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Sobre Jurisdição e invasividade: uma idéia
Gabriel Divan
(versão bruta do artigo publicado in POZZEBON, Fabrício Dreyer de Ávila. ÁVILA, Gustavo
Noronha de – Organizadores. Crime e Transdisciplinaridade. Estudos em homenagem à Ruth M.
Chittó Gauer. Porto Alegre: Edipucrs, 2013).
“It's the sense of touch. In any real city, you walk, you know? You brush
past people, people bump into you. In L.A., nobody touches you. We're
always behind this metal and glass. I think we miss that touch so much, that
we crash into each other, just so we can feel something”
(Diálogo das cenas iniciais do filme ‘Crash’, de Paul Haggis, 2004).
Professora Ruth: (muito) obrigado pela sua inquietude (contagiosa)!
O dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt traz em um de seus contos, “A Pane”1, uma
proposta de argumento já transformada em standard pela cultura ocidental tal um
verdadeiro arquétipo de anedota ou lenda (urbana) contemporânea: a história do viajante
que, diante de uma situação inusitada, é obrigado a pernoitar em algum lugarejo
obscuro, um ponto totalmente imprevisto em seu trajeto original planejado.
No texto, o viajante em questão é convidado, durante sua forçosa estadia no local, a se
unir a um grupo de juristas aposentados que, em longos encontros noturnos, põe em
prática tanto a paixão pela fina gastronomia quanto aquela por inflamados debates
forenses. Eles simulam julgamentos e esgrimam idéias sobre casos hipotéticos, fazendo,
cada um, às vezes de Acusador, Julgador e Defensor do “Réu”. Encorajado a participar
da tertúlia, o viajante se dispõe a integrar o enredo do joguete, no papel do acusado. Na
medida em que correm as horas, e o vinho, uma trama absurdamente fantasiosa movida
por questionáveis nexos de causalidade obtidos através de muita construção sobre as

Doutorando e Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Professor de Processo Penal da Universidade de
Passo Fundo – RS. Conselheiro do Instituto de Criminologia e Alteridade. Advogado.
1
DÜRRENMATT, Friedrich. A Pane. O Túnel. O Cão. Trad. Marcelo Rondinelli. São Paulo: Conex,
2004.
respostas fornecidas pelo indigitado trazem a público a surpreendente conclusão de que
ele deve ser condenado por um homicídio que supostamente teria praticado (induzido).
Ao contrário de todas as expectativas, o réu não apenas aceita a versão, como também
(e eis aí o trunfo do contista), encarna de bom grado a alcunha de matador, como que
em uma atitude re-significativa desesperada para dar cabo da aparente mediocridade do
seu dia-a-dia. Aquele “processo” teve o condão de lhe outorgar uma representação que
conferia uma miraculosa (porém falsária) aura de importância à sua vida, eis que trouxe
à baila uma interpretação que o colocava decididamente no epicentro de um
acontecimento marcante que em realidade ocorreu de forma visível e absolutamente
alheia às suas vontades. Crendo no discurso de acusação (e dando pouco crédito à sua
própria e modorrenta “Defesa”, que queria absolver-lhe justamente da única condição
não-ordinária de sua pacata existência), internalizou facilmente a propositura e recebeu
a “sentença” de “condenação” como quem encarna em uma nova carcaça.
Encaramos a alegoria trazida por Dürrenmatt como o ápice, o símbolo extremado do
bizarro que cerca a questão que aqui vai brevemente trabalhada.
O cume da narrativa não parece ser seu desfecho trágico, senão o seu próprio
desenvolvimento, explicitando sutilmente a forma como, gradativamente, as palavras do
processo cortam a realidade como faca afiada2 e transformam-na, de fato a fórceps.
