Roteiro Mínimo sobre Conto
Transcrição
Roteiro Mínimo sobre Conto
DEPARTMENT OF SPANISH AND PORTUGUESE THE UNIVERSITY OF TEXAS AT AUSTIN LITERATURA BRASILEIRA Prof. Ivan Teixeira Roteiro Mínimo sobre Conto Ivan Teixeira (Reservam-se os direitos) Narrativa é o texto que contém estória ou enredo. A presença da narrativa é essencial para que um escrito seja considerado prosa de ficção, porque o enredo é uma das condições para a imitação ou representação da vida por meio das palavras. A narrativa atribui ficcionalidade ao texto, isto é, transforma-o em texto ficcional. Todavia, isso não quer dizer que não possa haver narrativa em verso ou em outros modos de representação da vida, tal como ocorre com a poesia narrativa, com o cinema, com os quadrinhos e até com a pintura e a escultura. Assim, a narrativa pode assumir diversas formas. Em prosa, sua feição mais tradicional nos tempos modernos é o conto, a novela e o romance.1 O critério mais amplo para a caracterização dessas três modalidades de narrativa é a extensão, que tem a ver com a complexidade da ação imitada e com o número de personagens envolvidas. Por essa perspectiva, pode-se adotar as seguintes definições. Conto é uma narrativa curta, com uma só ação, tratada de maneira sumária e direta. Sua ação confunde-se com a anedota, o que não quer dizer que deva ser necessariamente humorística, mas sim que deve conter uma estória concentrada e breve, com desfecho surpreendente. ―A Cartomante‖, de Machado de Assis, e ―A Vingança da Peroba‖, de Monteiro Lobato, são exemplos clássicos de contos bem caracterizados. Depois do Modernismo, essa modalidade narrativa assumiu extrema flexibilidade, como deixam ver os mini-contos de Dalton Trevisan e algumas crônicas de Rubem Braga. 1 . Para desenvolver o estudo sobre a narrativa, o leitor interessado pode consultar o estimulante Theory of Literature: a Very Short Introduction, de Jonathan Culler, Oxford, New York, Oxford University Press, 2000; ou Handbook of Narrative Analysis, de Luc Herman e Bart Vervaeck, Lincoln, London, University of Nebraska Press, 2005. 1 Machado de Assis é um mestre do conto. É possível imaginar que o intenso convívio de Machado de Assis com os jornais e revistas de seu tempo, não só como escritor mas também como leitor, tenha determinado sua volumosa produção de contos e crônicas. Ao menos em parte, essa observação pode igualmente justificar a soberana preferência dele por capítulos curtos nos romances da segunda fase de sua carreira. Essa mesma contingência, que muitas vezes é toda a essência, torna-se mais evidente na opção de Edgar Allan Poe pelo conto, levando-o a conceber, praticar e conceituar essa modalidade narrativa a partir de sua relação com os veículos para os quais escrevia. Alegando que a intensidade da atenção diante de um texto (―the soul of the reader‖) não persiste com o mesmo grau por mais de uma hora, supõe que o leitor de seu tempo preferisse textos curtos a textos longos. Aparentemente superficial, esse poderá ser argumento decisivo ao conceito de conto, modalidade que Poe, necessariamente, concebia como short story. Há vários argumentos documentais em favor da hipótese de que Machado conhecia os contos de Poe. É provável também que tenha conhecido a doutrina da extensão como fator determinante do conceito desse tipo de narrativa. Em ambos os autores, o conceito decorre da atividade no jornal e para o jornal, de onde o conto emigra para o livro, dando lugar à crônica naquele ambiente provisório. É provável que o discurso de Machado em favor do conto origine-se em Poe, ainda que por meios diferentes. Em vez de o enobrecer, o brasileiro simula indiferença e um certo desdém pelo novo gênero, fingindo pouca convicção sobre o valor dos próprios contos. Sabendo-se criador de uma nova tradição em seu país, a voz do argumento busca apoio na tradição européia de Diderot e de Merimé, assim como no exemplo do vizinho americano, tal como se observa na ―Advertência‖ de Várias Histórias, em que declara que os contos de Poe se colocam ―entre os primeiros escritos da América‖. M. de Assis E. A.Poe 2 A novela fica a meio caminho entre o conto e o romance. Tal como o conto, a novela também explora uma única ação, embora desenvolva um pouco mais a análise das personagens e imprima um andamento mais vagaroso ao ritmo do enredo. Exemplos consagrados de novela são Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, e O Alienista, de Machado de