez, Cristina Donza Cancela, pesquisando crimes de defloramento acontecidos
entre fins do século XIX e início do século XX, na cidade de Belém do Pará, observou que:
Na Belém do final do século XIX e início do XX, a perda da virgindade
significaria para a mulher, na visão dos literatos, poetas, advogados e
promotores, uma abertura a todos os males do mundo. A perda da
virgindade era vista como a perda da inocência, uma desonra107. [grifo
nosso]
Martha Abreu e Sueann Caulfield, demonstraram como foram intensos, em fins do
século XIX e início do XX, os debates sobre os meios para se comprovar a virgindade e,
portanto, a honra e a honestidade de uma mulher. Uma primeira corrente de juristas - num
momento em que a medicina legal engatinhava -, vinculava a virgindade feminina, “presunção
da sua honestidade”, à integridade do hímen. Tal vínculo deveria ser estabelecido não só pelos
“conhecimentos” que então se tinha sobre os órgãos sexuais femininos, mas também, segundo
Viveiros de Castro108, por serem os brasileiros himenófilos109.
Esta “himenolatria”, ao menos no judiciário, foi abalada a partir da década de 1920
quando as pesquisas do médico-legista Afrânio Peixoto, demonstraram a existência de uma
grande diversidade de himens e que a presença ou ausência deste não provaria, de forma
induvidosa, ser ou não a mulher virgem. Além disso, suas pesquisas desmoralizaram um dos
mais expressivos mitos do período, o de que se poderia identificar o caráter de uma mulher (se
virgem e honesta ou prostituída) a partir de características corpóreas: tamanho e densidade dos
seios, presença ou ausência do hímen, tamanho e densidade da vagina e dos lábios vaginais110.
107
CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., p. 5. A pesquisa da Cristina Donza recobre o mesmo período da pesquisa
feita por Martha Abreu para a cidade do Rio de Janeiro
108
CASTRO, Francisco José Viveiros de. Apud. ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., capítulos 1 e 2.
109
Para uma análise das disputas entre os juristas sobre os sentidos da virgindade e as formas da sua comprovação,
bem como, as transformações ocorridas na legislação, ver ABREU, Martha e CAULFIELD, Sueann. Op. cit.,
passim. Ver também, ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., especialmente os capítulos 1 e 2.
110
Cf. ABREU, Martha e CAULFIELD, Sueann. Op. cit., pp. 25-29., ver, também, ESTEVES, Martha de Abreu.
Op. cit., pp. 54-82.
52
Analisando a obra de Afrânio Peixoto, Sueann Caulfield concluiu que o seu
posicionamento por mudanças nos códigos de honra herdados do século XIX, onde ainda se
vinculava a honra feminina à “virgindade física”, à presença do hímen, expressava a condenação
dele - e da classe média de então - à Velha República. Peixoto estaria a difundir e a defender
“normas modernas do gênero burguês” onde a honra não é um símbolo de precedência, mas uma
virtude, um status adquirido em conseqüência do que se fez e do que se faz, isto é, das atitudes.
Daí sua proposta de substituir-se a “virgindade física” pela “virgindade moral” como verdadeiro
objeto da proteção legal. Esta postura assumida por Afrânio Peixoto e vários juristas levou ao
desprestígio do hímen como símbolo da honestidade feminina; esta, paulatinamente, passou a ser
considerada, sobretudo, em razão dos comportamentos e hábitos das mulheres. As condições
sociológicas e psicológicas das mulheres ofendidas - e não mais as fisiológicas - é que deveriam
ser centralmente consideradas pelos juízes quando dos julgamentos111.
No conjunto das políticas normativas do judiciário, percebe-se o interesse em controlarse os movimentos da mulher, estabelecendo interditos à sua presença nos lugares públicos
desacompanhada dos pais ou responsáveis legais. Pretendia-se restringir não só os lugares aonde
uma mulher honesta poderia ir, mas também seus horários e companhias. Estava presente a idéia
de que a mulher ao sair sozinha sujeitava-se ao assédio dos homens, o que não era recomendável.
Da mesma forma, permanecer com o namorado em lugares pouco iluminados, a altas horas e
permitir carícias como beijos e abraços poderiam sugerir a existência de relações amorosas
inaceitáveis para uma moça honesta e de família112.
Sair só e participar de festejos populares eram práticas comuns às mulheres pobres, mas
que, aos olhos das elites, enodoava-as113. Porém, se nem para as mulheres da elite continuava-se
a exigir a clausura absoluta, mais anacrônico seria continuar tê-la como referência de
honestidade para as mulheres pobres. Ao que parece, o
111
Ver CAULFIELD, Sueann. “‘Que virgindade é esta?’ A mulher moderna e a reforma do Código Penal no Rio de
Janeiro, 1918-1940”. In: Acervo, v. 9, no 1-2. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, janeiro/dezembro, 1996, p. 181.
112
Ver CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., p. 30.
113
Id. Ibid., p. 53. Sobre a participação feminina no carnaval e as imagens a respeito desta participação, ver
SOIHET, Rachel. Op. cit. Para as representações em torno das festas populares no século XIX e início do século
XX, ver ABREU, Martha Campos. “O Império do Divino”: Festas Religiosas e Cultura Popular no Rio de Janeiro,
1830-1900. Campinas: Tese de Doutorado, UNICAMP, 1996.
53
entendimento da dissimetria entre o texto da lei (Código Penal de 1890) e os “novos costumes
sociais” do início do século XX levaram a modificações nos critérios de julgamento do
judiciário.
Ao longo do período estudado, houve mudanças nas descrições acerca do
comportamento ‘desonesto’. Sem dúvida, estas mudanças refletiam a
paulatina expansão do espaço público ocupado por mulheres ‘honestas’ na
cidade do Rio de Janeiro e as tentativas por parte das autoridades de
‘protegê-las’ das mulheres ‘desonestas’ (...) Enquanto na virada do século a
defesa do réu baseava-se principalmente na evidência de que a mulher tinha
o costume de sair só (para indicar que ela era ‘desonesta’), nos anos 20 e 30
a ênfase caía na impropriedade das horas e lugares que ela freqüentava 114.
Dessa forma, ao menos formalmente, admitia-se que uma mulher pobre pudesse sair à
rua só e permanecer “honesta”. Porém, a rua continuava a ser um lugar de muitos perigos e se
houvesse a necessidade de sair, o prudente seria a mulher ser vigiada 115. Assim, no início do
século XX, a casa continuava a ser o lugar mais adequado para o cotidiano feminino.
Mas qual seria o sentido do(s) projeto(s) de disciplinarização dos comportamentos, no
início do século XX?
Para os juristas, a questão dos comportamentos dos “populares” tinha uma dimensão
política mais ampla, não se reduzindo à condição de critério complementar na definição de um
crime sexual. Na verdade, escreve Martha Abreu, a punição do crime visava a proteção de toda a
sociedade. Daí que:
114
ABREU, Martha. e CAULFIELD, Sueann. Op. cit., p. 34. Este artigo condensa as conclusões das pesquisas
feitas, separadamente, pelas autoras no período entre 1890-1940, tendo Martha Abreu trabalhado o período de 1890
a 1911 e Sueann Caulfield as décadas de 1918 a 1940.
115
ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., pp. 46-54.
54
(...) Os juristas estavam, como os médicos, imbuídos da missão de formar
cientificamente o cidadão completo, cumpridor de papéis interdependentes:
trabalhador, membro de uma família e indivíduo higienizado (moradia, lazer
e corpo saudáveis, por exemplo). O aprofundamento das correlações entre
honestidade, moral e bom trabalhador, no meio jurídico, formavam um
triângulo referencial riquíssimo na sociedade que se desejava formar116.
Caberia à mulher ser, numa sociedade disciplinada, “o centro difusor da moralização
dos costumes”117. [grifo nosso]
Um dos principais eixos do processo educacional, dentro do qual se inseria a
pedagogia de médicos e juristas, era precisamente a mulher pobre. Ela era
um dos principais agentes reformadores, responsáveis pela saída do homem
das ruas, dos cabarés, dos botequins, da “vida fácil”. E jamais chegou a
saber disso118.
A diretriz de centralizar na mãe/esposa/mulher as responsabilidades sobre o
comportamento familiar parece, então, ter assumido dimensões planetárias.
Qualquer semelhança com a expansão do sistema capitalista durante o
século XIX, concomitantemente com a difusão de suas concepções sobre as
relações sociais, não será mera coincidência119. [grifo nosso]
Acreditamos ser possível perceber uma certa aproximação entre os objetivos dos juristas
só início do século XX, no tocante à morigeração dos comportamentos femininos, e o que nos é
descrito por Leila Algranti em relação aos interesses das autoridades frente as mulheres da
Colônia. Notadamente na insistência do casamento oficial como a única forma de se legitimar o
exercício da sexualidade120.
As diferenciações nos papéis atribuídos aos gêneros, pelos juristas e moralizadores do
início do século XX, ficam evidentes, por exemplo, nos critérios empregados para se julgar o
caráter de homens e mulheres, acusados e ofendidas, nos processos criminais. Enquanto os
116
Id. Ibid. p. 41.
Id. Ibid., pp. 41 e 42.
118
ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 47. Ver, também, RAGO, Luzia Margareth. Op. cit., especialmente os
capítulos 2 e 4.
119
ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p.74.
120
“O projeto de colonização traçado pelo Estado português e pelos representantes da Igreja Católica não excluiu as
mulheres. Pelo contrário, elas foram consideradas, enquanto mães e esposas, o receptáculo das tradições culturais e
das virtudes morais que se desejava transmitir aos colonos, para que desempenassem os esperados papéis de súditos
fiéis e bons cristãos”. ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit. p. 53. Ver também, DEL PRIORI, Mary. Op. cit.,
especialmente os capítulos 1 e 2 da terceira parte.
117
55
homens eram julgados por seus vínculos com a atividade produtiva, por serem trabalhadores ou
não, as mulheres eram julgadas pelo comportamento sexual121.
Refletindo sobre o julgamento dos comportamentos masculinos, Martha Abreu concluiu
que:
Nos processos em que os advogados aprofundavam o comportamento dos
acusados, os atributos de trabalhador sempre se associavam com os de
honestidade, seriedade, respeitabilidade, honra, ideal de família, ou seja,
atributos morais. Isso reforça, mais uma vez, a idéia de que as imagens do
trabalhador eficiente incluíam as de moralidade e vice-versa. A nova ética de
trabalho que se introduziria (...) vinha de mãos dadas com a formação do
cidadão morigerado (...) para os juristas, (...) e reformadores de várias
origens, um trabalhador livre das obrigações domésticas não se adaptaria
facilmente à nova disciplina do trabalho.
Nesse sentido, a existência dos processos criminais contra a honra das
famílias constituía um excelente caminho utilizado pela Justiça para
introjetar nas camadas populares essa nova ética de trabalho através da porta
dos fundos da nova ordem burguesa, através da ‘moral e dos bons
costumes122. [grifos nossos]
Para Martha Abreu, o triunfo dessa nova abordagem que enfatizava a observação do
cotidiano das mulheres e suas práticas culturais como condição para fazer-se um julgamento onde o fundamental era o reconhecimento ou não dos comportamentos da mulher como sendo
honestos, merecedores da proteção legal -, não implicou na aceitação de que as mulheres pobres
viviam segundo referencias culturais distintos dos esposados pela elite, porém, igualmente
válidos. O judiciário reconhece a diferença comportamental apenas para melhor normatizar e
punir, pois continuará julgando as mulheres pobres pelos critérios morais produzidos para
“civilizar” e disciplinar, funcionalmente, as mulheres da elite, e que foram universalizados,
apontados como regras a serem seguidas igualmente por todos setores sociais. O conflito entre
valores da elite (expressos no discurso jurídico e na legislação) e os valores das camadas
populares (expressos nas práticas cotidianas de homens e mulheres) foi, segundo os relatos
historiográficos, inevitável123.
121
Id. Ibid., pp. 78-82. A mesma lógica que se usava para “diagnosticar” e “tratar” a “loucura masculina” e a
“loucura feminina”. Cf. CUNHA, Maria Clementina Pereira. Op. cit., passim.
122
ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 82.
123
Id. Ibid., p. 75.
56
Martha Abreu considera que entre os “populares” a honestidade feminina estava mais
ligada à fidelidade no namoro (não ser namoradeira, não andar com um e com outro
simultaneamente) do que com as formas, lugares, horas e intimidades nos contatos físicos124.
As moças pobres dos processos por defloramento que ela pesquisou no Rio de Janeiro,
namoravam nas ruas, no mais das vezes sem a autorização dos parentes e responsáveis; saíam
sozinhas para encontros amorosos em lugares e horários não recomendáveis; freqüentavam festas
e bailes sem companhia responsável; iniciavam namoro nos primeiros contatos sem prévia
investigação do pretendente; copulavam antes do matrimônio e chegavam a aceitar uniões
consensuais. Por mais que também partilhassem certos valores e expectativas do discurso
dominante, sobretudo o desejo do casamento oficial, elas não eram morigeradas, não viviam
disciplinadamente, não correspondiam aos anseios da moral burguesa e do judiciário125.
Estudando os discursos relativos ao crime de defloramento e às mulheres, produzidos
pelos agentes do poder judiciário, Sueann Caulfield mostra que uma das maiores preocupações
dos juristas na primeira metade do século XX, especialmente nos anos 20, 30 e 40, era com os
efeitos dos “tempos modernos” sobre os comportamentos femininos, mormente o
comportamento sexual126.
As manifestações dos juristas frente aos “novos tempos” (os anos 20, 30 e 40 do século
XX) foram marcadamente ambíguas. A “modernidade” tanto podia significar “progresso social e
econômico”, “relações sexuais e familiares saudáveis e racionais”, quanto a “degeneração
moral”, a “degradação nos valores tradicionais da família e dissolução dos ‘costumes’”127.
(...) Quando atribuída ao homem, a modernidade era geralmente entendida
em seu sentido positivo de racionalidade progressiva. Por outro
124
Id. Ibid., pp. 156-160.
Tanto Martha Abreu quanto Cristina Donza Cancela e Karla Adriana Martins Bessa, destacam a brevidade dos
namoros declarados ou a indefinição quanto à sua duração. Esta seria mais uma demonstração da particularidade do
namoro dos populares em relação ao das elites. Ver, BESSA, Karla Adriana Martins. Jogos da Sedução: Práticas
Amorosas e Práticas Jurídicas - Uberlândia 1950/1970. Dissertação de Mestrado, UNICAMP, 1996. 107-108;
CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., pp. 28-43; ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., especialmente o capítulo 5.
126
CAULFIELD, Sueann. Op. cit., p. 182 e passim.
127
Id. Ibid., p. 182.
125
57
lado, quando atribuída à mulher, a modernidade implicava em moral
licenciosa e estilo de vida desregrado 128.
Ao lado da crítica formulada por Afrânio Peixoto “de que a veneração da virgindade era
uma barbárie”, outros profissionais da medicina e do direito, nos anos 30 do século XX,
assumiram um posicionamento mais conservador e buscaram demonstrar a incompatibilidade
das inovações trazidas pela “modernização dos costumes” - como a idéia da igualdade, inclusive
sexual, entre homens e mulheres - com a fisiologia e a natureza das mulheres, sendo o desejo da
igualdade um desvio psíquico: “inveja do pênis ”. Foi o que escreveu, em 1930, o psicólogo J. P.
Porto Carrero129.
O mesmo psicólogo considerava que a fisiologia induziria as mulheres a desempenhar
nas relações sexuais um posicionamento distinto do masculino.
‘Se observarmos a atitude psíquica dos sexos, veremos que ela não é diversa
da atitude física dos mesmos no ato amoroso. A mulher é o ser que espera,
que a princípio se esquiva, ou resiste, que por fim se entrega, se abre, suporta
a agressão; o homem é o ser que procura, que excita, que penetra, que
agride... Ela entrega-se, é ‘possuída’; ele busca e ‘possui’’130.
Para Sueann Caulfield, esta abordagem das relações de gênero, mediada pela leitura
misógina da “modernidade”, induziria à premissa de que “‘a mulher moderna’ era totalmente
suspeita e não merecia proteção legal, apesar da ‘virgindade material’ anterior”; levando os
juristas, de uma forma geral, a uma postura de hostilidade em relação às “mulheres
independentes” 131.
As mulheres “modernas” dos anos 20 e 30 foram classificadas de ‘semi-virgens’, pois
estimuladas pelo estilo “moderno” de vida e pela “liberalidade dos costumes”, pouco bastaria
para que deixassem de ser virgens. Entre as motivações que poderiam levar ao passo definitivo
para a desonra, estaria o interesse da mulher em forçar um casamento e, neste caso, permitir o
seu defloramento poderia ser parte de um ardiloso plano. Esta possibilidade precisaria ser
considerada pelo juiz já que, pela
128
Id. Ibid.
Cf. CARRERO, J. P. Porto. Apud. CAULFIELD, Sueann. Op. cit., pp. 186-187.
130
Id. Ibid., p. 187.
131
CAULFIELD, Sueann. Op. cit., p. 182.
129
58
“modernização dos costumes”, pelas condições sociológicas e psicológicas em que
viviam as moças pobres, por seu maior acesso a informações e apelos eróticos, a moça casta,
pura, ingênua e controlada de outrora seria peça rara132.
Podemos ver, pela historiografia, que no simbólico construído sobre a mulher na
Primeira República, ela foi aprisionada entre dois pólos, ladeada pela contraposição entre o
modelo da mulher honesta (a esposa-mãe) e a prostitua. No dizer de Martha Abreu:
(...) a noção de mulher honesta associou-se intrinsecamente à noção de mãe
ideal. A dicotomia mãe-prostituta, presente nos discursos médicos, foi
também reproduzida, embora com outro linguajar, nos discursos jurídicos133.
Segundo Sueann Caulfield, nas décadas iniciais do século XX (os anos 30 e 40), a
prática de se representar o ser mulher por paradigmas dicotômicos e excludentes foi refeita, em
outros termos, na contraposição entre a mulher “moderna”, “independente”, “emancipada” e
“livre” e a mulher casta, sujeita à autoridade da família, disciplinada sexualmente, passiva na
relação - como seria próprio do seu sexo - e voltada aos ideais do casamento e da maternidade.
Ainda que a expressão “mulher moderna” não fosse empregada pelos juristas como sinônimo de
prostituta, ela era utilizada com uma conotação pejorativa. O ideal de mulher para os juristas do
início dos anos 30 e 40 era o da mulher recatada e voltada ao casamento e à maternidade134.
A representação da “mulher moderna” como mulher “sexualmente liberada”, não casta,
não foi exclusiva dos juristas135. Segundo Karla Bessa, também entre os homens trabalhadores,
mas certamente não só entre os trabalhadores, encontra-se a crença de que ‘mulher livre’ seria
“mulher disponível” para o coito, sendo lícito
132
Id. Ibid., pp. 182-183.
ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 52.
134
Cf. CAULFIELD, Sueann. Op. cit., passim.
135
Martha Abreu e Sueann Caulfield consideram que o vínculo entre virgindade e casamento não era patrimônio
exclusivo do discurso normatizador dos médicos e juristas, mas um valor compartilhado por muitas mulheres
pobres, mesmo que de forma matizada. Cf. ABREU, Martha e CAULFIELD, Sueann. Op. cit., pp. 33 e 35. A
respeito da função social atribuída, pelo discurso normatizador, à maternidade na Primeira República, ver RAGO,
Luzia Margareth. Do Cabaré ao Lar: A Utopia da Cidade Disciplinar - Brasil: 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2ª ed., 1985, pp. 191-206
133
59
“aliviarem-se” sexualmente com elas136.
Porém, a ‘mulher livre’ não era necessariamente
prostituída. A expressão não tinha a mesma significação atribuída ao termo ‘mulher pública’ em
fins do XIX. Contudo, mesmo não sendo equiparadas às prostitutas, as ‘mulheres livres’ não
seriam merecedoras da proteção legal posto que, eram ‘precoces na ciência dos mistérios
sexuais’137.
Para Sueann Caulfield, as imagens do feminino e os paradigmas que deveriam
simbolizar o seu comportamento estavam em disputa138. Porém, podemos concluir que todos os
modelos comportamentais ambicionados para as mulheres, objetivavam, por diversos caminhos e
matizes, obter o controle e a morigeração das suas atitudes, particularmente da sua sexualidade.
Talvez por isso os juristas e legisladores mantiveram no Código Penal de 1940 o
vínculo entre sedução e promessa de casamento, revelando qual era, ainda, o principal papel a
ser desempenhado pelas mulheres: o casamento e a maternidade. Dado ao importante papel que
na qualidade de esposa e mãe viriam desempenhar na constituição da família brasileira e na
“civilização dos costumes”, a mulher demandava “proteção” e “controle”. Neste sentido, o
resguardo da virgindade feminina seria assunto do interesse social, legitimando que sobre ela se
legislasse e se exercesse severa vigilância, até porque, como disse Nelson Hungria: “a lei
criminal não protegia os direitos do cidadão per se, mas sim porque e quando eles coincidem
com o interesse público e social”. Era, segundo Sueann Caulfiled, o triunfo das posições
antiliberais. nos tempos do Estado Novo139.
Por sua vez, Karla Adriana Martins Bessa, estudando processos por crimes de sedução
na cidade de Uberlândia nas décadas de 1950 e 1960, percebeu que, ainda nos anos 50, para o
judiciário, o dano primordial que o “jogo da sedução” trazia à
136
BESSA, Karla Adriana Martins. Op. cit., pp. 107-108. As conclusões são basicamente as mesmas de Martha
Abreu, Sueann Caulfield e Cristina Donza Cancela. Sobre a noção de “mulher livre”, ver CAULFIELD, Sueann. Op.
cit. 184 e passim.
137
CAULFIELD, Sueann. Op. cit., pp. 184-186. Martha Abreu, ao fazer um balanço sobre os estudos relativos aos
crimes de defloramento/sedução, comenta - mas sem se debruçar sobre o assunto -, a ocorrência de continuidades
nas políticas que visaram introjetar na população brasileira, tanto nos “dominantes” quanto nos “dominados”, uma
moral sexual disciplinada (cujos resultados são duvidosos). Essas continuidades também seriam perceptíveis no
tocante aos comportamentos sexuais da população trabalhadora. Cf. ABREU, Martha. “Meninas Perdidas:
moralidade e sexualidade entre as jovens das camadas populares, 1890-1970”. Artigo a ser publicado.
138
CAULFIELD, Sueann. Op. cit., pp. 187-188.
139
Id. Ibid., pp. 193-195.
60
mulher era a perda da “honra”, esta entendida como sinônimo de virgindade (física e moral)140.
Para as casadas, a honra era localizada na monogamia e na prática do sexo voltada à
reprodução; para as viúvas, seria sinônimo de castidade. De qualquer forma, as discussões sobre
a honra feminina em Uberlândia continuavam apontando para a necessidade de se buscar o
controle do seu corpo e da sua sexualidade141, enquanto reafirmavam seus antigos papéis sociais:
ser esposa e mãe.
Estas são também as conclusões de Carla Bassanezi que pesquisou as imagens e valores
ideológicos propalados pelas revistas que, nos anos 50, eram destinadas ao público feminino.
Nelas, segundo a historiadora, a virgindade continuava a ser valorizada como uma espécie de
“selo de garantia de honra e pureza feminina” e as diferenciações nos papéis e nas
caracterizações do masculino e do feminino “continuavam nítidas”142.
Ao mesmo tempo em que alertavam às “moças de boa família” quanto aos cuidados que
deveriam ter nas suas relações românticas para não caírem em leviandades e comprometerem às
suas possibilidades matrimonias, ‘o objetivo de vida’ de todas as moças solteiras, as revistas
difundiam o paradigma da família perfeita e da mulher ideal para esta família.
Na família-modelo dessa época, os homens tinham autoridade e poder sobre
as mulheres e eram os responsáveis pelo sustento da esposa e dos filhos. A
mulher ideal era definida a partir dos papéis femininos tradicionais ocupações domésticas e o cuidado dos filhos e do marido - e das
características próprias da feminilidade, como instinto materno, pureza,
resignação e doçura. Na prática, a moralidade favorecia as experiências
sexuais masculinas enquanto procurava restringir a sexualidade feminina aos
parâmetros do casamento convencional.
A vocação prioritária para a maternidade e a vida doméstica seriam marcas
da feminilidade, enquanto a iniciativa, a participação no mercado
140
BESSA, Karla Adriana Martins. Op. cit., pp. 103.
Id. Ibid., pp. 103 e 104. Para comparar as continuidades e diferenças com outras épocas da história brasileira e,
até mesmo com o que foi formulado para outros lugres, ver ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit.; DEL PRIORE,
Mary. Op. cit.; ENGEL, Magali. Op. cit.; ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit.; CAULFIELD, Sueann. Op. cit.;
CANCELA, Cristina Dona. Op. cit.; FARIA, Sheila Siqueira de Castro Faria. Op. cit. e ARAÚJO, Emanuel. Op. cit.
142
BASSANEZI, Carla. “Mulheres dos Anos Dourados”. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História das Mulheres no
Brasil. São Paulo: Contexto, 1997, passim.
141
61
de trabalho, a força e o espírito de aventura definiriam a masculinidade
(...)143.
A esposa ideal, portanto - aquela por quem os homens procuravam - seria, no dizer das
revistas, “uma pessoa recatada, dócil, que não lhes trouxesse problemas
- especialmente
contestando o poder masculino - e que se enquadrasse perfeitamente aos padrões da boa
moral”144.
Para Karla Bessa, a prática de vincular-se a honra feminina à virgindade e a um
comportamento “virtuoso” parece remontar à Colônia. E, mais de um século e meio depois de
superada a condição colonial, aparentemente, “as relações entre a moral e a mulher mudaram
muito pouco”. Contudo, diz a historiadora, se “vários discursos, provenientes das mais diferentes
instituições sociais, ostentavam a importância da honra feminina (...) não se pode generalizar que
este princípio fosse vivenciado uniformemente”145.
Essa afirmação de que os grupos sociais interpretaram e vivenciaram distintamente as
políticas de moralização comportamental está, de uma ou de outra forma, presente em todos os
estudos relacionados ao tema que analisamos. Parece ter sido firmado como um consenso
historiográfico.
Iniciamos este capítulo, este breve passeio por uma parte da historiografia relativa às
relações de gênero, preocupados em perceber as continuidades ou aproximações entre as
maneiras, modelos e paradigmas, através dos quais os setores que denominamos, genericamente,
de dirigentes, buscaram formular, difundir e efetivar a normatização dos comportamentos e a
domesticação da sexualidade feminina.
Ao concluí-lo, percebemos que a historiografia registra continuidades, mas sobretudo,
mudanças. Quando não nos termos em que se pretendeu definir as formas de
143
Id. Ibid., pp. 608-609. A autora destaca que as revistas dirigiam-se às jovens das classes média e alta (?), contudo,
consideramos plausível supormos que os seus valores fossem, ao menos em termos formais, compartilhados pelos
homens e mulheres dos grupos dirigentes, tanto intelectuais como políticos, incluindo os juristas. Não por acaso, os
valores e referências de masculinidade e feminilidade que deveriam configura, na visão das revistas, o masculino e o
feminino, serão os mesmos que irão balizar a análise moral de acusados e ofendidas nos processos por crimes de
sedução, ainda que tais processos, na prática, envolvessem tão só homens e mulheres das camadas de baixa renda.
144
Id. Ibid., pp. 612-613. Grifo no original.
145
BESSA, Karla Adriana Martins. Op. cit., p. 104 e passim.
62
ser mulher (honra, honestidade, recato, virgindade, casamento, maternidade e outros), ao menos
em seu significado.
Se na Colônia as autoridades eclesiásticas e civis propugnavam pela contenção da
mulher no espaço doméstico, a historiografia registra, para o início do século XX, a presença de
médicos e juristas a defenderem um outro papel para as mulheres. Elas deveriam acompanhar
seus maridos às reuniões sociais, freqüentar
chás e teatros, desde que devidamente
acompanhadas. Também os referenciais a partir dos quais foram criadas as imagens positivas e
negativas a respeito da “condição feminina” se transformaram. De acordo com a historiografia
analisada, a mulher aparecia nos discursos eclesiásticos da Colônia como um ser criado por Deus
para cooperar no ato da criação (cujos modelos seriam as “santas-virgens” ou a “santamãezinha”) mas que, pela ação do demônio, poderia se transformar em agente da corrupção e
queda do homem. A solução estaria na vigilância familiar, no casamento e na maternidade, isto
é, no cumprimento, pelas mulheres, do papel a elas atribuído por Deus: serem esposas e mães.
Entretanto, na segunda metade do século XIX, a historiografia identifica a emergência
de um duplo discurso médico a respeito das mulheres. A par das suas diferenças, ambas as
correntes da medicina, conforme demonstramos, buscaram afirmar a “naturalização” das
atitudes, da sexualidade, das características e da personalidade das mulheres. Uma corrente
afirmava serem as mulheres “naturalmente” assexuadas, enquanto a outra, reconhecia o direito
das mulheres ao prazer sexual. Nos dois casos temos uma significativa mudança em relação ao
que vimos para a Colônia. Contudo, as duas correntes da medicina recomendavam a maternidade
como ato essencial ao equilíbrio psíquico das mulheres. Sendo que, a maternidade e o
relacionamento sexual imprescindível à sua realização, deveriam ocorrer dentro de relações
conjugais oficializadas, ou seja, dentro do casamento. Dessa forma, casar e ter filhos continuava
ser uma regra a ser seguida pelas mulheres, se não por ordem divina, por determinação natural.
Se a virgindade pré-nupcial persiste como uma recomendação às mulheres, nas
primeiras décadas do século XX seu significado, médico e jurídico, sofreu alterações. Como
demonstram os estudos de Martha Abreu e Sueann Caulfield, declinou a referência nos aspectos
físicos da virgindade, sobretudo o hímen, e ganhou maior
63
destaque a “virgindade moral”. Esta, no entender dos juristas do início do século, seria
demonstrável, não pelo exame de conjunção carnal, mas pela avaliação dos comportamentos
cotidianos das mulheres. Com isso, também se modificaram os critérios de honra e honestidade.
Por outro lado, a “recente história das mulheres” que pesquisou as relações de gênero no século
XX, tem registrado a existência, em diversos momentos e lugares, de conflitos entre os desejos
normatizadores dos “setores dirigentes” e os valores e práticas vivificadas pelas camadas
populares.
Na primeira metade do século XX, a reconstrução das imagens femininas a partir de
modelos comportamentais (negativos e positivos), foi operada através da contraposição da
mulher casta, recatada e voltada ao casamento e à maternidade, versos a “mulher livre”, a
“mulher independente”. Nos anos 50, segundo Carla Bassanezi, os termos que se contrapunham
eram os da “moça de família” versos as “moças levianas”. As primeiras seriam recatadas,
comedidas, virgens e voltadas ao casamento e à maternidade. As segundas, ainda que não fossem
necessariamente prostitutas, seriam moças que se permitiriam “liberdades” nas relações
amorosas. Seriam namoradeiras, tomariam a iniciativa de buscarem o romance, permitiriam
beijos nos primeiros encontros e contatos íntimos antes do casamento, chegando mesmo a
entregarem suas virgindades a homens como os quais não eram casadas. Estas “moças levianas”,
por sua imagem negativa, corriam o sério risco de não conseguirem o “objetivo de todas as
moças”: o casamento.
Em resumo, pudemos perceber, pelo que nos narra a historiografia, que os diversos
setores dirigentes, em vários momentos, esforçaram-se para fazer do casamento e da maternidade
valores morais socialmente aceitos e praticados, concebendo-os como mecanismos de
ordenação social. A luta pela ordenação, onde o casamento oficializado e a maternidade
legitimada pelo casamento são elementos importante, se conjugou, constantemente, com as
tentativas, várias vezes refeita, de se controlar os comportamentos femininos, especialmente a
sua sexualidade. Esse parece-nos ser um elemento comum aos variados estudos históricos
analisados neste capítulo: a mulher como objeto (não necessariamente passivo) de variadas
propostas de normatização e morigeração.
A partir desta conclusão nos indagamos se essas propostas ou políticas influíram e se
expressaram nos comportamentos dos homens e mulheres que
64
protagonizaram os processos por crimes de sedução, que pesquisamos. Ao acionarem o
judiciário, em busca do que consideravam justiça, estariam esses homens e mulheres das
camadas populares de Campos, nos anos sessenta e setenta do século XX, expressando adesão
aos mesmos valores esposados pelos juristas? Para estabelecer respostas plausíveis para estas
questões é que procuramos compreender, no capitulo II, o ser social das camadas populares de
Campos nos anos sessenta e setenta, e dos homens e mulheres envoltos nos processos.
CAPÍTULO II
APRESENTAÇÃO - A CIDADE, SUA
POPULAÇÃO E OS PERSONAGENS
66
1.
APRESENTANDO A CIDADE E SUA POPULAÇÃO
Campos dos Goytacazes - lugar onde se passaram as relações de amor e as quizilas
jurídicas que motivaram esta pesquisa - ocupa 10% do território do Estado do Rio de Janeiro,
sendo o município de maior extensão territorial do estado, já tendo ocupado um lugar de
destaque na economia e na vida política do Estado e mesmo do país146.
Sua posição econômica e política no estado o tornou objeto de variadas pesquisas. As
fontes que utilizamos constituem-se numa pequena parte de um grande e desorganizado acervo
que, apesar de estar carecendo de medidas urgentes de conservação, tem viabilizado diversos
estudos, especialmente, nas áreas de História e Antropologia147.
146
Segundo Jorge Renato Pereira Pinto, entre 1929 e fins dos anos 50, o município de Campos era o maior produtor
de açúcar do Brasil e a produção da ‘região campista produtora de açúcar’ que além das usinas de Campos incluía as
de Macaé, São João da Barra e São Fidélis, só era superada pela produção do Estado de Pernambuco. Nos anos 60,
após o golpe militar de 1964, a economia açucareira da região foi fortemente atingida pela compressão dos preços
do açúcar e do álcool o que implicou em maiores perdas salariais para os trabalhadores que dela dependiam direta
ou indiretamente. Entretanto, o setor teve, nos anos sessenta e setenta, em termos de volume de produção, o melhor
desempenho da sua história e, até meados dos anos 70, a economia local ainda estava pautada na cana-de-açúcar e
na pecuária. Ao se iniciar os anos oitenta, a agroindústria açucareira viverá uma situação crescente de crises e
falências. Enquanto a indústria açucareira começava o seu ocaso, a partir de 1974 a Petrobrás iniciou a prospecção e
exploração do petróleo na Bacia de Campos, que hoje é a maior produtora do país, contudo, com a crise do setor
sucro-alcooleiro, apesar do aparecimento de novas fábricas de pequeno e médio porte, será o setor terciário,
especialmente o comércio varejista, que se transforma no principal empregador (em termos quantitativos). Para o
período desta pesquisa, 1960-1974, a economia campista e suas possibilidades de trabalho e renda, ainda estavam
profundamente condicionadas pelo desempenho da agroindústria do açúcar e do álcool. Ver PINTO, Jorge Renato
Pereira. Um Pedaço de Terra Chamado Campos: sua geografia e seu progresso. Campos dos Goytacazes: Almeida
Artes Gráficas, 1987, p. 73-92. O autor não leva em conta que na explicação do agravamento das condições salariais
dos trabalhadores rurais de região, depois do golpe militar de 1964, deve-se considerar os efeitos da repressão
sindical que se seguiu à tomada do poder pelos militares e que desorganizou as ações políticas e reivindicatórias dos
trabalhadores rurais e industriários.
147
Ver, por exemplo, FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Op. cit. LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1988. LIMA, Lana Lage da Gama. Rebeldia Negra e Abolicionismo. Rio de Janeiro:
Achimé, 1981. NEVES, Delma Pessanha. Lavradores e Pequenos Produtores de Cana: estudos das formas de
subordinação dos pequenos produtores agrícolas ao capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. ________.
“Políticas Públicas: Intenções Previstas e Desdobramentos Inesperados”. In: Cadernos do ICHF nº 59. Niterói: UFF,
agosto, 1993. OSCAR, João. Escravidão e Engenhos. Rio de Janeiro: Achimé, s.d.. A maior parte da produção
acadêmica sobre Campos ou que tem Campos como referência, relaciona-se com o estudo do escravismo e com a
questão agrária. São recentes e ainda escassas as pesquisas voltadas a outros temas e períodos. Atualmente, além da
nossa, voltada a um tempo e período até então inexplorados na documentação campista, há também, na UFF, a
pesquisa da mestranda Juliana Carneiro sobre Nina Arueira, jovem militante comunista dos anos 30. Assim, aos
poucos, novas linhas de pesquisa estão sendo abertas e novas fontes utilizadas. Há também, estudos realizados a
partir dos anos 80 por professores do DSSC/UFF e da Faculdade Cândido Mendes voltados, centralmente, à
pesquisa das condições sociais de existência das famílias de baixa renda mas que ainda não foram publicados.
67
Não pretendemos fazer uma História de Campos, mas somente traçar um perfil do
ambiente sócio-econômico onde viveram os homens e mulheres encontrados nos processos e, ao
longo do capítulo, refletir sobre as possíveis relações entre este ambiente sócio-econômico, as
escolhas e as atitudes dos rapazes e moças envolvidos nos processos por sedução que
pesquisamos.
Analisando as estatísticas, verificamos que o crescimento da indústria agro-açucareira
foi acompanhado de mudanças na composição demográfica da cidade, com a população urbana,
no decorrer dos anos sessenta, ultrapassando a rural (Gráfico 1). Isso provavelmente explique por
que encontramos um número razoável de ofendidas e acusados que viviam na área urbana apesar de ser Campos um município interiorano de base agrícola -, mas preservando laços de
parentesco ou de namoro na área rural (Gráfico 2).
GRÁFICO 1
POPULAÇÃO DE CAMPOS 1940-1980
350.000
300.000
250.000
200.000
População Total
150.000
100.000
50.000
0
População Rural
População Urbana
População Total
1940
1950
1960
1970
1980
Anos
Fonte: IBGE, Agência Campos dos Goytacazes.
68
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes148.
Interessa-nos, particularmente, observar as condições do mercado de trabalho e seu
recorte de gênero.
1.1- Economia, Educação e Gênero – As Condições da Planície
Sendo Campos uma região agrícola, o mercado de trabalho era, em geral, restrito,
situação que se acentuava no caso da força de trabalho feminina, conforme demonstram os
Gráficos 3, 4 e 5149.
148
Para compormos este gráfico, utilizamos como referência a área geográfica onde se localizava o endereço da
residência dado pelas ofendias e pelos acusados no momento em que foram qualificados na delegacia. Como
algumas ofendidas eram do interior, isto é, residiam genesicamente em algum distrito ou subdistrito de Campos, mas
moravam na cidade no momento do delito, enquanto seus pais continuavam a residir na “roça”, vamos ter então um
menor número de ofendidas registradas como da área rural em comparação aos(as) queixosos(as).
149
O IBGE não produziu para os anos anteriores a 1980 levantamentos sobre renda com a diferenciação por sexo.
Por esta razão fomos obrigados a trabalhar com os dados de 1980, porém, nada indica que as condições de vida
econômica das mulheres fossem melhores antes de 1980. Assim, consideramos que os dados dos gráficos 4 e 5,
permitem-nos concluir, com segurança, ter sido o mercado de trabalho campista altamente desfavorável às mulheres.
69
CRÁFICO 3
SETOR DE ATIVIDADE DAS PESSOAS DE 10 ANOS E MAIS, POR SEXO
Outras Atividades
Mulheres
Adminstração Pública
Homens
Setor de Atividade
Atividades Sociais
Transp., Comum.,
Armazenagem
Prestação de Serviços
Comércio de
Mercadorias
Setor Secundário
Setor Primário
0
5.000 10.000 15.000 20.000 25.000 30.000 35.000
Número de Pessoas Ocupadas
Fonte: IBGE – VIII Recenseamento Geral, 1970, Série Regional, Volume I, Tomo XVI.
GRÁFICO 4
PESSOAS DE 10 ANOS E MAIS, POR RENDIMENTO MÉDIO MENSAL (EM
SALÁRIO MÍNIMO), POR SEXO, EM %
3
ais
to
s
m
Re
nd
im
en
de
2
0
20
ais
de
1
de
5
ais
M
12
0a
a1
0
a5
de
3
ais
de
2
a3
a2
ais
26,4
21,5
Se
ais
M
M
e1
a1
/2
e1
/2
a1
ais
73,6
M
72,9
97
88
78,5
27,1
20,3
16,9
M
21,4
de
1
de
1
M
M
ais
/4
de
1
/2
a1
/2
1/
4
At
é
35,2
de
1
37,2
ais
79,7
64,8
62,8
25,4
M
83,1
78,6
74,6
Homens
M
Mulheres
Fonte: IBGE, IX Recenseamento Geral, 1980.