Uma sentença, e o próprio desenrolar dos atos que lhes são correlatos, vão se
engrenando para reorganizar o mundo em uma nova inscrição sócio-lingüística, em
uma nova ordem política, a fim de justificar sua própria razão de ser e eis que, ao final,
a resposta emerge (em termos de juris dictio) sempre “correta” dentro do universo ali
delineado e muitas vezes desdenha, perigosamente, do próprio mundo que a cerca3.
2
“O juízo do juiz, não o das partes, facit ius, o que quer dizer, vincula, ou seja, determina através do
mecanismo de direito, a conduta alheia. Depois que o acusador conclui que o imputado é culpado e o
defensor que ele é inocente, o mundo segue como antes; mas quando, pelo contrário, uma ou outra coisa
é o juiz quem diz, o mundo muda, porque, entre outras coisas, o imputado, se era livre, é capturado, ou
vice-versa, se estava detido é posto em liberdade”. CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o Processo
Penal. Tradução de Francisco José Galvão Bruno. Campinas: Bookseller, 2004. v. 4, p. 66
3
BARATTA, Alessandro. “La vida y el laboratório del derecho. A propósito de la imputación de
responsabilidad en el proceso penal” in Doxa. Cuadernos de Filosofia del Derecho. Universidad de
Alicante, n. 05, 1988, p. 277.
Na esteira desse alerta, qualquer propositura que pretenda desenvolver paralelos entre
ética e Processo Penal encontrará um vasto campo de trabalho, não obstante a
consciência necessária de que os obstáculos presentes na empresa superam,
sensivelmente, em densidade, a própria proporção do objeto de estudo (hipóteses de
questionamento cruzado entre uma e outro).
Desde que passamos a admitir (com SOUZA) a necessidade de uma guinada conceitual
da proposição ética na direção de uma preocupação fundamental com a alteridade
(sobretudo no sentido de assumir a relevância do encontro com o outro e sua
inapreensibilidade e irredutibilidade como momento cume da própria ética, enquanto
fundamento de qualquer viabilidade das relações humanas4), porém, as chances de o
cruzamento idealizado frutificar em otimização prática se mostram plausivelmente mais
sombrias.
Partindo-se de uma premissa que extrema (propositalmente) os termos da idéia, tem-se
que ambos, ética e Processo Penal, são desde logo, incompatíveis radicalmente: ou se
tem uma idéia mitigada (ao ponto da deliberada falsidade) da experiência do encontro,
ou se percebe que o festival de hipóteses procedimentalmente orquestradas do Processo
é (e sempre será) qualquer coisa, menos diálogo.
Cabe pensar, diante de tal constatação, quando, ou, melhor ainda, onde poderia haver
manifestação ética genuína (ou resquício de uma), em meio ao Processo Penal, qual a
amplitude de sua verificação e no que ela consistiria (ou teria condições de consistir), de
fato.
O rito processual, sob esse viés, é estratégia limitadora positivada utilizada para a
descomplexificação e solução politicamente eleita para a (proposta enquanto tal)
resolução de um dito caso-penal5 (sendo o próprio crime, tanto fático como o termo
correlato de sua denominação, uma impostura legal que inibe tendencialmente qualquer
4
SOUZA, Ricardo Timm de. Uma introdução à ética contemporânea. São Leopoldo: Nova Harmonia,
2004, p. 103.
5
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba: Juruá, 1989,
p. 149. Referimos-nos à terminologia usada pelo autor, ainda que não concordemos com sua visão de
“acertamento” do “caso-penal” enquanto objeto do processo. Vide, para tanto, LOPES JR., Aury. Direito
Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010 e GUASP
DELGADO, Jaime. “La pretensión procesal” in Estúdios Jurídicos. ARAGONESES ALONSO, Pedro
(Coord). Madrid: Vivitas, 1996.
traço de legitimidade do ato supostamente praticado, lhe secando de possibilidades
comunicativas que não aquela do signo da atitude antijurídica). É o não-encontro por
excelência, tomando-se por base para a experiência ética a necessária inexistência de
limitadores e de ferramentas de absorção que procuram livrar o choque da alteridade de
sua tensão natural. É a anti-matéria do encontro, tendo-se em vista a quantidade de
traduções às quais os entes de todas as ordens vão submetidos.
