Ana Paula Rebouças Lessa - Programa de Pós

Transcrição

Ana Paula Rebouças Lessa - Programa de Pós
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E
LOCAL
ANA PAULA REBOUÇAS LESSA
A CIDADE E AS LETRAS:
OSVALDO SÁ E SUAS ESTRATÉGIAS DE RECONHECIMENTO LITERÁRIO.
SANTO ANTONIO DE JESUS, BA
2013
ANA PAULA REBOUÇAS LESSA
A CIDADE E AS LETRAS:
OSVALDO SÁ E SUAS ESTRATÉGIAS DE RECONHECIMENTO LITERÁRIO.
Dissertação apresentada como requisito para obtenção do grau de
Mestre em História ao Programa de Mestrado em História Regional e
Local do Departamento de Ciências Humanas, Campus V - Santo
Antônio de Jesus da Universidade do Estado da Bahia, sob orientação
do Prof. Dr. Paulo Santos Silva.
SANTO ANTONIO DE JESUS, BA.
2013
FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB
Lessa, Ana Paula Rebouças
A Cidade e as Letras: Osvaldo Sá e suas estratégias de reconhecimento literário. /
Ana Paula Rebouças Lessa . – Santo Antonio de Jesus, 2013.
123f.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Santos Silva
Dissertação (Mestrado em História Regional e Local) - Universidade do Estado da
Bahia. Departamento de Ciências Humanas. Campus V. 2013.
Contém referências.
1. Bibliografia. 2. Memória - História. 3. Maragojipe - (BA). I. Silva, Paulo Santos.
II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas.
CDD: 306.4
ANA PAULA REBOUÇAS LESSA
A CIDADE E AS LETRAS:
OSVALDO SÁ E SUAS ESTRATÉGIAS DE RECONHECIMENTO LITERÁRIO.
Dissertação apresentada como requisito para obtenção do grau de
Mestre em História ao Programa de Mestrado em História Regional e
Local do Departamento de Ciências Humanas Campus V Santo
Antônio de Jesus da Universidade do Estado da Bahia, sob orientação
do Prof. Dr. Paulo Santos Silva.
Banca Examinadora:
Prof.ª Dr.ª Maria das Graças de Andrade Leal (UNEB)
Prof.ª Dr.ª Gabriela dos Reis Sampaio (UFBA)
Prof. Dr. Paulo Santos Silva (Orientador)
SANTO ANTONIO DE JESUS, BA.
2013
À mamãe, a quem tanto amo ....
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos aqueles que direta ou indiretamente tornou possível a sua realização.
Ao meu orientador, o Prof. Dr. Paulo Santos Silva. Registro aqui a minha satisfação de
ter sido orientada por um profissional de tal gabarito que soube dosar compreensão e
paciência. Obrigada pela oportunidade de aprender tanto e me tornar uma profissional melhor.
Sua seriedade e competência serão para sempre um exemplo para mim. Agradeço pelas
indicações de leitura e pelo empréstimo de sua biblioteca pessoal. Espero ter atendido suas
possíveis expectativas com relação ao resultado final desse trabalho.
Às Professoras Doutoras Maria das Graças Andrade Leal (UNEB) e Gabriela Reis
Sampaio (UFBA) por terem aceito o convite para participar e contribuir em minha banca
examinadora desde o processo de qualificação.
Ao corpo docente do programa, na pessoa do Prof. Dr. Raimundo Nonato Pereira
Moreira (UNEB) e aos servidores administrativos da UNEB, sobretudo aos funcionários do
PPGHIS. A Anne um abraço fraternal e o meu muito obrigada pela solicitude e doçura de
sempre.
À Fundação Osvaldo Sá na figura de seu responsável o Sr. Alberto Sá o meu
agradecimento por permitir acesso às informações necessárias à composição do trabalho.
Aos funcionários da Casa da Cultura de Maragojipe, nas pessoas de Sérgio, Milza e
Clemilda pela atenção e preocupação demonstrada a cada nova visita.
À Profª Drª Nancy Assis e aos seus alunos, por permitir que eu aprendesse nas suas
aulas no período do Tirocínio Docente.
A minha eterna gratidão à família do meu amigo e colega desde os tempos da
graduação na UFRB, Leonardo Leite, pela acolhida em Santo Antônio de Jesus num momento
tão difícil para a minha família. D. Tina, Léo, Ricardo, vocês moram em meu coração.
Obrigada!
Um abraço fraternal as amigas Carmem, Sinara, Bianca, Cristiane e Marilene por
estarem sempre dispostas a dividir comigo minhas dúvidas, angústias e, sobretudo os
momentos alegres ao longo desses dois intensos anos.
Aos colegas do mestrado pelos momentos de alegria compartilhados. Miguel,
Jaqueline e Gisely a vocês deixo um sorriso sincero! Que a nossa amizade perdure e se
fortaleça.
À CAPES pelo auxílio financeiro desde o ingresso no programa.
A meu eterno orientador e incentivador, Prof. Dr. Nuno Gonçalves (UFRB), por ter
me mostrado a riqueza de trabalhar com o escritor maragojipano ainda no inicio da graduação.
Ao Prof. Dr. Leandro Almeida (UFRB), meu orientador da especialização, pelos toques
essenciais à pesquisa. A Melira Ellen pela amizade de sempre! A meu amigo e colega de
graduação, Washington Andrade! Seremos para sempre a dupla sertaneja Osvaldo e Osório!
Ao querido amigo Djalma Melo pelo carinho e por estar sempre pronto a me ajudar!
Adoro você Branco! Obrigada por tudo! Como já lhe disse certa vez: a história me trouxe
sempre boas surpresas, você é uma delas.
Aos meus afilhados, Bernardo e Sâmylla que tornaram meus dias mais leves. Obrigada
pelos abraços apertados e sorrisos sinceros! Amo vocês meus pequenos.
Por fim, e não menos importante, dedico esse trabalho aos meus pais. Agradeço,
sobretudo, à minha mãe ― razão primordial da minha luta diária. Obrigada por compartilhar
comigo os meus sonhos.
Osvaldo Sá com 93 anos. Acervo fotográfico da Fundação Osvaldo Sá.
.
E toda pessoa possui o seu universo. Esse mundo se dilata ou se
restringe conforme o raio de ação de cada qual. O meu não tem
sido dos maiores, situa-se entre os pequenos e não entre os
menores.
Osvaldo Sá.
(Vala dos Meus Dias, 1986)
RESUMO
Este trabalho analisa a produção intelectual do escritor maragojipano Osvaldo Sá (19082002). Nesta abordagem, optou-se por interpelar das suas 24 obras, os livros Histórias
Menores: Capítulos da História de Maragojipe (3 volumes- 1981/1982/1983), Vala dos Meus
Dias (3 volumes - 1985/1986/1989), Tempos de Maragojipe (1992) e À Sombra do Palmeiral
(1994). No conjunto de sua produção, Osvaldo Sá ocupou-se primordialmente da história da
cidade onde nasceu destacando episódios de sua história familiar. O escritor era neto de
antigos senhores de engenho do Recôncavo e filho de um ex-intendente de Maragojipe. Ao
considerarem-se esses aspectos, questiona-se acerca do que estava em jogo com a publicação
de suas obras. Por volta dos anos de 1930, suas linhagens familiares foram se enfraquecendo
e perdendo prestígio. O escritor encontrou como principal estratégia de sobrevivência a
dedicação às letras, atuando no jornalismo local, estadual e nacional. A escrita da memória de
sua cidade natal atendia ao seu desejo de tornar-se reconhecido em âmbito local e nacional em
um contexto em que Osvaldo Sá buscava reparar a perda de prestígio político e social de suas
linhagens familiares e assim tornar perene sua própria história.
PALAVRAS- CHAVE: Cidade – Memória – História - Família - Escritor- Jornalismo.
ABSTRACT
This study examines Osvaldo Sá’s intellectual production, a writer born in Maragojipe Town,
in 1908 and dead in 2002. Within such an approach, it was decided to reflect upon his works
entitled Minors History Books: Maragojipe's History Chapters (3 volumes, 1981/1982/1983);
My Days' Moats (3 volumes - 1985/1986/1989); Maragojipe Times (1992) and In the Palm
Grove Shadow (1994), among his 24 academic production. On the range of his intellectual
production, Osvaldo Sá primarily minded with his hometown narrative, highlighting episodes
of his own family history. The said writer was a sugar mill owners' grandson, historical
endeavor located in Bahia State's Reconcavo Region, since the period of colonial Brazil. He
was also one of Maragojipe Municipality's former intendant’s sons. Upon considering these
features, the question is about what was at stake with the publication of his works. By the
1930s, his family bloodlines began to weaken and to lose prestige. Then, he decided to
dedicate himself to the local literature and journalism production, spreading his works to both
Bahia state and other states of Brazil as well. The writer’s wish of becoming locally and
nationally recognized within a context inspired Osvaldo Sá to look for repairing his family
bloodlines social and political prestige loss and thus to everlast his own history.
KEYWORDS: Hometown - Memory - History - Family – Writer - Journalism.
LISTA DE SIGLAS
ABL- Academia Brasileira de Letras.
ALB- Academia de Letras da Bahia.
AMSF- Arquivo Municipal de São Félix.
APEB- Arquivo Público do Estado da Bahia.
BPEB- Biblioteca Pública do Estado da Bahia.
CCM- Casa da Cultura de Maragojipe.
IHGB- Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
IGHB- Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO, 13.
CAPÍTULO I - OSVALDO SÁ: O ESCRITOR E SUA TRAJETÓRIA, 19.
CAPÍTULO II- AS ESTRATÉGIAS DE UM LITERATO DO INTERIOR, 39.
1- O arquivamento de si – a Fundação Osvaldo Sá, 39.
2- A carreira jornalística, 44.
3- O jogo das trocas epistolares, 59.
4- A tentativa de legitimação dos escritos, 64.
CAPÍTULO III – A PRODUÇÃO MEMORIALÍSTICA DE OSVALDO SÁ, 71.
1- O escritor e sua prosa, 71.
2- Dos recônditos da memória, 72.
3- Entre o campo e a cidade, 76.
4- Para além das terras maragojipanas, 83.
4.1- Entre memórias e a História, 86.
4.2-A história de Maragojipe entre os jornais e os livros, 92.
5- A cidade nas letras, 94.
CONSIDERAÇÕES FINAIS, 112.
ARQUIVOS, 113.
FONTES, 113.
REFERÊNCIAS, 118.
13
INTRODUÇÃO
Esta dissertação analisa a prática intelectual do escritor maragojipano Osvaldo Sá
(1908-2002). A problemática que norteou a abordagem diz respeito às razões que o levaram a
publicar, em viés memorialístico, livros acerca da história de Maragojipe e da sua própria
família. Sugerimos que a escrita e a publicação de suas obras estavam intrinsecamente ligadas
ao desejo de recuperação e manutenção do seu prestígio na sociedade local, condição
gradativamente perdida por seus antepassados nos anos de 1930. A história de Maragojipe
teria sido o pretexto encontrado pelo autor para tornar-se reconhecido e lembrado, mantendo
vivo através das letras o nome de sua família.
A partir dessa hipótese, opera-se com os dados que compõem a sua biografia, visando
identificar as estratégias por ele utilizadas para atingir seu objetivo: o reconhecimento literário
e a recuperação do seu prestígio, adentrando algumas de suas obras para observar a forma
com que conciliou memória e história a fim de conseguir o seu intento.
O escritor Osvaldo dos Santos Sá nasceu em 28 de julho 1908 e faleceu em 03 de
junho de 2002. No dia em que completaria 94 anos, nesse mesmo ano, foi criada a Fundação
Osvaldo Sá: Um desaguar de saber por iniciativa de seu filho caçula, Alberto Sá, e de pessoas
interessadas em resguardar a memória do escritor e da cidade de Maragojipe, em sua maioria
professores, e alguns dirigentes ligados à Secretaria de Educação e Cultura do município. Foi
disponibilizado ao público todo o acervo particular de Osvaldo Sá, incluindo suas obras. Era a
oportunidade de conhecer um pouco mais a intimidade e as peculiaridades do autor que
narrou Maragojipe em verso e prosa.1
Osvaldo Sá divulgou suas narrativas inicialmente nos jornais e depois nos seus 24
livros publicados, além dos títulos que permanecem inéditos. Seus livros giram em torno de
dois núcleos: a história de Maragojipe e a história familiar do escritor. Em sua escrita, nas
mais variadas formas, tendo em vista que Osvaldo Sá escreveu verso e prosa, as fronteiras
entre a história e a memória se apresentam tênues.
Durante as pesquisas na Fundação Osvaldo Sá, encontrou-se um certificado de apresentação de trabalho na XIV
Jornada Universitária da UEFS, no ano de 1999, intitulada Osvaldo Sá: poeta de Maragojipe, cuja autora era
Rosiene Rodrigues. Junto ao certificado estava o seu endereço, entrou-se em contato através de correspondência
mais nenhuma resposta foi obtida. Realizou-se consultas aos acervos virtuais da Universidade e em sites de
busca da internet e nada referente ao trabalho foi encontrado.
1
14
No primeiro núcleo, podemos encaixar Folhas ao Vento, versos escritos em parte no
Rio de Janeiro e publicados a primeira vez em 1935. Conforme o autor, os versos são cânticos
de saudade dos tempos fora de sua terra natal. O segundo livro, A Conspirata dos Galos,
reúne um conjunto de sonetos. O terceiro são contos sob o título Evocação, publicados em
1976, tratando de episódios corriqueiros da cidade de Maragojipe, colhidos na oralidade.
Dois anos depois de Evocação, o anedotário da população maragojipana foi tema de
crônicas no livro Maragojipe Humorístico. Nos anos de 1980, voltou a versejar e publicou
Ponto nos iii. Com esta obra, o escritor concorreu com o pseudônimo “Matusino Guerreiro
Grego”, ao Prêmio Gregório de Matos, promovido pela Fundação Cultural da Bahia.
Em 1987, Osvaldo Sá novamente assinalou presença no cenário literário do
Recôncavo, dessa vez com o livro Sondas e Pousos, reunindo em seu interior, crônicas e
sonetos. A Humilde Musa, publicado em 1988, entre o segundo e o terceiro volume de suas
memórias, reuniu mais versos que cantam Maragojipe, a “Humilde Musa”, umas das várias
formas que empregou para referir-se à cidade de origem. Quando os Bichos Falavam foi
publicado no ano de 1990, composto por trinta trabalhos em prosa e uma narrativa em trovas,
cujo conteúdo assemelha-se às fábulas. Os personagens são os ilustres da Maragojipe do
século XX, Muritiba e Salvador, sem esquecer-se do Rio de Janeiro, locais por onde o escritor
passou.
Mais versos vieram no livro Vitrais. A obra, publicada em 1991, tem como pano de
fundo as festividades locais e suas transformações no passar dos anos. Em 1995, veio a
público o livro Pata de Leão, que conta em prosa a história de um homem rico, o “Pantaleão”.
O cenário é uma cidade esquecida do interior, onde os mandos e desmandos ficavam nas
mãos de endinheirados.
Em 1997, Osvaldo Sá reuniu noventa e quatro páginas de documentos avulsos,
encontrados nas suas andanças como pesquisador da história de Maragojipe. Intitulou a obra
de Documentário de Maragojipe. São documentos que apresentaram a história local e de seus
antigos distritos, São Filipe, Conceição do Almeida, Cruz das Almas e Rio da Dona. Rosa
Eterna, publicado em 1998, reúne aproximadamente setenta páginas com versos que
incitavam a campanha pela paz e o amor à esposa do escritor. No ano 2000, em Leque de
Pavão, enveredou nas poesias, contos e haicais cujo conteúdo é Maragojipe em seus mais
variados aspectos, sobretudo culturais.
Entre as obras que tem essencialmente Maragojipe como tema principal, analisaremos
as crônicas de Histórias Menores: Capítulos da História de Maragojipe (Vol. I, II, III) e
aquelas presentes em Tempos de Maragojipe. A ênfase nesses títulos explica-se pela
15
predileção do autor, e, sobretudo, pela capacidade delas em demonstrar o passado que o
escritor tentava resgatar e explicitar o descontentamento dele com o presente.
Nas Histórias Menores: Capítulos da História de Maragojipe, publicadas entre os
anos de 1981 e 1983, o autor reuniu crônicas que contam a história de Maragojipe com base
em documentos como atas e testamentos, assim como a historiografia geral e baiana,
intercalando com suas memórias, tratando desde a origem colonial da cidade até os anos de
1930.
Em 1992, Osvaldo Sá retornou às crônicas em Tempos de Maragojipe. O autor
ocupou-se de fases distintas da vida maragojipana. Tratou de pessoas influentes na cidade, das
velhas fábricas que alimentavam a economia local, da antiga “feira do Cai-já”, de onde
escoava as riquezas maragojipanas, até a completa substituição dos saveiros pelo trem que
circulava nas cidades vizinhas.
As palmeiras que compõem a paisagem natural da cidade, e que aparecem retratadas
na capa de Tempos de Maragojipe, serviram de inspiração para o livro, lançado em 1994,
nomeado À sombra do Palmeiral. Trata-se de contos que melhor se incorporam ao segundo
núcleo temático privilegiado pelo escritor, cujo conteúdo se baseia em sua história familiar,
transformando a Maragojipe que conheceu em cenário. Compartilham dessas características
os livros de memórias intituladas Vala dos Meus Dias (1985 ∕ 1986 ∕ 1989) e as crônicas de
Burundanga, publicado em 2001.2
A cidade e sua trajetória familiar se entrelaçam em todos os livros, em alguns mais
detidamente. Separar as obras nesses dois eixos foi tarefa difícil, pois, ao que parece, essas
fronteiras são nulas no que se refere ao olhar de Osvaldo Sá.
O interesse pelo estudo de intelectuais ficou durante décadas relegado a segundo
plano. Somente na segunda metade da década de 1970 tornou-se um campo autônomo situado
na intersecção da história política, social e cultural. 3 Os arquivos pessoais constituídos por
esses intelectuais são compostos por fontes riquíssimas e contribuíram em grande medida para
esse interesse da história.4 O estudo acerca desse escritor revela detalhes da produção
intelectual no interior da Bahia, nas cidades do Recôncavo, especificamente em Maragojipe.
O foco da recente historiografia baiana que trata do tema recai sobre os intelectuais da capital,
2
Ficou no prelo a obra Epístolas à Satanás, 64- Espada, poemas que criticavam a ditadura no Brasil, e O Trupe
que Zupe, versos que seriam publicados em 2002, meses antes de seu falecimento.
3
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. 2ª Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
4
A esse respeito baseamos a argumentação nos artigos ∕ ensaios de PROCHASSON, Cristophe. Atenção:
Verdade! Arquivos privados e a Renovação das práticas historiográficas. Estudos Históricos, 1998.p.110;
BELLOTTO, Heloísa Liberrali. Arquivos Pessoais em face da Teoria Arquivística tradicional. Estudos
Históricos, 1998. LEJEUNE, Philipe. O guarda - memória. Estudos Históricos, 1997, pp.111-112; RIBEIRO,
Renato Janine. Memórias de si, ou... Estudos Históricos, 1998. p.35.
16
essencialmente aqueles vinculados às instituições que agregavam o conhecimento no campo
das letras e da história, a exemplo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e a Academia
de Letras da Bahia. 5
Acerca da produção textual de Osvaldo Sá, levamos em consideração todo o processo
de composição e divulgação atentando desde os elementos internos até os externos das obras,
a exemplo do material utilizado na publicação e o patrocínio que viabilizava a circulação dos
livros do escritor maragojipano.6
Todavia, não só os livros serviram para divulgar a produção de Osvaldo Sá. Foram os
jornais, seja atuando como redator, compositor de tipos ou escrevendo em suas colunas, o
local privilegiado para a propagação de suas perspectivas enquanto escritor. Entre os jornais
em que atuou, escolhemos como exemplo considerável o periódico maragojipano chamado
Arquivo, em vista da permanente atuação do escritor nesse veículo de comunicação, tanto
divulgando notícias quanto publicando seus poemas e crônicas.
Ao longo do tempo, Osvaldo Sá construiu um acervo variado e sedutor, produzindo
fontes que informassem sobre a sua atuação para a posteridade. Cuidou de arquivar-se.7 Em
sua biblioteca, encontramos livros, revistas, jornais, fotografias, mapas diversos, documentos
históricos sobre Maragojipe, papéis avulsos, rascunhos de idéias que originavam seus artigos
nos jornais, as cartas que trocava com a família e renomados intelectuais e políticos, cartões
postais, jornais do inicio e meados do século XX a exemplo do periódico Redempção e alguns
ainda mais antigos, datados do século XIX. Além do próprio mobiliário de sua biblioteca que
já nos revela o gosto pelo antigo, pelas relíquias de família. 8 A própria organização da
biblioteca de Osvaldo Sá já apresenta detalhes importantes da imagem que o escritor forjou
para si.
As fontes consultadas foram essencialmente as 24 obras do autor já citadas no início
desta introdução, o acervo epistolográfico e os artigos de jornais relacionados ao escritor.
5
MACHADO NETO, Antonio Luis. A Bahia intelectual (1900-1930). UNIVERSITAS. Revista de Cultura da
Universidade Federal da Bahia. nº.12-13, 1972. p. 271; SILVA, Paulo Santos. Âncoras de Tradição. Luta
política, intelectuais e construção do discurso histórico na Bahia (1930-1949). Salvador: Edufba, 2011.
6
A estrutura dos livros, enfim, a forma como esse conteúdo chega aos leitores mais diversos, influenciam no
sentido da obra. A esse respeito, porém aplicado a realidade distinta ver: CHARTIER, Roger. Formas e Sentido.
Cultura Escrita: Entre Distinção e Apropriação. São Paulo: Mercado de Letras; Associação de Leitura do Brasil
(ALB), 2003.
7
SIRINELLI, Jean François. Os intelectuais. In: REMOND, René (Org) Por uma História Política. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 1996; ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos. Rio de
Janeiro, vol. 11, n. 21, 1998. pp.9-34.
8
GOMES, Ângela de Castro. Nas malhas do feitiço: o historiador e os encantos dos arquivos privados. Estudos
históricos, 1998. pp.122-126, bem como a obra organizada pela mesma autora GOMES, Ângela de Castro (org).
Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. Ver também: PROCHASSON, Cristophe.
Atenção: Verdade! Arquivos privados e a renovação das práticas historiográficas. Estudos Históricos,
1998.p.110; ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Op.cit., 1998.
17
Toda essa documentação foi consultada no acervo da Fundação Osvaldo Sá (FOS). Outro
importante acervo pesquisado foi o da Casa da Cultura de Maragojipe. Lá estão guardados
exemplares do jornal Arquivo (1951-1976).
A série do periódico está incompleta, mas nos ajudou a elucidar características do
grupo a que Osvaldo Sá estava vinculado na sociedade maragojipana, do qual não se
desvencilhou mesmo quando passou a residir na cidade vizinha a Maragojipe, Muritiba,
mantendo-se como correspondente, contribuindo com críticas, poemas, anedotas e suas
crônicas.
No Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), encontramos as poucas informações
sobre a intendência do pai de Osvaldo Sá, o engenheiro Júlio Sá. Na Biblioteca Ruy Barbosa
(IGHB), examinamos o estatuto do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB) e, em
meio ao acervo, constatamos o pioneirismo do escritor maragojipano no que se refere à
memória escrita de sua cidade natal.
Na Biblioteca Pública do Estado da Bahia (BPEB) e no Arquivo Municipal da cidade
de São Félix (AMSF) encontramos detalhes da vida pública de Osvaldo Sá, além de outras
obras de memorialistas do Recôncavo, o que possibilitou a identificação de semelhanças e
peculiaridades nesse gênero de escrita.
A história reproduzida pelo “guardião da memória de Maragojipe” tem um caráter
pedagógico. Ressaltava o uso da tradição oral no seu texto, porém, priorizava a transcrição e
análise de documentos considerados oficiais pelos historiadores. Outro atributo marcante nas
suas obras é o tom melancólico e por vezes nostálgico, característica peculiar às obras
memorialísticas. 9
Outros memorialistas do Recôncavo já vinham pesquisando e levando a público os
acontecimentos de suas cidades natais. Podemos citar a Memória Histórico - Geográfica de
Santo Amaro (1977), do santamarense Pedro Tomás Pedreira, a obra do almeidense Geraldo
Coni Caldas intitulada Conceição do Almeida (memória): Minha Terra e Minha Gente
(1974), os livros Vida e Passado de Santo Amaro (1950) e História de Santo Amaro (1964) de
Herundino Costa Leal, a obra de Zilda Paim, Isto é Santo Amaro (1974), o livro Aquarela de
Cruz das Almas, do cruzalmense Mario Pinto da Cunha, escrito em 1982. Da cidade de
Muritiba temos História e Estrela de Muritiba, do político Anfilófio de Castro, impresso em
9
Tais características só puderam ser descritas e constatadas devido ao acesso a outras obras do gênero,
especificamente as obras de memorialistas do Recôncavo que foram comparadas à escrita de Osvaldo Sá, bem
como revistas e dissertações que tem esse gênero literário como objeto central de suas pesquisas. No final desta
dissertação, as referências estarão devidamente expostas.
18
1941, do município de Castro Alves, escrito por Aurino de Azevedo Teixeira o livro
intitulado Informações Históricas sobre a Cidade de Castro Alves (1990).
Mais recentemente, do ano de 2001, os livros sobre a cidade de Cachoeira, de
Francisco José de Mello nomeado História da Cidade da Cachoeira e a obra Cachoeira III
séculos de História e Tradição, do filósofo Jadson Luiz Santos. E, por fim, o livro de Nelson
Brito, publicado em 2012, cujo título é Muritiba: Resgatando sua História.
Osvaldo Sá escrevia por desconfiar do caráter da memória, da sua natureza frágil,
fugaz. O texto escrito guardaria detalhes que o tempo poderia apagar ou reescrever na
memória. Memória que evocava suas melhores lembranças, dando coerência as suas tramas. 10
Os argumentos que sustentam esta dissertação estão articulados em três capítulos. Neles,
buscamos mostrar a trajetória de um indivíduo, bem como os desdobramentos de uma escrita
diversificada, inscrita em diferentes gêneros – romance, conto, crônica e memórias, cujo tema
comum é uma cidade e seus modos de viver. Desta maneira, espaço público e privado se
entrelaçam, sobretudo quando o autor narra a trajetória de sua família.
No primeiro capítulo, Osvaldo Sá: o escritor e sua trajetória esboçamos um breve
relato sobre a vida e a construção cotidiana da formação do literato maragojipano. Utilizamos
como fonte a “imagem de si” criada pelo autor na sua trilogia de memórias intitulada Vala dos
Meus Dias, publicadas entre os anos de 1985 e 1989.
No capítulo II, As estratégias de um literato do interior demonstramos as condutas
utilizadas pelo escritor para penetrar nos círculos intelectuais em seus três níveis: local,
estadual e nacional. Tratamos da atuação do autor no jornalismo da região, dando destaque
para o jornal Arquivo, onde Osvaldo Sá conheceu alguns dos seus principais patrocinadores e
atuou de forma bastante expressiva, publicando poesias e crônicas. Também mostramos os
laços de sociabilidade forjados pelo autor no intuito de divulgar suas criações literárias e
históricas, bem como as minúcias da organização de sua biblioteca pessoal.
No último capítulo, intitulado A produção memorialística de Osvaldo Sá, apontamos
as peculiaridades presentes na memorialística de Osvaldo Sá, destacando que as suas obras
foram em essência tentativas de obter reconhecimento e recuperar seu prestígio.
10
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, 1989. BOSI, Ecléa. Memória e
Sociedade: lembrança de velhos. 3ªed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994; LE GOFF, Jacques História e
Memória. São Paulo: Editora da UNICAMP, 2003.
19
CAPÍTULO I
OSVALDO SÁ: O ESCRITOR E SUA TRAJETÓRIA
Em 1905, no decorrer do governo do intendente Joaquim Gonzalves, Maragojipe,
cidade do Recôncavo da Bahia, a aproximadamente 133 quilômetros de Salvador,
experimentou e ganhou novo fôlego econômico com a implantação da fábrica de charutos e
cigarrilhas Suerdieck e Cia. Três anos após a instalação da primeira fábrica alemã na cidade, a
produção que crescia a passos largos, necessitou de novos espaços. O fabrico passou a ser
também em casas de particulares.11
No ano de 1908, em virtude das possibilidades de aumento dos lucros com a criação
de novas marcas, fabricavam-se e comercializavam-se em luxuosas caixas os primeiros
charutos Holandezes em Maragojipe.12 Nesse mesmo ano a Suerdieck teve seus esforços
coroados com um prêmio especial pelo aperfeiçoamento da cultura do fumo na Exposição
Nacional do Rio de Janeiro, um dos poucos concedidos no Brasil. Os negócios expandiam-se
e tornavam-se cada vez mais vantajosos. A exportação alcançava aproximadamente 20.000
fardos de fumo de boa qualidade, tornando a firma uma das maiores exportadoras BahiaBrasil. 13
Nesse contexto de crescimento econômico, nascia mais um herdeiro da família Sá.
Fruto da união do casal Julio dos Santos Sá e Constança Angélica dos Santos Sá, vinha ao
mundo Osvaldo, Dodô, como era chamado na intimidade do lar, precisamente a 28 de julho
de 1908. Foi o ar fresco da fazenda Água Fria e a casa grande do antigo engenho colonial o
lugar escolhido para o nascimento do menino. Herança dos bisavós de sua esposa, as terras da
fazenda Água Fria, antiga fazenda Traíras, passaram às mãos do engenheiro agrônomo Julio
Sá e mais tarde foram entregues aos cuidados de seus onze filhos.
Relatório do GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA. Carnaval de Maragojipe. Secretaria de Cultura. 2010.
Disponível em: www.ipac.ba.gov.br∕site∕conteudo∕downloads∕arquivos∕arquivo1112∕3. Maragojipe.pdf. Acesso
em: agosto de 2012.
12
Idem.
13
CASA DA CULTURA DE MARAGOJIPE (CCM) - Publicação sobre a história da fábrica Suerdieck,
elaborada pelo filho de seu fundador, Geraldo Meyer Suerdieck Filho.
11
20
As terras de Água Fria estavam situadas no distrito do Guaí, na zona rural de
Maragojipe. No primeiro decênio do século XXI, outros donos ocuparam as terras que
pertenceram à família daquele que, em 1916, se tornaria intendente do município, Julio Sá. A
fazenda era o local escolhido pelo patriarca para levar sua numerosa família no período
correspondente aos meses de julho, agosto e dezembro. A maior parte do ano residia na
capital baiana, Salvador.
Durante o mandato do engenheiro Julio Sá (1916-1919), o cenário mundial era de
guerra. Os efeitos foram sentidos também em Maragojipe. Um desses efeitos reverberou em
um dos pilares da economia maragojipana, a firma Suerdieck, de origem alemã. Com a Guerra
a empresa perdia um dos seus maiores mercados consumidores, a Alemanha, restando-lhe
apenas a Holanda.14
Porém, do início da deflagração do conflito e a posse do intendente, a procura pelos
charutos da marca Suerdieck mantiveram-se equilibradas. Além disso, Julio Sá mantinha
laços de amizade com os donos da firma Suerdieck, frequentavam o “Clube Alemão”,
jogavam boliche e bebiam cerveja nas noites de sábado. Desfazer esses “laços” poderia
impactar diretamente o receituário maragojipano, que tinha a firma como principal fonte de
renda. 15
Somente em 1919, no final do seu mandato, tomou a decisão de trazer todos para
fixarem definitivamente moradia em Maragojipe. 16 A cidade tornou-se o mundo de Osvaldo
Sá, o lugar que inspirou a maior parte de sua obra.
No primeiro volume de suas memórias, Vala dos Meus Dias, publicadas inicialmente
no jornal Tribuna do Povo, de propriedade de seu irmão, o geógrafo Fernando Sá, o escritor
reuniu episódios de sua infância. O autor passeou pelo cotidiano de sua família através de
recordações. Revelou detalhes de suas idas à fazenda juntamente com toda a família onde
passavam as férias desfrutando das paisagens bucólicas do lugar.
O cacau e o fumo eram os principais produtos geradores de receita para a Bahia, segundo Consuelo Novais
Sampaio. Produtos que eram exportados em grande medida para a Alemanha. O comércio foi bastante atingido
nesse período e a carestia gradualmente se agravava. Para saber mais acerca das consequências da 1ª Guerra na
Bahia. Cf.: SAMPAIO, Consuelo Novais. Os partidos políticos da Bahia na Primeira República: uma política
de acomodação. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 1998. p.136.
15
A esse respeito Cf.: SÁ, Osvaldo. Burundanga. Maragojipe: Netuno, 2001.p.24.
16
As dificuldades com a carestia de alimentos se faziam presentes tanto na capital quanto no interior, no entanto,
as condições de vida em Salvador mostravam-se mais amenas. Pelo menos, na velha capital, os familiares
mantinham-se em relativa segurança, tendo em vista que em Maragojipe eram poucos os amigos do intendente e
não estavam descartados os ataques à sua residência. Idem, pp.20-25.
14
21
A fazenda foi o ponto de encontro de Osvaldo Sá com os amigos e as traquinagens
juvenis. Sua infância, segundo relatou, foi marcada por banhos de rio, ao sabor de frutas
colhidas nas copas das árvores, dos passeios a cavalo e, sobretudo, dos afagos da avó Inês.
A casa grande era o local de escutar as estórias contadas pelos empregados que o
serviam na fazenda e de constatar a inabilidade de lidar com a terra, tão cultivada pelo pai,
cuja intenção era que alguns de seus filhos assumissem o seu lugar na administração dos bens
da família quando viesse a faltar.
A inclinação para a poética falou mais alto no caso de Osvaldo Sá. Somente no
período de “vacas magras”, conforme afirmou, recorria às riquezas da fazenda, vendendo
madeira para as carvoarias da região e uma ou outra cabeça de gado que restava nas terras dos
Sá. O escritor reconstruiu seu passado confidenciando ao leitor suas lembranças, concedendo
à sua narrativa um caráter confessional. 17
As tramas que construiu evidenciaram as divagações do autor, que num vai e vem de
lembranças, entrelaçou recordações suas e de sua família. Sua memória revelou o cotidiano do
grupo social ao qual pertenceu. O individual e o coletivo se entrecruzaram. Vala dos Meus
Dias registrou lembranças selecionadas pelo escritor, intercalando-as com textos históricos.
A coletânea possibilitou visualizar o método escolhido para delimitar qual conteúdo
poderia ser levado ao conhecimento de seus possíveis leitores. Osvaldo Sá tentou dar lógica às
suas recordações no momento da transposição para o papel. Na escrita, demonstrou ter
consciência de que as lembranças não obedecem à linearidade.
Em suas escolhas ficaram evidentes os diversos tempos da lembrança, carregados de
sentidos e imagens que são o próprio substrato da memória. 18 O escritor demonstrou estar
atento: “[...] alguns fatos mais novos surgem antes que outros antigos, assim contrastando,
não com o tempo, que não possui marcas, mas com as datas assinaladas aos calendários
elaborados dentro das convenções do homem. ” 19
Segundo o caçula de seus oito filhos, o fotógrafo Alberto Sá, seu pai era homem
calado, tímido, por vezes, sisudo. Seguia uma rígida rotina. Passava a maior parte de seu
tempo em meio aos livros, fechado em sua biblioteca. Confirmando a revelação de Alberto
Sá, Osvaldo Sá afirmou que tinha conhecimento de que seus filhos e, consequentemente, os
netos, o consideravam distante e indiferente em virtude dos seus hábitos solitários em sua
17
Sobre a natureza deste tipo de relato, ver: MALUF, Marina. Ruídos da Memória. São Paulo: Siciliano, 1995.
p.47.