Obs: Do total de entrevistados, apenas 274 homens e 400 mulheres não declararam o rendimento.
70
GRÁFICO 5
RENDIMENTO MÉDIO MENSAL DAS MULHERES (EM SALÁRIO MÍNIMO), EM %
67,9
0,2
0,3
0,02
Sem Declaração
1
Sem Rendimentos
Mais de 2 a 3
Mais de 1 e 1/2 a 2
Mais de 1 a 1 e 1/2
Mais de 1/2 a 1
2,3
Mais de 20
2
1,5
Mais de 10 a 20
5,6
Mais de 5 a 10
9,8
Mais de 3 a 5
6,5
Mais de 1/4 a 1/2
Até 1/4
2,8
Fonte: IBGE, IX Recenseamento Geral, 1980.
A força de trabalho feminina em Campos estava concentrada em dois ramos: atividades
sociais150 e prestação de serviços151.
Temos, portanto, que as mulheres pobres de Campos viviam uma realidade de profunda
desigualdade
no
mercado
de
trabalho,
comparativamente
aos
homens.
Exerciam,
predominantemente, profissões com ínfimos resultados econômicos. Isto se comprova não só
pelos ramos de atividades em que a força de trabalho feminina estava concentrada (e pelos dados
dos processos) mas também pelo nível médio de remuneração da sua força de trabalho que, em
sua grande maioria - 88,9% das mulheres que declararam possuir rendas -, não ultrapassava aos
três salários mínimos mensais, sendo que 60,1% não recebiam mais do que um salário mínimo
por mês trabalhado, e 8,8% da força de trabalho feminina de Campos recebia somente um quarto
do salário mínimo por mês. Destarte, vis-à-vis a estas condições históricas, deveria ser muito
150
O IBGE inclui na categoria atividades sociais as seguintes atividades: ensino público; ensino particular;
assistência médico-hospitalar pública; assistência médico-hospitalar particular; saneamento; abastecimento e
melhoramentos urbanos – exclusive abastecimento de água, eletricidade, gás e serviço de esgoto; previdência social;
assistência e beneficência; culto e atividades auxiliares; instituições culturais; sindicatos e associações de classe;
outras classes e classe mal definida.
151
O IBGE inclui na categoria prestação de serviços as seguintes atividades: alojamento; alimentação; higiene
pessoal; confecções sob medida; conservação e reparação de artigos do vestuário; conservação, reparação e
instalação de máquinas e veículos; diversos; rádio e televisão; serviços domésticos remunerados; conservação de
edifícios; outras classes e classe mal definida.
71
difícil para as mulheres pobres de Campos sobreviverem sem a presença de um marido,
companheiro ou pai.
Além disso, par e passo às desigualdades que podemos caracterizar como de gênero
(menores oportunidades de emprego e salário para as mulheres), encontramos um quadro geral
de desigualdade social que afetava a maior parte da população campista (homens e mulheres),
em decorrência da elevada concentração da renda (Gráfico 6). O recenseamento do IBGE 152
localizou 47,2% da população sem rendimentos e, entre os que declararam renda, 44,6%
recebiam até três salários mínimos enquanto apenas 1,2% disseram receber mais de dez salários
mínimos por mês. O mesmo recenseamento, ao abordar a questão da renda familiar, confirma a
condição de intensa pobreza de grande parte da população trabalhadora e a intensidade da
concentração da renda no município, onde das famílias que declararam possuir rendimentos,
46,2% disseram que a soma dos rendimentos dos seus membros era de, no máximo, dois
salários mínimos mensais (Gráfico 7).
GRÁFICO 6
PESSOAS DE 10 ANOS OU MAIS, POR RENDIMENTO MÉDIO MENSAL EM SALÁRIO MÍNIMO
47,2
14,2
13,4
0,9
0,2
Sem Declaração
0,3
Sem
Rendimentos
Mais de 3 a 5
Mais de 2 a 3
Mais de 1e 1/2 a
2
Mais de 1 a 1 e
1/2
Mais de 1/2 a 1
Mais de 1/4 a
1/2
Até 1/4
2,4
Mais de 20
4,4
Mais de 10 a 20
5,2
Mais de 5 a 10
4,6
5,3
1,9
Fonte: IBGE, Censo Demográfico, Rio de Janeiro, 1980.
152
Não localizamos no IBGE, nem na delegacia de Campos nem no Centro de Documentação e Disseminação de
Informações, dados sócio-econômicos sobre a população de Campos para os anos 60 e 70. Por esta razão, servimonos das estatísticas relativas ao ano de 1980, porém nada indica que as condições econômicas e sociais da população
nos anos 60 e 70 fossem substancialmente diferentes do que se pode constatar pelos gráficos que apresentamos.
72
GRÁFICO 7
RENDIMENTO MÉDIO MENSAL FAMILIAR, EM SALÁRIO MÍNIMO, EM %
34
30,4
12,4
1,4
0,7
de
c
m
Se
di
m
en
Re
n
Se
m
lar
a
to
s
0
ais
de
2
M
ais
de
1
0a
20
a1
0
M
ais
de
5
a5
M
M
ais
2
a2
M
ais
de
1
a1
M
/4
ais
de
1
/2
a1
/2
1/
4
ais
de
1
M
1,8
çã
o
4,6
3
0,4
At
é
11,3
Fonte: IBGE, Censo Demográfico, Rio de Janeiro, 1980.
As estatísticas não nos fornecem provas da existência de vínculos diretos entre as
condições econômicas da maioria da população campista e as dificuldades particulares das
mulheres no mercado de trabalho. O que podemos ver com clareza, através das tabelas, é que num quadro geral de pobreza e exploração da força de trabalho - exercia-se sobre as mulheres
pobres, que conseguiam ingressar na população economicamente ativa, uma exploração salarial
ainda mais intensa que a praticada sobre os homens. Por um lado, é entre as mulheres que se
localiza o maior contingente de pessoas sem rendimentos; por outro, a força de trabalho feminina
só ultrapassa a masculina nas atividades cuja remuneração é irrisória, declinando grandemente
conforme cresce o montante dos rendimentos. Dessa forma, verificamos que as desigualdades
social e de gênero coexistiam - e, provavelmente se articulavam - dentro de uma mesma
formação social.
Entretanto, diferentemente do que ocorre no plano econômico, em relação ao acesso à
educação - outro indicador importante das condições sociais da população campista - os
homens e as mulheres aparecem em situação de equilíbrio, não se repetindo a discriminação de
gênero verificada na composição do mercado de trabalho. Contudo, os dados também
demonstram a influência da desigualdade social na vida escolar da população com os percentuais
dos que foram classificados como “sem instrução” alcançando o índice mais expressivo da
tabela. Certamente, os “sem instrução” não eram os homens e mulheres da classe média ou da
burguesia. Por outro lado, os dados demonstram um significativo afunilamento a partir do sexto
ano de estudos, indicando que os homens e mulheres oriundos do proletariado e que
73
conseguiam ingressar na escola, via de regra, não ultrapassavam o quinto ano de estudos. Temos,
portanto, que os homens e mulheres das camadas populares possuíam um nível cultural e de
informações que se assemelhava.
TABELA 1
ANOS DE ESTUDO DAS PESSOAS DE 5 ANOS E MAIS, POR SEXO, EM %
Anos de Estudo
Homens
Mulheres
1 Ano
2 Anos
5,8
6,7
5,2
6,3
3 Anos
5,7
6,1
4 Anos
4,1
4,5
5 Anos
3,4
3,6
6 Anos
1,1
1,1
7 Anos
0,9
0,8
8 Anos
0,9
0,9
9 Anos
1
0,9
10 Anos
0,3
0,3
11 Anos
0,3
0,4
12 Anos
0,9
1,8
13 Anos
14 Anos
0,06
0,07
0,06
0,03
15 Anos
0,06
0,04
16 Anos
0,1
0,1
17 Anos
0,2
0,01
Sem Instrução
17,4
18,3
Sem Declaração
0,06
0,04
Total***
49,05
8
50,4
Fonte: IBGE, VIII Recenseamento Geral, 1970,Série Regional, Volume I, Tomo XVI.
*Estes dados referem-se a um total de 276.497 pessoas sendo 50,8% de mulheres e 49,2% de homens.
** A população total de Campos no ano de 1970, segundo o próprio IBGE , era de 321.370 pessoas.
*** A Diferença de 0,47% deve-se às
aproximações.
1.2 - Nos Laços do Matrimônio
Vimos que o quadro sócio-econômico dos trabalhadores campistas de baixa renda era
desalentador: mercado de trabalho restrito, baixos salários e instrução elementar formavam
um quadro que, provavelmente, produzia poucas expectativas em termos de “ascensão
social”. Entretanto, verificamos que no decorrer dos anos 60 e 70 - especialmente a partir de
1965 - deu-se um crescimento no ritmo dos casamentos formais (41,5% entre 1960 e 1974)
conforme demonstram as Tabelas 2 e 3 e o Gráfico 8.
74
Não só o casamento predominava sobre as uniões consensuais, como chama atenção o
percentual dos casamentos realizados exclusivamente no civil.
TABELA 2
CASAMENTOS NO MUNICÍPIO DE CAMPOS - 1960/1981
Ano
Número
Ano
Número
1
1971
1
1.340
1960
1.097
1
1972
1
1.871
1961
1.039
1
1973
1
2.371
1962
1.086
1
1974
1
2.640
1963
1.058
1
1975
1
2.646
1964
1.088
1
1976
1
2.952
1965
1.159
1
1977
1
2.900
1966
1.154
1
1978
1
2.925
1967
1.202
1
1979
1
2.970
1968
1.204
1
1980
1
2.943
1969
1.339
1
1981
1
2.921
1970
1.346
Fonte: IBGE, Agência de Campos.
TABELA 3
ESTADO CONJUGAL DA POPULAÇÃO DE CAMPOS, POR SEXO, EM
%
Tipos de Matrimônios*
Sexo
Civil e Religioso
Só Civil Só Religioso
Homens
62,8
36
1,2
Mulheres
62,9
35,9
1,2
Fonte: IBGE, VIII Recenseamento Geral, 1970, Série Regional, Volume I, Tomo XVI.
* As estatísticas são referentes ao total de homens e mulheres, com 15 anos ou mais, legalmente casados, isto é, excluídas as uniões consensuais.
GRÁFICO 8
ESTADO CONJUGAL DAS PESSOAS DE 15 ANOS E MAIS, POR SEXO, EM %
48,6 45,3
41,1
36,5
8,9
Homens
Mulheres
Sem
Declaração
0,1 0,1
Solteriros
Viúvos
1,4 2,6 1,9
Descasados
Consensuais
Casados
6,8 6,5
Fonte: IBGE, VIII Recenseamento Geral, 1970, Série Regional, Volume I, Tomo XVI.
* O IBGE computou os dados de 185.700 pessoas maiores de 15 anos, sendo 90.200 homens (48,6%) e 95.500 mulheres (51,4%). O total computado
corresponde a 58,2% da população total de Campos que era de 318.806 pessoas.
** Na elaboração das estatísticas, consideramos cada sexo separadamente e não a soma dos dois.
*** O IBGE aglutinou, na categoria casados, os casais formalmente casados e as uniões consensuais. Para efeito deste gráfico, separamos os dados
relativos aos homens e mulheres formalmetne casados dos unidos consensualmente.
**** O IBGE incluiu no total de homens e mulheres os sem declaração de estado conjugal. Fizemos, porém, a separação.
75
Analisando as informações do Gráfico 8 e da Tabela 3, podemos tirar algumas
conclusões. Verifica-se, por um lado, a imensa supremacia das uniões formais, civis e/ou
religiosas sobre as formas consensuais, não formais, de matrimônio. Por outro, a importância
específica dos casamentos exclusivamente civis que superavam a soma das uniões consensuais
com àquelas celebradas somente na igreja. Fica evidente que a população campista, incluindo a
população pobre, buscava e tinha acesso ao casamento como a principal forma de estabelecer
uma união conjugal.
A tendência ao casamento formal, civil e/ou religioso, não se configurava em uma
singularidade de Campos nem em uma particularidade dos anos 60 e 70. Os dados do IBGE
demonstram que pelo menos desde os anos 50, se não de antes, o casamento oficial se constituía
na principal forma de união matrimonial, ao menos para todos os municípios do Estado do Rio
de Janeiro153.
A explicação do porquê dessa adesão dos setores populares ao casamento oficial
extrapolaria os objetivos e possibilidades desta pesquisa. Contudo, consideramos pertinente
levarmos em conta as vantagens que a legislação civil do período (Código Civil e Estatuto da
Mulher Casada) estabelecia em termos de direitos de herança, pecúlio e previdência para a
mulher que tivesse o reconhecimento oficial de esposa. Nos anos sessenta e setenta, o Código
Civil ainda fazia a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos, dando maior segurança aos filhos
cujo nascimento estivesse legitimado pelo casamento dos pais. Um outro fator que pode ter
influenciado o interesse pelo casamento era a política de certas empresas e usinas de concederem
casas ao seus funcionários, desde que eles fossem casados. Em Campos, várias usinas de açúcar
e álcool construíram vilas com casas que eram cedidas aos funcionários com família. A mesma
prática foi adotada pela antiga Fábrica de Tecidos cujos(as) funcionários(as) residiam no bairro
da Lapa, o mesmo onde a fábrica estava localizada. Também a Rede Ferroviária Federal cedia
casas aos seus funcionários casados. Em algumas fazendas da região, os proprietários cediam
casas aos funcionários permanentes.
153
Ver, por exemplo, o Recenseamento Geral de 1950 feito pelo IBGE.
76
Como veremos à frente, o desejo e a prática do casamento fizeram parte das vivências
de homens e mulheres envolvidos nos crimes de sedução, além de ser um elemento essencial nos
pronunciamentos dos profissionais do judiciário154.
Ao constatarmos a amplitude que o casamento alcançara em Campos como meio de
constituição das relações matrimoniais, nos perguntamos se o interesse pelo casamento não seria
uma das motivações ou mesmo a motivação mais significativa para a apresentação da queixa por
sedução? E se assim fosse, o interesse pelo casamento decorreria do seu status como um valor
moral ou da sua importância e utilidade social? Questões que procuraremos responder no
Capítulo V.
1.3- Nas Páginas, Nas Ondas e Nas Telas
A questão do casamento como valor remete-nos a outro assunto, vez por outra presente
nos pronunciamentos dos profissionais do judiciário que conduziram os processos: a
“modernização dos costumes” (a exemplo do uso da minissaia, do biquíni e da pílula
anticoncepcional) e seu efeito deletério sobre a família, sobre os “bons costumes” e sobre o
caráter dos jovens, induzindo a comportamentos sociais danosos, particularmente pelo estímulo
“precoce” e “descontrolado” da sexualidade. Como tais comportamentos “modernos” dos anos
60 e 70 seriam, no dizer dos profissionais do judiciário de Campos, transmitidos pelos meios de
comunicação, procuramos refletir até que ponto a população campistas, em especial a população
pobre da qual faziam parte os rapazes e moças envolvidos nos processos, teria condições efetivas
de absorver os “novos costumes” através dos meios de comunicação.
Em 1974, último ano da nossa pesquisa, Campos possuía dois jornais diários com
tiragem de 1.972 exemplares e três não-diários com tiragem 417 exemplares aos quais se
somavam mais dois periódicos com tiragem de 112 exemplares, para uma
154
Denominamos, por profissionais do judiciário, os promotores, defensores públicos, juízes, procuradores e
desembargadores. Em alguns processos aparecem as figuras do assistente da acusação, que é um advogado
particular contratado pelo(a) queixoso(a) para auxiliar a promotoria na ação, e o assistente da defesa, que é um
advogado particular contratado pelo acusado para auxiliar a defensor público. Apesar de não serem funcionários do
aparelho judiciário, a medida que seu trabalho é feito dentro da esfera jurídica, também os incluímos na expressão,
profissionais do judiciário.
77
população que em 1970 já era de 321.370 habitantes. Ou seja, a tiragem total dos periódicos
locais correspondia a menos de 0,78% da população.
Os dados, que conseguimos coletar junto ao IBGE, mostram-nos que durante o período
por nós estudado, a grande maioria da população de Campos não dispunha de aparelhos de
televisão. Porém, no decorrer dos anos sessenta, a maior parte teve acesso aos aparelhos de rádio.
Ao longo dos anos sessenta, o rádio efetivamente transformou-se num importante veículo de
transmissão de informações junto à população de baixa renda. Infelizmente, não temos como
saber se a programação da época contribuía ou não para a difusão, entre a população pobre de
Campos, da “modernização dos costumes” a que se referiam, vez por outra, os profissionais do
judiciário.
GRÁFICO 9
DOMICÍLIOS PERMANETES, POR UTILIDADES
EXISTENTES, EM %
120
63,9
100
80
60
40
53,5
42,1
1970
1960
41,6
23,6
20
0
Energia Elétrica
Rádio
0
Televisores
Fontes: Para as estatísticas relativas a 1960 usamos o VII Recenseamento Geral do Brasil, 1960, Série Regional, Volume I,
Tomo XI, do IBGE; para os dados relativos a 1970, usamos o VIII Recenseamento Geral, 1970, Série Regional, Volume I,
Tomo XVI, do IBGE.
Apesar da expansão do uso do rádio nos anos sessenta, ele não aparece, nos
pronunciamentos dos profissionais do judiciário, como um dos veículos responsáveis pela
propagação dos “comportamentos modernos”. Os veículos apontados são sempre a televisão e o
cinema. A televisão, como se pode constatar pelo Gráfico 9, era um aparelho com presença em
um número muito reduzido de lares campistas e, muito provavelmente, ausente nas casas dos
homens e mulheres pobres que constam dos processos. Quanto aos cinemas, Campos contava em
1974 com 14 salas de projeção
78
somando 6.661 lugares, com a exibição de 139 sessões semanais. Entretanto, além da existência
da censura (considerada insuficiente por alguns profissionais do judiciário), ele não era,
conforme demonstraremos à frente, a opção de lazer preferencial das ofendidas.
A primeira vista, os dados sobre circulação de jornais e o número de aparelhos de
televisão em Campos poderiam nos levar a imaginar um alto nível de desinformação por parte da
população pobre. Entretanto, é possível supor que, apesar de não ter acesso direto aos jornais e
aparelhos de televisão, a parcela pobre da população (da qual fazem parte os personagens dos
processos) poderia ter acesso indireto às informações e valores transmitidos pelos jornais e pela
televisão. Por um lado, há a possibilidade de um mesmo exemplar de jornal ser lido por mais de
uma pessoa e um mesmo aparelho de televisão ser utilizado por mais de uma família. Por outro,
certamente as informações transmitidas por aqueles órgãos de comunicação circulavam também
através dos contados entre os que liam jornais e assistiam aos programas de televisão e aqueles
que não dispunham de acesso direto aos jornais e tevês.
Temos ainda que as informações veiculadas pelos jornais e pelas emissoras de tevê,
provavelmente, eram também difundidas pelas emissoras de rádio e estas, em 1960, já podiam
ser captadas, diretamente, por quase a metade dos lares campistas. Dessa forma, parece-nos
razoável supor que as informações e valores transmitidos pelos meios de comunicação
chegavam, direta ou indiretamente, ao conhecimento das camadas de baixa renda da população
campista.
Porém, em nossa opinião, os dados não nos permite atribuir à televisão e ao cinema,
como fizeram alguns profissionais do judiciário, a causa explicativa dos comportamentos
amorosos e sexuais das ofendidas e acusados.
Mas como eram os rapazes ofensores e as moças ofendidas? Como viviam e
sobreviviam? Como eram seus laços familiares? Até que ponto se assemelhavam ou não ao
conjunto da população pobre de Campos em condições e atitudes?
79
2. AS CONDIÇÕES SOCIAIS DE EXISTÊNCIA
Em relação às suas condições sócio-econômicas, todas as ofendidas foram classificadas
como pobres, situação comprovada legalmente pela apresentação do atestado de miserabilidade,
fornecido pelo delegado, após, aparentemente, proceder à investigação da vida econômica do(a)
queixoso(a). Esta condição de moça pobre, imprescindível para que o ministério público pudesse
oferecer a denúncia, foi aceita pelos promotores e juízes, mesmo nos casos em que o defensor a
questionava por ter o queixoso contratado advogado particular para atuar como assistente da
acusação, fato que ocorreu em apenas 4 casos ou 7,4% dos 53 processos pesquisados.
Por sua vez, os acusados foram identificados como pobres pela autoridade policial em
90,7% dos casos; como remediados em 5,6% e, em 3,7% não consta nenhuma classificação.
Dentre eles, apenas 6 ou 11,1% puderam pagar um advogado particular para funcionar como
assistente da defesa.
Também as profissões dos(as) queixosos(as), isto é, dos responsáveis legais pela
ofendidas e a quem cabia, legalmente, o direito de apresentar a queixa, indica-os(as) como
pessoas simples, com baixo nível de renda (Tabela 4).
Não fica claro, nos processos, que critérios foram usados pela autoridade policial para
qualificar os envolvidos (acusados, queixosos(as), ofendidas e testemunhas) como pobres ou
miseráveis. Provavelmente, os policiais que procederam ao interrogatório inicial e fizeram os
autos de qualificação basearam-se nas informações do(a) depoente sobre sua atividade
profissional e, em alguns casos, sobre a renda do(a) depoente. De qualquer forma, a classificação
profissional dos envolvidos nos processos coloca-os como integrantes da população de baixa
renda do município155. Nesse sentido, entendemos ser plausível considerá-los como
representantes do que estamos a denominar de populares, setores populares ou camadas
populares de Campos.
155
Mesmo os classificados como Lavradores eram, certamente, pequenos proprietários rurais cujo padrão de renda,
muitas vezes, os mantinham em condições modestas. Dados de 1970 demonstram que 60,7% dos proprietários rurais
do município possuíam propriedades com até 10 hectares, sendo que 12% viviam em propriedades com menos de
1(um) hectare, 45% possuíam propriedades de até 5 hectares e somente 12% possuíam propriedades com mais de
50 hectares de extensão.
80
TABELA 4
ATIVIDADES EXERCIDAS PELOS POPULARES, EM %
Populares
Atividades Ofendida Acusados Queixosos(as)
s
Do lar*
64,1
0
37,7
0
Doméstica**
30,2
0
1,9
0
Estudante
3,8
1
0
1,9
Comerciário(a)
1,9
1
3,8
1,9
Funcionário Público
0
1
5,7
11,3
Industriário***
0
3
0
3,8
Lavrador(a)****
0
1
15,1
13,1
Motorista
0
7
0
7,5
Pedreiro
0
5
3,8
5,7
Trabalhador Rural*****
0
2
1,9
0
20,8
Não disponível
0
0
20,7
0
0
Outros******
0
3
9,4
0
34
Total
1
1
100
100
100
Fonte: 53 processos arquivados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
* Ofendida ou queixosa que exercia atividade doméstica no próprio lar, sem indicação de que obtivessem ganho econômico.
** Ofendida ou queixosa que exerce atividade doméstica remunerada, empregada doméstica.
*** Trabalhador da usina, com registro em carteira, que trabalha no fabrico do açúcar e do álcool, é um operário.
**** Pequeno proprietário rural.
***** Trata-se do assalariado rural que trabalha no plantio e colheita da cana-de-açúcar, forma o proletariado rural do município e se
subdivide em dois grupos: os que possuem registro em carteira e os que são contratados apenas no período da safra (os bóias-frias). Ele
é classificado como trabalhador rural por desempenhar uma atividade agrícola que tanto poderia estar localizada na "roça" (área rural) como
na área urbana, pois nos anos 60 e 70, algumas usinas estavam localizadas e possuíam canaviais na área urbana do município.
****** Inclui todas as profissões de baixa renda exercidas pelos acusados e queixosos que aparecem nos processos, como lanterneiro,
bombeiro hidráulico, campeiro, mecânico de bicicleta, vendedor e tirador de areia.
2.1 – Trabalho e Papéis Sexuais
Nos processos-crimes por sedução que pesquisamos em Campos, pudemos constatar
que os homens dispunham de uma gama de opções profissionais e de possibilidades no mercado
de trabalho bem mais amplas que as mulheres ofendidas156. De forma similar ao que foi
constatado para o mercado de trabalho em sua totalidade, isto é, relativo ao total da população
campista, também entre os homens e mulheres envoltos nos processos, observamos uma clara
desigualdade no acesso às possibilidades profissionais presentes no mercado, sempre em
156
Situação idêntica foi percebia por Martha Abreu para o Rio de Janeiro da Belle Époque e por Cristina Donza
para Belém, no mesmo período. Ver ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., pp. 150-151 e CANCELA, Cristina
Donza. Op. cit., pp. 53-57. No caso de Campos, os dados dos processos confirmam o que as estatísticas do IBGE já
havia revelado, a desigualdade de gênero no acesso ao mercado de trabalho.
81
desfavor das mulheres. Manifesta-se assim, no plano micro (nos processos), a divisão sexual das
funções com as mulheres, majoritariamente, envolvidas nas atividades domésticas dentro da
própria casa ou prestando serviços em “casas de família”.
A divisão sexual do trabalho fica também evidenciada quando analisamos as profissões
das testemunhas. Quase todas as testemunhas femininas atuam no espaço doméstico - do qual os
homens estão totalmente ausentes - como donas de casa ou empregadas domésticas, enquanto
para os homens, o mercado de trabalho era mais variado. Ou seja, através dos processos,
podemos perceber que o mercado de trabalho de Campos nos anos 60 e 70 era seletivo e
altamente restritivo quanto às oportunidades de trabalho para as mulheres (Tabela 5).
TABELA 5
Profissões
Comerciante
Comerciário(a)
Desempregado(a)
Do lar
Doméstica
Func.(a) Público
Industriário
Lavrador(a)
Motorista
Pedreiro
Trab.(a) Rural
Outras
Total
PROFISSÕES DAS TESTEMUNHAS, EM %
Das Testemunhas Masculinas
Das Testemunhas Femininas
Dos acusados*
Das ofendidas**
Dos acusados***
Das ofendidas****
6,7
6,7
5
0
0
8,3
5
28,3
5
3,3
5
26,7
100
8,2
6,1
0
0
0
6,1
10,2
22,5
4,1
2
16,3
24,5
100
0
0
0
100
0
0
0
0
0
0
0
0
100
0
1,3
0
79,2
16,9
0
0
0
0
0
0
2,6
100
Subtotal Por Sexo
Masculinas***** Femininas******
7,3
6,4
2,8
0
0
7,3
7,3
25,7
4,6
2,8
10,1
25,7
100
0
1,2
0
80,5
15,9
0
0
0
0
0
0
2,4
100
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
* Percentuais referentes ao total das testemunhas masculinas dos acusados (60).
** Percentuais referentes ao total das testemunhas masculinas das ofendidas (49).
*** Percentuais referentes ao total das testemunhas femininas dos acusados (5).
****Percentuais referentes ao total das testemunhas femininas das ofendidas (77).
***** Percentuais referentes ao total das testemunhas masculinas (109).
******Percentuais referentes ao total das testemunhas femininas (82).
Obs: Há de se destacar que nenhuma testemunha foi qualificada como estudante, exceto as ofendidas, que são sempre classificadas como a primeira
testemunha da acusação. Para efeito desta pesquisa, não incluímos as ofendidas entre as testemunhas
Tal qual acontece com as ofendidas e com as queixosas, também entre as
testemunhas femininas não só predominam as atividades ligadas aos cuidados com a casa,
como outrossim, a função de dona de casa é percentualmente muito mais expressiva que a de
“doméstica”, a da mulher que trabalha em “casas de família” em troca de salário. Este dado,
revelado pela Tabela 5, deve ser conjugado aos da tabela
82
sobre estado civil das testemunhas (Tabela 6), que nos mostram ser a maioria das testemunhas
femininas casada. Consideramos razoável supor ser forte, na época, a tendência entre os
trabalhadores de baixa renda, que as mulheres, ao casarem, se entregassem, se não
exclusivamente, ao menos de forma predominante, aos afazeres domésticos, não ingressando
ou até mesmo saindo do mercado de trabalho, demonstrando estarem as suas relações
conjugais e familiares baseadas na divisão sexual das funções. Cabia ao marido o sustento do
lar, enquanto à mulher cabia a realização dos serviços domésticos e o cuidado dos filhos. É
possível que algumas das mulheres classificadas como “do lar” realizassem, nas próprias
casas, serviços domésticos “para fora”, porém, sem vínculo empregatício.
TABELA 6
ESTADO CIVIL DAS TESTEMUNHAS POR SEXO, EM %
Das Testemunhas Masculinas
Das Testemunhas Femininas
Subtotal Por Sexo
Estado Civil Dos acusados* Das ofendidas** Dos acusados*** Das ofendidas**** Masculinas***** Femininas******
Casado(a)
58,3
57,2
40
55,8
57,8
54,9
Solteiro(a)
38,3
38,8
20
27,3
38,5
26,8
Viúvo(a)
3,4
2
40
15,6
2,8
17,1
Amasiado(a)
0
2
0
1,3
0,9
1,2
Separado(a)
0
0
0
0
0
0
Total
100
100
100
100
100
100
* Percentual referente ao total das testemunhas masculinas dos acusados (60).
** Percentual referente ao total das testemunhas masculinas das ofendidas (49).
*** Percentual referente ao total das testemunhas femininas dos acusados (5).
**** Percentual referente ao total das testemunhas femininas das ofendidas (77).
***** Percentual referente ao total das testemunhas masculinas (109).
****** Percentual referente ao total das testemunhas femininas (82).
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
Obs: O estado civil foi declarado pelas testemunhas em juízo.
Observando o estado civil das testemunhas
- onde o percentual daquelas que
vivenciavam alguma forma de união matrimonial é superior ao das solteiras157 - verificamos,
mais uma vez, a tendência dos populares a buscarem uma união matrimonial, preferencialmente
o casamento158.
157
Diferentemente do que ocorre com os(as) queixosos(as), no caso das testemunhas, não localizamos, nos
processos, documentos que pudessem nos confirmar o estado civil declarado nos depoimentos. Porém, em apenas
um caso a testemunha disse ser casada, mas foi desmentida pelo companheiro, que também era testemunha na
mesma ação, e que afirmou não serem casados mas viverem juntos, como companheiros. A testemunha inclusive
afirma não saber por que da sua companheira ter declarado serem casados.
158
No caso dos(as) queixosos(as), a diferença entre os(as) que estavam maritalmente unidos(as) - casados(as) ou
amasiados(as) - mais os(as) que vivificaram uma experiência matrimonial [viúvos(as)], contraposta aos(as)
solteiros(as) é de 39,6% a favor dos(as) casados(as); em se tratando das testemunhas, temos 23% a mais de
testemunhas masculinas casadas, amasiadas ou viúvas e 46,4% a mais de testemunhas femininas na mesma situação,
em comparação com as solteiras.
83
O(a) leitor(a) ao comparar as informações sobre o estado conjugal da população
campista fornecidas pelo IBGE e expressas no gráfico 8, com os dados sobre estado civil das
testemunhas que levantamos através dos processos e que estão expostos na tabela 6, poderá ficar
com a impressão de que os dados são conflitantes. Os percentuais de solteiros e casados do
gráfico 8 são inferiores aos constantes na tabela 6. A aparente contradição entre os dados poderia
sugerir que entre os classificados como solteiros, tanto no gráfico 8 como na tabela 6, poderiam
estar também pessoas que viviam amasiadas e que não quiseram relatar seu verdadeiro estado
conjugal. A hipótese é razoável e não a descartamos por completo, porém pensamos que os
dados não são conflitantes e que há uma outra explicação para as diferenças entre os percentuais.
Em primeiro lugar, é preciso ter em conta que os dados servem de referência, indícios
para o desenvolvimento das reflexões e conclusões. Não são “provas” absolutas de nada. Em
segundo, as diferenças entre os percentuais do gráfico 8 e da tabela 6, provavelmente se
expliquem pelo fato do gráfico 8 ter sido produzido com dados relativos a pessoas com 15
(quinze) anos ou mais, enquanto a faixa etária das testemunhas é mais alta. Consideramos
plausível supor que na faixa entre os 15 e os 20 anos existia um número de jovens solteiros que
explique o maior percentual de solteiros no gráfico 8 em relação à tabela 6. Por outro lado, se
estivermos corretos em nosso raciocínio, o percentual de casados revelado pelo gráfico 8 ganha
um relevo ainda maior159.
159
A partir das informações constantes dos processos, pudemos constatar que somente 20% das testemunhas
femininas dos acusados, o que corresponde a 1 (uma) testemunha, estava na faixa etária entre os 17 e os 20 anos;
40% (duas testemunhas) na faixa entre os 21 e os 40 anos e 40% (duas testemunhas) na faixa acima dos 40 anos. No
caso das testemunhas femininas das ofendidas, 1,3% (uma testemunha) estava entre os 14 e os 16 anos; 9,1% (sete
testemunhas) estavam entre os 17 e os 20 anos; 20,8% (dezesseis testemunhas) entre 21 e 30 anos; 27,3% (vinte e
uma testemunhas) entre 31 e 40 anos e 40,2% (trinta e uma testemunhas) com mais de 40 anos. Em relação às
testemunhas masculinas dos acusados, 6,7% (quatro testemunhas) estavam entre os 17 e os 20 anos; 36,7% (vinte e
duas testemunhas) entre 21 e 30 anos; 20% (doze testemunhas) entre 31 e 40 anos; 26,7% (dezesseis testemunhas)
com mais de 40 anos e 10% (seis testemunhas) não tiveram a idade identificada. No tocante às testemunhas
masculinas das ofendidas, 2% (uma testemunha) estava na faixa de 17 à 20 anos; 22,4% (onze testemunhas) entre 21
e 30 anos; 38,8% (dezenove testemunhas) estavam entre os 31 e os 40 anos; 34,7% (dezessete testemunhas) estavam
com mais de 40 anos e 2% (uma testemunha) não teve a idade registrada.
84
2.2- Morando Com os Pais
Uma outra característica importante das jovens ofendidas de Campos nos anos 60 e 70
era a sua estrutura familiar.
Observando o tipo de família em que viviam as moças ofendidas nos processos-crimes
que analisamos, verificamos que seus laços familiares eram bem diferentes dos vivificados pelas
moças ofendidas, cariocas e belenenses da Belle Époque, estudadas, respectivamente, por Martha
Abreu e Cristina Donza, conforme demonstram as Tabelas 7, 8 e 9. No caso das ofendidas
campistas, 81,5% viviam dentro de uma família nuclear, isto é, com os pais (pai e mãe) 160. Essa
constatação é fortalecida pelos dados de outro levantamento estatístico possibilitado pela análise
das cópias das certidões de nascimento das ofendidas anexadas aos processos, as quais indicam a
situação dos avôs (paternos e maternos) das ofendidas. Apenas 21% dos avôs não reconheceram
os seus filhos e filhas - pais e mães da ofendidas - mas não sabemos se viveram ou não com as
avós; 45,3% dos avôs (paternos e maternos) reconheceram seus filhos e filhas, mas não eram
oficialmente casados com as avós (não sendo possível perquirir o percentual de amasiados);
33,7% dos avôs (paternos e maternos) reconheceram seus filhos e filhas e casaram-se
oficialmente com as avós (não sendo possível verificar o percentual de separados). Quanto aos
pais das ofendidas, 20,4% não são conhecidos (não registraram as filhas); 25,9% dos pais são
conhecidos (registraram as filhas), mas não eram casados oficialmente com as mães das
ofendidas (sendo que uma parte deles vivia amasiada com as mães das ofendidas) e, o mais
importante,
160
Martha Abreu constatou em sua pesquisa que a maioria das ofendidas não possuía uma família do tipo nuclear
(pai e mãe). 15,9% viviam com o pai e a mãe; 7,9% viviam somente com o pai; 48,9% viviam somente com a
mãe e 27,2% não viviam nem com o pai nem com a mãe. Concluiu, então, ser predominante a chefia feminina
nessas famílias. Por sua vez, Cristina Donza localizou, em Belém do Pará, uma estrutura familiar que se
assemelhava à encontrada por Martha Abreu no Rio de Janeiro. Em Belém, 35% das ofendidas viviam somente
com a mãe; 1% somente com o pai; 15% com o pai e a mãe; 17% com tutores; 17% com outros familiares; 3%
com o ofensor e 12% não deram informações de com quem viviam. Cristina Donza conclui que as ofendidas
residiam predominantemente com as mães, “em lares onde predominava a matrifocalidade”. Sendo que as mães,
algumas vezes, se declaravam viúvas ou solteiras, porém mantinham relações de amasiamento, “evidenciando
que a despeito de haver a predominância de lares chefiados por mulheres, isto não implicava necessariamente na
ausência masculina nos mesmos”. Ver ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 160 e CANCELA, Cristina
Donza. Op. cit., pp. 60-61.
85
54,7% dos pais (pai e mãe) eram oficialmente casados (aqui, certamente, estão incluídos
alguns poucos casos nos quais a mãe era viúva)161.
TABELA 7
ESTADO CIVIL DOS(AS) QUEIXOSOS(AS), EM %
Estado Civil
%
Casado(a)
54,7
Solteiro(a)*
30,2
Viúvo(a)
7,5
Amasiado(a)
5,7
Separado(a)
1,9
Total
100
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
* Não separamos pai solteiro e mãe solteira.
TABELA 8
ESTRUTURA FAMILIAR DAS OFENDIDAS EM %
ONDE ELAS MORAVAM
Morada
%
Com os pais (pai e mãe) 81,1
Com os patrões
11,3
Com parentes*
7,5
Total
100
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
* Não encontramos a figura do parente fictício.
TABELA 9
A HERANÇA MATRIMONIAL DAS OFENDIDAS, EM %
Herança Matrimonial
%
Avô materno desconhecido**
8,4
Avô paterno desconhecido**
12,6
Avôs maternos conhecidos e casados***
21,1
Avôs maternos conhecidos mas não casados****
20
Avôs paternos conhecidos e casados***
12,6
Avôs paternos conhecidos mas não casados****
25,3
Pai desconhecido*****
20,4
Pais conhecidos e casados******
53,7
Pais conhecidos mas não casados*******
25,9
Fonte: 53 processos arquivados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
*Refere-se à existência ou não, nas famílias das ofendidas, da prática de registrar-se oficialmente os filhos e filhas e realizar-se
ou não o casamento civil.
**Casos em que os avôs não fizeram o reconhecimento oficial do filho ou filha, pai ou mãe da ofendida. Não temos como saber
se os avôs viveram ou não com as avós.
*** Casos em que os avôs registraram os filhos e filhas e eram legalmente casados com as avós.
**** Casos em que os avôs fizeram o registro civil dos filhos e filhas mas não casaram oficialmente com as avós. Não sabemos
se viveram com elas.
*****Casos em que os pais não fizeram o registro civil das filhas. Não sabemos se viviam amasiados com as mães.
******Casos em que os pais registraram as filhas e casaram legalmente com as mães.
*******Casos em que os pais registraram as filhas, mas não casaram oficialmente com as mães. Não sabemos se viviam juntos.
161
Estes dados são coerentes com as estatísticas do IBGE que demonstram a predominância, no conjunto da
população, do casamento como meio de realização das uniões conjugais. As diferenças entre os percentuais do
IBGE (Gráfico 8) e estes constantes do parágrafo, deve-se ao fato de o IBGE fazer sua pesquisa com pessoas a partir
dos 15 anos, enquanto a faixa etária dos(as) queixosos(as) era bem mais elevada. 3,8% dos(as) queixosos(as) [dois
queixosos(as)] estavam entre 25 e 35 anos; 47,2% [vinte e cinco queixosos(as)] entre 36 e 46 anos; 32,1% [dezessete
queixosos(as)] entre 47 e 57 anos; 9,4% [cinco queixosos(as)] entre 58 e 68 anos e 7,5% [quatro queixosos(as)] não
tiveram a idade registrada.
86
As estatísticas produzidas a partir dos dados coletados nos processos (através dos
depoimentos, cópias das certidões de nascimento, atestados de antecedentes criminais e boletins
individuais dos acusados), mostram-se coerentes com os dados apresentados pelo IBGE,
relativos ao estado civil da população campista nos anos 70. Podemos ver a importância do
casamento, entre os pais e mães das ofendidas, como mecanismo de regulação das uniões
conjugais e a tendência à formação de famílias nucleares. Temos, portanto, um quadro distinto
do que foi demonstrado por Martha Abreu e Cristina Donza para a Belle Époque carioca e
belenense, respectivamente162.