Teatro, disputa, jogo por excelência6, o Processo tem nesse rol de pré-estabelecimentos,
nesse amontoado de ordens e apuros conceituais, nessa coleção de rígidas formas, seu
suposto trunfo contra as nefastas possibilidades concretas advindas da ausência dos
próprios (ao se entender o formalismo processual-penal também enquanto garantia,
regra do jogo).
Resta dizer que a jurisdicionalização dos fatos do mundo (quiçá a jurisdicionalização
penal dos mesmos que ganha revival teórico a partir do final dos anos 70 do século
passado7) não só não é realmente saída tão eficaz e necessária quanto a lógica
racionalista pressupunha, como dela brotam efeitos inibidores mais nefastos (ou tão
nefastos) quanto a expansão de um punitivismo é também.
Em perspicaz olhar sobre alguns aspectos da teia social contemporânea, BAUMAN
suscita o fato de que sentimentos como o de pertença comunitária foram tão
deteriorados que, no mundo de hoje, só são vivificados com força a partir de momentos
críticos e/ou traumáticos. Seria, para o autor polonês, uma marca da nossa era, o
esfacelamento de certas plataformas ditas modernas como, por exemplo, o conceito (tão
próprio de um estado unitário do ponto de vista jurídico-político e social) de interesse
comum. Mais: seria marca indelével do nosso cotidiano o assombro com a fatídica
ausência de caracteres que remetam à segurança, no sentido de estabilidade(s) em suas
várias acepções: afetiva, mercadológica, ecológica, epistemológica, entre outras.
Por isso, situa que certos momentos-limite da vida em sociedade são, tristemente, os
6
Cf. CALAMANDREI, Piero. Instituições de Direito Processual Civil. Trad. Douglas Dias Ferreira.
Campinas: Bookseller, 2003, 2 ed.
7
LARRAURI, Elena. La herencia de la criminologia crítica. Madrid: Siglo Veinteuno de España
Editores, p.219.
únicos capazes de fazer retornar um tipo de utopia de um verdadeiro sentimento de
sociedade enquanto comunidade dotada de interesses convergentes. Mais: desvelado, aí,
o triste fato de que nosso conceito de liberdade não atingiu as raias da ética pensada
para uma dignidade das pessoas, uma vez que segue preso a um padrão que evoca a
Mônada leibniziana e algumas fórmulas liberais-individualistas típicas de pensadores do
século XVIII. Pensamos em impor nossa liberdade ao outro (definindo, como no
clássico chavão, onde uma inicia e a outra cessa), mal-disfarçando que uma sociedade
verdadeiramente plural e digna deve necessariamente partir para uma conceituação
semelhante do que (re)significaria a liberdade8.
Em exemplo certeiro, BAUMAN identifica um manifesto populacional de um distrito
inglês contra a soltura de um temido suposto meliante detido como uma amostra típica
de que nichos da dita segurança perdida e simulacros de uma sociedade una são
verdadeiros
aglutinadores
sociais
efêmeros,
quando
comparados
à
praxe
(anti)comunitária do cotidiano atual (própria de uma realidade que o próprio autor
batizou de “líquida” em vários de seus escritos)9.
Sob o signo do que procurou chamar de unsicherheit10, BAUMAN trata desse vazio de
estabilidades (no tríduo de ambivalências que nomeia como “segurança incerta”,
“certeza dúbia” e “garantia insegura”) e mostra como a busca por elas acaba
retroalimentando um comportamento social que vai, aos poucos, sendo programado
para atender a anseios de individualismo, e ao mesmo tempo, celebrando “ocasiões
especiais” da conceitual comunidade apenas em momentos em que isso parece
conveniente a uma racionalidade acovardada e preconceituosa: perdido numa era de
incertezas, o homem moderno se adapta sem desenvoltura ao mundo de hoje e busca
alento em situações que evocam uma ilusória possibilidade de existência sem
confrontos nem atritos.
