Amostra - Livros de Ontem Crowdpublishing

Transcrição

Amostra - Livros de Ontem Crowdpublishing
Ninguém, o meu nome é Ninguém.
O grande Polifemo coçava a cabeça
em sinal de espanto e incompreensão.
Ninguém?! Como te podes chamar
Ninguém? Tu és alguém e essa condição
necessita de um nome próprio, distintivo,
um nome pelo qual te possa chamar
e tu possas responder. A brutalidade
do grande Ciclope de nada lhe servia
face ao engenhoso plano de Ulisses.
Garanto-te que sou Ninguém. Por certo
já terás ouvido das minhas aventuras,
sou o famoso Ninguém que cruza os sete
mares desafiando o destino. A história
parecia legítima e a oferta daquele sublime
vinho servia o propósito de garantia. Irei
comer-te de qualquer das formas, mas
fá-lo-ei depois de me saciar com os teus
companheiros. A fábula que me contas e
o néctar que me trazes dão-te o privilégio
de mais alguns minutos no mundo dos
vivos.
Ninguém, Ninguém quis-me matar!
Rádio Pirata
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autor :
Exemplar n º :
RÁDIO PIRATA
Carlos Nuno Granja
RÁDIO PIRATA
Carlos Nuno Granja
Transformação com Banda Sonora
O partir, o chegar e as bagagens perdidas – a viagem interior na poesia
de Carlos Nuno Granja.
Este livro é uma interrogação em si mesmo - «que raio de criatura sou
eu?» – uma longa pergunta interior. Por vezes a interrogar o outro
fora de si, figura dos seus afectos, por vezes a questionar o outro no
espelho, ou seja, a reflectir perante si próprio.
Numa linguagem solta, sem comprometimentos conceptuais ou
estéticos, todo o livro é um despir de sentimentos. Mais que um
despir, é antes um rasgar sofrido, o assinalar de chegadas e partidas,
de «bagagens perdidas», de fugas e confissões, de não querer magoar
magoando, de querer pedir perdão, de silêncios, de querer ficar, de
querer cantar, de querer dançar, de querer partir de novo… «Quero
ser livre mesmo que não possa voar»
E o que impede de voar esse eu condenado dos poemas?
«A corrente pressiona tudo à sua volta!», diz da sociedade que lhe
pede alinhamento, bem parecer, camisa lavada. «Dobram-se noites e
dias... Dobram-se esboços, casas, tectos, paredes em traços correctos.
Dobra-se o filme, dobra-se o realizador». É a submissão aos ditames
que regem os dias, as relações, os comprometimentos. «E tudo se
aguenta com um sorriso? Às vezes não apetece!», por vezes a vida
pede que se largue o talher, que se coma com as mãos, que se fique
Rádio Pirata
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com os «beiços cheios de chocolate», desse chocolate que é felicidade
interior de cada um (mesmo que se suje a camisa lavada).
O eu dos poemas anseia pela libertação de todos os olhos que tem
sobre si – dessa corrente que tudo pressiona. Anseia por estar «no
meio de nenhures», onde «é bom ser ninguém», onde não sendo
ninguém para os outros, pode ser ele para si mesmo, sem fingimentos.
«Que sensação tão boa! Poder não ser eu sendo eu!»
Sente que só essa emancipação o pode levar ao encontro do sentimento
maior: «Amor! Foi por ti que deixei o meu ser, que me deixei levar…».
Um partir ao encontro dos afectos, dos «beijos que aquecem faces
enregeladas», e que devem ser igualmente tão desprendidos quanto
ele, para que os sentimentos possam ser partilhados em liberdade.
- «Ah, como é tão bom conhecer este teu lado! Assim, tão escondido
da sociedade».
A banda sonora vem de uma rádio-pirata (de uma frequência
libertadora do que está licenciado) que espalha palavras e sonoridades
que acompanham cada sentimento, música dos anos 90, vestígios de
uma época que se colam aos poemas, que dão intensidade às palavras,
profundidade aos sentimentos.
Um desejo de mudança atravessa todo o livro. Mas como todo o ser
em transformação, essa mutação é feita em sofrimento, carregada
de dúvidas, de fragilidades, de inseguranças. «Quem me lê? Alguém
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Carlos Nuno Granja
está aí?». Por isso a obra é feita de partidas e de retornos aos lugares
seguros, aos abraços que se conhecem bem, ao calor do acolhimento.
«Tão precária a minha vida sem ti», confessa. É o reconhecimento da
sua realidade, do seu chão, dos afectos que sempre foram seus.
São assim poemas «que explodem em palavras banais.» Que a
poesia dos dias é para ser dita com as palavras do dia-a-dia, com a
simplicidade esmerada de dizer o que há para dizer, não mais que
isso; sem mais pretensões do que partilhar o que vai na alma, de uma
forma aberta, com uma poesia limpa, sensitiva e intimista.
