Livro 2 Fontes - completo

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Livro 2 Fontes - completo
Série Estudos Medievais 2
FONTES
Gladis Massini-Cagliari
Márcio Ricardo Coelho Muniz
Paulo Roberto Sodré
(Org.)
Araraquara
GT de Estudos Medievais - ANPOLL
2009
Série Estudos Medievais
n. 2
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL)
– Grupo de Trabalho Estudos Medievais
Comissão Científica:
Célia Marques Telles (Universidade Federal da Bahia/UFBA)
Lênia Márcia Mongelli (Universidade de São Paulo/USP)
Maria do Amparo Tavares Maleval (Universidade Estadual do Rio de Janeiro/UERJ)
Maria Isabel Morán Cabanas (Universidade de Santiago de Compostela/USC)
Rip Cohen (The Johns Hopkins University [USA])
Stephen R. Parkinson (University of Oxford [U.K.])
Yara Frateschi Vieira (Universidade Estadual de Campinas/Unicamp)
Catalogação:
Ana Maria de Matos - CRB 12/ES n. 425
Programador visual do e-book:
Erivelto Alves Moitinho
[email protected]
19 8194-6420
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
S487
Série Estudos Medievais 2: fontes [recurso eletrônico] / Gladis Massini-Cagliari, Márcio Ricardo
Coelho Muniz, Paulo Roberto Sodré, organizadores. – Araraquara : ANPOLL, 2009.
(Série Estudos Medievais ; n. 2)
Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader.
Modo de acesso: World Wide Web:
<http://www.fclar.unesp.br/poslinpor/gtmedieval/index.htm?id=poslinpor>.
ISBN 978-85-89760-03-4
1. Literatura medieval – História e crítica – Fontes. 2. Textos medievais – História e crítica
– Fontes. 3. Poesia portuguesa – até1500 – História e crítica – Fontes. 4. Poesia medieval
italiana. 5. Teatro medieval – Fontes. 6. Mulher na literatura. 7. Direito medieval – Fontes. I.
Massini-Cagliari, Gladis. II. Muniz, Márcio Ricardo Coelho. III. Sodré, Paulo Roberto. IV.
Título: Fontes.
CDD:
809.8940902
CDU: 82(091)“04/14”
Sumário
CAPÍTULOS
ESPELHO DOS MONGES DE SÃO BENTO .
Profa. Dra. Alícia Duhá Lose (FSBB/PPGLL/UFBA)
O ITINERARIUM EGERIAE E A CRONICA GERAL DE ESPANHA DE 1344: UMA
METODOLOGIA NO ESTUDO DIACRÔNICO DE FENÔMENOS LINGÜÍSTICOS NA
ROMÂNIA
Profa. Dra. Célia Marques Telles (UFBA, CNPq)
O COMPARATIVISMO COMO FIO CONDUTOR DE UM ESTUDO SOBRE AS CANTIGAS
DE TROVADORES GALEGOS E A LÍRICA CONFESSIONAL DAS TROBAIRITZ
ITALIANAS ISABELLA DI MORRA E VERONICA FRANCO
Profa. Dra. Delia Cambeiro (UERJ)
CARACTERÍSTICAS PROSÓDICAS DO PORTUGUÊS ARCAICO:
METODOLÓGICAS
Profa. Dra. Gladis Massini-Cagliari (UNESP/Araraquara; CNPq)
ESTUDOS INTERDISCILPLINARES SOBRE
PORTUGUÊS
Profa. Dra. Lênia Márcia Mongelli (USP)
O
TROVADORISMO
QUESTÕES
GALAICO-
"POSTO QUE IOAM DELENZINA/ O PASTORIL COMEÇOU": METODOLOGIA PARA O
ESTUDO DAS FONTES IBÉRICAS DO TEATRO VICENTINO
Prof. Dr. Márcio Ricardo Coelho Muniz (UEFS)
DA RETÓRICA MEDIEVAL
Profa. Dra. Maria do Amparo Tavares Maleval (UERJ)
SOBRE A METODOLOGIA DO PROJETO DE PESQUISA NON ES JUEGO DONDE
HOMBRE NON RÍE: ASPECTOS DA SÁTIRA GALEGO-PORTUGUESA
Prof. Dr. Paulo Roberto Sodré (Ufes)
AS CANTIGAS DE AMOR DE VIDAL, JUDEU D'ELVAS
Profa. Dra. Yara Frateschi Vieira (Unicamp)
Publicações
PREFÁCIO
Em Julho de 2008, o Grupo de Trabalho (GT) de Estudos Medievais da Associação Nacional de
Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Lingüística (Anpoll) publicou o primeiro do que pretende ser
uma seqüência de e-books (Série Estudos Medievais), com o objetivo de divulgar os trabalhos
produzidos pelos membros do GT. A coleção que se iniciou em 2008 e agora apresenta seu segundo
número tem como função primeira dar a conhecer, a um público especializado e diversificado, um
conjunto de trabalhos que reflete sobre aspectos fundamentais da pesquisa sobre Língua e Literatura
da Idade Média: seus métodos, suas fontes, seus corpora, seus objetivos, seu alcance.
O tema do primeiro livro “virtual” organizado pelo GT foi Metodologias; desta forma, o e-book
reuniu trabalhos cujo assunto é o dos procedimentos metodológicos adotados por seus integrantes
no desenvolvimento das pesquisas em andamento ou concluídas. Resultado dos encontros
inaugurais do GT, o primeiro volume da Série Estudos Medievais visou a mostrar, sobretudo a
estudantes e pesquisadores, a importância da metodologia na discussão dos temas medievais, seja
na
área
dos
estudos
lingüísticos,
seja
na
dos
literários.
Prosseguindo com a importante discussão metodológica iniciada no número 1 da Série, este número
2, dedicado às Fontes, objetiva a investigação dos documentos, das obras, da fortuna crítica e dos
materiais imprescindíveis à constituição de corpora e à fundamentação teórica das pesquisas do
Grupo. A maior parte dos trabalhos reunidos neste volume foi apresentada no segundo encontro
temático do GT, ocorrido em Goiânia, na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás
(UFG), de 2 a 4 de julho de 2008. Como de praxe, o encontro interno do GT realizou-se como uma
das atividades do XXIII Encontro Nacional da ANPOLL, associação que o abriga.
Este volume reúne dez artigos, que ilustram as linhas de trabalho que o Grupo vem desenvolvendo.
O primeiro, de autoria de Ana Donnard, focaliza a Historia Brittonum como fonte primária para o
estudo do mito arturiano. Tomando como referencial a datação paleográfica, a Historia Brittonum
pode ser considerada como a primeira fonte escrita para o mito de Artur, daí sua crucial importância
para os estudos dessa área. Seguindo nessa linha, além de apresentar pontos relevantes com relação
à fonte primária propriamente dita (autoria, manuscritos remanescentes, problemas etc.), Ana
Donnard traz já algumas valiosas indicações de estudos que investigam o tema.
No segundo capítulo, Clarice Zamonaro investiga as relações entre as imagens da natureza e os
estados sentimentais femininos na lírica medieval, recortando e indicando cantigas de amigo
galego-portuguesas, com o objetivo de construir o perfil da mulher medieval. Parte a autora de um
levantamento histórico e geográfico do Norte de Portugal e da Galiza (através de um breve estudo
da paisagem, do espaço físico), ressaltando a influência modificadora dos elementos da paisagem
nas situações sentimentais da donzela em cantigas selecionadas e seu reflexo na poesia dos séculos
XV
e
XVI,
especificamente.
O terceiro capítulo, de autoria de Delia Cambeiro, prossegue na linha de indicar as fontes primárias
para um estudo comparativo entre as líricas medievais galega e italiana. O foco principal é a
dificuldade de acesso às fontes da lírica medieval italiana, no contexto da orientação de um projeto
de iniciação científica. Apresenta excertos de cantigas italianas que, quanto ao gênero, são
consideradas
pela
autora
como
cantigas
de
amor
e
de
amigo.
No quarto capítulo, Gladis Massini-Cagliari investiga uma das fontes para o estudo das relações
entre o ritmo musical e o ritmo lingüístico, na época trovadoresca, mostrando como a notação
musical que sobreviveu em manuscritos medievais pode se constituir em indício importante de
pistas que levam à melhor caracterização da prosódia da língua da época. A exemplificação é feita a
partir das sete cantigas de amor musicadas de D. Dinis presentes no manuscrito Sharrer.
O texto de Lênia Márcia Mongelli, que constitui o quinto capítulo deste livro, focaliza as relações
entre as fontes manuscritas da produção poética galego-portuguesa e todo um arsenal teórico que
remonta à Antiguidade greco-romana e que a sustenta. A autora mostra os desacertos e as
incorreções de um juízo comum, que parece distanciar o leitor moderno da poesia lírica
trovadoresca, baseado na concepção de ela se prender a normas rígidas de composição, das quais
resultaria uma fixidez incompatível com a subjetividade que o lirismo costuma explorar à exaustão.
Já o sexto capítulo, de autoria de Márcio Ricardo Coelho Muniz, analisa o Auto dos Escrivães do
Pelourinho, texto anônimo do século XVI português, tendo como referência básica o diálogo deste
com o teatro do dramaturgo Gil Vicente e com o gênero da farsa medieval. O autor nos mostra que
“a constância com que na leitura do Auto dos Escrivães do Pelourinho as personagens, estruturas,
ações, linguagem e sintaxe teatral desenvolvida por Gil Vicente em suas obras vêm a nossa
lembrança, não deixa dúvida que seu teatro pode não ter sido fonte necessária deste Anônimo, mas
foi com certeza um excelente elemento de transmissão daquela tradição medieval”. Neste sentido, a
polissêmica noção de “fonte” assume mais um significado: a de um texto anterior, com o qual o
posterior
dialoga,
retomando-o.
O foco do capítulo seguinte, de Maria do Amparo Tavares Maleval, também recai sobre o estudo do
teatro medieval, e do Codex Calixtinus (Códice Calistino), nome através do qual é conhecido o
Liber Sancti Jacobi (Livro de São Tiago) escrito no século XII, cujo exemplar mais completo
pertence à Catedral de Santiago de Compostela, como uma de suas fontes. Segundo a autora, tratase de “um importantíssimo documento-monumento histórico, literário, litúrgico, musical, etc., que,
em sua preciosa recolha de ofícios religiosos diversos em honra do Apóstolo, ilustra fartamente
elementos indicadores das origens do teatro ocidental, como conductos, prosas, responsórios,
antífonas
e
farsas
(isto
é,
missas
‘representadas’)”.