É preciso revitalizar esse sentimento de pertença, sem, logicamente, contudo ser
tributário a nostalgias aprisionantes (retrato de um saudosismo inaceitável quanto a uma
8
SOUZA, Ricardo Timm de. Justiça em seus termos. Dignidade humana, dignidade do mundo. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2010, especialmente pp. 55-58.
9
BAUMAN, Zygmunt. Em Busca da Política. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000,
pp. 17-18.
10
BAUMAN, op. cit., pp. 24-55, especialmente.
ordem perfeita que jamais existiu – e nem deve existir11), nem partidário de uma
realidade caótica repleta de supostas benesses resultantes de uma completa ausência de
qualquer tipo de regras – uma falsa visão de dois pontos tais como “extremos opostos”.
Parecem, portanto, inegáveis quanto à sociedade contemporânea as premissas de que (I)
ela é totalmente carente de manifestações comunitárias espontâneas e evidentes que se
permeiem em práticas cotidianas12 e (II) ela procura, em regra, de forma desvirtuada,
satisfazer exclusivamente em momentos emergenciais sua necessidade de comunhão de
sentidos e valores. Nesse viés, a “certeza” de “segurança” (jurídica) ocupa papel de
destaque em uma função analgésica que toma para si não só o “monopólio da
violência”, como uma fatia gigantesca das próprias relações sociais que a ela, violência,
estão invariavelmente atreladas e nela não tem um elemento perturbador, mas, um
profícuo ingrediente-base.
Atualmente, muitos pesquisadores ligados a uma apropriação sociológica das ciências
jurídicas procuram estabelecer conexões entre o direito, as criminalizações por ele
operadas e as práticas sociais cotidianas para demonstrar a existência de uma espécie de
ponto de saturação social13 quanto à verticalidade (descrita por ZAFFARONI et. al.14)
da gestão das situações sociais em detrimento da horizontalidade que caracterizaria a
11
BAUMAN, Zygmunt. Globalização. As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1999, p. 51.
12
“A característica essencial da modernidade foi sem dúvida ter ‘domesticado’ o homem, ter
racionalizado a vida em sociedade. Inútil voltar às análises feitas nesse sentido. No entanto, não
ressaltamos o suficiente que essa ‘curialização’ conduziu a uma assepsia da vida social. Isto mesmo é o
que chamei de ‘violência totalitária’: um corpo social totalmente desresponsabilizado que perdeu seus
modelos, seus mecanismos de defesa, e que se tornou incapaz de resistir às agressões internas ou
externas. Essa é uma sociedade sem riscos que perde a sede de viver e que perde também a capacidade
de lutar contra esse risco maior que é o tédio”. MAFFESOLI, Michel. O instante eterno. O retorno do
trágico nas sociedades pós-modernas. Trad. Rogério de Almeida e Alexandre Dias. São Paulo: Zouk,
2003, p. 140.
13
“A sociedade está sujeita a mudanças de natureza muito variada, algumas condicionadas por
circunstâncias externas e outras originadas dentre seu próprio seio. Nisso se assemelha a um organismo
vivo. Essa mobilidade torna inevitável que os esquemas baseados em normas rígidas se afastem, cada vez
em medida mais expressiva, das realidades sociais onde essas normas devem ser aplicadas”. NOVOA
MONREAL, Eduardo. O direito como obstáculo à transformação social. Trad. Gerson Pereira dos
Santos. Porto Alegre: Sério Antônio Fabris Editor, 1988, pp. 28-29.