18
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
19
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol. I. São Félix: Editora ODEAM, 1985.
22
biblioteca. Lugar onde, segundo o autor, escrevia e filosofava em companhia de livros e
lembranças.20
Nesse primeiro volume de memórias, concedeu informações fundamentais no que diz
respeito aos seus poucos anos na escola formal. Aprendeu as primeiras letras com um mestreescola. De acordo com Machado Neto, aqueles que tinham pretensões intelectuais que
ultrapassassem a conclusão do ensino elementar, sobretudo os que moravam no interior do
estado, tinham que recorrer à capital, Salvador.21 Em perspectiva semelhante, baseando-se em
obras memorialísticas, Paulo Santos Silva afirmou que nas décadas iniciais do século XX, a
Bahia contava com poucas instituições de ensino, tanto das séries iniciais quanto em nível de
educação superior. Predominavam, sobretudo no interior, aulas com professores particulares,
os chamados mestres-escolas. 22
Osvaldo Sá estudou com o mestre Caraúna por um curto período, apenas três meses.
Devotava pouca simpatia ao seu mestre. Afirmou em suas memórias que o método de ensino
do professor era pouco aprazível para ele. O incômodo pode ser verificado nesse trecho,
referindo-se às aulas de História:
As lições de História do Brasil me caceteavam pra burro. Fui e sou um tonto
para decorar tim-tim por tim-tim, e aquela disciplina de perguntas e
respostas do didático Joaquim Maria de Lacerda me torturava deveras os
miolos.
── Quem descobriu o Brasil?
── Foi Pedro Álvares Cabral
── Em que ano?
── Em 1500.
[...] E assim lecionavam os acontecimentos até os principais do quadriênio
do último presidente da República.23
Essa aversão é um fato peculiar e interessante, visto que, comumente entre os
influentes literatos baianos, essas figuras que lhes ensinaram as primeiras letras aparecem
como pessoas que gozavam de consideração e tidos como grandes incentivadores de suas
carreiras literárias. 24
Osvaldo Sá considerava-se avesso à escola. E anunciou esse descontentamento: “[...]
Da escola não ia nada bem. O estudo para mim tinha qualquer coisa de suplicio [...] As
20
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol.I. Op. cit., p.07.
MACHADO NETO, Antonio Luis. A Bahia intelectual (1900-1930). Op.cit. p.271.
22
SILVA, Paulo Santos. Âncoras de Tradição. Op. cit.
23
Ibidem, p.36.
24
Como é o caso dos citados por Paulo Santos Silva, em Âncoras de Tradição, Jorge Amado, Hermes Lima,
entre outros.
21
23
estórias com histórias de permeio é que me atraíam. [...] As lições, não com a desagradável
obrigação de decorar trechos e trechos das matérias, torturavam-me.”
25
Sua alfabetização,
assim como a de seus irmãos menores, Valdemar e Adalgisa, ficou a cargo de sua irmã mais
velha, Maria Emília, na escola doméstica:
[...] Formávamos então um trio [...] Seguiram-se dias mais ou menos calmos,
em ambiente “risonho e franco”, diria o poeta. Mas vieram depois as
exigências. A mestra encheu-se de impaciência e fez de dedos e unhas as
armas de castigos, aplicando-nos ardentes beliscões. E por vezes, tornava-se
barulhenta a escola de pouca gente [...] E me rondavam já saudades do
Caraúna.26
Em 1919, o escritor, aos nove anos, pela primeira vez visitou a sede da cidade. O
momento era de celebração, correspondia aos festejos tradicionais, em homenagem ao
padroeiro, santo católico, São Bartolomeu. Era importante para o intendente a presença da
família reunida durante a principal festividade da cidade que tinha o governo sob sua
responsabilidade.27 A mudança de espaço e em sua rotina foi sentida e registrada por Osvaldo
Sá.
Apesar de afirmar o entusiasmo com as novidades encontradas, a exemplo dos rústicos
meios de transporte de carga, dos pescadores a mercadejar seu peixe utilizando o som de
búzios para anunciar a venda do pescado, enquanto outros teciam suas redes no cais do Porto
do Cai-já repleto de canoas e saveiros, o autor assinalou:
[...] A vida na cidade ribeirinha diferia de lá da velha capital. As ruas então
mal pavimentadas de baldios extensos em vários logradouros, as flores
graúdas [...] Os mangues amplos [...] causavam-me de certo modo impressão
bem diversa daqueloutra habitual da cidade onde saíra. [...] Tudo isso me era
estranho e tinha o quê de encantador das novidades, como se tivesse chegado
a outro país.28
25
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol. I. Op. cit. pp.83-84.
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol. II. São Félix: Editora ODEAM, 1986 p.16-17.
27
Para saber mais VER: SANTOS, Fernanda Reis dos. A festa do excelso padroeiro da Cidade das Palmeiras: o
culto a São Bartolomeu em Maragojipe (1851-1943). Salvador: PPGHIS UFBA, 2010.(Dissertação de
mestrado); NASCIMENTO, Antonio Conceição. A Irmandade do glorioso São Bartolomeu de Maragogipe: suas
práticas devocionais e a romanização (1851-1995). Santo Antonio de Jesus: PPGHIS- UNEB, 2011. (Dissertação
de mestrado)
28
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias.Vol.I.Op.cit., pp.99-104.
26
24
Osvaldo Sá também rememorou e demonstrou insatisfação com a falta de apoio
popular ao mandato de seu pai. Segundo Osvaldo Sá, a candidatura de Julio Sá foi, desde o
começo, marcada por “armadilhas e falcatruas.” O escritor afirmou que a polícia e a justiça
estavam a favor da oposição. É visível em seu exercício de rememoração o sentimento de
inconformidade. A família Sá possuía fama de ricos em virtude de, anteriormente à entrada de
seu pai na vida política, já serem proprietários de duas fazendas e de residência em Salvador,
além da casa na sede municipal.
Segundo as concepções difundidas por Ecléa Bosi, a casa onde o sujeito que rememora
passou a infância guarda importantes lembranças que acabam por revelar a realidade cultural
do individuo no seu sentido mais amplo, sobretudo nas suas vivências em âmbito privado. De
acordo com a autora, “as coisas que modelamos durante anos resistiram a nós com sua
alteridade e tomaram algo do que fomos.”29
Acerca da casa em Maragojipe o escritor revelou detalhes na citação abaixo transcrita:
Era bonita a casa em que eu morava, em Maragojipe. Toda amarela e de
grades vermelhas fechando o passeio ladrilhado. Tinha na platibanda sete
estatuetas de quase um metro de altura e, também, outros ornamentos
semelhando cachos em inflorescência. A sua fachada mirava para a Rua de
Santana, agora de nome Barão do Rio Branco, em esquina, e, o lado do sul
dava para a Rua do Fogo, atualmente chamada D. Macedo Costa. O
frontispício tinha a porta no centro e duas janelas de cada lado, com sacadas
de gradil e piso de mármore. Ao lado, abriam seis janelas e um portão de
bandeira em semicírculo, gradeada. [...] O sótão dividia-se em dois quartos.
Arejava o sótão doze janelas, quatro de cada lado, exceto ao norte, cujo oitão
dava para o quintal vizinho. Ao leste, avistavam-se rios azuis, palmeiras
esbeltas, o navio da Cachoeira quando despontavam, na Ponta do Ferreiro, as
velas brancas de saveiros como asas de sonho cantando as saudades das
despedidas.30
A fama de rico o atrapalhava até mesmo em “namoricos” de juventude. Em uma
Maragojipe predominantemente de pescadores e operários das fábricas de charuto Suerdieck,
o interesse do filho do intendente pelas moças do lugar não era visto com bons olhos. No ano
anterior ao início do mandato do intendente Júlio Sá, a Suerdieck empregava mais de
setecentos trabalhadores, em sua maioria mulheres.31
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. Op.cit. pp. 435-443.
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol.II. Op. cit. pp. 47-48.
31
Osvaldo Sá trabalhou como secretário auxiliar nessa fábrica, cujas edificações ocupam em ruínas a Praça
Conselheiro Antônio Rebouças e adjacências, na cidade de Maragojipe. Para saber mais sobre as origens da
fábrica ver: GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA. Carnaval de Maragojipe. Secretaria de Cultura. IPAC.
Salvador: FPC, 2010. Disponível em: www.ipac.ba.gov.br∕site∕conteudo∕downloads∕arquivos∕arquivo1112∕3.
29
30
25
Em várias passagens do seu livro de memórias, Sá remeteu-se à situação econômica de
sua família. Tanto na fazenda quanto na sede municipal, sempre foi rodeado e servido por
muitos empregados. Moravam na casa da sede, Osvaldo, os pais, seus onze irmãos, a avó,
uma tia, Dona Moçazinha, com quem diz ter aprendido a ler em francês através das fábulas de
La Fontaine, a filha dessa tia e mais os que trabalhavam no serviço da casa dos Sá.
Segundo relatou, havia sempre mais de três empregadas ligadas ao serviço doméstico,
em virtude do número de pessoas que ocupavam a residência, quinze no total. Situação
semelhante ao que acontecia em Água Fria, que ainda era complementado com aqueles que
lidavam com o cultivo das terras da fazenda.
Conforme rememorou, quando criança, nos idos dos seus sete anos, encontrou entre as
domésticas uma ex-escrava de seus avós. Era a nonagenária Feliciana, que veio a falecer em
1912 “após comer um prato de caruru às pressas, como se ainda não estivesse desvencilhada
do cativeiro e do jugo de feitores.”32
Outra característica que o autor atribuiu à família Sá foi o cultivo e o gosto pelo
conhecimento. O pai, Júlio Sá, engenheiro agrônomo formado pela Escola de Agronomia de
São Bento das Lages, era um leitor assíduo de jornais nacionais, revistas editadas no exterior,
livros de Direito, Agronomia e Literatura. A mãe, Constança Sá, estudou piano e grandes
óperas. 33
Júlio Sá apareceu na narrativa de memórias de seu filho como o grande chefe de
família. Dele partiam a primeira e a última palavra para todas as decisões importantes e as
mais corriqueiras quando se tratava da família. A figura materna, Constança Sá, foi retratada
como uma conciliadora, dedicada dona de casa e mãe afetuosa.
No entanto, a pessoa mais detalhadamente descrita em suas reminiscências foi a avó
materna, Inês, ou simplesmente “In – Im”, como reiteradamente é mencionada na narrativa.
Mais de um capítulo foi dedicado às lembranças que envolvem a avó materna. Ela é descrita
como uma senhora sábia e carinhosa, católica fervorosa que lhe ensinava orações, contava
estórias e causos até adormecer, e o livrava dos castigos acarretados pelas traquinagens de
juventude:
Maragojipe.pdf. Acesso em: agosto de 2012. pp. 22-23. Ver também a publicação sobre a história da fábrica
Suerdieck, elaborada pelo filho de seu fundador, Geraldo Meyer Suerdieck Filho, encontrado na Biblioteca
Odilardo Uzêda Rodrigues, na Casa da Cultura de Maragojipe-Ba.
32
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol.II. Op. cit. p.47.
33
Os livros usados pela mãe do escritor foram conservados por ele em sua biblioteca. Há nas estantes da
Fundação Osvaldo Sá uma coleção das Grandes Óperas.
26
Para mim só In-Im, duas sílabas que, para atender aos meus infantis desejos,
se poderia trocar por Sim-Sim, porque em toda a meninice travessa, não me
lembro dum “não” sequer ter pronunciado a sua boca vazia já de dentes para
melhor sair, incólume, a bondade do seu para o alvoroçado coração do
neto.34
Os irmãos também ganharam notoriedade na tessitura narrativa, mas sempre dividindo
a cena em meio às brincadeiras e às vivências cotidianas. Dentre os dez irmãos, sem dúvida, a
mais carinhosamente representada é Maria Amélia, chamada por todos da família de Quita, e
o considerado companheiro de aventuras é Waldemar, Vavá como o autor repetidamente
mencionou ao longo do livro.
Em casa, na companhia dos irmãos e sob a influência de Quita, a irmã mais velha,
teria habituado-se a ler clássicos da literatura brasileira, como A Escrava Isaura, O
Seminarista, O Guarani, O Moço Louro, entre outros. Nessa mesma época, logo quando
concluiu o curso primário, com quatorze anos, começou a versejar e entendeu de expor suas
criações num jornal que intitulou A Natureza.
O jornal era escrito em papel almaço dobrado ao meio, distribuído entre os amigos
que, à medida que o liam, passavam para o conhecimento de outros. Apesar de ter tido vida
efêmera, A Natureza foi, segundo o escritor, o primeiro passo para sua entrada no jornalismo
e daí em diante não parando mais de escrever.
Com dezesseis anos, preparou um livro de poesias e, conforme afirmou, as aspirações
que cercavam a pequena obra eram maiores que a inspiração. O escritor dizia-se admirador
das produções dos poetas e jornalistas expostas nos semanários de Maragojipe e sonhava um
dia estar do outro lado, escrevendo seus versos e sendo lido, inscrevendo assim, seu nome na
poética maragojipana.35
Maragojipe foi o tema que perpassou o conjunto de sua obra, seja servindo como
cenário, seja contribuindo com personagens que o inspiravam. No entanto, nos livros que se
ocuparam de suas memórias, a Salvador das primeiras décadas do século XX também foi
representada. Osvaldo Sá e sua família moravam inicialmente na capital baiana. Conforme já
foi dito, até meados de 1919 apenas as férias eram passadas na fazenda, em Maragojipe. Em
sua narrativa de lembranças, revelou algumas impressões sobre a capital de outrora:
34
35
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol.I. Op. cit., 1985. p. 67.
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol.II. Op.cit., pp.59-60.
27
Era a Bahia de ontem, a cidade do Salvador, mas que todos só lhe chamavam
simplesmente Bahia. Bahia em épocas de remodelações, a da abertura da
Avenida Sete de Setembro, da construção do Hotel Meridional, da Pastelaria
Triunfo, da Biblioteca pública à Praça Tomé de Souza. Prédios que outros já
lhes tomaram o espaço.36
O momento que Osvaldo Sá mencionou em sua narrativa corresponde ao período em
que a Bahia estava sob o governo de Seabra, que, após o bombardeio de 1912, alavancou
inúmeras reformas no cenário citadino de Salvador, com o intuito de modernizar a velha
capital. 37
Segundo relatos de Osvaldo Sá, a fazenda Água Fria era uma das fornecedoras de
matéria-prima para estas mudanças estruturais da cidade. 38 Osvaldo Sá descreveu os espaços
que costumava percorrer em sua rotina diária durante a infância e parte da juventude passadas
na capital baiana. Visivelmente, recorreu a um exercício de recomposição de um tempo que se
foi, e só poderia ser reconstituído através de lembranças:
[...] Do Castanheda, descíamos ao Guadalupe de onde subíamos à praça
municipal pela sua ladeira que hoje já não parece a mesma, e, no elevador
Lacerda, o antigo, que parecia um casarão velho grudado à montanha,
descíamos à Praça Cairu, atravessávamo-la e, da esquina da Alfândega,
avistávamos a “Baiana”, então com seu abrigo muito feio, onde havia muita
madeira velha e zinco franjado de ferrugens. 39
As recordações do autor, nos tempos vividos em terras soteropolitanas, trouxeram à
tona momentos importantes da política baiana, a exemplo da posse de J. J. Seabra. Júlio Sá,
quando intendente em Maragojipe, contava com o apoio político e amizade de Seabra e
Moniz. Nas terras maragojipanas, o sucessor de Seabra, o Dr. Antonio Moniz recebera
aproximadamente 600 votos quando pleiteava o governo da Bahia. Somente nos distritos
Nagé, Caveiras (atual Coqueiros) e Capanema, recebeu 229 votos contra 20 de J. J. Seabra. 40
36
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol.II. Op.cit.,p 28.
Para saber mais sobre o período ver: MACHADO NETO, Antonio Luis. A Bahia intelectual (1900-1930)
.Op.cit.,1972; Consuelo Novais. Os partidos políticos da Bahia na Primeira República. Op.cit.,1998 e
SARMENTO, Sílvia Noronha. A Raposa e a Águia. J. J Seabra e Rui Barbosa na Política Baiana da Primeira
República. Salvador: EDUFBA, 2011.
38
SÁ, Osvaldo. Burundanga. Maragojipe: Netuno, 2001.
39
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol. I. Op.cit., 1985. p.30.
40
APEB - Jornal Gazeta do Povo. Coluna Telegramas. 04 de janeiro de 1916. p.03. Salvador-Ba. Seção
Republicana. Documentação Administrativa.
37
28
Júlio Sá foi indicado para intendência municipal pelo já empossado Governador Antonio
Moniz.
A esse respeito, o jornal Gazeta do Povo, alicerçando-se na última lei de Organização
Municipal, que regulamentava a posse de novos conselheiros e intendentes, noticiava na
Coluna do Interior a partir do telegrama do dia 01 de janeiro de 1916, exemplar da terça-feira,
04 de janeiro de 1916, a posse do novo intendente:
Realizou hoje, posse solene novo conselho e intendente Dr. Júlio Sá.
Compareceu acto grande número de pessoas gradas, que rejubiladas,
acompanharam intendente até residência estimado coronel Guerreiro onde
foram fidalgamente obsequiadas, sendo erguidos calorosos vivas, drs Seabra,
Antonio Muniz, Ubaldino de Assis.
Saudações, Redacção “Nova Era.” 41
No decorrer do ano de 1915, Seabra mantinha-se firme no poder. Segundo Consuelo
Novais Sampaio, esse domínio foi possível através do controle do poder Legislativo, da
reforma da Constituição do Estado e da sanção da Lei de Organização Municipal. A reforma
na constituição possibilitou a instrumentalização da lei que melhor articulava o interior da
Bahia à capital. Entre as atribuições do governador estava a nomeação direta dos intendentes,
cujos mandatos durariam quatro anos, tornando mais estreitos os laços de dependência do
interior em relação à administração central. Entre dezembro de 1915 a março de 1916, Seabra
nomeou 135 intendentes para as cidades baianas. 42
Não foi possível, no entanto, detalhar mais o período em que o patriarca da família Sá
ocupava o maior cargo público local. As atas, os documentos do executivo do período, se
perderam, e os que se achavam como papéis avulsos, em boas condições de leitura, não
remeteram a nenhum aspecto que iluminasse tal momento político maragojipano. 43 As
41
Optamos por manter a grafia original. APEB- Gazeta do povo. Coluna do interior. Posse dos novos conselhos
e dos intendentes. 04 de janeiro de 1916. p.03. Salvador-Ba. Seção Republicana. Documentação Administrativa.
42
SAMPAIO, Consuelo Novais. Os partidos políticos da Bahia na Primeira República. Op.cit. pp. 129-131.
43
Levantamos a hipótese que a impopularidade do governador Moniz reverberava diretamente na atuação de
Júlio Sá em Maragojipe. Segundo Consuelo Sampaio, “os seabristas da Câmara Federal ponderavam que a
impopularidade do governo Antonio Moniz estava intimamente relacionada com a atuação do seu Chefe de
Polícia na repressão das agitações sociais na Capital e nas ruinosas intervenções no interior”. Idem, p.161. O
próprio Osvaldo Sá reforçou a idéia de que a polícia na cidade de Maragojipe servia aos opositores do governo
de seu pai, conforme já foi mencionado.
29
informações adicionais conhecidas foram deixadas por Osvaldo Sá em Vala dos Meus Dias,
Burundanga e algumas notas esparsas.44
A não aceitação da população, em virtude do temperamento e do isolamento em que se
fechava o intendente, acarretava-lhe a fama de pouco afeiçoado à população maragojipana.
Além da alegada oposição política, que comprometia o andamento de suas posições frente ao
governo municipal. Acerca do assunto, Osvaldo Sá saiu em defesa de seu pai:
Em sua administração municipal enfrentou rija oposição, sobretudo por
elementos prestigiados pelo deputado federal, líder em Cachoeira, Ubaldino
de Assis, aqui como o chefe correligionário seu, João Primo Guerreiro [...]
Quanto ao seu procedimento pessoal, mantinha extrema compostura. Desde
cedo, engravatado, de colete e paletó, recebia as visitas em casa, pouco
comparecia à Prefeitura, para evitar encontro com adversários políticos, às
vezes agressivos. Não admitia capangas e a polícia era poder dos
oposicionistas.45
Em 1919, com a saúde bastante debilitada, Julio Sá afastou-se definitivamente da
política local e passou a dedicar-se às leituras, aos cuidados com as terras de Água Fria e a
prestar serviços como engenheiro a Suerdieck, desenhando a planta de uma de suas sedes em
Maragojipe.
Osvaldo Sá dedicou um de seus livros ao pai. A dedicatória muito ilustra acerca da
personalidade e da situação em que Julio Sá se encontrava no fim dos seus dias: “A meu pai
Julio Sá, homem que, sem ambição, deixou a vida quase pobre.” 46
No segundo volume de Vala dos Meus Dias, publicado em 1986, Osvaldo Sá declarou,
no prefácio, a felicidade que lhe causou a acolhida do primeiro volume da obra que contava
detalhes de sua vida, antes guardados apenas na memória. As recordações são ainda mais
reveladoras da construção cotidiana de sua formação intelectual. Nesse exemplar, ressaltou a
sua dedicação ao desvendamento da história de sua cidade natal:
Há, em alguns de meus livros, assuntos que envolvem a História, e até
inéditos pelo menos no que tange ao desenvolvimento de eventos
maragojipanos no decorrer dos séculos. É isso gratificante para quem vive
44
Segundo Osvaldo Sá, o pai foi responsável, como engenheiro, pela construção dos primeiros quilômetros da
estrada de ligação entre Maragojipe e São Felipe, em 1928, no governo de Alexandre Peixoto.
45
SÁ, Osvaldo. Burundanga. Op. cit., pp. 20-25.
46
SÁ, Osvaldo. Tempos de Maragojipe – romance de antiga cidade do Recôncavo. Bahia: Editora Multipress,
1992.
30
insulado em localidade meio esquecida do Recôncavo Baiano, de onde, as
mais das vezes, se divulgam notícias aleatórias e até deturpadas colhidas em
fontes espúrias.47
Foi também no volume II que apresentou e deu destaque ao grupo no qual se sentia
incluído: o dos autodidatas. Pode-se dizer que esse capítulo de suas memórias foi de
fundamental importância para explicar as motivações que o levaram a inscrever suas
memórias na perenidade dos livros e, sobretudo, compreender o lugar de onde falava dentro
daquela sociedade. Osvaldo Sá reconheceu que a inclinação para a literatura e a poética, além
do gosto por colecionar livros e revistas, foi uma herança familiar:
Por essa genealogia vem o ramo do meu avô Manuel Pinto Coelho, que
versejava [...] Também com chamego à poética, foi Pedro Pereira Reis,
médico, primo irmão de minha mãe, que publicou pequenos poemas em “A
Luva” 48, revista dos intelectuais baianos, que circulou na terceira década do
fluente século. O meu avô João Joaquim dos Santos Sá, guarda-livros em seu
tempo, assinava “O Panorama” e o “Novo Mundo”, publicações em
português, mais editadas no exterior. Conheci alguns números dela,
conquanto estragadas, em casa, e conservo ainda em minha biblioteca, o
“Novo Dicionário”, de 1850, e a “Bíblia Sagrada”, editada em 1872 que das
mãos do meu pai, passaram às minhas.49
Por mais que se tente a neutralidade e por mais geral que se queira considerar qualquer
assunto, o lugar de onde se fala é uma marca que não se pode apagar. 50 Deparando-se com a
compilação das memórias do “Escritor de Maragojipe” ― forma como Jorge Amado referiuse a Osvaldo Sá em algumas cartas ― surgiram perguntas acerca das motivações que o
levaram a divulgar suas memórias e o próprio escritor respondeu em sua narrativa.
O autor dizia estar escrevendo suas memórias pensando em escritores que, à
semelhança dele, estudou poucos anos e apenas possuíam o diploma da escola primária.
Intencionava fazer de suas rememorações a inspiração e a demonstração de perseverança. De
acordo com o escritor, sua iniciativa serviria para incitar seus “irmãos autodidatas” a
continuarem a resguardar o cotidiano de suas cidades através da narrativa de suas vivências
47
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol.II. Op.cit., p.16.
Osvaldo Sá também publicou poema em A Luva, cujo título era Os olhos dela. O poema circulou
especificamente no ano de 1929, nº 93. Ver: FERREIRA, Monalisa Valente. Luva de brocado e chita: o
modernismo baiano na revista A Luva. Campinas, São Paulo, 2004. (dissertação de mestrado).
49
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol.II. Op. cit., p.81.
50
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
48
31
particulares erigidas no seio dos grupos aos quais se sentiam pertencentes, sem os quais as
memórias não se perpetuariam nem se sustentariam. 51
Os memorialistas se empenham em tornar suas memórias documentos históricos para
que estas rememorações individuais, nascidas no interior de determinado grupo, em geral de
“grupos dominantes nos vários níveis, ou da classe média e abastada”, figurem como um
testemunho de uma época.52 Temos como exemplo um maragojipano conhecido
nacionalmente, Antonio Pereira Rebouças, conselheiro do Império, a quem Osvaldo Sá
devotava grande admiração por ser, conforme o autor afirmava, o mais ilustre autodidata de
Maragojipe.
Segundo Hebe Mattos e Keila Grinberg, Antonio Rebouças esperava que sua vida
levantasse interesse póstumo. Escreveu quatro documentos biográficos e selecionou seus
principais discursos proferidos no Parlamento e deu o título “Vida Patriótica”,
propagandeando uma imagem elogiosa de si. 53
Na introdução do primeiro volume de Vala dos Meus Dias, por exemplo, Osvaldo Sá
sinaliza alguns autores renomados que se dedicaram a narrar suas vidas nos livros. Cita como
exemplos Oswald de Andrade e Oliveira Lima. Esta foi a forma encontrada para chamar a
atenção do leitor e salientar que tão importante quanto conhecer a trajetória de vida desses
intelectuais é saber da vida do “simples escrivão de cartório, o rabiscador de cidade
interiorana.” 54
Osvaldo Sá, que aprimorava a escrita a cada nova leitura, ocupou vários cargos nas
prefeituras de Maragojipe e da cidade vizinha, Muritiba. Na condição de rábula, chegou a ser
delegado na segunda, e defender várias causas jurídicas na primeira. 55 Nesse período, também
exerceu a função de escrivão-cível no Fórum de Maragojipe.56
A realidade de um escrivão de cartório já foi algumas vezes descrita na literatura
brasileira e latino-americana. 57 Encontramos alguns personagens de pequenas cidades do
interior que tiveram a vida literária intercalada ao serviço burocrático. Pode-se citar o livro do
mineiro Cyro dos Anjos, O Amanuense Belmiro, que além de descrever um típico funcionário
de repartição pública, tem em sua própria vida semelhanças com a trajetória de Osvaldo Sá.
51
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.
MICELI, Sérgio. Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil. (1920-1945). São Paulo: Ed. Difel, 1979. p.XXIV.
53
MATTOS, Hebe Maria. GRINBERG, Keila. Lapidário de si: Antonio Pereira Rebouças e a escrita de si. In:
GOMES, Ângela de Castro (org). Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
54
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol. I. Op.cit.
55
Alguns desses processos estão arquivados na Fundação Osvaldo Sá. Maragojipe- Ba.
56
Começou a atuar como escrivão quando retornou definitivamente de Muritiba para Maragojipe em 1959.
57
Temos como exemplo a obra do uruguaio BENEDETTI, Mario. A trégua. 1ª ed. São Paulo:
MEDIAfashion,2012.(Coleção Folha. Literatura ibero-americana: vol. 8)
52
32
Cyro dos Anjos era filho de fazendeiro e sua mãe, uma apreciadora da boa música. À
semelhança do escritor mineiro, Osvaldo Sá também foi jornalista. Belmiro Borba,
personagem do livro de Cyro dos Anjos, encontrou na literatura um alento para sua vida
monótona e uma alternativa para livrar-se da timidez que tanto o incomodava. 58 A estória de
Belmiro guarda semelhanças com a história de Osvaldo Sá. Filho de fazendeiro, Belmiro era
constantemente pressionado por seu pai a dedicar-se ao cultivo da terra, chegando a ouvir do
patriarca que havia doutores demais na família. O que estavam realmente precisando era de
braços fortes para a lavoura.59
No entanto, Belmiro Borba conformado com o destino que a vida lhe reservara,
afirmava considerar-se um grande amanuense.60 Transpondo da ficção para a história, ao
contrário de Belmiro, Osvaldo Sá não se contentava com a vida burocrática. A rotina de
funcionário público não empolgava o escritor maragojipano. Ocupou cargos públicos apenas
como estratégia de sobrevivência. Pretendeu viver dedicando-se apenas ao exercício literário.
Osvaldo Sá poderia ser enquadrado no grupo de funcionários que trabalhavam ao lado
do ficcional Belmiro Borba, na Seção de Fomento. Inconformados, aqueles homens
projetavam sempre o que seria de suas vidas caso não ocupassem os cargos que contrariavam
a vocação literária. 61
Os indícios levaram a crer que não era intuito de Osvaldo Sá ascender socialmente e
ganhar credibilidade, enfim, ter o seu nome lembrado como alguém ligado ao funcionalismo
público. A impossibilidade de viver de suas publicações fazia com que necessitasse exercer
tais funções.
Osvaldo Sá constituiu família cedo e os bens herdados dos pais foram aos poucos
sendo vendidos, restando-lhe apenas a casa onde residia e que pertencia também a sua dezena
de irmãos. Entre os intelectuais baianos de sua geração, era quase unânime a afirmação da
impossibilidade de viver da profissão das letras, conforme ressaltou Machado Neto:
A inexistência da profissão intelectual no sentido restrito fazia com que o
homem-de-letras, de ciência ou de pensamento tivesse de encontrar um
enquadramento profissional que de todo não contrariasse sua vocação. A
burocracia, o magistério, público ou privado, em seus vários níveis e o
58
Belmiro Borba, segundo Humberto Werneck, era o pseudônimo utilizado por Cyro dos Anjos no jornal A
Tribuna, onde publicava textos que mais tarde dariam origem ao romance “O Amanuense Belmiro”.
WERNECK, Humberto. O desatino da rapaziada: jornalistas e escritores em Minas Gerais. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992. Ver também: ANJOS, Cyro dos. O amanuense Belmiro. (romance) Prefácio de
Antônio Cândido. 7ª ed. Rio de Janeiro, editora José Olympio, 1971.
59
Idem
60
Ibidem
61
Ibidem
33
jornalismo, preferencialmente o literário ou de ideias, foram os
enquadramentos profissionais preferidos pelos intelectuais do período. 62
Sérgio Miceli, em Intelectuais e a classe dirigente no Brasil (l920-1945), descreveu
as relações que se estabeleciam entre os intelectuais e as estratégias de que se valiam no
intuito de ingressar no setor público e privado do chamado mercado de postos entre os anos
de 1920 e 1945.63 No terceiro capítulo dessa obra, por exemplo, Miceli discorre acerca dos
cargos que foram concedidos a escritores e a artistas. Tratava-se de intelectuais que não
puderam viver apenas do exercício literário e do jornalismo de ideias, possibilidade que só se
concretizou entre os anos de 1930 e 1940, para um grupo mínimo.
Baianos como Jorge Amado e Pedro Calmon, ainda jovens, migraram para o Rio de
Janeiro. A capital baiana já não absorvia a crescente gama de “intelectuais” que se
desenvolvia.64 Em seu livro de entrevistas, Alice Raillard apresentou trecho em que Jorge
Amado se reportou a essa necessidade: “Deixei a Bahia indo para o Rio de Janeiro em 1930:
eu tinha dezoito anos e queria ser escritor. Naquela época imaginar-se um escritor, um
profissional como eu começava a ter ideia de me tornar, era impossível na Bahia.” 65
Ainda no volume II de suas rememorações, Osvaldo Sá referiu-se a seus anseios de
alçar vôos mais altos fora dos limites de Maragojipe, em busca de oportunidades de trabalho.
Nesse volume, encerrou sua narrativa com revelações acerca de sua experiência nos tempos
em que viveu na então capital da República, o Rio de Janeiro.
Em 1929, no mês de maio, foi “em busca de emprego e de sonhos”, primeiro no vapor
de Cachoeira, principal meio de transporte que ligava o Recôncavo a Salvador, e depois no
navio Itajubá, já na capital baiana. Seguindo em direção ao Rio de Janeiro, revelou suas
sensações, relatando o novo universo de possibilidades que se abriu à sua frente:
Quando deram 10 horas, já eu estava no convés apreciando a beleza dos
infinitos. Como que, em murmúrios, ouvia Castro Alves: “Embaixo o mar,
em cima o firmamento... e no mar e no céu a imensidade.” De quando em
quando, porém assaltavam-me lembranças de casa. [...] Um dia depois
despontava imponente o arranha-céu de o jornal “A Noite”. O mais alto em
1929, da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, erguido à Praça Mauá,
não distante do porto. E todos ou quase todos os passageiros vieram para a
proa contemplar o edifício que crescia à proporção que o barco se
62
MACHADO NETO. A Bahia intelectual (1900-1930). Op.cit., 1972.
MICELLI, Sérgio. Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil. (1920-1945). São Paulo: Ed. Difel, 1979.
64
MACHADO NETO. Op.cit.
65
RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Tradução Annie Dymetman. Rio de Janeiro: Record,
1990. p.19
63
34
aproximava da maravilhosa cidade. E eu, a cada momento, me sentia menor,
ia afinal penetrar no bojo de um Leviatã.66
Nas terras cariocas, foi buscar trabalho e pode-se dizer beber daquela efervescência
cultural que aflorava no país num momento conturbado da vida política nacional. O Rio de
Janeiro e Salvador figuravam como centros onde eclodiam movimentos culturais e
“modismos” que reverberavam por todo o país. Muitos intelectuais baianos, porém, migraram
para o Rio em busca de aprimoramento intelectual. 67
Na capital da república estavam concentradas as editoras e muitas redações de
pequenos e grandes jornais, facilitando, em grande medida, a divulgação dos trabalhos desses
intelectuais que gozavam de algumas regalias, a dizer, a possibilidade de viver dedicando-se
apenas ao trabalho intelectual.68
Osvaldo Sá rumou em direção ao Rio de Janeiro munido de cartas de recomendação,
inclusive de seu pai, antigo correligionário do então ex-governador da Bahia que residia
naquela cidade, Antonio Moniz. Chegou a ir à casa dele, mas não obtendo respostas
satisfatórias, não mais retornara.
Na narrativa, revelou timidez, característica mais marcante de sua personalidade,
segundo o autor, ficando atrás apenas de seu orgulho: “Não insistia, não teimava, raramente
me apresentava uma vez mais a quem da primeira me acenava sem expectativa de melhor
momento para a satisfação da coisa que pleiteava.” 69
Nos momentos de ócio, frequentava a Biblioteca e o Museu Nacional, enriquecendo e
aumentando o seu leque de leituras, ampliando sua visão de escritor interiorano conforme
muitas vezes se autointitulou ao longo de sua narrativa memorialística. Sobre esses espaços
rememorou:
Na Biblioteca Nacional, em 1930 já com 600.000 obras, tive o contato em
letras com grandes talentos. Entre vários com John Milton, o épico de
“Paraíso Perdido”, o Pe. Antonio Vieira, o jesuíta genial das “Cartas” e dos
“Sermões” e Graça Aranha, um romancista de vasta cultura. [...] Ao Museu
Nacional davam-se aos domingos as minhas visitas [...] Era ali, enfim,
verdadeiro oásis aos que, um momento, fugia à lufa-lufa da cidade trepidante
de vida afanosa e sempre grávida de mistérios.70
66
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol. III. São Félix: Editora ODEAM, 1989. pp.137-138.