No Capítulo I, vimos que as políticas e discursos voltados à morigeração dos
comportamentos sociais, particularmente das atitudes femininas, buscaram, desde a Colônia,
estabelecer o casamento como o meio legítimo de constituição das uniões conjugais e o “lar”
como sendo o lugar ideal para o cotidiano das mulheres. No caso das jovens ofendidas de
Campos, à primeira vista, poder-se-ia imaginar que elas viviam em conformidade com as antigas
políticas de normatização posto que, em sua maioria, eram filhas de pais casados e a maior parte
delas foi classificada como sendo “do lar”, ou seja, moças que não possuíam emprego - poucas
eram estudantes - e, portanto, realizavam seus afazeres domésticos cotidianos dentro da própria
casa163, conforme demonstra a tabela 4.
Uma constatação importante é que a soma dos percentuais das atividades que tornavam
necessária a saída das moças para fora do lar, para estudar ou trabalhar, é de 35,9%, um pouco
mais da metade das que atuavam dentro da própria casa, 64,1%. Isto, porém não significa que as
ofendidas classificadas como “do lar” viviam enclausuradas, sem contatos com a rua. Em alguns
depoimentos dessas moças, pudemos
162
Cf. ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 160. Cf. CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., pp. 60-61.
Na classificação profissional das ofendidas, feita com base nos processos, usamos a denominação de “doméstica”
para aquelas mulheres que vendiam a sua força de trabalho em “casas de família” (geralmente consta dos processos
o endereço do emprego ou referências a ele); e, denominamos como “do lar” as mulheres que atuavam dentro da
própria casa, a princípio, sem remuneração. Esta forma de conceituar os termos corresponde aos sentidos com que
eles são empregados nos processos. Entretanto, mesmo que no grupo das mulheres “do lar” existissem algumas que
exercessem trabalho remunerado, isto não invalidaria a tabela 4 (ver página 80), visto que a contraposição que
pretendemos visualizar - e que marcaria uma diferenciação entre as mulheres campistas dos anos 60 e 70 do século
XX em relação às mulheres cariocas e belenenses da Belle Époque - não é entre mulheres com e sem remuneração,
mas entre mulheres que, por necessidade de sobrevivência, precisavam circular pelas ruas, sair de casa, e as que não
precisavam.
163
87
constatar que ser “do lar” não impedia o contato com pessoas de fora do círculo familiar, nem
reduzia à família os grupos de contato e convivência das ofendidas.
A leitura dos processos nos permitiu ver que, através das atividades de lazer,
principalmente, festas e bailes, as moças ofendidas tinham contatos com pessoas de fora do seu
círculo familiar; inclusive com os namorados. Além desses, havia também os relacionamentos
com vizinhos e conhecidos.
Entretanto, se a casa não era uma clausura e não impedia contatos com os “de fora”,
para a maioria das ofendidas a casa era o lugar onde o cotidiano se desenvolvia.
Ressalte-se, porém, não haver indícios claros de que ser “do lar” fosse uma opção das
moças e nem mesmo o resultado de uma postura rigidamente zelosa por parte dos seus pais ou
responsáveis. Esta condição de ser “do lar” tanto poderia advir do desvelo dos pais por suas
filhas, uma tentativa de mantê-las sob controle, sob maior vigilância e, quiçá, preservá-las
“puras” para o casamento; como também poderia ser uma conseqüência da estrutura do mercado
de trabalho regional (mas não só regional), onde as oportunidades de trabalho, para as mulheres,
eram mais restritas e o preço da força de trabalho feminino era significativamente menor do que
o da força de trabalho masculina. Assim, talvez não compensasse, em termos econômicos, a sua
entrada na população economicamente ativa, desde que os seus pais tivessem condições mínimas
de sustentá-las até um futuro casamento, quando elas passariam à “responsabilidade dos
maridos”.
Na historiografia sobre crimes de defloramento ou sedução produzida por Martha
Abreu, Sueann Caulfield e Karla Bessa, não constam referências às relações familiares dos
acusados. Cristina Donza registra somente o estado civil dos acusados164.
Em nossa pesquisa, foi-nos possível somente registrar com quem viviam os acusados assim mesmo de forma incompleta, pois vários indicaram o endereço, mas não revelaram se
residiam sozinhos ou com alguma companhia (Tabela 10). Pudemos, também, constatar o estado
civil (Tabela 11). Em relação a herança matrimonial165,
164
Em 75 processos Cristina Donza localizou 59% de solteiros, 15% de casados e 26% de acusados sem registro do
estado civil. Cf. CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., p. 64.
165
Denominamos por “herança matrimonial” o tipo de atitude dos pais (pai e mãe) e dos avós (avô e avó) das
ofendidas e acusados no estabelecimento das suas uniões conjugais, se o casamento ou formas consensuais; se com
ou sem a prática de registrar-se os(as) filhos(as). Claro que a “herança familiar” não implicava em uma norma
inflexível que teria de ser inexoravelmente reproduzida pela ofendida ou pelo acusado, mas serve para demonstrarnos até que ponto o casamento e o reconhecimento dos(as) filhos(as) era ou não uma prática presente nas famílias
dos envolvidos nos processos. A noção de “herança matrimonial” leva-nos a refletir se a existência, nas famílias dos
acusados e ofendidas, do “habitus” de casar e registrar a prole, influenciou a decisão de apresentar a queixa,
88
somente conseguimos informações relativas aos pais, não tendo sido possível levantar dados
suficientes em relação aos avôs dos acusados (Tabela 12).
TABELA 10
ESTRUTURA FAMILIAR DOS ACUSADOS, EM %
COM QUEM ELES VIVIAM
Morada
%
Pais
51,8
Esposa
7,4
Outros
7,4
Amásia
3,7
Emprego
3,7
Sós
1,9
Sem referência 24,1
Total
00
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
TABELA 11
ESTADO CIVIL DOS ACUSADOS, EM %
Estado Civil
%
Solteiro
83,0
Casado
13,2
Amasiado
3,8
Total
100
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
TABELA 12
ESTRUTURA FAMILIAR DOS ACUSADOS, EM %
A HERANÇA MATRIMONIAL
Herança Matrimonial
%
Pais conhecidos e casados**
47,2
Pais conhecidos mas não casados***
20,8
Pais desconhecidos ****
32
Total
100
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
*Esta tabela contém somente os dados relativos aos pais (pai e mãe) dos acusados por não ter sido
possível obtermos informações suficientes sobre os avôs.
**Casos em que os pais eram legalmente casados com as mães e reconheceram o filho. Pode haver casos
de pais separados, mas legalmente ainda casados
*** Casos em que os pais reconheceram legalmente os filhos, mas não casaram com as mães. Não sabemos quantos
eram amasiados.
**** Casos em que os pais não fizeram o reconhecimento legal dos filhos. Não sabemos se viviam ou não
com as mães dos acusados.
tornando pública uma situação constrangedora. Perguntamo-nos se a herança matrimonial descoberta nos processos
não tendia a produzir, nas ofendidas e nos seus pais, expectativas matrimoniais.
89
Analisando as tabelas, percebemos que, similarmente às ofendidas, mas não sabemos se
pelas mesmas razões, a maioria dos acusados vivia com os pais. Dentre os que deram
informações sobre com quem viviam, o número dos que afirmaram viver com a esposa é o dobro
dos que admitiram viver com amásias166. O percentual dos que afirmaram viver com os pais é
compatível com o percentual de acusados solteiros, o que talvez esteja a indicar que, assim como
as ofendidas, também os rapazes tendiam a ficar no interior do lar paterno, até que saíam para
constituir a própria família. É claro que ficar na casa paterna até o casamento não deveria ter,
para os rapazes, em termos de sentido moral, o mesmo significado que para as moças.
Pela tabela 12, podemos perceber uma “herança matrimonial” onde o casamento e o
reconhecimento legal dos filhos pelos pais se dava em escala menor que com as ofendidas.
Entretanto, é expressivo o percentual de pais casados e que reconheceram “legitimamente” seus
filhos, constituindo, ao menos em termos formais e, por um certo período, famílias nucleares.
Entre os acusados, 9,3% disseram ter filhos, não nos sendo possível quantificar o percentual dos
que foram reconhecidos legalmente pelos acusados.
Percebemos, portanto, que havia uma considerável diferença entre as estruturas
familiares das moças ofendidas e demais envolvidos nos crimes de sedução/defloramento, do Rio
de Janeiro e de Belém da Belle Époque167, em relação à estrutura familiar das ofendidas
campistas e demais envolvidos nos processos dos anos sessenta e setenta do século XX. Entre as
ofendidas de Campos, predominava a família do tipo nuclear e o casamento era um elemento
importante, presente na constituição dos laços matrimoniais. Devia, portanto, ser um referencial,
um elemento com significação para os homens e mulheres das camadas populares de Campos.
166
Se tomarmos como referência os acusados casados e amasiados que, supostamente, mantiveram relações sexuais
com as ofendidas, teríamos um percentual de 17% de maridos ou amásios infiéis. Um percentual talvez baixo para
uma sociedade que se tem mostrado indulgente com a violação masculina das normas que o Código Civil institui
para o matrimônio. Sobre a infidelidade masculina e feminina no olhar jurídico, ver OLIVERIA, José Lopes de.
Manual de Direito de Família. Apud. CORRÊA, Mariza. Op. cit., p. 89.
167
Ver ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., pp. 160-163. Cf. CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., p. 60.
90
3. EDUCAÇÃO E “COR”
Analisando as condições educacionais dos homens e mulheres presentes nos processos,
notamos que, apesar de ser expressivo o percentual de ofendidas “alfabetizadas” (Tabelas 14 e
15), o percentual das que se declaram estudantes no momento em que depuseram na delegacia
(3,8%), é indicativo de que a permanência dessas jovens na escola era curta, o suficiente para
aprenderem os rudimentos da escrita e da leitura168. O nível de escolaridade atingido não indica
uma busca pela qualificação profissional e a maioria das ofendidas não saiu da escola para o
mercado de trabalho, mas para as funções “do lar” (64,1%). Provavelmente, no universo cultural
dos homens e mulheres de baixa renda pesquisados, por suas parcas expectativas de ascensão
sócio-econômica, bastasse a uma rapariga - para o exercício das suas futuras e desejadas funções
de dona de casa, esposa e mãe - o saber “ler e escrever” (que, às vezes, significava somente
saber assinar o próprio nome) e o conhecimento dos afazeres domésticos. É o que podemos
deduzir, por exemplo, do que disse a queixosa Marta Barcelos ao depor em juízo no dia 20 de
setembro de 1974, “que sua filha era alfabetizada e sabia muito de serviços domésticos e era
muito inteligente”169.
A análise dos processos permitiu-nos, outrossim, observar os vínculos entre a “cor” dos
homens e mulheres presente nos processos e o acesso desse setor da população pobre de Campos
à educação. Para isso nos favoreceu o fato de sempre ter-mos podido localizar a “cor” das
ofendidas e comparar a informação registrada na certidão de nascimento com a constante no
exame de conjunção carnal, no termo de declarações prestadas pelo(a) queixoso(a) na delegacia,
nos termos de qualificação e nos depoimentos prestados, tanto na delegacia como em juízo, onde
o quesito “cor” geralmente foi registrado170.
168
Na pesquisa da Cristina Donza temos 45% de alfabetizadas; 22% de analfabetas e 33% sem registro de
escolaridade. Ver CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., p. 59.
169
Processo nº 10.803, maço 567, folha 33.
170
Não nos cabe, por extrapolar os objetivos específicos desta pesquisa, uma discussão teórica sobre os conceitos de
raça, “cor” e etnia. Também não sabemos dizer com quais critérios as pessoas envolvidas nos processos foram
classificadas como brancas, pardas ou pretas; provavelmente o foram a partir da “percepção” da tonalidade da pele
por quem fez o registro, o que certamente não é um “bom” critério por sua grande carga de subjetividade. Porém,
esses registros são oficiais e não foram contestados quer pelas autoridades quer pelos envolvidos, sendo, portanto, o
referencial que dispomos e que, pensamos, devem expressar o “senso comum” sobre a condição “racial” das pessoas
registradas.
91
No tocante aos acusados, também foi possível localizar referências à “cor” de todos
eles. Geralmente, a “cor” dos acusados pôde ser identificada através do boletim individual anexo
no final de cada processo. Outras referências foram as declarações dos(as) queixosos(as), os
autos de qualificação e os depoimentos dos acusados, prestados tanto na polícia quanto em juízo,
onde o item “cor”, via de regra, foi informado. Em alguns processos em que o acusado era menor
de 21 anos, pudemos localizar cópias das certidões de nascimento. Também a “cor” de quase
todos(as) os(as) queixosos(as) foi registrada. Somente a “cor” das testemunhas é que não
mereceu registro nem na polícia, nem em juízo.
A Tabela 13 revela-nos, primeiramente, a proximidade dos índices relativos à “cor”
dos(as) queixosos(as) com os das ofendidas, o que talvez seja um indício de coerência nos dados.
TABELA 13
CLASSIFICAÇÃO DOS POPULARES PELO ITEM "COR", EM %
Os Populares, em %
"Cor"
Acusados Ofendidas Queixosos(as)
Branca
50,9
37,8
32,1
Parda
35,9
39,6
32,1
Preta
13,2
22,6
26,4
Sem referência
0
0
9,4
Total
100
100
100
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
TABELA 14
ESOLARIDADE DAS OFENDIDAS, EM %
Nível
%
Alfabetizada*
94,3
Analfabeta
5,7
Total
100
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
* Raramente foi informada a série, a mais elevada que encontramos foi a 3ª série primária.
TABELA 15
ESCOLARIDADE E “COR” DAS OFENDIDAS EM %
Nível/Cor
%
Branca lê e escreve
37,7
Branca não lê nem escreve
0
Parda lê e escreve
37,7
Parda não lê nem escreve
1,9
Preta lê e escreve
18,9
Preta não lê nem escreve
3,8
Total
100
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
92
TABELA 16
ESCOLARIDADE E “COR” DAS OFENDIDAS CONFORME A COMPOSIÇÃO ÉTNICO/RACIAL DOS
PROCESSOS, EM %
Nível/Cor
%
Branca lê e escreve*
100
Branca não lê nem escreve
0
Parda lê e escreve**
95,2
Parda não lê nem escreve
4,8
Preta lê e escreve***
83,3
Preta não lê nem escreve
16,7
*Para a estatística das moças brancas utilizamos 20 processos.
** Para a estatística das moças pardas utilizamos 21 processos.
*** Para a estatística das moças pretas utilizamos 12 processos.
A Tabela 16, elaborada de acordo com a composição étnico/racial 171 dos processos,
permite-nos perceber que, por um lado, é significativo o percentual das ofendidas “pretas”
classificadas como sabendo “ler e escrever”, por outro, é exatamente neste grupo de ofendidas
que encontramos o maior percentual de analfabetas. Entre as moças “brancas”, o analfabetismo
não foi detectado e entre as “pardas” ele é inexpressivo.
O percentual de “pretas” alfabetizadas (83,3%; pela Tabela 16) não significa a
igualdade racial no acesso às oportunidades nos Campos dos Goytacazes. A Tabela 15 mostranos a distância existente entre “brancas”, “pardas” e “pretas” em relação à instrução. A
estatística revelada pela Tabela 16, provavelmente, reflete a expansão da rede pública de ensino,
na qual as moças “pretas”, ao que parece, ingressaram de forma expressiva, fazendo crescer
consideravelmente, no próprio grupo étnico/racial, o número das alfabetizadas. Porém,
comparativamente aos demais grupos étnicos/raciais, este crescimento continuava a revelar um
quadro de acesso desigual ao ensino. Este é um fato que podemos, ao menos nesta pesquisa,
somente constatar escapando-nos a possibilidade de oferecer explicações.
No tocante aos acusados, temos também um grande percentual dos que foram
classificados como sabendo “ler e escrever” (Tabelas 17 e 18)172. Porém,
171
Para esta tabela a referência foi o que ocorre dentro de cada grupo étnico/racial, ou seja, dentro do grupo das
ofendidas “brancas” (20) quantas eram alfabetizadas e quantas não. A comparação, portanto, foi feita dentro de cada
grupo e não entre eles como ocorreu na tabela anterior “Escolaridade e “Cor” das Ofendidas em %” (tabela 15,
página 91). O mesmo método foi utilizado com as ofendidas “pretas” e “pardas”, e para as tabelas relativas à
escolaridade dos acusados.
172
Cristina Donza apresenta a seguinte estatística: 57% de alfabetizados; 7% de analfabetos e 36% sem registro
quanto à escolaridade. Ver CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., p. 60.
93
constata-se que o total dos acusados “alfabetizados” 85,2% é inferior ao das ofendidas 94,3%;
em ordem inversa os “analfabetos” somavam 14,8% enquanto entre as ofendias o índice era de
5,7%.
TABELA 17
ESCOLARIDADE DOS
ACUSADOS, EM %
Nível
%
Alfabetizados 85,2
Analfabetos 14,8
Total
00
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
TABELA 18
ESCOLARIDADE E “COR” DOS ACUSADOS, EM %
Nível/Cor %
Branca lê e escreve
50
Branca não lê nem escreve 1,8
Parda lê e escreve
27,8
Parda não lê nem escreve
7,4
Preta lê e escreve
7,4
Preta não lê nem escreve
5,5
Total
100
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
TABELA 19
ESCOLARIDADE E “COR” DOS ACUSADOS CONFORME A COMPOSIÇÃO ÉTNICO/RACIAL
DOS PROCESSOS, EM %
Nível/Cor
%
Branca lê e escreve*
96,4
Branca não lê nem escreve 3,6
Parda lê e escreve**
78,9
Parda não lê nem escreve
21,5
Preta lê e escreve***
57,1
Preta não lê nem escreve
42,7
*Para a estatística dos acusados brancos utilizamos 28 processos.
**Para a estatística dos acusados pardos utilizamos19 processos.
***Para a estatística dos acusados pretos utilizamos 07 processos.
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
A Tabela 19 confirma-nos a suposição de que os homens das camadas populares tinham
maiores dificuldades para acessar o saber escolar do que as mulheres da mesma classe social.
Esta dificuldade fica mais visível ou mais forte conforme a “cor” da personagem masculina.
Se entre as ofendidas encontramos coincidência entre “brancas” e “pardas”, no tocante
ao fato de saberem “ler e escrever”, sendo inexpressivo o índice de analfabetismo, ficando a
desigualdade explícita apenas na comparação com os dados
94
relativos às ofendidas “pretas” (Tabela17). No caso dos acusados, as diferenciações entre
“brancos” e “pardos” e destes dois grupos com os “pretos” chegam a ser gritantes (Tabela 18).
Quando olhamos para o interior de cada grupo étnico/racial (“brancos”, “pretos” e
“pardos”), percebemos uma situação similar a das ofendidas. De um lado o esforço de homens e
mulheres “brancos”, “pretos” e “pardos”, em conquistar a escolarização e, por outro, a
desigualdade quantitativa com que esta escolarização é conquistada.
Pelo que apresentamos, até o momento, podemos concluir pela correspondência entre os
dados relativos à população de Campos, em sua totalidade (obtidos através dos recenseamentos)
e os referentes aos personagens que estudamos através dos processos. O que nos permite
conceber os homens e mulheres que protagonizaram os 53 processos-crimes por sedução que
analisamos como representativos das camadas ou setores populares de Campos, nos anos
sessenta e setenta do século XX.
Verificamos que as diferenças entre homens e mulheres se manifestavam numa
desigualdade de oportunidades no mercado de trabalho, em desfavor das mulheres, configurando
relações de gênero, onde o ser masculino e o ser feminino impunham papéis sociais distintos e
desiguais. A discriminação de gênero mostra-se gritante nas diferenças salariais onde não só
encontramos a penosa exploração das classes trabalhadoras (homens e mulheres), mas também a
exploração econômica mais intensa das mulheres trabalhadoras cuja presença no mercado de
trabalho diminui significativamente conforme se elevem o valor do salário e o nível de
escolarização. Esse quadro regional (mas não só regional), onde exploração de classe e de gênero
se manifestavam pari passu, deve ter, é o que supomos, influenciado nas posturas amorosas,
sexuais e matrimoniais dos homens e mulheres das camadas populares. Não se trata de conceber
as relações afetivas como epifenômenos das condições materiais de existência, mas sim, de
compreender a realidade social como totalidade articulada, onde as “escolhas” e práticas afetivas
não estão absolutamente desassociadas do ser social dos indivíduos.
No Capítulo I, procuramos entender, através da historiografia como, em diversos
momentos e lugares da formação social brasileira, os setores dirigentes
95
buscaram difundir o casamento como mecanismo legítimo de constituição das relações conjugais
e fator de moralização dos comportamentos sociais e sexuais. De uma forma ou de outra, se
difundiam vínculos entre casamento, virgindade, honestidade, honra e comportamentos
femininos.
Ao concluir o Capítulo II, constatamos que o casamento se constituíra em uma prática
social expressiva entre as camadas populares de Campos e, nos anos 60 e 70, era a principal
forma de realização das uniões conjugais. Fato comprovado tanto pelos índices do IBGE como
pelos dados dos processos. Diante disto, nos perguntamos se a prática de casar tinha entre os
homens e mulheres dos setores populares as motivações moralistas e normatizadoras apregoadas
pelos setores dirigentes conforme examinamos no Capítulo I?
Para avançar na resposta dessa questão, é que vamos, no Capítulos III, analisar as
práticas amorosas dos personagens que pesquisamos e os conflitos entre as concepções de
namoro dos jovens das camadas de baixa renda envolvidos nos processos e as visões dos
profissionais do judiciário sobre a maneira adequada de se vivenciar relações amorosas.
CAPÍTULO III
O NAMORO - MOÇAS, RAPAZES E JUÍZES
97
1. RUAS, PORTÕES E QUINTAIS
O amor é um grande laço
um passo pr’uma armadilha
um lobo correndo em círculos
pra alimentar a matilha
comparo sua chegada
com a fuga de uma ilha
tanto engorda quanto mata
feito desgosto de filha...
Djavan
A pesquisa em processos criminais possibilita perceber, nas entrelinhas dos
pronunciamentos e depoimentos, manifestações e valores que balizam as atitudes e estabelecem
os referenciais do que é lícito ou ilícito para as pessoas que deles participam. Ao relatar o “fato”,
isto é, ao apresentar a sua versão do que teria ocorrido, cada lado da disputa judicial revela não
só o texto da lei, mas também os princípios e códigos sociais (culturais) que legitimam ou se
conflitam com a lei e que, de uma forma ou de outra, orientam as condutas dos envolvidos.
As contradições que emergem quando se comparam os depoimentos, revelam-nos que
há nos processos mais do que encenações e que, apesar dos filtros a que os depoimentos dos
envolvidos são submetidos desde a apresentação da queixa, nos é possível capturar, ao menos
fragmentos, dos seus valores e das sua práticas cotidianas. Podemos acessar o seu universo
moral, conhecer mais dos seus códigos de conduta e dos seus referenciais de julgamento.
Na análise das relações de namoro nos Campos dos Goytacazes, verificamos a ausência
de formalismos nos envolvimentos entre moças e rapazes das camadas de baixa renda que
participaram dos processos173. Isto pode ser percebido mesmo quando a ofendida declara, na
delegacia e/ou em juízo, que fora “assediada” pelo acusado “para fins de namoro” 174. Pelo que se
pode extrair dos depoimentos das ofendidas, o “assédio” ou “aproximação” a que fazem
referências não demandava apresentações, não implicava em um tempo prolongado de conquista
e nem envolvia sondagens, por parte
173
Martha Abreu também percebeu o mesmo para as moças e rapazes da Belle Époque carioca. Cf. ESTEVES,
Martha de Abreu. Op. cit., pp. 141-146.
174
O termo “assédio” aparece nos processos mas, provavelmente, era uma expressão empregada pelo escrivão e não
pela ofendida.
98
das moças ou de seus pais sobre os rapazes. O tempo entre o primeiro olhar e a proposta de
romance é quase imediato.
Pelos depoimentos das 46 ofendidas onde se registrou a duração do namoro (86,8% do
total de ofendidas), pudemos constatar que 52,1% dos relacionamentos amorosos duraram até 6
meses (Tabela 20). Além da brevidade na duração do namoro, o lapso de tempo entre o início do
romance e a conjunção carnal, via de regra, não era longo. Segundo declaram as 46 ofendidas
que informaram o tempo decorrido entre o início do namoro e a primeira cópula, em 61,8% dos
casos o desvirginamento teria ocorrido até 6 meses após o início do namoro (Tabela 21).
TABELA 20
TEMPO DE NAMORO SEGUNDO AS OFENDIDAS, EM %
Tempo
%* %**
De 1 a menos de 2 anos 20,7 23,9
Sem Referência
13,2 0
De 2 a menos de 3 anos 11,3 13
2 meses
11,3 13
Até 1 mês
9,3
10,9
4 meses
7,5
8,7
3 meses
7,5
8,7
De 4 a 5 anos
5,7
6,5
6 meses
5,7
6,5
5 meses
3,8
4,3
8 meses
1,9
2,2
10 meses
1,9
2,2
* Dados referentes aos 53 processos recolhidos no Fórum de Campos dos Goytacazes.
** Dados relativos aos 46 processos em que as ofendidas informaram o tempo do namoro.
TABELA 21
TEMPO ENTRE O INÍCIO DO NAMORO E A PRIMEIRA CÓPULA, SEGUNDO AS OFENDIDAS, EM %
Tempo
Menos de 1 mês
1 mês
2 meses
Sem Referência
De 7 a 9 meses
1 ano
2 anos
De 3 a 5 meses
6 meses
3 anos
Mais de 4 anos
%*
17
15,1
13,2
13,2
11,3
11,3
5,7
5,7
3,8
1,9
1,9
%**
18,4
17,4
15,2
0
13
13
6,5
6,5
4,3
2,2
2,2
* Dados relativos aos 53 processos recolhidos no Fórum de Campos dos Goytacazes.
** Dados referentes aos 46 processos em que as ofendidas informaram o tempo entre o início do namoro e a primeira cópula.
99
Verificamos, através dos depoimentos, que, entre as moças ofendidas e rapazes
ofensores, eram comuns os encontros noturnos nas ruas e sem acompanhantes, os afagos
libidinosos nos portões, nos cantos escuros dos muros, nos fundos dos quintais (Tabela 22).
Relacionamentos amorosos dessa natureza contrariavam as posições e discursos dos
representantes da Justiça (promotores, assistentes da acusação, defensores, assistentes da defesa,
juízes, procuradores e desembargadores) para os quais, segundo os seus pronunciamentos, o
namoro deveria sempre acontecer com a autorização dos pais da moça, com o casal se
encontrando em dias e horários pré-estabelecidos, sempre contando com a companhia ou
vigilância de uma pessoa adulta responsável pela moça e, de forma alguma, o casal poderia darse a contatos íntimos, à prática de atos libidinosos.
TABELA 22
LOCAL DA PRIMEIRA CÓPULA SEGUNDO AS OFENDIDAS,
EM %
Local
%
Casa da ofendida*
22,6
Na rua**
20,8
Mato***
18,9
Outros
15
Casa de conhecido
9,4
Casa do acusado
7,6
Emprego dela
3,8
Emprego dele
1,9
Total
100
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
* Em apenas 2 casos, a cópula deu-se dentro da casa, nas demais a relação ocorreu em pé
nos portões, muros e fundo de quintais.
** Nesses casos, segundo os relatos dos acusados e/ou ofendidas, as relações eram
praticadas em logradouros públicos, com o casal geralmente encostado em um muro, sempre
de pé.
*** Nesses casos, segundo os relatos dos acusados e/ou ofendidas, as relações ocorreram
em terrenos baldios e desertos, com o casal quase sempre de pé.
Entre os casais formados por jovens de baixa renda foi expressivo o percentual de
moças que relataram a prática de carícias íntimas durante o namoro, em muitos casos, desde o
seu início175 (Tabela 23). Em vários processos, a excitação (apresentada como atos de
libidinagem pelo judiciário), decorrente das carícias relatadas
175
Ver, por exemplo, os processos de número 282; 7.795; 8.921;10.529; 10.569; 10.745; 10.793; 10.803; 10.937;
11.098; 11.172; 11.260; 11.430; 11.464; 11.486; 11.500; 11.622; 11.627; 11.688; 11.716; 11.731; 11.733; 11.842;
11.924; 11.927; 12.361.
100
(beijos, toques nos seios e/ou na vagina), foi apontada pelas ofendidas e/ou pelos promotores
como um dos fatores responsáveis por terem cedido aos desejos sexuais dos ofensores,
demonstrando, assim, que elas não eram desprovidas de desejos sexuais e não se furtavam do
direito de satisfazê-los (Tabela 24). Efetivamente essas moças das camadas mais simples da
população campista não viviam o amor e o sexo em conformidade com os códigos morais do
judiciário que definia o namoro dentro de padrões morais bem mais rígidos.
TABELA 23
CASOS EM QUE AS OFEDIDAS ADMITIRAM INTIMIDADES COM OS ACUSADOS, EM %
Situação
%*
%**
Permitiu intimidades somente no dia ou pouco antes do desvirginamento 28,3
48,4
Permitiu intimidades desde o início do namoro
24,5
41,9
Admitiu carícias mas sem especificar em que situação
3,8
6,5
Rompeu namoro por tentativas de intimidades
1,9
3,2
Total
58,5
100
* Fonte: todos os 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
**Fonte: 31 processos em que as ofendidas relataram a prática de carícias íntimas com os acusados.
2. A “MORAL FAMILIAR”, A MORAL DOS JUÍZES
A punição dos crimes de sedução pelos juízes de Campos seguiu, via de regra, as
indicações constantes da jurisprudência firmada nas obras de juristas como Nelson Hungria176,
Heleno Fragoso177 e Magalhães Noronha178 e nos pareceres e súmulas dos tribunais superiores.
Conforme orienta a jurisprudência, os julgamentos se processavam pela aferição das
atitudes e comportamentos das ofendidas onde, através da análise e confrontação dos
depoimentos da jovem, do acusado e das testemunhas, os juízes emitiam os seus pareceres
quanto à existência ou não de indícios ou provas de ser ou
176
HUNGRIA, Nélson. e LACERDA, Romão Côrtes de. Comentários ao Código Penal, Vol. VIII. Rio de Janeiro:
Forense, s.d.
177
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal (parte especial). Rio de Janeiro: Forense, 5ª ed., 1986.
178
NORONHA, E. Magalhães. Direto Penal. São Paulo: Saraiva, 1964.
101
não a ofendida moça inexperiente. Se havia ou não razões para que a ofendida depositasse
justificável confiança nas alegadas promessas de casamento, supostamente feitas pelos acusados.
Destarte, as sentenças dependiam do juízo que os magistrados viessem a fazer da moralidade das
ofendidas. Se os juízes considerassem que por suas atitudes e comportamentos (recato e
obediência aos pais) as moças eram “merecedoras da proteção legal”, o réu tendia à condenação.
Caso contrário, se as jovens ofendidas não fossem consideradas “merecedoras da proteção legal”
(por serem namoradeiras, freqüentadoras de festas e bailes sem a companhia paterna e/ou
materna, dadas a namoros curtos sem noivado, desconhecidos ou sem a autorização dos pais, não
indicando uma intenção matrimonial), era praticamente certa a absolvição do réu.
Um bom exemplo dos padrões morais a partir dos quais os magistrados julgavam os
crimes de sedução nos anos sessenta e setenta é encontrado no “Acordam” do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro para o processo 8.921, proferido em 21 de fevereiro de 1972. No
referido processo, Karina Sarmet Monteiro, brasileira, parda, fluminense, com 16 anos de idade,
do lar, alfabetizada, acusou Neilson da Gama, brasileiro, branco, católico, fluminense, com 21
anos de idade, solteiro, policial militar, sabendo ler e escrever, de havê-la seduzido e
desvirginado em abril de 1966.
No “Acordam” os desembargadores afirmaram:
Rejeitadas, pois, as preliminares e passando a apreciação do mérito, verificase que o apelado, efetivamente, manteve namoro, por período aproximado
de um ano, com a ofendida, pois, como afirmam as testemunhas arroladas
pela acusação, os dois, freqüentemente, eram vistos juntos no portão da
residência da vítima, o que, aliais, em parte, recebeu confirmação de
testemunhas arroladas pelo próprio acusado (...)
Do cotejo da prova resulta, ainda, que a vítima levava vida regular e
honesta, em companhia dos seus familiares, pois, embora as testemunhas
arroladas pela defesa tivessem tentado denegrir a reputação da vítima, não
conseguiram, contudo, contra ela carrear elementos no aludido sentido (...)
resultando, enfim, que a vítima mantinha o comportamento comum às
jovens do seu meio social, assistindo a competições esportivas e
freqüentando bailes em companhia de sua genitora.
Não obstante, seja certa a existência do namoro e a vida honesta da ofendida,
não se pode, entretanto, tê-la como inexperiente, não só pelas atividades
sociais a que se entregava, como também porque, anteriormente ao
apelado, já tivera dois outros namorados, como ela própria admitiu no
depoimento que prestou em juízo.
Das declarações da ofendida, por sua vez, não se consegue extrair pudesse
ela depositar justificável confiança no apelado, pois, como deixou ela bem
claro, o apelado apesar de convidado, nunca consentiu em freqüentar a sua
casa, mantendo namoro apenas no portão, em
102
demonstração eloqüente de não pretender assumir compromissos mais
sérios, sob o ponto de vista matrimonial.
Não configurados, portanto, os fatores morais do delito, isto é, a justificável
confiança ou a inexperiência da ofendida, insustentáveis, em conseqüência,
hão de ser, data vênia, as conclusões da decisão recorrida, no sentido da
configuração do crime de sedução, previsto no art. 217 do Código Penal,
patenteando-se, entretanto, claramente, a presença, na espécie, do crime de
corrupção de menor, eis que, convincentes sem dúvida, são as declarações da
ofendida de que o acusado foi corrompendo-a, durante o namoro, através de
uma série de atos libidinosos, culminados, finalmente, com a cópula vaginal;
(...)
Na hipótese em exame, represa-se, o apelado manteve conjunção carnal,
após prolongado namoro, com menor que levava vida honesta e regular,
provocando, assim, alteração evidente em tal status e incorrendo,
destarte, nas sanções do art. 218; o caso, assim, não pode afeiçoar-se aos
daquelas outras jovens que, apesar de menores, aos primeiros instantes do
namoro, entregam-se aos parceiros, em demonstração eloqüente de que já
haviam se afastado dos bons costumes e, como tal, não mais fazendo jus
à tutela penal, pois como bem já se acentuou:
‘Em todos os crimes dessa natureza o que se tutela fundamentalmente é a
liberdade sexual, como expressão dos bons costumes, que pode ser
garantida como direito subjetivo ou mero interesse’.
Merece, portanto, o apelo provimento parcial para desclassificar o delito
imputado ao apelado para o art. 218 do C. Penal, e, em conseqüência, reduzir
a pena que lhe foi imposta para um ano e cinco meses de reclusão, eis que,
não obstante seja ele primário e com posição definida, intenso foi o dolo
com que se houve e graves, sem dúvidas, as conseqüências do seu crime,
não fazendo jus portanto ao pretendido apenamento mínimo.
A desclassificação ora operada arrima-se na orientação jurisprudencial dessa
Câmara e do Supremo Tribunal Federal, consoante arrestos estampados na
Rev. Trim., vol.49, p. 537 e 534 d.
Por tais fundamentos,
A C O R D A M os Juízes que integram a Primeira Câmara Criminal do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, rejeitar, à unanimidade, as
preliminares suscitadas, (...) e no mérito, também é unanimidade, dar parcial
provimento ao apelo para desclassificar o delito para o art. 218 do C. P.
Penal e reduzir a pena imposta para um ano e cinco meses de reclusão,
mantidas as demais combinações da decisão recorrida179. [grifos nossos]
Esta sentença demonstra, por um lado, a possibilidade dos magistrados reconhecerem
como legítimas certas atitudes vivenciadas por algumas moças pobres, a exemplo de Karina,
como freqüentar
campos de futebol e ir a festas e bailes
- desde que devidamente
acompanhadas - por serem atividades comuns ao seu meio social. É, certamente, um padrão de
julgamento diferente do que adotavam os juízes que julgaram
179
Processo nº 8.921; maço 524; folhas 139 à 142.
103
os processos pesquisados por Martha Abreu e Cristina Donza180. Entretanto, se ir a campos de
futebol e freqüentar
festas e bailes, sob a vigilância materna, não fazia de Karina moça
desonesta, era o suficiente para descaracterizá-la como inexperiente181. Além disso, o fato, por
ela relatado, de Neilson recusar-se a namorá-la dentro da sua casa, seria, no entender dos juízes,
indício de que ele não tinha intenções matrimoniais e, por isso, Karina não teria motivos para
depositar justificável confiança nas alegadas promessas de casamento e permitir a cópula
desvirginadora. Sem a prova da inexperiência ou da justificável confiança de Karina, Neilson foi
absolvido da acusação de sedução sendo, contudo, condenado por corrupção de menores, tendo
em vista a reconhecida honestidade de Karina e a intensidade do dano causado a ela pelo ato do
réu.
Ao analisarmos os processos, notamos que os juízes e promotores, assim como os
procuradores e desembargadores dos tribunais superiores que firmavam a jurisprudência,
propugnavam uma maneira moralizada e adequada de se namorar.
(...) um rapaz que pretende mesmo se casar com uma moça a namora às
claras, freqüenta a sua casa indissimuladamente, demonstra de público os
seus bons propósitos, fica noivo de aliança no dedo e procura marcar data
para o casamento182.
Os profissionais do judiciário (promotores, defensores, assistentes da acusação,
assistentes da defesa, juízes, procuradores e desembargadores), ainda nos anos sessenta e setenta,
consideravam que os crimes contra os costumes, a exemplo do crime de sedução, afetavam à
moral, cabendo ao judiciário zelar pela moral e pela família.
Esta posição foi claramente assumida pelo juiz que julgou o processo número 6.727. Em
sua sentença ele afirmou:
180
Cf. ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., especialmente os capítulos 1 e 2. Cf. CANCELA, Cristina Donza. op.
cit. passim.
181
43,4% das ofendidas admitiram freqüentar bailes e/ou festas, enquanto 41,5% negaram tal hábito. Se podemos
considerar expressivo o número de ofendidas que reconheceram participar, de alguma forma, de festas e bailes, o
percentual das que admitiram freqüentar sessões de cinema foi de 9,4%, enquanto 56,6% disseram não freqüentarem
os cinemas da cidade ou do interior. A acusação de participar de festas e bailes, bem como a de ir a cinemas, quase
sempre pesou negativamente na avaliação moral das jovens que tinham essas práticas.
182
Processo nº 11.177, maço 570, folhas 67-70.
104
(...) ocorrências dessa espécie são altamente lesivas à moral familiar, de
forma a tornar-se presumido o interesse de agir, no sentido de ser obtida
reparação do dano causado (...).
Delitos de tal natureza, por dizerem respeito à moral familiar, exigem
pronunciamentos dos interessados, no sentido de ser tomada qualquer
medida judicial (...).
O aspecto de afronta à moral, que envolve tais delitos, torna secundário
qualquer outro interesse que, porventura, possa ditar a conduta de quem
oferecer a representação183. [grifos nossos]
Para assegurar a moral familiar é que se exige das moças e rapazes um comportamento
amoroso moralizado. O sentido moral do namoro se expressaria não somente nas suas formas
(dias e horários previamente estabelecidos, autorização e vigilância da família e sem a prática de
atos libidinosos) mas, sobretudo, no seu desenvolvimento visando o matrimônio. O objetivo
devia ser namorar para casar.
Por isso, o tempo decorrido entre o início do namoro e a cópula, bem como as
condições em que se dava o namoro (se com ou sem a aprovação dos pais, se na rua ou dentro de
casa em dias e horas preestabelecidos, se com ou sem a vigilância materna, etc.) determinavam,
em grande medida, o reconhecimento ou rejeição pelo juiz da tese da justificável confiança. Ou
seja, uma curta temporalidade entre o início do namoro e a realização da cópula, não importando
se o casal já se conhecia anteriormente, raramente não implicou na absolvição do réu por falta de
justificável confiança na promessa de casamento. A brevidade e as condições em que se davam
os namoros serão constantemente lembradas pelos juízes ao emitirem suas sentenças
absolutórias184.