O texto de Paulo Roberto Sodré, que constitui o oitavo capítulo desta coletânea, investiga os textos
de Afonso X, no contexto das fontes jurídicas medievais. Focaliza o conjunto de leis organizado por
Afonso X, Espéculo, Fuero real, Setenario e Las siete partidas,produzido entre os anos de 1250 e
1270. O objetivo principal é discutir a procedência de se utilizarem essas fontes para a compreensão
do deostar e do jugar de palabras, base discursivo-poética das cantigas de escárnio e maldizer.
O nono capítulo é de autoria de Pedro Carlos Louzada Fonseca; identifica e investiga algumas
fontes literárias da difamação e da defesa da mulher na Idade Média, indicando textos que considera
como “referências obrigatórias” para essa discussão. Toma, portanto, o conceito “fontes” como a
identificação de obras fundamentais de disseminação de um assunto específico, imprescindíveis
para a sua discussão. O autor considera na sua apresentação “alguns dos mais significantes textos e
autores antifeministas do século XII ao início do século XV”, através de “algumas das principais
manifestações daquela tradição antifeminista, desde as suas raízes clássicas, da literatura patrística e
do seu legado até as suas adaptações vernaculares na tardia Idade Média”. O objetivo principal do
estudo é apresentar uma visão crítica e analítica de alguns aspectos da misoginia e de um incipiente
tipo
de
defesa
da
mulher
na
expressão
literária
do
período
medieval.
Fechando o volume, o capítulo de Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes
Machado Filho objetiva apresentar os mais antigos manuscritos portugueses existentes no Brasil,
fontes fundamentais para o conhecimento da Língua Portuguesa do século XIV. Retomam, pois, o
conceito de “fonte” (ou “fonte primária”) como manuscrito em que sobreviveu um texto específico.
Os autores oferecem uma notícia circunstanciada sobre a existência e as características
paleográficas e lingüísticas de um conjunto de manuscritos medievais portugueses, composto do
Livro da Aves, dos Diálogos de São Gregório e de um Flos Sanctorum, trazidos para o Brasil por
Serafim da Silva Neto no ano de 1950. Apresentam, também, notícias das edições desses
manuscritos por pesquisadores do Setor de Língua Portuguesa da Universidade Federal da Bahia.
Da mesma forma como ocorreu no número 1 desta Série, os capítulos, aqui expostos sobre
múltiplos aspectos e sentidos relativos às “fontes” dos projetos voltados para as línguas e as
literaturas do Medievo românico, procuram “propor questões, pensamentos e alternativas para a
investigação de um assunto ao mesmo tempo complexo e ingrato, dadas as dificuldades de consulta
a fontes e fortuna crítica – muitas vezes recôndita em bibliotecas nacionais e internacionais de
acesso restrito –, e especialmente fundamental, considerada a importância de se estudar um legado
caro não apenas às nações em que se origina, mas também àqueles países que detectam nele os
traços de uma cultura que os atravessam, de ponta a ponta, a durarem persistente e
identitariamente”.
Comissão Editorial
Gladis Massini-Cagliari
Márcio Ricardo Coelho Muniz
Paulo Roberto Sodré
As fontes primárias para o estudo do
mito arturiano: Breves considerações
metodológicas sobre a HISTORIA BRITTONUM
Ana Donnard
Instituto de Letras e Linguística (ILEEL); Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
Resumo: Os estudos filológicos e historiográficos do conjunto de textos que compõem a
HISTORIA BRITTONUM revelam uma obra compósita, certo, mas reveladora de uma unidade
cultural que a torna um patrimônio de cultura celto-latina e britônica fascinante. Este fascínio
pode ser compreendido já que se trata de uma fonte primária do mito arturiano e que evoca o
personagem enigmático deste rei dos Bretões em sua fase mais primitiva. A literatura medieval
arturiana está longe, ainda nos dias de hoje, de esgotar as possibilidades de entendimento
histórico ou mitológico deste personagem arrebatador para o ocidente cristão. Neste estudo
apresentamos apenas algumas anotações que podem apontar caminhos para abordagens do texto
conhecido como de Nennius, discípulo de Elfoddw.
Palavras-chave: Mito arturiano; Historiografia literária; Estudos célticos; Matéria da Bretanha
Résumé: Les études philologiques et historiographiques sur l’HISTORIA BRITTONUM, ont
démontré son organisation composite, certes, néanmoins une unité culturelle peut être identifiée:
c’est une œuvre qui appartient à une culture brittonique d’un ensemble littéraire celto-latin dont
le répertoire fascine. Cette fascination est compréhensible car cette œuvre appartient au corpus
des sources primaires du mythe arthurien et présent le personnage énigmatique des rois des
Bretons dans son étape la plus primitive. Les études de littérature arthurienne essaient encore
aujourd’hui de comprendre la dimension historique et mythologique pour ce personnage
étourdissant de l’occident chrétien. Dans cette petite étude nous présentons quelques
annotations pour l’étude de ce texte connu comme de Nennius, disciple d'Elfoddw.
Mots-cles: Mythe arthurien; Historiographie littéraire; Études celtiques; Matière de Bretagne.
The Historia Brittonum is like a cairn of stones, uneven and ill-fitting… as
an example of the historian’s art it is atrocious. But it has the virtue of its
defects. We can see the individual stones of the cairn, and in some cases we
can trace the parent rock form which they came, and establish its age and
soundness.
Leslie Alcock
Série Estudos Medievais 2: Fontes
1
1. Introdução
Não raro encontramos a assertiva que trata da “cristianização do mito arturiano” nos
estudos publicados. Esta noção é imprópria se pensarmos no âmbito da complexa rede
de fenômenos e na natureza mesma do mito arturiano na sua origem e na composição de
suas fontes. Existe um mal entendido quando tratamos com a matéria céltica dos textos
arturianos fundadores do ciclo literário da Matéria da Bretanha.1 Costuma-se
transformar em um só processo as escrituras e re-escrituras dos textos arturianos que são
– e esta é a particularidade fascinante de nossos estudos medievais – um universo de
transações entre cultura oral e cultura letrada, mitologias antigas degradadas em folclore
e re-transpostas para o enorme canevas da literatura latina cristã da Antiguidade Tardia.
O personagem histórico é uma impossibilidade com a qual todos os arturianos têm que
se conformar. Mas também não podemos simplesmente encerrar os debates sobre a
historicidade de Artur-Arthur, como já proposto por grandes historiadores e filólogos
(DUMVILLE, 1977; WALTER, 2002). Não se pode afirmar a impossibilidade de uma
imbricação entre algum personagem real e o mito de um rei-guerreiro protetor dos
Bretões. As teses até agora apresentadas sobre a historicidade de Artur (se seguimos a
grafia latina) ou Arthur (se seguimos a grafia céltica), só fizeram confirmar o “mistério
de civilização” ou o “ystyr hud” anunciado pelo historiador galês Thomas Jones e este
mistério é claro que ainda merece muitos de nossos livros.2
É preciso compreender de uma vez por todas que um mito pré-cristão não é
“cristianizado’. Cristianizado é o autor ou o compilador, ou até mesmo o copista
medieval que o transcreveu e o alterou, sobrepondo ao fundo de memória oral céltica os
elementos que o fariam entrar na cadeia de textos produzidos pela tradição cristã ao qual
se filiava. Esta observação pode parecer um detalhe de menor importância, mas veremos
mais adiante que não. Compreender o extenso e complexo mundo da literatura medieval
arturiana requer um rigor metodológico, ao qual devemos nos ater, sob pena de
1
Os textos arturianos fundadores são todos aqueles em que encontramos a menção a Arthur. Gildas e
Bede não são textos arturianos porque não fizeram menção a Arthur, embora façam parte integrante de
qualquer estudo historiográfico sobre o mito arturiano.
2
Este artigo foi publicado pela primeira vez em língua galesa em maio de 1958 no Bulletin of the Board
of Celtic Studies, Vol XVII, sob o título: ‘Datblygiadau Cynnar Chwedl Arthur’ e traduzido em 1964 por
Gerald Morgan no periódico Nottingham Medieval Studies, vol VIII. Antecede, portanto, de um ano
apenas, ao Congresso da Sociedade Internacional Arturiana – IAS em Quimper na Bretanha – França, e
foi um marco para o início dos estudos antropológicos sobre o personagem lendário e seu mundo celtobretão e celto-irlandês.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
2
reproduzirmos eternamente os estereótipos arturianos mais conhecidos, impedindo que
a matéria céltica em sua exigência de erudição filológica, histórica e lingüística se faça
sentir. Arthur estará sempre, em suas origens, embebido nas brumas do mundo précristão dos celtas Atlânticos. Transformou-se em mito literário na passagem da
Antiguidade Tardia para a era Medieval, tendo sido, durante séculos, recriado pelas
narrativas daqueles que, cristianizados, não podiam se furtar à memória pré-cristã dos
Bretões, os ‘últimos romanos’ de um império em decadência (CASSARD, 1996;
FLEURIOT, 1980) .
Antes de iniciarmos nossas anotações faz-se necessário assinalar que o material prégalfridiano, ou seja, anterior a HISTORIA REGUM BRITANNIAE de Godofredo de
Monmouth, do qual faz parte a HISTORIA BRITTONUM, pertence ao estoque de
fundo britônico. Este material possui a maior parte do conteúdo antigo anterior e
contemporâneo à romanização e, ainda, este estoque não pode ser imediatamente
reconhecido pela datação cronológica dos manuscritos. Alguns manuscritos mais
recentes são, algumas vezes, transcrições de peças bem mais antigas do que outros
manuscritos menos recentes (JACKSON, 1964; BROMWICH, 1978). Os estudos sobre
este corpus pré-galfridiano devem se filiar, portanto, aos estudos lingüísticos, históricos
e paleográficos para a realização da crítica interna e externa destes textos.
Quanto aos textos pós-galfridianos, estes fazem parte da matéria literária propriamente
dita, onde a noção de autor pode ser menos complexa - nem sempre o é, mas pode ser como também a identificação da progressão cronológica das obras e suas filiações.
Igualmente aqui, nem sempre o é... mas estamos tratando da complexidade a que estão
fadados todos os medievalistas, historiadores, filólogos ou estudiosos da literatura
arturiana. Note-se que estamos falando do mais amplo ciclo literário do ocidente cristão,
perdendo apenas para a o ciclo da Bíblia. Este ciclo teve início no século VI e se estende
até os dias de hoje!
2. A HISTORIA BRITTONUM de Nennius – Escritura e Oralidade
A obra conhecida como a primeira fonte escrita do mito arturiano, na ordem cronológica
dos manuscritos, provoca imediatamente a questão de sua autoria, questão que deu
Série Estudos Medievais 2: Fontes
3
origens a inúmeros debates e hipóteses formuladas. Encontramos, nos vários estudos
sobre o famoso texto, ora a menção a um compilador chamado Nennius, ora a afirmação
que o texto teria sido obra de um autor cronista “anônimo”. A primeira possibilidade
pode ser até mesmo mais problemática do que a segunda, tendo em vista o próprio texto
da HISTORIA BRITTONUM (de agora em diante HB) e o conhecimento que temos das
especificidades da “autoria” de textos medievais, sobretudo da crônica histórica.