14
“(...) a história da legislação penal é a história de avanços e retrocessos no confisco dos conflitos (do
direito lesionado da vítima) e da utilização desse poder confiscatório, bem como do enorme poder de
controle e vigilância que o pretexto da necessidade de confisco proporciona, sempre em benefício do
soberano ou do senhor. De alguma maneira, é a história do avanço e do retrocesso da organização
corporativa da sociedade (Gessellschaft) sobre a comunidade (Geminschaft), das relações de
verticalidade (autoridade) sobre a horizontalidade (simpatia), e nessa história a posição da vítima e o
grau de confisco de seu direito sempre constituíram o barômetro definitório” ZAFFARONI, Eugenio
Raúl. BATISTA, Nilo. ALAGIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro. Volume 1.
Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 385.
primazia do fato mundano (culturalmente recepcionado) em face de sua roupagem
jurídica, e não o contrário.
No mesmo sentido acima descrito, vêm os aportes de FERRELL, no que diz respeito ao
fato de que a busca por assepsia social é um problema em si. Quanto à apropriação
temática do urbanismo “situacionista” proposto por Ivan Chtchelgov, em 1953,
descreve o sociólogo estadunidense:
Sofisticando a crítica Situacionista, Raoul Vaneigen conclui
de forma similar, identificando o tédio como um dos grandes
horrores da vida moderna. “A terra prometida será o reino
da morte pacífica”, escreveu em The Revolution of Everyday
Life. “Chega de Guernicas, chega de Auschiwitzes, chega de
Hiroshimas (...) Bravo! Mas e quanto a essa impossibilidade
de viver, esta sufocante mediocridade, essa ausência de
paixão (...)? Que ninguém diga que são detalhes menores ou
questões secundárias (Vaneigem, 2001, p. 35). Quando tais
textos foram expostos nas paredes de Paris, em 1968, essa
tonalidade permaneceu. “Nós não queremos um mundo onde
a garantia de não morrer de inanição traga o risco de
morrer de tédio”, dizia um grafite15.
Por todos, e sintetizando de maneira ímpar a questão, um dos mais recentes trabalhos de
BAUMAN, ao se perfilar no mesmo
sentido, ao criticar a
necessidade
mercadologicamente explorada de “segurança”, fazendo com que enxerguemos “a vida
lá fora” como exclusivamente “perigosa e imprevisível”, fomentando uma espécie de
clausura voluntária e high-tech16. Não esqueçamos de BRUCKNER e seu perspicaz
conceito de infantilização da vida do homem atual17, preso (paradoxalmente) a um
mundo que oferece velocidade(s) e liberdade(s) supostamente infinita(s) e por isso
mesmo incapaz de conviver com interdições, negações e até mesmo contraposições.
Somos, em muitos aspectos, levados a crer que nossa identidade transita entre
arquétipos de verdadeiros “filhos” e/ou “vítimas” do mundo em que vivemos, inábeis no
15
FERRELL, Jeff. “Tédio, Crime, e Criminologia: um convite à criminologia cultural”(Trad. Salo de
Carvalho. ) in Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 18, n. 82. Jan./Fev. 2010, p. 342.
16
BAUMAN, Zygmunt. Confiança e Medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro,
2009, p. 55.
17
“É tempo de afirmar que esse mundo constituído pela expansão do presente é também um mundo de
inovações constantes, inovações que implicam o reconhecimento da imprevisibilidade e da incapacidade
dos modelos ou sistemas deterministas darem conta das projeções do futuro. Num mundo onde as
inovações são constantes e as certezas efêmeras, não se pode conferir crédito aos determinismos e aos
objetivos calculados”. SILVEIRA, Mozart Linhares da. “Educação Intercultural e pós-modernidade” in
Revista Mal-Estar e subjetividade. Ano/Vol. 3 n. 1. Fortaleza: Universidade de Fortaleza, p. 159.
trato com conflitos/negativas e “indefesos” diante dessa avassaladora “insegurança”,
acostumados a “fendas” ou curtos-circuitos temporais que alimentam nossos anseios18.