Dessa forma, a admissão de namoros breves, com a entrega a contatos sexuais logo nos
primeiros meses, assim como o relato da prática de relações anais, dá-nos a certeza de que as
ofendidas não dominavam plenamente as regras pelas quais os casos seriam julgados, o que torna
possível capturarmos, nas contradições dos seus depoimentos, na contraposição das suas
declarações com as normas da moral judiciária, alguns dos elementos do seu universo cultural e
das suas práticas sociais. O
183
Processo nº 6.727, folhas 71-72, maço 575.
Processos em que os juízes, criticaram as ofendidas, negaram a justificável confiança e absolveram os réus, por
causa do curto tempo de namoro: 282; 10.155; 10.569; 10.943; 10.959; 10.981; 11.096; 11.098; 11.138; 11.172;
11.177; 11.223; 11.413; 11.430; 11.464; 11.500; 11.622; 11.651; 11.926; 12.250. Não incluímos os casos em que a
crítica ao curto tempo de namoro foi feita somente pelo promotor ou pelo defensor.
184
105
reconhecimento público de namoros curtos, muitas vezes sem a autorização familiar, não podia
ser o discurso de quem dominasse a lógica do teatro jurídico, isto é, as regras legais (os códigos
penal e civil e do processo penal) e os valores que precisariam ser defendidos durante o
julgamento para se obter um reconhecimento positivo por parte do juiz.
3. MULHERES ATIVAS
O quadro geral montado pelos depoimentos das ofendidas e testemunhas aponta, em sua
maior parte, para um monopólio masculino das iniciativas sexuais onde as mulheres seriam
sempre o elemento passivo, a “vítima” que “se perdeu”185.
Ao analisarmos os depoimentos das ofendidas, encontramos imagens que, ao menos
aparentemente, se confrontam. De um lado o namorado sedutor e carinhoso, atento em preparar a
parceira para o coito com carícias e toques estimuladores do desejo. De outro, o mesmo
namorado que, ao concretizar a penetração, o faz com fúria, “com extrema violência”, sem
cuidados que reduzissem a possibilidade de dor e favorecessem o prazer. As imagens não
combinam, a menos que as vejamos no interior de uma estratégia discursiva. A primeira imagem
corresponde à necessidade de acentuar-se a ação sedutora do namorado. É dele a iniciativa e a
ação criminosa; ele, com blandícias e juras, quebra a resistência moral - e através dela toda
resistência física - da vítima. As carícias fariam parte de todo o ardil sedutor, além de cumprir o
papel de facilitar o ato físico, a penetração. A segunda imagem decorre da necessidade que tem a
ofendida em relatar dor, sangramento, sofrimento e desconforto com o primeiro coito, com a
perda da virgindade física. Este não pode ser um momento de prazer e gozo para a mulher, mas
um momento de perda e toda perda é sofrida. A violência do namorado, até bem pouco carinhoso
e delicado, contribui para a construção do quatro traumático exigido para o momento. Não há
acordo, combinação, mútuo desejo e prazer. Ele se impõe, ele penetra, ele machuca, ele faz
sangrar, ele domina e é o único a satisfazer-se. Ela sente, sangra e se submete: por amor e
inexperiência.
185
Ver os processos de número 524/73; 6.727; 8.921; 10.569; 10.745; 10.793; 10.943; 11.096; 11.172; 11.177;
11.223; 11.413; 11.426; 11.430; 11.464; 11.486; 11.500; 11.622; 11.627; 11.651; 11.733; 11.924; 11.926; 11.927;
12.249; 12.250; 12.285.
106
Entretanto, no acompanhamento das tramas amorosas contidas nos processos,
encontramos ofendidas que “confessaram” terem agido no sentido de conquistar o acusado e, não
o tendo conseguido, fizeram a acusação por vingança ou como meio de afastá-lo de outro
relacionamento, assumindo, portanto, um papel ativo na determinação das relações amorosas.
Este papel não era condizente com as expectativas dos juristas quanto ao comportamento
amoroso de uma moça. Destarte, apesar de a maioria das ofendidas ter buscado apresentar o
acusado como o responsável mais direto pelo início do namoro e seus desdobramentos,
produzindo um confronto de acusações entre elas e os supostos sedutores, sobre as
responsabilidades de cada um nos acontecimentos, algumas reconheceram, ou nos permitiram
descobrir, ter partido delas a iniciativa.
Assim, encontramos ofendidas campistas que vivenciaram o amor e o sexo em conflito
com as normas morais apregoadas pelo judiciário186, dispensavam sondagens prévias sobre o
caráter e as intenções dos namorados e entregavam-se a “intimidades inadequadas”, à
“fornicação”187.
Foi, por exemplo, o caso de Rita Barbosa, ofendida, brasileira, branca, capixaba, com 16
anos de idade, do lar, sabendo ler e escrever que, depondo na delegacia no dia 15 de maio de
1972, disse:
que a depoente passou a namorar o acusado Leandro Silva no mês de janeiro
do ano em curso (...), desde o princípio deste namoro, seu namorado
freqüentava a casa da depoente, com o consentimento dos pais da ofendida;
que, desde o início do namoro seu namorado tinha intimidades com a
depoente, tais como pôr-lhe as mãos nos seus seios, chegando mesmo a
introduzir, em parte, o dedo em sua vagina, a fim de excitá-la; que, (...) seu
namorado passou a assediá-la, então pedindo para que ela, depoente, o
deixasse introduzir o membro viril em sua vagina, dizendo inclusive, que se
assim ela fizesse, ele, seu namorado, se casaria com ela, depoente; que,
apesar das promessas de casamento, a depoente ainda relutou um pouco,
porém, dada a insistência mais forte do seu namorado e, já gostando do
mesmo, e, acreditando que ele (...) fosse realmente cumprir a promessa feita,
para a depoente, de casamento, a depoente, aproveitando-se de um descuido
dos seus familiares, foi com
186
Como exemplo de processos em que os juízes condenaram, explicitamente, os comportamentos das ofendidas,
como inadequados, ver os processos de número 282; 10.155; 10.569; 10.981; 11.096; 11.138; 11.138;
11.172;11.177; 11.223; 11.260; 11.413; 11.430;11.464;11.500;11.622; 11.651;11.962;12.250.
187
Ver FOUCAULT, Michel. “O combate da castidade”. In: ÁRIES, Philippe e BÉJIN, André (orgs.). Sexualidades
Ocidentais. São Paulo: Brasiliense, 3ª ed., 1987, p. 29.
107
o seu namorado para o quintal da residência e, ali, encostada em um muro,
deixou-se desvirginar pelo seu namorado; (...)188. [grifo nosso]
Muitas delas mostravam “despudor”, ao copularem em vias públicas ou em terrenos
baldios. Um bom exemplo foi o de Clara dos Santos, brasileira, preta, fluminense, com 16 anos
de idade, estudante, que ao depor na delegacia no dia 10 de março de 1970, disse que há quatro
meses começara a namorar Luís Barreto, brasileiro, pardo, católico, fluminense, 20 anos de
idade, trabalhador rural, solteiro, alfabetizado, por insistência dele189. Desde o início, afirmou
Clara, Luís Barreto freqüentava a sua casa e manifestava o desejo de casar-se com ela. Tantas
foram as promessas de casamento, que Clara jura ter acreditado nelas. Então, certa noite,
(...) o acusado, sob juras de amor, passou a excitar a declarante, beijando-lhe
os lábios e esfregando-a com sofreguidão e, enquanto isso fazia, o acusado
conduzia, habilidosamente, a declarante para fora do portão, levando-a em
um local não distante, porém mais escuro; que, naquele local, sob juras de
amor e prometendo-lhe casamento, Luís Barreto acabou convencendo a
depoente a manter com ele relações sexuais; que, enquanto fazia tais
promessas, Luís Barreto, suspendeu a saia da declarante para poder tirar-lhe
a calcinha; que, em seguida, já estando Luís Barreto com o seu membro viril
à mostra, o mesmo insinuou-se por entre as coxas da declarante e, após
muita dificuldade, passou o mesmo a introduzir o seu membro na vagina da
declarante; que, ao ser penetrada e conseqüentemente desvirginada, a
declarante sentiu intensas dores na sua vagina; que, após a cópula a
declarante verificou que de sua vagina saía sangue (...).
(...) que a ofendida foi deflorada no dia 9 de novembro de 1969, à noite,
perto de sua residência; que o defloramento aconteceu de pé; que o acusado
foi quem tirou a calça da ofendida; que o acusado prometeu a ela que ia ficar
noivo para se casar, (...)190. [grifos nosso]
188
Processo n° 11.500, maços s/nº, folha 10.
O acusado Luís Barreto afirmou ter namorado a ofendida Clara dos Santos, somente por dois meses e negou ter
mantido contado sexual com ela. Processo nº 10.529, maço 568, folha 24. Na folha 34 há uma declaração assinada
por Clara dos Santos na qual ela afirma que não era virgem quando namorou com o acusado, que este nunca
manteve intimidades com ela e que o acusara por amor, pretendendo resgatar sua honra casando com o acusado, o
qual é um ótimo rapaz, honesto e trabalhador. O juiz considerando a declaração anexada ao processo e afirmando
não haver indícios de ser Clara inexperiente e muito menos ter razões para uma justificável confiança, absolveu Luís
Barreto.
190
Processo nº 10.529, maço 568, folhas 9, 32 e 33. Alguns outros processos em que a cópula deu-se na rua o no
mato: processos 10.793; 10.745; 10.569; 11.172; 11.426; 11.622; 11.413; 10.448; 11.098; 11.688 e 11.627.
189
108
Em outro caso, Geraldina Amparo, brasileira, parda, fluminense, com 15 anos de idade,
do lar, alfabetizada; depondo na delegacia no dia 11 de agosto de 1971, declarou que começou a
namorar Valdenir Silvério, brasileiro, pardo, católico, fluminense, solteiro, com 20 anos de
idade, trabalhador rural e analfabeto; quando ainda morava na localidade de Santa Rita, sendo
que o namorado era campeiro em uma fazenda vizinha. Após mudar-se para a favela onde mora,
ele continuou a visitá-la, sempre solicitando-lhe os favores sexuais, sendo então os seus pedidos
acompanhados das promessas de casamento. Disse que, no dia 28 de junho de 1971, foi à
fazenda em que trabalhava Valdenir e, frente aos pedidos e juras do namorado, já estando a
ofendida gostando bastante dele, combinou de encontrá-lo à noite no curral onde, então, ele
retirou-lhe a calça, possuindo-a, tendo sentido dores e percebido sangramento em sua vagina.
Disse que há um mês contou o acontecido à sua mãe que procurou Valdenir, mas este tem
“fugido do compromisso de reparar o mal praticado”.
Talvez possamos, com algum esforço, alcançarmos a dimensão romântica desse
encontro. O amor praticado sob a luz do luar, na discreta companhia de bois, vacas, cavalos e
éguas. Infelizmente, para Geraldina, que sequer compareceu em juízo, o magistrado não se
mostrou sensível a tão bucólica forma de amar e considerou-a “não merecedora da proteção
legal”, absolvendo Valdenir.
Claro está que, se efetivamente ocorreu a relação sexual, Geraldina não foi a mocinha
passiva ao agrado do judiciário. Ela foi ao encontro do namorado na “roça”, combinou com ele
dia, hora e local (e que local) para a cópula, tendo, portanto, no mínimo, co-participado da
iniciativa.
Além de Rita, Clara e Geraldina, outras ofendidas afirmaram ou deixaram transparecer
indícios de que não foram passivas, meras “vítimas” do sedutor, mas que manifestaram o
interesse amoroso ou, ao menos, compartilharam a iniciativa pelo namoro191.
191
Afirmar ter partido da ofendida a iniciativa pelo relacionamento amoroso e/ou sexual foi uma das táticas
utilizadas com mais freqüência pelos acusados. A acusação, feita pelo querelado e/ou por seu defensor, eqüivalia a
apontar a ofendida como “atirada”, “para frente”, “liberada”. Era a negação do recato que deveria caraterizar uma
“moça de bem”, de “boa família”, de “boa conduta”. Entretanto, o reconhecimento de que a ofendida tomou a
iniciativa ou, ao menos, compartilhou da iniciativa pelo namoro, não será suficiente para levá-la a uma condenação
moral e a absolvição do réu, desde que se conseguisse demonstrar que o seu comportamento cotidiano, mesmo não
sendo modelar, era moralmente compatível com o seu meio social. Desde que ela demonstrasse viver sob o controle
familiar e ser suficientemente moralizada para cumprir os papéis de esposa e mãe. Ver os processos 8.921 e 10.943.
109
Foi o caso da nossa conhecida Karina Sarmet Monteiro. Depondo na delegacia no dia
06 de outubro de 1966, Karina Sarmet Monteiro, disse viver desde maio do mesmo ano em
companhia da sua irmã, Sonja Sarmet Monteiro, em virtude do falecimento da sua mãe sendo
agora órfã de pai e mãe. Disse ainda que sua irmã é amasiada com o senhor Ernani Rosas.
Declarou que no dia 24 de abril de 1965, conheceu Neilson da Gama, ao assistir a uma partida de
futebol em um campo próximo a sua casa
logo que viu o acusado dele teve simpatia e manifestou o desejo de
namorá-lo; que o acusado também notou aquele interesse da depoente e
também manifestou desejo de conversar com a depoente, mas não chegaram
a conversar; que à noite, na mesma data, a depoente passeava ao redor de um
circo de touradas, próximo da sua casa, quando o acusado foi ao seu
encontro, tendo ambos conversando acerca de namoro (...), a depoente pediu
ao acusado que o namoro poderia continuar, mas no portão da sua casa,
pedido que foi aceito pelo acusado, que a acompanhou até o portão da casa
(...) dois dias depois, o acusado apareceu em seu portão, ali retornando às
terças, quintas, sábados e domingos, conversando com a depoente das
dezenove horas e trinta minutos até as vinte e duas horas, mais ou menos
(...)192. [grifo nosso]
Similar é o caso em que Catarina de Almeida Flores, queixosa, brasileira, branca,
fluminense, solteira, com 50 anos de idade, do lar, analfabeta, compareceu à delegacia de polícia
no dia 20 de maio de 1971, para representar contra Bernadino Pires, brasileiro, pardo, católico,
fluminense, com 30 anos de idade, casado, recepcionista, sabendo ler e escrever, por este ter
seduzido, raptado e deflorado sua filha menor Eva de Jesus Flores, brasileira, branca,
fluminense, com 17 anos de idade, solteira, e alfabetizada.
Eva de Jesus Flores, ofendida, depondo em juízo no dia 18 de março de 1974, disse que:
conheceu o acusado no dia 9 de maio de 1971 (...) no carnaval da páscoa, em
via pública; que isso se deu sem que houvesse qualquer apresentação, vindo
o conhecimento por simpatia mútua (...) a depoente passou a namorar o
acusado que (...) não freqüentou a sua residência, nem tão pouco os seus pais
deram consentimento para esse namoro; que o acusado
192
Processo nº 8.921, maço 524, folhas 10 a 12.
110
declarou para a ofendida que era casado, mas mesmo assim a depoente prosseguiu
com o namoro, porque gostava do acusado (...) a depoente, várias vezes, chamou o
acusado para fugir de casa, mas que o acusado sempre recusou, mas por fim, ante a
insistência o fato se deu; que no dia 17 de maio de 1971, a depoente conseguiu
vencer a resistência do acusado e embarcar em um táxi para casa de um irmão do
acusado (...), lá teve relações sexuais com o acusado, mas anteriormente já tivera
relações sexuais com outra pessoa; que acredita que quando manteve relações
sexuais com o acusado já não era mais virgem (...) que a depoente não quis voltar à
casa dos seus pais, porque eles a maltratavam muito, preferindo ficar com o
acusado, mas que só voltou para casa, porque o acusado foi preso e a ofendida foi
entregue aos seus pais pelo juiz; que o seu depoimento prestado perante a
autoridade policial, não corresponde a verdade. Às perguntas do promotor (...)
respondeu: que usa aliança na mão esquerda, mas não é casada e que atualmente
vive em companhia do acusado, isso desde os fatos; que não tem filhos com o
acusado; que o acusado é muito bom para a ofendida e dá toda assistência que
precisa. Às perguntas da defesa respondeu que o acusado nunca prometia
casamento à ofendida (...)193. [grifos nossos]
O comportamento ativo das moças podia se manifestar também numa atitude de
independência diante dos pais, na liberdade de locomoção sem controle de lugares e horas e na
vivência do lazer.
Nos casos que localizamos, o lazer dava-se, principalmente, em festas e bailes
realizados em clubes ou nas casas de parentes e conhecidos (Gráfico 10).
GRÁFICO 10
FREQÜÊNCIA A FESTAS E BAILES SEGUNDO RELATO DAS OFENDIDAS, EM %
5,7
Não freqüenta
3,8
41,5
7,5
Freqüenta*
Sem referência
Freqüenta com o namorado
15,1
Freqüenta com os pais
Freqüenta com amigas
26,4
*
Casos em que as ofendidas não especificaram se freqüentavam sós ou acompanhadas.
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
193
Processo nº 11.177, maço 570, folha 61.
111
Comentando as relações amorosas das moças e rapazes de Uberlândia nos anos 50,
Karla Bessa valoriza as mensagens românticas transmitidas pelo cinema, já que este aparece nos
processos que estudou como um dos locais de namoro mais freqüentado pelos casais, o que
tornava público o relacionamento194.
Nos processos que estudamos em Campos dos Goytacazes, o cinema aparece nos
pronunciamentos de alguns profissionais do judiciário (notadamente defensores) que o
responsabilizam, e à televisão, pela transmissão, aos jovens, de estímulos à sexualidade e aos
“novos costumes”, como a “liberalização das mulheres”. Porém, poucos acusados e ofendidas
disseram freqüentar os cinemas do município195. Para os jovens pobres de Campos, nos anos 60 e
70, não eram os cinemas e teatros os lugares mais acessíveis para os encontros amorosos. Em
apenas um caso a ofendida disse ter o namoro sido iniciado após uma sessão de cinema no
interior do município, onde comparecera com seus familiares196.
Várias moças, ofendidas e testemunhas, admitiram freqüentar festas, bailes e, em menor
escala, sessões de cinema. Nem sempre devidamente acompanhadas por seus responsáveis,
quando não gozando apenas da companhia dos namorados.
Apesar de ser, sob a ótica dos profissionais do judiciário, uma prática social
desabonadora, encontramos uma parte expressiva das moças não só freqüentando, com liberdade
e por iniciativa própria, as festas e bailes da sua localidade como não se eximiam de relatar o
fato.
Foi como agiu Milena de Jesus, brasileira, parda, fluminense, com 15 anos de idade, do
lar, alfabetizada. Ela acusou Deonísio Macedo, brasileiro, branco, católico, fluminense, com 20
anos de idade, solteiro, auxiliar de almoxarifado e alfabetizado, de havê-la seduzido e
desvirginado em 18 de janeiro de 1973.
Depondo em juízo no dia 05 de março de 1974, Milena de Jesus disse que conheceu o
denunciado um ano antes dos fatos narrados na denúncia e que antes dele,
194
BESSA, Karla Adriana Martins. Jogos da Sedução: práticas amorosas e práticas jurídicas. Uberlândia, 1950 a
1970. Dissertação de Mestrado, Campinas: UNICAMP, 1994, p. 49.
195
Em concernência ao cinema, 3,8% das ofendidas disseram freqüentar (sem especificar se sós ou acompanhadas);
1,9% disseram ir com amigas; 1,9% com os namorados; 1,9% com os pais; 56,6% disseram que não freqüentavam
sessões de cinema e 33,9% não fizeram referências a este fato.
196
Ver processo nº 9.529; maço 582. Neste caso, o réu foi condenado, evadiu-se e obteve a extinção da punibilidade
porque a ofendida casou-se com outro e não manifestou desejo de continuar com a ação.
112
quando tinha 13 anos, namorara vários outros rapazes. Disse ainda que quando namorou o
acusado, presente ao depoimento, tinha 15 anos e era virgem, e o acusado lhe prometera
casamento. Afirmou que Deonísio freqüentava a sua casa, mas que sua mãe e seu padrasto não
faziam gosto no namoro. Disse que o acusado, após tê-la desvirginado e com ela mantido
congressos sexuais por mais quatro vezes, deixou de procurá-la. Respondendo ao advogado da
defesa, afirmou que a sua mãe vive concubinada com Manolo Martins e nem foi casada com
Edvan Santos, seu pai. Contou Milena que freqüentava, desde os 14 anos, bailes noturnos em
Outeiro, onde namorou vários rapazes listando os nomes de cinco ex-namorados. Disse ainda
que os clubes onde os bailes eram realizados ficavam ‘um pouco distantes’ da sua casa e que no
caminho havia canaviais e que tais bailes começavam às 22h terminando às 5 horas. Afirmou
também que o acusado era noivo à época dos fatos, mas que teria desmanchado após o ocorrido.
Esclareceu que esteve trabalhando na cidade do Rio de Janeiro entre dezembro de 1972 e
fevereiro de 1973, mas lá não teve namorado. Terminou por dizer que o acusado goza de bom
conceito na localidade onde reside197.
Milena não se mostrou, aos olhos do juiz, uma “moça de boa conduta”198, não tinha
como, ou não quis, mostrar-se inexperiente e com razões para depositar justificável confiança na
suposta promessa de casamento que alegou. O resultado não poderia ser outro, ela foi condenada
moralmente e, Deonísio, absolvido, teve resgatada a sua honra de rapaz trabalhador, noivo sério
e respeitador199.
197
Processo nº 11.924, maço 562, folhas 24-25. A respeito da freqüência aos bailes, festas e cinemas, ver também os
processos 11.464; 11.731;11.138; 11.098; 11.926; 11.651; 11.733; 10.943; 10.937; 10.155; 282; 7.816; 7.795; 8.921
e 9.529.
198
Os termos mais comumente empregados pelos profissionais do judiciário eram: “moça de boa família”, “moças
de família”, “moça de bem”, “moça de boa ou má conduta”, “filha obediente ou desobediente”, “submissa ou
insubmissa”, de “boa moral”, de “moral duvidosa” ou “sem moral” e “corrompida”.
199
Deonísio Macedo, depondo na delegacia no dia 10 de abril de 1973, disse, apenas conhecer a ofendida por morar
próximo a casa da mesma, mas negou tê-la namorado e com ela mantido contatos sexuais conforme a acusação.
Segundo sua versão, e de várias testemunhas, Milena seria uma “jovem conhecida na localidade como uma garota
muito leviana eis que também freqüenta todo tipo de festa, geralmente só ou em companhias inidôneas (...) no fim
do ano de 1972, a mesma ausentou-se da localidade, indo, segundo consta, trabalhar no Estado da Guanabara, onde
ali permaneceu por cerca de trinta dias e, retornando à localidade, a mesma voltou muito modificada, muito ‘para
frente’ (...) vindo mais uma vez dizer que jamais manteve com a mesma relações sexuais (...)”. Processo nº 11.924,
maço 562, folha 13. [grifos nossos]. A expressão “muito ‘para frente’”, que aparece também em outros processos,
indica moça que estaria vivendo em desacordo com os “bons costumes”, que teria aderido aos “costumes modernos”
nas vestimentas (o uso do biquíni, por exemplo) e nas atitudes sendo “namoradeira” e, especialmente, sendo “livre”
isto é, sem submissão aos pais. Na folha 36 deste processo, há uma carta manuscrita e assinada por Milena na qual
ela pede a Deonísio que a perdoe por tê-lo acusado falsamente de havê-la seduzido, dizendo que assim agiu por
admirá-lo e não suportar vê-lo com a noiva, tendo sido a acusação o meio que encontrou para tentar separá-los.
113
Outros “pecados” também comprometeram as possibilidades legais das ofendidas.
Dentre eles a prática de relações sexuais “contrárias à natureza”, o coito anal. Sendo uma prática
sexual condenada pela moral cristã e jurídica, a sua admissão implicou, quase sempre, na
reprovação moral da ofendida e na absolvição do réu200. Diferentemente de 7,5% das ofendidas,
que disseram ter realizado o sexo nefário, nenhum dos acusados fez referência ao fato.
Clara, Karina, Eva, Milena e outras ofendidas manifestaram atitudes e valores que as
afastavam do “ideal” da moça casta, submissa, recatada e sem iniciativa sexual, a quem a lei,
segundo os juízes, visava proteger201 - elas não se conformaram no modelo ideológico que
tipifica o homem ativo e a mulher passiva - a adoção pelas mulheres de atitudes amorosas ativas
foi sempre recriminada nos pronunciamentos dos defensores, dos assistentes da defesa, dos
juízes e desembargadores. A reprovação da mulher reconhecida como sexualmente ativa ou
como não casta, geralmente favoreceu à defesa, contribuindo para a absolvição dos réus.
Entretanto, houve casos em que, apesar de terem assumido atitudes consideradas
impróprias pelo judiciário, as mulheres conseguiram um “final feliz” para as suas relações
amorosas.
Foi, por exemplo, o que aconteceu no processo número 132/70. Neste caso, segundo o
testemunho da ofendida, o seu pai se opunha ao casamento pelo fato do acusado estar
desempregado. Este caso contém uma dupla particularidade, é o único em que encontramos um
relacionamento sexual entre uma moça “branca” e um rapaz “preto” e, simultaneamente, um dos
poucos com “final feliz”. Mas vamos ao caso.
Nele, Marivalda Beneze, queixosa, brasileira, fluminense, casada, do lar, com 32 anos
de idade, analfabeta, compareceu à delegacia no dia 29 de abril de 1970, para representar contra
Antônio Barbosa, brasileiro, “preto”, católico, fluminense, com 21 anos de idade, solteiro,
servente, sabendo ler e escrever, acusando-o de, em
200
Apenas no processo nº 8.921 a confissão do coito anal não contribuiu para a absolvição plena do réu, que,
contudo, não foi condenado por sedução mas por corrupção de menores. Outros processos em que as ofendidas
disseram terem mantido coito anal com os acusados e foram recriminadas pelos juízes: 467/73; 11.172 e 11.223. no
processo número 10.943, uma testemunha da acusação afirmou ter mantido cópula anal com a ofendia antes de ela
ter sido supostamente desvirginado pelo acusado.
201
Ver, por exemplo, o processo de número 11.098, maço 579.
114
dezembro de 1969, haver seduzido e desvirginado sua filha, Rosângela Beneze, brasileira,
“branca”, fluminense, do lar, 16 anos de idade e alfabetizada202.
Depondo na delegacia no dia 29 de abril de 1970, Rosângela Beneze disse que:
(...) o indiciado com o pretexto de levar o pai da depoente a concordar com o
casamento, pois o indiciado estando desempregado e querendo casar, o
genitor da depoente não queria deixar que se casassem, convidou a depoente a
manter relações sexuais com ele (...) que a depoente não relutou por gostar do
indiciado e diante das promessas de casamento deste; que a depoente ainda
esperou pelo indiciado alguns meses, pois o desvirginamento deu-se em
dezembro, mas tendo o indiciado ido para a Guanabara para ver se encontrava
serviço, não se casando e só escrevendo cartas, tendo vindo a Campos apenas
uma vez; que a depoente não esperando mais, dado o desaparecimento do
acusado, resolveu dar queixa; que o fato deu-se (...) dentro da casa da depoente,
na sala (...) que a depoente sentiu muitas dores no momento da penetração (...)
notando após o coito que da sua vagina saía um pouco de sangue; que logo
depois de alguns dias a genitora de depoente notando que a regra da depoente
não veio e ficando desconfiada resolveu perguntar se havia acontecido alguma
coisa; que a depoente então disse que havia sido desvirginada pelo indiciado
(...)203.[grifo nosso]
Há uma carta de Antônio para Rosângela, datada de dezembro de 1969, na qual ele
jura amor e fala em ficar noivo quando viesse vê-la no carnaval. Outra carta (que
reproduzimos a baixo), é datada de 4 de janeiro de 1970.
Jacarepaguá, 4 de janeiro de 1970.
Saudações,
Em primeiro lugar, desejo encontrar todos com saúde e que a paz de Deus
esteja convosco.
Rosângela, mando dizer que vou bem, graças a Deus.
Rosângela, peço-lhe o favor de escrever para mim que eu já não agüento
mais de saudade.
Rosângela, estou muito preocupado com você, eu penso em seu pai
porque ele não compreende ninguém. Diga alguma coisa sobre aquele
nosso problema. Rosângela, eu ainda não fui aí porque não pude; é capaz
de você pensar que eu tenha esquecido de você. Quanto mais longe mais
amor, quanto mais longe mais saudade, e não há distância que me separe
de você. Rosângela, espero que esteja correspondendo comigo.
Rosângela, eu só vou aí no carnaval, se Deus quiser. Dê lembranças a
todos que por mim perguntar, principalmente a Elma. Diga a Elma que
estou com muita saudade (...).
202
Processo nº132/70, maço 562. Neste processo tanto os pais da “ofendida” como os do acusado eram formalmente
casados.
203
Id. Ibid., folha 6. Pelos depoimentos da ofendida ficamos sabendo que o namoro era autorizado, com Antônio
freqüentando a sua casa, e que a oposição do seu pai ao casamento devia-se, não a “cor” de Antônio, mas ao fato de
ele estar desempregado e não poder sustentar uma família.
115
Rosângela, dê lembranças a mamãe e diga a ela que estou bem.
Termino esta carta com muita saudade de todos.
Antônio Barbosa204.
As testemunhas da ofendida afirmam conhecê-la bem, disseram ser Rosângela “moça de
bom procedimento” e que só a viram namorando o acusado, a quem atribuem o seu
desvirginamento.
Antônio Barbosa, depondo na delegacia no dia 20 de junho de 1970, confessa, “de livre
e espontânea vontade”, haver desvirginado Rosângela Beneze, sua namorada, dizendo-se
disposto a casar-se com ela, não só por a ter desvirginado e estar a mesma esperando um filho
dele, mas por gostar muito dela, “achando-a digna de ser sua esposa”. Afirma que não se casou
ainda por ser muito pobre e estar sem condições de dar andamento nos papéis.
O delegado, em seu relatório, propôs o arquivamento do processo por considerar não ter
havido sedução mas conjunção carnal espontânea por parte da ofendida. O promotor, em
despacho datado de 5 de junho de 1974, diverge do delegado entendendo que os autos apontam
para um caso de sedução em que “a vontade da jovem é quebrada, captada pelo trabalho de
conquista do sedutor. Se houver relutância pela jovem e o rapaz a forçar o que acontece é
estupro”. Porém, o promotor pede que se ouça novamente a ofendida “sobre a sua vontade no
que concerne ao prosseguimento de sua representação contra o indiciado (...) em face do grande
tempo decorrido desde quando aconteceu a representação (...) mesmo porque, não sabemos qual
o atual estado civil da ofendida”205.
No dia 17 de julho de 1974, Rosângela, que agora assina Rosângela Beneze Barbosa,
voltou a depor na delegacia, conforme solicitara o promotor público, esclarecendo estar com 20
anos de idade, casada com Antônio Barbosa há mais de três anos tendo com ele três filhos e
estando a esperar o quarto. Afirmou não mais desejar manter a representação contra o acusado206.
204
Id. Ibid., folha 8.
Id. Ibid., folha 22.
206
Tendo alcançado o seu intuito, “a reparação do mal praticado”, Rosângela desinteressara-se pelo processo e nem
mesmo importou-se, nem ela nem Antônio, em dar baixa no mesmo. Certamente ambos consideraram que com o
casamento tudo já estava devidamente resolvido, e o judiciário concordou.
205
116
Frente à declaração de Rosângela de que estava casada com o acusado, o promotor
manifestou-se pelo arquivamento do processo no que foi acompanhado pelo juiz.
Para Rosângela e Antônio, a diferença de “cor” não impediu o desejo de uma vida
comum e, para vencerem a resistência do pai dela, pelo fato de Antônio estar desempregado e
não poder manter uma família, ela aceitou copular com ele. Talvez a coisa não tenha se passado
exatamente como nos contou Rosângela e os motivos para a cópula não tenham sido exatamente
os apresentados, mas isto pouco nos importa. O importante é percebermos que moças e rapazes
das camadas populares eram capazes de lutar e construir estratégias ardilosas para alcançar seus
intentos amorosos/sexuais. E, em alguns casos, obtiveram um “final feliz”207.
3.1 – As “Moças de Hoje em Dia”
A adoção de comportamentos ativos no estabelecimento das relações amorosas, sexuais
e familiares fez com que algumas ofendidas fossem classificadas, pelos profissionais do
judiciário, como mulheres ou moças “modernas”, “livres” ou “independentes”, eram as “moças
de hoje em dia”. Juízes e defensores apontaram a “modernização dos costumes e a
“independência da mulher” como explicações para a existência dos crimes de sedução208.
O reconhecimento (que não implicava em aceitação) de que as mulheres dos anos
sessenta e setenta mostravam-se mais livres e ativas, inclusive nas relações amorosas e sexuais,
será esgrimido, em alguns casos, pelos profissionais do judiciário (defensores, juízes,
procuradores e desembargadores), para negar a possibilidade de
207
Além do processo 132/70, ver também os de número 9.529; 10.155; 10.569; 10.793; 11.223; 11.457; 11.627;
11.927; 12.285 e 12.370. São casos em que ocorreu o casamento ou amasiamento da ofendida com o acusado ou
com outro homem. O casamento, mesmo que com outro que não o acusado era considerado pelo profissionais do
direito como um “final feliz”.
208
Processos em que, de forma explicita, algum profissional do judiciário, vinculou a análise do caso à
“modernização dos costumes” e dos “comportamentos femininos”: 9.529; 11.413; 11.464; 11.622; 11.651; 11.731;
11.842. Diferentemente do que foi concluído por Sueann Caulfield, em nossa pesquisa as referências à
“modernidade”, sempre apareceram com um sentido pejorativo, desabonador, talvez por que ao se referirem à
“modernização dos costumes”, os profissionais do judiciário o fizessem, quase sempre se dirigindo aos
comportamentos dos jovens em geral (rapazes e moças) ou, quando de forma mais específica, sempre às atitudes
femininas. Cf. CAULFIELD, Sueann. Op. cit., p. 182 e passim.
117
inexperiência por parte das ofendidas, que estariam influenciadas pela “modernização dos
costumes” e se portariam como “mulheres livres”, (ensejando inclusive apelos a mudanças na
legislação).
Em nossa pesquisa, pudemos detectar, na literatura do direito e, sobretudo nos
processos dos anos sessenta e setenta, o pleito por modificações na criminalização da sedução
em virtude, diziam os profissionais do judiciário, das transformações que ocorriam nos costumes
e que estavam levando a uma maior independência das mulheres, fazendo com que a moça dos
anos 60 e 70 não fosse mais “a donzela ingênua e tutelada” dos anos 30 e 40. As moças dos
“tempos modernos” (no caso as décadas de 60 e 70) transitavam livremente pelas ruas,
trabalhavam, estudavam, tinham acesso fácil a informações sobre sexo, recebiam estímulos à
sensualidade através dos cinemas com seus filmes eróticos, do rádio, das fotonovelas, das festas,
das danças etc. Ao contrário das moças de outrora, do momento em que o Código Penal de 1940
foi produzido, as “de hoje” (dos anos 60 e 70) não se submetiam ao controle, não se sujeitavam à
autoridade da família (leia-se, da mãe). Não eram moças que, aos 16, 17 e 18 anos fossem
sexualmente inexperientes (no sentido de desconhecedoras dos “mistérios do sexo” e seus
conseqüências). Eram, diziam alguns profissionais do judiciário, perfeitamente capazes de
defenderem a sua honra, se assim o desejassem.
A “modernização dos costumes” e a “independência da mulher” são os argumentos
culturais básicos a partir dos quais se reivindicava a revisão dos critérios de criminalização e
julgamento dos crimes sexuais. Nos anos 20 e 30 o próprio conceito foi alterado com a revisão
da noção de virgindade que passou a ser concebida mais em termos morais que físicos. Também
a idade limite foi alterada, passando, com o Código Penal de 1940, de 21 para 18 anos209.
Nos anos 60 e 70, questiona-se o “anacronismo” do crime de sedução210, visto ser
improvável a existência de moças inexperientes nos moldes das que existiriam
209
Id. Ibid., pp. 182-188.
O crime de sedução é definido pelo artigo 217 do Código Penal brasileiro como sendo o ato de “Seduzir mulher
virgem, menor de dezoito anos e maior de quatorze, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua
inexperiência ou justificável confiança”. Cf. Código Penal (Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940). São
Paulo: Saraiva, 33ª ed., 1995, p. 99. Os requisitos-objetivos para o reconhecimento do crime são: a virgindade
anterior da mulher, o limite de idade e a ocorrência da conjunção carnal; os requisitos-subjetivos são: a
inexperiência da mulher ou a justificável confiança na promessa de casamento. Cf. MEDEIROS, Darcy Campos de
e MOREIRA, Aroldo. Do Crime de Sedução. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1967, pp. 33 et. seq.
210
118
quando da elaboração do estatuto penal. É interessante observar que os profissionais do
judiciário dos anos 30 consideravam improcedente a manutenção do limite de idade de 21 anos
para o crime de defloramento porque as moças de então, com 18 anos, seriam plenamente cientes
dos “segredos do sexo”, não sendo tão controladas, vigiadas nem ingênuas como as que existiam
em fins do século XIX, quando da promulgação do Código Penal de 1890. Já os profissionais do
judiciário dos anos 60 e 70 eram saudosistas exatamente do recato, da ingenuidade e da
vigilância, que, segundo eles, caracterizavam as moças dos anos 20 e 30 e não mais existia,
tornando um contra-senso atribuir inexperiência sexual a moças com 16, 17 e 18 anos211.
Analisando certos pronunciamentos existentes nos processos, observamos que alguns
profissionais do judiciário mesclavam o desabono à “modernização dos costumes” expressa, por
exemplo, na precocidade com que os jovens estariam adquirindo conhecimentos sobre sexo, com
manifestações de discriminação sócio-econômica na avaliação das ofendidas. Mesmo que de
forma sutil, alguns profissionais do judiciário deixaram transluzir, de esguelha, um olhar
classista no julgamento das ofendidas212.
Vejamos alguns exemplos.
No processo em que Rosa Dutra, brasileira, branca, fluminense, do lar, com 15 anos de
idade, alfabetizada, denunciou Josué Nunes, brasileiro, branco, fluminense, com 21 anos de
idade, solteiro, trabalhador rural, sabendo ler e escrever, de havê-la seduzido e desvirginado. O
defensor do réu, na defesa que apresentou no dia 27 de junho de 1973, afirmou:
É inegável que uma jovem de 17 anos, vivendo num meio deletério e
presenciando licenciosidades, não pode ser equiparada a moça que viva
no recesso de um lar recatado. Em tais condições, justo é se admitir não
fosse inexperiente, capaz de deixar-se embair213. [grifo nosso]
211
Cf. os processos de número 9.529; 11.413; 11.464; 11.622; 11.651; 11.731; 11.842.
a respeito da necessidade do judiciário não produzir de si uma imagem explicitamente classista, ver
THOMPSON, Edward P. Senhores e Caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
213
Processo nº 11.464, maço 565, folha 65.
212
119
Em 18 de novembro de 1973, o desembargador responsável por relatar o recurso
impetrado pelo queixoso deu parecer contrário, confirmando a decisão do juiz da primeira
instância, que havia absolvido Josué, por considerar que Rosa não apresentava um
comportamento indicador de inexperiência, nem o namoro entre eles teria apresentado a
seriedade necessária para que ela desenvolvesse justificável confiança em Josué. Em seu parecer,
que foi unanimemente referendado pelo acórdão da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro, proferido em 10 de dezembro de 1973, o desembargador escreveu:
a inexperiência argüida pela acusação é incompatível, salvo raras exceções,
com a época atual, de franco predomínio entre a mocidade feminina de
tendência de alcançar a liberdade sexual observada geralmente pelos
homens, com a precoce e perfeita noção do que se relaciona com isso e suas
conseqüências, é aqui inadmissível214. [grifo nosso]
No processo em que Luiz da Conceição, brasileiro, branco, católico, fluminense, com
40 anos de idade, casado, ferroviário, sabendo ler e escrever, foi acusado de haver seduzido e
desvirginado a jovem Tatiana Barbosa Ribeiro, brasileira, preta, fluminense, empregada
doméstica, com 17 anos de idade e alfabetizada; fato que teria ocorrido em 24 de junho de 1971,
o defensor do réu além de buscar desqualificar Tatiana moralmente, inclusive dizendo que ela
viu no acusado uma possibilidade de apoio material, lançou ao juiz a seguinte questão:
Antes de terminarmos perguntamos:
Jovem de 17 anos pode ser seduzida? Jamais, apenas escolheu e viu no
acusado um amparo material e por isto, seduzida por outro, acusa o réu215.