Os romanistas do período romântico, tais como Edmond Faral, tantas vezes citado nos
estudos sobre a literatura medieval arturiana, necessitavam a todo custo comprovar a
influência clássica na configuração da matéria arturiana. Sem dúvida não podemos
deixar de lado o canevas clássico. Obviamente, os clérigos da igreja céltica conheciam
os clássicos, mas nota-se uma clara recusa em aprofundar a pesquisa da literatura oral
céltica e mesmo vernácula − alguns mal conheciam o estoque imenso desta literatura
vernácula, sabendo menos ainda sobre as línguas britônicas – galês e bretão.3 Para os
romanistas era importante demonstrar que o material pré-galfridiano não poderia
explicar a evolução do mito literário, e a obra de Godofredo de Monmouth - HISTORIA
REGUM BRITTANIAE - não existiria sem a necessária e quase imperativa herança dos
clássicos latinos e gregos como componentes estruturantes do mito arturiano. Segue-se
a citação de um comentário de Edmond Faral sobre a HB que vale a pena considerar
para exemplificar nossa observação:
L’Historia Brittonum n’est pas une composition de caractère populaire. Sans
doute l’apparence est-elle autre. Le décousu de la composition telle que la
présentent les textes récents et amplifiés, ce fatras de traditions incohérentes
et puériles, ce style amorphe, indigent, incorrect, font penser au travail
d’intelligences élémentaires, obscurcies par l’ignorance et la superstition.
Pourtant, quand on considère l’œuvre dans sa forme première, on y découvre
un effort de combinaison, des procédés d’information, des connaissances, des
intentions, qui dénoncent en l’auteur un clerc de quelque expérience.
(FARAL, 1929, volume I, p. 73)
Foram necessárias várias gerações e múltiplas pesquisas interdisciplinares para se
propor adequadamente uma solução sobre a origem da HB. Faral se deu a tarefa de
3
E, ainda até pouco tempo percebia-se esta clara “resistência”, quiçá ainda hoje, mas não posso saber por
que não tenho mais conhecimento destes estudos não-celtisantes. O exemplo a que me refiro é a tese de
doutorado de Paul Zumthor que regurgita de impropriedades filológicas e historiográficas a respeito de
Merlin (ZUMTHOR, 2000).
Série Estudos Medievais 2: Fontes
4
comparar as interpolações entre o manuscrito de Chartres e o manuscrito Harleiano e
havia concluído:
A impossibilidade de definir, com exatidão, a partir do capitulo 37, o que, no
manuscrito harleiano, representa o texto original da HB e o que faz parte de
adições, impede de se fazer uma idéia correta do tipo de evolução ocorrida na
obra. (FARAL, 1929, volume I, p. 219).
Ora, Faral trabalhava com um numero reduzido de manuscritos a partir da edição de
Monmsen, conhecida por suas imperfeições e lacunas (THURNEYSEN, 1933;
JACKSON, 1964). Outro problema, ainda menos considerado pelo romanista francês,
era a dificuldade do estágio da língua latina ou do celto-latim, considerado então como
um pobre latim, sem a erudição dos classicistas de outras paragens. O mundo céltico
para os romanistas ainda era visto como um fim de mundo ou “finisterrae” de bárbaros
celtas, mesmo que a historiografia provasse o contrário e que a enorme produção de
literatura celto-latina e vernácula medieval contribuísse para outro entendimento a
respeito deste mundo céltico dsconhecido. E, ainda, outro elemento complicador de
interpretação dos dados internos e externos ao texto da HB era o fato de que hagiografia
sofria da noção de imperfeição total e mesmo de repúdio enquanto material para análise
comparativa.4 E, ainda, se a escola francesa ainda aceitava evocar alguns textos
vernáculos célticos, a historiografia literária inglesa se recusava categoricamente a
analisar o corpus da literatura britônica. Ao longo de um século de produções
acadêmicas, com a primeira edição da HB por Joseph Stevenson (1838), até a edição e
tradução de W. Wade-Evans, (1938) as dificuldades, sem resposta, se transformaram em
um conceito de obra sem utilidade para a historiografia da Bretanha insular na
Antiguidade Tardia.
Um grande número de manuscritos compõe o corpus da HB que se reagrupam em
quatro “famílias”, cujo conjunto cobre um período bem longo: do século IX ao século
XIII. A primeira família compreende o manuscrito chamado de Harleiano 3859 com o
manuscrito de Londres Cotton Vesp. D. XXI do século XII. A segunda família
compreende o manuscrito Z de Chartres numero 98, o mais antigo, de origem bretã
4
Note-se que no corpo da HB temos fragmentos de vidas de santos.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
5
armoricana.5 A terceira família que é atribuída a Gildas reagrupa quinze manuscritos e a
quarta família, conhecida como de Nennius contém uma versão irlandesa que é a Lebor
Bretnach do século XI. E ainda, esta é uma classificação simplificada (FLEURIOT,
1980, p. 245-6).6 Esta classificação não é a mesma segundo o editor e muito
frequentemente encontramos informações desencontradas em relação às denominações
e datas dos manuscritos. A erudição nem sempre é muito fiel à cientificidade ou então à
preocupação com a transmissão do conhecimento, infelizmente. Não raro os textos de
historiografia literária são confusos, até mesmo incoerentes, lacunares na questão de
importância fundamental, a tal ponto que podemos supor um desejo expresso do
erudito-autor, ainda que dissimulado, em ocultar os caminhos que levariam seu leitor ao
desvendamento do problema objeto da pesquisa. Isso acontece também com os estudos
da Arqueologia. Por isso podemos sem receio comparar os estudos filológicos e os
relatórios de campo dos arqueólogos dentro de um mesmo dinamismo psíquico a que
estão sujeitos um e outro.
O conjunto dos manuscritos, a proveniência e as datas, o estado da língua latina e o
conteúdo histórico associado a resíduos mitológicos confirmam uma aura particular
desta obra fragmentada que é a HB − um cairn de mitologia e historiografia britônica
com bem disse Alcock em epígrafe neste artigo (ALCOCK, 1971). Quanto à
classificação menos poética e mais acadêmica, devem-se considerar as diferentes
correntes da filologia, as abordagens variando segundo as premissas para cada
classificação. Estes elementos já indicam que a HB não á uma obra de fácil abordagem.
A diversidade de manuscritos implica então em diferentes elementos de análise e
configuram ao estudo da HB uma matéria em si mesma.
Diversos elementos devem ser considerados para a crítica intera e externa do(s) texto(s):
as diferentes caligrafias, as glosas célticas ou latinas, as interpolações, as supressões, a
origem geográfica de cada versão, a lingüística histórica. Para o historiador, resta a
5
Queimado durante a Segunda Guerra Mundial em um bombardeio, ele pode ser consultado, hoje, apenas
em fragmentos micro filmados, mas a consulta a estes fragmentos pode ser quase uma aventura em O
nome da Rosa ou no estilo Código Da Vinci. Colocando o humor à parte, estes manuscritos necessitam de
um projeto de pesquisa de alto nível para serem liberados ao pesquisador. A digitalização na WEB, como
meio democrático para os medievalistas, ainda está longe de se concretizar, embora já tenha, obviamente,
evoluído bastante em direção ao melhoramento do quadro de dificuldades anteriores.
6
Uma listagem de todos os manuscritos da HB conhecidos pode ser encontrada na Addenda de Dumville
(1990).
Série Estudos Medievais 2: Fontes
6
complexidade de uma época revelada através de uma grande fragmentação do corpus,
devendo se contentar em relacionar os textos com os dados da arqueologia, que por sua
vez mais apresenta novas questões do que respostas aos inúmeros problemas
apresentados pelo corpus literário – do qual obviamente Arthur é um dos mais
complicados e fascinantes.
À diversidade de manuscritos da HB é preciso acrescentar as hagiografias, quebracabeças de riqueza impressionante, mas ainda mais complexo para a análise
comparativa dos textos.7 A fronteira do “horizonte histórico” da HB é sem dúvida
fascinante, e, sobretudo exigente do ponto de vista metodológico. Em se tratando de
sociedades de tradição oral que se tornaram letradas (no sentido de escritura) o
horizonte histórico é certamente um desafio para os cronistas das gerações posteriores.
O manuscrito mais antigo da HB está em defasagem de três séculos em relação ao
período de referência. Portanto, tratou-se de um dever de memória de três séculos de
tradição oral – do século V ao século VII.
Os séculos de referência da HB são indiscutivelmente decisivos para as culturas
britônicas. As primeiras literaturas vernáculas se organizavam com os seus acervos de
memória pré-cristã. As línguas célticas se conservavam ao lado da latinização
expandida, da oficialização do latim como língua de culto e também administrativa. A
tradição bárdica galesa atesta o fenômeno, o gaélico na Escócia e na Irlanda seguiram as
trilhas do celto-latim e da literatura vernácula. O bretão do continente estando ainda
sujeito a diferentes hipóteses quanto à sua configuração literária não-latina antes do
século V (SIMS-WILLIAMS, 1991; BRETT, 1989). Com exceção de Gildas e Bede,
autores anônimos utilizarão a língua latina com uma margem de negociação com o
céltico. Afinal de contas, o latim não estava apto a traduzir as “sutilezas” de uma língua
bárbara... Na alta idade média dos territórios célticos os autores celtófonos produziram
muitas obras em língua latina, mas este conjunto deve ser visto à luz de suas
especificidades: pelo seu vocabulário, gramática e fraseologia. A literatura celto-latina
representa um dos fenômenos mais interessantes da filologia medieval (HOWLETT,
7
Sobre o material pré-galfridiano do mito arturiano e as hagiografias ver DONNARD, Ana ‘La
Chronique de Saint Brieuc, le Livre des faits d’Arthur et le Librum Vetustissimum de Geoffroi de
Monmouth’ IN : ACTES DU 22e CONGRÈS DE LA SOCIETÉ INTERNATIONALE ARTHURIENNE,
Réunis et publiés en ligne par Denis Hüe, Anne Delamaire et Christine Ferlampin-Acher, Rennes 2008.
http://www.sites.univ-rennes2.fr/celam/ias/actes/auteurs.html
Série Estudos Medievais 2: Fontes
7
2007).8 Mas é preciso notar que para os latinistas do início do século passado, em
relação ao latim da HB, não estava reservado nenhuma condescendência:
Le latin de Nennius ne se recommande ni par la variété ni par la correction du
style. C’est visiblement l’œuvre d’un clerc qui n’a guère fréquenté les auteurs
classiques. […] Ce latim, tel quel, présente cet avantage qu’il reflète
l’influence du milieu indigène médiocrement lettré dans lequel a vécu
l’auteur. (LOT, 1932, p. 157)
Em 1934 Ferdinad Lot publicará um trabalho pioneiro: uma re-edição do manuscrito
Harleiano, com uma discussão detalhada do conteúdo a fim de identificar as possíveis
fontes da compilação (LOT, 1934). No entanto, não sendo um especialista celtófono,
várias lacunas e erros foram cometidos (DUMVILLE, 1986, p. 3) Três questões
fundamentais estavam em curso naquela época: a autenticidade de Nennius, a data da
primeira composição ou do texto primitivo e a validade ou não da HB como referência
histórica. Com a evolução dos estudos, leia-se menos preconceito e ideologia, e a
consequente compreensão do que realmente significam os textos celto-latinos, a noção
de “meio medíocre” se desfaz. A partir dos anos sessenta um novo interesse pela HB se
estabelece com base principalmente nas pesquisas de David Dumville e de suas edições
críticas (DUMVILLE, 1985). Desde então, esta obra passou de “medíocre” a
“extraordinária”, pelo contexto histórico em que se insere; pelo latim de influência
céltica; pela composição entre material pré-cristão e romano-cristão na passagem entre
Antiguidade e Antiguidade Tardia.