SILVA, Paulo Santos. Âncoras de Tradição. Op.cit., 2011; Ver também: LIMA, Hermes. Travessia:
memórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.
68
MICELI, Sérgio. Op.cit.
69
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol. III. Op.cit. p.01.
70
Ibidem. pp.16-17.
67
35
Lá também presenciou a construção do principal cartão postal da cidade, o Cristo
Redentor:
Vi a construção de seu Cristo Redentor, de braços abertos crucificado em si
mesmo no alto do Corcovado, na suposta invocação de proteger a Cidade,
que se deslumbra desprotegida de si própria. Afora o pedestal, a base se
eleva o monumento com mais de 30 metros. Um dos grandes do mundo
atual, diferentemente do humilde Deus de nascimento [...] 71
Na capital carioca, vivenciou realidade distinta da que estava acostumado. A calmaria
do interior foi substituída pela realidade intensa da grande cidade. No Rio de Janeiro, atuou
por vezes como revisor de tipos em jornais a exemplo de A Pátria, por indicação de J.J.
Seabra, amigo do engenheiro Júlio Sá, seu pai.
Osvaldo Sá iniciou suas atividades como tradutor de contos infantis em língua
espanhola. Com o tempo, tornou-se repórter naquele jornal. Mas tais atividades não eram
remuneradas e a falta de recursos financeiros o inquietava. Em virtude dessas circunstâncias e
de sua alegada timidez, fez poucos amigos naquela cidade.
O escritor ressaltou que tudo funcionava como empecilho, seja a distância entre uma
casa e outra, seja pelos parcos recursos que ainda lhe restavam, o que o impedia de
locomover-se sem preocupações pela metrópole. A saudade de casa foi mencionada em vários
trechos de suas memórias. Ao que parece, era esse sentimento o seu maior companheiro.
Durante esse período, com um dos seus poucos conhecidos, começou a inclinar-se
para as discussões sobre política em meio aos assuntos literários, sempre em pauta nos
debates. O diálogo fecundo se dava com o também baiano, “estudioso do vernáculo”, o poeta
Rui Freitas: 72
Eu me ensaiava em problemas sociais, sem qualquer cultura ou
aprendizagem, divagava quanto à sem razão da economia, protetora
incondicional dos poderosos. Despontava-me a vocação socialista [...] Ora
atingíamos questões internacionais. Se divergíamos em vários pontos, em
muitos outros se afinaram as idéias. Vinham elas de sentimento inato, como
propensões que se integram ao caráter e formam a personalidade (grifos
nossos). 73
71
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Op.cit.
Sobre Rui Freitas sabe-se apenas o que foi narrado por Osvaldo Sá no terceiro livro de suas memórias. Ibidem,
p.40.
73
Ibidem.
72
36
Nesse momento de inquietude começou a escrever poesias, sátiras que criticavam
veementemente costumes em voga na sociedade. A reunião destas sátiras foi intitulada de
Epístolas à Satanás.74 A publicação foi anunciada, porém o “bom senso”, conforme afirmou o
autor, o impediu de levar adiante o seu intento.
No capítulo que intitulou “Pústula na maravilhosa cidade” encerrou suas
reminiscências sobre os tempos passados em terras distantes de Maragojipe, lembrando-se de
festas em que dizia ter participado como expectador. Demonstrando um ponto de vista
tradicionalista e conservador o escritor comparou o que viu no centro daquela cidade a um
lupanar grego. Afirmou em suas rememorações que as mulheres que frequentavam o local
perdiam a condição humana e a dignidade.
Em 1931, decepcionado por não encontrar nenhum emprego fixo que atendesse às
expectativas, Osvaldo Sá retornou a sua cidade natal. Com uma metáfora bíblica resumiu os
sentimentos que lhe acometeram naquele momento:
O Leviatã lançou-me à praia, fui invulnerável em seu bojo, saí tal que me
engulira ele e, assim, respirei outros ares, os antigos, menos poluídos, sem
aventura, sem sonhos. E então pensei no imenso desafogo que teria sentido
Jonas, ao ser expelido intacto do ventre da baleia. 75
Já em solo maragojipano, durante todo o ano de 1931, Osvaldo Sá passou a escrever
no semanário Redempção. Ali, publicou alguns versos que reuniu em seu primeiro livro,
Folhas ao Vento, em parte escritos durante sua estada no Rio de Janeiro.
Em 1932, recebeu a proposta de fixar residência na serrana cidade de Muritiba,
vizinha a Maragojipe, no Recôncavo da Bahia, de onde participou ativamente de sua vida
política. Em Muritiba, assumiu a função de secretário do Prefeito Geraldino Almeida, período
em que também ocupou o cargo de delegado.76
Naquela cidade também colaborou em jornais. Escrevia sobre perfis femininos no
quinzenário A Verdade, com o pseudônimo “Iracema Brasil”. Osvaldo Sá dividiu este período
de sua vida em três momentos: primeiro o de solteiro, dos últimos dias de outubro de 1932
74
Essas sátiras seriam publicadas no ano de 1941.
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol.III. Op. cit., p.60.
76
Para saber mais sobre o governo de Geraldino Almeida ver: CARDOSO, Nelson Brito. Muritiba – Resgatando
sua História. Uma coletânea através dos tempos. Muritiba, 2012.
75
37
aos derradeiros de agosto de 1934; segundo o de casado, em inicio de julho de 1938, e o
terceiro em fevereiro de 1951 até abril de 1959, quando retorna a Maragojipe. 77
Na volta definitiva para Maragojipe, secretariou o prefeito Plínio Guedes (1959-1962).
Além do cargo público, foi a imprensa o espaço onde mais atuou. No mensário jornalístico
Tribuna do Povo, publicou suas memórias que mais tarde viriam a dar origem à trilogia Vala
dos Meus Dias. Colaborou por vários anos no jornal Arquivo, além dos jornais de Muritiba e
região, a exemplo de O Planalto na cidade de Cruz das Almas e o Correio de São Félix, da
cidade de São Félix. 78
No trigésimo capítulo do terceiro volume de sua trilogia, intitulado “Em dia de
Procissão”, Osvaldo Sá destacou características da Maragojipe de meados do século XX. Os
costumes e as tradições de sua população são exemplificados pelos preparativos para o festejo
maior da cidade ── a Festa de Agosto ── em homenagem a São Bartolomeu. A economia, a
cultura, os hábitos, a estrutura física citadina foram percebidos através das vivências do
autodidata maragojipano:
Ainda não existia o coreto de cimento, mais um palanque de madeira [...]
que todo ano em agosto, se armava e, assim, tinham as filarmônicas lugar
apropriado para se apresentarem. Também a cidade não tinha ainda
iluminação elétrica por isto o palanque, a igreja, os botequins arranjados no
largo da festa, iluminavam-se a acetileno. [...] Naquele tempo, em todos os
lares, entre julho e agosto se costurava. As casas comerciais renovavam seus
estoques. Toda a população se apresentava, nos três dias da festa de vestes
novas. Havia como tácita emulação, cada maragojipense ou melhor dizendo,
cada mulher da terra, solteira ou casada caprichava em apresentar-se o mais
bem trajada possível.79
Nessa época de festejos o autor conheceu Dulce, que veio a ser sua esposa, mãe de
seus filhos Iracema, Osvaldo, Júlio, Marília, Heitor, Inês e Alberto, companheira até o fim de
sua vida. Em estilo declamatório, descreveu as circunstâncias em que teria visto a futura
esposa:
Foi em segunda-feira, na procissão, em 1927, no “Caminho do Cai-já”, que
pela primeira vez, vi uma guria de 13 anos assaz tímida, vestida de palha de
seda, de olhos ternos e faces pálidas, de penteado simples, sem enfeites, que
conduzia duas crianças e essa havia de tocando-me a alma, participar direta
77
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias.Vol.III. Op.cit., p. 97.
A essa altura, quando Osvaldo Sá escrevia no Correio de São Félix, o diretor da folha jornalística era o
prefeito da cidade de São Félix, Gonzaga Dias. Esse detalhe é importante por demonstrar que o autor
maragojipano estava sempre perto de quem possuía algum poder.
79
Ibidem. pp.124-125.
78
38
ou indiretamente, de quase todos os eventos de minha vida, também santa,
que carrego no andor na procissão dos meus dias.80
Em visita à Fundação Osvaldo Sá, foi encontrada em papel avulso, com texto
datilografado, guardado em meio a recortes de jornais, uma lista que o escritor intitulou: “AS
DEZ MAIS E AS DEZ MENOS”. Desta maneira, em maiúsculas, como se tivesse a intenção
de chamar atenção, enumerou o que lhe fazia bem e o que contrariava sua natureza pacata.
Estava entre as coisas que lhe agradavam, o gosto pela independência, a leitura, a
escrita, a amizade, a poesia e a natureza em sua simplicidade. Quanto às que lhe fazia mal,
enumerava o predomínio da guerra, o militarismo, as mentiras, a sujeição e as superstições.
Esses elementos, por ele anunciados em um alfarrábio esquecido entre outros velhos papéis,
figuraram muitas vezes como motivações para a escrita de suas poesias, contos, crônicas e
memórias. 81
Tão importante quanto os elementos internos ao texto, estão os que figuram
externamente a ele, unindo a análise do escrito ao contexto em que foi produzido.82 Daí a
importância dessas linhas acerca das origens familiares, da ligação criada pelo autor entre sua
vida particular e a pública. Nos três volumes de suas memórias há a necessidade de mostrar
para a sociedade como se constituiu enquanto escritor em meio a tantas dificuldades inerentes
a essa prática, numa cidade que, conforme assinalou, foi marcada pelo esquecimento e pela
falta de perspectiva.
Nesse sentido, levando em consideração que a memorialística foi marca característica
de todas as obras do autor, portanto, colocando-se em cada texto, faz-se necessário dar conta
das estratégias criadas pelo autodidata na intenção de divulgar seus escritos. No capítulo que
segue, tratar-se-á da natureza do acervo documental do escritor, transformado em fundação no
ano de 2002 e as estratégias utilizadas por ele na intenção de atingir seu maior objetivo: ser
reconhecido enquanto escritor.
80
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol. III. Op.cit., p. 26.
FUNDAÇÃO OSVALDO SÁ - Papéis avulsos.
82
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: T. A Queiroz, 2000. Publifolha, 2000. (Grandes
nomes do pensamento brasileiro).
81
39
CAPÍTULO II
AS ESTRATÉGIAS DE UM LITERATO DO INTERIOR
1- O arquivamento de si – a Fundação Osvaldo Sá.
Diante da natureza da documentação acumulada no acervo do escritor Osvaldo Sá, a
característica que primeiro salta aos olhos é a criteriosa seleção dos livros. A segunda, e a
mais significativa, o caráter autoelogioso dos registros ali guardados, com algumas raras
exceções.
Percebeu-se que o reconhecimento foi o objetivo almejado por Osvaldo Sá durante
toda a sua vida. Em 1992, quando concedeu entrevista ao jornal cachoeirano O Guarani, o
autor foi indagado acerca das motivações que o levaram a publicar suas obras e de como
conseguiu se sobressair frente às dificuldades encontradas em uma cidade do interior, sem
bibliotecas, sem arquivos organizados e poucas pessoas que cultivavam o hábito da leitura. 83
De imediato, objetivamente, Osvaldo Sá respondeu: “― A tenacidade, a perseverança! Não
desisto do meu objetivo de tornar-me conhecido.”84
Diante dessa afirmação, conforme foi ressaltado no capítulo anterior, a característica
que o autor procurou reforçar e agregar para si e para a família foi o gosto pelo conhecimento.
Durante a vida se muniu de diversas fontes que sanassem sua curiosidade e o tornassem mais
erudito, na tentativa de penetrar nos círculos intelectuais baianos.
Na biblioteca particular do autor, transformada, em 2002, na Fundação Osvaldo Sá,
situada à Rua Engenheiro Júlio Sá, em Maragojipe, na residência onde o escritor passou a
maior parte de sua vida, são encontrados mais de 2.000 títulos já catalogados, das mais
variadas áreas do saber: Língua Portuguesa e Estrangeira, com destaque para o francês,
Biologia, Direito, Culinária, Física, Agronomia, Biografias, Política e Religião. Predominam,
no entanto, coleções literárias e obras da historiografia que se reportam ao Recôncavo da
Bahia.
83
FUNDAÇÃO OSVALDO SÁ - Classificador de recortes de jornais. Entrevista concedida a correspondente
Adenise Maria dos Santos do jornal O Guarani. Cachoeira, 1992. p.04.
84
Idem, p.04.
40
A quantidade de livros sobre religião e política equiparavam-se as coleções de
literatura brasileira e de historia. No entanto, na conjuntura do golpe de 64, Osvaldo Sá foi
apontado como propagador de ideias subversivas por seus versos explicitar o
descontentamento em relação ao militarismo e ao cerceamento da liberdade de expressão.
Segundo relatos de Alberto Sá (filho caçula do escritor), sua mãe, Dulce Sá, amedrontada,
incinerou muitos desses livros, pois continham rabiscos de Osvaldo Sá. 85
Osvaldo Sá dizia-se ateu, porém conservava em sua biblioteca várias bíblias. Era um
leitor de obras religiosas, o que pode ser verificado ao longo do seu percurso enquanto
escritor, na maioria das vezes, transparecendo tais leituras nas metáforas e passagens bíblicas
usadas nas diferentes narrativas.
Entende-se que a organização do acervo foi uma das estratégias encontradas pelo autor
para tornar sua vida pública e criar em torno de si um monumento. Cada detalhe de sua
biblioteca pareceu esquematicamente pensado. Não há dúvidas quanto às pretensões de
Osvaldo Sá de ter seu nome lembrado. O escritor facilitou a vida do pesquisador ao máximo,
― o que deve suscitar suspeitas ao historiador ― organizando recortes e todo material que
fizesse referência aos seus predicados em diferentes pastas, com especificação feita de próprio
punho.
O interesse dos historiadores pelos arquivos pessoais, com destaque para acervos de
intelectuais, está intrinsecamente ligado às renovações instituídas pela História Cultural e o
novo dimensionamento do olhar historiográfico, expressado através do uso de fontes mais
qualitativas e menos seriais.86 Acervos como o de Osvaldo Sá permitem acompanhar a
trajetória pessoal, o estilo seguido pelo autor e seus métodos de trabalho. Outra importante
relação discutida no âmbito da História Cultural e que diz respeito a essa abordagem, está na
intersecção e afastamento da História e da Memória. Para Sandra Pesavento, ambas se
ocupam em reconstituir o passado. Através da memória escrita, os chamados relatos
memorialísticos, é possível compreender as mediações que envolvem o processo de seleção
de lembranças.
A memória opera num jogo de lembrar e esquecer e remodela-se, reinventa-se. O ato
de rememorar sofre influência direta dos parâmetros inerentes aos grupos, ao meio em que o
85
Ficou no prelo, por exemplo, o livro 64-Espada que reunia versos publicados pelo autor em variados
periódicos do Recôncavo. Até o momento da escrita dessa dissertação nem o seu filho, Alberto Sá, responsável
pela guarda do arquivo, soube informar a respeito do que teria sido feito dos originais da obra. Chegou-se a
levantar a hipótese de que foi queimado junto aos outros livros, pela esposa do escritor.
86
Sobre o assunto ver: PROCHASSON, Cristophe. Atenção: Verdade! Arquivos privados e a Renovação das
práticas historiográficas. Estudos Históricos, 1998. p.110 e BELLOTTO, Heloísa Liberrali. Arquivos Pessoais
em face da Teoria Arquivística tradicional. Estudos Históricos, 1998.
41
indivíduo que rememora está inserido. Mais que uma memória individual o que é
rememorado é também uma memória social.87 Representação no sentido conferido e
divulgado por Roger Chartier, ou seja, representar é presentificar uma ausência. 88 Ou
conforme afirmou Sandra Pesavento, “a substituição que recoloca uma ausência e torna
sensível uma presença.89
Os processos que envolvem tanto a História quanto a Memória, à medida que são
condicionados socialmente, sofrem a ação de filtros e não se configuram pelo envolvimento
de um indivíduo isolado. Os historiadores buscam compreender uma história social do
lembrar, os usos, as regras de exclusão, os princípios motivadores, e, sobretudo, os elementos
que permitem a ideia de uma coesão do grupo que determina o que deve ou não ser
rememorado. Segundo o crítico Antônio Candido, o papel que cada indivíduo exerce dentro
da sociedade influencia diretamente nas suas escolhas e no que se refere aos intelectuais,
interferem decisivamente na elaboração de seus textos.90
Osvaldo Sá passeou por vários gêneros literários em busca de distinção e
aprimoramento intelectual. A memorialística figurou como a sua principal produção enquanto
escritor. Das poesias às crônicas, a memória no sentido de evocação de lembranças foi sempre
um recurso em evidência. A ideia que o autor fazia da cidade onde morava estava ligada
diretamente à visão que o seu grupo divulgava nos jornais. Cidade subjugada, esquecida,
atrasada.
Ao inventariar as obras que constituem a biblioteca, foram encontrados sinais do
manuseio e da leitura atenta do autor. Conforme ia lendo, anotava breves considerações
acerca do que estaria sendo tratado no texto. O que mais chamava sua atenção era grifado,
sublinhado ou marcado com símbolos diversos, seguidos de legenda que pudesse orientar uma
leitura posterior. E, conscientemente ou não, orientar também o acesso de um possível
pesquisador de sua trajetória de escritor. Os livros acumulados com o passar dos anos estão
distribuídos em estantes de madeira, em móveis antigos. Sobre a escrivaninha a máquina de
datilografia. Nas prateleiras próximas ao móvel, muitos dicionários da língua portuguesa,
estrangeira e de literatura. E ainda compêndios, corografias e gramáticas. 91
87
PESAVENTO, Sandra. História & História Cultural. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 95
CHARTIER, Roger. “O mundo como representação”. Estudos Avançados, São Paulo, nº 11 (5), pp.173-191,
1991.
89
PESAVENTO, Sandra. História & História Cultural. Op. cit. p.40.
90
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: T. A Queiroz, 2000. Publifolha, 2000. (Grandes
nomes do pensamento brasileiro).
91
Ao que tudo indica, o responsável pelo acervo, filho do autor, pouco interferiu em sua organização. As
intervenções mais significativas ligam-se à higienização da biblioteca, visto que a Fundação Osvaldo Sá
continua sendo usada como residência da família Sá em Maragojipe-Ba.
88
42
Geralmente, com lápis colorido, anunciava ao leitor póstumo, à semelhança de um
fichamento, aquilo que foi subtraído e absorvido do livro. Dois riscos horizontais, por
exemplo, significava que o trecho poderia ser usado em seus textos. Na folha de rosto dos
livros anotava a interpretação breve de cada grifo.
Presume-se que o escritor leu desde crítica literária até obras que tratavam de ideias
sobre a construção de um Estado nacional. 92 Livros de uma primeira geração tanto da
literatura quanto da historiografia brasileira, que acabaram por alicerçar a sua linha de
pensamento.93 No acervo, é possível perceber a habilidade de Osvaldo Sá em criar uma
imagem de leitor atento. As informações contidas no interior do seu arquivo só foram
passíveis de entendimento devido ao ordenamento dado pelo escritor ao seu “mundo do
escrito.” 94 A biblioteca guarda singularidades da inquietude de seu dono em busca incessante
por conhecimento.
Os documentos reunidos no interior da biblioteca revelam as diversas faces do
“rabiscador de pequenas histórias.” Facetas que não se mostram antagônicas, tendo em vista
que fazem parte das estratégias utilizadas na sua formação e atuação enquanto intelectual.
As prateleiras razoavelmente organizadas dispõem os seus livros em ordem de
classificação por área de saber. Entre os títulos encontrados no acervo do autor, pode-se
arrolar alguns em que as suas práticas de leitura apareceram de forma reiterada. São livros
como o Tratado da Terra do Brasil: História da Província de Santa Cruz (1980), de Pero de
Magalhães Gândavo, a Corografia Brasílica (1976), de Aires de Casal, Capítulos de História
Colonial, de Capistrano de Abreu, Casa Grande e Senzala (1966), de Gilberto Freyre, Os
Sertões, de Euclides da Cunha, em belas e antigas edições sem o respectivo ano de
publicação.
A mesma demarcação (grifos, símbolos, legendas) foi encontrada nos três tomos de
História do Brasil (1977), de Robert Southey, nos Ensaios (1961), de Michel de Montaigne,
Curiosidades Verbais (1963), de João Ribeiro, Retrato do Brasil (1944), de Paulo Prado, na
Recopilação de notícias soteropolitanas e brasílicas (1921), de Luis dos Santos Vilhena,
Brasil: Período nacional (1956), de Américo Jacobina Lacombe. Bem como na obra Estética
Literária, de Alceu Amoroso Lima, na História Territorial do Brasil (1906), de Felisbelo
Freyre e a coleção em cinco tomos que trata da História da Literatura Brasileira, escrita por
92
Baseamos a argumentação na obra de WHELING, Arno. Estado, História e memória: Varnhagen e a
construção da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
93
IGLÉSIAS, Francisco. Historiadores do Brasil: capítulos de historiografia brasileira. Minas Gerais: UFMG,
IPEA, 2000.
94
CHARTIER, Roger. Formas e Sentido. Cultura Escrita: Entre Distinção e Apropriação. São Paulo: Mercado
de Letras; Associação de Leitura do Brasil (ALB), 2003.
43
Sílvio Romero. Apontar os títulos encontrados no acervo faz sentido, pois, as ideias e os
conceitos expostos em tais livros de alguma maneira refletiram nas obras do escritor
analisadas nesta dissertação.
Há também rabiscos e marcações em coleções completas de autores como Pedro
Calmon e Jorge Amado. Ambos dialogavam por meio de cartas com Osvaldo Sá. Presume-se
que, no intuito de estar afinado com as novas publicações desses intelectuais, o escritor
maragojipano acumulava o máximo de livros e revistas que fizessem referência a tais autores.
Entre as obras de Jorge Amado, por exemplo, guardadas separadamente, reservada junto aos
recortes de jornais que mencionam a atuação do escritor maragojipano, está um dos seus
últimos romances, O sumiço da santa (1988). O livro reconta a história do desaparecimento
de uma imagem de Santa Bárbara vinda de Santo Amaro da Purificação para uma exposição
de arte sacra na capital baiana.
Jorge Amado intercala personagens fictícios e reais integrantes da diversificada
“cultura baiana” interligando várias estórias na narrativa. A predileção explica-se pelo fato do
escritor maragojipano ser reconhecido por Jorge Amado como aquele que resguardou a
memória de sua cidade natal, referindo-se a Osvaldo Sá como “o memorialista
maragojipano.” 95
De Pedro Calmon, o livro mais utilizado foi História da Bahia (1927) e aqueles que
tratavam da vida de Castro Alves, poeta preferido do escritor maragojipano. A salvo da ação
do tempo, ainda podem ser encontrados A vida de Castro Alves (1947) e Castro Alves: o
homem e a obra (1973).
Na sala que resguarda a biblioteca, pode-se constatar que Osvaldo Sá procurou
manter-se atento às inovações na escrita literária e histórica nos moldes de instituições como a
Academia Brasileira de Letras, a Academia de Letras da Bahia, o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e o congênere baiano, o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. 96
De Victor Hugo, o livro mais apreciado e citado foi Os Miseráveis. No caso de
Anatole France, teria sido a obra O lírio vermelho, onde encontra-se grifada a seguinte
passagem: “O que sou, é uma espécie de poeta e de filósofo, que procura na natureza assuntos
de inquietação e de angústia.” 97
95
FUNDAÇÃO OSVALDO SÁ - AMADO, Jorge. O Sumiço da Santa: Uma história de feitiçaria. 1988. p.278.
Chartier propõe que busquemos analisar as práticas de utilização dos materiais culturais, ou seja, as diferentes
apropriações dos produtos culturais por distintos grupos ou indivíduos. Entre esses, os modos de apreensão dos
escritos. Aplicando a sua assertiva à realidade do escritor maragojipano, atentamos sobre os livros colecionados
durante sua quase centenária vida. Cf.: CHARTIER, Roger. Formas e Sentido. Op. cit. 2003.
97
FUNDAÇÃO OSVALDO SÁ - Estante de Literatura. FRANCE, Anatole. O lírio vermelho. s/d.
96
44
Outro componente importante do acervo são os prêmios e títulos acumulados pelo
autor à medida que publicava seus livros. Nas paredes da Fundação Osvaldo Sá estão
emoldurados alguns diplomas e medalhas. Entre os diplomas, o de membro titular da
Academia de Letras Municipais do Brasil, o de membro colaborador do Grupo Literário Nova
Geração (1982), de membro titular da Academia de Letras do Recôncavo (1999), além do
diploma pelo 1º prêmio de História do Instituto Histórico e Geográfico de Uruguaiana (RS),
em honraria ao segundo volume de Histórias Menores: Capítulos da História de Maragojipe,
recebido em 1982.
Osvaldo Sá também recebeu medalha de ouro pela classificação no XII Concurso
Nacional de Contos da Revista Brasília no ano de 1999, ainda por honra ao mérito foi
agraciado por medalhas vindas de agremiações como a Academia de Letras Municipais do
Brasil, a Academia de Letras de Uruguaiana (RS) e a Academia de Letras do Recôncavo,
Academia de Letras do Estado do Rio de Janeiro entre outras. Tal reconhecimento ligava-se,
em grande medida, à sua produção poética.
Jornais e revistas também fazem parte da coleção do autor. Os jornais, no entanto, são
maioria. Entre as revistas, estão em número razoável as editadas pelo Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia e algumas herdadas de Julio Sá, editadas no exterior, cuja ação do tempo
inviabilizou a leitura mais detida.
No que se refere às folhas jornalísticas, podemos citar desde aquelas a que o escritor se
vinculava diretamente à edição, por exemplo, O Prélio (1923-1928) e A Pétala (1928-1929) a
outras que foram utilizadas por Osvaldo Sá como fonte para a escrita de suas obras, sobretudo
no que tange ao cotidiano da cidade de Maragojipe ao longo dos anos. Mantidos em razoável
estado de conservação, encontram-se os exemplares de A Situação (1879), Nova Era (18961898), Echo Maragojipano (1884-1886), A Época (1908) e o Cidade de Maragojipe (19121913).
A atuação de Osvaldo Sá apresenta semelhanças e acaba por alinhar-se à carreira de
outros intelectuais tanto em nível estadual quanto nacional em meados do século XX. Um dos
aspectos mais significativos foi a sua atuação nos jornais.
2 - A carreira jornalística
A inserção de Osvaldo Sá no mundo das letras se deu através da colaboração em
periódicos locais, facilitada especialmente pelos laços de amizade. Pode-se dizer que na
Bahia, entre 1930 e 1945, as vigências intelectuais destinavam parte significativa de seu
45
tempo ao jornalismo. Era o ponto de partida para os que se dedicavam às letras, pois agregava
prestígio, além de facilitar o acesso a cargos públicos e até mesmo o ingresso na política. 98
Com Osvaldo Sá não foi diferente. O escritor, em sua face de jornalista, deu publicidade a
trechos de suas obras nos jornais da cidade e região. Poemas, sonetos, anedotas, crônicas e
suas memórias, primeiro foram reproduzidos nas fugazes páginas dos jornais e, por vezes, só
anos depois, por circunstâncias diversas, foram reunidos e publicados no formato de livros.
Em A Pétala, Osvaldo Sá entrou em cena como redator. Do tipo da letra ao conteúdo
dos textos publicados no quinzenário tudo passava pela aprovação do escritor que se
desenvolvia no jornalismo. O primeiro exemplar do pequeno jornal foi publicado em 15 de
novembro de 1927. No folhetim, assinava suas criações com o próprio nome e os
pseudônimos “Bandolim das Moças”, “Lord Voltaire” e “Trombone”. 99 O uso de
pseudônimos estava muito em voga na capital baiana do período. 100 Osvaldo Sá e aqueles que
ensaiavam a carreira jornalística na “Patriótica Cidade” não poderiam fugir a essa condição,
pois buscavam estar alinhados as novidades vindas das terras soteropolitanas. 101
Em um tom autoelogioso Osvaldo Sá rememorou os tempos em que se dedicava às
publicações do quinzenário:
“Os leitores aguardavam-na de 15 em 15 dias, com ansiedade, não apenas os
jovens, interessados nas pilhérias que enchiam a folha, mas até as pessoas
idosas, certamente porque as notícias lhes despertavam recordações dos seus
dias que o Tempo devorara.”102
A Pétala era impresso na Tipografia Peixoto, na Praça Conselheiro Antonio Pereira
Rebouças, no centro de Maragojipe. Eram rodados no máximo 250 exemplares, vendidos a
unidade a 200 réis. Com o passar do tempo, o jornal e seus editores teriam tomado rumos
distintos, uns casando-se outros mudando de cidade. E, A Pétala, “como tantas outras suas
homônimas no reino vegetal, emurcheceu [...].”103
SILVA, Paulo Santos. Âncoras de Tradição. Op.cit., pp.74-75
Período anterior à ida do autor para fixar moradia no Rio de Janeiro, no ano de 1927.
100
MACHADO NETO. Op.cit., 1972.
101
Ao que tudo indica tais pseudônimos não tinham significado político, talvez figurasse como um artifício de
criar no possível leitor a ilusão de que mais pessoas escreviam na folha.
102
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol. II.Op. cit., p.86.
103
Idem, p.87.
98
99
46
Osvaldo Sá assinalou, no entanto, que só ingressou profissionalmente no jornalismo
quando foi convidado a contribuir em O Prélio, período anterior à sua decisão de rumar para o
Rio de Janeiro. No vigésimo primeiro capítulo do segundo volume de Vala dos Meus Dias,
descreveu onde funcionava a redação, os mecanismos usados na composição de seu conteúdo,
revelando detalhes do caráter artesanal de tal atividade que se realizava, segundo o autor, em
um barracão com três entradas, no largo da igreja matriz de São Bartolomeu, onde funcionava
a tipografia e a redação de O Prélio:
[...] Verdival arranjou modesta mesa sobre a qual havia sempre tinta, papel,
canetas e alguns livros. Era a redação. [...] No fundo, espalhava-se a
tipografia, o velho prelo onde se colocava a chapa e depois, alimentados os
tipos de tinta própria, se punha o papel úmido. Vinha, em seguida, por cima
outra chapa, que impulsionada por férrea alavanca braçal, se fazia assim
impressa cada página do semanário. [...] E houve tempo, que durante
algumas horas, também eu ia aprendendo, compunha de verdade para o
nosso jornalzinho. [...] Era como a faina de Penélope, num dia se armava, no
outro se desmanchava.104
Assumindo seu lado jornalista declarou que “todo o árduo trabalho valia a pena a cada
domingo quando havia a distribuição dos exemplares dos jornais [...]”
105
A redação de O
Prélio também figurou como espaço privilegiado de discussões sobre as regras ortográficas e
gramaticais da complexa língua portuguesa. “Era ali o colégio dos que não o tinham, em
Maragojipe. Não havia ginásio naquele tempo. Aprendíamos a língua versejando e prosando
em páginas de semanários da cidade.” 106
Osvaldo Sá demonstrou preocupação com o bem escrever ao longo das suas
publicações, pois, é através do estilo que o escritor assinala sua presença. 107 No seu livro de
memórias dedicou um capítulo especificamente para tratar sobre o assunto e o intitulou
“Estrupícios de Revisão”, fazendo algumas ressalvas:
Sempre me preocuparam os erros e enganos em minha lavra literária no
sentido de tê-los menos, por que não tê-los é coisa fora da condição humana.
[...] É preciso, porém, que se não confundam os erros de quem escreve com
os de quem revisa. [...] Várias vezes botei as mãos na cabeça ao ver
deformadas produções minhas por incúria da revisão. Basta dizer que, certa
feita, substituíram a primeira letra do indicativo presente do verbo FICAR
104
Ibidem.
Ibidem, p.79
106
Ibidem, p. 100.
107
HOISEL, Evelina. Grande Sertão: Veredas – Uma Escritura Biográfica. Salvador: Assembléia Legislativa
da Bahia; Academia de Letras da Bahia, (ALB) 2003.p.14. Ver também: GAY, Peter. O estilo na História:
Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
105
47
por um intrometido P, e tornou-se escabroso o sentido. Era a 3ª pessoa do
singular!108
Foi o compêndio Português Prático, de Marques da Cruz, quem subsidiou e aos
poucos dirimiu suas dúvidas mais recorrentes no que tange às dificuldades na labuta diária da
escrita do jornal. A consulta do manual, confessa, deixou-o mais confiante e ousado nos
debates que ocorriam na redação de O Prélio, local onde fervilhavam as discussões que
variavam desde a poética até a política.
Osvaldo Sá afirmou que aqueles que com ele possuíam voz nas colunas dos jornais
“tinham a certeza de que estavam transmitindo as suas ideias às pessoas mais esclarecidas da
cidade.”109 Nesse mesmo capítulo, o autor descreveu os grupos intelectuais maragojipanos de
sua época e em qual deles se inseriu:
[...] Gustavo Jacques e Antonio Bispo representavam o dos boêmios, sem
preconceitos [...] o primeiro parece-me foi poeta. [...] Em outro grupo se
salientavam Heráclio Guerreiro e Ermezindo Mendes [...] Heráclio era mais
um afeiçoado de Euterpe que de Calíope, e ou Erato. Músico inspirado
compôs inúmeros dobrados e, sem dúvida, conseguiu ele entre todos os
intelectuais da terra, a admiração maior de seu povo. No terceiro grupo,
pontificavam Verdival e Lobão, e com estes eu despontava como
espadachim, absorto em muitos sonhos. [...] 110
Ao aproximar-se desses jornalistas muitas portas teriam sido abertas para o escritor. O
convite para secretariar o prefeito de Muritiba e colaborar em jornais daquela cidade deveu-se
à amizade que mantinha com esses jornalistas, mantendo-a mesmo quando residia na capital
da República.
Em 1935, lançou seu primeiro livro. Sua atuação no jornal ocorreu em um período
crucial, tendo em vista que o escritor, após o lançamento de Folhas ao Vento, só voltou a
publicar livros no ano de 1973. Por que levou tanto tempo para editar outro livro? Confessou,
lamentando-se em sua narrativa, que parcelas da sociedade maragojipana davam pouca
importância às suas ideias, e exemplificou com algumas professoras que atuavam no ensino
primário na cidade.111
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol.II. Op. cit., p. 119.
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol. III. São Félix: Editora ODEAM Ltda, 1989. p.79
110
Idem. p. 80.
111
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol. I. Op.cit., p.05.
108
109
48
O escritor associou essa recusa ao fato de ter cursado apenas as séries iniciais, era
autodidata. Na entrevista ao jornal O Guarani, a repórter o questionou acerca da sua posição
frente ao indiferentismo local às suas publicações e ele afirmou: “― A população de
Maragojipe não lê. Veja esse cartaz aí atrás da porta: ― Quem não lê não tem nada a dizer!
Isso não me abala. A culpa não é do povo. Os administradores são os culpados.”112
Osvaldo Sá reflete o que é ser intelectual numa cidade do interior, começando a
desenvolver-se no campo das letras de forma mais efetiva na década de 1930. Anos de
cooptação de intelectuais pelo Estado.