Assis. O romance típico possui uma narrativa longa, com mais de um núcleo de ação. Isso quer dizer que seu enredo é complexo, desdobrando-se numa estória multifacetada, com muitas personagens, cujas vidas são, quase sempre, representadas em sua totalidade. Os grandes romances possuem conexão com a vida política, ideológica, filosófica e social de um dado momento histórico, mesmo quando faz uso intenso da fantasia, como se observa em O Guarani, de José de Alencar, e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Modalidades de Conto O conto clássico – estabelecido, sobretudo, a partir da tradição instaurada pelo escritor francês Guy de Maupassant – caracteriza-se por conter uma só ação, tratada de maneira sumária e direta. Sua matéria confunde-se com a anedota, sendo, por isso, chamado também anedótico. Como se definiu anteriormente, isso não quer dizer que deva ser humorístico, mas sim que deve conter uma estória concentrada, breve e com desfecho surpreendente. Explorando uma só célula dramática, o conto clássico possui unidade de ação. Em outros termos, seu enredo contém um só conflito, cujas dimensões se esboçam logo nas primeiras páginas, de tal modo que o interesse pelos acontecimentos não seja suplantado por outros possíveis focos de atenção. As personagens são delineadas com brevidade e concisão, sendo logo postas em contato dinâmico com o evento narrado. ―A Cartomante‖, de Machado de Assis, é perfeito exemplo de conto clássico. Nele, narra-se, de maneira sintética, a longa e duradoura amizade entre dois homens (Camilo e Vilela), até que o amor pela mesma mulher (Rita) os conduz ao confronto, que termina em inesperado acontecimento. O seguinte parágrafo, extraído do início de ―A Cartomante‖, exemplifica a nitidez de traços que caracteriza o conto clássico: Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo e foi a bordo 3 recebê-lo. – É o senhor? Exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor. Além de unidade de ação, o conto tradicional apresenta, via de regra, unidade de espaço. Isso quer dizer que a ação se desenvolve em cenário mais ou menos limitado, de modo que a atenção do leitor não se desvie da ação para o ambiente. Além disso, há unidade de tempo, ou seja, o narrador privilegia o presente, acompanhando os acontecimentos como se ocorressem no momento em que os apresenta. Não promove grandes inversões temporais, como costuma acontecer no romance. Prefere a linearidade cronológica. Todavia, pode haver breves recuos ao passado, mas sempre para explicar pormenores da intriga que se desenrola no presente, como se observa no fragmento citado de ―A Cartomante‖. Nesse sentido, o conto aproxima-se do drama, que apresenta um conflito no presente. Tão importante quanto o clássico ou anedótico, é o conto moderno ou de atmosfera, consagrado pelo escritor russo Anton Tchecov. Nessa modalidade de conto, a estória com princípio, meio e fim – anedota ou enredo – cede lugar ao esboço de uma situação lírica, em que geralmente se exploram propriedades singulares de uma personagem posta em situação de grande significado existencial. ―Missa do Galo‖, de Machado de Assis, exemplifica esse tipo de conto. Nele, o acaso coloca um jovem de dezessete anos (Nogueira) em conversa solitária com uma respeitosa senhora casada (Conceição), em casa dela, depois das vinte e duas horas. Nogueira e Conceição sabiam que o marido, naquela noite, a deixara em casa para se divertir com a amante, o que acontecia uma vez por semana. Tal situação infunde particular clima de erotismo, cumplicidade e insinuação à conversa. A análise dessa situação ocupa todo o interesse da narrativa, em que nada acontece de conclusivo ou espetacular, exceto pela profunda impressão causada no adolescente, que nunca pôde decifrar os reais sentimentos e intenções da senhora naquela noite. Outra espécie bastante comum na literatura brasileira é o conto alegórico, que costuma abordar noções abstratas a partir de situações concretas. Em outros termos, empenha-se em explorar, por meio de narrativa oblíqua e figurada, uma convicção filosófica, um importante conceito cultural ou um preceito moral. Geralmente, apresenta situações absurdas como se fossem ocorrências normais, tal como se observa, por exemplo, em ―O Espelho‖ e em ―A Terceira Margem do Rio‖, de Guimarães Rosa. Seria o caso também de ―O Retrato Oval‖, de Edgar Allan Poe. No primeiro exemplo, investiga-se o problema do conhecimento humano