Não se pode olvidar, igualmente, que ao tratar (de modo idealizado) a aplicação das leis
que compõem o sistema penal como solução redentora para os conflitos19, se está
ignorando que se trata de uma operação implementada num modelo analítico de uma
faceta artificial de uma situação mundana, obtida mediante classificações legais
impostas sobre um fato (cuja existência se quer comprovar como ocorreu). Ou, para
LARRAURI, mais incisiva (comentando um dos pontos centrais do pensamento
abolicionista): “el delito no tiene una realidad ontológica, lo que denominamos delito
son conflictos sociales, problemas, catástrofes, riesgos, causalidades (...) pretender
tratarlos con el derecho penal significa incrementar el problema en vez de
solucionarlo”20.
É (mais do que) hora de os mecanismos jurídicos tributarem um pouco de atenção ao
mundo como ele é21.
Do estreito ponto de vista de onde nos cabe falar – o olhar do processualista (penal) –
parece necessário que se pense (anarquismo?) em freios para o confisco jurisdicional
das relações sociais, ou mecanismos legais que elevem a franquia dos juízos de
prelibação processual aos níveis que o custo do confisco estatal das relações do mundo
mereça.
18
BRUCKNER, Pascal. “Filhos e Vítimas: o tempo da inocência”, in MORIN, Edgar, PRIGOGINE,
Ilya (org.) A Sociedade em Busca de Valores. Lisboa: Piaget, 1996, p. 56.
19
HASSEMER, Winfried. Introdução aos Fundamentos do Direito Penal. Tradução (da 2a edição alemã,
revista e ampliada) de Pablo Rodrigo Aflen da Silva. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2005, p.
365.
20
LARRAURI, La Herencia..., p. 199.
21
Conforme AZEVEDO e BASSO: “No tocante a outro aspecto, ou seja, à corrosão crescente sofrida
pelos direitos fundamentais em razão das políticas de segurança pública hodiernamente adotadas,
baseadas no controle punitivo, percebe-se que a segurança pública, ao contrário do que se pensa, é tema
muito mais ligado às políticas públicas do que ao Direito, podendo efetivar-se, tão somente, por meio
daquelas. Do mesmo modo que, dependendo da opção feita em termos de política pública, os direitos
fundamentais sofrerão maior ou menor golpe”. Ou seja: a própria apreensão jurídico-penal
“monocromática” dos fatos conflitivos vem a se mostrar “antijurídica” na medida em que, não raro ela
própria causar acinte ante ao leque de direitos fundamentais conforme a carta constitucional, podendo (e
devendo) haver a “proteção” e a resguarda dos direitos fundamentais (entre eles a dignidade da pessoa
humana e suas decorrência no “leque de liberdades” ou de imposições negativas de ingerência) sem
qualquer resquício de intervenção estatal processual e mesmo criminalizante. AZEVEDO, R. G., BASSO,
M. “Segurança Pública e direitos Fundamentais” in Direito e Justiça. Revista da Faculdade de direito da
PUCRS Volume 34, n. 2, jul/dez. 2008. Porto Alegre: PUCRS, pp. 25-28.
A atuação jurisdicional (e sua faceta inexorável de garantia da qual não abrimos mão
por inteiro) possui um efeito colateral infantilizador: ao procurar, como no infeliz
epíteto das democracias recentes, “judicializar” o mundo na crença de uma ligação
direta entre os bons anseios e valores constitucionais e sua implementação (artificial),
estamos na verdade em um refluxo que, atrelado à lógica moderna do saneamento
(ainda que pretensamente, agora, bem intencionados), procura conter o novo e o
inesperado em amarras tranqüilizantes, como asseverou GAUER22, tantas e tantas
vezes.