Na década de 1930, o simples fato de pertencer a famílias tradicionais já não garantia
o acesso ao poder, nem mesmo em âmbito local. Osvaldo Sá não podia concorrer com
intelectuais da capital baiana por possuir apenas o diploma da escola primária. A condição de
autodidata não impediu a sua atuação no jornalismo de cidades do Recôncavo, mas restringia
a possibilidade de alcançar outros horizontes.113
Apesar de ser um periódico de caráter local, no Arquivo o noticiário nacional também
tinha seu espaço. Nas páginas do semanário foi possível ter acesso à interpretação de seus
idealizadores frente a notícias como a morte do presidente Getúlio Vargas. A manchete
cumpriu o seu papel e chamou atenção em vista da suposta comoção que tomou conta dos
redatores do jornal, dando a notícia como matéria de capa, em 24 de agosto de 1954.
Profunda Consternação
A população maragojipana tem conhecimento da brutal ocorrência que
findou a vida do Sr. Getúlio Vargas, as 9, 10 horas, uma profunda
consternação envolveu a todos. Em cada fisionomia, dantes alegre, se
destacava a marca da dor, da tristeza, da angústia. E o dia 24 apesar de ser o
dia do Padroeiro da Cidade, dia, portanto de festas para o maragojipano, este
ano, porém, foi de luto, de desolação. O silêncio do povo marcou na vida
citadina, um interregno doloroso, inconfundível. 114
A notícia abafou a repercussão da festa do Padroeiro local em sua data magna. O tom
das notícias que se desdobraram da manchete era de consternação, de luto profundo. Os
FUNDAÇÃO OSVALDO SÁ - Jornal O Guarani, 1994. p. 04.
Cf.: CPDOC. Anos de incerteza (1930-1937). Os intelectuais e o Estado. ________. Diretrizes do Estado
Novo (1937-1945). Educação, Cultura e propaganda. Disponíveis em: www.cpdoc.fgv.br.
114
CCM - Jornal Arquivo. Manchete de 24 de agosto de 1954.
112
113
49
detalhes da morte do presidente vieram dos correspondentes do Arquivo no Rio de Janeiro
através de vários telegramas.115
Desde 1956, as crônicas e poesias de Osvaldo Sá acerca da história de Maragojipe
eram reproduzidas no semanário. História que por sua vez ocupava todo o espaço do jornal
seja no formato de uma prosa mais livre, em quadros, ou no formato de crônicas e poemas.
Em novembro de 1959, Osvaldo Sá teve publicado um poema acerca do centenário da
visita de Dom Pedro II a Maragojipe. Em seu poema, utilizando de dados históricos,
aproveitou para traçar as características que atribuiu à cidade ressaltada em quase todos os
seus livros: as belezas naturais, a pacificidade de seu povo, a musicalidade e a hospitalidade
maragojipana:
Mil e Oitocentos e Cinquenta e Nove,
em nove de novembro, Ancho e Monarca ao Porto Grande chega
e se comove o Povo, e exulta, ao vê-lo.
Desembarca a Imperatriz. E a gente se demove a imperial passagem...
tudo marca nas ruas lídima alegria. Chove um frívolo prazer
que o Povo encharca!
Fanfarram a Francesa
Pedro Segundo a destra, e a Prussiana afável, a todos cumprimentam,
e, assaz se ufana!
E a mais gentil das terras brasileiras
Deixou-lhe uma lembrança inolvidável
116
A alcunha de “Cidade das Palmeiras”
Conforme já mencionado, a imprensa foi um local privilegiado para a divulgação dos
escritos do autor. Entre as fontes analisadas ao longo da pesquisa, o jornal Arquivo foi o que
melhor elucidou a atuação de Osvaldo Sá em sua faceta de jornalista.
De acordo com Osvaldo Sá, o Arquivo circulou em Maragojipe de maio de 1951 até
novembro de 1976 e teria ganhado notoriedade junto ao povo da cidade “em face da
115
CCM- Jornal Arquivo. Agosto de 1954. A essa altura, o jornal contava com mais de trezentos assinantes, não
somente na região do Recôncavo, mas alguns apreciadores, conterrâneos que moravam em outros estados e até
além-mar, a exemplo de Portugal e Nova York.
116
CCM- Jornal Arquivo. Novembro de 1959. Poema ao Centenário da visita de D.Pedro II a Maragojipe. As
fanfarras que alude no poema, a Francesa e a Prussiana, são as primeiras que se tem notícias na cidade. Tudo
indica que deram origem as filarmônicas 2 de julho e Terpsícore Popular que atuam em Maragojipe ainda no
século XXI.
50
segurança de seus conceitos e correção do noticiário.” 117 A descrição não poderia ser
diferente. Nas páginas do referido jornal Osvaldo Sá publicou crônicas e poesias cuja temática
girava em torno da história de Maragojipe. Além de também virar notícia e personagem das
colunas do periódico.
Essas publicações apesar de obterem destaque no jornal, geralmente estampada na
folha seguinte à manchete do dia, dividiam a atenção dos leitores com notícias variadas acerca
da cidade. Havia espaço no semanário para falar dos distritos do município, para as crônicas
literárias e as poesias, além de diversos anúncios de propaganda.
Todavia, as notícias que envolviam os municípios vizinhos não ficavam fora do
alcance dos seus colaboradores. Os artigos que compunham o veículo noticioso abrigavam os
mais variados temas. Suas colunas traziam desde o noticiário político, enlaces matrimoniais,
formaturas, até notas fúnebres. Além de reservar espaço para propagandas de produtos e
serviços, a exemplo de orientação jurídica, aluguel de casas e venda de propriedades.
Notícias policiais e de outros órgãos municipais também ganhavam divulgação no
semanário. Fotos dos “gatunos” que atazanavam a população da pacata cidade eram por vezes
estampadas em suas páginas.
A qualidade das fotografias ofereceu a oportunidade de vislumbrar o caráter artesanal
na confecção do jornal, elaborado em tipografia caseira, sem muitos aparatos tecnológicos. A
assinatura anual custava aos leitores Cr$70,00 e sua vendagem avulsa Cr$5, 00. A redação e a
administração do periódico funcionavam na residência do proprietário, na chamada Vila
Bembem.
A Vila era um conjunto de casas de propriedade do jornalista Bartolomeu Americano,
situadas na Rua Coronel Antonio Felipe de Melo em Maragojipe. O conjunto de casas possuía
esse nome em homenagem à esposa do dono do jornal, Dona Cândida, a quem afetuosamente
chamavam “Bembem”. Até o primeiro decênio do século XXI manteve-se a casa onde
funcionava a redação. Os moradores, filhos do jornalista, mantiveram a fachada original.
Outra questão a ser ressaltada é o fato de que durante os anos em que circulava o
Arquivo a inadimplência era marcante por parte de seus assinantes. Essa conduta dificultava e
impedia por vezes a compra de novo maquinário e até a simples folha onde era impresso o
texto. No semanário encontra-se verdadeiro desabafo de um dos seus colaboradores a esse
respeito:
SÁ, Osvaldo. Histórias Menores: Capítulos da História de Maragojipe. Vol. III. São Félix: Editora ODEAM
Ltda, 1983.p.31.
117
51
[...] jornalismo... isso é muito bom, bonito, honroso, mas, não dá dinheiro a
ninguém. Pois tenham a certeza de que um jornal num município com o grau
tão avantajado de analfabetos (3∕5 da população não sabe ler) é feito com
“suor, sangue e lágrima”. Tem edição que precisa que tiremos do bolso para
pagar, pois, em Maragojipe publicidade não é uma necessidade comercial e
sim um luxo!118
No Arquivo, pode-se afirmar que o conteúdo mais popular era a “Coluna do Povo”,
versava essencialmente sobre as reclamações e as exigências feitas pela população na busca
de uma vida mais digna, pois a redação do jornal agregava parcela da intelligentsia
maragojipana. Suas colunas e artigos eram, em sua maioria, assinados por advogados,
professores, membros do Legislativo e Executivo municipais, poetas e membros do clero.
Pode-se citar como exemplo o poeta, ex-prefeito e amigo de Osvaldo Sá, Cid Seixas, o
advogado, ex-interventor e vereador Ermezindo Mendes, o poeta e compositor do hino oficial
de Maragojipe, Flávio Lima, o médico e professor Ronaldo Souza, o jornalista, pesquisador e
funcionário público João Varela, entre outros. Muitos deles faziam parte do círculo de
amizades de Osvaldo Sá, incluindo o proprietário do veículo noticioso, o jornalista
Bartolomeu Americano, homem de grande influência na cidade no referido período. Em
coluna intitulada Rodapé, Americano, assinando com um de seus pseudônimos, “Tolomeu”,
fez um resumo da vida do escritor maragojipano, uma espécie de biografia, que muito diz
acerca das posições assumidas por Osvaldo Sá na imprensa e no seu cotidiano em Maragojipe,
sem citar seu nome, apenas o apelido usado entre eles, Dodô:
Lá pelos pagos da Fazenda Água Fria, no mês do Leão, veio ao mundo um
garotinho escrevendo versos:
“Beija-flor quando estiveres
Por aí beijando flores,
Lembra de mim...se puderes,
Beija por mim meus amores...”
E os pais ficaram alarmados...com a precocidade do menino. Cresceu
dedicado aos livros. Não foi além da alfabetização primária. Aprendeu tudo
e sabe e tudo. Ninguém o faz de bobo neste mundo. Sabe tanto, quantos
diplomados andam por aí empasinados de título e anel...
Como poeta ama o belo. Canta rosa, mesmo desfolhada da mocidade que vai
ao longe...
Como socialista distribuiu com seus antigos colonos o patrimônio paterno.
Andou certa época prestando serviços às prefeituras baianas. Ganhou prática
e experiência. Numa grande firma local andou fazendo serviços, e quando o
gerente quis domesticá-lo driblou o corpo e caiu fora...
Gosta de imprensa, já teve periódico. Tem livros impressos de poesias e
outros aguardando a sua vez. Se mete a historiador da terra natal. Meio
materialista. Tem religião própria, à sua maneira de pensar...
118
CCM- Jornal Arquivo - Entrevista concedida por Alberto Silva ao jornal Arquivo, em meados de 1959.
52
Tímido, até dá impressão de omisso... Esconde a preferência política para
não desagradar quem quer que seja...
Seus sonetos retratam o individuo. Sonega opinião a respeito de qualquer
assunto que envolva política ou fato social.
Ao descer a escada da vida galgou função pública que bem se encaixa à sua
conduta e capacidade. Um dos chefes hierárquicos andou olhando-o de
esguelha. Parece, entretanto que, hoje a sombra se esvaiu, e há confiança. Se
por fora não tem cabelo, por dentro tem miolo, a cabeça do Dodô. (grifos
nossos). 119
Era o ano de 1965, o Brasil governado por militares desde 31 de março de 1964.
Osvaldo Sá apenas publicava acerca da história local e sobre temas que não o comprometiam.
Seu nome aparecia também nas notas emitidas pelo poder judiciário, lavrando documentos e
subscrevendo-os na função de escrivão da vara cível em Maragojipe.
Bartolomeu Americano em sua matéria acaba por ratificar a tão alegada timidez de
Osvaldo Sá que desenvolvia múltiplas funções em Maragojipe e encerra fazendo alusão ao
cargo então exercido pelo escritor no Fórum local. Nesse exemplar do jornal, Osvaldo Sá
publicou uma crônica sobre a primeira festa oficializada na cidade, sendo feriado local, a de
Corpus Christi. Acerca de uma das considerações do jornalista Bartolomeu Americano,
quando afirma que Osvaldo Sá tinha “religião própria”, pode-se citar o poema intitulado
“Cristo”, publicado no livro A Humilde Musa, anos depois:
Não te amo, ó Cristo, na beleza intensa,
de peito aberto em grandes quadros coloridos,
ou em pinturas tais de luz intensa
como subindo aos reinos prometidos.
Também não te amo as mágicas da crença
aos párias dos milagres merecidos
mas te amo, sim, com toda a benquerença,
a voz te ouvindo em mágoas ou gemidos.
Se crenças não me embalam, nem promessas,
bastam a mim, no entanto, os cravos e essas
sangrentas chagas pra enfim te amar.
Te amar feito homem, conscientemente,
Fugindo ao pragmatismo dessa gente
que só te querem no esplendor do altar (grifos nossos).120
119
CCM- Jornal Arquivo. Coluna Rodapé. 27 de maio de 1965. p.01. No ano em que foi deflagrado o golpe, a
prefeitura local estava sob a responsabilidade de Isaac Armede.
120
“Cristo.” SÁ, Osvaldo. A Humilde Musa. Salvador: Editora ODEAM Ltda, 1988. p. 21
53
A crítica escrita por Bartolomeu Americano tinha vestígios de uma relação de
amizade. No entanto, contrariando de alguma maneira o que foi dito pelo jornalista, já em seu
primeiro livro o escritor denuncia suas predileções políticas. Em Folhas ao Vento, um poema
intitulado “Papai Noel” demonstra sua posição política. Posição que mereceu destaque em
matéria do Jornal do Brasil (RJ), na coluna “Registro Literário”, de Múcio Leão, em 09 de
janeiro de 1936:
[...] Falei de duas poetisas. Não é demais que fale agora de um poeta. Esse
poeta de São Félix é extraordinário. [...] Como pensamento, acredito que
bastará transcrever a primeira estrofe do poema “Papai Noel”, para mostrar
ao leitor os surtos revolucionários deste poeta:
Papai Noel
É bem cruel
Parece-me um adulador
Que apenas entra em lares ricos
E os títeres dos seus fabricos,
Dá aos filhos de doutor...
Essa história de dizer que Papai Noel é “bem cruel”, essa história de chamálo “adulador” e outras coisas mais, que se acham no poema e que eu
infelizmente não posso transcrever, mostram como o Sr. Osvaldo Sá é um
puro voltairiano. Mas, a irreverência principal do poeta está em falar nos
“fabricos” do bom velhinho de Natal... [...] Poetas e escritores brasileiros –
não tendes, por aí, algum prêmio pantagruélico, para conceder a esse
maravilhoso vate de S. Felix? (grifos nossos)121
Sabe-se ainda da existência de um manuscrito que o autor intitulou 64- Espada. O
título escolhido possibilitou entender o que pensava a respeito da ação dos militares à frente
do País. 122 Vários poemas escritos pelo autor sugerem a sua posição contrária ao militarismo e
às guerras.123
Em 1966, as notícias veiculadas pelo periódico dão importantes indicativos sobre a
estrutura da cidade e da situação política do país. Na folha de 24 setembro, a manchete
evidencia que
Jornal do Brasil. Coluna Registro Literário. Rio de Janeiro, 09 de janeiro de 1936. p.12. Disponível em:
htlp: ∕∕ news.google.com ∕newspapers?nid=oqx8s2k1lRwC&dat. Na coluna, Múcio Leão associou Osvaldo Sá a
cidade de São Félix por conta da edição do livro Folhas ao Vento ter sido publicado pela editora sanfelista,
Multpress. Osvaldo Sá dizia ser um afeiçoado as ideias socialistas. Em outros momentos posteriores volta a
tratar dessa posição política, porém de forma mais contida.
122
Esse manuscrito não foi encontrado no acervo da Fundação Osvaldo Sá. Como já foi narrado, supõe-se que
tal material tenha sido queimado pela esposa do escritor, na tentativa de livrá-lo da ação repressora da censura
imposta pelos militares durante o regime militar.
123
O livro em que essa característica se mostra mais marcante é Sangue do Mundo. (1984)
121
54
A Cidade é desprovida de bom abastecimento de água potável, meios
educacionais, de saneamento [...] É cidade atrasada, impelida de progredir,
de nivelar-se às suas congêneres mais civilizadas [...] O ensino secundário
ministrado por entidade particular, que por tal, não oferece lugar a
atendimento às classes menos favorecidas de recursos econômicos [...] A
população vive atolada nos mangues e alagados que circundam a cidade,
sem o menor princípio de higiene, sofrendo, castigada pelos fluxos das
marés [...]
O governo municipal que se instalar nas próximas eleições, com voto, ou
mesmo sem o voto, se for o caso deve chamar a si esses três problemas
magnos da comunidade maragojipana para resolvê-los a peito, com alma e
coração na mais alta sensibilidade de senso da coisa pública. (grifos
nossos).124
A receptividade da tomada do poder pelos militares também teve destaque no
noticiário local na celebração do quinto aniversário de sua deflagração em 1969, na manchete
intitulada “Comemorações do 5º ano da Revolução”:
Maragojipe reafirmou sua fé democrática e confiança nos destinos da Pátria,
quando do transcurso do quinto aniversário da Revolução de 31 de março.
A Prefeitura e a Câmara de Vereadores ciosos dos seus deveres de órgãos
públicos promoveram solenidades comemorativas na data histórica, tendo
como ponto alto das festividades sessão solene no Salão Nobre do Paço
Municipal, às 20 horas, com a presença de autoridades, famílias,
representantes de classe, povo e filarmônica Terpsícore. Instalada a sessão,
sob a presidência do Exmo. Sr, Chefe do Executivo Municipal Plínio Pereira
Guedes, usou da palavra o vereador Alberto da Costa Santos, em nome do
Poder Legislativo em seguida o médico José Menezes Barreto, titular do
Posto de Saúde, em nome do funcionalismo público, proferiu substancioso
discurso, e por fim, o Sr. Prefeito, em ardorosa oração cívico-patriótica,
exaltou o feito das Forças Armadas naquela arrojada e benéfica marcha
revolucionária de 31 de março de 1964. Em outro local vai divulgada a
oração do Prefeito. Após a cerimônia, a filarmônica Terpsícore desfilou
pelas principais artérias da urbes, precedida das autoridades e povo. Pela
manhã daquele dia, o Estabelecimento Educacional Ginásio Simões Filho e
Escola Normal, também comemorou a data, em sessão, presente corpo
docente e discente, quando falou o aluno Celestino Souza, seguindo-lhe o
tenente João Domingos Nascimento, agente da Capitania dos Portos.
Encerrando as comemorações, falou o Diretor da entidade educacional, Dr.
125
Odilardo Uzeda Rodrigues. (grifos nossos)
Com o mesmo teor elogioso e na mesma página, estava o tal discurso, a “ardorosa
oração cívico-patriótica” exaltando a ação das Forças Armadas:
124
125
CCM- Jornal Arquivo. Manchete de 24 de setembro de 1966.
CCM- Jornal Arquivo. Manchete do dia 26 de abril de 1969. p.01.
55
[...] Por isso mesmo, os poderes constituídos do município, acharam por
bem, tributar esta justa homenagem ao Marechal Artur da Costa e Silva,
chefe supremo, na qualidade de Presidente da República, das Forças
Armadas Brasileiras. A ela, como não poderia deixar de ser, vêm de
associar-se as diversas representações de classes do Município, e, para maior
satisfação nossa, o seu povo ordeiro e progressista, porque, não há quem de
bom senso, vivendo e sentindo o momento presente, comparado ao 31 de
março, não perceba a diferença gritante sob todos os aspectos, em que, na
sua trajetória para o desenvolvimento, e consequente emancipação
econômica, vem o Brasil caminhando nesse período de 5 anos.[...] ( grifos
nossos) 126
Durante esse período, o jornal que antes se autodenominava político, noticioso e
independente, passou apenas a noticioso e independente. Na folha, visivelmente percebe-se a
inclinação à política imposta pelos militares e os ideais por eles propagados.
A pesquisa nos arquivos do Fórum Raul Chaves, em Maragojipe, permitiu encontrar o
registro de propriedade do jornal e a identificação de alguns colaboradores que atuavam no
periódico na sombra de um pseudônimo. Temos como exemplo um promotor de justiça,
advogado, que publicava desde poemas à crítica política, tendo uma coluna específica no
periódico. Era Nélio Gomes, ou melhor, “Braz Moro.” Outros preferiam mostrar-se
diretamente, a exemplo de Ermezindo Mendes, influente político maragojipano que debatia no
jornal acerca da possível emancipação do distrito mais rico de Maragojipe, São Roque do
Paraguaçu.
Cid Seixas, chefe do MDB, ex-prefeito de Maragojipe, ocupava-se em falar sobre a
atuação do cronista, sendo ele um exemplo, desfrutando de coluna própria intitulada “A
Crônica, por exemplo.” Seus poemas também eram substrato do jornal. Evidencia-se assim,
que a imprensa era o lugar de prática intelectual e consequentemente de exercício de poder.127
Entre os colaboradores do Arquivo, João Varela merece destaque pelo fato de ter propiciado a
Osvaldo Sá o acesso a grande parte da documentação que utilizou na composição de seus
artigos e, por conseguinte, de seus livros.128
Os poemas povoaram as páginas do Arquivo durante todo o período em que circulou.
Seus colaboradores, sem exceção, até mesmo aqueles que eram apenas convidados e atuavam
na folha esporadicamente, davam vazão ao exercício literário. Essa realidade se aplicava
também à capital baiana. De acordo com a historiografia que trata do assunto, médicos e
CCM- Jornal Arquivo. Discurso do Prefeito Plínio Pereira Guedes. 26 de abril de 1969. p.01.
Ressaltamos esse aspecto, pois os temas centrais eram tratados por pessoas que ocupavam funções de relevo
dentro da sociedade maragojipana durante o longo período em que circulou o periódico.
128
João Varela foi diretor do jornal O Prélio em 1928 e secretário da prefeitura local no referido período.
126
127
56
advogados formados nas faculdades de Direito e Medicina desenvolviam a poética e o gosto
pela literatura, sobretudo francesa, em meio ao estudo das leis e dos prontuários.129
Cultura, economia, hábitos de uma população ou parte dela, são retratados a partir das
ideologias que cercam a elaboração dos noticiários impressos. Valores e opiniões, critério de
seleção de notícias, são elementos que revelam o contexto em que as informações são
passadas e a qual público se destinava.130
Contudo, Osvaldo Sá não possuía nenhuma graduação, mas fazia parte de tradicional
família maragojipana. Era filho de proprietários de terra já falidos, porém conservava a
honraria do nome dos Sá, o que já lhe garantia algum respaldo.
Os laços de amizade, o domínio das letras e da história local facilitaram o seu acesso
ao poder. Segundo Sérgio Miceli, “[...] as profissões intelectuais constituem um terreno de
refúgio reservado aos herdeiros das famílias pertencentes à fração intelectual e, sobretudo, aos
filhos das famílias em declínio.” 131
Ao analisar o conteúdo dos jornais, foi possível entender que a linguagem erudita e
rebuscada empregada por Osvaldo Sá em suas publicações, seja jornal ou livro, foi também
herança do convívio com esses personagens da “elite pensante” da cidade.
O Arquivo era um espaço de disputa de ideias, lugar de exercício de poder e,
sobretudo, de trocas intelectuais e elogios mútuos. Osvaldo Sá contribuiu para a folha semanal
mesmo quando morava em Muritiba e se firmou como colunista em seu retorno, no ano de
1959, desenvolvendo a atividade literária concomitantemente a de escrivão cível do fórum
local.
Os contatos amistosos construídos no período em que atuava na folha noticiosa foram
de fundamental importância no que se refere à edição e impressão de seus livros. Na redação
do Arquivo, Osvaldo Sá afirmou ter conhecido os seus principais editores, os proprietários das
Gráficas Odeam Ltda e da Gráfica Oxum.
Sabe-se que durante o período que escrevia no Arquivo, Osvaldo Sá dava indicativos
de uma nova publicação, que teria inicialmente o nome de “Maragojipe e sua História”. Em
razão da alegada falta de recursos, o empreendimento ficou apenas nos jornais, somente
puderam ser publicadas noutro suporte nos três primeiros anos da década de 1980.132
129
SILVA, Paulo Santos. Âncoras de Tradição. Op.cit., 2011.
LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi. Fontes
Históricas. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2006.
131
MICELI, Sérgio. Op.cit., p. XXV.
132
Antes deles, quatro novos livros foram publicados. A Conspirata dos Galos (1973), Evocação (1976),
Maragojipe Humorístico (1978) e Pontos nos iii (1980).
130
57
A história é utilizada pedagogicamente, na intenção de instruir e, sobretudo, legitimar
genealogias e reafirmar hierarquias. Afinal, seus colaboradores eram filhos e netos de famílias
tradicionais de Maragojipe e do Recôncavo. Essa noção pedagógica de História foi
disseminada em todas as obras de Osvaldo Sá, mesmo quando tentou dar abertura para novos
sujeitos entrarem em sua narrativa memorialística.
Analisar o texto jornalístico possibilitou ratificar a autoridade atribuída a Osvaldo Sá
enquanto aquele que dominava o conhecimento da história local. Sua poética também era
exercitada e elogiada no jornal, visto que na folha jornalística também imperava o anedótico,
o sarcasmo, o humor fino e a ironia sutil em meio às críticas veladas, bem característico dos
poemas de Osvaldo Sá.
Meninos, que brincam todos
Gritando sujos ápodos
Alguns já rôtos, sem nada,
Melhor dizer ― quase nus
Gavroches são na “pelada”
E se um a pelota achada
Se arranja logo numa lata
Para o joguinho de truz.
Meninos de toda gente,
De muito dente e sem dente
Do “Rio” e do “Canto Escuro”
Lá do “Porto” e da “Matriz”
Meninos que pulam muro,
Que fazem coisas incríveis
Meninos mais que terríveis
Com caras que ninguém diz.
Salve terra abençoada,
De seus filhos, bem amada
E que todos eles cria
Sentindo-se assaz feliz
Rincão de tanta alegria
De gente de sangue no olho
Capaz, com tanto pimpolho
De povoar um país!133
Este poema de Osvaldo Sá, por exemplo, estava em meio a noticias sobre o
analfabetismo que assolava a terra maragojipana, numa crítica a capacidade reprodutiva dos
casais da cidade, tanto do “Porto”, bairro mais afastado do centro, quanto da “Matriz”, na
133
CCM- Jornal Arquivo. Poema de Osvaldo Sá intitulado Terra de Tanto Menino. Setembro de 1967.
58
praça onde está edificada a igreja principal da cidade, considerando as dificuldades para
educar uma criança em cidade do interior.
Entretanto, a leveza também tinha seu lugar, assim como a religiosidade. A simpatia e
os privilégios eram visivelmente concedidos às doutrinas católicas, tendo seu próprio
representante no jornal, o cônego Florisvaldo de Souza.134 Além dos demais colaboradores,
que sempre proclamavam sua fé no interior de seus escritos. Tem-se como exemplo o poema
do contabilista e funcionário público, José Nobre:
Cristo
Se todos fossem iguais a você
O mundo seria outro
Ah!...Se todos fossem iguais a você!
A paz seria verdadeira
Verdadeiro seria o amor!
Ah!Se todos fossem iguais a você!
Ódio não existiria
E sim: Paz, Amor e Alegria!
Ah! Se todos fossem iguais a você!
Guerra não haveria
Porque compreensão existiria
Ah! ... Se todos fossem iguais a você! 135
Com o passar dos anos, entre um poema e outro, entre uma crônica e outra, Osvaldo
Sá aperfeiçoava as pesquisas sobre os assuntos que envolviam a história local e anunciava a
publicação de seus livros nas páginas do semanário. Ali também rendia suas homenagens à
folha que lhe abrira espaço no período em que não estava propícia a publicação de seus livros.
Em poema publicado a 27 de maio de 1971 em comemoração ao vigésimo aniversário
do jornal, no verso que intitulou de “Arquivo” faz anos, atribuiu ao jornal o caráter
enciclopédico, em vista da grande veiculação de notícias que tinha como conteúdo a história
local:
Vinte anos faz o intimorato Arquivo
― jornal que mais viveu em nossa terra
E a vida vai vivendo sempre vivo.
Se os fatos do passado revivendo
Aos seus leitores de hoje bem descerra,
Os do futuro ficarão sabendo.
Sabendo o que só lendo então se sabe
Através da leitura amena e lhana de Arquivo
Cônego politicamente engajado, editor do periódico O Luzeiro, cujo nome alude ao orago São Bartolomeu,
que circulava em Maragojipe e na cidade de Muritiba- Ba.
135
CCM- Jornal Arquivo. Poema intitulado Cristo. De José Nobre. Novembro de 1975. p.03.
134
59
Em cuja longa série cabe
A Enciclopédia Maragojipana.136
Como reconhecimento do valor de suas pesquisas, em 1972, o escritor foi convidado a
ser membro julgador do primeiro concurso em homenagem ao sesquicentenário da
Independência, promovido pelo Centro Educacional Simões Filho, do médico integralista
Odilardo Uzeda Rodrigues, proprietário do colégio.
Osvaldo Sá foi responsável por avaliar e validar ou não, o conteúdo histórico dos
textos apresentados. No ano seguinte, a Câmara Municipal solicitou ao autor que proferisse
palestra acerca da elevação de Maragojipe à cidade. 137 Sá valia-se do serviço burocrático,
tendo em vista, que nem a atividade jornalística nem a de escritor lhe garantia o sustento.
Talvez por isso não se manifestasse a favor ou contra algo ou alguém no período em que
atuava no Arquivo. Postura que se manteve em todas as suas obras já publicadas. Buscou a
“neutralidade” em função de atender aos seus objetivos, sendo o principal a publicação de
seus livros.
Outra estratégia de firmar-se no campo de produção intelectual foram os laços de
sociabilidade criados através das cartas. Pois é a partir de uma rede de contatos formados que
se criam as estratégias e se demarca o lugar de um intelectual no mundo cultural. 138
3- O jogo das trocas epistolares
Além dos jornais, o envio de livros acompanhados de cartas aos intelectuais
conhecidos funcionava como artifício para agregar leitores e, consequentemente, validar o
conteúdo de suas obras.
O público que almejava deveria ser selecionado. No intuito de valorizar a si e os seus
escritos, passou a enviar seus livros a renomados escritores, historiadores, jornalistas e
políticos. Suas obras eram remetidas para nomes como Jorge Amado, Américo Jacobina
Lacombe, Altamirando Requião, Hélio Simões, Pedro Calmon, Hildegardes Viana, Luis
Viana Filho, Calazans Neto, Antonio Houaiss, Jorge Calmon, entre outros intelectuais.
CCM- Jornal Arquivo. nº. 213. 27 de maio de 1971.
CCM- Jornal Arquivo. nº 224. 21 de abril de 1972.
138
GOMES, Ângela de Castro. Em família: a correspondência entre Oliveira Lima e Gilberto Freyre. In:
GOMES, Ângela de Castro. (org) Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p.51.
136
137
60
Conforme os relatos de Alberto Sá, seu pai quase diariamente ia à agência dos
Correios. Era através dos Correios, que, com atraso, lhe chegavam às novidades do mundo
literário e historiográfico baiano e brasileiro. O jogo das trocas epistolares foi uma tentativa
de penetrar no interior do grupo de intelectuais que atuavam na política, na Academia de
Letras da Bahia e no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, em meados do século XX.
O escritor enviou cada nova publicação a esses homens de letras e manteve com eles
contínuo diálogo através de cartas. Osvaldo Sá tinha conhecimento de que tanto a ALB
quanto o IGHB garantiam a seus membros distinção social e o título de intelectual. 139 Todos
os indícios demonstraram que esse era o maior objetivo do escritor maragojipano. Uma
estratégia de garantir respaldo para seus escritos e fazer-se notar em meio a grupos e
instituições que agregavam intelectuais. Era comum no meio letrado baiano o protecionismo
mútuo, embasado na ideia de pertencimento a um seleto grupo.140
Aqueles que tinham notoriedade em âmbito local e nacional, a exemplo de Pedro
Calmon e Jorge Amado, acabavam por validar as obras de outros intelectuais, sobretudo os do
interior da Bahia, através de cartas de recomendação ou mesmo prefaciando suas obras. 141
Dos intelectuais de renome aos “intelectuais de província”, era comum o pedido de
legitimação de seus escritos por meio de cartas.
Segundo Ângela Castro Gomes, os intelectuais são sempre influenciados por grupos e
associações com grau maior ou menor de formalidade, que se aproximam por afinidades
culturais ou mesmo de escrita. 142 As correspondências trocadas entre esses indivíduos
evidenciam essas relações de proximidade. Cartas que, por vezes, fazem parte da própria obra
desses intelectuais, como é o caso de Osvaldo Sá. Missivas que revelam as ideias, projetos e a
necessidade de uma identidade de grupo.143
Durante as pesquisas em busca de livros de outros memorialistas do Recôncavo nos
arquivos públicos da Bahia, a fim de tecer comparações e encontrar peculiaridades na escrita e
na própria formatação das obras, foi possível perceber a semelhança entre essas mensagens de
Segundo Paulo Santos Silva, [...] cabiam ao Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e à Academia de Letras
da Bahia o papel de acolher em seu seio os indivíduos que se dedicavam às atividades intelectuais no estado, ou
pelo menos de um grupo que se poderia considerar como representante de certa “intelectualidade oficial.”
SILVA, Paulo Santos. Âncoras de Tradição. Op.cit., p.111.
140
Idem. Sobre essa prática de elogios mútuos aplicadas a outros autores, das “igrejinhas” e grupos intelectuais.
Cf.: DANNER, Mário Fernando Passos. Graciliano Ramos e a Crônica: Uma vida em três séries. In:
CHALHOUB, Sidney (orgs). História em Cousas Miúdas: Capítulos de História Social da crônica no Brasil. São
Paulo: Editora da UNICAMP, 2005. pp. 263-296.
141
SILVA, Paulo Santos. Âncoras de Tradição. Op. cit.
142
GOMES, Ângela de Castro. Em família: a correspondência entre Oliveira Lima e Gilberto Freyre. In:
GOMES, Ângela de Castro. (org) Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
143
Idem. Sobre a consciência de grupo, ver também: CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Op.cit., 2000.
139
61
apoio. Por vezes, apenas uma ou outra palavra é trocada nesses prefácios, no intuito de se
adequar à obra em questão e seu respectivo autor.144
Entre os elementos que compõem a biblioteca do escritor, está o seu acervo
epistolográfico. Encontram-se organizadas em classificadores as cartas que enviava a diversos
intelectuais, seguida da resposta que chegava às suas mãos. Nessas pastas também são
encontradas datilografadas listas de endereços, tanto das instituições quanto das residências
dos seus principais correspondentes, impressas em papel de fax.
A maioria das cartas enviadas pelo escritor maragojipano foi escrita em sua velha
máquina de datilografia. Geralmente escrevia sobre um papel carbono e assim obtinha duas
cópias de cada carta enviada. Remetia uma e guardava a outra em seus arquivos. As
correspondências familiares também fazem parte dos seus guardados. São cartões postais,
bilhetes e cartões natalinos acondicionados em caixas de papelão colorido.
O manuseio dessas cartas possibilitou conhecer as posturas assumidas nesse tipo de
documento. Fontes elaboradas no âmbito do privado que revelam uma memória escrita
permeada de múltiplos interesses, tanto do remetente quanto de seus destinatários.
Com o conjunto epistolográfico encontrado foi possível perceber o comportamento de
escritores que já estavam consolidados em lugar de maior destaque no cenário literário baiano
e nacional, frente ao pedido de auxílio de escritores em busca de reconhecimento. De uma
maneira geral, as cartas remetidas por Osvaldo Sá dizem respeito ao interesse em respaldar
suas obras, dirimir dúvidas e acumular mais documentos acerca da história de Maragojipe.
As obras do escritor maragojipano, especificamente no que se refere à estrutura interna
e externa dos livros, não foram elaboradas apenas pelos editores. Ao que tudo indica, a
composição dos livros foi pensada e cuidadosamente preparada por Osvaldo Sá que se atinha
a detalhes. As cartas que referendavam positivamente os seus atributos de escritor eram
estampadas nas orelhas, contracapas e folhas de rosto dos livros.