por meio do relato supostamente científico de um cientista louco, que se entrega obstinadamente à busca de sua essência 4 mediante a investigação minuciosa das camadas de significado sobrepostas à imagem do rosto refletida no espelho. Sem nenhum incidente, o conto assume a forma de complicado jogo de raciocínio ou de lógica aparente. Em ―A Terceira Margem do Rio‖, a investigação metafísica da existência concretiza-se na viagem metafórica de um homem rumo à terceira dimensão das coisas, para além da visão dualista do mundo ocidental, limitada aos extremos inconciliáveis de vida e morte, terra e água, céu e inferno, corpo e espírito. ―O Retarato Oval‖ pode ser interpretado como uma metáfora sobre a teoria romântica da arte, em que se condensa a idéia de que uma obra-prima emana da solidão do gênio e da própria vida. Como se vê, a narrativa alegórica é aquela cujo tema extrapola os limites do assunto, podendo conter mais de uma interpretação. Depois do Modernismo, o conto assumiu extrema flexibilidade, como deixam ver as crônicas de Rubem Braga ou os mini-contos de Dalton Trevisan. Observe-se um exemplo deste último, para se ter idéia do ponto a que chegou o despojamento literário do autor, extraído do livro Ah, É, em que os textos, em vez de títulos, recebem números: O jantar para os dois casais amigos. Na parede uma das mulheres nuas de Modigliani. Tanta festa, muito riso: o lombinho está uma delícia. Até que um dos maridos: – Essa moça do quadro. Ela sorri para você? – É o meu consolo das horas mortas. A dona acode, oferecida: – Ela sou eu, não é, bem? Um murro na mesa estremece prato e espalha talher: – Ela é você? Quando você teve esse amor desesperado nos olhos? Esse perdão infinito na boca? Outro soco espirra vinho tinto na toalha: – Não se conhece, sua bruxa? Assim como ―Missa do Galo‖, esse texto demonstra a importância do diálogo na estrutura do conto, que pode, também, apresentar boa parte da narrativa praticamente só por meio de diálogos. Essa é outra aproximação do conto com o teatro. O interesse da narrativa de Dalton Trevisan decorre, sobretudo, do comportamento imprevisto do marido, que, em respeito à arte, esculhamba com a vida, agredindo a própria mulher diante dos convidados. Isto é, a mulher de carne e osso – ainda que seja a própria esposa – jamais se equipararia às formas ideais representadas pelo quadro de Modigliani. É em nome do ideal da arte como imitação superior da vida que o anfitrião desconsidera a etiqueta do convívio social, 5 desfazendo a mesa e ensopando a toalha. Assim, o anfitrião, que parece um grosseirão, pode ser um fino exemplar da espécie humana. Enredo Conforme Aristóteles, uma boa estória deve conter começo meio e fim, isto é, deve possuir um enredo organicamente estruturado. Pela perspectiva do escritor, que imita a vida por meio da narrativa, enredo é o modo de dar forma aos acontecimentos para transformá-los numa verdadeira estória, por meio da qual ele busca o sentido das coisas no mundo. O enredo é um pouco mais do que uma simples seqüência de acontecimentos. Deve possuir uma situação inicial, seguida de um incidente que altere a estabilidade do início e desencadeie uma mudança na vida das personagens, as quais passam a agir movidas pelo desejo de restaurar a ordem do início ou algo que a substitua. O final da estória deve esclarecer o que sucedeu com o desejo que desencadeou os acontecimentos narrados pela estória. O enredo é uma estrutura que independe de sua forma representacional ou imitativa, pois um filme mudo pode conter a mesma estória que uma revista em quadrinhos ou um romance. Estrutura O enredo é um dos principais integrantes da estrutura de uma obra literária. Por estrutura de uma obra entende-se a correlação entre suas partes, que devem resultar num todo organizado em que a soma dos elementos é sempre superior ao significado isolado dos mesmos. Apreender a estrutura de uma narrativa é estabelecer a correta relação entre seus componentes: é entender, por exemplo, as motivações da mudança de comportamento de Augusto Matraga e as alterações que isso produz no enredo do famoso conto de Guimarães Rosa. Narrador Enredo é o que acontece com as personagens de uma narrativa, apresentada por uma voz a que se dá o nome de narrador. O escritor é aquele que escreve; narrador é aquele que conta. O primeiro nem sempre é acessível ao leitor; o segundo está sempre a nossa disposição, desde que abramos um livro e iniciemos a leitura. A descoberta do perfil do narrador e de seu modo de expressão é muito importante para o entendimento de uma estória. Para isso, o leitor deve ficar atento ao discurso da narrativa, que nada mais é do que o texto em que se configuram os elementos de sua estrutura: desde o enredo, estilo, narrador e personagens, até o cenário e o tempo em que se desenvolve a trama. 