David Dumville não foi o primeiro a romper com uma tenaz resistência inglesa ao
estudo comparativo das fontes latinas e célticas para o período pós-romano da Bretanha
insular entre os séculos V e VI. Leslie Alcock e John Morris já tinham projetado na
cena acadêmica estes textos negligenciados. No entanto, a imensa obra de Morris
apresentava vários problemas de análise comparativa, ficando os estudos de Alcock
como a referencia mais sólida para os arturianos.
[…] both of these authors, breaking with the twentieth-century tradition of
English historiography, have seen fit to assign a great importance to written
sources deriving from the Celtic world, and indeed scholars involved in other
aspects of Celtic studies would wish to welcome these developments, since
8
Vale mencionar o Archive of Celtic Latin Literature on-line e CD-ROOM 2009 encontrado na Brespols
Publishers, www.brepols.net
Série Estudos Medievais 2: Fontes
8
they force the reluctant Anglo-Saxon to come to terms with neglected Celtic
texts. (DUMVILLE, 1977, p. 173)
Atualmente podemos seguir um consenso internacional sobre as características gerais da
obra, apesar, é claro, de algumas divergências que ainda subsistem entre os eruditos e os
universitários - como não poderia deixar de ser no mundo dos estudos célticos. Será
necessário então, para um estudo apropriado da HB, que se quer aqui apenas
introdutório, descartar as divergências de âmbito mais relacionado ao processo histórico
da Bretanha insular e nos atermos à análise historiográfica, tendo em vista a nossa
intenção que é a de fornecer apontamentos sobre o entendimento e a contextualização
das fontes primárias para o estudo do mito arturiano.
3. Nennius – Um compilador tardio
Se tomarmos a HB como primeira fonte escrita para o mito arturiano, neste estudo, é
porque tomamos o referencial que é a datação paleográfica. Dissemos anteriormente que
uma literatura de fundo oral antigo, e conseqüentemente, seu estoque mitológico ou
histórico, não podem ser analisados unicamente do ponto de vista da cronologia dos
manuscritos. Faz-se então necessário aqui comentar brevemente o poema Y Gododdin.
Até o momento presente é impossível afirmar categoricamente que os versos (englyion)
cochore brein du ar uur / “caer ceni bei ef arthur” ( Gordur alimentou os corvos na
batalha, embora ele não fosse Arthur) são anteriores à HB.9 Apesar de todos os esforços
para encontrar uma resposta historiográfica a origem desta citação enigmática
(JACKSON, 1963; JARMAN, 1990; PADEL; 1998), não foi possível estabelecer com
precisão quando estes versos entraram na composição da elegia. A referência a Arthur
pode fazer parte de uma adição quando da transcrição do poema no século XIII, ou
mesmo antes, em meados do século V (c. 600) quando Arthur já era um mito de
guerreiro bretão, data de composição do poema na sua etapa oral. Apesar de um estudo
lingüístico de reconstituição da etapa primitiva do poema, realizado por John Koch
9
Tradução minha do inglês a partir da tradução do britônico antigo de John Koch (1997). Alimentar os
corvos na batalha significa matar muitos inimigos. Os celtas decapitavam os inimigos e deixavam seus
corpos ao relento para alimentar os corvos, que eram uma das aves sagrada da mitologia. Os corvos,
como se pode facilmente entender, eram as aves relativas ao atributo do poder guerreiro.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
9
(1997), que confirmaria a hipótese de uma datação baixa, os eruditos celtólogos
resistem à sua proposição da antiguidade do Y Gododdin, como resistem também à
proposição de Kenneth Jackson (1963) de considerar esta peça de literatura céltica como
a comprovação da existência histórica de um Arthur chefe de guerra britônico. O
assunto é extenso e nos limitamos aqui apenas a esta anotação para justificar nossa
afirmação de que a HB deve ser tratada como fonte primária para o mito arturiano antes
das outras que compõem o conjunto de fontes primárias arturianas no caso de um estudo
historiográfico, obviamente.10
Para as fontes escritas da Bretanha insular entre Antiguidade Tardia e o início da era
medieval devemos considerar a EXCIDIO BRITANNIAE de Gildas (c. 544-9)
HISTORIA ECCLESIASTICA GENTIS ANGLORUM (731) de Bede. Verificar as
interpolações entre este dois textos e a HB (829) é mais do que obrigatório. No entanto,
mesmo se um grupo de manuscritos da HB foi atribuído a Gildas, este pode ter sido
apenas um recurso para se valorizar, no contexto da tradição insular, um conjunto de
manuscritos anônimos.
Entre a segunda metade do século VI e o final do século VII a Bretanha insular não teve
uma atividade literária, ou senão nenhum manuscrito que tenha sido conservado. O
manuscrito mais antigo, o Z de Chartres foi produzido na Bretanha armoricana, para um
público insular (DUMVILLE, 1986; KERLOUEGAN, 1987). Este dado é importante
para o estudo da obra, pois trata-se de reconhecer o horizonte histórico desta obra, cuja
composição se deu no século IX. Neste caso podemos entrever o quanto é importante
conhecer o corpus da literatura celto-bretã para entender o contexto da HB.
As possíveis fontes para o compilador anônimo da primeira família de manuscritos
seriam: as crônicas de Próspero de Aquitânia, Isidoro de Sevilha, Eusébio Jerônimo
(378), o Cursus Paschalis de Vitório de Aquitânia, as narrativas orais sobre São
Patrício, o Liber Beati Gemani (808), um poema vernáculo (britônico) sobre as batalhas
de Arthur, alguns textos dos ingleses, sobretudo a lenda de Hengest e Horsa em relação
10
No entanto, no nosso entender, as possibilidades de interpolação tardia da estrofe (englyion) na elegia
do Y Gododdin são tão dificilmente explicáveis quanto a primeira hipótese que é a de se tomar a peça
literária no seu conjunto e entender este Arthur como parte integrante original do poema na sua etapa oral,
tal qual, afinal, foi transcrita no manuscrito. Como disse, o assunto é extenso e faz parte do ‘ystyr hud’ de
Arthur, matéria para outro estudo.
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10
com Gwrtheyrn (Vortigern) e Gwrthefyr (Vortemir) e o Pilar de Elise. Este último tratase de um monumento em forma de cruz erigido por Cyngen, Príncipe de Powys (clã
galês) em honra a seu avô Eliseg ab Gwylog no século IX. A primeira tradução da
inscrição funerária foi realizada por Edward Llwyd, antiquário e lingüista galês em
1696. Este monumento é muito importante para a arqueologia dos reinos britônicos e
conseqüentemente um dado, ainda que indireto, para o entendimento da organização
fiduciária dos clãs ou “reinos” dos bretões contemporâneos de Arthur, além do fato de
que as inscrições em latim tratam de vários personagens encontrados na HB. A
transcrição de Edward Lwyd impediu a perda desta importante peça do quebra cabeças
arturiano, pois o pilar foi parcialmente destruído durante a guerra civil inglesa (1641–
1651). Mas, ainda, e mais uma vez, os personagens históricos contemporâneos de
Arthur estão lá, mas ele, Arthur, não é citado.
Figura 1. Pilar de Eliseg construído no século VI por Cyngen o príncipe de Powys
em homenagem a seu bisavô atual País de Gales - Inglaterra
Outros textos podem ter contribuído para a composição da HB e a resolução das lacunas
deixadas pelo tempo, como a coleção conhecida como British Historical Miscellany, os
poemas da tradição poética galesa na sua fase oral, e os textos autênticos de São
Patrício. Estas são as referências assinaladas por David Dumville, que considera então
que a primeira fase de composição da HB foi realizada por um organizador de talento,
bastando avaliar suas fontes para concluirmos que se tratava de um erudito de seu
tempo. O conjunto da obra apresenta, portanto, uma cultura diversificada, com
conhecimento de poemas britônicos (galês-antigo), textos da cultura latina e ainda o
Série Estudos Medievais 2: Fontes
11
conhecimento de textos em irlandês antigo. Este compilador anônimo seria, segundo
Dumville, “a synchronizing scholar”, ou seja, um erudito capaz de transformar as
lacunas da história britônica num conjunto coerente ou senão pelo menos suscetível de
ser aceito pelos seus contemporâneos:
I conclude that he was a cleric, probably from the border- regions of southern
Wales but working in Merfyn Frych’s Gwynedd, perhaps even at his court.
He may have been employed as an interpreter, in addition to his religious
duties. […] I consider him to have made an intelligent attempt at a history of
his countrymen from their origins down to the effective conclusion of the
north-British wars at the end of the seventh century. (DUMVILLE, 1977, p.
176)
Este método de sincronização foi particularmente conhecido na Irlanda medieval nas
diferentes escolas do século IX. (DUMVILLE, 1985, p. 91-8). Neste esforço para se
construir uma história homogênea, a partir das contradições e descontinuidades, as
cronologias teriam sofrido adaptações que são identificadas como processos de
“harmonização” operados pelos cronistas celtas. O Lebhor Gabhala Eirenn seria um
destes exemplos, assim como as obras dos poetas Flann Mainnistrech e Gilla Coemain e
ainda as genealogias em manuscritos do século XII. Em irlandês antigo ‘comuaimm’
traduz a idéia de harmonizar diferentes textos ou narrativas (CHADWICK, 1963).