Com essas correspondências Osvaldo Sá teria pretendido estreitar laços e diminuir as
distâncias que o separavam do rol dos intelectuais baianos que estavam em evidência em
meados do século XX. Na sua volumosa coleção de cartas, encontraram-se principalmente
membros de agremiações literárias como a Academia de Letras da Bahia, sendo os principais
missivistas presidentes ou ex-ocupantes da posição.
144
Entre os intelectuais baianos, o que mais apareceu prefaciando obras deste tipo foi o historiador Pedro
Calmon.
62
Pode-se citar os nomes do escritor José Calasans que ocupou a cadeira de presidente
durante os anos de 1971 e 1972, ou do jornalista Jorge Calmon, que atuou nessa posição entre
os anos de 1977 e 1979 e o seu sucessor, Hélio Simões, de 1979-1981. 145
De Salvador, em 9 de novembro de 1981, chegou ao conhecimento do autor
maragojipano o agradecimento pelo oferecimento do exemplar de Histórias Menores:
Capítulos da História de Maragojipe, que teria recebido através dos Correios, do jornalista
Jorge Calmon, que na ocasião assinalou considerar a memorialística de Osvaldo Sá
fundamental para o registro da história regional. Segundo o jornalista, as crônicas ali reunidas,
demonstravam a “prosa correta e fluente” do escritor em assuntos escolhidos com rigor e
sensibilidade. Características que, conforme Jorge Calmon mereciam destaque e reverências:
Dou os parabéns a Maragojipe por dispor de um historiógrafo e cronista de
sua qualidade. Publicará decerto, outros trabalhos para completar, quando
possível, a recomposição do passado e da vida social de sua terra. É a minha
cordial expectativa.
Com o abraço de,
Jorge Calmon. 146
Outros membros da Academia aparecem no acervo epistolográfico de Osvaldo Sá
nesse mesmo ano, a exemplo de Antonio Loureiro de Souza. Datada em 10 de novembro de
1981, tratando o escritor por confrade, Antonio Loureiro confidencia que somente naquele dia
pode acusar o recebimento do livro Histórias Menores.
Conforme considerou o acadêmico, nas crônicas compiladas no exemplar ofertado, a
figura do poeta e do escritor se confundia harmonizando a narrativa onde imperava o
conhecimento não só de Maragojipe, como do Recôncavo. Antonio Loureiro identificou no
escritor maragojipano o estilo bem cuidado, persuasivo. Finalizou a narrativa destacando que
os trabalhos de pesquisa efetuados pelo maragojipano eram dignos do reconhecimento que
vinha recebendo:
[...] Bem merecem os que bem fazem, como você, lembrando para os
contemporâneos os fastos gloriosos dessa encantadora cidade, que teve papel
saliente no processo de nossa emancipação política. Parabéns, e siga
escrevendo sempre. É a única coisa que sobrevive a todos nós.
Creia na admiração sincera do confrade.
Antonio Loureiro de Souza147
145
Informações sobre esses dirigentes colhidas no site da Academia de Letras da Bahia Cf:
www.academiadeletrasdabahia.wordpress.com
146
FUNDAÇÃO OSVALDO SÁ- Acervo epistolográfico. Carta de Jorge Calmon a Osvaldo Sá. - Salvador, 09
de novembro de 1981.
147
FUNDAÇÃO OSVALDO SÁ - Acervo epistolográfico - Carta de Antonio Loureiro de Souza a Osvaldo Sá.
Salvador, 10 de novembro de 1981.
63
Ainda no ano de 1981, dessa vez partindo do gabinete presidencial do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (RJ),vieram de Pedro Calmon as felicitações por mais uma
publicação. No dia 30 de setembro, o historiador relatava em carta endereçada a Osvaldo Sá, a
satisfação que teria sentido ao submeter-se a leitura das crônicas históricas escritas pelo
“memorialista de Maragojipe.”
Pedro Calmon acentuou em sua missiva que a obra Histórias Menores apresentava
aspectos marcantes da escrita do memorialista: “o domínio da arte de escrever, conhecimento
sério e gosto pela pesquisa histórica.” Nesse trecho é possível perceber que, segundo o
membro do IHGB, Osvaldo Sá alinhava-se aos princípios norteadores da prática
historiográfica alimentada pelo instituto e seus congêneres, a exemplo da reunião de
documentos que narram a história de localidades como Maragojipe.
Conforme Calmon, elementos que tornavam Osvaldo Sá muito mais que um cronista,
mas um historiador cuja principal virtude era o poder de persuasão. Na epístola, despediu-se
dando parabéns ao escritor maragojipano solicitando que este continuasse a corresponder-se
com ele, bem como enviasse toda nova publicação.148
O teor dessas cartas evidencia que as tramas e artimanhas usadas pelo escritor com
sonhos de distinção surtiram efeito. De todo modo, os intelectuais a quem se remetia não o
ignoravam. Pelo contrário, mostravam-se abertos a receber seus escritos. No entanto, nas
cartas a que se teve acesso não apareceram convites para que tais laços de amizade se
concretizassem.
Não foi encontrado nenhum registro que indicasse a apresentação formal do autor
maragojipano a esses núcleos de intelectuais. Como já foi mencionado algumas vezes, nada
leva a crer que Osvaldo Sá conheceu alguns desses homens de letras pessoalmente. O que não
teria abatido o “escritor de Maragojipe.” 149 Continuava a sua empreitada, convertendo
documentos avulsos e desconexos em estórias e história de Maragojipe, utilizando-se da sua
licença poética e dos dons que alardeava possuir.
Jorge Amado, o quinto ocupante da cadeira de número 23 da Academia Brasileira de
Letras, aparece como um dos que mais trocaram cartas com Osvaldo Sá, permitindo que suas
considerações fossem usadas para respaldar as publicações do autor maragojipano.150 Antonio
Houaiss, dono da cadeira 17 da mesma agremiação, também demonstrou interesse pelos livros
148
FUNDAÇÃO OSVALDO SÁ - Acervo epistolográfico - Carta de Pedro Calmon a Osvaldo Sá. Rio de
Janeiro, 30 de setembro de 1981.
149
Expressão usada algumas vezes por Jorge Amado nas cartas trocadas com Osvaldo Sá.
150
FUNDAÇÃO OSVALDO SÁ - Acervo epistolográfico - Cartas de Jorge Amado a Osvaldo Sá. Salvador,
entre agosto de 1980 e 25 de maio de 1983.
64
do escritor.151 Ambos os autores diziam-se público leitor de Osvaldo Sá. Detalhe
significativo, tendo em vista que um texto, uma obra, só existe se houver um leitor que lhe
conceda importância e significado.152
Osvaldo Sá se mostrou atento às normas e convenções que marcam as diversas
“comunidades de leitores.” Comunidades que possuem normas que definem os usos e as
interpretações dos livros.153 Os elementos mise en texte e mise en livre fazem parte e tomam
parte na construção dos sentidos atribuídos a uma obra, seja ela literária ou histórica. 154
4- A tentativa de legitimação dos escritos
Durante quase uma década, esses intelectuais receberam através da agência dos
correios as publicações do autor maragojipano. Entre as cartas consideradas mais reveladoras
da possível admiração de Antonio Houaiss pelo escritor, convém apresentar na íntegra a
abaixo transcrita, datada em 30 de novembro de 1987.
Meu muito caro Osvaldo Sá
Há muito lhe devo agradecimentos pelas ofertas que o caro amigo tem feito
de alguns dos seus excelentes livros – que tornarão Maragojipe relembrada
nestes seus tempos ad perpetuam: se cada cidade nossa contasse com um
Osvaldo Sá, já imaginou como seria fácil a nossa história futura?
Mas sem a preocupação com a eternidade, o que lhe devo de fato é o prazer
que sua leitura me proporciona, vinda de quem tem garra no dizer, graça no
narrar, riqueza verbal de dar e vender, e esse exemplo de grandeza humana
que é a alegria de viver. Não é hábito meu precipitar-me em agradecimentos
(prática com que alguns se desviam da leitura do que recebem); só faço
depois de apreciar ou desapreciar: no seu caso não apenas o aprecio, senão o
acompanho e o consagro sempre entre os meus amigos. Se Maragojipe ainda
não o fez, que se prepare para erguer um monumento ao seu grande cronista
― que você vem sendo com todo garbo e majestade.
Seu amigo muito cordial, efusiva e sinceramente
Antonio Houaiss155
151
Essas informações podem ser encontradas no site da Academia Brasileira de Letras: www.academia.org.br
CHARTIER, Roger. A Ordem dos Livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e
XVIII. Tradução de Mary Del Priore. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994.p.09.
153
Idem. pp.11-13.
154
ABREU, Márcia. Apresentação. História dos textos, história dos livros e história das práticas culturais – ou
uma outra revolução da leitura. In: CHARTIER, Roger. Formas e Sentido. Op.cit., p.11.
155
FUNDAÇÃO OSVALDO SÁ - Acervo epistolográfico - Carta de Antonio Houaiss a Osvaldo Sá. s∕d.
152
65
À semelhança dos antigos escritores que presenteavam o rei com suas respectivas
obras em busca de proteção, Osvaldo Sá enviava as suas publicações a instituições públicas e
privadas ligadas ao campo das Letras e da História.156
Durante as pesquisas no acervo da Biblioteca Ruy Barbosa, no interior do Instituto
Geográfico e Histórico da Bahia, entre os seus mais de 12.000 títulos catalogados
eletronicamente, somente as obras do escritor maragojipano aludem diretamente a Maragojipe
e ao seu cotidiano.157 A obra estava devidamente autografada e acompanhada de elogiosa
dedicatória. Não satisfeito, enviou seus livros até para as embaixadas do Brasil em outros
países. Foram encontrados breves agradecimentos vindos de representantes da Bélgica,
Finlândia, Suécia e da Polônia. 158
Em missiva que teria sido escrita aos vinte e dois dias do mês de outubro do ano de
1981, Hélio Simões, então presidente da Academia de Letras da Bahia, abrindo sua narrativa
com certa intimidade, agradeceu ao escritor maragojipano a gentileza de tê-lo presenteado
com as notas interessantes acerca da cultura do povo de Maragojipe. Desejando-lhe
felicitações, encerrou a carta afirmando estar esperando e torcendo por mais volumes da
coleção de crônicas. 159
Dias depois, em 30 de outubro de 1981, chegaram às mãos de Osvaldo Sá
congratulações pelo lançamento de mais um de seus livros, vindos do Conselho Estadual de
Cultura. Reconhecimento oriundo da amizade que mantinha com o então conselheiro Helio
Simões, que apresentou a obra Histórias Menores à Câmara de Letras, e deliberou em ata que
chegassem até Osvaldo Sá o incentivo vindo de palavras positivas sobre sua obra.160
Osvaldo Sá também aproveitava a oportunidade do envio dos livros para solicitar
documentos que fizessem referência à história de sua cidade natal e que cedo ou tarde
comporia parte de suas obras. Nesse sentido, encontra-se no acervo carta-resposta vinda de
156
Sobre essa prática aplicada à realidade distinta, ver Capítulo III da obra de CHARTIER, Roger. Formas e
Sentido. Op. cit., 2003.
157
Para saber mais detalhes acerca do acervo do IGHB acessar: www.ighb.org.br.
158
Pode-se acessar facilmente tais apreciações na contracapa do I volume de Vala dos Meus Dias. (1985) As
originais permanecem no acervo da Fundação Osvaldo Sá- Maragojipe-Ba.
159
FUNDAÇÃO OSVALDO SÁ - Acervo epistolográfico - Carta de Hélio Simões a Osvaldo Sá. Salvador, 22
de outubro de 1981.
160
A nota enviada pelo Conselho Estadual de Cultura encontra-se estampada na folha de rosto do segundo
volume da coleção Histórias Menores: Capítulos da História de Maragojipe. O texto original da carta encontrase resguardado no acervo epistolográfico da Fundação Osvaldo Sá- Maragojipe- Ba.
66
Américo Jacobina Lacombe, intelectual ligado ao IHGB, datada em 3 de dezembro de
1980.161
Na carta, Lacombe afirma não ter possibilidades de sanar as dúvidas do escritor por
estar envolvido em múltiplos trabalhos e não ter conhecimento sobre o Morgado de
Maragojipe. No entanto, indica a Osvaldo Sá caminhos possíveis. Sugeriu ao autor que
escrevesse para o diretor do Arquivo Nacional, Gabriel da Costa Pinto, que acabou por tornarse mais um de seus missivistas e possível leitor. Seguindo o conselho do historiador, Osvaldo
Sá escreve ao então diretor do Arquivo Nacional:
Maragojipe, 17 de janeiro de 1981.
Ilustre Sr. Dr. Gabriel da Costa Pinto
Diretor do Arquivo Nacional.
Prezado Senhor:
Interessado como estou em conhecer as origens do Morgado de Maragojipe,
comuniquei-me com o distinto historiógrafo A. Jacobina Lacombe quanto ao
assunto. Em resposta, o ilustre homem de letras, confessou-me não dispor de
documentos alusivos ao caso, ao tempo em que me indicou o seu nome,
como a pessoa mais indicada para dizer algo a respeito do Morgado em
apreço, ou se realmente, em algum tempo ele existiu. Se positiva a resposta,
muito gostaria de ter o nome do primogênito que se iniciou no vínculo.
Confiante nos seus préstimos agradeço-lhe antecipadamente.
O patrício e admirador,
Osvaldo Sá 162
O pedido de ajuda também era enviado para pesquisadores do Recôncavo. Nesse
sentido, o historiador que mais se correspondeu com o autodidata maragojipano foi o
santamarense Pedro Tomás Pedreira, vinculado à Universidade Federal da Bahia.
Pedro Tomás Pedreira, ― o único que podemos afirmar ter conhecido pessoalmente
Osvaldo Sá ― foi um dos responsáveis pela revisão dos livros sobre a história de Maragojipe,
além de conceder importantes informações sobre a cidade, sempre incorporadas às obras do
escritor maragojipano.163
As cartas trocadas com o santamarense eram sempre muito longas. Era a oportunidade
encontrada por Osvaldo Sá de atualizar-se e se livrar de dúvidas acerca da história da Bahia e
161
FUNDAÇÃO OSVALDO SÁ - Acervo epistolográfico - Carta de Américo Jacobina Lacombe a Osvaldo Sá.
Rio de Janeiro, 03 de dezembro de 1980. Para obter detalhes mais específicos sobre os intelectuais que compõem
o quadro do IHGB ver: www.ihgb.org.br
162
FUNDAÇÃO OSVALDO SÁ - Acervo epistolográfico - Carta de Osvaldo Sá a Gabriel da Costa Pinto.
Maragojipe, 17 de janeiro de 1981.
163
Pedro Tomás Pedreira é autor de Os Quilombos do Brasil (1973), Notícia Histórica de São Francisco do
Conde (1976) Pequeno Dicionário dos Municípios Baianos (1981), O município de Feira de Santana: Das
origens à instalação (1983). Alguns desses títulos são encontrados no acervo da Fundação Osvaldo Sá.
67
de Maragojipe. O mesmo se dava com Pedro Tomás, nas respostas a Osvaldo Sá. As cartas
desse pesquisador destoa das demais encontradas. A diferença encontra-se no seu conteúdo.
Pedro Pedreira tece elogios, porém corrige o autor e discorre sobre as lacunas encontradas nos
escritos do amigo:
Prefeitura Municipal de Santo Amaro
Gabinete do Secretário
Santo Amaro, 11-09- 81
Meu prezado Osvaldo Sá:
Com imensa satisfação recebi o 1º volume (até que enfim!) de suas
“Histórias Menores” (Capítulos da História de Maragojipe). Como tudo o
que tem saído de sua lavra, é excelente, contando, com maestria, a história
dessa linda e boa cidade de Maragojipe.
Entretanto, Osvaldo amigo, me parece que V. não leu minuciosamente
aquela “papelada” que lhe dei há uns tempos atrás, porque em alguns
capítulos, V. poderia transcrever alguns daqueles documentos, de modo a
elucidar algumas dúvidas. Notei que no Cap. I (Preâmbulo) V. diz que o D.
Álvaro tomou posse (o que efetivamente ocorreu) da sesmaria e depois da
Capitania do Peroaçú ( ou do Paraguaçú) e no Cap. XV (pg.68) V. declara
que D.Álvaro “por desavença com o bispo Sardinha, não tomou posse dela.”
A pág. 23 (Cap. IV) o nome é “Iguassu”, e não “Igacaçu”. No que V. diz
quanto à Relação feita pelo Vigário Francisco Parreiras, foi ela
encaminhada, junto as Relações de Freguesias, para Portugal (vide os
documentos que lhe dei) encontrando-se hoje no Arquivo Histórico
Ultramarino, de Lisboa ( Doc.nº 2666) e foi escrita por ordem do Rei e não
“a pedido” do Arcebispado.
Estou anotando outros “cochilos” para que V. verifique em futura edição.
Mas digo-lhe francamente, o trabalho é muito bom mesmo e minucioso.
Junto lhe remeto cópia datilografada de um documento de que possuo cópia
Xerox do original, referente ao embargo da construção de uma ponte no rio
Quelembe. Recebi outros documentos, e lhe enviarei cópia em breve.
Diga-me se recebeu o meu “O Rio Paraguaçu e sua navegação.”
Com um forte abraço do confrade e amigo
Pedro Tomás Pedreira164
Oito dias após o recebimento da carta do pesquisador de Santo Amaro, o escritor emitiu
sua resposta:
Maragojipe, 19 de setembro de 1981.
Caro amigo Pedro Tomás,
Saúde e Paz
Recebi a sua carta e li de fluente. Tive a satisfação de seus retoques aos
“Capítulos da História de Maragojipe”, inclusive as suas palavras de
consolação. Realmente, reconheço os cochilos. Originaram-se,
indubitavelmente, de minha vida de tantos e variados labores. E como foram
164
FUNDAÇÃO OSVALDO SÁ - Acervo epistolográfico - Carta de Pedro Tomás Pedreira a Osvaldo Sá. Santo
Amaro, 11 de setembro de 1981.
68
os capítulos escritos em épocas diversas, ficaram alguns sem as devidas
correções. Deveriam ser lidos, antes de publicados aos ouvidos de pessoa
culta e entendida do assunto. Lembra-se de que, quando iniciei a descrever a
história, ou, melhor, eventos da história maragojipense, um Juiz, aqui,
emprestou-me alguns livros de história da Bahia, e em um deles, veio a nota
de que, o Álvaro da Costa, não chegara a tomar posse da sesmaria. E, na
revisão, me passou o lapso. Parece-me que não chegou ele a residir na
sesmaria, como o foral determinava. Isto depois examinarei e no volume II,
possivelmente, no último Capítulo tratarei dessa ocorrência, iniciando as
suas observações que muito me honram. De referência a Iguassu ou Iguaçu,
tenho um mapa da Bahia quinhentista que traz esta região com o nome de
Iguacasu, pus apenas uma cedilha no dizimo “ c”, porque tenho notado que,
então era de hábito essa omissão. Quanto ao caso da descrição da Freguesia,
parece-me também que li algo a respeito. Talvez me tivesse equivocado o
pedido aqui veio por intermédio do Arcebispado. Mas, tudo isso, embora eu
quisesse (as falhas) que não tivessem existido, é muito próprio à história, e
por vezes, tais deslizes fazem que se torne o trabalho mais interessante e
discutido, por mais paradoxal que pareça.
Você sempre, o generoso amigo, e recebo com imenso prazer o documento
de referência à ponte sobre o Rio Quelembe. Muito valioso, para mim. Até
“historiadores” teimam comigo que essa obra teria sido executada ao reinado
de D. Pedro II. Eu contrariei sempre essa “história”, porque li, nos anais de
nossa Edilidade, que se efetuaram um conserto nessa ponte antes de D.
Pedro subir no trono. É difícil a minha ida aí. (grifos nossos)
Um abraço do velho amigo agradecido
Osvaldo Sá165
A forma de tratamento que aparece na carta transcrita denota maior proximidade com
o destinatário, embora mantendo a diplomacia e a cordialidade, não tem um caráter tão formal
quanto às endereçadas a intelectuais como Jorge Amado ou Antonio Houaiss. Talvez, o
sentimento que dominasse o maragojipano fosse o de parentesco, ou melhor, de proximidade,
mesmo que seja uma proximidade geográfica.
Ambos são de pequenas cidades e se diferenciam pela posição social que ocupavam.
Um era autodidata, o outro, vinculado à Universidade Federal da Bahia. Ficam evidentes nas
cartas outros detalhes relevantes, como a tentativa de justificar as lacunas e os lapsos
encontrados na obra Histórias Menores e o diálogo que mantinha com esse intelectual
trocando ideias, fontes e informações acerca de acontecimentos do Recôncavo e mais
diretamente de Maragojipe em seus períodos mais remotos.
Outro destaque que pode ser conferido a essa carta é a oportunidade de vislumbrar a
situação em que se encontrava o indivíduo que se dedicava às letras, evidenciando que
naquele período continuava a conciliar sua produção intelectual com o serviço burocrático. A
FUNDAÇÃO OSVALDO SÁ - Acervo epistolográfico - Carta de Osvaldo Sá a Pedro Tomás Pedreira.
Maragojipe, 19 de setembro de 1981.
165
69
coleção Histórias Menores aparece em evidência pelo seu caráter elucidativo da noção de
história do escritor maragojipano e por ter a preferência do seu autor. As demais obras são
referendadas nas cartas, porém, a maioria das missivas diz respeito às Histórias Menores,
coleção de crônicas publicadas entre os anos de 1980 e 1983 conforme será visto no capítulo
III desta dissertação.
Na entrevista, em 1992, ao jornal O Guarani, o autor afirmou que entre os seus livros
já publicados, a coleção era a que melhor demonstrava a sua dedicação à pesquisa histórica.
Entre as cartas estudadas, a maioria faz referência aos seus atributos enquanto memorialista
seguidas de elogios à poética refinada exercitada nos poemas.
Do acadêmico Clóvis Lima, por exemplo, vieram elogios acerca dos versos do livro
Sondas e Pousos. 166 De Josué Montello, os aplausos pelos poemas contidos na obra Vitrais. 167
Nas primeiras décadas do século XX, havia dificuldades para editar-se no Brasil. Essa
realidade também era vivenciada na Bahia. O exemplo de Osvaldo Sá mostra os percalços de
se projetar em sua condição de intelectual com ambições de distinção, em virtude da falta de
recursos financeiros e até mesmo do suposto descaso das instâncias de poder local em relação
à cultura de sua população.
Osvaldo Sá contava com alguns colaboradores, porém, grande parte de seus escritos
foram publicados com os parcos recursos rendidos ao autor em sua atuação em setores da
burocracia pública de Maragojipe e Muritiba. O patrocínio, quando existia, esteve quase
sempre ligado aos seus pedidos. Entre os principais patrocinadores estavam donos das
editoras, sobretudo o amigo Osmar Azevedo, proprietário das Gráficas ODEAM Ltda e os
prefeitos situacionistas.
Curiosa era a maneira que por vezes esse auxílio era solicitado. Encontram-se nos
papéis avulsos da Fundação Osvaldo Sá duas petições em que Osvaldo Sá quebra os
protocolos da formalidade e faz a solicitação no formato de soneto ao então prefeito, tenente
da Marinha do Brasil, Antomeu de Brito Souza. Vale a pena ilustrar com um exemplo,
referindo- se à publicação de Ponto nos iii (versos):
Petição
Maragojipe, em três de julho, oitenta.
Senhor Prefeito, cordial abraço
auxílio certo a petição intenta
166
FUNDAÇÃO OSVALDO SÁ - Acervo epistolográfico - Carta de Clóvis Lima a Osvaldo Sá. 1987
FUNDAÇÃO OSVALDO SÁ - Acervo epistolográfico - Carta de Josué Montello a Osvaldo Sá. Rio de
Janeiro, 15 de abril de 1991.
167
70
o autor obter, se o cobre lhe é escasso
pequena ajuda, embora, me contenta
― oferta ao livro em versos, que ora eu traço:
carvão que bem a gráfica alimenta
e assim tirar me possa de embaraço
Lavre Antomeu, despacho positivo,
áureo ou argênteo, de alto Executivo,
Mas que sincero seja no que dá.
Nos meus Pontos nos iii, quero o seu ponto,
O conto, os contos que depois lhe conto
A gratidão do vate. Osvaldo Sá.168
Porém, suas petições nem sempre foram atendidas. Por vezes, o escritor num tom
indignado retratou nos seus livros o indiferentismo do poder local quando se tratava da
publicação de obras literárias. Osvaldo Sá afirmou ter sentido saudades de um tempo em que
não pode viver: “a era dos Péricles ou Mecenas, do Papa Leão X ou do rei Luis XIV, que
protegiam os intelectuais quando lhes batiam à porta.” 169 Das vinte e quatro obras publicadas,
todas possuem uma ou outra referência intelectual em suas contracapas. Assim, Osvaldo Sá,
aos poucos constituía sua reputação e tornava realidade o sonho de ser reconhecido como um
letrado.
Apesar das dificuldades por ele relatadas ao longo dos livros e nas páginas dos
jornais, a persistência não o deixou desistir. O resultado desse não abatimento foram os seus
livros publicados. Dessa produção intelectual trata o capítulo III. Entre as obras de Osvaldo
Sá voltou-se a atenção para as Histórias Menores: Capítulos da História de Maragojipe (I, II,
III- crônicas) e Tempos de Maragojipe (crônicas), cujo conteúdo gira em torno do primeiro
núcleo temático privilegiado, ou seja, a história da cidade e Vala dos Meus Dias (I, II, IIImemórias) e À Sombra do Palmeiral (contos) que figuram na análise como representantes do
segundo núcleo de sua produção, qual seja, a história de sua família.
168
FUNDAÇÃO OSVALDO SÁ - Acervo epistolográfico - Petição endereçada ao Prefeito Antomeu de Brito
Souza. 03 de julho de 1980.
169
SÁ, Osvaldo. Maragojipe Humorístico. Salvador: Empresa Gráfica Oxum Ltda, 1978. p.11; A respeito desse
tema aplicado a contexto distinto ver: CHARTIER, Roger. Formas e Sentido. Op. cit. 2003.
71
Capítulo III
A PRODUÇÃO MEMORIALÍSTICA DE OSVALDO SÁ
1- O escritor e sua prosa.
Maragojipe é o cenário dos acontecimentos que permeiam as tramas das obras
memorialísticas de Osvaldo Sá. Há também os passeios por outros locais onde o escritor
viveu ou passou.170 Vala dos Meus Dias (memórias, 1985,1986, 1989), Histórias Menores:
Capítulos da História de Maragojipe (crônicas, 1981, 1982,1983), Tempos de Maragojipe
(crônicas, 1992) e À Sombra do Palmeiral (contos, 1994), apesar de terem sido escritos em
gêneros literários distintos, compartilham a mesma temática: Maragojipe e episódios da
trajetória da família de Osvaldo Sá.
A rememoração é o principal subsídio usado na escrita das obras, bem como as leituras
de livros das mais variadas áreas do conhecimento, com ênfase nas obras literárias e
historiográficas. Para escrever suas obras, Osvaldo Sá lançou mão da documentação
encontrada nas suas pesquisas acerca da História de Maragojipe, nos jornais, atas da câmara,
livros de atas e testamentos, enfim, fontes históricas que oportunizaram o desenvolvimento
intelectual do escritor, que encontrou na história de sua cidade natal um pretexto para manter
seu prestígio na sociedade maragojipana.
A tradição oral também ganhou destaque na memorialística de Sá. No que se refere à
Maragojipe, o escritor deu destaque para a política local em críticas veladas. Nas entrelinhas,
apresentou suas inclinações políticas, ressaltou genealogias, enalteceu vultos de Maragojipe,
retratou através dos seus personagens a personalidade de maragojipanos(as) em seus detalhes
mais caricatos. Também os seus familiares ganharam as páginas dos livros, ora em situações
cotidianas, ora em situações imaginadas.
170
Destacam-se a cidade de Salvador, o Rio de Janeiro e Muritiba onde viveu durante quase uma década em
movimentos de idas e vindas.
72
2- Nos recônditos da memória
Nas décadas de 1950 e 1980 houve um “boom” de textos memorialísticos, sobretudo
um memorialismo modernista que se tornou extremamente significativo na medida em que
trouxe uma versão mais pessoal para a história recente do país.171 Para Marília Cardoso, que
imprimiu seu olhar acerca das memórias de Joaquim Nabuco, tanto o memorialismo quanto a
autobiografia relatam experiências de uma ótica individualizada dos acontecimentos sociais,
tornando necessário dessa maneira tomar conhecimento do ambiente em que foram
concebidas tais reminiscências, bem como o tempo em que foi possível sua reescrita. 172
Vala dos Meus Dias, já pelo título, dá pistas para identificar os propósitos de Osvaldo
Sá ao escrever suas lembranças mais íntimas. Intimidade que foi revelada conscientemente,
com objetivos claros: fazer conhecer a si e a seu núcleo familiar, bem como suas “propensões
à intelectualidade.”
Por exemplo, a trilogia das memórias do autor difere dos diários por fazer parte dos
gêneros confessionais que não foram escritos para ficar no âmbito do privado. Pelo contrário,
foram escritas para serem apreciadas, e por um público bastante selecionado como pode ser
percebido no capítulo II onde estão transcritas algumas das cartas trocadas entre o autor
maragojipano e renomados escritores.
Vala dos Meus Dias e os demais livros publicados por Osvaldo Sá concretizaram, em
parte, o intento de seu autor: tornar público trechos que considerou os mais importantes de sua
trajetória de vida. Com isso, o nome de sua família também foi resguardado e lembrado. As
memórias recompostas em Vala dos Meus Dias, assim como os contos de À sombra do
Palmeiral, valorizam um tempo pretérito, recobrindo o passado da família do escritor e o
cotidiano da cidade de Maragojipe. Na trilogia de memórias dá-se ênfase aos tempos áureos
da família Sá, ligando-a diretamente ao período em que Maragojipe passava por uma fase de
prosperidade.
Nos contos incluídos no livro À Sombra do Palmeiral, as personagens Candinha e
Bicota são funcionárias da fábrica Suerdieck, principal meio de subsistência da zona urbana
juntamente com a pesca e a mariscagem. O conceito de “memória” utilizado na análise e
empregado pelo autor assume o sentido de evocação, chamamento de lembranças,
reconstituição e recomposição do passado. Nas memórias, a família e os empregados que
171
CARDOSO, Marília Rothier. Auto-Retrato Retocado. Em torno de Minha Formação de J. Nabuco. In: O
Eixo e a Roda. Revista de Literatura Brasileira. Belo Horizonte: vol.6. Julho, 1988. p.63
172
Idem. p.65.
73
serviam aos Sá dão movimento às evocações do escritor. Memória que interessa à História por
abarcar uma série de acontecimentos da história da Bahia e do Brasil, a partir da visão de um
intelectual de pequena localidade do Recôncavo, com ambições e anseios que iam para além
de sua terra natal, Maragojipe. Sua trajetória quando não se confunde se assemelha a de outros
indivíduos que buscaram nas letras um atenuante para a perda gradual de prestígio social
durante as mudanças ocorridas na década de 1930, buscando reparação nas letras.
As décadas de 1920 e 1930 são marcadas pela decadência de famílias patriarcais que
perdiam gradativamente poder econômico e consequentemente respaldo, por conta da
mudança das bases agrárias do país que se industrializava. A solução encontrada pelos filhos
dessas famílias falidas era buscar nas letras e na burocracia estatal uma nova chance de
conservar seu status de “camada privilegiada.” O novo era encarado com justificado receio,
influenciando esses herdeiros a escrever suas memórias, tornando seus livros verdadeiros
relicários que entrelaçam memória, história e literatura, pois aqueles que rememoram acabam
por romancear e dramatizar suas vidas.173 No caso baiano, os intelectuais eram em muitos
casos ao mesmo tempo a própria classe dirigente.174
Sua vida retratada nos três volumes de Vala dos Meus Dias mostra um escritor já com
77 anos buscando em rememorações, explicações, justificativas para sua vocação e talvez
para os percalços que o levaram a estar na condição de um “escritor menor”, apesar de ter se
dedicado e buscado encontrar estratégias que lhe proporcionassem ultrapassar as barreiras
impostas a um autodidata de cidade do interior, visto que em sua terra natal poucos eram os
seus leitores. Seu presumível público leitor na cidade era composto por membros da “elite”
local, pessoas ligadas aos núcleos de poder em Maragojipe.175
A esse respeito o autor rememorou logo na introdução do primeiro livro:
Em Maragojipe, aqui, são poucos os meus ledores, onde muitos eles
deveriam ser. Alguns amigos animam-me, porém, na publicação destes
livros. [...] Não posso, porém, deixar de lamentar o indiferentismo do
professorado local às minhas publicações, com raras e honrosas exceções à
173
Ibidem. p.73.
Sobre os intelectuais e a relação com o poder na Bahia ver: SILVA, Paulo Santos. Âncoras de tradição.
Op.cit.
175
Essa realidade descrita por Osvaldo Sá sobre a sua condição de escritor dentro da cidade foi tema de um
conto intitulado “Um escritor nasce e morre”, de Carlos Drummond de Andrade, acerca da aceitação de suas
obras em Minas Gerais. Vejamos um trecho significativo: “Escrevi muito, não me pejo em confessá-lo. [...] É
verdade que Turmalinas me compreendia pouco, e eu a compreendia menos. Meus requintes espasmódicos eram
estranhos a uma terra em que a hematita calçava as ruas, dando as almas uma rigidez triste [...]. ANDRADE,
Carlos Drummond de. Contos de aprendiz. Prefácio de José Castello. 47ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.
pp.149-153.
174
74
regra, parece a esquivança um propósito, e, fogem à leitura delas as mestras
primárias, como que raciocinando dessa maneira:
― Esse Osvaldo Sá nunca aprendeu nada. 176
Por vezes o autor é contraditório em suas memórias. Ao longo de sua narrativa
intitula-se “simples escrivão de cartório”, “rabiscador de cidade interiorana.” Tais
características são usadas de acordo com a necessidade do escritor. Ser um autodidata
funcionou para o escritor tanto como um autoelogio quanto uma condição que o desfavoreceu
ao longo de sua trajetória intelectual, a exemplo do pouco crédito que as professoras do
ensino primário da cidade teriam dado às suas obras.
A ligação da família Sá ao núcleo de poder estadual também foi evocado nas
memórias. Osvaldo Sá se reportou a acontecimentos da história recente da Bahia, quando
tratou da posse de Seabra em 1912: 177
É irrefutável a minha reminiscência aos três anos porque uma delas se
vincula a um fato histórico da Bahia, em janeiro de 1912, quando as forças
federais sediadas na cidade do Salvador, apoiando as pretensões de J.J.
Seabra, venceram a resistência da polícia estadual e, assim, proporcionaram
a posse daquele viril e astucioso homem público, no governo desta Unidade
da Federação (grifos nossos).178
Osvaldo Sá visivelmente ancorou suas lembranças em acontecimentos históricos.
Apesar de não poder descartar a hipótese de sua memória ter fincado essa lembrança, é muito
pouco provável que com 77 anos tivesse tal imagem tão nítida. A memória é por natureza
frágil. Percebe-se que sua memória assumiu o caráter social, reproduziu aquilo que ouviu e
incorporou como seu.179
A esse respeito, o autor justificou:
Deveras vacilei antes de me haver enternecido nas páginas apreciáveis de “O
Caminho do Triunfo” de Vargas Vila, nas de “Infância” de Gilberto Amado,
e nas de outros memorialistas, deveras vacilei em discorrer a respeito de
eventos a que assisti e que se me gravaram indeléveis na retentiva, com
apenas três anos de idade. Mas aqueles renomados autores me animaram em
176
“Inquietação ante o bombardeio.” SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol. I. São Félix: Editora ODEAM,
1985. p.07.