6 Ponto de vista ou foco narrativo é a perspectiva segundo a qual o narrador conta sua estória. Trata-se, portanto, de uma espécie de lugar hipotético de onde ele vê as coisas de que fala. Esse lugar hipotético pode facultar ao narrador uma visão interna ou externa, total ou parcial dos incidentes e das personagens de sua estória, de onde resultam as várias classificações do narrador ficcional. A estória pode ser contada por alguém que participou dos acontecimentos (narrador em primeira pessoa), assim como pode ser contada por alguém que não participou dos incidentes, mas que os conhece de maneira detalhada (narrador em terceira pessoa). Quando rememorar sua própria vida, o narrador em primeira pessoa será também a personagem central, razão pela qual se classifica como narrador-protagonista. Essa modalidade de narrador costuma apresentar uma visão limitada dos acontecimentos, já que não tem acesso ao que se passava em outro lugar quando vivia determinado incidente, como freqüentemente sucede com Sérgio, de O Ateneu. Mas poderá também falar de si e privilegiar a vida de outrem, tal como se vê em A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós. Nesse caso, saberá mais do objeto de seu interesse, sendo por isso classificado como narrador-observador ou narrador-testemunha. Sem falar de si, o narrador em terceira pessoa trata as personagens pelo nome ou pelos pronomes ele ou ela. Pode apresentar domínio total ou parcial da narrativa. Quando sabe tudo sobre o que fala, é conhecido como narrador em terceira pessoa onisciente. Nesse caso, costuma ser identificado com a voz suprema da criação do mundo. Quando profere uma frase, imediatamente surge o seu referente. Conhecedor de tudo o que acontece em todos os lugares de sua estória, apresenta os dados como se os soubesse desde as origens, revelando detalhes e apresentando explicações. A principal marca de onisciência de um narrador é o seu domínio sobre o universo psicológico das personagens, condição que lhe faculta interpretar suas vontades e esclarecer suas motivações. Personagens Há personagens que, no desenho de seu modo de ser, apresentam traços fixos, sem sofrerem alterações essenciais no decorrer da trama. Geralmente, tais personagens não são focalizadas em sua intimidade psicológica, mas em suas ações exteriores. Por isso são chamadas personagens planas. Um bom exemplo é Loredano, de O Guarani. Ocupam lugar de destaque nos romances de aventura, em que se obtém a atenção do leitor por meio da surpresa da ação. Uma manifestação importante da personagem plana é o tipo, que encarna traços estereotipados de certos grupos sociais ou psicológicos, o que pode ser observado em José Dias, de Dom Casmurro. Em vez de representar as particularidades de um indivíduo, a personagem típica representa a somatória de características de outras pessoas. Por sua natureza especular e metafórica, aproxima-se da personagem alegórica. 7 Por outro lado, há personagens que se constroem a partir de dentro, revelando novas e surpreendentes faces no processo de aperfeiçoamento ou de degradação do caráter. Chamam-se esféricas. Por meio delas, o escritor constrói um indivíduo, e não o estereótipo que resulta do agrupamento de traços coletivos. Geralmente, tais personagens participam de estórias que encenam o universo psicológico ou moral de personagens em crise existencial. Assim, a ação exterior cede lugar às complexidades da vida interior, como acontece nos melhores romances e contos de Machado de Assis. Assunto e Tema Ao ler um livro, o leitor deve ter consciência absoluta de que o faz, isto é, não deve jamais perder o domínio sobre a trama, o assunto e o sentido geral do texto. Assunto é a matéria de uma obra de ficção, tomada em sua dimensão específica. Tema é a interpretação do assunto, que assume dimensão mais abstrata e geral. O assunto é mais objetivo do que o tema. O primeiro decorre da escolha do escritor, assim como o segundo depende mais da capacidade interpretativa o leitor. Assim, o assunto de São Bernardo, de Graciliano Ramos, é a ascensão e