E porque a essência do poeta é refazer-se, recomeçar «do zero, abaixo
de zero», surgirá de novo a dúvida - «que raio de criatura sou eu?».
Mas também, por certo, uma nova maturidade de introspeção em cada
ciclo de vida, que permitirá novas páginas literárias, novos desafios
interiores e novas partilhas que se aguardam.
Amanhã os dias serão outros e as palavras também. Uma nova poesia
para dizer à criatura que se interroga e se sente frágil:
«Se souberes o teu rumo (…) Não precisas de estar calçada. Podes vir
com meias de lㅻ, que a vida é simples e «quanto mais simples é,
melhor se navega!».
João Morgado
Rádio Pirata
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Nota do autor
A música é muito importante na vida de cada um de nós. Nascemos
a desenvolver esse hábito de ouvir as melodias. Esse mundo fantástico
que pode ir da música clássica ao rock transforma-nos em seres
especiais, mais divertidos e mais bem dispostos. A magia da música
transfigura-nos. As canções também nos comovem pela letra, por algo
que transmite e nos toca profundamente. A poesia é essa âncora das
canções. E foi ao ouvir as letras e as imagens que elas me transmitiam
que construí outro poema, aproveitando os cenários que as canções me
foram trazendo. Foram estas canções, poderiam ter sido outras tantas,
milhares e milhares delas, de vários estilos musicais. O exercício de
escrita, para mim, não se esgota no silêncio. É possível fazer nascer
um poema a partir de outro poema, acompanhado da melodia. É
um cenário tão individual e avassalador que transporta o poeta para
outros mundos.
Carlos Nuno Granja
Rádio Pirata
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Criatura
Não precisas de saber quantos passos tens que dar.
Não precisas de saber quantos metros tens de percorrer.
Se souberes o teu rumo, se estiveres orientada
sem perguntar a ninguém, talvez saibas quem és
e qual a razão por estares aqui. Não precisas de estar
calçada. Podes vir com meias de lã, pés de veludo,
em passos macios, com falinhas mansas... Não me cansas!
Nas nossas andanças, há mais encontros que desencontros...
Por vezes, nem te reconheço (que raio de criatura sou eu?).
Mesmo quando endoideço, quando me esqueço, mas permaneço
como estava antes de tudo começar! Aí soltas teus ruídos,
roídos de tanta escuridão... Em contramão se acrescentam
como mitos aos meus ouvidos. São gritos muito conhecidos,
bastante familiares (que raio de criatura sou eu?). Fico
imóvel, pouco especulativo, em assoalhadas de fazerem
inveja a casas senhoriais... Mesmo assim, por ser assim,
estando ao teu lado, asseguro teu rumo como um
fio-de- prumo, embora gasto e usado, sempre preparado
para te dar a direcção!
(que raio de criatura sou eu?)
** Laura Marling - A Creature I Don’t Know **
Rádio Pirata
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Lavar a alma
O teu colarinho branco vem riscado e vens danado por isso.
Se soubesses que a imagem não te leva felicidade ao peito...
Perdeste-te nesse conceito e agora és um desfigurado de espírito!
Mas com isso estás pouco preocupado, os riscos dos lápis de cor
são laváveis aos graus que tu quiseres. São voltas e voltas
para limpar essa camisa, mas precisarás de muitas mais
para lavares a alma... Talvez não te chegue um mar cheio de
sal! E se vês que não és capaz, deixa lá isso, verás que isto nos braços
de uma criança ganhará força, ganhará esperança
de beiços cheios de chocolate de nódoas nas camisas pelas colheradas
de sopa vertidas de muita, mas mesmo muita felicidade!
** Kurt Vile- Baby’s Arms **
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Carlos Nuno Granja
Simples
Uma simples rocha na falésia
só enfrenta o mar. Como se pode
entendê-la inútil? Todo o sal
que ela transforma...
E os veleiros que navegam
ao longe? Ela, que ganha forma,
tão imponente se revela!
E os casais enamorados, agarrados,
abraçados, calados, sentados,
tocam o horizonte!
Não pode ser assim
tão frágil… Não
tanto como imaginas!
Será inútil por
servir de abrigo
às gaivotas em dias
de tempestade?
** Bon Iver- Skinny love **
Rádio Pirata
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Povoação
Não tenho o meu lago, nem os rios de lágrimas,
nem as lágrimas que me lavem as pálpebras...
Tenho o mar por perto, a cidade que me rodeia,
as luzes que ainda resistem, lâmpadas que
estremecem ao toque do sino na torre da matriz,
varandas enfeitadas, janelas abertas para receber o frio
da manhã! Casacos compridos no átrio, mãos que
se aquecem em cumprimentos, beijos que aquecem
faces enregeladas. Os cafés saem espumando
e enchem de satisfação! As vozes também entram
no contexto! Quanta alegria! Podem falar
da minha idade, de austeridade, ainda há
tantas coisas boas para me enriquecer cá dentro!