[grifo nosso]
Na sentença, proferida em 30 de junho de 1973, o juiz argumenta que
214
215
Id. Ibid., folha 98.
Processo nº 11.260, maço s/nº, folha 36.
120
(...) a menor já tinha 17 anos de idade e trabalhava como doméstica,
tornando-se indispensável a perquirição pormenorizada de sua alegada
inexperiência (...)216. [grifo nosso]
Ter 17 anos e trabalhar de doméstica, tendo obviamente de transitar pelas ruas da
cidade, faziam de Tatiana moça suspeita de não ser inexperiente, praticamente liquidavam as
suas possibilidades de ser aplaudida no teatro forense. Dessa forma, discriminações de gênero
e de classe são articuladas nos pronunciamentos de alguns profissionais do judiciário.
Assim, nos anos 60 e 70, o limite de 18 anos estava sendo questionado a partir de
referenciais que podemos considerar, no mínimo, parecidos com os que animaram as críticas dos
profissionais do judiciário dos anos 20 e 30 ao Código Penal de 1890: “as modificações dos
costumes” e a “liberalização dos comportamentos femininos”. A imagem da mulher “ativa”,
“livre” e “independente”, continuava, aos olhos dos juízes dos anos 60 e 70, a ser uma imagem
negativa, ao menos para os profissionais do judiciário de Campos que julgaram os processos
estudados nesta pesquisa217.
4. HONESTIDADE E MORAL – OS OLHARES DAS TESTEMUNHAS
Na solução das demandas por sedução, papel importante era reservado às testemunhas.
Por tratar-se de um crime de difícil, se não impossível, comprovação “material” 218, o julgamento
da ação sempre termina por constituir-se numa avaliação dos comportamentos da ofendida, de
forma a conferir se ela possuiria hábitos e condutas capazes de caracterizá-la como moça
recatada, obediente aos pais e inexperiente. Procurava-se, através dos testemunhos, comprovar se
o namoro existia e se dava de
216
Id. Ibid., folha 37. Ver também os processos 6.727; 11.138; 10.448; 11.733; 11.731; 10.981; 11.651 e 11.413.
Cf. os processos de número: 282; 524/73; 10.155; 10.448; 10.569; 10.793; 10.943; 10.959; 10.981; 11.096;
11.098; 11.138; 11.172; 11.177; 11.223; 11.260; 11.413; 11.430; 11.464; 11.500; 11.622; 11.651; 11.731; 11.842;
11.926; 11.962; 12.249; 12.250..
218
Nem mesmo um atestado médico, o Laudo do Exame de Corpo de Delito: Conjunção Carnal, afirmando ser o
desvirginamento recente será suficiente para assegurar, de forma induvidosa, a ocorrência do crime de sedução.
217
121
forma tal que ela tivesse razões para crer na sinceridade das alegadas promessas de casamento,
de forma a configurar-se a justificável confiança.
A escolha das testemunhas, portanto, era de grande importância219. Observando a
composição sexual das testemunhas, percebemos que uma nítida divisão sexual aparece
conforme elas sejam da defesa ou da acusação. Os acusados recorreram majoritariamente a
outros homens, essencialmente aos amigos, para testemunharem em sua favor (Tabelas 24 e 25).
Possivelmente por saberem que outros homens estariam menos propensos a condená-los por
haver copulado ou mesmo desvirginado uma moça fora do casamento. Na seleção das
testemunhas dos acusados, as relações de parentesco e vizinhança tornam-se insignificantes em
relação às de amizade220.
Como a defesa moral do acusado assentar-se-á na valorização das suas qualidades como
“homem de bem”, “honesto”, “jovem trabalhador” e “benquisto em seu meio social”, os amigos,
particularmente os colegas de trabalho, serão as escolhas preferidas para traçarem o perfil ideal
para o acusado221.
Por sua vez, as ofendidas recorreram, predominantemente, a outras mulheres como
testemunhas, em que pese o fato da diferença entre os sexos, na escolhas das testemunhas, ter
sido bem menor entre as ofendidas. Talvez este fato se explique pelo equilíbrio existente entre
vizinhos(as) e amigas na composição das testemunhas selecionadas para a acusação (Tabelas 24
e 25)222.
Ninguém melhor que as amigas, que viviam o mesmo cotidiano e partilhavam as
intimidades, e os vizinhos que, muitas vezes, as conheciam “desde a mais tenra idade”, que
acompanharam o seu crescimento, seu convívio com a família, e os próprios hábitos familiares,
para darem testemunho do seu comportamento,
219
Processos em que as testemunhas desabonaram os comportamentos das ofendidas por elas serem,
“namoradeiras”, “desobedientes aos pais” “pra frente” ou “independentes”. Ver os processos: 467/73; 7.795; 8.921;
10.155; 10.448; 10.793; 10.943; 10.959; 10.981; 11.096; 11.138; 11.172; 11.177; 11.413; 11.464; 11.500; 11.622;
11.627; 11.713; 11.924; 11.926; 12.249
220
As testemunhas masculinas correspondem a 57,1% do total das testemunhas.
221
Ver os processos: 6.727; 7.795; 8.921; 9.529; 10.448; 10.745; 10.793; 10.803; 10.937; 10.943; 10.959; 10.981;
11.098; 11.138; 11.172; 11.413; 11.426; 11.43; 11.464; 11.486; 11.487; 11.500; 11.622; 11.651; 11.713; 11.716;
11.731; 11.733; 11.842; 11.924; 11.926; 12.249.
222
As testemunhas femininas representam 42,9% do total das testemunhas.
122
comprovarem a existência do namoro e valorizarem suas qualidades morais de filhas obedientes
e moças recatadas223.
TABELA 24
Sexo e Percentual
Personagens
Acusados*
Ofendidas**
Masculino
92,3
38,9
SEXO DAS TESTEMUNHAS, EM %
Subtotal Por Sexo***
Feminino
7,7
61,1
Total
100
100
Masculino
57,1
Feminino
42,9
Total
100
* Percentuais relativos ao total das testemunhas dos acusados (65).
** Percentuais relativos ao total das testemunhas das ofendidas (126).
*** Percentuais relativos ao total das testemunhas (191).
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
TABELA 25
RELAÇÕES DAS TESTEMUNHAS COM OS ACUSADOS E COM AS OFENDIDAS, EM %
Relações
Com os acusados* Com as ofendidas**
Amigo(a)
78,6
43,7
Vizinho(a)
9,2
42,9
Outro parentesco
4,6
4,7
Outras
4,6
1,5
Irmão(ã)
1,5
2,4
Ex-amásia
1,5
0
Pai
0
2,4
Mãe
0
2,4
Total
100
100
*Percentuais relativos ao total das testemunhas dos acusados (65).
** Percentuais relativos ao total das testemunhas das ofendidas (126).
Fonte: 53 processos pesquisados em Campos dos Goytacazes.
As testemunhas da ofendida, via de regra, depuseram de maneira a favorecê-la dizendo
serem sabedoras do namoro224 e do desvirginamento225, falaram bem da ofendida226 enfatizando a
sua boa conduta ou bom procedimento227 e submissão aos
223
Processos em que as testemunhas classificaram as ofendidas como moças recatadas: 524/73; 282; 6.727; 8.921;
9.529; 10.529; 10.745; 10.959; 11.457; 11.716; 12.250.
224
Ver os processos 132/70; 524/73; 282; 6.727; 7.816; 8.921; 9.529; 10.155; 10.448; 10.529; 10.569; 10.745;
10.803; 10.937; 10.943; 10.959; 10.981; 11.096; 11.098; 11.138; 11.172; 11.177; 11.223; 11.260; 11.413; 11.426;
11.430; 11.486; 11.622; 11.627; 11.651; 11.688; 11.731; 11.924; 11.926; 12.250; 12.285; 12.365; 12.370; 12.638.
225
Ver os processos 132/70; 467/73; 524/73; 282; 6.727; 7.816; 8.921; 9.529; 10.155; 10.448; 10.529; 10.569;
10.745; 10.803; 10.937; 10.943; 10.959; 10.981; 11.096; 11.098; 11.138; 11.177; 11.223; 11.260; 11.413; 11.426;
11.457; 11.622; 11.651; 11.688; 11.731; 11.733; 11.842; 11.924; 12.285; 12.365; 12.370; 12.638.
226
Ver os processos 132/70; 467/73; 524/73; 282; 6.727; 7.816; 8.921; 9.529; 10.155; 10.448; 10.529; 10.569;
10.745; 10.803; 10.937; 10.943; 10.959; 10.981; 11.096; 11.098; 11.138; 11.172; 11.177; 11.223; 11.260; 11.413;
11.426; 11.430; 11.457; 11.464; 11.486; 11.500; 11.622; 11.627; 11.651; 11.688; 11.716; 11.731; 11.733; 11.842;
11.924; 11.926; 11.927; 12.250; 12.285; 12.365; 12.370; 12.638.
227
Ver os processos 132/70; 282; 467/73; 524/73; 6.727; 7.816; 8.921; 9.529; 10.155; 10.448; 10.529; 10.569;
10.745; 10.803; 10.937; 10.943; 10.959; 11.096; 11.098; 11.138; 11.177; 11.223; 11.457;11.464; 11.622; 11.716;
11.731; 11.924; 12.250; 12.285; 12.365; 12.370; 12.638.
123
pais228. Afirmaram ter sido o acusado o único namorado da ofendida229 e estarem surpresas diante
do fato. Muitas vezes, disseram-se convictas quanto à responsabilidade do réu no
desvirginamento.
Depondo na delegacia no dia 12 de janeiro de 1970, a testemunha da acusação, Úrsula
Castro, brasileira, fluminense, como 41 anos de idade, viúva, do lar e alfabetizada, afirmou que:
Conhece a ofendida (...) desde quando a mesma era ainda de tenra idade,
afiançando ser esta menor de conduta irrepreensível, muito estimada por
todos (...) mercê de suas boas qualidades; que, pode afirmar, há uns cinco
meses a aludida ofendida iniciou namoro com o indiciado (...), o qual
freqüentava a casa dela, assiduamente, que, (...) ficou sabendo que Suelen
havia sido seduzida e desvirginada pelo referido indiciado, imputação esta
que é aceita por todos (...)230.
A outra testemunha da acusação, Andreia Ferreira Marins, brasileira, fluminense, com
48 anos de idade, solteira, do lar e analfabeta; depondo no mesmo dia afirmou que:
Há seis anos conhece a ofendida (...) podendo afirmar ser a mesma, menor
de procedimento exemplar, jamais tendo tido conhecimento de algo que
pudesse desabonar o seu conceito (...) que Suelen iniciou namoro como o
indiciado (...) o qual, inclusive, freqüentava a casa dela; que, (...) a
declarante ficou sabendo, pela própria ofendida, que ela havia sido
desvirginada pelo aludido indiciado; que, acredita nessa imputação (...)
mesmo porque há dias ele, indiciado, retirou Suelen (...) de casa, estando
ambos morando em comum (...)231.
Na sentença que proferiu no dia 03 de agosto de 1972, o juiz afirmou:
228
Ver os processos 524/73; 282; 6.727; 7.816; 8.921; 9.529; 10.155; 10.448; 10.529; 10.569; 10.745; 10.803;
10.937; 10.959; 11.098; 11.172; 11.177; 11.223; 11.260; 11.413; 11.457; 11.464; 11.500; 11.627; 11.688; 11.733;
11.924; 11.926; 12.250; 12.285; 12.365; 12.370; 12.638.
229
Ver os processos 132/70; 7.816; 8.921; 9.529; 10.803; 11.096; 11.177; 11.223; 11.413; 11.716; 12.285; 12.365;
12.370; 12.638.
230
Processo nº 10.745, maço 574, folha 13.
231
Id. Ibid., folha 14.
124
(...) Todas a testemunhas inquiridas no feito atestaram a boa conduta da ofendida,
dizendo ser ela moça recatada e namorara apenas o réu durante o período em que
afirma ela ter sido deflorada.
Mesmo as testemunhas ditas da defesa, dizem saber do namoro, visitar o réu a
ofendida em sua residência e nunca terem ouvido falar nada contra o procedimento
da menor.
O réu confessou na Polícia (...) ter mantido relações sexuais com sua namorada,
dando a costumeira desculpa de não a ter encontrado virgem (...)Não tem este Juízo
dúvidas de que foi o réu o sedutor da ofendida, moça recatada a que ele namorava.
Ressalte-se que logo após recebeu o acusado a ofendida em sua casa, passando com
ela conviver maritalmente, o que não sucederia se não fosse ela moça honesta (...)
de reputação duvidosa (...)232. [grifos nossos]
Observando a Tabela 26 percebemos que dentre os comentários voltados à valorização
moral da ofendida, grande ênfase era dada aos que a classificavam como filha obediente, sujeita
à autoridade paterna.
Os termos, “filha obediente”, “sujeita aos pais”, “moça presa”, “de bom comportamento
ou boa conduta” e “moça recatada”, aparecem nos processos com a mesma significação que a
expressão “moça de família”, segundo Carla Bassanezi, era empregada, nos anos 50, nas revistas
e seções de revistas destinadas às jovens da classe média.
As moças de família eram as que se portavam corretamente, de modo a não
ficarem mal faladas. Tinham gestos contidos, respeitavam aos pais,
preparavam-se adequadamente para o casamento, conservavam sua
inocência sexual e não se deixavam levar por intimidades físicas com os
rapazes (...)233.
Outra referência importante era a de que ela (a ofendida) só namorara o acusado, ao
menos, enquanto com ele mantinha o romance234. A questão da lealdade, da fidelidade, mostra-se
fundamental. Lealdade aos pais, lealdade ao namorado, ao noivo e ao marido. Emana dos
processos a imagem de que, para as testemunhas, em termos
232
Id. Ibid., folhas 56-57. Evidencia-se que o fundamental era o julgamento moral da ofendida, o julgamento das
suas atitudes cotidianas. A medida que Suelen e suas testemunhas convenceram o juiz de que ela era “moça
recatada” e o réu não conseguiu desqualificá-la, o juiz desconsiderou o fato de ela ter namorado o réu contra a
vontade do pai e ter fugido passando alguns dias na companhia do réu, destacando na sentença que ela assim agiu
por ter razões para confiar nas promessas de casamento, supostamente, feitas pelo réu. A expectativa crível do
casamento justificaria o passo em falso e não conspurcaria a honestidade de Suelen.
233
BASSANEZI, Carla. Op. cit., p. 610.
234
Ver os processos: 132/70; 7.816; 8.921; 9.529; 10.803; 11.096; 11.177; 11.223; 11.413; 11.716; 12.285; 12.365;
12.370; 12.638.
125
ideais, uma moça de família seria recatada, obediente e fiel. Estas seriam as qualidades
essenciais a uma moça que pretendesse uma união matrimonial e um reconhecimento público de
mulher honesta.
Se, entre os profissionais do judiciário de Campos, nos anos 60 e 70, a representação
dicotomizada da mulher era feita pela contraposição de termos como “moça recatada”, “moça de
família”, “filha obediente”, versus “moça moderna”, “moças de hoje em dia”, “filha insubmissa”,
“mulher livre” e “mulher independente”, entre as testemunhas, alguns termos eram os mesmos,
outros não. Nos depoimentos das testemunhas, encontramos como termos expressivos de atitudes
femininas opostas, expressões como: “moça recatada”, “boa filha”, “filha obediente”, “moça
benquista”, “moça de bom procedimento”, “moça presa”, “moça de bons princípios”, “moça de
família”, “boa moça”, “moça séria”, versus “moça de comportamento avançado”, “moça
largada”, “mulher falada”, “moça de embalo”, “namoradeira”, “moça que anda com um e com
outro”, “moça de má conduta”, “moça de mau procedimento”, entre outros.
As testemunhas, assim como os acusados e queixosos(as), não empregavam em seus
depoimentos expressões como “modernização dos costumes” e “mulher independente”, que eram
da lavra dos profissionais do judiciário. As diferenças contudo não se resumiam aos termos,
eram de significação. Nos pronunciamentos dos profissionais do judiciário, os termos que
qualificavam as mulheres adquiriam uma rigidez maior.
126
TABELA 26
COMENTÁRIOS POSITIVOS DAS TESTEMUNHAS DA ACUSAÇÃO SOBRE AS OFENDIDAS, EM %*
Comentários
Percentual**
Testemunhas falam bem da ofendida
90,6
Ela é moça de família (recatada ) criada pelos pais e obediente
Testemunhas dizem saber do namoro
88,7
75,5
Testemunhas dizem saber do desvirginamento
Ela tem bom procedimento
71,7
50,9
O acusado freqüentava a casa da ofendida
Ela namorava com o consentimento dos pais
34
30,2
Testemunhas não sabem de nada que desabone a conduta da ofendida
O acusado foi o único namorado da ofendida
30,2
26,4
Ela só saía com os pais
Ouviu comentários sobre o desvirginamento
24,5
18,9
Ela é moça benquista
Ela não freqüenta festas nem bailes
17
11,3
Vizinhos comentam que foi o acusado
Ouviu do acusado que ele prometeu casamento
7,5
3,8
* Estes são apenas alguns dos comentários positivos ditos pelas testemunhas da acusação a respeito das ofendidas.
** Os percentuais são relativos ao total de processos (53), e não ao total das testemunhas da acusação (126).
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
Percebe-se claramente a necessidade de se caracterizar a ofendida como “boa filha”,
“moça de bom procedimento” e “moça recatada”. Mas é possível que tais caracterizações não se
reduzissem a uma estratégia discursiva das testemunhas, sendo, também, valores, padrões de
comportamentos, que as testemunhas desejassem ver seguidos pelos(as) jovens.
Encontramos também testemunhas da acusação, que, ao deporem, fizeram comentários
que comprometeram, frente ao juiz, a representação da ofendida como “moça recatada”,
inexperiente ou que tivesse motivos para depositar justificável confiança no réu. Aqui
encontramos desde aquelas testemunhas que, pensando estarem ajudando a justificar e legitimar
certas atitudes da ofendida, acabaram por comprometê-la, até aquelas que, disseram não poder
“mentir” para ocultar hábitos e práticas da ofendida de forma a representá-la positivamente
perante a autoridade policial ou judiciária235.
235
Ver os processos 467/73; 7.795; 8.921; 10.155; 10.448; 10.793; 10.943; 10.959; 10.981; 11.096; 11.138; 11.172;
11.177; 11.413; 11.464; 11.500; 11.622; 11.627; 11.713; 11.924; 11.926; 12.249.
127
Eliézio Fernandes, brasileiro, fluminense, viúvo, ferroviário, analfabeto e testemunha da
acusação, depondo em juízo no dia 01 de fevereiro de 1974, declarou conhecer o acusado e a
ofendida ‘desde garotos’, tendo-os como “boas pessoas”, e mais,
(...) que nunca viu o acusado namorando a ofendida; que, nem mesmo, (...)
soube do namoro entre o acusado presente e a ofendida (...) nunca viu o
acusado presente na residência da ofendida; que (...) é vizinho da ofendida
(...) que o depoente nunca viu a ofendida namorar qualquer rapaz (...) nunca
ouviu qualquer fato desabonador à moral da ofendida; (...) que a ofendida
esteve na cidade do Rio de Janeiro (...) que em Outeiro há dois salões de
bailes; que é comum a ida de moças da localidade de Taquaruçu a Outeiro,
para participarem de bailes; que tais bailes se iniciam às 22 horas,
terminando por volta de 4 horas do dia seguinte, que o depoente, por
diversas vezes, viu a ofendida em tais bailes; que (...) já teve a oportunidade
de ver a ofendida acompanhada de dois ou três rapazes nos bailes (...)236.
[grifos nossos]
Tratando-se de uma testemunha da acusação, podemos supor que Eliézio não quis,
deliberadamente, prejudicar a nossa conhecida Milena de Jesus. Em verdade, parece-nos que
Eliézio procurou justificar os hábitos noturnos de Milena, ao apontar como comum a ida de
moças da localidade de Taquaruçu, onde residiam, aos bailes de sábado em Outeiro. Talvez,
também, por não recriminar a conduta de Milena e não considerá-la desabonadora da sua
moral, já que dentro dos padrões da sociabilidade local. Mas, ao confirmar que ela ia,
desacompanhada dos pais e por entre canaviais a bailes que se iniciavam às 22 e terminavam
às 4 horas, e que nestes bailes já a vira acompanhada de dois ou três rapazes, Eliézio
comprometeu qualquer possibilidade de Milena ser reconhecida como “recatada”, “moça de
família” e de “boa conduta”. Apesar de ser testemunha da acusação, o seu depoimento foi de
grande valia para a defesa do réu.
Em outra ação, a testemunha da querelante, Eugênio Cintra, brasileiro, fluminense,
viúvo, funcionário público municipal, com 45 anos de idade e alfabetizado; depondo em juízo no
dia 03 de julho de 1973, muda a linha do depoimento prestado na delegacia afirmando que, ao
depor, o fizera a favor da vítima por achar, à época, que ela merecia,
236
Processo nº 11.924, maço 562, folha 26.
128
(...) mas depois disso, só pode depor contra ela, dado o procedimento que ela
vem tendo (...) que o depoente acha que a ofendida não tem condições de
ser uma chefe de família; que diz isso em razão do ambiente que a ofendida
freqüenta, o Kazarão, BR 3, etc.; que essas casas são de tolerância; que o
depoente já viu a vítima com um amante (...) até a época em que o depoente
prestou depoimento na delegacia de polícia, a ofendida tinha boa conduta,
pois depois de uns quinze dias que ela começou a decair (...)237. [grifo nosso]
O principal papel de uma testemunha da acusação era contribuir para que o juiz traçasse
um perfil moral positivo da ofendida. Neste sentido, o depoimento de Eugênio foi um desastre
para as pretensões de Marília Guimarães, a ofendida.
Se a perda da virgindade fora do casamento, não eqüivalia a uma inexorável queda na
prostituição, e as ofendidas não eram, necessariamente, mulheres prostituídas, a acusação de
Eugênio de que Marília dera a freqüentar “casas de tolerância”, era gravemente desabonadora da
sua conduta, negação de qualquer recato ou predicado moral, ainda mais porque partia de alguém
insuspeito, uma testemunha escolhida e trazida ao processo pela própria ofendida.
Processo similar ocorreu com os acusados, as testemunhas deles depuseram quase
sempre no sentido de dar caução às táticas defensivas. Tais táticas, via de regra, consistiram em
redargüir e menoscabar a moral e os comportamentos das ofendidas, a exemplo dos depoimentos
que se seguem.
Claudiney do Amaral, testemunha da defesa, brasileiro, casado, comerciante, com 28
anos de idade, sabendo ler e escrever, depondo em juízo no dia 13 de março de 1973, disse que:
conhece o acusado há uns dois anos sabendo que ele trabalha na CELF; que
passou a conhecer a ofendida quando esta fazia compras no Mercado
Municipal, onde trabalha o depoente. Às perguntas da defesa respondeu: que
o depoente, por volta de 1971, teve ocasião de manter relações sexuais com
a ofendida, por mais de uma vez, tendo ela lhe dito que havia se perdido
com um outro homem; que isto ocorreu no meado para o final de 1971; que
ficou uns dois meses com a ofendida; que foi o depoente quem procurou se
esquivar dela (...)238. [grifo nosso]
237
Processo nº 11.622, maço 570, folha 38.
Processo nº 11.413, maço 565, folha 34. Ver também os processos 6.727; 7.795; 8.921; 10.448; 10.529; 10.745;
10.793; 10.943; 10.959; 11.098; 11.138; 11.464; 11.651; 11.731; 11.924; 12.249; 12.250.
238
129
No mesmo processo, Gileno Ferreira Borges, testemunha da defesa, brasileiro, solteiro,
balconista, com 23 anos de idade, sabendo assinar, disse que:
(...) que conheceu a ofendida certa noite na rua 7 de Setembro (...) que
procurou se aproximar dela, que, a princípio, fingiu não querer nada, mas
acabou concordando em que conversassem perto de um portão de uma casa,
onde disse trabalhar; (...) o depoente passou a mão nela e notou que estava
sem a peça de baixo e então a convidou para ir a um Jardim próximo; (...) lá
indo acabaram mantendo relações sexuais em pé mesmo, notando o
depoente que ela não era mais moça; (...) depois desta noite ainda continuou
mantendo relações sexuais com a ofendida por umas duas semanas, até que o
depoente foi trabalhar no Rio (...) isto ocorreu no começo de 1972 (...)239.
[grifo nosso]
O juiz, ao sentenciar argumentou:
Reza a denúncia que o réu teria seduzido a ofendida.
O acusado sempre negou a prática do crime que lhe foi imputado, muito
embora admitisse a prática de relação sexual, afirmando não ser virgem a
pretensa ofendida.
A testemunha Juliano Freitas D’Ouriol (...) disse e repetiu que ouviu quando
a ofendida dizia para a própria mãe que não tinha sido o réu o autor do seu
defloramento, mas, sim, outro rapaz. Afirmou ainda ter encontrado
facilidade demais por parte da ofendida em um baile que houve em casa do
tio dela.
Claudiney do Amaral (...) afirmou textualmente ter mantido relação sexual
com a menor, por mais de uma vez, no final de 1971, tendo ela lhe afirmado
haver se perdido com um outro homem.
Gileno Ferreira Borges (...) também declarou ter mantido relação sexual com
a ofendida, que não era mais virgem, isto no começo de 1972.
A Promotoria Pública entende que ditas testemunhas não merecem fé, não
sabendo por que se faz dita alegação, uma vez que não foram elas
contraditas nem se comprovou nenhum motivo para que não se desse crédito
a seus depoimentos.
Não há razão para se acreditar exclusivamente nas testemunhas arroladas na
denúncia e se desprezar as de defesa, apenas porque o são240. [grifos nossos]
As testemunhas da defesa haviam cumprido a sua missão. Conseguiram fomentar no
juiz uma imagem desqualificadora da ofendida e foi com base nessa representação que ele
formou seu juízo de valor sobre ela e definiu a sentença absolutória.
239
240
Id. Ibid., folha 35.
Id. Ibid., folhas 42 a 44. Ver também os processos 10.943; 10.155; 10.959; 11.096; 11.464; 11.500.
130
Para entendermos bem a importância das testemunhas nesse tipo de processo é preciso
termos em conta que, assim como não estudamos o fato - em nosso caso, a sedução e o
desvirginamento - mas a sua denúncia, os seus relatos e conseqüências; o julgamento que os
juízes fazem não é, efetivamente, o julgamento do fato - ao qual não se pode mais voltar - o que
se julga são as imagens produzidas pelas narrativas a respeito do fato. A conclusão a que se
chega a partir das diversas narrativas - e dos outros procedimentos analíticos - constitui-se na
“verdade jurídica”, a sentença, que pode ou não ser coincidente com a “verdade real”, isto é, com
o fato. Mas esta coincidência não é imprescindível à produção da “verdade jurídica” - apesar de
ela ser apregoada como o fim último da ação judiciária - pois a sentença, em última instância,
será formulada tão somente pelo julgamento das narrativas e pela aplicação dos elementos
estruturantes da dinâmica jurídica, isto é, os diversos códigos e normas que organizam o poder
judiciário e sua práxis241.
As testemunhas, portanto, tinham papel chave na construção, perante as autoridades
policiais e judiciárias, das imagens positivas e negativas das ofendidas e acusados. Imagens a
partir das quais os juízes proferiram as suas sentenças. Mas não se esgotava aí a participação das
testemunhas, ao menos para o historiador. As testemunhas, ao deporem, revelavam de forma
mais ou menos fragmentária aspectos do cotidiano dos envolvidos, além de valores do grupo
social ou comunidade em que estavam inseridas.
5. OS PAIS, AS MÃES E OS PAPÉIS DE GÊNERO
Ó mãe, me pega me ensina
me diz como é feminina...
Joice
Um processo por sedução tinha seu início com a apresentação da queixa na delegacia,
sendo que o(a) queixoso(a) deveria ser pessoa legalmente responsável pela menor ofendida,
preferencialmente o pai ou, na ausência deste, a mãe242. A condição de pessoa responsável pela
241
A respeito dessa relação entre o fato e nossa condição de só podermos lidar com as suas conseqüências, ver
CORRÊA, Mariza. Morte em Família: Representações Jurídicas de Papéis Sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
242
Na pesquisa da Martha Abreu, 10,3% das queixas foram apresentadas pelas próprias ofendidas; 9,1%, pelos pais;
42%, pelas mães; 20,4%, por parentes reais ou fictícios; 11,4%, por patrões e 6,8%, pela polícia. No estudo da
Cristina Donza temos que 51% das queixas foram apresentadas pelas mães; 16%, pelos pais; 12%, por tutores; 9%,
por parentes; 4%, pelas próprias ofendidas; 1%, pela polícia e 7% não tem registro. Nos casos que estudamos em
Campos dos Goytacazes, não localizamos nenhum em que a própria ofendida tenha tido a iniciativa de apresentar a
queixa (o que não seria legalmente possível em virtude da sua menoridade), não localizamos a figura do “parente
131
ofendida, que por ser menor de idade não podia tomar a iniciativa da queixa, deveria ser
comprovada pela apresentação do Registro Civil de Nascimento da ofendida.
Sendo uma ação privada, pois atingia a honra do indivíduo, a autoridade policial não
poderia tomar a iniciativa do processo. O ministério público somente ofereceria a denúncia,
tornando a ação pública, mediante a comprovação, através do Atestado de Miserabilidade, da
incapacidade econômica do(a) queixoso(a) em proceder a contratação de advogado para
representá-lo(a) numa ação privada.
Assim, o primeiro quesito para a apresentação da queixa exigia a identificação do tipo
de laço que unia o(a) queixoso(a) à ofendida, do qual pudemos ter conhecimento através dos
Termos de Representação e dos Termos de Ratificação de Queixa. Procedimentos burocráticos
que nos permitiram conhecer, quantitativamente, a figura do(a) queixoso(a) e aventurar algumas
reflexões a seu respeito.
Da mesma forma que nos processos estudados por Martha Abreu e Cristina Donza243,
também em Campos, nos anos sessenta e setenta do século XX, foi sobre as mães que recaiu, na
maior parte das vezes, a responsabilidade de ir à delegacia apresentar a queixa contra o suposto
sedutor, mesmo quando ela era formalmente casada ou vivia com o pai da ofendida. De acordo
com a legislação, seria do pai o atributo legal de representar a família na qualidade de seu
chefe244. É o que demonstra a Tabela 27.
fictício” nem tutores (o que localizamos foram casos em que os acusados eram menores, 22,6%, e compareceram à
delegacia sem a presença de um responsável legal; nestes casos, foram nomeados, na própria delegacia, curadores
para acompanharem e assinarem os depoimentos). Também não localizamos referências aos processos nos jornais
campistas do período. Cf. ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 162. Ver também CANCELA, Cristina Donza.
Op. cit., p. 62. Deve-se ter em conta que o fato de as ofendidas não poderem legalmente apresentar a queixa, não as
impedia de induzir os pais a fazê-lo.
243
Cf. ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., pp. 160-163. Ver CANCELA Cristina Donza. Op. cit., p 62.
244
A chefia da família pelo marido era legalmente reconhecida pelo Código Civil. Apesar de obrigar, a partir do
Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121 de 27/8/1962), a que a esposa contribuísse para a manutenção da família,
“com os rendimentos de seus bens, na proporção de seu valor, relativamente aos do marido” (art. 277), o Código
Civil em seu artigo 233, ainda definia como sendo uma das obrigações do marido: “Prover a manutenção da família
(...) ao mesmo tempo que o mantém na chefia ‘da sociedade conjugal’ que deverá ser exercida com a colaboração da
mulher”. Cf. NEGRÃO, Theotonio (org.). Código Civil e Legislação Civil em Vigor. São Paulo: Saraiva, 15ª, [1ª
ed., 1980], 1996, pp. 80-89. Ver também, WALD, Arnoldo. Direito de Família. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 7ª ed., revista, ampliada e atualizada, 1990, p. 48.
132
TABELA 27
RELAÇÃO DE PARENTESCO ENTRE O(A) QUEIXOSO(A) E A OFENDIDA, EM %
Parentesco
%
Mãe
58,5
Pai
39,6
Irmã
1,9
Total
100
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
Quanto às concernências “amorosas” das suas filhas, a maioria dos(as) queixosos(as)
afirmou ter conhecimento e aprovar o namoro (Tabela 28). A maioria também declarou ter
tomado conhecimento do desvirginamento através da própria ofendida (Tabela 29)245. Não temos
como saber, através dos processos, o quanto desses depoimentos foram mentiras contadas com o
intuito de apresentar as “ofendidas” como moças recatadas, que só namoravam com a
autorização dos pais e que, caídas em sedução, se arrependiam e tudo revelavam às famílias. Pela
análise dos processos, pudemos perceber que o fato dos pais terem ciência dos namoros das suas
filhas não implicava no exercício sobre elas de uma vigilância cerrada, ao menos, não nos
moldes do namoro moralizado defendido pelos juristas246.
245
Esta é uma situação bem diferente da relatada por Cristina Donza. Segundo a antropóloga paraense, em Belém, o
conhecimento do relacionamento amoroso e sexual pelos parentes, só se dava quando: ocorria gravidez, os pais
recebiam bilhetes ou cartas anônimas denunciando, liam nos jornais sobre o defloramento, a mãe deparava-se com a
falta da filha na cama de madrugada. As menores, na maior parte das vezes, só relatavam o envolvimento com o
acusado quando ele fugia ou se descobriam grávidas. Ver, CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., pp. 79-80.
246
Estamos denominando de namoro moralizado o tipo de namoro apregoado pelos profissionais do judiciário o
qual, como já dissemos, se caracterizaria por ser autorizado e acompanhado pelos pais da moça, realizado dentro da
casa da moça sob as vistas dos pais, em dias e horários previamente estabelecidos. Nesse namoro moralizado, não
haveria lugar para atos libidinosos tais como toques nos seios e na vagina, o rapaz deixaria explicitas suas intenções
matrimoniais e, após certo tempo, celebrar-se-ia o noivado e marcar-se-ia a data para o casamento. A respeito do
namoro “moralizado”, ver AZEVEDO, Thales de. As Regras do Namoro à Antiga (Aproximações Sócioculturais).
São Paulo: Ática, 1986. Cf. ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., pp. 139 e seguintes. Cf. CANCELA, Cristina
Donza. Op. cit., p. 84.
133
TABELA 28
POSIÇÃO DO(A) QUEIXOSO(A) DIANTE DO NAMORO DA FILHA, EM %
Cor dos Namorados
Posição do(a) Queixoso(a)
Total
"branca"
"parda"
"preta"
Não sabia
41,5
20,7
18,9
1,9
Sabia e aprovava
50,9
26,4
15,1
9,4
Sabia e desaprovava
3,8
1,9
0
1,9
Sem referência
3,8
1,9
1,9
0
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
Obs: 27 acusados (50,9%) foram classificados como “brancos”, 19 (35,8%), como “pardos” e 7
(13,2%), como “pretos”.
Analisando a Tabela 28, apesar de ser expressivo o percentual dos pais que disseram
não saber dos relacionamentos “amorosos” das suas filhas, o que nos chamou mais a atenção foi
o percentual insignificante daqueles que, sabendo do namoro, disseram desaprová-lo. Este dado
pode ser indicativo de que os pais tinham grande interesse em casar suas filhas, daí não imporem
muitos obstáculos às suas escolhas amorosas (não temos nenhum indício de que os
relacionamentos dessas jovens resultassem de arranjos entre famílias e, por isso, consideramos
que os mesmos decorriam de livres escolhas)247. Observamos que enquanto o total de namorados
“brancos” somava 50,9%, o índice de desaprovação desses namorados por pais que disseram
saber do namoro foi de apenas 1,9%; por sua vez, num total de 35,8% de namorados “pardos”
não houve, da parte dos pais que afirmaram saber do namoro, nenhuma desaprovação; por outro
lado, dos 13,2% de namorados “pretos”, houve somente 1,9% (um caso) de rejeição por parte do
pai que alegou ter ciência do namoro. É o mesmo índice de rejeição encontrado para namorados
“brancos”248.
Os pais, em sua maioria, talvez para causar uma boa impressão, não só disseram ter
conhecimento do namoro, como afirmaram ter sido informados do desvirginamento pelas
próprias ofendidas (Tabela 29). Se elas não foram ciosas na guarda das suas virgindades, ao
menos, por arrependimento, constrangimento ou necessidade, confessaram aos pais o “mal
passo” dado. A imagem da filha arrependida é, diante das circunstâncias, a mais apropriada.
Certamente os pais tentaram passar a imagem de que exerciam vigilância em relação às suas
247
Este é, por exemplo, o caso da nossa conhecida Eva de Jesus Flores (processo 11.177) que, segundo contou,
namorou sem o conhecimento familiar e, para livrar-se dos pais, teria convencido o namorado a tirá-la de casa e com
ela viver amasiado apesar do mesmo ser casado e ter uma outra amante.
248
Sobre a seletividade étnico/racial das ofendidas e acusados em suas relações amorosas/sexuais, ver no Capítulo
IV- Práticas Sexuais, o item 3: A Hierarquia das “Cores” nas Relações Sexuais.
134
filhas e que dispunham de autoridade sobre elas. Contudo, menos da metade das ofendidas
afirmou ter revelado aos pais o desvirginamento249.
TABELA 29
ATRAVÉS DE QUEM O(A) QUEIXOSO(A) DISSE TER TOMADO CIÊNCIA DO
DESVIRGINAMENTO, EM %
Soube Através:
%
Da ofendida
62,3
De outras pessoas
13,2
De outro parente
11,3
Do cônjuge
7,5
Do vizinho
3,8
Do filho
1,9
Total
100
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
Considerando os lugares do defloramento, Martha Abreu, ao pesquisar processos da
Belle Époque carioca, concluiu que:
(...) as mães (ou responsáveis) não tiveram muitas possibilidades de exercer
controle sobre as vida de moças pobres: elas ‘saíam das vistas do privado’ e
amavam em diversos locais. Em apenas 25% dos casos de amor, as mães
poderiam tentar fiscalizar suas filhas dentro de casa. Mas, afinal, não teriam
muitas outras coisas com que se preocupar?250.
Por sua vez, Cristina Donza verificou, para a Belém do início do século XX, ser a casa,
da ofendida ou do acusado, de todos os lugares, aquele onde ocorreram a maioria dos encontros
amorosos entre o casal de namorados251. Estes encontros, observou Cristina Donza,
249
37,7% das ofendidas disseram terem relatado às mães o desvirginamento; 11,4% afirmaram terem contado para
amigas; 9,4% disseram terem contado para as irmãs; 5,7%, para os pais; 11,3% não contou para ninguém; 1,9%,
para vizinhos; 9,4% disseram terem contado para outras pessoas; 13,2% não registraram esse dado
250
ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 163. Na pesquisa de Martha Abreu, 25% das ofendidas disseram ter
sido defloradas na própria casa; 12,5%, na casa dela e do acusado (casa de cômodos); 2,2%, na casa de parentes;
20,4%, na casa do acusado; 21,6%, em lugares externos como hospedarias ou no mato e 18,2%, na casa de trabalho
da ofendida.
251
Nos processos analisados por Cristina Donza, 36% dos defloramentos teriam ocorrido na casa da ofendida (sem
especificar se dentro ou fora); enquanto 29% se teriam passado na casa do ofensor; 3%, na casa de conhecidos; 1%,
em casas de aluguel; 3%, no mato; 1%, das ofendidas não foi deflorada; 1% não se lembrou do local e 26% não
tiveram o lugar identificado na pesquisa. Ver CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., p. 73.
135
(...) evidenciam antes de mais nada a elasticidade e o controle tíbio da
família das meninas no que se refere aos seus passos cotidianos. Seja
vivendo com o pai e/ou mãe, seja vivendo em companhia de um tutor, os
parentes não conseguiam ter controle sobre suas vidas. Os momentos de
trabalho das pessoas da casa, ou mesmo os momentos de repouso, eram
usados por elas para realizarem seus encontros amorosos. Driblando a
vigilância de seus familiares e tutores, elas encontravam modos de se
encontrar a sós com seus namorados (...)252.
Dessa forma, a pesquisa de Cristina Donza ao demonstrar que apenas 36% dos
defloramentos ter-se-iam dado nas casas das ofendidas - significando que 64% deram-se fora da
casa -,
fortalece a conclusão de Martha Abreu de que os encontros sexuais davam-se,
majoritariamente, em lugares longe do controle e vigilância das mães e responsáveis pelas
ofendidas, as quais, certamente, gozavam de grande mobilidade.