177
A respeito desse período da história baiana. Cf.: SAMPAIO, Consuelo Novais. Os partidos políticos da Bahia
na Primeira República: uma política de acomodação. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 1998.
p.109.
178
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol. I. Op.cit., p.09.
179
BOSI, Ecléa. Apresentação. In: Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. 3ªed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994.
75
suas revelações, a que eu também afirmasse como afirmo, com a mesma
idade das suas, as recordações desse evanescente arrebol da vida, quando a
alma se alenta só de pura e risonha inocência . 180
Outra lembrança recorrente em Vala dos Meus Dias é a Guerra de 1914. Osvaldo Sá
tinha seis anos, ainda morava em Salvador, e relembrou na narrativa os hábitos de sua casa.
As notícias da guerra vinham através dos jornais diários e das revistas ilustradas adquiridas
pelo pai, ou mesmo pelo sistema de comunicação mais eficaz daquela época, o telégrafo. Suas
lembranças acerca do tema são importantes, na medida em que trazem à tona, detalhes sobre
as expectativas, a recepção das notícias e os efeitos do conflito bélico sentidos na capital
baiana. Na casa dos Sá, a deflagração era pauta de discussão familiar:
O ramerrão doméstico intranquilizou-se. Houve falta de várias mercadorias
de muito uso mais ainda importadas àquela época, e acentuava-se o aumento
do custo de vida [...]. As opiniões em casa se dividiam, até o dia em que o
Brasil começou de particular daquele massacre apocalíptico [...] Bem
criança, ainda de camisolinho branco, sem nada entender de tais loucuras
humanas, eu me mantinha indeciso, tal como se manteve a Itália, no inicio
da luta, até que afinal me afeiçoei daquela Itália de Victor Emanuel, o que
me valeu uma série de chacotas e arrelias dos manos maiores. ― Esse é
macarroni ― diziam e apontavam pra mim. Até meu pai ria-se de minha
preferência, porque se conhecia o soldado italiano como uma sopa. Não se
mostrava ele hábil nas matanças pavorosas (grifo do autor). 181
E conclui:
Ora não me constrange aquela minha decisão pueril. Nunca me simpatizei
com qualquer espécie de militarismo, e hoje só creio na paz entre os homens
se extinguido os exércitos e se destruindo as armas.182
Em Sangue do Mundo, livro anterior à publicação do primeiro volume de suas
memórias, essa aversão às armas e as guerras tornou-se tema dos versos.183 Obra de onde
extraiu-se trechos de longa poesia denominada “Destruam-se as armas”, que ilustram em
verso a opinião do escritor:
A Alva Bandeira desfraldemos bela
para que o mundo todo a tenha ativa
180
Ibidem. p.09.
Idem. p.63.
182
Ibidem.
183
SÁ, Osvaldo. Sangue do Mundo. Salvador: Editora ODEAM, 1984.
181
76
― da Paz, nenhuma igual aos louros dela
[...]
Que venham braços mais à usina, ao prado,
E acabe tudo que incremente a guerra
Neste hediondo mundo armado.184
O escritor tratou em suas rememorações e no seu poema de uma das bases que
sustentou a I Guerra: o militarismo. 185 Osvaldo Sá rememorou e se valeu de fatos históricos
para evocar lembranças e consentir a elas um “sentido de verdade.”
Como tenho dito só verdades, e são elas o valor único destas reminiscências,
creio que a ninguém vem elas ferindo [...], porém, eu lhes digo leitores
pacientes, em determinadas lembranças, hei de modificar os nomes a certas
personagens. Em alguns casos, é evidente. Acontece que sobrevivem
parentes delas, dão com os nomes dos defuntos nestas linhas, e por serem
reminiscências tão vivas, se desgostam disto e, no mínimo, me endereçam
palavrões, embora inexista aqui, qualquer má versão, apenas o ânimo
narrativo, e com ele prosseguirei. 186
3- Entre o campo e a cidade
Outra característica que foi possível identificar na análise e que se configura nítida nas
memórias do autor é a relação que se estabelece entre o campo e a cidade. O campo é
representado pelas vivências na fazenda Água Fria e sua ligação com a natureza do lugar
aparece na narrativa como sinônimo de liberdade e inspiração e, sobretudo, reafirmação de
sua genealogia. No livro Evocação (1976) essa herança no sentido mais abrangente da
palavra, tem lugar de destaque, a exemplo desses versos intitulados “Resíduos”:
Os meus avós Pinto Coelho
Eram senhores de engenho
Tinham escravos às pampas
e de moer muita cana
184
SÁ, Osvaldo. Sangue do Mundo. Op.cit.
Segundo Paulo Santos Silva, a análise combinada entre o militarismo, o nacionalismo e a disputa por mercado
e zonas de influência propicia maior entendimento acerca do conflito que contribuiu para explicar tanto o século
XIX quanto o século XX, tendo em vista suas repercussões que foram sentidas para além dos países europeus.
SILVA, Paulo Santos. Uma história da primeira guerra mundial. Salvador: Quarteto, 2003.
186
Prefácio. SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol. I. Op.cit.,1985.
185
77
De bois — dez possantes carros
chiando como cigarras
sobre o chão de massapê
lá na fazenda “Traíras”187,
E muitos meses, gemiam
as rudes rodas do engenho
a triturar toda a safra
e se tornava em açúcar
e sofrimento afanoso
em claucos canaviais
Levavam veleiros barcos
o doce pra Bahia
a Salvador destinado
deixando a borra no Engenho...
E aquele doce exalava
a volúpia das senzalas
desejo e amor instintivos
de raças que se cruzavam
e em tal miscigenação
ainda trago no sangue
aquelas ânsias dos tempos.
Tornou-se o engenho em ruínas
das canas já não há socas,
os cativos acabaram-se
ao clarão da Liberdade
têm as terras outros donos,
Os carros surgem apenas
nas cores das velhas telas.
somente ainda nas veias
corre o sangue do passado
E eu lhe abafo simplesmente
os ímpetos e os assombros (grifos nossos).188
Os avós eram servidos por negros escravizados. Negros apresentados por Osvaldo Sá
em outros momentos reproduzindo a ideia de que esses indivíduos deixaram como maior
herança a sensualidade. Suas marcas na sociedade maragojipana se fizeram sentir apenas na
culinária, na fala e na mistura que deu origem, segundo Osvaldo Sá, ao povo maragojipano. A
representação do negro em suas obras é permeada por uma concepção folclórica. O branco
europeu foi quem instituiu na sociedade o caráter civilizatório e progressista. Ainda criança,
afirmou ter escutado as estórias do cativeiro narradas por filhos e netos dos ex-cativos que
trabalhavam na fazenda.189 Quando evocou o tempo que passou nas terras do antigo engenho
187
Um dos primeiros nomes da Fazenda Água Fria.
“Resíduos”. SÁ, Osvaldo. Evocação. Maragojipe: Gráfica Irmãos Peixoto Ltda, 1976. pp.70-71.
189
“Estórias de Benjamin”. SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol. II. Op.cit., pp.91-93.
188
78
Água Fria, tratou de temas comuns a escrita memorialística e que são abordados em outras
obras suas, a exemplo das heranças dos colonizadores da América Portuguesa e os seus
desdobramentos.
Segundo Maria Arminda Nascimento, tratando da escrita memorialística em Minas
Gerais, a infância é tomada por quem rememora como um ponto crucial, funcionando “como
um repositório das promessas irrealizadas [...] um abrigo para desventuras.” 190 As lembranças
infantis são um bálsamo para Osvaldo Sá, tendo em vista que seu presente, ou seja, o
momento da escrita, não lhe era favorável. Daí o escritor tratar com saudosismo os tempos de
criança. Em 1985, quando publicou o primeiro volume de memórias, Maragojipe permanecia
sem gráficas e editoras e os problemas financeiros do autor maragojipano persistiam.
De acordo com a autora, essa nostalgia faz com que o indivíduo que rememora
conceda um exacerbado valor a locais, a objetos e, sobretudo, a pessoas que conviveram e
partilharam dos seus dias e momentos da infância.191 Essas características são marcantes em
obras memorialísticas que reproduzem uma visão tradicionalista e conservadora do mundo,
obras que tem raízes locais. Nessas, a infância e juventude são incorporadas pelos
memorialistas, à semelhança de Osvaldo Sá, como momentos privilegiados de suas vidas. 192
A vida adulta e a velhice para o escritor maragojipano está refletida na imagem sugerida pelo
título que deu a sua trilogia de memórias: uma vala onde deposita suas lembranças.
Osvaldo Sá, para tornar significativa a sua trajetória de vida, a insere num
entrelaçamento de outros significados mais amplos. Seus relatos exprimem sensações das
mais diversas. São desencontros, decepções, mas algumas vitórias, a considerar, os seus livros
publicados.
Muitas são as incursões na memória, incursões que se valem de forma recorrente do
esquecimento. Esse movimento inerente à memória é utilizado por vezes na intenção de
agenciar novas fontes durante a reescrita da narrativa de lembranças e agregar conteúdo às
lacunas que se abriram com o passar dos anos.193
Em suas evocações o autor valoriza a natureza. Natureza que aparece representada
mais ou detidamente na totalidade de suas obras. São rememorações que trazem de volta o
ambiente da fazenda Água Fria. Reminiscências dos tempos áureos, de quando a fazenda
190
NASCIMENTO, Maria Arminda. Minas: Tempo e Memória.Op. cit. p.27. A esse respeito ver também; BOSI,
Ecléa. Os espaços da memória. In: Memória e Sociedade; lembranças de velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994.
191
Idem. pp. 28-30.
192
Ibidem. p.33.
193
BOSI, Ecléa. Apresentação. Op.cit.,1994. Consultar também: POLLAK, Michael. Memória, esquecimento,
silêncio. Op.cit. 1989.
79
ainda guardava resquícios dos tempos em que mantinha em seu interior um engenho. A esse
respeito, demonstrando conhecimento acerca do manuseio da maquinaria rudimentar, mais na
teoria que na prática, tendo em vista que era filho dos patrões, valendo-se no momento da
escrita de suas leituras e de pesquisas sobre o Recôncavo açucareiro, Osvaldo Sá descreveu:
A engenhoca ficava um pouco abaixo, à margem da Tijuca, coberta de folhas
de zinco sobre esteios. As moendas se compunham de três cilindros em
sentido vertical. Acima da fornalha, quatro tachas de tamanhos vários
ferviam o caldo, em cozimento até o ponto de se passar as fôrmas (...) E
chiavam e gemiam aqueles paus trançados e acunhados, premidos em três
cilindros de ferro em movimento circular à força dos bois possantes, como
se sentissem a tortura dos caules que eram empurrados, por mãos fortes e
hábeis, de entre aquele aparelho rodando em ciranda mansa e calculada, para
194
esbagaçar altos montões de canas.
A fazenda é para o escritor um “lugar de memória,” representa um passado de
bonança. A casa, o antigo engenho, a animália, as árvores, os rios, tudo é utilizado pelo autor
para situar o leitor no ambiente em que viveu. 195 Os espaços são sempre valorizados pelo
escritor que se preocupou com ambientação de suas narrativas, de modo a auxiliar seus
possíveis leitores a viajar por entre os seus relatos. O autor buscou elementos que agregassem
à suas memórias a verossimilhança, para tanto, ancorava suas evocações na história.
Rememorar para Osvaldo Sá ia muito além de buscar registros que se cristalizaram com o
tempo.
Ao refletir acerca das ideias presentes na obra de Evelina Hoisel sobre a escritura
biográfica de Guimarães Rosa, pode-se afirmar que Osvaldo Sá também utilizou o livro para
dramatizar sua história. 196 Abriu os arquivos de um passado que buscou reconstituir,
apresentando aquilo que ficou registrado a partir da seleção que o próprio tempo operou,
relembrando os momentos vividos, cercando-os de detalhes e reflexões que só puderam ser
realizadas no tempo da escrita de sua narrativa. Presente e passado, passado e presente se
misturam e transparecem nas lembranças dessa figura que serve de exemplo no que tange ao
entendimento do que é ser escritor numa cidade do interior da Bahia.
194
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol. II. Op.cit. p.53.
NORA, Pierre. Entre memória e história. A problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, nº 10,
pp.7-28, dez.1993.
196
HOISEL, Evelina. Grande Sertão: Veredas – uma escritura biográfica. Salvador: Assembléia Legislativa do
Estado da Bahia; Academia de Letras da Bahia, 2006.
195
80
Osvaldo Sá construiu a representação de um passado em prol de interesses do presente.
Nesse aspecto, sua obra pode ser vista à luz das interpretações correntes acerca do tema. Para
Ecléa Bosi, o indivíduo conserva de seu passado as lembranças que são mais apropriadas a
ele. Aquilo que lhe propicie a sensação de conforto e que ao ser retratado apareça
reconfigurado e adequado à situação que motivou as evocações. 197
Pierre Nora discute as aproximações da História com a Memória, bem como os seus
pontos de afastamento. Ambas são modos de representar o mundo. No entanto, se opõem
entre si. A história, para Nora, significa a representação do vivido. A memória é para ele a
própria vida. A história se apresenta como uma reconstrução problemática do que foi
escolhido para ser rememorado centrada num passado. A memória é, para o autor, um
fenômeno que liga o vivido ao presente de quem rememora. 198
A memória se retroalimenta de lembranças, a história é considerada uma operação que
requer o discurso crítico.199 No registro memorialístico de Osvaldo Sá a memória é utilizada
como uma justificativa. É buscada para legitimar o presente e explicar a situação em que se
encontrava no momento da publicação da trilogia de memórias.
De acordo com Le Goff, é na memória que surge a história e “que por sua vez a
alimenta e procura salvar o passado para servir o presente e o futuro.”
200
Osvaldo Sá evoca
lembranças que lhe ofereceram subsídios para compor seus livros. Suas experiências e modo
de ver o mundo foram transpostos em seus escritos, nos recortes que fez na história de sua
cidade natal, recortes que foram parte de sua própria história.
O rememorar para o escritor maragojipano era um ato de autopreservação. Porém,
quando evocava, buscava apoio numa memória que extrapola a instância individual. Outros
indivíduos dão coesão às lembranças. 201 Quando representa a si, representa o seu meio, o
contexto que se viu inserido desde a infância até a velhice. Suas lembranças são partilhadas
por uma ou mais pessoas.202 O trecho abaixo evidencia essas considerações:
Foi tal o toque de festa, a acolhida de modo geral, que obteve “Vala dos
Meus Dias”, vol. I, que me atingiu a alma. Os familiares se pronunciaram
com alegria e admiração. Irmãos que me superam em anos, abriram a sua
crítica em minudências. Um observou: ― Você falou de João Nino, mas o
197
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. Op.cit. p.68.
NORA, Pierre. Entre memória e história. Op.cit.1993.
199
Idem.
200
LE GOFF, Jacques. Memória. In: História e Memória. São Paulo: Editora da UNICAMP, 2003. p.19
201
NASCIMENTO, Maria Arminda. Minas: Tempo e Memória. Op. cit. 1988.
202
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Op. cit. 1989. Ver também MANNHEIM, Karl.
Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1968.
198
81
homem era João Lino. Outro retificou: ― A vaca “Lavadeira” não era péduro. O pai recebera, ainda bezerra, de um amigo chegado do Sul. Tinha a
vaca sangue de “holandesa”. E ainda: ― Os Torres soltaram também balões
à noite, lindamente iluminados! Lapsos, assim, diminutos, que não foram
senão a confirmação de fatos idos e vividos, então mais espertos. 203
No momento em que recupera lembranças, Osvaldo Sá, enquanto indivíduo, acaba por
também operar a recuperação da memória vivida em coletividade. Lembranças que terminam
por conferir “relevo social” ao próprio indivíduo que rememora. 204 Apesar do autor buscar na
história um apoio cronológico, acabou por ordenar os acontecimentos guardados na memória
numa temporalidade que é característica da reminiscência. Em Vala dos Meus Dias o ato de
rememorar figurou como oportunidade de reflexão, do escritor pensar acerca de sua condição
enquanto intelectual ciente das dificuldades que marcaram sua própria história. 205
Nas memórias também foi o momento do escritor veladamente assumir sua posição
política. Era contrário à ação dos militares no país. Em capítulo do primeiro livro de
memórias, denominado “As Caridades”, onde aludiu às visitas que fazia juntamente com a
mãe ao Asilo dos Expostos, no Campo da Pólvora em Salvador, o autor insinuou suas
inclinações socialistas em crítica à política de cerceamento de liberdade característica do
governo militar, desde 1964, usando elementos de sua infância para traçar analogias. O asilo
era cercado, segundo o escritor, de árvores frutíferas, entre elas a pitangueira:
Do “Asilo” à entrada, estendiam-se longas sebes de pitangueiras bem
cuidadas, em forma de “M”, em louvor, é evidente, a Maria, mãe de Jesus.
Costumava à saída, de apanhar com uns gadanhos ágeis, algumas pitangas,
rubras e reluzentes, bonitas como rosas de rubi em miniaturas, conquanto
mãe reclamasse, observando que, se eu fosse flagrado a praticar aquele ato
não consentido, seria logo cassada a minha visita àquela casa. Não entendi à
admoestação materna, porque caçada, lá na fazenda, se dizia de coisa bem
diferente a respeito de bichos, nem tinha eu já compreensão para distinguir
convenções ortográficas, nem tampouco se achava em voga a cassação tão
vulgarizada no período de exceção, em nosso país, com a política
militarizada, que se iniciou em 1964. Mas em me notando aturdido, mãe
explicou-me infantilissimamente, o que vinha a ser o meu ingresso cassado.
E eu temi, e evitei a tentação daquelas pitangas atraentes e vermelhas,
porque as verdes jamais me seduziriam, em toda a minha idade (grifos
nossos). 206
203
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias.Vol.II. Op.cit., p.15.
NASCIMENTO, Maria Arminda. Minas: Tempo e Memória. Op. cit., p.29.
205
Idem. p.43.
206
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol. I. Op.cit., p 71.
204
82
Em outro momento, já no segundo livro, aproveitou-se das leituras de autores como
Gilberto Freyre e Olavo Bilac, o segundo muito apreciado pelo escritor de Maragojipe, para
emitir sua opinião sem chamar atenção num primeiro momento:
[...] É isso aí, o bonde foi elemento socializante e anti-racista, no Brasil.
Concorreu ele, grandemente para a aproximação, o entendimento e até o
amor entre as raças diversas que, há séculos, se vão amalgamando e gerando
este povo bom e de importante responsabilidade no futuro do gênero
humano: o brasileiro. Sem preconceitos, após a Abolição, sentava-se em seus
bancos toda a gente [...] ― Olha à direita! Bradava o condutor, quando o
veículo se aproximava de poste ou parede! Olha à direita. A crase apagou-se
e um dia lhe veio tal duradouro pesadelo, essa “direita”, que bem ainda não
se diluiu e que os nossos ideólogos de fancaria herdaram de Franco, Hitler,
Mussolini. Olha à direita: perigosa sempre quer na exiguidade de um carro,
quer na imensidade de uma nação (grifos nossos) 207
Osvaldo Sá revelou ser afeito às ideias socialistas. Criticava o militarismo, mais
sempre de forma indireta, sem atacar alguém ou instituição especificamente. Essa posição de
relatividade foi alvo de crítica no jornal Arquivo, onde atuou. Segundo Bartolomeu
Americano, proprietário do Arquivo, Osvaldo Sá evitava emitir opiniões que desagradassem
quem quer que seja, por vezes, omitindo-se em relação às querelas sobre a situação política do
país que ressoavam em sua cidade natal.
A intenção de Vala dos Meus Dias é a manutenção das tradições, mais ainda, de
recuperação de tradições e salientá-las. Outra característica perceptível é o tom conservador
das opiniões expostas nos livros quando o Osvaldo Sá abre espaço para reflexões acerca do
vivido. A sombra da decadência e a busca por uma posição mais confortável na sociedade
maragojipana permeia toda a trama memorialística. Sua família acabou por tornar-se
mediadora dos conflitos internos do autor. Há momentos em que a memória assume um
caráter confessional:
Não galguei um ápice em imensa cordilheira, mas também não me quedei tal
um molusco em seu invólucro calcário. Nestas memórias, dito tenho tudo e
direi ainda mais, quanto à minha vida literária, de seus percalços, dos
momentos alentadores, da carência de companheiros que se identificassem
com as minhas tendências, até que, afinal, alguns diretores me abriram as
portas de seus jornais e, aparecendo em suas colunas o meu nome, talvez por
isso não me apagaram as chamas que ainda agora me aquecem e
brandamente me iluminam o intelecto.208
207
208
SÁ, Osvaldo. Vala dos Meus Dias. Vol.II. Op. cit., p. 19.
Ibidem. p.30.
83
Outra peculiaridade em Vala dos Meus Dias é a relação estreita entre a história e a
memória, sobretudo quando rememora os tempos passados no Rio de Janeiro e relata o
contexto político que se deparou durante os anos de 1929-1931.
4- Para além das terras maragojipanas.
No capítulo “Não há vaga” Osvaldo Sá aproximou o leitor das dificuldades e das
mudanças que assolavam o Rio de Janeiro em momentos de centralização do poder. Com o
escritor, cartas de recomendação para antigos correligionários do seu pai, o engenheiro e exintendente Julio Sá. Entre as cartas apareceram nomes de destaque na política baiana das
primeiras décadas do século XX: J.J. Seabra e Moniz Aragão evidenciando a relação estreita
de sua família com as antigas lideranças políticas estaduais. 209
Segundo o autor, essas cartas “eram portadoras de esperanças.” A ida de Osvaldo Sá ao
Rio de Janeiro e sua fixação naquela cidade permitiu entrar numa questão que permanece em
constante debate: o papel do intelectual nos anos 1930.210 Osvaldo Sá publicou seu primeiro
livro em 1935. O escritor escolheu versos que foram escritos em parte no Rio de Janeiro, onde
foi buscar emprego, possivelmente embebido de esperanças de iniciar a carreira literária. No
momento em que rumou para a capital da República, a carreira de ficcionista estava sendo
impulsionada pelo crescente mercado de livros do gênero.211 Em Maragojipe, Osvaldo Sá
dava seus primeiros passos na poética e no jornalismo. Iniciar uma carreira de romancista
seria um caminho possível.
Os romances ganhavam notoriedade e os escritores acabavam por investir no gênero em
busca de estabilidade. Esses escritores eram, segundo Miceli, letrados de pequenas
localidades que estavam distantes dos grandes centros que concentravam as expressões
intelectuais e literárias. Letrados autodidatas que não dispunham de recursos técnicos e
209
SAMPAIO, Consuelo Novais. Os partidos políticos da Bahia na Primeira República. Op.cit., 1998.
Essa inserção dos intelectuais no aparelho do Estado é objeto de reflexão, sobretudo, quando se refere às
implicações da “Revolução de 1930” e suas políticas culturais. Dois autores e suas respectivas obras merecem
destaque: Sérgio Miceli (1979) e Daniel Pecaut (1990).
211
MICELLI, Sérgio. Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil.(1920-1945). Op.cit.,1979.
210
84
financeiros para publicar e acabavam por divagar entre os gêneros que estivessem caindo no
gosto do mercado editorial e que angariasse certo prestígio e capital cultural. 212
Nos finais dos anos de 1930, o Rio de Janeiro, Minas Gerais além de São Paulo
concentravam cerca de 59% das instâncias de produção de bens culturais. Entre os gêneros
literários, a prosa de ficção tinha destaque nas vendas. Mudanças positivas também marcaram
a conjuntura dos fins dos anos de 1940. Na década seguinte, segundo Daniel Pecaut, os
intelectuais se colocaram a serviço do “conhecimento da realidade nacional”. Essa disposição
não era gratuita, esses intelectuais precisavam estar atentos a essa “realidade”, pois se
colocavam como aqueles que tinham domínio dessa tão quista identidade nacional. 213 Era o
momento de “redescobrir o Brasil”. 214
Pode-se exemplificar com a possibilidade encontrada por alguns escritores de viver
apenas do trabalho intelectual, um grupo restrito, mas que se consagraram na atividade que
desenvolviam, a exemplo dos baianos Jorge Amado e Pedro Calmon. 215 No entanto, Osvaldo
Sá, não fazia parte desse grupo seleto. Nem ao menos conseguiu se aproximar dos círculos
intelectuais mais importantes da capital, retornando em 1931 para Maragojipe cheio de
frustrações. O jovem escritor vindo de cidade do interior ― tendo apenas a formação primária
e um certificado de curso de datilografia ― se percebeu impotente em meio às mudanças que
ocorriam na capital do país.
Segundo Daniel Pecaut, os escritores por volta dos anos 1930 se mobilizavam para se
aproximar das elites, porém, deveriam ter o domínio do conhecimento valorizado naquele
momento específico, nesse caso, recorriam às ciências sociais. Esses intelectuais estavam
sofrendo as desilusões republicanas que iam para além da ruína das oligarquias rurais. A
política de apadrinhamento já não era mais garantia a quem buscava função em cargo público
ou mesmo na esfera privada. 216 Osvaldo Sá, todavia, creditava o seu insucesso a outros
fatores, mais psicológicos que políticos.
Em 1930, os intelectuais eram considerados funcionários públicos privilegiados,
tornando parte importante dos ideais pregados pelo Estado.217 Em seu retorno à Bahia,
Osvaldo Sá é uma evidencia que reforça essa assertiva.
212
MICELI, Sérgio. Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil.(1920-1945). Op.cit.
PECAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.
214
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974). São Paulo: Editora Ática, 1985.p.48.
215
No caso de Pedro Calmon, por exemplo, nos anos 1930, já ocupava uma cadeira na Academia Brasileira de
Letras. Cf.: CALMON, Pedro. Memórias. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1995.
216
PECAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil. Op. cit.
217
Podemos citar nomes importantes da literatura no país, como Mário de Andrade, Carlos Drummond de
Andrade, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos entre outros. FLORENT, Adriana Coelho.
Roupa suja se lava em casa: Graciliano Ramos, escritor e comunista na era de Vargas. In: RIDENTI, Marcelo.
213
85
Segundo Silviano Santiago, desde meados dos anos 1922, as análises privilegiavam os
gêneros considerados nobres, como o poema, o romance e o conto, em detrimento da crônica,
do texto autobiográfico e o memorialístico, por exemplo. 218
Os escritores modernistas escreveram suas memórias, porém elas se restringem à
infância em famílias patriarcais. De acordo com Santiago, os demais gêneros da vasta
literatura brasileira, sobretudo a memorialística, ficou por anos relegados a segunda ordem. 219
Nessa abordagem, a discussão está centrada em oito livros em prosa, que variam entre os
gêneros acima citados.
As memórias Vala dos Meus Dias, em seus três volumes, são ricas em minúcias que
apresentam características físicas dos espaços frequentados pelo escritor maragojipano, os
aspectos socioeconômicos, psicológicos e morais. Nesse sentido, as memórias auxiliam o
autor a construir uma imagem de si através das lembranças.
Em Vala dos Meus Dias, Osvaldo Sá acaba por reencontrar a si num movimento de
reavaliação do vivido e de suas consequências. Usando a 1ª pessoa do singular, Osvaldo Sá
empreende uma tentativa de não esquecimento. Salvaguarda sua formação familiar e
representa-se num autorretrato com suas feições mais aprazíveis. Restringir a trilogia de
memórias ao caráter autobiográfico é perder de vista detalhes importantes. Vala dos Meus
Dias não pode ser enquadrada literalmente no que se entende por autobiografia. Osvaldo Sá
buscou evocar recordações que envolvessem pessoas e fatos que lhe concedessem notoriedade
enquanto escritor na posteridade, conforme assinalou em versos: 220
[...] Continuarei presente
No verbo ou nos meus versos
Vivendo
E outras pessoas
Ainda me conhecerão
E me amarão talvez
As que antes não me amaram
É o destino daqueles que se vão
E não se enterram as idéias [...] 221
BASTOS, Elide Rugai. (orgs). Intelectuais e Estado. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.p.144. Ver também:
SANTIAGO, Silviano. O Intelectual Modernista Revisitado. In: O Eixo e a Roda. Revista de Literatura
Brasileira. Belo Horizonte: vol.6. Julho, 1988.p.09
218
Idem. pp. 09-10.
219
Ibidem. pp.11-12
220
BARROS, Myriam Moraes Lins de. Memória e Família. vol.2, n.3. Rio de Janeiro: Estudos Históricos, 1989.
pp. 29-42.
221
Poema “A morte”. SÁ, Osvaldo. A Humilde Musa. São Félix: Editora ODEAM Ltda, 1988.p.108.
86
No gênero memórias a narrativa não é centrada essencialmente no narrador, o que já
afasta a narrativa do estritamente autobiográfico. Os eventos passam a ter importância quando
em sua trama estão envolvidos outros indivíduos, a exemplo dos familiares. No relato
autobiográfico a narrativa é centrada na personalidade do individuo que narra a si mesmo. O
memorialismo é, portanto, um entrelaçar de memórias interpretadas, de reflexões do vivido a
partir de uma visão de mundo que é partilhada por um grupo.222
O gênero autobiográfico tem em comum com o texto memorialístico a narrativa
baseada no tempo. O espaço é outro elemento fundamental na construção dos textos cuja base
é a memória. A ambientação dá subsídios ao ser que rememora e define as características das
reminiscências. 223
A narrativa de Vala dos Meus Dias é caracterizada por reconstruções mnemônicas de
tempos pretéritos, que à luz do presente, tende a justificar uma vocação, reparar as decepções,
como a volta do Rio de Janeiro sem o tão almejado emprego, buscando a realização de metas
ainda inalcançadas, daí as suas rememorações estarem calcadas em ocasiões que marcaram
sua infância e juventude.
4.1-
Entre memórias e a História.
De À Sombra do Palmeiral, dividido pelo autor em um prólogo e mais três partes, para
os fins desta abordagem, interessa a primeira, intitulada “Lenda e História”, pois agrega temas
que se repetem nas demais obras citadas e escolhidas para serem analisadas. Há dois contos
que merecem destaque pela historicidade e pelo afloramento da licença poética do escritor. O
primeiro deles dá título ao livro e o segundo intitula-se “A Igreja de Bartolomeu Gato.”
No primeiro conto, o período histórico escolhido foi o colonial, na época da doação da
sesmaria a Duarte da Costa. As lacunas encontradas na documentação que utilizou em outros
livros foram preenchidas pela imaginação a partir de analogias que dão coerência ao conto.
A narrativa é romanceada, conforme é possível observar no seguinte trecho, fazendo
referência ao donatário da sesmaria e da suposta relação amena do português com os
indígenas que habitavam a região:
GARCIA, Celina Fontenelle. O papel da memória na escrita autobiográfica. Revista de Letras. nº 25.
Vol.1∕2. Jan∕dez.2003.p.21. Disponível em: www.revistadeletras.ufc.br∕rl25Art03.pdf. Acesso em: abril de 2013.
223
OLIVEIRA, Maria Eugênia Dias de. O espaço da memória em Carlos Drummond de Andrade. In: O Eixo e a
Roda. Revista de Literatura Brasileira. Belo Horizonte: vol. 6. Julho, 1988.p.147.
222
87
Era ele um capitão luso, enfim, com suas armas, os seus escudos, com os
seus guardas de vermelho e verde à cinta ― a espada e, em mãos o arcabuz
em defesa do amo. As mocinhas indígenas se seduziam ante as novidades
que surgiam com aquele varão desconhecido, diferente de seus
companheiros, no traje, no falar, na pele, nos modos. Ele, altivo, generoso,
namorava as que lhe vinham encontrar, e, se assim comunicando às índias,
dando-lhe adeuses, abraçando umas, beijando outras apenas, elas com as
vergonhas guardadas de penas bonitas, furtadas às aves. 224
Nesse conto, há espaço para o escritor demonstrar sua percepção acerca dos
indígenas, sempre descritos, bem como os negros, sob moldes de uma historiografia que
favorece o elemento branco, desqualifica o negro e o indígena reduzindo sua influência,
restringindo a aspectos folclóricos. Esses elementos da história utilizados por Osvaldo Sá são
recorrentes e expostos da mesma maneira em outras obras memorialísticas, cujo substrato é
uma memória que se pretende social, que salvaguarda episódios pretéritos considerados
gloriosos pelas localidades, que em sua maioria, tiveram sua história deixada à margem da
historiografia oficial, figurando apenas como apêndices.
Dessa maneira, esses memorialistas sentem a necessidade de fazer um “resgate” de
documentos avulsos e torná-los inteligíveis à sua maneira. Sendo, portanto, indispensável
atentar para a parcialidade dessas narrativas carregadas de intencionalidades. Nesses capítulos
de história local, esses memorialistas reforçam as melhores características da terra natal e
ajudam na manutenção de suas histórias individuais que poderiam perder-se no tempo.·
Osvaldo Sá foi herdeiro de terras de um antigo engenho, portanto, possivelmente observava a
história sob este ângulo.
A natureza circundante da cidade também é recorrentemente abordada por Osvaldo
Sá. As palmeiras que caracterizaram a paisagem local num passado recente é um dos aspectos
mais prestigiado pelo escritor, nomeiam seu livro, bem como seus versos espalhados em
várias de suas obras. No livro Evocação, escreve uma espécie de “Canção do exílio”, bem ao
estilo de Gonçalves Dias, adaptando o conteúdo a realidade maragojipana, como é possível
perceber no trecho extraído:
Minha terra tem palmeiras
Tem morenas bem faceiras
E a flor do maracujá
Tem o chão de velho uso
224
SÁ, Osvaldo. À Sombra do Palmeiral (contos). Cachoeira: Editora Gráfica Paraguaçu, 1994. p.17.
88
Mas um dia disse o luso:
― Tudo em se plantando dá.225
No conto intitulado “Quita, o céu e a terra”, em homenagem a sua irmã Maria Emília
apelidada em família de “Quita” o autor reproduziu mais impressões sobre elementos que
compõem a paisagem natural de Maragojipe, bem como a percepção sobre os habitantes da
cidade, tendo como parâmetro leituras de sua tradição católica, herança da avó materna, Inês.
Na narrativa, mantinha-se como expectador crítico da realidade do lugar onde nasceu. Nesse
conto fica explícito que a tentativa de desvencilhar a história local da trajetória familiar do
escritor é apenas didática:
Corria alegre, Quita em seu quintal de flores ou, fora dele em ruas de jardins
da pequena cidade ribeirinha, muito cheia de pessoas crédulas, até meio
ingênuas, como se vê sempre em todo este imenso país. São essas pobres de
espírito e cheias de fé que povoam o céu, na forma proclamada no verbo dos
Evangelhos.