decadência de um fazendeiro do sertão nordestino, ao passo que seu tema poderia ser a problematização da idéia de que nem sempre os fins justificam os meios. LEITURA QUATRO CONTOS EM QUATRO MOMENTOS PRIMEIRO MOMENTO: SÉCULO XIX TRÊS TESOUROS PERDIDOS Machado de Assis Uma tarde, eram quatro horas, o Sr. X... voltava à sua casa para jantar. O apetite que levava não o fez reparar em um cabriolé que estava parado à sua porta. Entrou, subiu a escada, penetra na sala e... dá com os olhos em um homem que passeava a largos passos como agitado por uma interna aflição. Cumprimentou-o polidamente; mas o homem lançou-se sobre ele e com uma voz alterada, dizlhe: – Senhor, eu sou F..., marido da senhora Dona E... – Estimo muito conhecê-lo, responde o Sr. X...; mas não tenho a honra de conhecer a senhora Dona E... – Não a conhece! Não a conhece!... quer juntar a zombaria à infâmia? – Senhor!... 8 E o Sr. X... deu um passo para ele. – Alto lá! O Sr. F..., tirando do bolso uma pistola, continuou: – Ou o senhor há de deixar esta corte, ou vai morrer como um cão! – Mas, senhor, disse o Sr. X..., a quem a eloqüência do Sr. F... tinha produzido um certo efeito, que motivo tem o senhor?... – Que motivo! É boa! Pois não é um motivo andar o senhor fazendo a corte à minha mulher? – A corte à sua mulher! não compreendo! – Não compreende! oh! não me faça perder a estribeira. – Creio que se engana... – Enganar-me! É boa!... mas eu o vi... sair duas vezes de minha casa... – Sua casa! – No Andaraí... por uma porta secreta... Vamos! ou... – Mas, senhor, há de ser outro, que se pareça comigo... – Não; não; é o senhor mesmo... como escapar-me este ar de tolo que ressalta de toda a sua cara? Vamos, ou deixar a cidade, ou morrer... Escolha! Era um dilema. O Sr. X... compreendeu que estava metido entre um cavalo e uma pistola. Pois toda a sua paixão era ir a Minas, escolheu o cavalo. Surgiu, porém, uma objeção. – Mas, senhor, disse ele, os meus recursos... – Os seus recursos! Ah! tudo previ... descanse... eu sou um marido previdente. E tirando da algibeira da casaca uma linda carteira de couro da Rússia, diz-lhe: – Aqui tem dois contos de réis para os gastos da viagem; vamos, parta! parta imediatamente. Para onde vai? – Para Minas. – Oh! a pátria do Tiradentes! Deus o leve a salvamento... Perdôo-lhe, mas não volte a esta corte... Boa viagem! Dizendo isto, o Sr. F... desceu precipitadamente a escada, e entrou no cabriolé, que desapareceu em uma nuvem de poeira. O Sr. X... ficou por alguns instantes pensativo. Não podia acreditar nos seus olhos e ouvidos; pensava sonhar. Um engano trazia-lhe dois contos de réis, e a realização de um dos seus mais caros sonhos. Jantou tranqüilamente, e daí a uma hora partia para a terra de Gonzaga, deixando em sua casa apenas um moleque encarregado de instruir, pelo espaço de oito dias, aos seus amigos sobre o seu destino. 9 No dia seguinte, pelas onze horas da manhã, voltava o Sr. F... para a sua chácara de Andaraí, pois tinha passado a noite fora. Entrou, penetrou na sala, e indo deixar o chapéu sobre uma mesa, viu ali o seguinte bilhete: ―Meu caro esposo! Parto no paquete em companhia do teu amigo P... Vou para a Europa. Desculpa a má companhia, pois melhor não podia ser. – Tua E...‖ Desesperado, fora de si, o Sr. F... lança-se a um jornal que perto estava: o paquete tinha partido às oito horas. – Era P... que eu acreditava meu amigo... Ah! maldição! Ao menos não percamos os dois contos! Tornou a meter-se no cabriolé e dirigiu-se à casa do Sr. X..., subiu; apareceu o moleque. – Teu senhor? – Partiu para Minas. O Sr. F... desmaiou. Quando deu acordo de si estava louco... louco varrido! Hoje, quando alguém o visita, diz ele com um tom lastimoso: – Perdi três tesouros a um tempo: uma mulher sem igual, um amigo a toda prova, e uma linda carteira cheia de encantadoras notas... que bem podiam aquecer-me as algibeiras!... Neste último ponto, o doido tem razão, e parece ser um doido com juízo. Obras Completas, vol. II, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1986. ―Três Tesouros Perdidos‖ é o conto mais antigo que se conhece de Machado de Assis. Foi publicado pela primeira vez em A Marmota, no ano de 1858, quando o artista tinha 19 anos. 10 SEGUNDO MOMENTO: SÉCULO XX (PRIMEIRA METADE) UM HOMEM DE CONSCIÊNCIA Monteiro Lobato Chamava-se João Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens. Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Para João Teodoro, a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro. Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis sequer o que todos ali queriam: mudar-se para terra melhor. Mas João Teodoro acompanhava com aperto no coração o deperecimento visível de sua Itaoca. - Isto já foi muito melhor, dizia consigo. Já teve três médicos bem bons - Agora só um e bem ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal dá serviço para um rábula ordinário como o Tenório. Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui. A gente que presta se muda. Fica o restolho. Decididamente, a minha Itaoca está se acabando... João Teodoro entrou a incubar a idéia de também mudar-se, mas para isso necessitava dum fato qualquer que o convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mesmo conserto ou arranjo possível. - É isso, deliberou lá por dentro. Quando eu verificar que tudo está perdido, que Itaoca não vale mais nada de nada de nada, então arrumo a trouxa e boto-me fora daqui. Um dia aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para delegado. Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no crânio. Delegado, ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser nada, não se julgava capaz de nada... Ser delegado numa cidadezinha daquelas é coisa seríssima. Não há cargo mais importante. É o homem que prende os outros, que solta, que manda dar sovas, que vai à capital falar com o governo. Uma coisa colossal ser delegado - e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca!... João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela madrugada botou-as num burro, montou no seu cavalo magro e partiu. - Que é isso, João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas e bagagens? - Vou-me embora, respondeu o retirante. Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim. - Mas como? Agora que você está delegado? - Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado, eu não moro. Adeus. E sumiu. Cidades Mortas, São Paulo, Brasiliense, 1959. 11 TERCEIRO MOMENTO: SÉCULO XX (SEGUNDA METADE) O COBRADOR Rubem Fonseca NA PORTA da rua uma dentadura grande, embaixo escrito Dr. Carvalho, Dentista. Na sala de espera vazia uma placa, Espere o Doutor, ele está atendendo um cliente. Esperei meia hora, o dente doendo, a porta abriu e surgiu uma mulher acompanhada de um sujeito grande, uns quarenta anos, de jaleco branco. Entrei no gabinete, sentei na cadeira, o dentista botou um guardanapo de papel no meu pescoço. Abri a boca e disse que o meu dente de trás estava doendo muita. Ele olhou com um espelhinho e perguntou como é que eu tinha deixado os meus dentes ficarem naquele estado. Só rindo. Esses caras são engraçados. Vou ter que arrancar, ele disse, o senhor já tem poucos dentes e se não fizer um tratamento rápido vai perder todos os outros, inclusive estes aqui — e deu uma pancada estridente nos meus dentes da frente. Uma injeção de anestesia na gengiva. Mostrou o dente na ponta do boticão: A raiz está podre, vê?, disse com pouco caso. São quatrocentos cruzeiros. Só rindo. Não tem não, meu chapa, eu disse. Não tem não o quê? Não tem quatrocentos cruzeiros. Fui andando em direção à porta. Ele bloqueou a porta com o corpo. É melhor pagar, disse. Era um homem grande, mãos grandes e pulso forte de tanto arrancar os dentes dos fodidos. E meu físico franzino encoraja as pessoas. Odeio dentistas, comerciantes, advogadas, industriais, funcionários, médicos, executivos, essa canalha inteira. Todos eles estão me devendo muito. Abri o blusão, tirei o 38, e perguntei com tanta raiva que uma gota de meu cuspe bateu na cara dele, -- que tal enfiar isso no teu cu? Ele ficou branco, recuou. Apontando o revólver para o peito dele comecei a aliviar o meu coração: tirei as gavetas dos armários, joguei tudo no chão, chutei os vidrinhos todos como se fossem balas, eles pipocavam e explodiam na parede. Arrebentar os cuspidores e motores foi mais difícil, cheguei a machucar as mãos e os pés. O dentista me olhava, várias vezes deve ter pensado em pular em cima de mim, eu queria muito que ele fizesse isso para dar um tiro naquela barriga grande cheia de merda. Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro! Dei um tiro no joelho dele. Devia ter matado aquele filho da puta. Contos Reunidos, São Paulo, Companhia das Letras, 1994. 12 QUARTO MOMENTO: SÉCULO XXI Rodrigo Lopes de Barros 13 A Carne do Metrô, Florianópolis, Editora Katarina Kartonera, 2009. 14