Mesmo quando o namoro era autorizado pelos pais e realizado “em casa”, muitas vezes,
não tinha dias e horários pré-determinados e os namorados ficavam a sós, mesmo no interior da
casa, sem uma vigilância específica e, normalmente, até “altas horas”. Tais práticas indicariam,
diz Cristina Donza, uma maior flexibilidade dos pais e/ou mães, além dos tutores das meninas
pobres, no que tangia aos seus encontros e relacionamentos “amorosos”253.
Uma explicação proposta por Cristina Donza é a de que, talvez, para os pais dessas
meninas o essencial fosse que os vizinhos soubessem do namoro (satisfação social), não sendo
negativo para a honra da moça o fato de namorar até “altas horas”.
Nos processos que analisamos em Campos, a grande maioria das ofendidas, 77,4% disse
ter tido a primeira relação sexual com o acusado longe do lar materno; sendo que desse total,
51,3% (ou 39,7% do total dos processos) foram realizadas no mato ou na rua (Tabela 22).
Apenas 22,6% das cópulas teriam sido praticadas nas residências das ofendidas; porém, somente
duas ocorreram no interior das casas, as outras foram realizadas com os casais encostados nos
muros, nos portões ou deitados nos quintais.
Podemos concluir que os pais das moças via de regra, permitiam certo nível de
intimidade e privacidade ao casal, aceitavam que eles pudessem ficar, no espaço da casa,
252
253
Id. Ibid., p. 82.
Id. Ibid., p. 84 e passim.
136
namorando sem a presença permanente de um “responsável”. Certamente esta atitude dos pais
não significava desmazelo para com as filhas, mas uma compreensão do ato de namorar, onde a
escolha do parceiro era de responsabilidade - ainda que não exclusiva, ao menos principalmente
- da moça. Cabia a ela, nos encontros com o namorado, decidir se o queria ou não para
marido254. Certamente a virgindade tinha valor e os pais não desejavam que suas filhas se
entregassem a outro que não o seu marido, contudo, em nenhum dos processos encontramos a
ofendida sendo rejeitada pelos pais e posta para fora de casa por causa do desvirginamento255.
Assim, verificamos uma aproximação com as conclusões de Martha Abreu e Cristina
Donza256, relativa à vigilância familiar sobre as meninas ofendidas do Rio de Janeiro e de Belém
na Belle Époque. Também em Campos, os pais não conseguiram ou não desejaram exercer uma
severa e absoluta vigilância sobre as práticas amorosas das suas filhas. Mesmo com 81,5% das
ofendidas vivendo com os pais em famílias do tipo nuclear e 64,1% exercendo suas atividades
domésticas no próprio “lar”, o controle familiar sobre elas era relativo, parcial e possibilitava
margens de manobra para as moças, que aproveitavam para manter contatos íntimos e relações
sexuais com os namorados. O controle, se havia, era certamente, menos rígido do que o desejado
e pregado pelos profissionais do judiciário e por outros setores que, em diversos momentos,
receitaram a vigilância familiar como necessária à contenção e disciplinarização da sexualidade
feminina, conforme demonstramos no Capítulo I.
Uma outra aproximação entre os resultados da nossa pesquisa e as pesquisas de Martha
Abreu e Cristina Donza257 diz respeito à divisão das responsabilidades entre pais e mães nos
cuidados para com as filhas. Se nem sempre as ofendidas confessaram às suas mães e pais o seu
desvirginamento e se estes não possuíam sobre elas o controle desejado pelo judiciário, quando o
problema surgia e as moças se encontravam desvirginadas e abandonadas pelos namorados, elas
recorriam mais às mães (que aos
254
Um dado a favor dessa nossa hipótese de que as moças pobres gozavam de grande liberdade para escolher seus
próprios namorados está no fato de apenas 3,8% dos pais que sabiam do namoro o terem desaprovado. Mesmo para
os grupos sociais de maior poder econômico, a escolha do esposo, ainda que devendo ser aprovada pela família, já
era nos anos 60 e 70, um direito e dever das moças. Cf. BASSANEZI, Carla. Op. cit. pp. 614-620.
255
Contrariamente, Cristina Donza localizou em Belém três casos em que os pais expulsaram as filhas de casa após
descobrir o defloramento. Ver CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., p. 87.
256
Cf. ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 158. Cf. CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., pp. 72-91.
257
Cf. Id. Ibid., passim. Cf. Id. Ibid., 62.
137
pais) para contarem do desvirginamento, ou partia das mães (mais que dos pais) a desconfiança
de que algo havia acontecido. Numa ou noutra situação, evidencia-se como feminina, materna, a
responsabilidade no acompanhamento da conduta das meninas258.
Ao concluirmos este capitulo, consideramos possível estabelecermos alguns paralelos
com as pesquisas de Martha Abreu e Cristina Donza259 e com alguns valores analisados no
Capítulo I.
Assim como entre as ofendidas cariocas e belenenses da Belle Époque estudadas,
respectivamente, por Martha Abreu e Cristina Donza, as querelantes campistas, também
mantiveram, em sua maioria, relações amorosas de curta duração. A brevidade entre o início do
namoro e o alegado desvirginamento, confrontava-se diretamente com as normas dos juízes que
consideravam um namoro longo e o noivado como elementos capazes de demonstrar a seriedade
e a intenção matrimonial do namoro260.
Se a maioria das ofendidas de Campos namorou, segundo depuseram os(as)
queixosos(as), com o conhecimento dos pais261, elas também mantiveram “contatos íntimos” com
os namorados nas ruas, nos portões e quintais, contrariando os princípios do namoro moralizado
e da “moral familiar” apregoados pelos juízes262.
Nas histórias relatadas nos processos, encontramos, para o desagrado dos juízes,
mulheres ativas em suas relações amorosas e que foram classificadas pelos profissionais do
judiciário de Campos como “mulheres independentes”, “mulheres livres” ou “mulheres
modernas”. A expressão “mulher moderna” ou “mulher livre”,
258
No caso dos acusados, 5,7% disseram ter revelado o seu relacionamento sexual com a ofendida para um amigo,
enquanto 94,3% não declararam nenhum comentário.
259
Cf. ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit. Cf. CANCELA, Cristina Donza. Op. cit.
260
Processos em que os juízes, explicitamente, recriminaram as ofendidas por terem copulado sem a existência de
um noivado, que tornasse crível as promessas de casamento dos acusados, ou por terem copulado sendo curto o
namoro, o que não permitiria que elas depositassem justificável confiança nas promessas de casamento dos
acusados: 282; 10.155; 10.529; 10.569; 10.943; 10.959; 10.981; 11.096; 11.098; 11.138; 11.172; 11.177; 11.223;
11.413; 11.430; 11.464; 11.500; 11.622; 11.651; 11.716; 11.733; 11.926; 12.249; 12.250.
261
Processos em que os juízes recriminaram as ofendidas por terem namorado sem o consentimento dos pais: 282;
10.155; 10.529; 10.569; 10.943; 10.959; 10.981; 11.138; 11.177; 11.223; 11.413; 11.464; 11.622; 11.651; 11.733;
11.842; 12.249; 12.250.
262
Ver os processos: 282; 7.795; 10.937; 11.098;11.172; 11.430; 11.486; 11.500; 11.716; 11.731;11.733; 11.842;
11.924.
138
adquire nos pronunciamentos um tom e sentido sempre pejorativo, como notara Sueann
Caulfield para os anos 30263.
As testemunhas também empregaram termos que configuravam modelos ideais para os
comportamentos femininos. Alguns próximos, outros diferentes dos utilizados pelos
profissionais do judiciário. Nos depoimentos das testemunhas encontramos a contraposição entre
a “moça recatada”, a “moça de família” e obediente aos pais versus a “moça largada” e
desobediente. A oposição entre a “moça de família” e a “moça largada”, como referências de
comportamentos femininos positivos e negativos, foi localizada por Carla Bassanezi264 em
revistas femininas dos anos 50.
A constatação da existência, entre os setores populares, de referenciais binários e
dicotômicos na representação dos comportamentos femininos, não significa que os homens e
mulheres das camadas populares vivessem suas vidas dentro dos estreitos limites dos modelos. O
que se evidencia nos depoimentos são comportamentos plurais e contraditórios, aos quais se
busca dar uma coerência discursiva durante os depoimentos.
Em alguns casos, os juízes mostraram-se dispostos a relevar certos comportamentos
“impróprios” das ofendidas, como namorar sem o consentimento dos pais e mesmo ceder a
virgindade antes do casamento se, pela avaliação dos seus comportamentos e hábitos,
possibilitada pelos depoimentos das testemunhas, ficasse para o magistrado a impressão ou
certeza de serem as ofendidas “moças de família”, que concordaram com a relação sexual em
razão de insistentes e críveis promessas de casamento. Como disse um assistente da acusação, o
casamento é “o sonho de uma jovem” e, “a certeza do casamento próximo, a antevisão do lar, da
prole, a seriedade demonstrada na formulação do connubii promissionis desmoraliza e desnorteia
”.
265
Assim, o Estado que criminalizava e punia a sedução, também deixava margens para o
perdão, que também podia ser estendido ao acusado condenado, se ele casasse com a ofendida ou
se ela contraísse matrimônio com outro homem. O
263
CAULFIELD, Sueann. Op. cit., passim.
BASSANEZI, Carla. Op. cit., passim.
265
Processo 11.464, maço 565, folhas 50-51.
264
139
casamento da ofendida com o acusado, mesmo que ele já tivesse sido condenado, ou com outro
homem, possibilitava a extinção da punibilidade, cessando toda ação penal266.
Para os profissionais do judiciário, o casamento era a solução ideal para a desdita de
uma jovem seduzida e desvirginada. Mas será plausível supor que a perspectiva ou o desejo do
casamento possa ter influído nas relações amorosas e sexuais das jovens que protagonizaram os
processos-crimes por sedução em Campos? Teria a perspectiva ou desejo do casamento
influenciado a decisão das jovens e/ou seus pais de processar seus supostos defloradores?
266
Onze acusados obtiveram o benefício. Sete (63,6%) por terem casado com a ofendida; três (27,3%) por ela ter
casado com outro homem e um (9,1%) por não ter sido intimado dentro do prazo legal.
CAPÍTULO IV
PRÁTICAS SEXUAIS
141
1. JUSTIFICANDO A SEDUÇÃO – AS OFENDIDAS
Moça, sei que já não és pura
teu passado é tão forte
pode até machucar...
Vando
A maior parte das ofendidas tentou justificar a cópula pré-nupcial alegando ter confiado
nas promessas de casamento dos acusados (Tabela 30)267.
TABELA 30
JUSTIFICATIVAS DAS OFENDIDAS PARA TEREM COPULADO, EM %
%*
JUSTIFICATIVAS
Excitação e promessa de casamento
Gostar e promessa de casamento
Somente por promessa de casamento**
Gostar, excitação e promessa de mancebia***
Gostar do acusado, carícias e promessa de casamento
Provar para o acusado ser "moça"****
Gostar do acusado que ameaçou romper o namoro
Carícias, sem falar em promessa de casamento
Gostar do acusado, ameaça de rompimento e promessa de casamento
Inexperiência e promessa de casamento
Somente por promessa de mancebia
Vencer a oposição da família dele
Vencer a oposição do pai dela
26,4
26,4
17
11,3
9,4
7,5
5,7
1,9
1,9
1,9
1,9
1,9
1,9
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
*Os percentuais não fecham em 100% porque algumas motivações aparecem em mais de um processo. Ocorre também
da ofendida apresentar em juízo motivos que não declarou na delegacia
** Casos em que a ofendida não apresentou nenhuma outra motivação para a cópula que não a promessa de casamento.
***A mancebia aparece nos processos como a promessa de “cuidar dela”, “tomar conta dela” ou “montar casa para ela”.
**** Significa provar ser virgem.
Entretanto, 32,1% das ofendidas (percentual resultante da soma de todos os itens em
que não há referência à promessa de casamento) alegaram razões outras, que não uma promessa
explícita de casamento, especialmente a promessa de mancebia
267
Ver os processos de número, 132/70; 524/73; 6.757; 7.795; 7.816; 8.921; 9.529; 10.448; 10.569; 10.745; 10.793;
10.803; 10.937; 10.943; 10.959; 11.096; 11.138; 11.223; 11.413; 11.430; 11.457; 11.464; 11.486; 11.500; 11.627;
11.651; 11.688; 11.731; 11.733; 11.842; 11.924; 11.926; 11.927; 12.285; 12.365.
142
(13.2%)268 como justificativa para a cópula desvirginadora269. Em 83% das declarações, nas quais
aparece a alegação da promessa de casamento270, somente em 17% as ofendidas apontaram a
promessa de casamento como a única motivação para se deixarem desvirginar271. Por outro lado,
66% das ofendidas272 reconheceram que além da promessa de casamento teriam cedido sob a
influência de carícias e da excitação, produzida por seus namorados através de blandícias e atos
libidinosos. Isto é, reconheceram que copularam, também, por tesão273. Temos ainda que dentre
as 13,2% de ofendidas que disseram ter aceitado a cópula desvirginadora em função de uma
promessa de mancebia, 11,3% agregaram à promessa o fato de gostarem dos namorados e
estarem muito excitadas274.
Certamente não eram esses os depoimentos que os juízes gostariam de ouvir275 e as
ofendidas, em sua maioria, não souberam, não quiseram ou não viam razão para esconder em
seus depoimentos (especialmente o prestado na delegacia, antes de terem uma possível
orientação do promotor ou de um assistente da acusação), seus sentimentos, suas punções e seus
hábitos - sociais e amorosos - conflitantes com os valores da “moral familiar” que orientavam
juízes e promotores nos crimes contra os costumes.
A constância com que a admissão de estarem muito excitadas no momento em que
permitiram a cópula desvirginadora é feita nos processos, sugere-nos duas
268
Percentual relativo à soma de todos os itens em que há referência à promessa de mancebia.
Ver os processos de número 10.155; 11.172; 11.177; 11.260; 11.426; 11.622; 11.716.
270
O percentual de 83% se refere à soma de todos os itens em que há referência à promessa de casamento.
271
Ver os processos número 6.757; 7.795; 10.937; 10.959; 11.223; 11.926; 12.285; 12.365.
272
O percentual de 66% é à soma de todos os itens onde se combina promessa de casamento com outros fatores.
273
Ver os processos de número 8.921; 10.569; 10.745; 10.793; 10.803; 11.260; 11.430; 11.464; 11.486; 11.500;
11.627; 11.688; 11.731; 11.733; 11.842; 11.927.
274
Ver os processos de número 11.172 e 11.716.
275
Apesar da jurisprudência relativa ao crime de sedução conceber a possibilidade de uma moça “honesta” ceder sua
virgindade antes do casamento sob a influência de um estado de excitação produzido pelas carícias e atos libidinosos
do namorado, situação na qual a moça poderia ficar privada da sua capacidade de discernimento com o “viciamento”
da sua vontade, nos processos que analisamos em Campos, a confissão por parte das ofendidas que copularam
também em virtude de estarem excitadas com as carícias íntimas dos namorados, foi, via de regra, recebida pelos
juízes como uma prova de que elas não seriam moças recatadas (que não permitiriam liberdades por parte dos
namorados), nem inexperientes. Dessa forma, o reconhecimento da excitação, geralmente, pesou contra as
ofendidas. Cf. ABREU, Martha Campos e CAULFIELD, Sueann. “50 Anos de virgindade no Rio de Janeiro: as
políticas de sexualidade no discurso jurídico e popular (1890-1940)”. In: Caderno Espaço Feminino. Volume 2, ano
II, nº 1/2. Uberlândia, 1995, passim. Cf. MEDEIROS, Darcy Campos de e MOREIRA, Aroldo. Op. cit, pp. 31 e
passim. Ver, por exemplo, os processos de número 11.223; 11.731 e 11.842.
269
143
interpretações. Numa primeira, podemos supor que as moças não sabiam que o simples fato de
autorizarem carícias íntimas a um namorado (no mais das vezes um namorado de pouco tempo,
quando não clandestino para os seus responsáveis), já tendia a desqualificá-las perante os
profissionais do judiciário. Nesta hipótese, elas não consideravam impróprio sentir “desejos” nos
braços dos seus namorados, e revelaram tais sentimentos como justificativa para o que fizeram.
Entretanto, para os profissionais do judiciário de Campos, especialmente os juízes, o fato de elas
permitirem contatos íntimos
- como toques nos seios e vagina -
era o suficiente para
descaracterizá-las como “moças recatadas”, predicado fundamental à obtenção de uma avaliação
moral positiva276.
Numa
outra
interpretação,
podemos
supor
que
as
ofendidas
tentaram
se
desresponsabilizar pelo acontecido, dando a entender que agiram de forma concupiscente
inebriadas pelas juras, blandícias e carícias dos namorados que, excitando-as intensamente, lhes
retiraram a liberdade de escolha, “a liberdade sexual” prevista no Código Penal de 1940 e em
nome da qual a sedução é - formalmente - criminalizada. Neste caso, elas estariam tentando
usar em seu benefício o “papel sexual feminino”, isto é, a imagem da mulher como frágil e sem
iniciativa, reforçando, no namorado, o papel sexual masculino. Ele, por ser o homem, é que teria
tomado toda a iniciativa e, portanto, teria toda a responsabilidade. Ingênuas ou ardilosas? Talvez,
ambos.
Esse misto de ingenuidade e sagacidade pode ser percebido no fato de 60,4% das
ofendidas terem confessado mais de uma relação com o acusado (Gráfico11). Provavelmente,
buscavam com isso agravar a situação dos réus, pois, estes teriam
276
Pela leitura dos processos pudemos perceber que os juízes recriminavam a prática de “atos libidinosos”,
independentemente do tempo do namoro e ter ou não ocorrido o noivado. Fica evidente que intimidades entre um
casal somente seria possível, em termos morais, após o casamento. Apenas no processo 10.793, o juiz considerou
que a “relação sexual primeira entre ambos verificou-se após a prática eficiente de atos libidinosos vários, quais
foram, carícias nas regiões genitais da ofendida, com o intuito de excitá-la”. Tendo em conta o longo namoro, mais
de um ano, o que tornava crível a principal razão apontada pelo juiz para que a ofendida consentisse na cópula: o
casamento e, afirmando não ser a ofendida “uma vadia”, mas “moça do interior” e “inexperiente”, ele condenou o
acusado que foi preso. Algum tempo após a prisão do réu (que era casado), os seus advogados entraram com um
pedido de Suspensão Condicional da Pena apresentando como um dos argumentos a favor do condenado o fato da
ofendida estar vivendo “maritalmente com outro no estado da Guanabara; outro que é realmente aquele que o
destino lhe reservou, vivendo num verdadeiro paraíso com este homem que um dia a compreendeu e a
aceitou”. Com a concordância do Ministério Público, o juiz concedeu a Suspensão Condicional da Pena e Joanes
Lima, o réu, foi posto em liberdade. Cf. Processo n 10.793, maço 562, passim.
144
“abusado delas”, por várias vezes. Entretanto, ao reconhecer que não só se deixaram desvirginar
fora do casamento, mas também que mantiveram outros contatos sexuais com o suposto
desvirginador, repetindo o erro, não caindo logo em arrependimento, cada ofendida dificultou a
sua valorização moral - como boa filha, moça recatada e submissa aos pais - perante os
profissionais do judiciário277.
GRÁFICO 11
NÚMERO DE COITOS SEGUNDO AS OFENDIDAS, EM %
39,6
34
26,4
1 vez
2 a 4 vezes
Mais de 5 vezes
Fonte: 53 Processos Pesquisados No Fórum De Campos Dos Goytacazes.
As moças dos processos mostram-se ambíguas e contraditórias, pois adotam um
posicionamento que se confronta com a moral defendida pelos juízes, ao reconhecerem que
vivenciaram atos “inadequados” em suas relações amorosas, tais como, permitirem carícias
íntimas aos namorados e manterem congressos sexuais pré-nupciais. Ao mesmo tempo, ao
relatarem o “acontecido”, aproximam-se dos valores morais dos profissionais do judiciário, ao se
retratarem, em sua maior parte, como moças passivas que foram levadas a se “perderem” pela
“lábia” e pelas promessas dos seus namorados ardilosos. Nelas ou nas auto-imagens que
constroem de si mesmas, as atitudes passivas e ativas não só se contrapõem como coexistem.
277
Em alguns processos, o promotor, o defensor ou mesmo o juiz comentam o fato de ter a ofendida, segundo a sua
versão, continuado a manter contatos sexuais com o acusado não revelando, de imediato, o acontecido aos pais. Esta
postura era considerada, pelos defensores e juízes, como comprovação da falta de recato da ofendida e de não ser ela
plenamente obediente aos pais. Por outro lado, temos casos em que o fato de ter a ofendia, segundo o seu relato,
contado logo o desvirginamento a seus pais foi apresentado, pelos promotores e juízes, como argumento a favor da
sua moralidade, pois ela teria se arrependido do erro e buscava repará-lo.
145
Elas se mostram passivas no namoro e no ato sexual, mas afirmam, em vários casos,
terem namorado contra a vontade dos pais ou sem o conhecimento deles278. Se declararam
passivas na decisão de copular, mas freqüentavam festas e bailes, às vezes, sem a companhia
familiar. Eram submissas aos pais, mas, ao mesmo tempo, planejaram fugir com os namorados
ou aceitaram proposta de mancebia. Aceitavam copular com um homem casado ou se tornarem
suas amásias e assumiam plenamente as funções domésticas.
Complexas em suas atitudes, poucas foram as moças ofendidas que conseguiram
manifestar uma “coerência” nos depoimentos, capaz de convencer os juízes do seu recato,
obtendo então a condenação do réu279.
2. ATITUDES MASCULINAS
Só me resta agora
o adeus final
e amar de mais
ser um bom rapaz
foi o meu mal...
Wanderley Cardoso
No que tange às posições dos acusados diante das denúncias, encontramos muitas
semelhanças com o que foi observado por Martha Abreu e Cristina Donza280 ao pesquisarem,
respectivamente, processos crimes ocorridos na Belle Époque carioca e belenense.
278
Ver os processos de número, 524/73; 10.155; 10.448; 10.569; 10.943; 10.981; 11.098; 11.138; 11.177; 11.413;
11.426; 11.464; 11.622; 11.688; 11.842; 12.249.
279
Processos com condenação do réu: 6.727; 7.816; 8.921; 9.529; 10.745; 10.793;11.627. Tivemos, portanto, 13,2%
dos acusados condenados. Estes processos onde ocorreu a condenação do réu, são os mesmos em que os juízes
valorizaram os depoimentos das testemunhas da ofendida. Trinta e quatro acusados (64,2%) obtiveram absolvição,
onze (20,7%) beneficiaram-se da extinção da punibilidade e um (1,9%) teve o processo arquivado.
280
Ver ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., passim. Cf. CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., pp. 111-133.
146
Basicamente, os homens denunciados adotavam duas atitudes: desmentiam as ofendidas
e procuravam desmoralizá-las281 ou admitiam parte das acusações, mas responsabilizando-as pela
ocorrência das relações sexuais282. Nos casos em que admitiram o relacionamento sexual, os
acusados esmeraram-se para convencer o juiz que a ofendida não fora seduzida, por não possuir
os atributos físicos e/ou morais necessários à configuração do crime de sedução283.
A Tabela 31 ajuda-nos a perceber não só as táticas de defesa dos acusados, como
também alguns valores que esses homens trabalhadores declaravam e como concebiam o ser
mulher.
TABELA 31
POSIÇÃO DOS OFENSORES DIANTE DAS ACUSAÇÕES, EM %
Posição
Nega promessa de casamento
Admite namoro
Nega coito
Admite coito
Admite coito mas diz que a ofendida não era virgem
Nega o namoro
Nega intimidades com a ofendida (libidinagens)
Nega namoro e coito
Admite namoro mas nega coito
Nega a sedução
Nega que freqüentava a casa da ofendida
Admite que freqüentava a casa da ofendida
Admite coito mas nega promessa de casamento
Admite desvirginamento
Admite atos de libidinagem
Admite promessa de casamento
Nega relacionamento mas diz saber ser a ofendida "mulher"
Admite namoro mas nega coito para verificação de virgindade
Nega promessa de casamento mas admite a de mancebia
Admite namoro mas só em casa na frente dos pais da ofendida
Admite noivado
%
81,5
60,4
52,8
47,2
34
30,2
24,5
24,5
20,8
18,9
17
15,1
13,2
13,2
11,3
9,4
7,5
3,8
3,8
1,9
1,9
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
Obs: A soma dos percentuais ultrapassa os 100% porque em um mesmo depoimento o acusado, às vezes, expressava mais de uma posição
frente à acusação e todas elas foram consideradas. Nos casos em que foram diferentes os depoimentos na delegacia e em juízo, utilizamos,
nas estatísticas, as informações dos depoimentos em juízo por serem estes os de maior peso para as sentenças.
281
Processos nos quais os acusados negaram a relação sexual com a ofendida: 282; 467/73; 524/73; 7.795; 7.816;
8.921; 9.529; 10.155; 10.448; 10.529; 10.569; 10.943; 10.959; 10.981; 11.138; 11.260; 11.464; 11.651; 11.731;
11.842; 11.924; 12.249; 12.250; 12.365; 12.638.
282
Processos nos quais os acusados, ao se defenderem, detrataram as ofendidas: 524/73; 6.727; 7.795; 7.816; 8.921;
10.448; 10.529; 10.569; 10.739; 10.745; 10.793; 10.937; 10.937; 10.943; 10.981; 11.096; 11.098; 11.138; 11.172;
11.177; 11.223; 11.260; 11.413; 11.426; 11.457; 11.464; 11.486; 11.622; 11.716; 11.731; 11.842; 11.924;11.926;
12.249; 12.250; 12.365; 12.370.
283
Processos nos quais os acusados reconheceram terem copulado com as ofendidas: 132/70; 6.727; 10.745; 10.793;
10.937; 10.943; 11.096; 11.098; 11.172; 11.177; 12.223; 11.413; 11.426; 11.430; 11.457; 11.622; 11.688; 11.716;
11.733; 11.926; 11.927; 12.285; 12.370; 12.638.
147
Enquanto 56,6% das ofendidas disseram ter praticado algum tipo de lascívia com os
namorados e 49% confessaram que tais carícias influenciaram na concordância com o ato sexual,
apenas 11,3% dos acusados reconheceram ter praticado carícias íntimas com as suas
acusadoras284. Provavelmente os que negaram a prática de atos libidinosos, tentavam fugir da
imagem de homens imorais e desrespeitadores, capazes de seduzir suas namoradas através de
atos “imorais”285.
Alguns, ao reconhecerem a ocorrência das carícias, responsabilizaram as ofendidas. Foi
o que fez Salvador da Cruz, brasileiro, pardo, católico, fluminense, com 33 anos de idade,
solteiro, ferroviário e alfabetizado. Acusado de haver, em setembro de 1970, seduzido e
desvirginado Valéria da Silva, brasileira, preta, fluminense, com 16 anos de idade, do lar e
alfabetizada.
Ao depor na delegacia no dia 19 de abril de 1972, Salvador contou:
(...) que nunca namorou a ofendida Valéria da Silva, sendo que veio a
conhecê-la em bailes que o depoente freqüentava (...) daí, quando fora a um
baile na roça e, na volta, já na cidade (...) o depoente fora levar a ofendida
em casa, a mesma passou a acariciá-lo, e, então o depoente percebeu que a
ofendida estava querendo qualquer coisa com ele depoente; (...) tanto ele
como a ofendida haviam tomado bebidas no baile, estando mesmo os dois
um pouco tontos; que, sendo um homem, já com certa idade, o depoente
percebeu perfeitamente a intenção da ofendida, aceitando de pronto as
carícias da mesma; que, então, em um mato próximo, o depoente levou a
ofendida para ali, mantendo com a mesma relações sexuais, embora não
tivesse introduzido o seu membro viril na vagina da ofendida fazendo-o
apenas pela metade, por estar a ofendida reclamando que estava doendo (...)
que dias depois o depoente veio a tomar conhecimento de que esta mesma
ofendida, dormira com vários outros amigos do depoente, chegando pois a
conclusão que a mesma já não era mais ‘virgem’ (...)286. [grifos nossos]
Mesmo tendo admitido o coito e dito ter acreditado na virgindade de Valéria, crença que
se dissipou pelo conhecimento que teve de que ela copulara com amigos seus, Salvador foi
absolvido. Deve-se notar que a única testemunha masculina da defesa disse não saber quem
desvirginara a ofendida e não mencionou nenhum
284
Processos em que os acusados reconheceram a prática de atos libidinosos com as ofendidas: 10.529; 11.413;
11.457; 11.627; 11.926; 12.638.
285
Processos nos quais os acusados negaram a prática de carícias íntimas com as ofendidas: 282; 524/73; 7.795;
9.529; 10.793; 10.981; 11.464; 11.651; 11.716; 11.842; 11.924; 12.249;12.365; 12.638.
286
Processo n°11.098, maço 579, folha 17.
148
contato íntimo com a mesma. Os tais amigos de Salvador que teriam mantido relações sexuais
com Valéria nunca foram apresentados, nem seus nomes mencionados. Mesmo assim Salvador
foi inocentado, e certamente contou a seu favor a condenação moral de Valéria feita pelo juiz.
Valéria confessou que namorava sem o conhecimento dos pais, foi acusada, por testemunhas,
pelo defensor e pelo juiz, de não ser obediente, “sujeita”, à mãe. Ela freqüentava bailes noturnos
sem a companhia de seus responsáveis, andava às altas horas em companhia masculina e,
entregou-se ao coito sem uma promessa séria de casamento.
Diante da imagem que se constrói de Valéria no processo, o juiz, ao proferir a sentença,
foi taxativo:
Sedução não existe porque é a própria ofendida quem afirma que os fatos
ocorreram após um curto namoro de quatro meses e que o acusado não lhe
prometera casamento.
Corrupção de menores também inexistente vez que a prova dos autos é de
que a ofendida não tinha procedimento elogiável, pois saía de casa sete
horas da noite e voltava no outro dia às sete da manhã.
Inadmissível a corrupção do que já está eivado de irregularidade de
conduta287. [grifos nossos]
Valéria, como outras ofendidas, foi redargüida por seus comportamentos, considerados
inadequados a uma moça. Ela mostrou-se uma mulher com iniciativa e independente quanto aos
seus horários e hábitos de lazer. E, como já vimos, a imagem da “mulher livre”, da mulher que
busca o contato amoroso e sexual, da mulher sexualmente ativa e insubmissa será uma das
figuras simbólicas de maior presença e de forte peso negativo nos processos. A caracterização da
ofendida como “mulher livre”, “independente” e “insujeita” favorecia a defesa que, a partir desta
imagem, procurava negar a virgindade da ofendida quando do namoro com o acusado.
Dentre os acusados que reconheceram ter mantido contado sexual com as namoradas
(47,2%), a grande maioria, 72%, alegou que a moça não era virgem, e, assim, não teria cometido
o crime de sedução288.
287
Id. Ibid., folhas 48-49. Outros casos em que o juiz criticou as condutas das ofendidas, favorecendo a absolvição
dos réus: 524/73; 282;10.155; 10.448; 10.569; 10.793; 10.943;10.959; 10.981; 11.096; 11.098; 11.138; 11.172;
11.177; 11.223; 11.260; 11.413; 11.430; 11.464; 11.500;11.622; 11.651; 11.731; 11.842; 11.926; 12.249; 12.250.
288
Processos nos quais os acusados reconheceram o relacionamento sexual mas disseram que a ofendida já não era
virgem: 6.727; 10.448; 10.569; 10.745; 10.793; 10.937; 10.943; 11.096; 11.098; 11.172; 11.413; 11.426; 11.430;
11.457; 11.622; 11.688; 11.716; 11.733; 11.926; 12.365.
149
Pode-se observar que o percentual de acusados que admitiu ter mantido relações sexuais
com a ofendida, mas nega a promessa de casamento (13,2%), é exatamente o mesmo daqueles
que reconheceram o desvirginamento (13,2%). Destes, a maioria, 71,4% (ou 9,4% do total dos
processos) reconheceu que havia prometido casamento às suas namoradas como meio de
convencê-las a copularem289.
O reconhecimento do desvirginamento não implicou em condenação. Nos processos
132/70, 11.927, 12.285, 12.370 e 12.638; os acusados admitiram o desvirginamento, mas a
punibilidade foi extinta, ainda no decorrer dos processos, por ter havido o casamento do acusado
com a ofendida. No processo 11.177, o réu confessou o desvirginamento, mas foi inocentado
pelo juiz que considerou não haver provas do crime de sedução. O juiz entendeu que a ofendida
não se mostrou inexperiente e não possuía motivos para depositar justificável confiança no réu,
já que ele ao convidá-la a fugir fizera uma “proposta de mancebia, repelida pela moral e
descaracterizadora do delito de sedução”. No processo 11.223, onde o réu também confessou o
desvirginamento, o juiz também o absolveu alegando falta de provas quanto à ocorrência da
sedução. Para o juiz, a ofendida não se mostrara inexperiente por ter admitido a prática do sexo
anal com o réu, além de não possuir motivos para nele depositar justificável confiança, pela
brevidade do namoro, e por ele não ter assumido o compromisso de casar-se com ela. A decisão
do juiz de primeira instância foi referendada pelo juiz do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro que analisou o recurso impetrado pela queixosa. Para o juiz do Tribunal de Justiça, a
falta de um namoro prolongado e do noivado descaracterizavam a justificável confiança, tendo
então mantido a sentença absolutória do juiz da primeira instância.
Pela leitura dos depoimentos, pronunciamentos e sentenças, fica claro que a primeira e
mais importante preocupação de um acusado que pretendesse escapar à condenação era negar a
promessa de casamento (81,5%).
289
A respeito ver os processos de número 132/70; 11.223; 11.927; 12.285 e 12.370. Os acusados que admitiram o
desvirginamento são encontrados nos processos, 132/70; 11.177; 11.223; 11.927; 12.285; 12.370 e 12.638. Nos
processos de número 11.172 e 11.430, os acusados negaram a promessa de casamento, mas reconheceram ter
proposto mancebia às ofendidas como meio de convencê-las a manter relações sexuais com eles.
150
É provável que a promessa de casamento, além de ser um critério legal capaz de ensejar
a condenação pelo crime de sedução, também fosse tida, na cultura dos homens e mulheres
envoltos nos processos, como um valor de grande significação (até pela extensão que o
casamento havia alcançado na população campista como meio de estabelecimento das relações
conjugais, conforme demonstramos no Capítulo II), sendo, portanto, um elemento com forte
apelo sedutor290. Dessa forma, a admissão da promessa de casamento, talvez equivalesse, no
círculo social dos acusados, a uma confissão de culpa.
Se é pequena a diferença entre os que negaram e os que admitiram ter tido relações
sexuais com as ofendidas (5,6%), é abissal a diferença que separa os que reconheceram dos que
negaram a promessa de casamento (72,1%). São duas as nossas hipóteses. A primeira é que a
promessa de casamento, era efetivamente uma questão séria e valorizada nas camadas pobres da
população, além de ser um elemento capaz de produzir a condenação. A segunda é que os
homens das camadas populares não viam constrangimentos em manter relações sexuais com
moças solteiras e menores de idade (mesmo quando eles eram casados), o que violava,
flagrantemente, o Código Civil. Eles não punham embargos a contar ou confessar publicamente
o fato de ter copulado com suas namoradas, nisto não viam problemas. Porém, foram enfáticos
na negativa de que obtiveram a permissão para a cópula mediante a promessa de casamento. O
fundamental não era negar a cópula, mas a acusação de quebra da palavra, de que enganaram as
namoradas para satisfazer o desejo sexual. O “método” poderia ser recriminado, o fato em si,
nem tanto.
Na prática, os homens das camadas pobres da população exerciam uma efetiva
liberdade sexual e raramente serviram-se de chavões moralizantes, na questão sexual, para
representar uma imagem autovalorizadora. Isto é, não foi recorrendo ao discurso de um
comportamento sexual moralizado, que os acusados buscaram mostrar-se como “homens de
bem”.
O ser “homem de bem” significava, essencialmente, pelo que se observa nos processos,
tanto nos pronunciamentos dos profissionais do judiciário como nos depoimentos das
testemunhas, ser trabalhador e “benquisto”. Isto é, possuir uma boa
290
Ver tabelas 2, 3, 6 e 7, páginas 74, 82 e 85.
151
imagem no seu “meio social”. Se para a moça ser “de bem” implicava em obediência aos pais e
recato nas atitudes, para os rapazes implicava em trabalhar e ser bem visto por todos, ou seja,
dispor de um reconhecimento social positivo291.
O discurso do comportamento moralizado foi utilizado pelos acusados em vários
momentos, mas como elemento de crítica aos hábitos e práticas das ofendidas, por terem
aceitado carícias íntimas, por se mostrarem sexualmente “experientes”, por freqüentarem festas e
bailes, sem a companhia dos pais, por andarem em “companhias suspeitas”, por serem
“namoradeiras” ou “faladas”, por não terem manifestado dor nem sangramento durante o suposto
coito desvirginador, por ter a penetração ocorrido “sem embaraços”, por terem cedido
“facilmente”, por se portarem como “mulher livre”, por serem desobedientes aos pais, por
tomarem a iniciativa em buscar o contato amoroso mesmo quando o acusado era casado. No
momento do conflito, sobretudo em juízo, os denunciados, via de regra, sacaram estas e outras
acusações contra as ofendidas. Mesmo que eles tivessem co-participado das “atitudes
condenáveis” das ofendidas, era como se tais “atitudes” somente condenassem as ofendidas.
A Tabela 32 confirma que, além de quase sempre negarem as promessas de casamento,
os acusados também se defendiam lançando suspeitas sobre as atitudes, sobre o comportamento
moral das ofendidas292.
Podemos observar a proximidade entre a acusação de que a ofendida freqüentava festas
e bailes (11,3%), de que teve outros namorados (15,1%), e de que não era mais “moça” ou era
“mulher” (15,1%). A mensagem fica evidente. Moças que se permitiam freqüentar, livremente,
festas e bailes - ficando fora da vigilância familiar - e passavam de um a outro namorado,
provavelmente, “perdiam-se” logo com um desses namorados. Toda a disputa dava-se, então, em
torno das representações sobre os
291
Ver os processos: 6.727; 7.795; 8.921; 9.529; 10.448; 10.745; 10.793; 10.803; 10.937; 10.943; 10.959; 10.981;
11.098; 11.138; 11.172; 11.413; 11.426; 11.430; 11.457; 11.464; 11.486; 11.500; 11.622; 11.651; 11.713; 11.716;
11.731; 11.733; 11.842; 11.924; 11.926; 12.249.
292
O mesmo foi percebido por Cristina Donza e Martha Abreu. Ver CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., pp. 111130. Cf. ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit. Nas quizilas que analisamos em Campos, o que mais comumente se
dizia sobre uma ofendida é que ela não seria “virgem”, “moça” ou que já seria “mulher”; que freqüentava festas e
bailes sozinha; que não era submissa aos pais ou que era “namoradeira”, “pra frente” e “avançada”. O termo
“honesta” foi menos empregado e quando o foi, quase sempre pelos profissionais do judiciário, indicava, sobretudo,
recato e fidelidade. Processos em que os acusados atacaram os comportamentos e puseram em dúvida a moral das
ofendidas: 524/73; 6.727; 7.795; 7.816; 8.921; 10.448; 10.529; 10.569; 10.739; 10.745; 10.793; 10.937; 10.937;
10.943; 10.981; 11.096; 11.098; 11.138; 11.172; 11.177; 11.223; 11.260; 11.413; 11.426; 11.457; 11.464; 11.486;
11.622; 11.716; 11.731; 11.842; 11.924;11.926; 12.249; 12.250; 12.365; 12.370.
152
comportamentos cotidianos - e não só amorosos - das ofendidas. Isto é, em torno das suas
condutas para com os pais, na vizinhança e, sobretudo, seus hábitos de lazer e suas relações
amorosas anteriores.
Esses critérios de avaliação moral das ofendidas foram compartilhados ou empregados
nos processos, ainda que com diferentes graus de intensidade, pelos acusados, por várias
testemunhas e pelos profissionais do judiciário.