Gente atenciosa à palavra do vigário, homem que distribui o pão e ingere o
vinho, resignado e sóbrio. Menina bondosa Quita, sete anos de
contentamentos, sadia, apenas com uns dias de peripécias, somenos, de
sarampo e das cataporas, mas, que, não lhe deixaram marcas na pele, só
breve relembranças do confinamento em quarto arejado, onde espreitava
sorrateira e ligeiramente, cenas que passavam, às vezes, pela rua, cães
farejando latas de lixo, ou molequinhos apedrejando aos gritos de desabafo,
demonstrando, já, os desentendimentos e a rivalidade que existe entre os
viventes de todas as idades. [...] Certa feita, surpreendentemente, Quita como
que se sentia levitar, um quê lhe provocara inesperado adormecimento, como
espasmo epilético [...] ela suspensa nas asas do sonho, via-se em vestíbulo
esplendente [...] Quita penetrava o céu, embora sem semelhança com aquilo
que a avozinha, de cabeça alva e voz de ninar, à hora do sono, lhe inventava
da eterna morada dos justos, murmurando palavras mansas, doces, até que
Morfeu sutilmente lhe fechasse as pálpebras com os seus dedos de
algodão.[...](grifos nossos) 226
Em outro conto, os personagens escolhidos foram os seus pais, Júlio e Constança
Angélica. Na narrativa apenas “Patrão” e “Patroa”. O enredo se desenrola na fazenda Água
Fria, mais especificamente na “casa grande do Guaí”, em torno do falecimento de uma
criança, filha de um dos empregados da fazenda. Não tendo condições de fazer um
sepultamento digno, por falta de dinheiro, Pedro solicita do Patrão autorização para enterrar
sua filha nas proximidades da capela da fazenda. Osvaldo Sá é autor e narrador da estória.
SÁ, Osvaldo. Evocação. Maragojipe: Gráfica Irmãos Peixoto Ltda, 1976. p.72. No livro A Humilde Musa as
palmeiras também inspiraram versos que se assemelham aos de Gonçalves Dias em sua famosa Canção do
Exílio.
226
SÁ, Osvaldo. À Sombra do Palmeiral (contos). Op. cit., pp.40-41.
225
89
À ficção o autor acrescenta a realidade da fazenda, onde passou grande parte da
infância. Relato que muito provavelmente foi originário de algum episódio passado nas terras
de Água Fria ou mesmo oriundo das estórias contadas pelos empregados da fazenda, alguns
seus companheiros de aventuras juvenis. O Patrão (seu pai) é retratado como uma figura justa
e que reconhece o valor da lealdade de seus empregados, porém receoso sobre a mortandade
que assolava as crianças àquela época, de doenças até então desconhecidas.
Ao despertar a rósea Aurora na alcova do Oriente, chegou ao terreiro amplo
da casa grande do Guaí, Pedro Santos e, aí, macambúzio, cachimbado,
aguardou que o patrão abrisse a porta, para lhe falar coisa de importância.
Abriu-a a ex-escrava Norberta, velhinha mas diligente, já de balde em
punho, para a ordenha. Três bezerros mugiam, amarrados em espeque, como
em súplicas às vacas, que se aproximassem com os úberes pejados.
Irrequietos, os mamotes mostravam as línguas babando ansiosas à espera das
tetas. Pedro ergueu-se, aprumou-se, coçou o queixo e pediu à serviçal, por
caridade, que avisasse ao amo de sua presença.
Com pouca hora, o fazendeiro desceu do sótão e, logo, atendeu ao chamado
do tatamba húmil, de chapéu na mão. O suplicante merecia a estima
patronal, pessoa sempre respeitadora e se negara nunca às injunções na
azafama da fazenda...
― Patrão ─ disse, minha Inacinha morreu, de manhãzinha. Se Deus
não a levasse, amanhã faria 15 dias de vida...
― Pobrezinha...
― Estou sem tostão, meu amo, com o roçado verde e o capado, no
chiqueiro, abaixo de 8 quilos. Só tenho Deus e vosmicê. Deixe que eu
enterre a filinha aqui, em cova ao pé da capela.
― Isso é perigoso, Pedro!
― Não se alembra, desculpe, patrão, que Tonho do compadre Zé do
Bate-folha, aqui se sepurtou com 6 meses de nascido? Teve nada não, meu
amo.
― Bem, faça o trabalho rápido e a cova bem funda cave.
― Obrigado, patrão. Vou agorinha mesmo chamar o meu Polonho
pra ajudar. Tem 12 anos, mas é companheiro na dor e na alegria.
E assim foi, em caixa de papelão, o anjinho acamado de flores silvestres, ao
colo de meninota de olhos tristes como ficam os olhos após lágrimas. Pai e
filho ainda se empenhavam na escavação da tumba, cautelosos. Entrementes,
a Patroa ao piano, no interior do casarão, executava, em surdina, lamuriosa
valsa, que aos ouvidos do pai desolado, fazendo a casa pra baixo, no chão,
da filha morta, tinha os tons doloridos de marcha fúnebre. 227
Nos contos Osvaldo Sá demonstrou estar atento à realidade política contemporânea. É
o caso da narrativa que compõe o conto “Rama do fascismo”:
227
SÁ, Osvaldo. À Sombra do Palmeiral (contos). Op. cit., p.25.
90
[...] No Brasil, ouvia-se a manobra de tal braço em nativo “anauê”, verde e
salgado para conservá-lo. Em Maragojipe, salpicou o cloreto, em perdigotos
de muita saliva. O domínio teutônico se fazia notório, através da colônia
dona e administradora das fábricas Suerdieck e Dannemann. Mas o “fuhrer”,
com o seu braço, não as atingiu totalmente, posto que da mão estendida se
excluía alguns dedos. [...]
Um professor de fama, com a proteção de elementos endinheirados, das
fábricas, empresas de nomes conhecidos até no exterior, fazia com que
prosperasse o seu colégio. Também crescia a maliciosa instrução da milícia
encamisada, com hinos, tambores, bandeiras, desfiles e o sonho de triunfar
politicamente no país. O anúncio emblemático, além de uma cruz gamada,
pregava a atraente trilogia “Deus, Pátria e Família”, que se traduzia no
pançudo deus Marte, dos marcos e da morte, com suplícios vestibulares em
vastos campos de concentração; a pátria universal alemã, dominadora, e a
sua família ariana, dominadora orgulhosa sobre todas as raças existentes.
Tudo decorria ridente, e a alegria abria em sorrisos os lábios afeiçoados ao
verdismo integral, enquanto a melancolia marejava os olhos de seus
opositores.[...]. Entrementes, em 3 de setembro de 1936, o delegado de
polícia local, tenente da PM. José Joaquim de Carvalho recebe ordem
telegráfica do Secretário de Segurança do Estado, para que fechasse núcleo
integralista desta cidade. Ao cumprimento do autoritário despacho, os
adeptos leais ao fascismo tupiniquim, resistem, encabeçando a atrevida
desobediência, na Rua Nova, o médico Marivaldo Cotias, um dos principais
verdes encamisados, aqui. Contudo, a polícia embalada resolve cumprir a
ordem superior. Deflagra o tiroteio de lado a lado. Era noite. De onde partira
a primeira bala, ninguém sabe, ninguém viu. O jovem Fernando Andrade, à
janela de sua namorada, no Caminho do Cai-já, é informado do que ocorre.
Escaramuças. Moço, forte e resoluto, vaidoso de fanatismo pelo credo, sai à
pressa em socorro dos companheiros e, na Ladeira da Cadeia, cai baleado
mortalmente, ao ouvir brados de “anauê” e o tiroteio intermitente. Inútil o
generoso sangue do moço inexperiente das revoltas e dos rodeios da vida.
Sombrio véu como que amortalhou a cidade. No dia seguinte, os integralistas
suplicavam justiça para a apuração de um fato que eles próprios motivaram,
seguros de um triunfo imediato e que, afinal, jamais tal triunfo sequer
vislumbrou nos horizontes da exuberante e amorável terra americana.
Anos se vão. Multidão desvairada, em Salvador, após o torpedeamento de
navios brasileiros, sai às ruas em procura de alemães e nazistas, para vingar
os mortos, nossos compatriotas. Aproxima-se o povo do escritório da
Suerdieck, à Rua Pinto Martins. Neste ínterim, aparece à sacada o diretorpresidente da empresa, Gerhard Meyer Suerdieck, e, serenamente declara
àquela gente em polvorosa, que é e sempre foi anti-nazista; que obedece às
leis brasileiras;que é casado com brasileira, da humilde gente de
Maragojipe;que tem cinco filhos brasileiros, e que trabalha para o futuro
deles, e termina exclamando, bem alto, um viva ao Brasil!
A multidão o ouviu atentamente, e, após os aplausos às suas palavras, seguiu
adiante (grifos nossos).228
O conto que tem muito mais de história que de estória, foi elaborado com base no
Jornal Arquivo. Em exemplar do ano de 24 de setembro de 1966, no quadro intitulado
228
SÁ, Osvaldo. À Sombra do Palmeiral (contos). Op. cit., pp.32-34.
91
“Calendário”, estava exposta a notícia da morte do jovem integralista Fernando Andrade de
forma bastante sucinta.229
No corpo do texto o autor faz referência a figuras importantes da cidade, como o
proprietário do Centro Educacional Simões Filho, o professor e médico Odilardo Uzeda
Rodrigues, partidário do integralismo, a quem o escritor chamou de “um professor de
fama.”230 Em meados dos anos de 1930, a sede do colégio funcionava como o local das
reuniões dos “verdes encamisados”. Outros nomes notórios também são citados, são eles os
dirigentes da Fábrica Suerdieck, ambos alemães. Conforme já foi mencionado, alguns desses
alemães faziam parte do círculo de amizades do engenheiro Júlio Sá, na época em que
ocupava a função de intendente.
Porém, não só as figuras ilustres da terra tinham espaço na sua narrativa. As camadas
menos abastadas tinham sua vez, a exemplo das comadres Candinha e Bicota. Ambas
funcionárias da fábrica alemã em Maragojipe. Contudo, não foi a primeira vez que Osvaldo
Sá se utilizou das personagens.
Em À Sombra do Palmeiral, o escritor trata apenas da morte de Candinha. No entanto,
a companheira Bicota não abandona a companheira no leito de morte. Nesse conto, Osvaldo
Sá narra o episódio como se estivesse à espreita, observando o desenrolar do acontecimento:
A sua casa, uma palhoça bem tratada a cal, no Arrasta-Couro, tinha à frente,
já às 15 horas, porção de gente. Gente pobre ou pobre gente como a falecida
Candinha, uma das línguas soltas da cidade, mas, sem senões maiores que o
de falar demais, se via estimada a sua grei. Mania de tagarelar, de ouvir e
transmitir, de pôr pés ou asas a acontecimentos triviais, se não tinha escrínio
na memória para guardá-los. E quem não apreciava ouvi-la? Quantos
viventes parece se confortaram em saber as quedas de seus semelhantes e
compará-las as suas?
Da sala pra cozinha, andava Bicota, a sua companheira, amiga de muitos
anos, comparsa de conversinhas gostosas, como estação telefônica a
transmitir notícias sem gastar níqueis, quando melhor se sente o chiste, a
graça. Com algumas piadas irreverentes à ocasião, grupos que ali se
postavam, compostos de velhos contemporâneos da finada, relembravam
marcantes ocorrências de sua vida. [...] 231
No livro Tempos de Maragojipe, publicado em 1992, elas ganham destaque e através
de seus falares alcoviteiros desenham representações do povo maragojipano em seus traços
229
CCM - Jornal Arquivo. “Calendário de Maragojipe.” 24 de setembro de 1966.
O colégio ainda em funcionamento é dirigido por uma das filhas de Dr. Odilardo Rodrigues, tendo mais de 60
anos de tradição em Maragojipe.
231
“A morte de Candinha”. SÁ, Osvaldo. À Sombra do Palmeiral (contos). Op.cit., p.35.
230
92
mais peculiares. De “Candinha e Bicota” falar-se-á na segunda parte desse capítulo,
juntamente com as crônicas que resguardam “capítulos da história de Maragojipe,” as
Histórias Menores, obra que tinha a predileção de Osvaldo Sá. Tais crônicas foram
inicialmente divulgadas nas páginas dos jornais, somente a partir de 1981 foram editadas e
publicadas noutro suporte, nesse caso, livros.
4.2- A história de Maragojipe entre os jornais e os livros.
Desde meados do século XIX, pode-se afirmar que a crônica tornou-se figura comum
nos jornais brasileiros. Segundo Jorge de Sá, a ideia de crônica está intrinsecamente ligada ao
que se entendia por folhetim, não o romance, mas a um texto ou uma série deles, voltados ao
entretenimento do leitor sobre os mais diversificados assuntos. Da política ao dia-a-dia.232
Apesar de ter-se tornado elemento importante na composição dos jornais, a crônica
difere do texto noticioso. A subjetividade e o estilo de quem a escreve influem e aparecem
diretamente em seu conteúdo, mesmo que o objeto de reflexão seja um fato cotidiano e “real”.
O conceito de crônica é bastante impreciso. Não há características formais que a
enquadrem. 233
A crônica é entendida como um gênero em constante movimento variando de autor
para autor. Alguns estudiosos consideram-na um gênero independente, outros um texto de
linhas tênues entre a literatura e o jornalismo, por ser o jornal o seu primeiro suporte. Mas, a
crônica tem uma linguagem mais livre, uma riqueza temática e semântica que a torna de
alguma maneira independente das páginas do jornal. 234
De acordo com Vera Lúcia de Oliveira, as crônicas fizeram parte da inicial história da
literatura brasileira, uma literatura com viés histórico. A crônica é um tipo de narrativa em
prosa, comum aos cronistas portugueses, a exemplo de Caminha e Fernão Lopes. 235 As
Histórias Menores seguem a linha em que os fatos históricos são relatados sob certa ordem
cronológica.236
SÁ, Jorge de. A Crônica. 3ª Ed. São Paulo: Editora Ática, 1987.
Idem.
234
Ibidem.
235
OLIVEIRA, Vera Lúcia de. As Crônicas: pré-história da literatura brasileira. São Paulo: Editora da UNESP,
2002.
236
Esse caráter se manteve mesmo quando era veiculada em coluna específica no periódico maragojipano.
232
233
93
A transitoriedade que caracterizou o gênero literário considerado “menor”, quando
comparados ao romance e ao conto, foi um dos motivos que fizeram grandes nomes do
cenário literário, a exemplo de José de Alencar e João do Rio, reuni-las em livros, no intuito
de eternizá-las e levá-las além das colunas e rodapés de jornais. No entanto, o mais famoso
cronista do século XIX foi Machado de Assis. O escritor imprimiu ao texto características
próprias e variadas linguagens em meio a um tempo em que o jornalismo era terreno de
bacharéis e advogados.237
O gênero é considerado por muitos estudiosos um texto memorialístico. Guardam
singularidades do tempo retratado e do seu cronista. A crônica e o seu cronista tornam-se
agentes de preservação da memória e da história, sem falar em seu caráter literário que ganha
novo significado a cada releitura. Margarida de Souza Neves afirmou que “a crônica como a
história, de modos certamente diversos, se constituem numa escrita memorialística. Cronistas
e historiadores são ‘homens-memória’, e desempenham seu ofício como autores e intérpretes
da memória coletiva.”238
Em 1978, Osvaldo Sá em seu livro Maragojipe Humorístico anunciou de forma
sarcástica as motivações que o fizeram protelar a publicação das crônicas do livro
inicialmente chamado Maragojipe e sua história. Ali, de forma a explicar-se, acabou por
trazer à tona as atitudes do poder público local frente às produções culturais. Seu relato
ofereceu a leitura de um tempo e as dificuldades de se editar livros em cidade do interior.
Pois, segundo Antonio Candido, “a dependência burocrática, as preferências políticas, a
situação de classe, são todos elementos que influem no texto de um intelectual.” 239
A intenção de Osvaldo Sá era que seu livro fosse levado a público a 8 de maio de
1950, no primeiro centenário de elevação de Maragojipe à categoria de cidade. Não o
conseguindo, a opção foi publicar as crônicas no jornal Arquivo, sem afastar a escrita de sua
essência histórica, e assim pleitear auxílio para a nova publicação. Chegou a tentar resolver
sozinho a questão financeira, porém o valor pedido pelas gráficas da capital baiana não cabia
em seu orçamento.
237
“Apresentação”. In: CHALHOUB, Sidney; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, Leonardo Affonso de
Miranda. (orgs). História em Cousas Miúdas: Capítulos de história social da crônica no Brasil. São Paulo:
Editora de UNICAMP, 2005. pp.09-19.
238
NEVES, Margarida de Souza. História da Crônica. Crônica da História. In: RESENDE, Beatriz (org)
Cronistas do Rio. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995. pp.26-27.
239
CANDIDO, Antonio. Prefácio sobre os intelectuais. In: MICELI, Sérgio. Intelectuais e Classe Dirigente no
Brasil. (1920-1945). São Paulo: Ed. Difel, 1979.
94
As editoras orçaram naquela época em Cr$ 25,000 para a impressão de 1000
exemplares. Recorreu à prefeitura e à câmara de vereadores da cidade, porém nenhuma
resposta positiva chegou ao seu conhecimento. Insatisfeito, o escritor assinalou:
Era como se me dirigisse a um deserto... Estavam os governantes da vetusta
cidade, às voltas com a política partidária, à véspera de eleições gerais, como
se poderiam eles se afastar um momento sequer de seus importantes misteres
eleitorais para atenderem ao humilde rabiscador de antigos acontecimentos,
na inglória tentativa, qual a minha, de reconstituir a vida pretérita da terra
dos Rebouças? Ademais eles queriam votos e não histórias. O descaso dos
administradores proveio, talvez, em face de o autor não se ter apresentado
qual um mago, munido com o poder do ouro, a mirra da lisonja e o
servilismo, para deste jeito vencer o mutismo da esfinge em que se
240
transformara a governança de sua terra natal.
Osvaldo Sá somente reuniu as crônicas e as publicou em forma de livros entre os anos
de 1981 e 1983 com o auxílio do Tenente Coronel da Marinha, o prefeito Antomeu de Brito
Souza, conservando o nome Histórias Menores acrescentando o subtítulo Capítulos da
História de Maragojipe.
Os elementos que compõem a coleção são de fundamental importância, pois revelam
a intenção do escritor de se adequar aos modelos de produção do conhecimento histórico em
voga na capital baiana, segundo centro difusor de elementos culturais do país, além de
dialogar com outros memorialistas que vinham escrevendo a história do Recôncavo.
5- A cidade nas letras.
São vários os elementos em comum e que compõem essa escrita memorialística.
Temos entre as obras analisadas a valorização das origens da cidade e os elementos negro,
branco e índio na composição da população dessas cidades, com ênfase nos “avanços”
trazidos pelos colonizadores brancos. A natureza – a fauna e a flora – dessas localidades são
citadas como elementos que estimulam o turismo e devem ser preservados. A arquitetura das
cidades é tomada como “lugar de memória” no sentido conferido por Pierre Nora. 241
SÁ, Osvaldo. Maragojipe Humorístico. Salvador: Empresa Gráfica Oxum Ltda, 1978. p.11.
Nora acredita que as mudanças irreversíveis no curso da história e o progresso que acelera e torna a memória
ainda mais fugaz fizeram com que as sociedades sentissem a necessidade de resguardar seu passado, criando
240
241
95
Essas obras também funcionam como grandes fornecedoras de informações
estatísticas e dados acerca da política local. Dados que por vezes se perdem devido à ação do
tempo. Atas, testamentos, cartas régias, jornais antigos e inúmeros outros documentos são
geralmente transcritos em sua totalidade em vista do pensamento que norteia a maioria desse
tipo de escrita em que o “sentido de verdade” está intrinsecamente ligado ao documento
escrito.242
Outro aspecto comum entre as obras é a grande ênfase concedida à história política
dessas localidades. Os intendentes e prefeitos ganham destaque na narrativa. Os livros acabam
sendo um grande banco de dados da história das cidades tratadas. Direta ou indiretamente
reproduzem uma história oficial. Divulgam os ideais dos institutos históricos, na Bahia,
representado pelo IGHB, ou seja, reunindo e resguardando a memória regional, coligindo e
transcrevendo documentos, salientando as virtudes de cada local que unidas dariam origem a
uma história nacional.
Além da escrita, esses memorialistas ainda assemelham-se pela posição que cada um
ocupava dentro das sociedades retratadas. Políticos, professores, funcionários públicos,
herdeiros de famílias tradicionais. Obras que funcionam como um tributo ao não
esquecimento. Osvaldo Sá e suas Histórias Menores são um exemplo disso. A coleção de
crônicas históricas foi uma maneira de Osvaldo Sá preservar a sua própria história e tornar-se
reconhecido e utilizado até o primeiro decênio do século XXI como referência literária e
histórica da cidade de Maragojipe.
Desde o título, as crônicas já despertam a curiosidade: Histórias Menores. De imediato
surge a questão: o que Osvaldo Sá entende por história menor? O que seria uma história
maior? Tais denominações são baseadas em quais leituras? No prefácio do volume que abre a
coleção o autor se interroga e explica:
É realmente interessante isso. Porque perguntar-se-á, histórias menores? E
vem então ao raciocínio que as maiores são aquelas que narram os eventos
universais; Depois vêm as grandes histórias, as de um continente inteiro, e
nesse decrescer se chegam, afinal, às menores, como estas, que descrevem as
ocorrências de um município. Estas aqui, além de menores são incompletas,
considerando que, em suas páginas, não se encontrará a história geral de
assim lugares de memória, a exemplo de monumentos, entre outros. NORA, Pierre. Entre memória e história. A
problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, nº 10, dez.1993. pp.7-28.
242
Bartolomeu Americano, diretor proprietário do Arquivo, chamou Osvaldo Sá de “materialista” referindo-se a
escrita da história de Maragojipe. Essa afirmação deveu-se ao grande valor que o escritor atribuiu aos
documentos por ele compilados ao longo dos anos de pesquisa.
96
Maragojipe. Quis dizê-la toda, era este o meu desejo, porém algumas
dificuldades me impossibilitaram essa realização (grifos nossos). 243
Analisando-se esse trecho percebe-se o entendimento de história do autor como algo
fragmentado. Sua noção de História está intrinsecamente ligada ao ensino que obteve nos seus
poucos anos de frequência escolar, apreendida nos manuais escolares, apresentada de forma
hierarquizada. Ao permanecer no jornal, as Histórias Menores corriam o risco de ter sua
leitura sufocada em meio ao noticiário que, por vezes, concentrava as atenções em fatos
pretéritos da história local, principal substrato das crônicas de Osvaldo Sá no jornal Arquivo.
Transferida para o livro, a crônica assumiu novo formato, remodelou-se, mas conservou o
diálogo com o leitor, evidenciando o estilo do cronista. Em várias passagens é possível
encontrar expressões do tipo: “[...] Não foi, porém, caros leitores [...]”, “[...] Estamos aqui
digno ledor [...]”.
No entanto, se nas páginas do semanário o público já se mostrava selecionado, a
transmutação do efêmero para o perene restringiu ainda mais o acesso do leitor. A aquisição
do exemplar despendia maior custo. A linguagem empregada no interior do livro, os autores
utilizados, as fontes, as referências intelectuais, são elementos que evidenciam a escrita
“tendenciosa” de Osvaldo Sá. Sua intenção era engrossar os quadros de instituições baianas, a
exemplo da Academia de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico. E uma das estratégias
de divulgação de suas obras, conforme já foi mostrado no segundo capítulo, era justamente a
doação voluntária de exemplares para intelectuais e diversas instituições.
As Histórias Menores, coleção composta por três volumes, são livretos de 150 páginas
cada um, divididos em capítulos relativamente curtos. Editados em gráfica do interior,
conservam uma estrutura de edição artesanal, impressos em letras que se assemelham às
oriundas de máquina de datilografia em papel simples, tipo ofício. 244 Apenas as capas são
coloridas.
No primeiro volume da obra (1981), exemplar que possui vinte e nove crônicas sobre
a história da cidade, o autor dedicou-se a tratar da história da cidade no período colonial.
Utilizou para isso as atas da câmara municipal, documentos régios e obras célebres da
243
Fragmento da introdução do primeiro volume da coleção.
Nesse período, é possível indicar, através da consulta de jornais da região que existiam apenas duas gráficas
na parte do Recôncavo que compreendia as cidades de São Félix e Cachoeira. A Gráfica Paraguaçu com sede em
Cachoeira e a ODEAM Ltda., que possuía filial em São Félix, embora fosse a sua matriz em Salvador-Ba.
Cidades como Maragojipe e Muritiba possuíam tipografias que imprimiam os jornais locais, a exemplo da
Tipografia Peixoto em Maragojipe.
244
97
historiografia que falavam da história do Recôncavo Baiano. 245 Frases e parágrafos inteiros
supervalorizam a obra e o próprio autor.246 É o que demonstra o trecho abaixo:
Quando um dia, pessoa erudita, dedicada e com outros recursos, econômicos
também quiser descrever a completa história desta célula brasílica de muita e
boa história, certo estou de que as minhas pesquisas aqui reduzidas a letras
de fôrma, serão proveitosas ao autor ou autores que se propuserem ao
levantamento minucioso dos fastos maragojipanos. Tal contribuição a mim
me basta, com este material que ofereço a construção do monumento. E isto
conforta, afinal (grifos nossos). 247
A importância do seu trabalho de pesquisa foi ressaltada nesse fragmento e em outros
trechos ao longo da coleção, demonstrando sentimento de “dever cumprido”, devido à sua
parcela de contribuição para o resguardo da memória local. O mesmo aconteceu com a sua
ideia de história. História como monumento, algo a ser cultuado, perpetuado e ensinado aos
jovens. Herança de um passado, ligado à capacidade de perpetuação, seja ela voluntária, ou
não. Osvaldo Sá reuniu documentos sobre a história local e deu a eles um tratamento especial
de modo a torná-los importantes para resguardar o passado maragojipano, monumentalizandoos. O escritor agiu de modo a tornar o documento um monumento no instante em que o
escolhe como passível de ser historicizado.248
As críticas também possuíam seu lugar na coleção, como pode ser observado nessa
passagem:
O heroísmo pode ser o ato de bravura impetuosa de um momento rápido,
fulminante. Já o patriotismo nasce de ação contínua e consciente, e por isto,
subsiste, perdura. Não se devem os baianos do Recôncavo, digladiar em
contendas pelo galardão de primeiros libertadores. Primazia de que? Se nas
batalhas todos se irmanavam para viver a hora apoteótica da Liberdade! 249
A crítica remete à vizinha cidade de Cachoeira, em razão da política de tombamento
do patrimônio arquitetônico local. Além da ideia sempre presente em suas obras, que é a
indignação frente ao esquecimento a que relegaram a sua cidade natal, o que a colocava num
245
Como a coleção de Pedro Calmon acerca da História da Bahia.
NEVES, Erivaldo Fagundes. História regional e local: fragmentação e recomposição da crise da
modernidade. Feira de Santana: UEFS: Salvador: Arcádia, 2002.
247
Trecho retirado do prefácio do volume I das Histórias Menores.
248
Documento/Monumento. In: LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo: Editora da UNICAMP,
2003. pp.525-526.
249
SÁ, Osvaldo. Histórias Menores: Capítulos da História de Maragojipe. Vol. I. Op.cit., p.104.
246
98
patamar menor, secundário, frente a eventos notórios, como por exemplo, a considerada data
magna da Bahia, o “Dois de Julho”. Maragojipe recebeu nesse período o título honorífico de
“Patriótica Cidade”, enquanto a cidade vizinha, o título de “Cidade Heróica”, em vista de seu
papel pioneiro nas lutas de emancipação política baiana.
O tom empregado em suas crônicas é de veneração, a narrativa dos fatos
maragojipanos assume um ar apoteótico. Suas leituras também ficam aparentes quando insere
Maragojipe no cenário historiográfico brasileiro. A ideia presente nas afirmações foi em
grande medida inspiradas em Robert Southey e sua História do Brasil e nos documentos
régios, tais como o foral e o regimento. Seus dons de poeta também foram exercitados na
tessitura histórica, a linguagem usada intercala história e viés literário. Como é possível
perceber a seguir, quando tratou do povoamento português nas terras brasileiras:
Vamos-lhe contar gente maragojipana, sem fantasia nem artifícios, porque
Maragojipe não precisa de invencionices para ser grande e bela a sua
história. [...] Houve nestas plagas virentes muita luta e muito amor no
decorrer desses quatro séculos: o desbravamento, a conquista, o domínio, a
cultura, o comércio, a pertinácia, afinal, simples, mas irredutível do
maragojipano. Foi seu primeiro dono D. Álvaro da Costa [...] um varão
muito frascário e quando viu por estas terras verdes, as caboclas desnudas de
cabelos bastos e negros, com as fáceis vergonhas à mostra então se
multiplicara a sua força criadora. [...] Álvaro da Costa era um luso de fibra,
necessário à Colônia incipiente na era do povoamento. Se o colonizador não
fosse dado às caboclas com lábios doces feito macujê e seios exalantes a
goiaba e, posteriormente, à escravaria quente de África, que aqui chegava no
bojo lúgubre de navios negreiros, então se entanguiria inânime, a Colônia,
porque Portugal com a sua população escassa, em território exíguo, não
povoaria jamais a vastidão territorial do Brasil gigante. E viriam então outros
250
povos e dominariam a terra cabralina.
Os temas que povoaram sua coleção enfatizam os elementos branco, negro e indígena.
Temas que escolheu tratar inspirados em Von Martius, e o seu trabalho Como se deve
escrever a História do Brasil, adaptando ao contexto maragojipano. Inspirou-se também em
Varnhagen e Luis dos Santos Vilhena, de onde extraiu parte do testamento do dono das terras
de Maragojipe, Bartolomeu Gato, tomado pela tradição oral como uma figura quase mítica da
história local, sobretudo no que tange à religiosidade do lugar.251 Tradição recontada por
Osvaldo Sá intercalando a oralidade com documentos escritos encontrados em suas pesquisas:
250
251
SÁ, Osvaldo. Histórias Menores: Capítulos da História de Maragojipe. Vol. I. Op. cit., pp.11-13.
Personagem que é novamente tratado nos livros Tempos de Maragojipe e À Sombra do Palmeiral.
99
Liderando senhorialmente na região, Bartolomeu Gato de Castro, ou apenas
Bartolomeu Gato, já ao meado do século XVII, projetou e promoveu a
construção da majestosa igreja de São Bartolomeu. Não foi ao fidalgo fácil
fazer que desistissem os simples habitantes da preferência a São Gonçalo.
Todavia, um fato tido como supernatural, miraculoso mesmo, veio
estrondosamente corroborar a pretensão do resoluto dono das terras. É que,
de maneira surpreendente, ao raiar de esplendoroso dia, apareceu sobre uma
pedra, a poucos metros de onde se projetava erigir o templo, bela imagem,
custosa, impressionante, e aquela figura assim aparecida, era a de São
Bartolomeu. E esse evento superou todas as dificuldades que obstaculizavam
o reconhecimento do novo Patrono de Maragojipe. Destarte, todos
deslumbrado com a aparição, aquiesceram, com simplicidade e contritos, à
mudança de seu Padroeiro e, consequentemente, à construção do suntuoso
templo, que mais tarde se tornou Matriz da Freguesia de São Bartolomeu de
252
Maragojipe.
Aspectos como religiosidade, folclore e gestual dos que habitam a cidade fazem parte
do universo das memórias históricas e das corografias, modelos adaptáveis a qualquer
localidade do território nacional, implementado e difundido no Brasil pelos Institutos
Históricos. Osvaldo Sá, conforme mencionado em capítulos anteriores, não possuía vínculo
institucional com a entidade, mas escrevia baseando-se em produções e autores ligados aos
congêneres do IHGB espalhados pelo país.
Sua maior influência era o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), mais
conhecido como a “Casa da Bahia.”
253
Osvaldo Sá seguia os objetivos da entidade baiana:
“Coligir, verificar, arquivar e publicar documentos históricos” que viabilizassem dados acerca
da história regional. 254 Diferenciava-se dos demais memorialistas em virtude das
preocupações estilísticas e do emprego da descrição seguida de crítica. Não se contentava
apenas em transcrever documentos. Sua opinião aparece mesmo quando tenta eximir-se dos
comentários. As críticas estão nas entrelinhas e demanda atenção para percebê-las.
Seus argumentos e afirmações baseavam-se numa bibliografia criteriosamente
escolhida, em sua maioria produções vinculadas ao IGHB, a Academia de Letras da Bahia e
do Brasil que chegavam as suas mãos com relativo atraso, porém aproveitada ao máximo e
252
SÁ, Osvaldo. Histórias Menores: Capítulos da História de Maragojipe. Vol. I. Op. cit.,p.25.
Segundo Paulo Santos Silva (2011), os laços de fraternidade dentro da instituição se davam de variadas
formas, seja através do casamento entre famílias, pelos apadrinhamentos, ou mesmo pelo fato de compartilharem
da mesma formação intelectual.
254
Sobre o IHGB e suas congêneres ver: SCHWARCZ, Lília Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994. Cap.4.e RODRIGUES, José Honório. A pesquisa histórica no Brasil. São Paulo:
Nacional, 1982.
253
100
expostas no conjunto de sua obra, e melhor refletida nos volumes da coleção de crônicas
históricas.
A capa do primeiro livro, desenhada pelo autor, detalhe comum aos seus outros livros,
retratou em um quadro edificações locais. A Igreja, a fábrica Suerdieck, a Câmara Municipal
e o Porto do Cai-já referência da economia do lugar. Instituições que ganharam destaque em
outras obras de Osvaldo Sá. Nas contracapas, dedicatórias e agradecimentos pelo envio de
exemplares dos livros, vindos dos mais diversos lugares do país.
No II volume, lançado no ano de 1982, Osvaldo Sá tratou da formação e memória do
município. Na capa, o padrão foi seguido. Um quadro dividido em quatro partes iguais e no
interior desses, as representações do Hospital da Santa Casa de Misericórdia, o frontispício da
sede da Filarmônica Terpsícore Popular, o manguezal, símbolo da riqueza natural da cidade e
por fim a vista lateral da sede da Filarmônica 2 de julho. Nas contracapas mais dedicatórias
advindas de intelectuais baianos e jornalistas de cidades do Recôncavo. No lugar da folha de
rosto, apreciação do livro escrita pelo historiador Pedro Calmon. Nesse exemplar, composto
por 26 crônicas, totalizando 100 páginas, deu indícios de suas leituras e afirmou ter na
literatura uma das fontes para ter acesso à História.255
Uma peculiaridade presente nessa edição do livro foi a presença de gravuras em preto
e branco. Antes do conteúdo em si, aparecem o busto do Conselheiro Antonio Rebouças, a
praça que leva o nome do conselheiro do império, um dos prédios da Suerdieck e a feira do
Cai-já, de onde escoava as riquezas que movimentavam a economia maragojipana nos
seculares saveiros nas quintas-feiras.
Como é recorrente na escrita memorialística, nomes ilustres da cidade não poderiam
ser esquecidos. Respaldando-se na obra de Sílvio Romero, Osvaldo Sá dedicou uma crônica
ao Conselheiro do Império, o autodidata e seu conterrâneo, Antonio Pereira Rebouças: 256
Dos ilustres maragojipanos que se projetaram pela inteligência e cultura, em
todo o território nacional, Antonio Pereira Rebouças, a nosso ver, se distingue
como o mais importante. Homem de cor, filho de Gaspar Pereira Rebouças,
alfaiate e carcereiro das cadeias públicas da então vila de Maragojipe, logo
cedo Antonio Rebouças manifestou a sua capacidade de trabalho e dedicação
às letras.257
255
Cita José de Alencar como um expoente deste tipo de literatura capaz de revelar a história.
A obra (em 5 tomos ) faz parte do acervo particular do autor, pertence a Fundação Osvaldo Sá. Ver:
ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. 3ªed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1943.
257
SÁ, Osvaldo. Histórias Menores: Capítulos da História de Maragojipe. Vol. II. São Félix: Editora Gráfica
ODEAM Ltda, 1982. p.24.