Sugerindo esta mesma circunstância para a Bretanha insular, o professor Dumville
destaca que a HB pode ter sido a primeira tentativa de se construir uma história sintética
dos Bretões, logo após o período romano. Esta tarefa seria, então, e este dado é
importante para o estudo do mito arturiano, organizada a partir de uma escola literária
na Bretanha insular, trabalhando simultaneamente com os scriptoria da Irlanda e da
Bretanha armoricana. Quanto ao conjunto de manuscritos atribuídos a Nennius, estes
são posteriores e revelam a fase final da longa composição da obra. Ainda seguindo as
considerações de David Dumville, este compilador, Ninnius, ou Nennius como é
conhecido tradicionalmente, trabalhou na composição definitiva da obra e sua data não
deve se estender para além dos meados do século XI (DUMVILLE, 1975, p. 94). A
recensão, chamada de Harleiana, bem como a primeira fase da complilação dos textos
não puderam ter seus autores ou mesmo pseudo-autores, identificados: “The author of
the primary recession, a Welsh Latin text assignable to the year 829/30 (the fourth year
of the King Merfyn of Gwynedd), remains anonymous” (DUMVILLE, 1986, p. 4-5).
Estas conclusões podem ainda se alterar, os estudos filológicos para a HB poderão
Série Estudos Medievais 2: Fontes
12
quem sabe, revelar outras circunstâncias, embora seja um consenso internacional
creditar aos trabalhos de David Dumville uma etapa conclusiva para o estudo
historiográfico dos manuscritos que compõem a obra fundadora de mito arturiano.
4. O cairn filológico de Arthur dos bretões
Já mencionamos o fato de que as dificuldades das análises críticas para a HB resultam
da pluralidade de manuscritos que tinham origens distintas, possibilitando diferentes
datações. Ao estudo filológico propriamente dito se sobrepõem as dificuldades da
análise histórica a partir de fontes lacunares. O silêncio de Gildas sobre Arthur na sua
obra DE EXCIDIO BRITANNIAE gerou uma discussão de séculos, na tentativa se
compreender o personagem Arthur da HB. Mas devemos aceitar o fato de que o único
documento histórico sobre Arthur não permite a identificação do personagem. A
Mirabilia – parte da HB incorporada ao trabalho de sincronização histórica dos reinos
britônicos − transferiu totalmente o personagem chefe de guerra dos Bretões contra a
invasão saxônica em uma evemerização da qual os poetas se beneficiaram e da qual os
historiadores e os filólogos apenas podem assinalar os inconvenientes:
By the time of the Historia Brittonum, we may be quite sure that the
Arthurian legend had gathered some momentum. Observe for example, the
two occurrences of Arthur among the mirabilia at the end of that work. This
is not the stuff of which history can be made. The fact of the matter is that
there is no historical evidence about Arthur; we must reject him from our
histories and, above all, from the titles of our books. (DUMVILLE, 1977, p.
188)
Figura 2. Cairn com espada em Turin Hill perto de Rescobie, Angus. Localização NO5153 quase na
fronteira entre Escócia e Inglaterra. Copyright por David Shaw com licença Creative Commons
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Uma das tentativas mais recorrentes de sincronização se deu, apesar de todas as
impossibilidades, com o ciclo de Arthur. Seja na obra galfridiana, seja a partir dos
manuscritos galeses ou bretões armoricanos as tentativas para estabelecer esta
sincronização com a HB sempre encontram dificuldades, por vezes instransponíveis. A
tal ponto que só se pode pensar em Arthur a partir do estoque de material mitológico no
qual, devemos reconhecer, a coerência de elementos é sem dúvida surpreendente. Uma
sincronização entre Arthur, Ambrosius Aurelianus e Riothamus é, no entanto, muito
interessante e constrói certamente dúvidas que não são, e como não poderia deixar de
ser, de fácil resolução, tanto para refutá-las quanto para aceitá-las.
As teorias até hoje formuladas para encontrar o Arthur possivelmente histórico da HB
são excludentes e muitos são aqueles que hoje descartam completamente a noção de
historicidade de um personagem lendário rei dos Bretões assimilado a Arthur, assim
como David Dumville. Mas a matéria arturiana do ponto de vista da literatura irlandesa
ainda pode revelar muitos elementos até então negligenciados, bem como a literatura
perdida dos Bretões armoricanos, que pode ainda revelar outras abordagens, talvez até
mesmo sobre um personagem histórico evemerizado e, sobretudo, para a constituição do
estoque mitológico que se superpõe ao personagem da HB.
Os Bretões que imigraram para a península armoricana e que são descritos por Gildas
faziam parte da elite eclesiástica, portanto latinizada. Estes Bretões tiveram interesse em
compor com os Coriosolitas e os Ossímios e, mais tarde, com o Francos. Em 579 os
Bretões fizeram incursões nas regiões de Vannes e de Rennes. O desejo de se preservar
uma cultura britônica foi evidente: o nome da península mudou, a língua indígena
gaulesa mudou, enfim, mudou toda uma identidade e uma fisionomia galo-romana (ou
pelo menos é isso que nos querem fazer crer todos os historiadores da Bretanha). A
Armórica se tornou a Bretanha “la mineure” re-celticizada (?) e continental, a ponto de
ser designada como uma só Bretanha durante vários séculos nos textos medievais, e de
fato foi, durante o reinado de Conan, uma só Bretanha dividida pelo mar. Os
principados duplos de Dumonia e Cornualha (de 400 a 700) são voltados
espiritualmente para a Bretanha insular, terra maternal. Mas administrativamente os
armoricanos se saíram melhor do que os insulares, conseguindo longos anos de paz com
Série Estudos Medievais 2: Fontes
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os Francos e mantendo uma coesão, diferentemente do que se passava na ilhas –
Britania e Hibernia (Irlanda) (FLEURIOT, 1980).
Curiosamente a HISTORIA BRITTONUM é a história dos Bretões e não uma história
da Bretanha − título que evoca um grupo cultural e não um espaço geográfico. A
primeira composição da obra foi produzida na Bretanha armoricana. Por que razão? Os
homens da Igreja teriam todos imigrado para a península fugindo dos desastres
advindos da romanização e do esfacelamento dos domínios celto-bretões na ilha?
Teriam tido os Bretões de Arthur, na Armórica, um contexto mais favorável para a
elaboração de sua memória britônica, estando na península a salvo das lutas intestinas e
dos ataques estrangeiros? É o que nos faz entender Godofredo de Monmouth na sua
obra posterior ao ciclo da HB. De qualquer forma, os Bretões se reorganizaram
consistentemente neste novo território armoricano, e isto faz parte da história
documental e arqueológica armoricana. Mais tarde serão ainda os principais atores na
dignificação do mito arturiano e na sua divulgação oral. (BULLOCK-DAVIES, 1981;
TATLOCK, 1950). A obra galfridiana é uma arquitetura impressionante entre mitologia
celta e elementos históricos. A cultura britônica não poderia deixar de recolher suas
pedras, re-construindo este grande cairn cultural, entre romanização e celticidade
antiga. Mas com Godofredo de Monmouth, saímos do histórico-lendário para entramos
definitivamente no mito literário, inaugurando o ciclo que não deixará nunca de
encantar crianças, jovens e adultos, apaixonados por este Arthur britônico misterioso
para sempre recolhido no Outro Mundo dos Celtas Atlânticos. A cada dia uma nova
pedra é adicionada a este cairn arturiano: monumento literário do ocidente celto-cristão.
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Série Estudos Medievais 2: Fontes
18
Relações entre as imagens da natureza e os estados
sentimentais femininos na lírica medieval
Clarice Zamonaro Cortez
Universidade Estadual de Maringá (UEM)
Resumo: Na Literatura Portuguesa, as cantigas lírico-trovadorescas objetivam reconstruir, de
forma permanente, o perfil feminino e o quadro lírico do cotidiano medieval, podendo-se
distinguir mais de um estrato de civilização, de cultura e de ambiente. Esse gênero apresentanos, geralmente, uma situação cujos elementos paisagísticos estão presentes, colocando-nos
diante de uma ou mais personagens, sob a forma de diálogo ou de breve narrativa. O presente
estudo objetivou investigar a construção do perfil da mulher medieval nas Cantigas de Amigo,
partindo-se de um levantamento histórico e geográfico do Norte de Portugal e da Galiza (breve
estudo da paisagem, do espaço físico) tendo o espaço literário como embasamento ao estudo da
simbologia da natureza. Comprovou-se a influência modificadora dos elementos da paisagem
nas situações sentimentais da donzela em cantigas selecionadas e seu reflexo na poesia dos
séculos XV e XVI, especificamente.
Palavras-chave: Cantigas; Perfil feminino; Natureza; Situações sentimentais.
Abstract In the Portuguese Literature, the lyric-troubadour songs permanently seek to rebuild
the female profile and the medieval daily lyric view, and it is possible to distinguish more than
one civilization, culture and environment extracts. This kind generally presents us a situation
where the landscape’s elements are present, putting us in front of one or more characters, under
the dialog way or brief narrative. The present study had the goal of investigating the medieval
woman profile construction in the Friends Songs, from a historical and geographic survey of the
North of Portugal and Galiza (brief landscape study, of the physical space) having the literary
space as basis for the study of the symbology of the nature. The modifying influence of the
landscape elements in the sentimental situations of the damsel in the selected songs was proved,
as well as its reflect in the poetry of the 15th and 16th centuries, specifically.
Keywords: Songs; Female profile; Nature; Sentimental situations.
1. Introdução
Do estudo da Literatura, independentemente do método escolhido, exigem-se certos
resultados concretos e evidentes. O que se espera de um estudo literário é,
primeiramente, a compreensão da identidade humana e social do autor cuja obra se
investiga e que permita compreender melhor esse ambiente, no qual a obra foi
concebida. Acima de tudo, espera-se que a literatura na sua qualidade de fenômeno e,
Série Estudos Medievais 2: Fontes
19
simultaneamente, transformação de outros fenômenos, permita-nos apreender a
dualidade manifestada no fato de um homem se exprimir por meio da língua e de a
língua ser expressa através do homem. Essa dualidade é a confluência de dois mundos
distintos: o mundo subjetivo (literatura) e o mundo objetivo (língua).
Os relatos históricos registram que o mundo objetivo tem se transformado, mas o que
sabemos do mundo subjetivo? Os textos poéticos dos séculos XV e XVI, por exemplo,
registraram a associação entre o amor e a guerra, rimando a serra (o local onde
habitavam as moças serranas) com a guerra dos amores não correspondidos.
Para responder tais indagações, primeiramente, consideremos os temas universais e
eternos, presentes na arte e na literatura, vistos e analisados como problemas
existenciais e sociais, naturalmente estudados como um problema linguístico. Dentre
eles, destaca-se o amor, manifestado de várias maneiras nas cantigas medievais do
gênero lírico. Nas cantigas de amor, por exemplo, os textos revelam um amor nãocorrespondido, reflexo de uma questão social e existencial. O sentimento da coita1 e a
morte como manifestações da natureza humana foram adquirindo novas cores
dependendo do lugar e da época em que ocorreram e o modo como foram
linguisticamente vividos.