TABELA 32
COMENTÁRIOS DOS ACUSADOS SOBRE AS OFENDIDAS, EM %
Comentários
%
Dizem que elas não eram virgem*
45,3
Dizem que foram assediados pelas ofendidas
22,6
Ouviram dizer que as ofendidas não eram "moça"
18,9
Copularam por saber que outros já tinham feito
18,8
Elas tiveram outros namorados
15,1
Acusam as ofendidas de freqüentarem bailes e festas
11,3
Elas sabiam que eles eram casados
11,3
Acusam as ofendidas de se oferecerem facilmente
9,4
Elas procuraram o coito
9,4
Elas estiveram na Guanabara
3,8
Não têm nada contra a ofendida
3,8
Depois do noivado ela tornou-se desobediente a ele
1,9
Os pais dela davam “festinhas” com rapazes do RJ
1,9
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
* Todos os processos em que os acusados disseram não serem as ofendidas virgens, “moças’ ou já serem “mulheres”.
Obs.: Por ser muito grande a quantidade de comentários feitos pelos acusados, selecionamos alguns, preferencialmente, os mais
recorrentes.
TABELA 33
NÚMERO DE COITOS SEGUNDO OS ACUSADOS, EM %
Quantidade
1 vez
%*
24,5
%**
52
2 a 4 vezes
3,8
8
Mais de 5 vezes
18,9
40
Sem referência***
52,8
100
0
100
Total
* Percentuais relativos aos 53 processos pesquisados.
** Percentuais relativos aos 25 processos nos quais os acusados admitiram a conjunção carnal.
*** Percentual igual ao dos acusados que negaram a relação sexual.
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
153
Os acusados, quando admitiram a relação sexual, tenderam a diminuir a sua freqüência,
talvez por pensarem que assim diminuíam a responsabilidade pelo fato. Somente 22,7% dos
acusados, contra 60,4% das ofendidas, admitiram mais de uma cópula, o que corresponde a 48%
dos acusados que reconheceram terem mantido relações sexuais com as ofendidas (Tabela 33).
nunca namorou a ofendida Marilene Trindade, tendo conversado com a
ofendida por umas duas vezes (...) o depoente se encontrava no centro da
cidade, quando, por acaso, se encontrou com a ofendida; que a mesma,
vendo-o, cumprimentou-o e passaram então a conversar; (...) foram
conversando até o Jardim São Benedito (...) deveriam ser mais ou menos
vinte e uma e trinta horas (...) no decurso da conversa, (...) procurou manter
com essa moça umas certas liberdades, (...) de pronto aceitas pela ofendida;
(...) assim ficaram até às vinte e três horas, mais ou menos, nada tendo feito
o depoente contra a mesma; (...) tendo a ofendida pedido ao depoente para a
procurar na quarta-feira (...) o depoente foi até o emprego da ofendida,
saindo então a conversarem; (...) foram andando pela rua Sete de Setembro
até depois do Horto Municipal, parando então para conversarem; (...) em
meio a conversa havida, a ofendida confessou para o depoente que já não
era mais ‘virgem’; que, o depoente ainda perguntou para a ofendida quem
havia feito aquilo com ela, sem contudo a mesma dizer quem fora o autor do
seu defloramento; (...) ciente deste fato, o depoente voltou a acariciar a
depoente, aceitando a mesma as carícias, tendo então o depoente mantido
com ela relações sexuais; (...) somente manteve relações sexuais com a
ofendida naquela noite, não a tendo procurado mais, estando inclusive
arrependido do que fizera; (...)293. [grifos nossos]
O depoimento do acusado, Djanir Magalhães, brasileiro, branco, católico, fluminense,
com 24 anos de idade, solteiro, ajudante de eletricista, alfabetizado, reafirma uma concepção
expressa ou insinuada em vários processos, por acusados, testemunhas e profissionais do
judiciário de que o fato de ser a ofendida Marilene Trindade, brasileira, parda, fluminense, com
16 anos de idade, empregada doméstica e alfabetizada, “mulher”, a tornaria disponível para
tantas outras relações sexuais quanto se lhe apresentasse294. Isto é, ela não tinha mais recato a
guardar, não precisava mais resistir a assédios, pois não tinha mais nada a preservar; poderia darse a todo desfrute, e ele não tinha nada a temer, ela estava disponível. Para obter dela os favores
sexuais não
293
Processo nº 11.413 (1ª instância), maço 565, folha 12. Em 2ª instância, recebeu o nº 20.422.
Processos em que o acusado afirma, explicitamente, que sabendo já não ser a ofendida virgem não viu perigo em
manter relações sexuais com ela: 10.448; 10.569; 10.937; 11.096; 11.098; 11.172; 11.426; 11.430; 11.457; 11.622;
11.688; 11.716; 11.733; 11.926; 12.365. Especialmente os de número 6.727; 10.745; 10.793; 10.943 e 11.413. Essa
mesma idéia aparece em pronunciamentos de defensores e em alguns depoimentos de testemunhas da defesa.
294
154
seria preciso casar, nem pagar. Nem pura nem prostituta, apenas “livre”295. Pelos depoimentos de
diversos acusados, parece-nos que, declarar não ser mais virgem eqüivaleria, da parte das moças,
a uma autorização para que eles tomassem a iniciativa do sexo; uma espécie de sinal verde.
Aparentemente, uma vez desvirginadas, as moças, agora mulheres, sentiam-se liberadas de todo
interdito moral, livres para o prazer sexual.
Por outro lado, temos o esforço de Djanir para se desresponsabilizar ou amenizar sua
responsabilidade quanto ao comportamento, se não ilegal, certamente “imoral”, de Marilene.
Segundo ele, ela o abordara na rua e, voluntariamente, o acompanhara até o jardim, uma área
pública, onde lhe permitira “liberdades” até altas horas. Ela o convidou para um novo encontro e
com ele fora a um local ermo, à noite, onde, após confessar já não ser virgem, aquiescera seus
favores sexuais. Djanir, apesar da “facilidade” de Marilene, afirma que somente uma vez
manteve relações sexuais com ela e estava arrependido.
Podemos perceber que não somente as
moças pobres declaravam adotar
comportamentos amorosos e cotidianos antinômicos aos valores morais do judiciário que fazia o
panegírico do recato e do namoro moralizado. Também os homens pobres que aparecem nos
processos manifestaram posturas que seriam consideradas, pelos promotores, pelos juízes,
pelos(as) queixosos(as) e por algumas testemunhas, como inadequadas ao que se entendia como
sendo um moço de “boa formação” e “boas intenções”. Um “bom moço”, um “bom rapaz”
(independentemente da sua condição
295
Mesmo entre os namorados que disseram ter copulado por saber da não virgindade da ofendida, poucos
insinuaram serem as namoradas prostitutas ou andarem com prostitutas. Via de regra, não se referiram às namoradas
ou amantes como prostitutas, mesmo quando insinuaram um comportamento de “mulher livre”, não moralizado. A
acusação ou insinuação de que a ofendida seria mulher prostituída apareceu em poucos casos e, a exceção de dois.
Em todos os demais, os homens negaram o namoro. Ver os processos de número 10.937 e 11.651 (neste último, o
acusado reconheceu dois encontros com a ofendida mas negou ter mantido relações sexuais com ela). Localizamos
nove processos (17%) onde aparecem acusações ou insinuações de que a ofendida seria “mulher prostituída”. Em
três casos (5,7%), a afirmação de que a ofendida andava com prostitutas ou “mulheres de vida fácil” partiu
exclusivamente das testemunhas da defesa (processos 8.921;11.646 e 11.622); em dois casos, a insinuação foi feita
pelas testemunhas da defesa e pelos acusados (processos 10.924 e 11.138); em um processo (1,9%), a acusação foi
feita por uma testemunha da acusação (processo 10.155); em outro, o defensor a acusou de “levar vida fácil”
(processo 11.731); e, em apenas um processo a acusação partiu exclusivamente do acusado (processo 10.937). No
processo 11.651 a ofendida não foi acusada de ser ou andar com prostitutas, mas o promotor afirmou que, uma vez
deflorada, ela poderia prostituir-se, tese rebatida pelo defensor (por ser a ofendida “moça de família”, sujeita aos
pais) e recusada pelo juiz.
155
social)296, que estivesse seriamente interessado numa jovem, não se prestaria a namorá-la às
escondidas, por ruas e becos escuros, não a submeteria a atos de lascívia no canto escuro do
muro ou no fundo do quintal. Um “bom rapaz”, de “boas intenções”, também não se envolveria
com uma jovem que soubesse não ser de “boa conduta”. Foi o que expressou um dos juízes ao
julgar o caso em que a nossa conhecida Eva de Jesus Flores, acusou seu namorado Bernadino
Pires de havê-la seduzido e desvirginado em 17 de maio de 1971. Em sua sentença afirmou o
juiz:
(...) Por outro lado, o convite do réu para que fugissem era desarrazoado e
deveria, ao contrário, levantar a mais justa desconfiança da menor. Este
convite para a fuga demonstrava os maus propósitos do acusado, pois um
rapaz que pretende mesmo se casar com uma moça a namora às claras,
freqüenta a sua casa indissimuladamente, demonstra de público os seus
bons propósitos, fica noivo de aliança no dedo e procura marcar data para
o casamento.
O modo como o denunciado procedeu deveria apenas servir para que a
ofendida desconfiasse dos seus propósitos e o convite para a fuga implicava
numa proposta de mancebia, repelida pela moral e descaracterizadora de
delito de sedução297. [grifo nosso]
Em outro processo, Licurgo Veriato, brasileiro, branco, católico, fluminense, com 21
anos de idade, solteiro, lavrador, sabendo ler e escrever; depondo na delegacia no dia 02 de
dezembro de 1972, afirmou ter namorado a ofendida por oito meses, freqüentando, desde o
início, a casa da namorada. O namoro havia sido consentido pelos pais da mesma. Segundo
Licurgo
gostava bastante da sua namorada, tendo mesmo pretensões de se casar com
sua namorada; jamais, em tempo algum, (...) procurou com a mesma manter
relações sexuais, a fim de verificar a virgindade da mesma, pois, sabia que
sua namorada deveria ser moça, embora (...) tivesse tido conhecimento de
que sua namorada passara toda uma noite com um rapaz na praia de
Atafona (...) e por este motivo, resolveu desmanchar o namoro; que, (...)
sempre a tratara com o maior respeito e todas as vezes que fora à casa dela,
sempre se encontravam presentes os pais da mesma (...) jamais saíra a
passeios com sua namorada, limitando-se apenas a visitas à casa dela (...)298.
296
Processos em que o acusado foi qualificado como sendo um “bom rapaz” ou um “homem de bem”: 11.172;
11.713; 11.926; 11.464; 11.716; 11.651; 11.430; 11.487; 10.745; 11.500; 10.937; 10.981; 8.921.
297
Processo nº 11.177, maço 570, folhas 67-70.
298
Processo nº 11.731, maço 562, folha 12.
156
Esta seria a maneira de agir de um “bom rapaz” que namorasse seriamente. Em sua
sentença, o juiz, dentre outras coisas, afirmou:
(...) O jovem acusado me deixou boa impressão e disse haver terminado o
namoro em virtude da má conduta da ofendida (...)299.
Apesar deste acusado declarar todas as regras do namoro moralizado, bem distintos
foram os comportamentos descritos nos depoimentos da maioria dos acusados. Namoravam sem
o consentimento dos pais das moças, tinham relacionamentos extraconjugais (namoravam e
copulavam com a ofendida mesmo sendo casados, fato que, às vezes, era escondido da
ofendida), davam-se à concupiscência em vias públicas e não demonstravam uma intenção
matrimonial, posto que logo declararam ter abandonado as namoradas, e, desta forma, punhamse “fora das regras” defendidas pelo judiciário. Mas o que fica evidente na leitura dos processos
é que os julgamentos dos crimes de sedução se constituíam em avaliações morais onde o que
efetivamente se julgava eram os comportamentos e atitudes das mulheres, levando, como
observou Karla Bessa, as “vítimas”, as mulheres, a se transformarem em rés300.
3. A HIERARQUIA DAS “CORES” NAS RELAÇÕES SEXUAIS
Analisando os processos e a relação entre as “cores” dos casais, pudemos constatar a
existência de uma hierarquia nas escolhas amorosas onde, ao que parece, relações de gênero e
discriminação racial, se articulavam301.
299
Id. Ibid., folha 47. Licurgo, aos olhos do juiz, mostrou-se portador de uma concepção “séria” de namoro tendo
uma conduta “correta”. Outros processos em que o acusado teve a sua imagem, a sua moral, valorizada: 6.727;
7.795; 8.921; 9.529; 10.448; 10.745; 10.793; 10.803; 10.937; 10.943; 10.959; 10.981; 11.098; 11.138; 11.172;
11.413; 11.426; 11.430; 11.464; 11.486; 11.487; 11.500; 11.622; 11.651; 11.713; 11.716; 11.731; 11.733; 11.842;
11.924; 11.926; 12.249.
300
Cf. BESSA, Karla Adriana Martins. “O Crime de Sedução e as Relações de Gênero” In: Cadernos Pagu:
sedução, tradição, transgressão (2). São Paulo: Núcleo de Estudos de Gênero, UNICAMP, 1994, pp. 176-188.
301
A classificação dos populares pelo item “cor” está na tabela 13, na página 91.
157
TABELA 34
“COR DOS CASAIS, EM %
“Cor”
%
Ele e ela “brancos”
22,6
Ele “branco” e ela “parda”
20,8
Ele “branco” e ela “preta”
5,7
Ele e ela “pardos”
13,2
Ele “pardo” e ela “branca”
13,2
Ele “pardo” e ela “preta”
13,2
Ele “preto” e ela “parda”
5,6
Ele e ela “pretos”
3,8
Ele “preto” e ela “branca”
1,9
Total
100
Fonte: 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
Analisando os processos, observamos que as moças “pretas” buscaram ou aceitaram,
preferencialmente, relacionamentos amorosos/sexuais com rapazes dos grupos étnicos/raciais
cuja tonalidade da pele seria mais clara do que a sua302. 58,3% no caso de rapazes “pardos”, 25%
no caso de rapazes “brancos” e, apenas, 16,7% no caso de rapazes “pretos”. Também as moças
“pardas”303 procuraram ou aceitaram, majoritariamente, namorar rapazes “brancos” (52,4%),
vindo depois (mas com uma distância muito grande em relação à preferência anterior) a procura
por rapazes do próprio grupo étnico/racial (33,3%) e, por último, aceitavam-se os “pretos”
(14,3%). Inversamente, as moças brancas davam preferência ao namoro racialmente
endogâmico(60%), vindo depois (mas também com uma grande distância em relação aos rapazes
“brancos”) a aceitação por “pardos” (35%) e, praticamente nenhuma aceitação por rapazes
“pretos”(5%). Em apenas um caso ele era “preto” e ela era “branca”304.
302
Martha Abreu percebeu situação semelhante no Rio de Janeiro da Belle Époque. Ver ESTEVES, Martha de. Op.
cit., p. 151.
303
Devemos ter em conta que a categoria “pardo” é por demais lata. Nela, via de regra, inclui-se todos os que não se
quer ou não se consegue classificar como “brancos” ou “pretos”, incluindo os “mamelucos”, os “caboclos”, os
“cafuzos”, os “índios”, os “ciganos”, e todos os biótipos expressivos de mestiçagem. Temos ainda que as
classificações dos populares foram feitas por funcionários dos cartórios, no caso das certidões de nascimento, e por
elementos das burocracias policial e judiciária nos autos de qualificação, nos depoimentos e nos exames de
conjunção carnal e não sabemos que critérios foram usados na classificação dos indivíduos como sendo desta ou
daquela “cor”. É, portanto, possível que pessoas classificadas como “brancas” pudessem também ser consideradas
“pardas” e outras classificadas como “pardas” pudessem ser incluídas entre as “pretas”.
304
Os percentuais empregados, neste parágrafo, diferem dos constantes da tabela com dados sobre a cor dos casais
(tabela 34, página 157) porque a referência entre os gêneros foi elaborada a partir do recorte intra-racial.
158
Pensamos ser plausível supor que a seletividade étnica constatada estava vinculada com
expectativas de ascensão, se não econômica, ao menos “racial”, por parte das moças “pardas” e
“pretas”. Quanto às moças “brancas”, é possível que tendessem a considerar desvantajosa uma
união amorosa com rapazes localizados numa escala inferior da hierarquia racial.
No caso dos acusados, podemos observar algumas “pequenas” diferenças em relação ao
comportamento das ofendidas. Notamos, de imediato, uma maior aceitação entre os rapazes
“brancos” por relacionamentos sexuais com moças “pretas” do que a aceitação de homens
“pretos” por moças “brancas”. Enquanto somente 5% das moças “brancas” aparecem envolvidas
sexualmente como um homem “preto”, temos 11,1% dos homens “brancos” relacionando-se
sexualmente com moças “pretas”. Na seqüência das opões raciais, aparentemente os rapazes
“brancos” seguiam a mesma hierarquia das moças “brancas”, com uma aceitação maior das
moças “pardas” (40,7%) em relação às moças “pretas”(11,1%) e uma maior aceitação por moças
“brancas”(44,4%). Porém, aqui também notamos diferenciações. A aceitação das moças
“pardas” pelos homens “brancos” foi mais significativa do que a aceitação dos homens “pardos”
pela moças “brancas”. Enquanto 35% das moças “brancas” aceitaram relacionamentos sexuais
com homens “pardos”, 40,7% dos homens “brancos” envolveram-se sexualmente com moças
“pardas”. Por outro lado, temos 60% das moças “brancas” optando por relacionarem-se
sexualmente com rapazes “brancos”, enquanto somente 44,4% dos homens “brancos”
envolveram-se sexualmente com moças “brancas”. Ou seja, os homens “brancos” mostraram-se
racialmente mais exogâmicos do que as mulheres “brancas”305.
Por sua vez, os homens “pardos” mostraram-se os menos seletivos, em termos raciais,
entre os três grupos. É, no mínimo, curioso observarmos que 36,8% dos homens “pardos”
relacionaram-se sexualmente com moças “brancas”, 36,8% com moças “pardas” e 36,8% com
moças “pretas”306. O mais interessante é vermos ser este o único grupo onde as moças “pretas”
ocupam o mesmo nível de preferência ou aceitação que as “brancas” e “pardas”. Seriam os
homens “pardos” menos racistas? Sendo uma
305
306
Para este parágrafo é válida a mesma observação constante na nota 303.
Para este parágrafo é válida a mesma observação constante na nota anterior.
159
das expressões da mestiçagem brasileira teriam os “pardos” introjetado os valores da
“democracia racial”? Os processos não nos permitem responder a estas questões.
Provavelmente o grupo mais difícil de ser compreendido seja o dos “pretos”, pois nele,
possivelmente, os dados expressem mais o resultado das contingências que das “opções”. De
qualquer forma, as opções nas relações entre gênero e raças parece-nos seguir também uma
lógica seletiva, mas em sentido inverso do que ocorre no grupo “branco”.
Nos casos dos(as) “pretos(as)” temos que 28,6% dos homens “pretos” buscaram ou
aceitaram relacionamentos sexuais com moças “pretas” enquanto somente 16,7% das moças
“pretas” procuraram ou aceitaram relacionar-se sexualmente com homens “pretos”. Por outro
lado, 42,9% dos homens “pretos” mantiveram contatos sexuais com moças “pardas”, enquanto
58,3% das moças “pretas” relacionaram-se sexualmente com homens “pardos”. Contrariamente,
14,3% dos homens “pretos” envolveram-se sexualmente com moças “brancas”, enquanto 25%
das moças “pretas” buscaram ou aceitaram o relacionamento sexual com homens “brancos”.
As estatísticas mostram claramente o desfavorecimento de “pretos” e “pretas” frente a
“pardos(as)” e “brancos(as)”. Certamente, a discriminação por motivos raciais 307 atuou na
composição dos casais das camadas populares cujos relacionamentos sexuais terminaram por
constituir-se em processos por crimes de sedução.
Apesar de compartilharem uma mesma situação sócio-econômica, de possuírem uma
estrutura familiar similar, além de níveis de instrução escolar próximos; rapazes e moças
praticavam uma seletividade de “cor” nas suas escolhas amorosas. Não temos, com os dados
desta pesquisa, como explicar as razões para a existência dessa seletividade e as formas que ela
adquire concretamente (desfavorecimento maior dos rapazes “pretos”)308, o máximo que
podemos constatar é que a discriminação racial
307
Utilizo o termo racismo entendendo-o como manifestação ideológica (no sentido marxista clássico de falsa
consciência) nascida em fins do século XVIII e que procura, a partir das ciências da natureza, mormente da biologia,
legitimar o conceito de raça e valorizar ou negativar os grupos sociais e os indivíduos a partir das suas
características biológicas exteriores (fenótipos). Cf. OLIVEIRA, Fátima. Engenharia Genética: O Sétimo Dia da
Criação. São Paulo: Moderna, 1995, pp. 99-120.
308
Não sabemos, por exemplo, se os homens “pretos” tinham menores vantagens no mercado de trabalho ou no
próprio meio social em que viviam, em relação aos homens “brancos”. É provável que sim, mas faltam-nos estudos
a este respeito em Campos.
160
esteve presente, ao menos em uma parte dos homens e mulheres das camadas populares de
Campos envolvidos nos processos por crimes de sedução que pesquisamos.
Ao concluirmos o capítulo, consideramos possível estabelecermos algumas ligações
com os assuntos tratados no Capítulo I. Por um lado, temos a insistência dos profissionais do
judiciário em receitarem a passividade, o recato e a obediência como padrão ideal para os
comportamentos femininos. De forma mais ou menos direta os juristas pelejam pela
domesticação da sexualidade feminina. Ao sentenciarem ou ao estabelecerem os princípios para
o julgamento dos crimes de defloramento/sedução, os juízes cobram das ofendidas que ao
namorarem o fizessem dentro de certas normas, a exemplo da autorização familiar e sem a
permissão de atos concupiscentes. Mas, além do namoro feito de maneira adequada, os juízes
exigiam que o namoro, para ser moralizado, visasse ao casamento. Analisando os processos,
observamos que submissão, recato, namoro moralizado e perspectiva matrimonial eram
elementos-chaves na caracterização positiva da mulher pelos profissionais do judiciário. O
casamento reaparece como finalidade da existência feminina e meio de moralização das relações
sexuais.
Vimos, neste capítulo, que as moças e rapazes das camadas populares presentes nos
processos não viveram suas relações de namoro em conformidade com as regras do judiciário e
do namoro moralizado. Mas, ao terem suas práticas sexuais transformadas em objeto da
intervenção policial e judiciária, moças e rapazes, de uma forma geral adotaram atitudes
conflituosas. Elas buscaram responsabilizá-los por todo o enlace amoroso até a realização da
cópula onde, em geral, afirmaram terem desempenhado uma papel passivo, como “vítimas” dos
ardis sedutores dos namorados. Justificaram a concordância com o relacionamento sexual em
virtude de supostas promessas de casamento, mas também em decorrência de um estado de
excitação provocado pelas carícias dos namorados pelos quais, secundo disseram, nutriam
grande afeto.
Por sua vez., os rapazes, quando não assumiram “a culpa” pelo desvirginamento das
ofendidas e se declararam desejosos de com elas casarem, procuraram se mostrar inocentes,
negando o envolvimento sexual com a ofendida ou afirmando que as mesmas já não eram
virgens no momento em que copularam. Contudo, como demonstramos, o reconhecimento do
desvirginamento não implicava
161
necessariamente na condenação do réu, desde que ele se casasse com a ofendida ou conseguisse
convencer ao juiz que ela não era “moça recatada”, “moça de família”.
O mais importante na estratégia defensiva dos acusados era a negação da promessa de
casamento, assim como o mais importante na estratégia da acusação era provar ou tornar crível
para o juiz ter sido a promessa de casamento o motivo pelo qual a ofendida concordou com o
desvirginamento. Mas o que significava casar, para os homens e mulheres da população pobre de
Campos envolvidos nesses processos? Os processos e o contexto histórico de Campos nos
permitiriam supor fosse o casamento uma expectativa presente nas camadas populares do
município? É possível supor que a expectativa do casamento tenha influído na decisão de se
apresentar a denúncia contra os acusados? O significado do casamento entre os setores populares
seria o mesmo dos profissionais do judiciário? Essas são questões que compõem o Capítulo V.
CAPÍTULO V
AMIGADO COM FÉ, CASADO É
163
1. PAPÉIS SOCIAIS, MORAL E MATRIMÔNIO
Ela pensa em casamento
e eu nunca mais fui à escola
sem lenço, sem documento...
Caetano Veloso
No estudo dos processos-crimes, chama a atenção a variedade de comportamentos e
atitudes dos homens e mulheres das camadas populares. Ao mesmo tempo que depuseram
manifestando posturas e valores condizentes com os códigos morais do judiciário (baseados na
defesa da “moral familiar”, no recato feminino, na obediência dos(as) filhos(as) aos pais, no
namoro sério e no casamento), também relatam práticas de vida antagônicas com um
comportamento moralizado. Assim, os protagonistas dos processos depuseram valorizando o
casamento formal, o qual, como vimos, configurava-se crescentemente como a principal opção
de união matrimonial no conjunto da população, sendo também majoritário entre queixosos(as) e
testemunhas. Simultaneamente, estes homens e mulheres aceitavam amasiamentos e constituíam
famílias não legitimadas, evidenciando que os referenciais a partir dos quais formulavam seus
valores e códigos de conduta guardavam diferenças em relação aos códigos do judiciário.
Por isso, algumas ofendidas afirmaram na polícia e/ou em juízo ter copulado mediante
uma suposta promessa de mancebia, de montagem de casa ou de ser cuidada pelo namorado
309
, pois, provavelmente para estas ofendidas, o amasiamento não se configurava imoral
e também implicava na assunção das responsabilidades matrimoniais da parte de cada um dos
cônjuges.
Pelos relatos contidos nos processos, verificamos que nas propostas de mancebia, assim
como nas de casamento, ficava implícito o dever do homem (marido ou companheiro) na
manutenção da casa e da família, cabendo à mulher (esposa ou companheira) as funções
domésticas, incluso o cuidado com os filhos. Configurava-se
309
Esses são processos em que as ofendidas disseram ter aceitado copular sob promessa de mancebia, de montagem
de casa ou de ser cuidada pelo acusado, também temos, na lista, processos em que a ofendida passou a viver com o
acusado ou com outro homem, vindo ou não a se casar. 10.155; 10.569; 10.745; 10.793; 10.803; 11.172; 11.177;
11.260; 11.413; 11.426; 11.430; 11.431; 11.500; 11.622; 11.716; 11.927; 12.285; 12.365.
163
assim o dever de mútua ajuda que, além de ser parte do senso comum dos casais, é também uma
norma do Código Civil. Ou seja, a distinção entre os sentidos do matrimônio não estava no
exercício dos papéis sexuais, mas na prescindibilidade para os homens e mulheres das camadas
populares, das significações moralistas que o discurso normatizador dos juristas lhe embutia. Ou
seja para os setores populares, o casamento não visava, centralmente, à moralização das relações
sexuais e à disciplinarização dos comportamentos sociais, como foi concebido nas diversas
políticas de normatização que analisamos no Capítulo I.
Depondo em juízo no dia 13 de dezembro de 1971, a nossa já conhecida Suelen
Camargo disse:
que vai fazer um ano em janeiro que convive com o acusado e está grávida dele;
que o acusado trata bem da ofendida; que o acusado mantém a casa
regularmente fornecendo o necessário à depoente (...) que gosta do acusado e
não tem raiva dele; que não tem raiva de nada do acusado, que deseja se casar
com o acusado, que o acusado é homem trabalhador; que trata bem
moralmente a depoente; que o acusado nunca manifestou o desejo de se casar
com a ofendida (...)310. [grifos nossos]
Outro exemplo do que as moças ofendidas entendiam por matrimônio (e que tanto podia
se realizar no casamento como no amasiamento) é encontrado no caso de Keitiane Barcelos,
brasileira, preta, fluminense, com 16 anos de idade, do lar e alfabetizada, que teria sido seduzida
e deflorada, em janeiro de 1970, por seu noivo Juvenal Oliva, brasileiro, branco, católico,
fluminense, solteiro, com 25 anos de idade e alfabetizado.
Depondo em juízo em 20 de setembro de 1974, a queixosa, mãe da ofendida, afirmou
que
em maio último, a filha da depoente foi morar no Rio de Janeiro em companhia
de uma rapaz de nome Josué Carvalho; que faz mais ou
310
Processo nº 10.745, maço 574, folha 34. Ver também o depoimento, já transcrito, de Eva de Jesus Flores onde
afirma, perante o juiz, que o acusado com que passara a viver amasiada “é muito bom para a ofendida e dá toda
assistência que precisa”, processo nº 11.177, maço 570, folha 61.
164
menos um ano e cinco meses que a filha da depoente passou a namorar Josué
Carvalho e que em maio passado, sua filha já foi para o Rio grávida de Josué
Carvalho; que atualmente sua filha já tem inclusive uma menina, fruto desse
companheirismo; (...) que a depoente sabe que Josué Carvalho pretende até ao
final do ano casar-se legalmente com sua filha (...) que a depoente sabe que sua
filha mora com Josué Carvalho em Parada de Lucas, mas não sabe dizer
precisamente o endereço (...) que sua filha era alfabetizada e sabia muito de
serviços domésticos e era muito inteligente (...); que sua filha não gostava de
diversões; que a depoente nunca viu sua filha sair sozinha com o acusado; que
não deixava sua filha sair por causa de criação do interior, que é assim (...)311.
[grifos nossos]
A compreensão de que a seriedade, e mesmo a razão de ser da união conjugal, se
fundamenta no cumprimento dos papéis sexuais, com o homem honrando o seu dever de protetor
e mantenedor da casa, enquanto a mulher zela pela organização e funcionamento do lar, aparece,
pelos relatos contidos nos processos, como sendo comum entre os homens e mulheres das
camadas populares. Contudo, temos indícios de que essa compreensão também foi aceita por
alguns profissionais do judiciário.
É o que se pode apreender, por exemplo, do pronunciamento do defensor de Bernadino
Pires, acusado no processo de nº 11.177, que afirmou em suas alegações finais
MM. Juiz, o acusado errou, ou aparentemente errou. Se errou, reparou o seu
erro. E quem assim define é a própria ofendida no seu depoimento.
É casado o acusado, porém separado da mulher há mais de 10 anos. Casou,
pensando encontrar naquela mulher a felicidade que sonhava, em vão.
Crueldade seria condenar um homem nessas condições a viver infeliz para o
resto da vida, sem amor, sem carinho.
E este amor e este carinho, ele encontrou na ofendida. Quis o destino que a
encontrasse tardiamente, quis ainda o destino que esse encontro fosse de
maneira, até certo ponto, reprovável. Mas isso não importa, e assim se
conheceram, se completam e se entendem.
E nesses crimes contra os costumes, o que a lei visa, sem dúvida, é a proteção
da menor. E protegida ela está com o acusado, e próprio M.P. reconhece nas
suas alegações finais.
E ademais condenar este homem é também condenar uma jovem ao sofrimento,
à penúria; é destroçar um amor, é separar um casal que vive em harmonia e
felicidade, é destruir um lar, enfim312.
311
312
Processo nº 10.803, maço 567, folha 33.
Processo nº 11.177, maço 570, folhas 63-64.
165
Apesar do caráter “reprovável” do relacionamento entre o acusado e a ofendida,
somente possível em termos de amasiamento já que ele era casado, o defensor, com o apoio do
promotor, buscou convencer o juiz que o réu reparara o seu erro - ter desvirginado uma menor
através de sedução - ao passar a viver com ela, protegendo-a e com ela ter constituído “um lar”,
que seria destroçado caso ele fosse preso. O juiz o absolveu.
O caso mais interessante e expressivo do sentido que a união matrimonial tinha para
esses homens e mulheres presentes nos processos é o de Maurici Alves, brasileiro, preto,
fluminense, católico, casado, com 41 anos de idade, industriário e alfabetizado que foi acusado
de haver, no ano de 1966, seduzido e desvirginado a menor Marilene Fragoso, brasileira, preta,
fluminense, com 15 anos de idade, do lar e alfabetizada.
Maurici Alves, depondo na delegacia no dia 5 de setembro de 1969, declarou ser
separado da esposa há cerca de onze meses e pouco, que se recorda de ter mantido relações
sexuais com a ofendida pela primeira vez no dia 13 de maio de 1969313, tendo sido ele o seu
desvirginador. Declarou ainda que
tanto a ofendida quanto a sua genitora sabiam que o depoente era casado; que,
desde o dia treze de maio do corrente, é o depoente quem concorre com
todas as despesas da casa, residindo vizinho da ofendida, separado da referida
menor, não estando até a presente data dormindo com a ofendida, como se fosse
marido e mulher; que existe na Usina onde o depoente trabalha um livro onde se
inscreve quem quiser de livre e espontânea vontade, cujo livro tem por
finalidade de quando falece um daqueles inscritos, a pessoa que ele colocou
como seu dependente tem direito a cinco por cento (5%) sobre o salário da
pessoa ali inscrita; que, o depoente, neste livro, colocou como beneficiária
Marilene Fragoso e seus filhos que porventura venham a nascer; que, o
depoente não prejudicou os filhos da mulher casada, pois além da pensão
que dá todos os meses aos mesmos, ainda eles têm um outro seguro feito
pela própria Usina (...)314. [grifos nossos]
313
A ofendida, Marilene Fragoso, declarou, em seu depoimento, em 01de setembro de 1969, que namorava o
acusado Maurici Alves há quatro anos, sendo por ele desvirginada em 1966, quando ainda tinha onze anos de idade
dentro da residência da sua mãe, a qual somente há cerca de um mês ficara sabendo do desvirginamento e da
gravidez. Disse que ela e a mãe sabiam que ele era casado, mas vivia separado da esposa.
314
Processo nº 178/69, maço 460, folha 11.
166
Mais impressionante foi a postura do promotor que, em seu parecer, pediu o
arquivamento do processo por considerar que o mesmo não oferecia condições para denúncia.
Disse ele:
Trata-se de defloramento que não pode ser dado à conta de sedução, pois que,
tanto a ofendida como sua genitora, nos informam o estado de casado do
acusado. Por outro lado, não tem cabimento denúncia por corrupção de menor,
provado que está a intenção do acusado de amparar a ofendida e sua
genitora, as quais mantém, segundo informou (...) ainda que o processo
oferecesse condições de denúncia por qualquer dos crimes seria de difícil
admissibilidade, face à situação comprovada do conhecimento do estado civil
do acusado (...)315. [grifo nosso]
Maurici não tinha como criminosa ou imoral a sua conduta, porque cumpria o seu papel
de homem, de marido e pai: sustentava, economicamente, tanto os filhos com a “mulher casada”,
como provia o sustento de Marilene e sua mãe, tendo inclusive tomado as providências
necessárias para ampará-la e aos filhos em caso de sua morte. Maurici, certamente, se
considerava um homem “honrado”, responsável e cumpridor dos seus deveres maritais. Ao que
parece não estava só nessa compreensão sobre o casamento, ao menos era acompanhado por
Marilene e sua mãe. Até o promotor não viu crime em seus atos, visto que ele estava a sustentar
a ofendida e a queixosa, isto é, cumpria, da forma como lhe era possível, o seu dever.
Certamente esta não era a forma modelar de união matrimonial e nem mesmo a mais adotada
pela maioria da população, contudo era aceitável e não devia produzir, entre os homens e as
mulheres das camadas populares, constrangimentos morais insuportáveis.
A moral das camadas populares mostra-se bem mais flexível, complexa e contraditória
que a legislação civil e penal. Fica evidenciado, na leitura dos processos, que o que estamos a
chamar de populares, setores populares ou camadas populares, não formava um bloco monolítico
ou monocultural. O termo inclui tanto aqueles indivíduos que viveram a experiência matrimonial
conforme o ideal moralizador do judiciário: o casamento oficial. E que, segundo os dados do
IBGE, seria maioria da população. Quanto aos que adotaram posturas “desviantes” e conflitantes
com a moral dos juízes,
315
Id. Ibid., f. 16. A atitude deste promotor não foi a regra, porém, temos alguns poucos casos em que os
profissionais do direito deram mostras de que percebiam o conflito entre a letra da lei e a realidade da vida dos
homens e mulheres julgados nos processos por sedução.
167
expressas nas normas da convivência amorosa legitimada pelos códigos legais (Código Civil e
Penal), que reconheciam no casamento a única forma legitimada de se constituir uma família e
moralizar as relações sexuais.
Homens que, a princípio, teriam adotado um comportamento amoroso e sexual
normatizado, por terem casado e constituído famílias “legítimas”, aparecem nos processos como
possíveis sedutores de menores, adúlteros e bígamos. Diversidade e contradição, portanto,
parecem-nos noções fundamentais para entendermos as vivências das camadas populares.
2. ELA PENSA EM CASAMENTO? O SENTIDO DAS UNIÕES
Um dos pontos mais difíceis de ser tratado na análise de um processo por crime de
sedução consiste exatamente naquele que nos parece ser o seu elemento nodal: o porquê da
queixa.
Karla Bessa, em seu estudo sobre crimes de sedução ocorridos em Uberlândia nos anos
50, afirma que os motivos das queixas não ficam explícitos nos processos, mas registra alguns
que considera possíveis: desespero, ira ou fé na ‘justiça’316.
Um detalhe intrigante, quando estamos diante de vários processos de sedução, é
que, mesmo após a leitura de vários processos, não há uma compreensão clara a
respeito de como uma disputa amorosa chega às vias de fato e se transforma em
um caso de polícia. No caso específico do crime de sedução emergem várias
conjecturas317. [grifo nosso]
Apesar de fazer referência a “várias conjecturas”, não conseguimos localizar, na sua
pesquisa, mais do que uma.
316
BESSA, Karla Adriana Martins. Op. cit., Capítulo 3,1994, p. 90.
Id. Ibid.
317
168
A primeira se refere diretamente à própria dinâmica do relacionamento afetivo.
Algo ocorreu durante os jogos amorosos que desencadeou o impasse. Estamos
mais uma vez imersos nos jogos de sedução318.
Cristina Donza também quase nenhuma atenção dedicou a este ponto. A antropóloga
paraense informa que nem sempre a primeira atitude dos responsáveis pelas ofendidas, ao
tomarem conhecimento do defloramento, foi procurar a polícia. Em vários casos o(a)
queixoso(a) justifica a demora na apresentação da queixa, dizendo que antes buscara um
entendimento com o acusado, objetivando a “reparação do mal feito” e que, somente após ouvir
uma resposta negativa ou não ter o compromisso de reparação sido cumprido é que se viu a
necessidade de recorrer à polícia319.
Quanto à motivação para a queixa, a conclusão de Cristina Donza é que a
(...) decisão de denunciar o defloramento à polícia geralmente também só era
feita naqueles casos em que a menor ficava grávida. Os parentes de uma
maneira geral não se mobilizavam com relação ao conhecimento da situação de
amasiamento da menor, da realização de cópulas carnais ou de encontros a sós
com seus namorados. Mas se a menor engravidava, as pressões se faziam
presentes, (...) para que o amante não fugisse e assumisse a relação com a menor
(...) mesmo que fosse amasiado (...)320. [grifo nosso]
Martha Abreu atribui a queixa a várias possibilidades: a ocorrência de gravidez para
qual estar-se-ia buscando o reconhecimento do parceiro; o desejo de realizar um casamento
embargado pela família; uma possível pressão patronal ou policial; a tentativa de “não perder um
‘bom’ partido ou mesmo uma paixão”, são hipóteses levantadas pela historiadora.
(...) A própria diversidade de motivos explicitada nos depoimentos indica que,
pelo menos, a internalização do dever da honra não era a primeira necessidade
na busca pelas reparações, como os juristas gostariam que fosse321. [grifo
nosso]
318
Id. Ibid.
CANCELA, Cristina Donza. Op. cit., p. 92.
320
Id. Ibid., p. 93.
321
ESTEVES, Martha de Abreu. Op. cit., p. 203.
319
169
Assim como nas pesquisas anteriormente apontadas, também nos processos localizados
em Campos, não se explicita claramente as motivações para a queixa. Como as próprias
ofendidas, por serem menores, não podiam apresentar a queixa, sendo esta da responsabilidade
dos seus pais, foram eles (e, na maior parte dos casos, às mães) que indicaram os motivos para a
queixa. Não sabemos se por serem ou não instruídos na delegacia, os(as) queixosos(as)
apresentaram sempre uma mesma razão: a filha havia sido seduzida e desvirginada sob
promessa de casamento não cumprida. Os dois supostos atos do acusado, o desvirginamento e a
quebra da promessa de casamento, são unidos numa só queixa e num só delito.