256
101
Detalhes acerca da elevação de Maragojipe à categoria de cidade também foram
recontados, baseando-se para tanto, em documentação encontrada na Câmara, o decreto nº
389, promulgado pelo então vice-presidente da Província Álvaro Tibério de Moncorvo, a 08
de maio de 1850. Nesse exemplar também apresentou a cronologia de fundação de
importantes irmandades religiosas da cidade, a exemplo da Irmandade de São Bartolomeu,
fundada em 01 de abril de 1851, “cuja entidade tomaria a responsabilidade dos festejos do
Padroeiro da Freguesia.”258 No livro, voltou a chamar atenção para o esquecimento que
acometia a sua cidade natal, com a crônica intitulada “Direito a um título”, retomando a
crítica a falta de relevância concedida à atuação de Maragojipe nas lutas pela independência
baiana:
Têm os maragojipanos sabido zelar o título honorífico de “Patriótica
Cidade” que lhe foi outorgado em consequência da sua ativa participação nas
lutas da Independência. Se outros méritos maiores não somam ao já
demonstrados, é que Maragojipe tem sido uma das localidades menos
lembradas dos governantes, e isso atua de modo negativo em qualquer
comunidade, por mais intrépida que seja a sua gente, porquanto não há
259
aguilhão que mais rebele a alma humana que a injustiça (grifos nossos).
No mesmo exemplar tocou em aspectos sobre a escravidão usando como parâmetro
livros de escrituras encontrados nas suas andanças à procura de informações sobre a sua terra
de nascença. Intitulou a crônica de “Gente Escrava.” O autor iniciou narrando a importância e
a riqueza dos arquivos gerados pelo período em que o Brasil escravizava negros trazidos de
África. E relatou o que encontrou em um dos livros de escrituras:
A venda de escravos se fazia por meio de escritura pública, nela se
declarando as características do vendido. [...] Nas escrituras se anotava que o
escravo era vendido com todos os seus achaques, velhos e novos. [...] Em
outro livro verificamos a venda de uma escrava de 14 anos, chamada
Felicidade. Era assim, o nome, sugestiva propaganda da peça que se
desejava negociar. Seria deveras interessante comprar-se a Felicidade... 260
Ocupou-se das mudanças quanto à iluminação da cidade, dos lampiões alimentados
por querosene à chegada da eletricidade, municiando-se de exemplos contidos nos jornais que
elucidavam cada período. Seguindo a tradicional cronologia da história do Brasil ― mesmo
Idem. Para um estudo mais aprofundado acerca da irmandade religiosa: NASCIMENTO, Antonio Conceição.
A Irmandade do glorioso São Bartolomeu de Maragogipe: suas práticas devocionais e a romanização (18511995). Santo Antonio de Jesus: PPGHIS- UNEB, 2011. (Dissertação de mestrado)
259
SÁ, Osvaldo. Histórias Menores. Vol. II. Op. cit., p.46.
260
Ibidem. p.19.
258
102
que por vezes o autor fizesse incursões retroagindo na história ou avançando nela ― tratou da
Proclamação da República, cuja notícia só teria chegado ao conhecimento dos maragojipanos
quatro dias após a data oficial do desfecho, baseando sua argumentação em ata lavrada na
câmara municipal no dia referido.
No livro que encerrou sua trilogia, em 1983, destacou as mudanças no cenário da
cidade, a chegada dos automóveis, os anos de estagnação política, os primeiros jornais a
circularem e as homenagens ao padroeiro.261
Discorreu ainda sobre a geografia do lugar, dos limites com outros municípios, dos
principais pontos turísticos citadinos, baseando-se para isso nos recortes de jornais
colecionados em seu acervo pessoal, nas suas pesquisas nos arquivos da câmara, em suas
memórias e na tradição oral da cidade, chamando atenção para a preservação da
documentação trabalhada em seus livros e mais ainda para o significado do seu exercício de
pesquisa e seleção:
Com estas se concluem as histórias menores, de acordo nem mais nem
menos com o nosso compromisso sob o céu deste amorável Recôncavo,
junto à ara de Maragojipe, esse templo de nossa adoração, e à sua gente
amavelmente devota. [...] Com esforços, não pequenos, demos à publicidade
eventos que ocorreram nesta velha terra. Alguns corriqueiros, colhidos na
língua do povo, que apenas não haviam encontrado ainda o seu cronista.
Outros, porém, desconhecidos, que se achavam gravados em alfarrábios, e se
não achados, embora danificados, alguns anos antes, já possivelmente,
agora, estariam eles imprestáveis, inutilizados à ação daninha de sevandijas
262
ou mesmo por mãos humanas.
Entretanto, não deixou de demonstrar ressentimento pelo reduzido número de
participantes da tarde de lançamento do livro:
O Ronaldo Souza, nosso constante amigo, com a sua eloquência baiana de
talento ágil, fluindo palavras cálidas do coração, lamentou a escassez de
convidados, animou-se, porém, com a qualidade de quantos ali estavam no
último lançamento, bem melhor que acudisse ao chamado, quantidade de
viventes desentendidos dormitando ante o peso de desventurosa
incompreensão como irracionais ante os sons da lira de Orfeu (grifos
nossos).263
261
Segundo Erivaldo Neves aspectos sobre os festejos e o folclore das cidades são recorrentes nas obras que se
aproximam do modelo corográfico. NEVES, Erivaldo Fagundes. História regional e local: fragmentação e
recomposição da crise da modernidade. Feira de Santana: UEFS: Salvador: Arcádia, 2002.
262
SÁ, Osvaldo. Histórias Menores: Capítulos da História de Maragojipe. Vol. III. São Félix: Editora ODEAM
Ltda, 1983.
263
Idem. Esse trecho demonstra mais uma vez o público restrito de suas obras na cidade. Aquilo que publicava
acabava por ser direcionado e consequentemente apreciado pela “elite letrada” local.
103
O escritor narrou a chegada da “modernidade” na cidade em tom ressentido,
desconfiado. Tratou das edificações que compõem o patrimônio arquitetônico de Maragojipe,
usando como exemplo o Paço Municipal e os velhos sobrados que compunham o cenário do
lugar. Fizeram parte de seus registros as estradas, a substituição gradual do carro de boi e a
chegada dos primeiros veículos na cidade e o alvoroço que causou, em meados dos anos de
1922. Investiu também num histórico dos jornais veiculados em Maragojipe, em alguns dos
quais atuou desde a composição até mesmo sendo responsável pela redação conforme
mencionado nos capítulos anteriores.
Os períodos de decadência pelos quais a cidade passou também estão nas páginas do
livro de encerramento. Segundo o autor, a crise que se abateu nos engenhos de açúcar e a não
instalação da ferrovia causaram o isolamento econômico da cidade. 264 O “progresso” não
havia alcançado as imediações maragojipanas:
No último decênio do século XIX, de tal jeito decaiu a nossa vida mercantil,
com a estagnação de suas fontes de desenvolvimento, em face da decadência
de sua indústria açucareira e da falta de ferrovia, que, vinte anos depois, o
aspecto aqui era não de cidade antiga, mais de cidade envelhecida (grifos
265
nossos).
Noutra crônica, no mesmo exemplar, intitulada “30 anos de estagnação” Osvaldo Sá
exemplificou as consequências da não implantação da via férrea em Maragojipe.
Muitos daqueles vilarinhos cujos negociantes tinham em Maragojipe a praça
de suas transações, de suas vendas e compras, se transferiram para outras,
por falta de linha férrea que não chegou até aqui. Destarte, perdemos, talvez,
60 ou 70% de nossa comercialização.[...] Tudo se estagnara, senão
decrescera na fluvialíssima “Cidade das Palmeiras”. [...] Maragojipe se
marginalizava na vida econômica da região, estagnou e se manteve, afinal,
como cidade, durante aproximadamente 30 anos, à custa de sua própria vida,
266
isoladamente com sacrifícios.
Segundo o autor, essa “parada no tempo” influiu nocivamente nos costumes da
população, que ficava para trás até mesmo na moda, em comparação com as cidades vizinhas
que se europeizavam em suas vestes. Esses “velhos” costumes se mantiveram com o passar
do tempo e funcionaram como substrato para as várias crônicas inseridas no terceiro volume
A respeito das mudanças no cenário do Recôncavo, ver: BRANDÃO, Maria de Azevedo. (org) Recôncavo da
Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1998.
265
SÁ, Osvaldo. Histórias Menores. Vol. III. Op. cit., p. 23.
266
Ibidem.
264
104
da coleção. Demonstrando sua intimidade com a literatura de Jorge Amado, Osvaldo Sá
aproveitou para exemplificar os hábitos da população maragojipana durante os festejos em
homenagem a São João:
Eram também de costume, naqueles velhos dias, os presentes de uns a outros
lares, compadres se esforçavam na perícia de seus pratos, em que enviavam
sua canjiquinha a afilhados ou a afins, para apreciarem-na. Os obséquios às
vezes se cruzavam em caminho, era pato pra lá e prato pra cá. [...] os
ingredientes de primeira, com água de flor e cravos, sob um bordado a
canela, que exalava tanto quanto a Gabriela amada de Jorge dos Ilhéus . 267
A Lavagem Popular, manifestação religiosa e pagã que compõe a festa de São
Bartolomeu também foi tema de uma crônica intitulada “Lavagem”. Sobre o festejo o autor
rememorou e emitiu juízos de valores sobre a sociedade local:
As balizas vêm trajadas à baiana, com saias de grande roda, umas todas de
alvo, outras de panos de cores, todas, porém, cheias de balangandãs,
pulseiras e correntões. São sete. Gente de cor, alegres, de pele lustrosa e
dentes nítidos, que de inicio murmuram trechos das cantorias que o povo
entoa durante o trajeto por toda a cidade. Cada qual carrega um estandarte,
vermelho, amarelo, azul ou branco, com legendas em saudação ao padroeiro.
A beleza do cortejo está em sua espontaneidade rude, natural. No seu estilo,
a única da cidade. Se há interesse em purificá-la, purifique-se antes a
sociedade. É o reflexo de sua condição econômica, local. A poeira que um
dia se levanta [...] A certa altura, clama um gaiato: “― Seu Tiburço,
Maestro...!" a batuta obedece ao reclamo. [...] Precisa de muito sangue frio
268
para não contagiar-se a gente com tanta exaltação coletiva .
E completou:
[...] Pagodeiras e divertimentos são atualmente em número bem maior que os
de outrora, maior e muito mais diverso, não tem necessidade, portanto, a
gente de bem, se expor em lavagens de rua, se possui ela teatros, piscinas,
jardins, praias onde se mostra, abafando-se, em retalhos, distintamente !
(grifos nossos).269
267
Ibidem, p.87.
Ibidem. pp. 126-127.
269
Ibidem. p.127.
268
105
A narrativa que encerra a obra conservou as características dos demais volumes, a
exemplo do sarcasmo e da fina ironia como foi possível perceber no trecho acima transcrito.
Nesse exemplar, outros nomes de personagens de tradicionais famílias de Maragojipe foram
estampados nas crônicas, a exemplo do poeta Durval de Morais e o musicista Heráclio
Paraguassu Guerreiro. Ambos são referência em Maragojipe, o primeiro na poesia e o
segundo na música.
As características fisionômicas dos maragojipanos também foram tema de suas crônicas.
Na crônica nomeada “Etnia” utilizou como parâmetro para fazer suas afirmações as obras do
sociólogo Gilberto Freyre e do historiador Pedro Calmon. Alicerçado nesses autores, Osvaldo
Sá teceu comentários acerca da formação étnica do povo maragojipano e as influências do
negro, do índio e do branco europeu:
Não deve presumir alguém, em Maragojipe, que fugiu ao afro-contato, além
do mais, houve número considerável de escravos considerando os engenhos
de cana que se edificaram em grandes áreas de seu território [...] Do
aborígene, notamos, sobremaneira, a tez do caboclo e o seu cabelo preto e
liso. A denguice, a astúcia e a solércia do autóctone [...] Quanto ao influxo
africano, muito se percebe em sua culinária, na propensão de sua crença a
fatalidade de sua fé, na índole mansa, no esbanjamento de hospitalidade. [...]
No que tange a outras raças, os descendentes de sírios, italianos ou alemães,
foram tão diminutas as suas influências que diluíram ou se vão diluindo,
270
absorvidas pelas predominantes, como está ocorrendo com a cabocla.
Osvaldo Sá reproduziu em sua coleção a visão de passado transmitida nas aulas e nos
livros que teve acesso. Em Vala dos Meus Dias, suas memórias, o autor criticou
veementemente a metodologia utilizada pelos professores no que se refere ao ensino de
História, no entanto, foi esse tipo de história que repetiu em suas obras, sobretudo nas
Histórias Menores. Uma história moldada por várias gerações de uma “elite” que dispunha de
recursos e dominavam as letras e a escrita da história. Em Maragojipe, representada por
Osvaldo Sá e o grupo de intelectuais do qual fazia parte, cujos membros eram professores,
médicos, jornalistas, advogados, integrantes e ex-membros do executivo e legislativo local.
Tempos de Maragojipe, conforme alude o título, retratou configurações distintas da
vida maragojipana e de sua população. Imperou na obra o tempo da memória, ou seja,
ancorado na reminiscência e não no tempo cronológico. Osvaldo Sá definiu essa obra como
um romance. No livro, assume seu lado ficcionista. Ficção controlada, segundo o autor.
270
Ibidem.
106
Os personagens que compõem o “romance” são inspirados em pessoas com as quais o
escritor conviveu, algumas já falecidas na época da escrita e publicação da obra, no entanto
com parentes vivos na cidade, daí a sua necessidade de criar nomes fictícios para os
indivíduos ali mencionados. Segundo Antonio Candido, os personagens criados pelo
ficcionista nos romances só se tornam coerentes e relevantes por guardarem semelhanças com
uma pessoa real. Tais semelhanças proporcionam ao leitor a capacidade de se entreter e fazer
associações com sua realidade. 271 A ambientação se dá na cidade de Maragojipe. Não há uma
ordem cronológica explícita na obra. Osvaldo Sá traz eventos pretéritos à narrativa de acordo
com uma lógica própria, sem obedecer a critérios do tempo organizado pela historiografia,
sem, contudo, afastar-se da história local:
Ocorrências há, talvez, dez anos mais antigas que aqui aparecem em
capítulos como se ulteriormente vividas. Isto parece-nos, não altera o valor
das narrações, posto que, nos ensina a provecta sabedoria que a ordem das
parcelas não contraria o resultado da operação. Não sabemos se assim
mesmo é que se ouve o adágio, contudo, equivale ao dito que houve por bem
guardar a memória do povo. Tempos de Maragojipe são agora um
passatempo, que é o tempo do passado em relembranças, recordações que
vagam no pensamento, às vezes, fazendo saudade. 272
As personagens que tem destaque no “romance” são as comadres Candinha e Bicota e o
crítico Alvarenga. Candinha e Bicota são vizinhas, tão amigas que se tratam de comadres.
Alvarenga é um homem extremamente sarcástico e questionador dos hábitos interioranos,
sobretudo a preocupação com a vida alheia, a popular “fofoca”, cujas comadres Bicota e
Candinha são referência no que tange à divulgação de boatos. Conforme é possível observar
no trecho que segue:
Desta vez, deram as caras na quitanda, Bicota e Candinha, em sexta-feira de
Quaresma, à procura de um peixinho ou mariscos:
― Como vai, comadre? A vida está custando os olhos da cara!
― Basta dizer ─ cara, está nos olhos, cara em todos os olhos, comadre
Candinha, só não vê quem não quer, ou quem tem muito pra gastar à toa.
― É. Anda tudo de pernas pro ar... Vosmicê já soube...o Zeca da Ribeira,
ontem, caiu doente, congestão. Está sem fala.
― Não me diga...parecia tão forte, heim? Rindo, de ouro no dente!
― Pois é, comeu muito amendoim cozido e, logo depois entrou no torrado a
valer...foi a conta, bumba!veio a moléstia.
271
CANDIDO, Antônio. A personagem do romance. In: CANDIDO, Antonio. [et al] A personagem de ficção.
9ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.p.53
272
SÁ, Osvaldo. Tempos de Maragojipe- romance de antiga cidade do Recôncavo. Editora Multipress, 1992.
pp.17-18.
107
― Também o que quer, comadre Candinha, ele não é menino e aquela
mulher pequena, lá dele, magra, de olhinho vivo,morena forte, cabelo não
muito fino, não é sopa, quer agrado toda hora...
― É isso aí, minha Bicota, agora nem me nem cabaço.
― Cabaço não, comadre, é cabaça, cabaço é outra coisa...
―Está bem, vivendo e aprendendo. [...]
― Adeus comadre Candinha.
A obra é composta por um conjunto de crônicas isoladas. O leitor poderia, sem
comprometer o entendimento, proceder à leitura separadamente. São capítulos ligados pelo
fato de tratar da história local. A diferença, por exemplo, com as Histórias Menores, está no
sentido da obra. Nas crônicas de Histórias Menores o autor buscou basear seus argumentos
em evidências documentais. Trechos inteiros de documentos são transcritos nas crônicas que,
segundo o autor, comporia capítulos da história de Maragojipe.
A explicação para o autor ter incluído Tempos de Maragojipe no gênero romance está
no triângulo amoroso que se desenrola em alguns capítulos, no entanto, nem esses episódios
possuem continuidade.
No entrelaçar da conversa das comadres, o escritor traz para a narrativa os costumes da
cidade em tempos de recolhimento da igreja Católica, a Quaresma. Bem como a crítica ao
valor dos peixes e mariscos que se tornava no período artigo de luxo. Com essas personagens
o autor traz à tona o enredo, que, de acordo com Antonio Candido, está intrinsecamente
ligado ao caminhar das personagens, que depende da aceitação do leitor como uma
“realidade” possível. 273 Os meios usados pelo escritor maragojipano para tornar sua escrita
aceitável são muitos, a ambientação é um deles. Osvaldo Sá dá continuidade às descrições
minuciosas acerca da cidade de Maragojipe em tempos áureos das atividades que
movimentavam a economia local.
A primeira imagem da cidade que o autor oferece com riqueza de detalhes é o
amanhecer. Segundo o escritor, a paisagem é completada por homens simples passeando com
suas gaiolas, a igreja matriz soando o sino chamando a população para o início das orações,
senhoras de terços e livrinhos de rezas que deixam o templo, operárias da Suerdieck com
trajes simples e passos ágeis que se benzem contritamente antes de iniciar a lida diária:
Vem do “Japão, do Cai-cai, da Praia da Rua Nova, do Alto do Cruzeiro [...]
A igreja, invariavelmente, às sete da manhã, abria as portas para a missa
273
CANDIDO, Antônio. A personagem do romance. Op.cit. p.55
108
fúnebre ou a gratulatória [...] Nesses momentos, operárias se dirigiam mais
cedo ao labor para, de passagem, antes se benzerem no templo de sua fé. 274
Recorreu as suas vivências de morador e, sobretudo, de expectador interessado e
curioso. No livro, o autor é o narrador dos acontecimentos. Em todo o mês de agosto é fato
corriqueiro as chamadas “salvas” de foguetes e adrianinos, fogos de artifício produzidos na
própria cidade de forma artesanal, utilizados desde o primeiro domingo com o “Bando
Anunciador” até o último com a queima de “fogos de planta” no adro da Igreja Matriz.275 Da
festa profana à festa religiosa o uso desses fogos de artifício é marca significativa. Nas
novenas, por exemplo, reconhece-se o status do patrocinador e homenageado da noite pelo
tempo em que dura e o número de fogos usados. A festa movimenta toda a população e,
sobretudo a economia, sendo, portanto, o centro das atenções da localidade no período.
O comércio citadino recebia novas mercadorias e os moradores compravam artigos
alimentícios característicos da culinária local, a exemplo dos peixes e mariscos para bem
servir os visitantes e não poderiam descuidar-se do vestuário para se apresentar bem trajados
na principal festividade local, tanto dentro do templo católico durante o novenário e as missas
solenes, quanto na folia da lavagem de rua, com os batuques e o som das cantigas entoadas
pelo povo e embaladas ao som das filarmônicas e charangas locais com seus instrumentos de
sopro. Não se apresentar bem vestidos daria margem para “Candinhas” e “Bicotas” se
empolgarem nos fuxicos e tagarelarem o resto do ano.276
Segundo a tradição anedótica de Maragojipe, reproduzida na oralidade, a população
quando não está desempenhando seus labores cotidianos, ocupam-se e se preocupam com três
“efes”: “fofoca, foguete e fuxico.” Fofoca e fuxico, hábitos somente deixados de lado durante
os festejos em homenagem ao padroeiro São Bartolomeu. A festa do orago é composta de
vários momentos que acontecem nos finais de semana. No primeiro domingo, homens e
mulheres montados em cavalos saem pelas ruas distribuindo a programação da chamada
274
SÁ, Osvaldo. Tempos de Maragojipe. Op. cit.. pp.19-21.
Para saber mais sobre os festejos e a tradição católica da cidade, ver: SANTOS, Fernanda Reis dos. A festa do
excelso padroeiro da Cidade das Palmeiras: o culto a São Bartolomeu em Maragojipe (1851-1943). Salvador:
PPGHIS UFBA, 2010. (Dissertação de mestrado); NASCIMENTO, Antonio Conceição. A Irmandade do
glorioso São Bartolomeu de Maragogipe: suas práticas devocionais e a romanização (1851-1995). Santo
Antonio de Jesus: PPGHIS- UNEB, 2011. (Dissertação de mestrado)
276
Segundo informações colhidas na tradição oral de Maragojipe, toda aquela (e) que se preocupa e fala da vida
alheia é chamado (a) pejorativamente de “Candinha.” Supomos que “Bicota” pode ter sido uma criação do autor
tendo como principio o nome dado ao ato de falsificar informações das atas na primeira república, o chamado
“bicório”, tendo em vista, que tanto Candinha quanto Bicota faziam comentários que poderiam ser falsos e
aumentavam a proporção de pequenos acontecimentos locais. No entanto, é só uma suposição a essa lacuna
deixada pelo escritor e que não pôde ser sanada através da consulta a tradição oral na cidade.
275
109
“Festa de Agosto” no “Bando Anunciador”. No domingo seguinte acontece a “Lavagem do
Templo”, a população sobe a colina através das diferentes ladeiras que circundam o largo da
Matriz com vassouras e baldes cheios de água para lavar o interior da igreja preparando-o
para as novenas em louvor ao padroeiro.
Na semana subsequente, acontece a “Lavagem da Rua”, milhares de pessoas
acompanham o cortejo que passeia pelas ruas da cidade. A lavagem tem como ponto de
partida a frente do principal terreiro de candomblé da cidade e sua linha de frente é composta
por mulheres negras trajadas com roupas de baiana carregando estandartes com a
representação de São Bartolomeu. Lava-se o adro externo a igreja ao som de cânticos que
revelam a história local através de nomes de personagens ilustres satirizados nas letras, a
exemplo da esposa do proprietário da extinta fábrica Suerdieck, D. Tibúrcia. A festa ainda
conta com a “Regata Aratu- Maragojipe” no último sábado de agosto e uma missa solene na
madrugada. Por fim, encerram-se as celebrações com uma procissão pelas principais ruas da
cidade, onde os devotos carregam sobre os ombros as imagens do orago São Bartolomeu,
esculpida em madeira com altura e peso semelhante a um homem, com quase 1,80m de altura
e de N. Senhora da Conceição com proporções parecidas.277
De forma mais sutil, por assim dizer, Osvaldo Sá preferiu afirmar que em Maragojipe
a população se ocupava de três atividades distintas: a igreja, a fábrica e a pesca. A Igreja por
funcionar como um lugar de sociabilidade, as principais festividades da cidade tinham ligação
com a religiosidade do lugar de tradição católica. A fábrica e a pesca por serem os principais
meios de sobrevivência da população local, grandes responsáveis pela movimentação da
economia do lugar no período por ele abordado. No entanto, a cidade era pequena, sem muitas
opções de lazer, lugar propenso segundo o olhar do autor, para que as pessoas se ocupassem
com o dia-a-dia dos outros:
[...] com poucos divertimentos, alguma coisa há de arranjar-se ao
passatempo. As linguarudas famanazes, primeiro prêmio em falatórios, eram
as nossas Bicota e Candinha, se uma esfolava a outra desossava. [...] Sujeiras
surgem, crescem, estiram, imensa tripa que enrosca ― assim as dobras dos
intestinos, não dizemos obras, mas a coisa fede mesmo. 278
Sobre os festejos dedicados a São Bartolomeu em Maragojipe ver: SANTOS, Fernanda Reis dos. A festa do
excelso padroeiro da Cidade das Palmeiras: o culto a São Bartolomeu em Maragojipe (1851-1943). Salvador:
PPGHIS- UFBA, 2010. (Dissertação de mestrado).
278
SÁ, Osvaldo. Tempos de Maragojipe. Op.cit., p.31.
277
110
Outra imagem recorrente no livro é a feira do principal ancoradouro de Maragojipe, a
feira do Cai-já. Na crônica de mesmo nome, Osvaldo Sá apresenta aos leitores a
movimentação do lugar: os transeuntes, as embarcações, os personagens mais esdrúxulos, a
compra, a venda e troca de produtos. Conforme o escritor, a cidade que por ora ele representa
foi desaparecendo com o passar do tempo.
Nessa crônica retoma o olhar saudosista e ressentido. Volta a retratar Maragojipe
como um lugar esquecido, cujo progresso das cidades circunvizinhas acabou por culminar no
processo de decadência e atraso de sua terra natal. As estradas e a ferrovia acabaram por isolar
economicamente a cidade que tinha em seu porto o principal meio de escoamento de suas
riquezas. Essa representação é comum em todas as suas obras.
A narrativa traz um panorama da feira, dos meios de transporte de carga utilizados,
bem como das localidades limítrofes, seu envolvimento e influência na dinâmica da economia
local. Osvaldo Sá descreve desde a chegada dos roceiros vindos dos logradouros mais
afastados da cidade até aqueles que vinham de municípios vizinhos, como os de São Felipe.
Os produtos expostos na feira, segundo o autor, demonstravam a fartura e a diversidade da
agricultura local, que abastecia até a capital baiana:
Havia freguesias certas, já de anos, principalmente da farinha de mandioca
torradinha, trincando, gostosa, que daqui saía com destino previamente
ajustado, na Cidade do Salvador, aos seus apreciadores de velhas datas.
Viam-se capoeiras cheias de frangos, galinhas, sujos, em cacarejos penosos,
incômodos, contínuos. Porcos, perus e por vezes, apareciam saguins, bichos
de caça, periquitos, papa-capins, cardeais, coleiros, quatro, cinco, ou mais,
na mesma prisão.279
Porém, com saudosismo, o autor alertava em sua narrativa que a feira não era mais a
mesma no momento da escrita de sua obra, havia se transformado gradativamente com o
passar dos anos:
O vozerio da feira arrefece. As barracas já não são tantas. São menos os
feirantes e os produtos vistos. Outros meios de transporte incrementam-se,
nas estradas [...] O cais do Cai-já, o Quelembe, a ponte extensa, as canoas
atracadas a mourões, redes de pesca estendidas, tudo isto é o que ficava
perene, no panorama de todo dia. 280
279
280
Idem. p.45.
Ibidem. pp. 45-46.
111
Enfim, em Tempos de Maragojipe, os temas comuns à escrita memorialística
aparecem de forma contundente. Há a valorização desde a população até a economia. 281 A
trajetória da cidade de Maragojipe acabou por se assemelhar ao entendimento que o escritor
tinha de sua própria vida ― um passado de bonança e um presente de esquecimento. Isso
explica em grande medida a propensão do autor a resgatar a história local. Com essa ação o
escritor resgatava também a sua história.
281
Na narrativa é possível apreender como se desenvolvia o comércio local. Segundo o autor, os armazéns e as
quitandas e todo o comércio em Maragojipe funcionava m tendo como base a venda em prestações. A relação de
confiança mútua caracterizava a economia local, pois, os prestamistas somente acertavam as contas nos finais de
semana, quando recebiam o pagamento nas fábricas de charuto e bebida. Para saber mais: Ibidem. pp.37-39.
112
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho se propôs a reconstituir a trajetória do escritor Osvaldo Sá e sua
produção intelectual, analisando do rol de suas 24 publicações oito obras, cujos temas
circunscrevem-se em dois núcleos: a história de Maragojipe e a história familiar do escritor. O
intuito maior foi explorar a hipótese que sustentamos ao longo da pesquisa de que a escrita da
memória de Maragojipe foi a oportunidade do autor se projetar enquanto escritor e ser
reconhecido por intelectuais de renome como o responsável por resguardar a história de sua
cidade natal e com isso resguardar a sua própria história.
Conforme pode ser constatado, as obras de Osvaldo Sá foram elaboradas para
permanecer e com isso elevar o nome de seu autor. Os jornais, a exemplo do Arquivo, foram
apenas os veículos utilizados como primeira estratégia de divulgação em virtude das
dificuldades de publicação já apontadas.
Migrando do jornal para o livro o autor reelaborou e sofisticou sua narrativa dando
vazão às suas leituras, conseguindo com isso o reconhecimento de intelectuais de cidades do
Recôncavo e também da capital, mesmo não fazendo parte oficialmente de nenhuma das
principais instituições que reuniam o conhecimento das Letras e da História na Bahia.
Os documentos monumentalizados pela seleção feita por Osvaldo Sá funcionaram
como elementos de autopreservação. A produção da obra memorialística, no que se refere à
busca de uma posição intelectual importante, é sempre marcada por um indisfarçável
saudosismo. Revela saudades de períodos que marcaram a história da cidade ― um tempo de
bonança ― na perspectiva apresentada pelo escritor e retratada nas páginas de seus livros.
A seleção feita por Osvaldo Sá acabou por tornar-se a memória social do lugar,
mesmo que ela reflita a visão do grupo ao qual pertencia, ou seja, uma “elite” que fazia parte
da classe dirigente local, composta por filhos de tradicionais famílias abastadas ou em
decadência da cidade de Maragojipe, a exemplo do escritor Osvaldo Sá.
Através de suas pesquisas o autor foi responsável por fazer vir à luz grande parte da
documentação e das informações que se conhece a respeito da história local, traduzindo-a em
verso e prosa. Elegância, erudição e linguagem rebuscada são características predominantes
na totalidade de seus escritos.
113
Até o primeiro decênio do século XXI o autor em questão figura como a principal
referência no que tange à literatura e à história de Maragojipe. Os autores que o sucederam
apenas reescreveram o passado da localidade, tendo como referencial suas obras. Osvaldo Sá
refletiu a visão de história transmitida nas aulas e nos livros que teve acesso. Uma história
moldada por uma “elite” que dispunha dos meios necessários e dos recursos para perpetuar
genealogias e ressaltar hierarquias de famílias tradicionais.
A nosso ver ― levando em consideração todas as evidências encontradas e apontadas
ao longo do texto ― os livros fizeram parte do projeto de vida do seu autor, que afirmava ter
como intenção maior revelar as minúcias de sua terra natal para outras terras. Talvez este
tenha sido realmente o maior ensejo desse escritor ao retirar suas memórias, crônicas e contos
da fugacidade das páginas dos jornais resguardando-as nas páginas dos livros ― conceder
vez e voz a si, a pessoas e a lugares que acabaram por ficar à margem da História.
Osvaldo Sá costumava dizer em entrevistas que escrevia para quem sabia. Remeteu
seus livros para os mais variados intelectuais através dos correios. Foi assim que construiu seu
público. Um público seleto. Junto aos livros estavam pedidos de dedicatória, de apreciações,
sempre acompanhadas de solicitações de permissão para que essas missivas fossem, com os
devidos cuidados, publicadas nas contracapas de suas obras. Entre os seus livros, nenhum
fugiu a essa condição. Da mesma forma, estava o pedido de auxílio de custos para viabilizar
tais publicações. O patrocínio geralmente era concedido a pedido de Osvaldo Sá, vinha desde
o governo local até seus amigos e admiradores, geralmente médicos, comerciantes,
advogados, jornalistas e alguns professores.
Narrar a história de Maragojipe figurou como a possibilidade de Osvaldo Sá inscrever
seu nome e ser reconhecido enquanto aquele que descortinou a história de sua cidade natal e a
levou ao conhecimento de seus habitantes, extrapolando as fronteiras do território local.
Entendemos que o conjunto da obra é mais um contributo à construção da História do
Recôncavo da Bahia, pois nela estão contidas particularidades da “célula brasílica”, “da terra
de muito e boa história”, da Maragojipe sob a ótica de um letrado que mediado pela memória
registrou a trajetória de um escritor e de seus temas em diálogo com questões locais e
nacionais.
114
ARQUIVOS:
Arquivo da Fundação Osvaldo Sá: Um desaguar de saber. Maragojipe- BA.
Acervo epistolográfico de Osvaldo Sá. Arquivo da Fundação Osvaldo Sá: Um desaguar de
saber. Maragojipe- Ba.
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Biblioteca Francisco Vicente Viana (APEB)- Salvador – Ba. Livros de memória.
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Biblioteca Pública do Estado da Bahia (BPEB) – Salvador- Ba. Livros de memória. Seção de
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Casa da Cultura de Maragojipe – Maragojipe- Ba - Jornal Arquivo (1951-1973 - série
incompleta)
Fórum Raul Chaves – Maragojipe-Ba - Registro do Jornal Arquivo. Cartório de Registro
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Carta de Jorge Calmon a Osvaldo Sá. - Salvador, 09 de novembro de 1981.
epistolográfico - Fundação Osvaldo Sá- Maragojipe- Ba
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Acervo epistolográfico. Fundação Osvaldo Sá- Maragojipe- Ba
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Carta de Pedro Tomás Pedreira a Osvaldo Sá. Santo Amaro, 11 de setembro de 1981. Acervo
epistolográfico. Fundação Osvaldo Sá. Maragojipe- Ba.
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epistolográfico. Fundação Osvaldo Sá. Maragojipe- Ba.
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Carta de Josué Montello a Osvaldo Sá. Rio de Janeiro, 15 de abril de 1991. Acervo
epistolográfico. Fundação Osvaldo Sá. Maragojipe- Ba.
Petição de Osvaldo Sá ao Prefeito Antomeu de Brito Souza. 03 de julho de 1980. Acervo
epistolográfico. Fundação Osvaldo Sá. Maragojipe- Ba.
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Sem data. Novembro de 1959.
27 de maio de 1965.
24 de setembro de 1966.
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26 de abril de 1969.
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___________. A Conspirata dos Galos. Edições Arpoador, 1973
__________. Evocação. Maragojipe:Gráfica Irmãos Peixoto Ltda,1976.
__________. Maragojipe Humorístico. Empresa Gráfica Oxum, 1978.
__________. Pontos nos iii. São Félix: Gráfica e Editora ODEAM Ltda, 1980.
__________. Histórias Menores: Capítulos da História de Maragogipe. Vols. I, II, III. São
Félix: Editora ODEAM Ltda, 1981/1982/1983.
__________. Sangue do mundo. São Félix: Editora ODEAM Ltda, 1984.
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__________. A Humilde Musa. São Félix: Editora ODEAM Ltda, 1988.
__________ Vala dos Meus Dias. Vols. III. Salvador: Editora ODEAM, 1989.
__________. Quando os Bichos Falavam. Editora Multipress, 1990.
__________. Vitrais. Editora Multipress, 1991.
__________. Tempos de Maragojipe. Editora Multipress, 1992.
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__________. Rosa Eterna. São Félix: Gráfica Oxum, 1998.
__________. Gravata Vermelha. Netuno Publicações, 1999.
__________. Leque de Pavão. Netuno Publicações, 2000.
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CALDAS, Geraldo Coni. Conceição do Almeida (memória): Minha Terra e Minha Gente.
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LEAL, Herundino Costa. Vida e Passado de Santo Amaro. Salvador: Imprensa Oficial da
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