Evidencia-se a literatura como um fenômeno e uma transformação de acontecimentos
vividos, experimentados, ou ainda, a transformação de outros fenômenos literários. A
abordagem de certos temas (como os acima citados) obedeceu a certos cânones,
considerando-se as épocas e os estilos literários. Camões, por exemplo, em suas Rimas,
poetizou o amor sob o ponto de vista platônico, conforme requeria o cânone do século
XVI.
A literatura medieval, do mesmo modo, requer posicionamentos metodológicos
específicos, considerando-se que foi produzida para ser cantada e ouvida. A sua
estrutura reflete a sua função e esta, por sua vez, as informações culturais e humanas da
sociedade feudal.
1
Coita ou cuita (s.f.) pena, desgosto, principalmente, quando proveniente de amor.
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20
Importa avaliar mais pormenorizadamente essa cultura profana registrada em galegoportuguês, isto é, a poesia trovadoresca, designação que, na Península Ibérica, engloba
composições líricas (cantigas de amor e de amigo) e composições satíricas (cantigas de
escárnio e de maldizer; e sirventês2), de acordo com a dualidade que ainda hoje
caracteriza o mundo ocidental: lirismo e sátira.
As composições líricas e as satíricas são autóctones, por conseguinte, essencialmente
populares. O tema, o ritmo e a estrutura obedecem à tradição popular do Noroeste da
Península Ibérica em que se inspiram, e cujas características os poetas procuram
valorizar esteticamente. Nessas composições, sobretudo nas cantigas de amigo,
predomina a musicalidade, obtida através do refrão ou do paralelismo, processos
poéticos que evidenciam a transmissão oral a que se destinavam e de que provinham as
cantigas.
Quando a pesquisa enfoca a Idade Média e a sua civilização, surgem pensamentos
preconceituosos e a imagem de ‘idade das trevas’ vem à tona. Historicamente, a
conceituação de Idade Média tornou-se imprecisa, considerando que o tempo foi
caracterizado pelos intelectuais do século XVI como um período “intermediário” entre a
Antiguidade Clássica e o Renascimento da civilização greco-latina. Franco Júnior
(2001[1990], p. 17) esclarece que Petrarca (1304-1374) “já se referira ao período
anterior como de tenebrae: nascia o mito historiográfico da Idade das Trevas”. Outros
pensadores da mesma época cultivaram a idéia de ‘trevas’, ruínas, e de uma arte
‘gótica’, grosseira, sinônimo de bárbara.
No decorrer dos séculos XVI e XVII, o período medieval foi avaliado como a idade de
bárbaros, ignorância e superstição. Um tempo que interrompeu o progresso humano,
iniciado por gregos e romanos e, posteriormente, retomado pelos renascentistas. No
século XVIII, o menosprezo foi mais acentuado e os iluministas censuraram a
religiosidade medieval. Com o advento do Romantismo, no século XIX, a Idade Média
readquire sua importância pelo resgate da identidade nacional e da origem das
nacionalidades européias, mas o preconceito ainda persiste. Somente no século XX,
como explica Franco Júnior (1990, p. 20) “se passou a tentar ver a Idade Média com os
2
De origem francesa (sirventés ou servintois provençal), este termo medieval tem o sentido etimológico
de “canção ao serviço do senhor”, feita pelo menestrel. Poemas satíricos de temática moral ou política,
que só foram desaparecer no Romantismo.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
21
olhos dela própria, não com os daqueles que viveram ou vivem noutro momento (...) o
único referencial possível para se ver a Idade Média, é a própria Idade Média”.
Estudos e pesquisas sobre o período medieval abriram caminhos para a investigação dos
mais variados temas, propondo métodos de estudos, revendo conceitos e dialogando
com as demais ciências humanas. Hoje existem associações nacionais, internacionais e
grupos de estudos incentivadores e prestigiadores, não só nos meios cultos e
acadêmicos, como também a popularização das pesquisas sobre o medievo diante de um
público mais vasto.
2. O espaço geográfico: Portugal e Galiza
A unidade política de Portugal sobrepõe-se às unidades locais e regionais de âmbitos
modificáveis que possuíam poucos vínculos comuns. As diferenças mais notáveis são as
que separam entre si, por um lado, uma região situada no noroeste português e no litoral
até o rio Mondego, onde a organização social e econômica se sujeita ao regime
senhorial e, por outro, o espaço geográfico que abrange o norte interior e as Beiras,
lugar de origem da organização dos concelhos.
A região norte de Portugal (Entre-Douro-e-Minho) apresenta-se fortemente acidentada a
poucos quilômetros da costa com elevações nas terras fluviais, entrecortada por
numerosos cursos de água, alguns muito abundantes. É uma região beneficiada pelas
chuvas e coberta de nuvens durante muitos dias do ano, podendo ser considerada a
região mais úmida de Portugal. As serras (serranias) estão separadas do interior
transmontano e a área possui colinas, planícies e areais da costa o que propicia a
proliferação espontânea de uma rica vegetação e de árvores como o carvalho, o
castanheiro, a avelaneira, o ulmeiro, o choupo e o pinheiro-bravo. Nos vales, os prados
favorecem a cultura de cereais, hortas e pomares. Terra fecunda para plantas, animais e
homens, que praticam o cultivo de grande variedade de produtos agrícolas. Nos montes
e colinas há a sustentação de rebanhos de cabras e ovelhas que não necessitam percorrer
grandes distâncias, desde o curral familiar até as paisagens naturais e a ele podem
regressar ao cair da noite.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
22
Na fronteira com a Galiza apresenta recortes nos vales dos rios existentes no sentido
leste-oeste, além de numerosos afluentes menorres e ribeiros. Contrasta-se com a região
das montanhas, permitindo a vida em comum das comunidades diferentes entre si: de
um lado, as que praticam uma intensa agricultura e do outro, as que vivem do pastoreio
de gado miúdo em terras mais pobres e inóspitas, dedicando-se à agricultura em
algumas épocas do ano, mantendo, porém, fortes laços de solidariedade coletiva de
produção como o forno, a eira, o moinho e o lagar.
De acordo com Mattoso (1985), tal concentração demográfica (a compartimentação e a
proximidade das comunidades entre si, bem como a dispersão do habitat), foi essencial
à implantação de uma rede de comunicação entre os viajantes, mercadores e peregrinos,
que andavam a pé ou usavam transportes terrestres e fluviais. Os camponeses e senhores
da região mantiveram relações entre si e uniram-se sem interferências de poderres
externos (chefes árabes, soberanos espanhóis leoneses ou asturianos). Os contatos foram
estabelecidos com os senhores galegos, tanto nas relações de vizinhaça quanto com os
que vinham do norte. Destacam-se as classes sociais do proletariado nobre de pequenos
cavaleiros (quase miseráveis) às famílias mais poderosas e respeitadas e os solares,
castelos e mosteiros construídos para conjugarem-se com a rede dos caminhos e as
torres com a rede dos mosteiros e povoações da região minhota.
No que se refere ao povoamento, as igrejas se concentravam entre a foz dos rios Ave e
Douro – antiga terra da Maia até o Porto, onde há solo granítico e terras fundas – as
antigas terras de Santa Maria, Arouca, Zebreiros, Penafiel de Covas e Lafões até
Lamego e Viseu. Essas regiões eram consideradas verdadeiros “viveiros humanos”,
onde o regime senhorial teve pleno desenvolvimento. Regime que não se baseia na
posse de terras de cultivo, mas no domínio público sobre territórios vastos, sustentado
por forças militares que percorriam grandes distâncias a cavalo e exigia prestações pela
administração da justiça e pela proteção militar, não só de agricultores, mas também de
pastores e caçadores das áreas montanhosas.
Desde o fim do século XI
são visíveis na Galiza as primeiras manifestações do
processo expansivo que caracteriza o ocidente cristão nos séculos centrais da Idade
Média. As causas principais que explicam o começo da reorientação histórica foram: o
aumento do número de homens, a extensão da superfície cultivada e a intensificação do
Série Estudos Medievais 2: Fontes
23
seu cultivo, os intercâmbios e o nascimento de vilas e cidades que conduziram à
humanização da paisagem. No final do século XIII, criou-se na Galiza uma paisagem
rural com traços essenciais que não se alteraram profundamente até épocas mais
recentes. Depois das terras de Léon e dos portos dos montes Irago e Cabreiro localiza-se
a terra dos galegos. Repleta de bosques, de agradáveis rios, ricos prados e pomares,
além das fontes muito claras, essa terra é rica em ouro e prata, tecidos e peles silvestres.
No final do século XI e nos primeiros anos do século seguinte,
registra-se o
significativo aumento de peregrinos que visitam a tumba do apóstolo, transformando a
cidade de Santiago de Compostela em um dos grande polos da peregrinação cristã no
mundo;
Esse espaço real (aqui brevemente descrito) presentifica-se nas cantigas de amigo nas
descrições idílicas da natureza, num corpus representativo de variedades temáticas e
estróficas de inspiração tradicional e folclórica. Exemplificam as cantigas de bailia, de
romaria, as barcarolas ou marinhas, bem como os exemplares adaptados dos gêneros
líricos provençais e franceses como as albas (ou alvas) e as pastorelas, nas quais se
concentram elementos da fauna e da flora.
A idéia de espaço está vinculada ao corpo e ao seu deslocamento, uma vez que o
conceito de espaço, segundo Aumont (2006), origina-se do tátil e do visual. A imagem
da realidade, sob a perspectiva linear, é uma projeção centralizada numa espécie de
transformação óptica que traz informações sobre a profundidade da cena vista pelo
espectador e, no caso das cantigas, pelo leitor. Exemplifica a diminuição aparente de
tamanho que poderá ser interpretada como um distanciamento, ou na aproximação ao
horizonte (eixo óptico) a imagem pode ser uma paisagem imaginária, não apresentando
com precisão absoluta os fenômenos ópticos reais.
De acordo com Aumont (2006), a imagem vista sob a perspectiva naturalis identifica-se
com o modelo visto pelo olho e a imagem observada sob a perspectiva artificialis pode
ser entendida como uma representação imaginária, arbitrária do modelo. Esses conceitos
poderão explicar os elementos da natureza (as imagens presentes nos textos) nas
cantigas de amigo, daí a necessidade de se conhecer, primeiramente, o espaço físico,
geográfico do norte de Portugal e da Galiza.
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24
3. O espaço literário
A necessidade de separar o espaço narrativo do poético justifica-se pelo fato de que em
ambos os casos existe a função de situar a personagem ou o sujeito-lírico e sua
significação nos dois gêneros, de diferentes formas. Santos e Oliveira (2001, p.74)
pontuam essa diferença ao afirmarem que:
Nas narrativas literárias, o espaço tende a estar associado a referências
internas ao plano ficcional mesmo que a partir desse plano sejam
estabelecidas relações com espaços extra-textuais. [...]. O texto poético pode
eleger a própria palavra como um espaço: O signo verbal não é apenas
decodificado intelectualmente, mas também sentido em sua concretude.