A própria definição do crime de sedução se fundamenta nessa união. O delito só existe
quando, além dos outros quesitos, ocorre tanto o desvirginamento quanto a violação da promessa
de casamento. Esse vínculo entre desvirginamento e promessa de casamento para o
reconhecimento, pelos juízes, do crime de defloramento/sedução, foi bem analisado por Martha
Abreu e Sueann Caulfield322. Nós o abordamos no Capítulo I desta dissertação. De forma geral, a
promessa de casamento, quando formulada no decorrer de um longo e adequado namoro, ou
após o noivado, tendo o aspecto de comprometimento sério, crível, se constituía na mais
importante justificativa para que uma “moça honesta” cedesse sua virgindade ao namorado ou
noivo.
Ao se apresentarem na delegacia, os(as) queixosos(as) não diziam pretender a realização
do casamento. Alguns, porém, deixaram claro que recorreram ao judiciário porque o acusado
recusara-se a “reparar o mal feito” e todos disseram-se em busca de justiça323.
A leitura atenta dos processos permite-nos, perceber que a justiça pretendida era a
“reparação do mal feito”, a qual poderia resultar de dois atos distintos (mas
322
ABREU, Martha Campos. e CAULFIELD, Sueann. Op. cit. passim.
A respeito do sentido de justiça como fator de recurso ao judiciário pelos “populares”, ver THOMPSON, Edward
P. Senhores e Caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ________. Tradición, Revuelta y
Consciencia de Clase: estudios sobre la crisis de la sociedad preindustrial. Barcelona: Editorial Crítica, s.d.
323
170
às vezes articulados): a condenação do réu ou a realização de uma união conjugal entre ele e a
ofendida, preferencialmente, o casamento324.
A gravidez, que aparece nas pesquisas de Martha Abreu e Cristina Donza como uma das
principais razões, se não a principal, para a queixa contra o suposto sedutor, nos processos que
analisamos em Campos foi menos expressiva325, apesar de treze ofendidas (24,5%) terem ficado
grávidas. Em dois processos (3,8%), as ofendidas afirmaram ter revelado o desvirginamento às
suas mães por terem ficado grávidas326. No entanto, apenas no processo 11.426, a ofendida
declarou que a mãe apresentou a queixa em razão da sua gravidez. (Tabela 35).
Dos processos em que as ofendidas ficaram grávidas, apenas os acusados dos processos
6.727, 10.745 e 10.793 foram condenados (de um total de sete condenações), mas os juízes não
afirmaram a gravidez como motivação para a condenação. Das sete ofendidas que casaram com
os acusados, apenas a do processo132/70 estava grávida. Das duas ofendidas que amasiaram com
os acusados, apenas a do processo 11.430 estava grávida. das três ofendidas que casaram com
outros homens, apenas a do processo 11.457 estava grávida (segundo ela, do acusado). E das três
ofendidas que amasiaram com outros homens, somente a do processo 10.793, estava grávida
(segundo disse, do acusado).
Os dados permitem-nos perceber que a gravidez não era razão suficiente para levar o
acusado à condenação (até porque a paternidade nunca ficava “provada”). Também não era
suficiente para produzir o casamento do acusado com a ofendida. Por outro lado, ao que parece,
a gravidez da ofendida não embargava, de forma absoluta, suas possibilidades do obter o
casamento ou o amasiamento com outro parceiro. Entretanto, os dados disponíveis não são
suficientes para tirarmos conclusões mais amplas.
324
Apontar o desvirginamento e a quebra da promessa de casamento como o motivo para a queixa seria não só uma
forma de portar-se conforme a lógica das normas jurídicas, mas também guardaria coerência com os motivos
alegados pelas ofendidas para terem cedido aos desejos sexuais dos namorados. Por outro lado, é bem provável que
o casamento fosse realmente a expectativa dos(as) queixosos(as). Tanto mais que eles mesmos, em sua maior parte,
eram casados conforme nos mostram os dados dos processos (ver tabela 7, página 85), e as análises que
desenvolvemos no Capítulo II (páginas 73-95).
325
Processos em que o Exame de Conjunção Carnal registrou estar a ofendida grávida: 132/70; 6.727; 10.745;
10.793; 10.959; 11.172; 11.413; 11.426; 11.430; 11.457; 11.464; 11.486; 11.688.
326
Processos nº 6.727 e 11.426.
171
Se a gravidez não foi, via de regra, a principal razão apontada para a queixa, a sua
existência não deixou de ser usada como um argumento a mais para exigir-se que o réu
“assumisse as suas responsabilidades”, reparando, pelo casamento, “o mal feito”.
(...) resolveu contar o acontecido à sua irmã em virtude do atraso da sua
menstruação, esta dera conhecimento do fato ao seu genitor que procurou o
acusado tendo este se negado a ‘reparar o mal com o casamento’327.
Quanto à oposição familiar, apenas uma ofendida alegou que cedera ao coito como
forma de pressionar a família do namorado a aceitar o casamento328, enquanto, em três outros
processos, a afirmação de que o desvirginamento teria sido uma tática usada pela ofendida como
forma de escapar aos embargos postos pela família, dela ou do namorado, partiu do acusado ou
do defensor329.
Mesmo não sendo dita de forma explícita, na maior parte dos casos, fica patente que a
perda da perspectiva de uma união conjugal - efetivamente prometida ou não - foi a motivação
principal à maioria dos processos. Mesmo quando esta motivação não era a da ofendida, era a
dos seus pais a quem, no frigir dos ovos, cabia a responsabilidade e o direito da representação
jurídica. Daí para frente, em alguns casos, evidencia-se que a ofendida apenas desempenhava o
papel que lhe era atribuído pela família na busca da união conjugal. Mas acreditamos, na maior
parte dos casos, que a ofendida lutava, no judiciário, para conquistar ou manter uma união
desejada.
TABELA 35
RAZÕES PARA A QUEIXA SEGUNDO AS OFENDIDAS, EM %
Razões
%*
%**
Descumprimento da promessa de casamento
20,8
68,8
Ele a desprezou***
5,7
18,8
Ele propôs amigar com ela e casar com outra****
1,9
6,2
A ofendida declarou que a mãe apresentou a queixa por ela ter ficado grávida
1,9
6,2
* Percentuais relativos aos 53 processos pesquisados no Fórum de Campos dos Goytacazes.
** Percentuais relativos aos 16 processos em que as ofendidas disseram a razão da queixa.
*** Nesse item, há casos de ofendidas que se disseram desprezadas pelo acusado após a cópula,
não tendo ele cumprido a promessa de casamento, nestes casos, a queixa decorreu dos dois fatores.
**** O que implicou também no não cumprimento da promessa de casamento alegada pela ofendida.
327
Processo nº 9.529, maço 582, folhas 18-19.
Ver o processo 12.250.
329
Ver os processos 10.745; 11.77; 11.223.
328
172
Vejamos o caso do processo 11.430. Nele Elizete Antunes, brasileira, preta, fluminense,
com 16 anos de idade, do lar, sabendo ler e escrever; acusou Olival Lopes, brasileiro, pardo,
católico, fluminense, com 28 anos de idade, lavrador, sabendo ler e escrever de havê-la seduzido
e deflorado em novembro de 1971.
Segundo Olival Lopes, ele teria namorado Elizete Antunes por cerca de quinze dias e
nunca teria prometido casamento à querelante, mas passou a viver com ela, na casa dela,
fazendo inclusive as despesas da casa e, somente após passar a viver com a querelante, é que
prometeu que tomaria conta dela, “mas o depoente abandonou a casa porque ela provoca
muitas confusões” 330.
Ao sentenciar, o juiz, tendo em conta o tempo do namoro, considerou não ter existido
sedução, pois não haveria razão para a ofendida depositar justificável confiança no acusado. E
mais, por lhe ter dado a impressão de ser pessoa “bisonha”, “meio retardado mental”, indagou ao
réu sobre um possível tratamento médico, tendo sido informado pelo réu e depois confirmado
pelo hospital que ele estivera internado no Sanatório por estar “meio doido”. O juiz então
pergunta: “como se admitir fosse a ofendida ser enleada pela conversa de um indivíduo
mentalmente retardado?”. E termina por concluir não haver prova para condenação do réu331.
Apesar de demonstrar grande preconceito contra as pessoas ditas “doidas”, as quais
seriam incapazes de realizar sedução, o juiz toca em algo que nos parece importante neste caso.
Por que Elizete envolveu-se com um homem pobre e aparentemente sofrendo de problemas
mentais? Amor? Talvez! Mas a resposta pode estar também nas condições da sua família. O pai
havia falecido, a mãe estava hospitalizada por ocasião do seu envolvimento com Olival
(certamente sem condições de trabalhar e prover o sustento dos oito filhos) e, pelo que declarou
uma das testemunhas da ofendida, a família encontrava-se passando fome. Nestas circunstâncias,
Olival, mesmo sendo pobre (como de resto toda a comunidade trabalhadora de Goitacases, onde
ele morava) e com o seu jeito “bisonho, meio retardado mental”, no dizer do juiz, mas
possuindo emprego e renda, pode ter sido visto por Elizete - moça
330
331
Processo nº 11.430, maço 572, folha 19. Os grifos são nossos.
Id. Ibid., pp. 34-40.
173
preta, com 16 anos, apenas sabendo assinar o nome, desempregada e vivendo na miséria, como
uma alternativa de sobrevivência.
Devemos ter em conta que, segundo depoimentos, tanto do acusado como da ofendida,
com poucos dias de namoro - e na ausência da queixosa, mas não sabemos se com ou sem o seu
conhecimento - o acusado passou a viver com a ofendida na casa dela (certamente na companhia
de seus irmãos e irmãs), fazendo, no dizer do acusado, “as despesas da casa”. Ou seja,
sustentando Elizete e seus irmãos. Provavelmente foi quando Olival voltou a viver com os pais,
abandonando a casa de Elizete, que ela e a família decidiram denunciá-lo, até porque, aquela
altura, já era do conhecimento público o envolvimento sexual entre ambos.
Isto, evidentemente, não implica em imprimir em Elizete nenhuma condição de
prostituição, mas somente permitir-nos concebê-la no interior das suas condições sociais de
existência e percebermos que essas condições, certamente, influenciavam as suas opções
(possibilidades?) afetivas e sexuais.
Certamente, a decisão de Elizete de viver com Olival, levando-o a assumir o sustento da
casa, deve ter contado com respaldo nos valores culturais/morais dela e, possivelmente, dos seus
familiares, bem como nos dos vizinhos que testemunharam em seu favor.
Podemos supor, pelos depoimentos, pelas condições econômicas e pela altas taxas de
casamento (tanto no caso da população campista em geral, como em relação aos protagonistas
dos processos) que, para essa parcela das camadas populares envoltas nos processos, o desejo de
uma união matrimonial consistia na procura por parceiros que dividissem as tarefas necessárias à
sobrevivência. O matrimônio significava, sobretudo, um pacto de mútua ajuda, com uma certa
divisão de tarefas e funções a partir dos sexos. O casamento formal seria uma espécie de ideal
desejado, porém nem sempre alcançado. Contudo, os amasiamentos, a montagem da casa não
eram recusados e não implicava, para esses homens e mulheres em imoralidade. O moral e o
imoral seriam possivelmente definidos não exatamente pela forma com se efetuou a união
marital, mas pelo cumprimento ou não dos compromissos conjugais assumidos. Ao homem, o
dever de “cuidar da esposa e filhos”332, de prover a casa como estabelece o Código Civil333, à
332
333
Artigo 229 do Código Civil. Cf. NEGRÃO, Theotonio (org.). Op. cit., p. 80.
Artigo 233 do Código Civil. Cf. NEGRÃO, Theotonio (org.). Op. cit., p. 80.
174
mulher, os cuidados com a casa e com os filhos, o cumprimento do seu dever legal e moral de
auxiliar o marido na manutenção da família334 e, de não menos importância, a fidelidade
sexual335.
Assim, encontramos homens e mulheres dos setores populares compartilhando com o
Código Civil alguns dos significados do matrimônio: ajuda mútua entre os cônjuges, a divisão
sexual das tarefas, o dever provedor do marido (ou companheiro), a dedicação doméstica e
materna da esposa (ou companheira). Entretanto, duas diferenças se evidenciam. Em primeiro,
para os homens e mulheres dos processos, o casamento não era concebido como lugar exclusivo
da realização sexual como almejaram as várias propostas de normatização dos comportamentos
femininos que examinamos no Capítulo I.
Em segundo, os populares, estendiam ao amasiamento os mesmos significados, em
temos de funções e obrigações conjugais, atribuídos ao casamento oficial. Nisto, os homens e
mulheres das camadas populares diferiam dos profissionais do judiciário que, em seus
pronunciamentos, condenavam o amasiamento como contrário à “moral”.
Em nossa opinião, para as ofendidas de Campos, o casamento era entendido como
união matrimonial336, não lhe sendo imprescindível a ritualidade pública estabelecida no Código
Civil e nas práticas religiosas que conferem ao casamento formal a função de moralizador das
relações amorosas e sexuais, necessárias à reprodução social. A união matrimonial que estas
moças parecem buscar exigia tão só o desejo da convivência e voltava-se, não à moralização das
relações amorosas, mas à
334
Artigo 240 e seguintes do Código Civil. Cf. NEGRÃO, Theotonio (org.). Op. cit., pp. 81-84.Ver também a Lei
4.121 de 27 de agosto de 1963. Cf. NEGRÃO, Theotonio (org.). Op. cit., pp. 677-680.
335
Artigo 231, inciso I do Código Civil. Cf. NEGRÃO, Theotonio (org.). Op. cit., p. 80.
336
Denominamos por união matrimonial, a aliança conjugal entre um homem e uma mulher independentemente
dos mecanismos da sua constituição, se formal (o casamento civil e/ou religioso) ou informal (amasiamento,
concubinato, mancebia e outras) cuja finalidade vai da realização amorosa ao interesse material; tendendo, no mais
das vezes, a unir tanto o desejo afetivo (ainda que unilateral) com a sua dimensão econômica (a sobrevivência do
casal e de cada uma das suas partes) que, a nosso ver, é sempre considerada, mesmo nas camadas populares. A
compreensão das relações conjugais entre os populares como sendo uniões matrimoniais permite superar o
discurso metafísico e idealista (romântico) que dicotomiza a afetividade, o interesse afetivo, e as considerações
materiais, econômicas, na constituição dos casamentos e/ou uniões consensuais entre as camadas populares.
175
obtenção de um companheiro com o qual desejassem e pudessem assegurar a existência social337.
Destarte, “marido” ou “companheiro”, “esposa” ou “companheira”; o essencial não
estava na ritualidade, na formalidade pública e oficial da união (casamento ou amasiamento),
pois a moralidade e a honestidade dos cônjuges definiam-se, sobretudo, pelo cumprimento dos
deveres e compromissos de cada um na união338, ou seja, pelo cumprimento dos papéis sexuais
socialmente reconhecidos, como vimos no Capítulo I e estão codificados no Código Civil339. À
medida que o objetivo das moças desvirginadas era a conquista de uma união matrimonial útil,
necessária e desejada (e aqui não nos parece haver nenhuma ilegitimidade moral, que só poderia
emergir de uma percepção idealista das relações humanas), os requisitos morais tidos pelo
judiciário como necessários às pretendentes a um casamento formal, dentre os quais a
virgindade, o recato e a sujeição não teriam para as moças dos processos que pesquisamos a
mesma significação e importância340.
Considerando não ser o casamento, para as moças inseridas nos processos, o lugar
exclusivo para a realização sexual, entendemos ser plausível supor que as motivações para a
busca de uma união matrimonial eram outras que não o desejo
337
“(...) atualmente vive em companhia do acusado, isso desde os fatos; que não tem filhos com o acusado; que o
acusado é muito bom para a ofendida e dá toda assistência que precisa (...). Processo n° 11.177, maço 570, folha 61.
“(...) que o acusado trata bem da ofendida; que o acusado mantém a casa regularmente fornecendo o necessário à
depoente (...)”. Processo nº 10.745, maço 574, folha 34. Ver também os processos 178/69 e 12.365.
338
Ver, por exemplo, os processos de número 178/69; 10.155; 10.569; 10.745; 10.793; 10.803; 11.177; 11.430;
11.927 e 12.365.
339
Além de estabelecer as condições, impedimentos e a ritualidade necessária à realização do casamento civil, o
Código Civil define uma série de direitos e obrigações para o marido e para a esposa. Sendo deveres comuns a
fidelidade recíproca; a vida em comum, no domicílio conjugal; a mútua assistência; o sustento, guarda e educação
dos filhos os quais são legitimados pelo próprio casamento que cria “a família legítima”. O Código Civil
também define ser o marido “o chefe da sociedade conjugal”, exercendo essa função com a colaboração da
mulher; cabendo a ele a representação legal da família; a administração dos bens comuns e dos particulares da
mulher que lhe couberem administrar em virtude do regime matrimonial adotado ao do pacto antenupcial; o direito
de fixar o domicílio da família; prover a manutenção da família; ter a decisão final em caso de divergência sobre o
casamento dos filhos menores. À mulher cabe, a condição de companheira, consorte e colaboradora do marido nos
encargos da família, cumprindo-lhe velar pela direção material e moral desta; ela poderá exercer atividades fora do
lar desde que autorizada pelo marido; reivindicar bens que tenham sido doados pelo marido à concubina mesmo
que ela não esteja mais vivendo com o marido e a doação tenha sido disfarçada sob a forma de venda; ela exercerá
a direção administrativa do casal se o marido estiver impossibilitado. Ver NEGRÃO, Theotonio (org.). Op. cit., pp.
71-113; 677-680.
340
Cabe lembrar que o Código Civil previa em seu artigo 219 inciso IV, como um dos motivos capazes de
possibilitar a anulação do casamento o “defloramento da mulher ignorado pelo marido”. Atualmente, estas e outras
formulações do Código Civil foram superadas pela Constituição de 1988, porém estavam em pleno vigor legal entre
1960 e 1974, período da nossa pesquisa.
176
sexual, já que este podia e era satisfeito fora
- e, mesmo antes - da união matrimonial
(casamento ou amasiamento).
Algumas características da conjuntura campista nos anos sessenta e setenta, e que já
analisamos no Capítulo II, reforçam a nossa hipótese de que a união matrimonial era
efetivamente procurada nas camadas populares por razões afetivas e/ou práticas e não por
motivações moralistas. No caso de Campos nos anos 60 e 70, algumas particularidades, como já
dissemos, reforçariam nossa divergência com a conclusão de Martha Abreu. Primeiro, o fato
demonstrado pelo IBGE do caráter misógino do mercado de trabalho regional, com a redução da
participação da força de trabalho feminina à medida que se eleva o valor do salário, com as
mulheres mais presentes nos níveis de menor remuneração salarial. Os indicadores sócioeconômicos apontavam para uma realidade bastante adversa à mulher no tocante à sua
capacidade de sobrevivência sem um companheiro. Segundo, o fato também demonstrado pelo
IBGE do crescimento, a partir da segunda metade dos anos 60, dos casamentos formais
(particularmente do casamento civil) no conjunto da população, inclusive entre os setores de
baixa renda. Em terceiro, os processos que pesquisamos mostram que apenas um percentual
insignificante de ofendidas disse não desejar o casamento com o acusado ou que ali estava sob
pressão de outrem341.
Das 53 ofendidas, sete (13,2%) casaram-se com o acusado342 durante o processo ou após
a condenação dele (o casamento da ofendida com o condenado ou com outro homem
possibilitava a extinção da punibilidade); três (5,7%) casaram-se com outros homens343 (nesses
casos, nem as ofendidas nem os seus maridos manifestaram interesse na continuação do
processo, o que permitiu, nos casos dos réus condenados a extinção da punibilidade e nos casos
de absolvição a não existência de recursos); duas (3,8%) amasiaram-se com o acusado344 (sempre
no decorrer do processo) e três (5,7%) amasiaram com outro homem345 (também durante o
processo). Temos então que quinze (28,3%) das ofendidas obtiveram alguma forma de união
matrimonial durante o
341
Apenas no processo 11.926 a ofendida declarou não querer mais casar com o acusado.
Processos em que as ofendidas e os acusados casaram: 132/70;11.627; 11.927; 12.285; 12.365; 12.370; 12.638.
343
Processos em que as ofendidas casaram-se com outros homens: 9.529; 10.155; 11.457.
344
Processos em que as ofendidas “passaram a viver” com os acusados: 11.177 e 11.430.
345
Processos em que as ofendidas “passaram a viver” com outros homens: 10.569; 10.793; 10.803.
342
177
processo ou logo a seguir, sendo que dez (18,9%) conquistaram a forma que, considerando os
motivos apresentados para a queixa e a extensão que o casamento oficial havia atingido junto à
população de Campos (Capítulo II), supomos fosse a
preferencial: o casamento. Por sua vez,
cinco ofendidas (9,4%) aceitaram o amasiamento. A ida ao judiciário, portanto, nem sempre
implicou em derrota para a ofendida e sua família346.
O que estamos a concluir é que a realização de uma união matrimonial fazia parte dos
horizontes de vida, das expectativas sociais dos populares, mas as suas motivações nada tinham a
ver com os desejos normatizadores e moralizadores esposados pelos juízes.
Quando pensamos na união matrimonial como uma das motivações ou mesmo como a
principal razão para a apresentação da queixa, devemos levar em conta as condições econômicas
e sociais da região, onde as possibilidades de sobrevivência de moças como as que aparecem nos
processos não eram as mais alentadoras e não apontavam para perspectivas emancipacionistas.
Em tais circunstâncias, casar poderia constituir-se na melhor estratégia de sobrevivência
disponível347. Além do mais, não podemos esquecer que entre a população de Campos, incluindo
a maioria dos(as) queixosos(as) e testemunhas presentes nos processo, o casamento já estava
consagrando como a maneira legítima e mais utilizada de se constituir as relações conjugais.
Diante de tal contexto histórico, parece-nos razoável supor que expectativas quanto a
um casamento estivesse presente entre as jovens que se “perderam” e que tenha influenciado a
ela ou aos seus pais, na decisão de apresentar a queixa contra o namorado que havia rompido o
relacionamento, “deixando de aparecer” ou se recusava a “reparar, pelo casamento, o mal feito”.
Uma outra possibilidade é que o recurso ao judiciário objetivasse, não necessariamente,
o casamento com o acusado, mas limpar a honra da ofendida, tornando-a digna de casar-se com
outro. Aqui o interesse estaria em obter-se do
346
Casos em que ocorreu a extinção da punibilidade pelo casamento do réu com a ofendida: 11.927; 11.627; 12.638;
12.285; 12.365; 12.370; pelo casamento da ofendida com outro homem: 9.529; 10.155; 11.457.
347
Também a necessidade de sobrevivência induzia homens e mulheres a buscarem uniões matrimoniais no Brasil
colonial. Ver FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Op. cit., pp. 52 e passim.
178
judiciário, pela condenação do acusado, um atestado de moralidade para a ofendida que se
deixara desonestar não por ter tendências à concupiscência, mas exatamente pelo seu contrário,
por ser ingênua e inexperiente, o que possibilitara ao namorado espertalhão aproveitar-se dela.
Esta hipótese pode ser exemplificada com o processo nº 9.529 no qual Célia de Souza,
brasileira, branca, fluminense, com 16 anos de idade, do lar e alfabetizada acusou Cláudio de
Farias, brasileiro, branco, católico, fluminense, com 22 anos de idade, solteiro, motorista de
ônibus e alfabetizado, de havê-la seduzido com repetidas promessas de casamento e de tê-la
deflorado na noite do dia 24 de janeiro de 1968, na casa do pai da ofendida, quando este não se
encontrava. Em seu depoimento na delegacia, o acusado negou as promessas de casamento e a
conjunção carnal com a ofendida, afirmando que a mesma tinha tido outro namorado antes dele.
A desqualificação moral da ofendida e a valorização do acusado como honesto e trabalhador será
a linha argumentativa da defesa.
Depois de cumpridos os ritos do processo, o juiz decide pela condenação de Cláudio por
estar convencido que Célia, sendo virgem, entregara-se a Cláudio e fora por ele deflorada devido
a sua inexperiência, decorrente da sua condição de moça do interior recentemente chegada à
cidade348 e ter justificável confiança nas promessas de casamento do namorado que, inclusive,
freqüentava a casa dos seus pais.
Tendo sido condenado, Cláudio evadiu-se não sendo pois a pena cumprida. Porém, em
23 de abril de 1970, seu advogado entrou com recurso pleiteando a prescrição da pena por ter
Célia casado com Adalberto Alves Rodrigues, em 12 de julho de 1970 (a sentença condenatória
de Cláudio é datada de 30 de junho de 1969), argumentando que ao ter se casado com outro,
Célia teria, conforme estabelece o artigo 38 do Código Penal e a Súmula 388 do STF, o prazo de
seis meses para requerer o prosseguimento da ação penal contra o réu, não o tendo feito, estava
pois, a pena prescrita.
A par das filigranas jurídicas que o caso envolve, o que nos interessa é indagar por que
Célia e Adalberto não deram continuidade à ação? É impossível, contando somente com o
processo, responder com certeza. Talvez simplesmente
348
Nos cinco casos em que o réu foi condenado as ofendidas eram de origem rural.
179
desconhecessem as exigências legais. Mas temos como plausível supor que não tinham mais
interesse no caso. Para Célia, o fundamental já fora feito. Ela resgatara, na “justiça”, a sua
condição de mulher honrada, provara a sua inexperiência e sua virgindade moral (ao menos aos
olhos do juiz). Seu defloramento, antes do casamento não resultara, ao olhos do juiz, de um
comportamento cotidiano promíscuo, mas da sua ingenuidade que a levou a confiar em um
namorado “sedutor” que, por isto, fora condenado. Ao receber do judiciário o atestado de
ingenuidade e honradez, ela se qualificara novamente para o casamento. Foi-lhe dada uma nova
oportunidade de poder constituir-se em esposa honesta e cumprir seu papel social349. Quanto a
Adalberto, provavelmente, estaria mais interessado no esquecimento do caso.
Como já dissemos, nossa hipótese é que o importante para as jovens das camadas
populares que estão processando seus namorados por sedução, era a busca de uma união
matrimonial motivada por razões afetivas e/ou práticas e não por ilações moralistas. Como as
dos juristas que vinculavam a “pureza” e a honestidade da mulher à virgindade e defendiam o
casamento oficial como a única forma legítima e moral de se realizar a sexualidade e constituirse família.
Verifica-se, por um lado, a imensa supremacia das uniões formais - civis e/ou religiosas
-
sobre as formas consensuais, não formais, de matrimônio, conforme demonstramos no
Capítulo II. Por outro, a clara hegemonia dos casamentos exclusivamente civis sobre as demais
formas, superando inclusive a soma das uniões consensuais com as celebradas somente na
igreja350.
É impossível não perceber, ao menos em Campos, a expansão das esferas de controle do
Estado. Isto é, a supremacia dos casamentos civis pode estar demonstrando que a burocracia
estatal conseguiu afirmar-se como a principal agência legitimadora das relações sociais e que os
relacionamentos sociais, para serem legítimos, devem ser reconhecidos pelo Estado. É o Estado
afirmando-se como poder concedente de legitimidades e constituidor de hegemonias. Ele amplia
sua área de controle sobre a sociedade, ricos e pobres, e parece estar conseguindo estabelecer a
noção de que união matrimonial legítima não é algo que diz respeito somente aos nubentes e às
relações
349
“(...) O conceito de mulher honesta envolve assim, um juízo de valor, sendo, pois, um elemento normativo do tipo
a ser estabelecido pelo juiz, de conformidade com os padrões vigentes em determinado meio e revelados pelo
costume (...)”. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 10. [grifo nosso].
350
Ver IBGE – VIII Recenseamento Geral, 1970, Série Regional, Volume I, Tomo XVI.
180
destes com Deus. Os casamentos e a constituição da família brasileira é assunto de interesse
geral e, portanto, deve obedecer aos ritos de quem fala pela sociedade: o Estado.
(...) ‘é no seio da família que o homem tem antes de tudo a escola, aprendendo
os primeiros deveres de cidadão, que recebe a força do próprio valor. A família
é que inspira o amor ao trabalho, a ordem e o respeito na vida social, as vias
honestas e seguras do progresso civil. É na família que se prepara a Pátria, e não
só a força material, mas sobretudo a força moral’ (...) o esposo com
determinadas funções, a esposa com outras (...) concluímos que, se não houver
o fortalecimento das famílias da classe média e média alta, mais difícil tornarse-á a problemática das famílias pobres e das famílias miseráveis (aquelas cujos
membros vivem de biscates e não possuem emprego e rendimentos certos). O
bom ou mau exemplo das classes mais elevadas, de um modo ou de outro,
repercutirá nas classes inferiores (...) oriundas das famílias mais sacrificadas e,
principalmente, desassistidas, mormente das áreas urbanas, o aumento crescente
das meretrizes, atraídas pelo ganho fácil, mediante o aluguel do próprio corpo.
É a conseqüente expansão do lenocínio alimentado por jovens saídas das
famílias-problemas, de faixa pobre e miserável da sociedade (...)351.
Em contrapartida, aqueles que reconhecem e buscam o casamento civil, como o meio
legítimo de contrair-se matrimônio, recebem direitos e garantias e o reconhecimento imediato,
mediante a certidão de nascimento, da legitimidade dos filhos advindos da união352. A certidão de
casamento, cada vez mais, fará parte do rol de documentos imprescindíveis à identificação do
cidadão honesto, assim como a carteira de trabalho.
351
ASSOCIAÇÃO DOS DIPLOMADOS DA ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. “A Situação do Menor Carente.
Influência do Problema no Processo de Desenvolvimento do País. Providências Objetivas [Enfraquecimento da
Família, como Causa e Efeito]”. In: III Ciclo de Estudos Sobre Segurança Nacional e Desenvolvimento. Delegacia
do Estado do Rio de Janeiro/Campos dos Goytacazes: 1978, pp. 4,5,14 e 15.
352
Nos anos sessenta e setenta, o Código Civil ainda diferenciava os filhos “legítimos”, os nascidos dentro do
casamento, dos filhos “ilegítimos”, aqueles tidos fora do casamento. Tal diferenciação só deixou de ter fundamento
legal após a promulgação da Constituição Federal de 1988.
CONCLUSÃO
183
PALAVRAS
FINAIS
Iniciamos esta pesquisa com uma questão fundamental: por que, ainda nos anos sessenta e
setenta do século XX - época da “revolução sexual” e da “liberação feminina” - pais e mães de
moças juridicamente classificadas como “miseráveis”, isto é, moças pobres, recorreram à polícia e
ao judiciário (ao Estado) para denunciar e processarem os namorados das suas filhas, acusando-os
de as haver seduzido e desvirginado?
Um processo por sedução submete os envolvidos, sobretudo a ofendida, a diversos
constrangimentos. Ela tem de expor-se e/ou relatar suas relações amorosas e intimidades sexuais a
vários funcionários do aparelho estatal: delegado, detetives, escrivães, médicos legistas e/ou peritos,
promotores, defensores, assistentes, juízes e, às vezes, procuradores e desembargadores. Além do
mais, sua história ultrapassa os limites das paredes da delegacia e do fórum, pois a necessidade de
apresentar testemunhas (da acusação e da defesa) leva a que o fato seja narrado a parentes, amigos e
vizinhos, tornando o desvirginamento fato público. Mas, por alguma razão, elas e seus responsáveis
legais decidiram levar à frente a queixa. Mas que ou quais razões seriam essas?
Em quase todos os processos aparece a afirmação de que a ofendida “se perdeu” com o
acusado. Mas o que significaria essa “perda”?
Uma conclusão a que chegamos é que, ao menos aos olhos dos seus pais (a quem cabia a
responsabilidade legal pela queixa), o desvirginamento seguido da ruptura do relacionamento
amoroso entre a ofendida e o acusado, ou quando este relacionamento se dava com um homem já
casado, implicava na perda da expectativa matrimonial ou na redução das possibilidades da
ofendida no mercado matrimonial. O mercado de trabalho e a extensão que o casamento formal
havia atingido entre as camadas populares certamente reforçava a valorização social e moral do
matrimônio. Havia pois, uma “perda” a ser reparada, ainda que o desvirginamento pré-nupcial não
embargasse por completo as possibilidades matrimoniais das moças defloradas, como indicam
alguns processos.
Ora, uma moça pobre, geralmente sem emprego ou com um baixíssimo nível de renda e
deflorada, provavelmente teria as suas possibilidades matrimoniais
184
reduzidas, ela estava “perdida”. Mas, se o acusado viesse a ser condenado, isto poderia eqüivaler a
uma absolvição moral da ofendida. Era sua chance de provar que não era dada a liberalidades, que
não “decaíra” pela falta de virtudes e do controle familiar, mas por ingenuidade e confiança. Ela era
honesta, confiável, boa de casar. Neste sentido, o recurso ao judiciário podia ser a possibilidade, a
brecha por onde as moças que se apresentavam como seduzidas podiam buscar o resgate da sua
honra, o perdão para “o mal passo”, ainda que esse mesmo judiciário, no mais das vezes, tenha
reprovado de forma incisiva os hábitos e comportamentos da maioria das jovens desvirginadas.
Como observou Leila Algranti para o período colonial, o mesmo Estado que punia, podia, em certas
circunstâncias, conceder o perdão353 mantendo, assim, uma possibilidade para que as jovens
seduzidas contraíssem matrimônio, constituíssem famílias, podendo, então, cumprir seu papel social
de esposa e mãe.
À medida que constatamos, para Campos, um significativo crescimento dos casamentos
entre 1965 e 1974, poderíamos nos perguntar se seria o triunfo das políticas disciplinadoras, a
conquista da hegemonia ideológico-moral pelo Estado, com os populares introjetando os valores
difundidos pelos juristas de forma integral?
A princípio poder-se-ia supor uma identidade cultural entre setores populares envolvidos
nos processos e os juristas, já que fazia parte do discurso jurídico a propagação do casamento e da
família nuclear responsável, legalmente instituída e protegida por lei354.
Crimes como atentado ao pudor, sedução e estupro são considerados pelo Código Penal de
1940 (em vigor nos anos sessenta e setenta) como sendo crimes contra os “costumes”. Ou seja,
crimes que afetariam não só aos interesses privados das suas vítimas, mas, outrossim, à ordem
pública, à moral familiar e à segurança social. Nos anos sessenta e setenta, a questão do
“desregramento sexual” e sua conseqüente ameaça à família, chegará a ser apontada como ameaça à
segurança nacional, como fizeram em Campos, homens vinculados a variadas profissões, incluindo
advogados e professores da Faculdade de Direito, ligados à Associação dos Diplomados da Escola
Superior de Guerra355.
353
Cf. ALGRANTI, Leila Mezan. Op. cit., pp. 129-130.
Cf. NEGRÃO, Theotonio (org.). Op. cit.
355
ADESG. Op. cit., passim.
354
185
Mas o possível triunfo das políticas de normatização em generalizar um determinado tipo
de união matrimonial e uma forma padrão de família356 não significa que as motivações que levaram
os populares a adotar o casamento formal e a família nuclear como formas privilegiadas de
organização social tenham sido as propaladas nos panegíricos moralistas das diferentes elites que,
em diferentes momentos e lugares difundiram diversas propostas, mais ou menos implementadas,
de controle dos comportamentos sociais, em particular, a domesticação da sexualidade feminina e
que foram por nós estudadas no Capítulo I.
Nossa conclusão é que efetivamente os populares de Campos, nos aos 60 e 70, tinham
interesse em conseguir uma união matrimonial e que esse interesse deve ter pesado de forma
significativa na decisão de apresentar a queixa, ainda que não tenha sido a razão única e que outras
tenham se combinado com ela ou mesmo tido importância especificamente maior para esta ou
aquela ofendida. Porém, o interesse na união matrimonial (principalmente o casamento) decorria
também, ou mesmo principalmente, de outras razões que não as de cunho moralista propaladas
pelos juristas. Para os homens e mulheres das camadas populares, a conquista de uma união
matrimonial estava também ligada às necessidades da sobrevivência cotidiana, além das óbvias
razões afetivas.
De qualquer forma, nos anos sessenta e setenta, apesar de toda a “modernização dos
costumes” atribuída a este período, os homens e as mulheres ainda eram avaliados e julgados em
função de papéis sociais claramente distintos, com os homens sendo positivados por sua condição
de trabalhadores e mantenedores do lar, enquanto nas mulheres ainda se valorizava o recato, a
obediência aos pais e o desejo do casamento. Isto tanto nos pronunciamentos dos profissionais do
judiciário quanto nos depoimentos das testemunhas.
Evidencia-se nos processos, tanto pelos pronunciamentos dos juízes como pelos
depoimentos das testemunhas, a imagem da “boa moça”, o tipo ideal de moça, como sendo a
”moça recatada” e “obediente aos pais”.
356
Claro que o casamento oficial (civil e/ou religioso) e a família nuclear não se constituíram, na prática, em modelos
únicos. Porém, é inegável, na Campos dos anos 60 e 70 do século XX, o seu avanço e a redução percentual das formas
alternativas de relacionamentos.
186
A “boa moça”, a “moça de família” não estava impedida de ir a festas, bailes e
competições esportivas, desde que devidamente acompanhada e vigiada por seus pais,
particularmente, por sua mãe357. Ela podia namorar e, ao que nos parece, tinha liberdade para
escolher o namorado, mas o namoro deveria ser consentido e dar-se sob às vistas dos pais. A
referência da sua “honestidade” (para os juízes) ou da sua “boa conduta” (para os juízes e
testemunhas) estava, grandemente, na sua condição de filha obediente.
No balanço historiográfico que fizemos no Capítulo I, não localizamos nas outras
pesquisas sobre crimes de defloramento/sedução, uma ênfase tão intensa na necessidade da sujeição
das filhas aos pais, quanto localizamos nos pronunciamentos dos profissionais do judiciário e nos
depoimentos das testemunhas de Campos, nos anos 60 e 70.
Contudo, a analise dos processos mostrou-nos que nas vivências das moças e rapazes
presentes nos processos, as normas do recato e da submissão foram por diversas vezes violadas,
subvertidas e apropriadas, em função dos interesses específicos das ofendidas e acusados.
357
Processos em que os profissionais do judiciário criticaram as mães por não vigiarem suas filhas: 282; 524/73; 7.795;
10.793; 10.981; 11.622; 11.731. Processos em que as testemunhas criticaram as mães por não vigiarem as filhas: 7.795;
8.921;10.155; 10.745; 11.464; 11.924.
187
LISTAGEM DAS FONTES
1. FONTES PRIMÁRIAS
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Processo nº 178/69, maço nº 460.
Processo nº 282, maço nº 572.
Processo nº 467/73, maço nº 562.
Processo nº 524, maço s/nº.
Processo nº 6.727, maço nº 575.
Processo nº 7.795, maço nº 574.
Processo nº 7.816, maço s/nº.
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Processo nº 10.448, maço nº 565.
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Processo nº 10.745, maço nº 574.
Processo nº 10.793, maço nº 562.
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Processo nº 10.937, maço nº 582.
Processo nº 10.943, maço nº 570.
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Processo nº 10.981, maço nº 564.
Processo nº 11.096, maço nº 581.
Processo nº 11.098, maço nº 579.
Processo nº 11.138, maço nº 569.
Processo nº 11.172, maço s/nº.
Processo nº 11.177, maço nº 570.
Processo nº 11.223, maço nº 581.
Processo nº 11.260, maço s/nº.
188
Processo nº 11.413, maço nº 565.
Processo nº 11.426, maço nº 570.
Processo nº 11.430, maço nº 572.
Processo nº 11.457, maço s/nº.
Processo nº 11.464, maço nº 565.
Processo nº 11.486, maço nº 581.
Processo nº 11.500, maço s/nº.
Processo nº 11.622, maço nº 570.
Processo nº 11.627, maço nº 569.
Processo nº 11.651, maço nº 562.
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Processo nº 11.713, maço nº 582.
Processo nº 11.716, maço nº 567.
Processo nº 11.731, maço nº 562.
Processo nº 11.733, maço nº 567.
Processo nº 11.842, maço nº 562.
Processo nº 11.924, maço nº 562.
Processo nº 11.926, maço nº 562.
Processo nº 11.927, maço nº 568.
Processo nº 12.249, maço nº 564.
Processo nº 12.250, maço nº 563.
Processo nº 12.285, maço nº 563.
Processo nº 12.365, maço nº 579.
Processo nº 12.370, maço s/nº.
Processo nº 12.638, maço s/nº.
2. FONTES COMPLEMENTARES
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