** Bon Iver- Calgary **
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Carlos Nuno Granja
Dobragem
Nos pedaços de arame dobram-se figuras,
dobram-se cabos, alicates de pontas, martelos.
Dobram-se tormentas, ementas, emendas, remendos!
Dobram-se esquinas, concertinas, serpentinas sem dó!
Escalas, cigarras, formigas, avós, um homem só!
Dobra-se o escultor, o pintor, o escritor!
Dobram-se tintas, frases, pedras, tudo passa
a ter valor! Dobram-se canções, melodias...
Dobram-se noites e dias... Dobram-se esboços,
casas, tectos, paredes em traços correctos.
Dobra-se o filme, dobra-se o realizador.
É a cena mil vezes repetida, mil vezes assistida,
que define um actor! E na hora da verdade
encerra-se a cortina, todos se deitam,
dobram-se os outros (há quem faça vénias)…
Muitos aceitam as fraquezas, muito próprias,
muito suas, mas encanta este canto carregado de azul!
** Fleet Foxes - Helplessness Blues **
Rádio Pirata
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Pela
corrente
“Podíamos
ser um dos países mais poderosos da Europa”,
poisa podíamos,
minha senhora, mas repare:
Das escarpas,
profundidade remove
O
que é a Europa?
O que
é ofundo
poder se nem o temos
as impurezas.
As carpas voam
de um
para subsistir na forma mais básica, a não ser que tea uma altitude
que
impressiona!
A precioso
correnteConheço
líquido
o momento
seguinte.
bem
os gestos do
nhamos
a conta
cheia do
metal?
(acrescentar
ao
questiúnculo).
pressiona
sua volta!
Seguir
as correntes,
poder,tudo
sãoà como
que
o meu
negativo, e, apesar de conheciPodíamos
serdeixam
um dosentre
países
mais poderosos
da
Eu- de
por
paisagens
dos,
nunca
me impressionar.
Preciso
apenas
ropa,
mas
oarrebatadoras,
cirurgiãode
preferia
que o mundo
fosse
o
melhor
do
mundo,
quinto
império,
português
margens
demolidoras,
queOum
perfeição
alguns
instantes.
tempo
de inverter
posições.
Depois, anou não, universal e sem governante ou lei que o conseguisse
segurar,
assim correr
descontrolado
e ende vida!
Quero
ir,frações
queropara
voltar
tecipo-me
de segundo.
Por isso,
já os tinha visto
invadir, nãoSe
fisicamente,
mas num
éon
único que a
gostou
e
quer
atodos
montante
e descer
incessante
trar, traga
quando
efetivamente
entraram, pousando os olhos por
força
de vida eterna.
regressando,
regressandoe grita
burocrática,
arqueando
o tronco éà que
porta,o do
mais
Saiordem
do autocarro
e a intenção
seuolho
mundo
ouça
e
desperte
e
ele
já
não
sabe
ao
certo
para
continuar
a
ler
compre
o
indefinidamente!
graduado
ao de menor
instrução,
dirigindo-se
emprequem
berra,até
porque
ele é parte
do Todo
e estáao
a reclamar
comcareca,
o seutrocando
própriomeias
macrossistema.
Experimenta
gado
palavras, muitas
das quais não
uma catarse
ruidosa
porque
os
seus
braços
e as suas
seu
exemplar
na
nossa
pernas
não
lhe permitem
ir mais além; suplica, pelo
**
Lykke
Li
- I Follow
Rivers **
se ouviram.
menos hoje, por confusão. Talvez assim despiste as
Tinhaque
a situação
controlada
até ao momento em que me
sombras
o querem
alcançar.
mala. destila
Ao meuaolado,
homem
paralisado
Depuxaram
repente,pela
o êxodo
seu um
ouvido
palavras
sibilantes,
persuasivas; de repente, o sono clama por
serolhava-me.
perene. A temperatura brilhava de forma visível nas suas
feições, em parte encobertas pelo cabelo caído em desorResta-lhe bradar na calmaria, já que o delírio se lhe
colou
agora
sabe
o que
é morrer
por amor
- “eu, o da
dem- no
rosto.
A sua
cadeira
aproximou-se
pesadamente
que sou e que a tua liberdade consentiu escalar, já é
Não das
o tinha
visto que
quando
entrei. Aliás,
o café
paresó minha.
uma treva
névoas
se anteviam,
antes
mesmoceu-me
do teuquase
Outono”.
vazio, na altura, e, agora, de repente, de um
Agora
rosna,
entredentes.
Já não é o cirurgião que
momento
fala.
É outropara o outro, a polícia milagrosamente duplicou-
LOJA ONLINE.
lhe a ocupação. Aproximou-se, novamente. Desta vez, roçou,
discreto, um livro que lhe pendia dos dedos. Consenti. O livro tosco desceu sem pudor nem intimidade, num instante
incomparavelmente belo, pela minha mala. Cheguei as alças
20
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Carlos Nuno Granja