Sobretudo, é possível explorar na poesia escrita, a visualidade da palavra: o
signo verbal como imagem.
Santos e Oliveira (2001), no entanto, atentam para a problemática existente com a
similaridade estabelecida entre o objeto em si e sua imagem. Tal problematização
baseia-se em dois aspectos: no primeiro, a imagem apenas reproduz algumas condições
da percepção do objeto, mas não o constrói como ele verdadeiramente é; no segundo, as
imagens visuais são figurativas e nem sempre representam algo.
Com base nesses dois aspectos pode-se pensar a questão da similaridade sob duas
perspectivas: a da referência, que considera o objeto anterior ao signo e a da perspectiva
de significação, na qual o objeto é criado pela imagem. Para os autores, a poesia inserese na primeira perspectiva, porque a palavra reproduz alguma característica do objeto
em si.
Blanchot (1987), por sua vez, ao refletir sobre o espaço poético, parte de uma visão
mais geral do que a estudada pelos autores citados. Na medida em que não toma o
espaço do vocábulo como base do seu estudo, volta-se, inicialmente, ao espaço que a
literatura constrói, considerando-a solitária e exigente da solidão do leitor. A respeito
disso Blanchot (1987, p.12) afirma:
Entretanto, a obra – a obra de arte, a obra literária – não é acabada nem
inacabada: ela é. O que ela nos diz é exclusivamente isso: que é – e nada
mais. Fora disso, não é nada. Quem quer fazê-la exprimir algo mais, nada
encontra, descobre que ela nada exprime. Aquele que vive na dependência da
obra, seja para escrevê-la, seja para lê-la, pertence à solidão do que só a
Série Estudos Medievais 2: Fontes
25
palavra ser exprime: palavra que a linguagem abriga dissimulando-a ou faz
aparecer quando se oculta no vazio silencioso da obra.
[...]
A solidão da obra tem por primeiro limite essa ausência de exigência que
jamais permite afirmá-la acabada ou inacabada. Ela é desprovida de prova, do
mesmo modo que é carente de uso. [...] A obra é solitária: isso não significa
que ela seja incomunicável, que lhe falte o leitor. Mas quem a lê entra nessa
afirmação da solidão da obra, tal como aquele que a escreve pertence ao risco
dessa solidão.
Blanchot (1987) reconhece, assim, que a escrita tem um papel relevante, porque faz eco
ao que não pode se calar. O escritor torna-se sensível e se cala para que a linguagem se
converta em imagem e resulte num profundo significado ao leitor. Santos e Oliveira
(2001) compartilham da idéia de que o texto poético gera imagens.
O poeta, ao ouvir a fala da obra, torna-se seu intérprete, mas não consegue fazer brotar
o sentido real da palavra. Por isso, é necessário que a obra se torne íntima do escritor e
do leitor para que seja considerada uma obra de fato, porque “o poeta é aquele que ouve
uma linguagem sem entendimento” (p.45). Com relação à fala poética, Blanchot (1987,
p.35) postula que
a fala poética deixa de ser a fala de uma pessoa: nela, ninguém fala e o que
fala não é ninguém, mas parece que somente a fala “se fala”. A linguagem
assume então toda a sua importância; torna-se essencial; [...] e é por isso que
a fala confiada ao poeta pode ser qualificada de fala essencial.
Sob essa perspectiva, a poesia é considerada por Blanchot (1987, p. 35) um “potente
universo de palavras cujas relações, a composição, os poderes, afirmam-se, pelo som,
pela figura, pela mobilidade rítmica, num espaço unificado e soberanamente
autônomo”. O poeta é considerado autor de uma obra de “pura linguagem” e a
linguagem, por sua vez, retorna à sua essência. O poeta, tal como o pintor não reproduz
com as cores, mas busca o ponto onde as cores dão o ser. Nesse sentido, o poema pode
ser entendido como um objeto independente, auto-suficiente, um objeto de linguagem
criado só para si.
É com base nessa interiorização gerada pela conversão que se dá a transformação do
visível em invisível e do invisível em cada vez mais invisível. Sobre essa
transformação, Blanchot (1987, p.139) explica que
Série Estudos Medievais 2: Fontes
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No mundo, as coisas são transformadas em objetos a fim de serem
apreendidas, utilizadas, tornadas mais seguras, na firmeza distinta de seus
limites e na afirmação de um espaço homogêneo e divisível – mas, no espaço
imaginário, transformadas no inapreensível, nos introduz sem reserva num
espaço onde nada nos retêm. [...] o espaço interior “traduz as coisas”. Fá-las
passar de uma linguagem para outra, da linguagem exterior para uma
totalmente interior. O espaço [que] nos supera e [que] traduz as coisas é,
portanto, o transfigurador, o tradutor por excelência.
O papel transfigurador e transcendental do espaço, portanto, ocorre na medida em que
promove a interiorização dos elementos, abrindo as portas para a formação de um
espaço imaginário. Além do “outro lado” como prefiguração da morte e do acesso ao
imaginário, Blanchot (1987) aponta a existência do “lado de fora”. Refere-se à noite,
quando tudo desaparece e torna a aparecer, e a experiência da impossibilidade se
concretiza no momento em que o poeta se torna um “por vir” ou um “ainda não” na
perspectiva de um amanhã mais rico de sentido.
Viesenteiner (2005), na leitura que faz da obra de Blanchot, expõe, na página 95, os
dois sentidos da impossibilidade:
O poeta existe na impossibilidade quando vive como pressentimento de si
mesmo, abandono inexorável na torrente trágica do devir. Não tem morada
nem fixação e, portanto, nomadismo em que só resta ao poeta a existência
sempre extemporânea, nunca localizada, eternamente por vir. [...]. O segundo
sentido de existir na impossibilidade é precisamente a sintonia de
dependência entre poema e poeta, num curso de temporalidade que não se
deixa captar pela história, pois se trata de outro tempo.
Esse tempo no qual a impossibilidade se evidencia é próprio da noite, pois decorre do
sono e da imaginação que o poeta é arrebatado. No entanto, esse arrebatamento nem
sempre é acolhedor, intimista e inspirador, proporcionando o repouso. Ele pode ser, por
vezes, não-acolhedor, impenetrável e impuro, porque traz à tona a lembrança sem
repouso do que o ser tem de mais repugnante.
O poeta se exclui do mundo por sua capacidade artística de fazer versos e pela
necessidade de exilar-se no imaginário, tomando consciência de que não tem outra
morada a não ser o espaço das imagens poéticas. Assim, a arte cumpre o papel de tornar
a verdade inalcançável, revelada pela imagem.
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Quanto à relação da poesia com a arte, Blanchot (1987) reconhece que a arte é uma
necessidade no exercício da poesia, tornando-se um estágio de domínio do espírito:
“para se escrever um só verso é preciso ter esgotado a arte, é necessário ter esgotado a
vida” (p.85). Os versos são, em sua visão, experiências ligadas a uma abordagem viva
que se concretiza no trabalho da vida.
Viesenteiner (2005, p.93) apresenta-se como um importante crítico ao estudar Blanchot,
refletindo sobre um aspecto relevante de sua obra – o fato de reconhecer a poesia como
conciliadora da natureza e da arte, considerando-a veículo apropriado para celebrar a
natureza como todo presente:
O poeta é aquele que assume a função de aniquilação ao nomear a própria
natureza por meio da poesia. Sem a existência poética a natureza perderia sua
essência de todo presente e o mundo seria apenas o universo. Ora é o que
aconteceria se no mundo faltasse poema. O poeta, pois é justamente aquele
arrebatado por um impulso artístico que presta serviço à natureza.
Percebe-se, através dessa citação o reconhecimento prestado pelo poeta à natureza:
cantá-la como seu mediador, dando-lhe existência e celebrá-la numa linguagem que
permaneça. Justifica-se, assim, a leitura dada ao tratamento de temas recorrentes na
produção poética em questão, como a relação entre a arte poética e a natureza, bem
como a construção de imagens encontradas nas cantigas de amigo.
Bosi (1989) considera a imagem o princípio do reconhecimento do objeto
materializado, contrapondo-se à afirmação de Blanchot (1987, p.257): “a imagem,
segundo a análise comum, está depois do objeto: ela é sua continuação; vemos, depois
imaginamos. “Depois” significa que cumpre, em primeiro lugar, que a coisa se distancie
para deixar-se recapturar”.
Duas possibilidades apresentam-se, partindo-se desses princípios: a imagem que surge a
partir do contato com o objeto e aquela recapturada e adaptada para atribuição de
sentido. Nessa dualidade, a imagem recebe o poder da magia de transformar-se ao ser
absorvida no vazio (de sentido) do seu reflexo e ao aproximar-se da consciência para
que seja reconstruída no íntimo do leitor.
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Sobre essa intimidade da imagem e o paradoxo que a circunda, Blanchot (1987, p. 263264), assim justifica:
Íntima é a imagem, porque ela faz de nossa intimidade uma potência exterior
a que nos submetemos passivamente: fora de nós, no recuo do mundo que ela
provoca, situa-se desgarrada e brilhante, a profundidade de nossas paixões.
[...].
O paradoxo da magia da imagem aparece evidente: ela pretende ser iniciativa
e dominação livre, enquanto que para constituir-se aceita o reino da
passividade, esse reino onde não existem fins. Mas a sua intenção continua
sendo instrutiva: o que ela quer é agir sobre o mundo (manobrá-lo), a partir
do ser anterior do mundo, o aquém eterno em que a ação é impossível.
Depreende-se que a imagem constitui-se o elo entre o exterior e a intimidade, pois só
quando se torna íntima é que ela fascina o leitor e atribui um novo sentido ao vocábulo.
Éliade (2001) reconhece que esse processo promoveu a dessacralização dos elementos
espaciais pelo homem moderno, visto que esse espaço tornou-se homogêneo. Todos os
elementos do cenário apresentavam o mesmo valor e nenhum tinha relevância perante
seu olhar. Nas sociedades arcaicas, contudo, o homem apresentava a tendência de viver
cada vez mais perto do objeto que considerava sagrado. Por isso, aproximou-se mais da
natureza sacralizada, os objetos eram vistos como manifestações do sagrado e
tornavam-se “outra coisa” sem deixar de ser aquilo que na essência já eram. Essa íntima
relação do homem com o espaço é assim justificada:
À terra pertence o dar a vida aos mortais bem como de tomá-la de volta {...]
A crença de que os homem foram paridos da Terra espalhou-se
universalmente. Em várias línguas o homem é designado como aquele que
nasceu da terra {...}. Até entre os europeus dos nossos dias sobrevive o
sentimento obscuro de uma solidariedade mística com a terra natal. É a
experiência religiosa de autoctomia: as pessoas sentem-se gente do lugar [...].