A atuação decorrente de uma postura (“democraticamente”) invasiva da jurisdição, que
visa um ativismo esclarecido23, e/ou constitucionalmente compromissório, não apenas
gera e abre margem para ativismo(s) indesejado(s) como também desconsidera
(mormente no caso dos processos criminais) que a própria atuação jurisdicional, mesmo
que não-viciada, por vezes é nefasta. Na visão que ora esboçamos (escorados
fundamentalmente em Zaffaroni) de horizontalidade, é necessário conceber os conflitos
sociais interindividuais como algo que não deve ser legado à jurisdição de forma
precípua, como forma de estímulo à criação e revitalização de sentimentos e práticas
horizontais que deveriam ser o mecanismo de controle original dos fatos em sociedade.
O poder estatal deve não apenas ter atitudes tendentes a gerir situações limítrofes e/ou
de grande relevância social (atuação seletiva em face de ultima ratio), como, e
principalmente, em nosso ver, fortalecer vínculos e dinamismos sociais através da
deliberada não-atuação. Evitar a judicialização de conflitos e situações sociais até as
fronteiras de uma inércia então inaceitável parece ser a única forma de preservar uma
série de valores democráticos que são, ironicamente, literalmente esmagados quando a
jurisdicionalidade chega para “resolver” o problema de forma “legítima” e “segura”.
Dentre essa noção, é necessário ponderar sobre o quanto de não-invasividade o conflito
22
“A modernidade disciplinou não apenas os homens, mas todas as coisas que pudessem estar fora do
lugar. Mary Douglas refere que o reconhecimento de qualquer coisa fora do lugar constitui-se em
ameaça, assim as consideramos desagradáveis e as varremos vigorosamente, pois são perigos em
potência. Nesse processo de limpeza, os perigos são semi-identitários. A modernidade criou essa
compulsão, esse desejo irresistível de ordem e segurança. O mundo perfeito, utopia dos iluministas, seria
totalmente limpo e idêntico a si mesmo, transparente e livre de contaminações”. GAUER, Ruth. A
fundação da norma. Para além da racionalidade histórica. Porto Alegre: Edipucrs, 2011, p. 78.
23
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instrumentalidade do Processo. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
pode impor à sua classificação penal e processual-penal pelas agências oficiais.
Fundamentais, pois as noções (direito material) de Ofensividade24 e o instituto (direito
processual) da Justa Causa para a ação penal, no instante em que parecem eficazes
limitadores, além de categorias que, mesmo endógenas à lógica jurídica, funcionam
como instrumento de (auto) crítica da atuação do sistema.
Importante referir que, nesse intuito, é fundamental que, conscientes da necessidade de
limitar ao estrito mínimo imprescindível a atuação do sistema penal (valorização, enfim,
do vilipendiado princípio de intervenção mínima), a Justa Causa para a ação penal seja
critério de avaliação político-criminal25 (poder-se-ia dizer política processual criminal)
das situações colocadas frente à jurisdição. Rejeitamos, pois, uma idéia clássica de justa
causa como (mero e inócuo) critério conformador de outras considerações
exclusivamente dogmáticas, tal e qual o (caduco) trio liebmaniano das ditas “condições
da ação”26.
É, igualmente, fundamental, a admissão de que é necessária uma nova postura frente à
atuação jurisdicional, que não apenas aja refreando a absorção de conflitos cotidianos
com base em critérios como sua qualidade bagatelar (por exemplo), mas como nítido,
admitido e militante contrafluxo. Uma jurisdição que devolva às partes a pretensão de
resolução judicial de certos conflitos como um alerta às mesmas para que passem a
assimilar certas situações inerentes à vida e procurar, para elas, soluções relacionais
longe da esfera judiciária.
Uma jurisdição, por fim, que rejeite (literal e figurativamente) ações penais como
24
MANTOVANI define uma das facetas do princípio da ofensividade como uma espécie de medidor
(baricentro) de um direito penal constitucionalizado e, por isso “vinculante”: “Perché il principio di
offensività possa esplicare la sua piena funzione político-garantista occorre che esso costituisca, prima
ancora, che canone di interpretazione, innanziutto canone di costruzione legislativa delle fatispecie
criminose”. MANTOVANI, Ferrando. Principi di Diritto Penale. Padova: CEDAM, 2002, pp. 82-83. Cf.
D’ÁVILA, Fábio Roberto. Ofensividade em Direito Penal. Escritos sobre a teoria do crime como ofensa
a bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
25
“Quando se fala em justa causa, está se tratando de exigir uma causa de natureza penal que possa
justificar o imenso custo do processo e as diversas penas processuais que ele contém. Inclusive, se
devidamente considerado, o princípio da proporcionalidade visto como proibição de excesso de
intervenção pode ser visto como a base constitucional da justa causa”. LOPES JR., op. cit., pp. 364-365.
26
“Reafirmamos nós que a justa causa não constitui condição da ação, mas a falta de qualquer uma das
apontadas condições da ação implica falta de justa causa: se o fato narrado na acusação não se
enquadrar no tipo legal; se a acusação não tiver sido formulada por quem tenha legitimidade para fazêlo e em face de quem deva o pedido ser feito; e, finalmente, se inexistir o interesse de agir, faltará justa
causa para a ação penal”. ASSIS MOURA, Maria Thereza Rocha de. Justa Causa para a Ação Penal.
Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 221.
espécie de estímulo ou magistério para que – em respeito à dignidade humana – procure
criar na comunidade não o “abandono” (a crítica pusilânime dos puristas), mas o
sentimento de que uma sociedade só será mais humana no instante em que as pessoas se
reconheçam horizontalmente enquanto tal. E esse reconhecimento passa pela gama de
conflitos sociais que podem e devem ser estimulados à composição social para fora dos
muros do Tribunal, enquanto espécie de “pai zeloso” da comunidade27, cujo ideal de
proteção termina por vezes atrofiando os caminhos do acaso, do inesperado, do choque,
do trauma (tão necessário, por vezes), rectius, da vida.
Vivenciamos hoje a ressaca de um ideal de postura jurisdicional que é abrangente ao
nível de impedir que a sociedade produza anticorpos para os atritos do mundo.
Conceitos
como
o
da
(ausência
de)
Proporcionalidade
por
“deficiência”
(untermassverbot), muitas vezes escorados na “necessidade” de se “proteger” valores
constitucionais, os aniquilam no reverso da moeda, uma vez que excluem do âmbito de
discussão o quanto de “liberdade” ou de “dignidade” pode haver uma resolução de
problemas para fora ou para além da tutela (o termos diz mais do que aparenta) judicial.
Rejeitar a tutela de algumas das situações mundanas que precisam caminhar com as
próprias pernas sem a gama tremenda de conseqüências e efeitos colaterais do uso da
máquina punitiva parece, a nosso ver, a atitude mais nobre que um judiciário
comprometido com a - verdadeira - mudança social pode tomar.
O sonho de certas posturas conferidas à lógica processual (que inflam o papel
“democrático” da jurisdição enquanto “responsável” por “manter a paz” no seio social)
segue ilustrando uma realidade onde o medo de um caos que jamais foi documentado de
fato faz com que a própria crença se mantenha em pé: o punitivismo mais obscuro e o
garantismo mais libertário se encontram, tristemente, ameaçando com o dedo em riste
quanto à obrigatoriedade de não serem relegados em prol de uma barbárie que
(iludamo-nos) já pode ser o que há, aqui e agora.
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DIVAN, Gabriel Antinolfi. Decisão Judicial nos Crimes Sexuais – o julgador e o réu interior. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2009, especialmente pp. 167-178. Cf., igualmente, CARVALHO, Amilton
Bueno de, O Juiz e a Jurisprudência: um desabafo crítico. In: BONATO, Gilson (Org.). Garantias
Constitucionais e Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 9.
É fato que uma existência sem alarmes e sem surpresas significa, sem dúvida, mais a
mortificação completa do que propriamente a paz.