Ao morrer, o homem deseja reencontrar a Terra-Mãe, ser enterrado no solo
natal. (ÉLIADE, 2001, p. 117-118)
A relevância que certos elementos têm como manifestações do sagrado permitem que o
espaço sacralizado obtenha um ponto central. É o caso de uma pedra que se sobressai às
demais pelo fato de ser objeto de construção de um altar. Já na visão profana do espaço
não há nenhum ponto de referência, porque nenhum objeto é ressaltado e o espaço é
relativizado.
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A delimitação desses modos de ver o mundo e de se posicionar diante dele não é tão
demarcada quanto parece, como aponta Éliade (2001, p.28): “nessa experiência do
espaço profano ainda intervêm valores que lembram a não homogeneidade especifica da
experiência religiosa do espaço”. É o caso de lugares privilegiados que se sacralizam
dentro de um universo privado.
Nas cantigas de amigo, essa relação com a natureza e o espaço apresenta-se bem
evidente, principalmente nos exemplares de inspiração folclórica como as bailias ou
bailadas, as albas ou alvoradas e as pastorelas, subgêneros cultos de origem provençal,
que sofreram uma adaptação rítmica e temática no Ocidente Peninsular. A animização
da paisagem, o ambiente rústico e as descrições da natureza refletem o estado de
espírito do eu - lírico feminino, as reações da donzela provocadas pelo amor.
4. As cantigas de amigo
De acordo com Bell (1946) a literatura possui uma quantidade de poesia culta, mas
aquela que parece brotar espontaneamente é rara e classifica-se segundo os seus
méritos.
A literatura medieval requer posicionamentos metodológicos específicos, uma vez que
foi produzida para ser cantada e ouvida e a sua estrutura reflete a sua função e esta, por
sua vez, as informações culturais e humanas da sociedade feudal. Importa considerar em
seus pormenores, essa cultura profana registrada em galego-português, também
denominada de poesia trovadoresca, título que, na Península Ibérica, engloba
composições líricas e composições satíricas, de acordo com a dualidade que ainda hoje
caracteriza o mundo ocidental: o lirismo e a sátira.
As composições líricas e as satíricas são autóctones, portanto, essencialmente populares,
obedecendo à tradição popular do Noroeste da Península Ibérica, quanto ao tema, ao
ritmo e à estrutura em que se inspiravam, e cujas características os poetas procuravam
valorizar esteticamente. Nessas composições, sobretudo nas cantigas de amigo,
predomina a musicalidade, obtida por meio do refrão ou do paralelismo, processos
poéticos que denunciam a transmissão oral a que se destinavam e de que provinham.
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Contrariamente, as de amor e ao serventês, constituem gêneros cultos ou importados,
que versavam na imitação original dos modelos provençais, adaptados ao temperamento
ibérico lírico e saudosista.
Os trovadores portugueses não se limitaram (por vezes) a adaptar à estrutura típica da
cantiga de amor, como por exemplo, o ritmo e a vivacidade que caracterizam a cantiga
de amigo. Mesmo na imitação da cantiga provençal (Quer’eu en maneira de proençal),
a expressão do amor simplifica-se e o sentimento amoroso, não sendo um fingimento,
humaniza-se e atinge um arrebatamento e um tom de sinceridade vivida, inexistentes no
lirismo da Provença. Atitude justificada pelo temperamento apaixonado e saudosista do
homem português. Na cantiga de amor há a expressão da coita ou cuita, significando
uma paixão infeliz, um amor não correspondido que se torna obsessão, repetida em tom
de queixa ou de súplica. D. Dinis, por exemplo, estabelece a oposição entre o amor
fingido e ocasional dos provençais (que só trovam no tempo da frol) e o sentimento
amoroso inspira a poesia galego-portuguesa (Proençaes soen mui ben trobar). Portanto,
como afirmam os críticos, a cantiga de amor constitui a primeira manifestação literária
do temperamento romântico peninsular.
Retomando Bell (1946), não há nada de novo em versos como “Moça tan fermosa/ Non
vi en la frontera”, versos ingênuos que nos parecem fáceis depois de escritos, simples
de escrever, mas são o resultado final de um profundo e prolongado estudo ou
experiência, de sofrimento ou de pensamento: “a poesia popular consiste quase em
meros gritos de alma” (p. 9), gritos esses presentes nas cantigas de amigo, mais
vulgarizadas do que as cantigas de amor, em que o paralelismo é o recurso poético
principal. Os textos, por convenção poética, referem-se às mulheres e os temas
contemplam a natureza sempre amiga, a ponto de intervir, como intermediária ou
confidente, no drama lírico da donzela. Muito se tem escrito acerca das relações da
poesia galega e castelhana com a poesia arábica do sul da Espanha, da influência
também na Provença e na Itália ou, talvez, somente na Provença e Galiza.
Nunes (1928) não discute essa intrincada questão, mas é muito provável que os mouros
vindos do Oriente, trouxeram a forma paralelística das poesias à Península, mas é talvez
mais provável que fossem importadas por intermédio dos salmos e de outros cânticos da
igreja cristã, considerando-se que o povo adaptava aos seus cantos o que ouvia e
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cantava na Igreja. De acordo com o crítico, a poesia mais popular do Portugal medieval
não são as composições destituídas de arte, mas as que se identificam com os
movimentos de peregrinação de todas as partes do mundo para visitar o túmulo de
Santiago de Compostela, na Galiza. Editá-las não foi tarefa muito fácil, e a sua história,
desde que pela primeira vez foram publicadas por Ernesto Monaci, em 1875, tem sido
um trabalho extremamente difícil. Podemos citar aqui dois grandes estudiosos do
assunto, cujas edições constituem-se das mais confiáveis: Carolina Michaelis de
Vasconcelos e José Joaquim Nunes.
O mar, os santuários isolados, a quem acorriam os peregrinos, as colinas, os sombrios
pinheirais da Galiza, tudo possui vida nas cantigas de amigo, tornando-as imorredouras.
É quase sempre nas romarias, junto ao santuário, que o encontro amoroso se realiza,
exibindo-se os vestidos novos e as habilidades coreográficas para encantar o amigo. Do
mesmo modo, os encontros na fonte, ou à espera no monte, longe da vila, as idas às
ribanceiras, onde o amigo deveria embarcar ou desembarcar, os passeios ao longo da
ribeira do rio (Cantando ia la dona-virgo/ d’amor,/ venhan nas barcas pelo rio/ a
sabor) são parte do jogo amoroso e do cotidiano das cantigas. As mães têm,
freqüentemente, condescendências para estes amores, às vezes, ultrapassando os limites
da honestidade, conforme nos atesta Pero da Ponte, nos versos abaixo:
- Vistes, madre, o escudeiro
que m’ouvera a levar sigo?
Menti-lhe, vai-mi sanhudo.
Mia madre, bem vo-lo digo:
madre, namorada me leixou
madre, namorada me á leixada,
madre, namorada me leixou.
Há também, na variedade de exemplos, mães que concorriam com a filha, disputando o
mesmo namorado, exibindo sua sensualidade, incapazes de renunciar (pela filha), como
exemplifica a cantiga de Julião Bolseiro :
Sabedes ca sen amigo
nunca foi molher viçosa,
e porque mi-o non leixades
aver, mia filha fremosa,
non ajade-la mia graça
e dê-vos Deus, ai mia filha,
filha que vos assi faça,
filha que vos assi faça.
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A vida idílica dos namorados não sofre incidente apenas dessa variedade dos humores
domésticos; repercute nela, quase sempre dolorosamente, a realidade social envolvente,
porque as expedições militares e marítimas, as retiradas para cas d’el-rei também
provocam dramas da ausência saudosa, ou do esquecimento infiel. Deste modo, os
ambientes em que os namorados vivem projetam os seus traços mais característicos nas
cantigas de amigo.
5. A simbologia do espaço em cantigas de bailia e nas barcarolas.
Iniciando a leitura a que nos propomos apresentar, uma breve retrospectiva do histórico
das cantigas faz-se necessário. No Ocidente da Península Ibérica já havia se
desenvolvido uma poesia de inspiração folclórica ligada a terra e ao contato da vida
campesina com o mar. Na Provença, havia uma poesia mais culta e elaborada de onde
surgiram as cantigas de amor que, segundo Lapa (1973, p.136), “são poesias de visíveis
tons retóricos”. Em outras palavras, no que se refere à poesia medieval portuguesa, o
que originariamente pertenceu às mais longínquas tradições medievais, foram os
cantares de amigo e sua variedade temática.
Cantigas de caráter autóctone sofreram, ainda que em maior número, as variações de
forma e conteúdo, conforme o contato cultural com os elementos provençais. A
assimilação de elementos exteriores não foi difícil de realizar, se levarmos em
consideração o fato de que a data estipulada para a primeira cantiga galego-portuguesa –
Cantiga da Ribeirinha – de 1189, quase coincide com a formação da nacionalidade
portuguesa reconhecida pelo Papa Alexandre III em 1179, que desvinculou totalmente o
Condado Portucalense dos domínios do reino de Castela (Mattoso, 1993, p.54). Tal
acontecimento representa a compreensão da proximidade cultural, ou o acesso cultural
entre os reinos do Ocidente com a Provença.
De acordo com Nunes (1928), as bailias são originárias da Provença e vêm
acompanhadas de movimentos coreográficos. Composições paralelísticas, de inspiração
tradicional e folclórica, sua estrutura pressupõe a existência de um grupo de moças em
diferentes funções: uma delas, dotada de melhor voz, a cantadeira, entoava as principais
coplas e as demais, em coro, modulavam o refrão. O número de figurantes deveria
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33
corresponder ao de estrofes, cada uma das meninas era encarregada de uma estrofe, e
todas se reuniam para cantar o estribilho. Os temas eram sempre alegres e festivos.
Airas Nunes de Santiago foi um dos mais expressivos compositores de bailadas,
representando o cotidiano das mulheres ou meninas que viveram na Península durante o
século XIII, bem como as funções que estas desempenhavam na família ou na
comunidade. Dessa forma são comuns os cenários rurais como a fonte, os rios, as praias
e as moças dançando sob árvores floridas. Durante as romarias ou festas comemorativas
da Primavera, as meninas recebiam a permissão para saírem de casa, que, de certa
forma, significava um raro momento de liberdade.
Nesses dias de festa elas mostravam seus potenciais de sedução, cantavam e dançavam,
deixando transparecer as formas de seu corpo, a fim de chamar a atenção do amigo,
como nos atesta Pimpão (1947, p. 106) “Pressente-se nela o desejo da moça de atrair o
namorado, não só pela sua arte coreográfica, mas ainda pela graça do seu corpo [...]”.
Por diversas vezes as bailadas eram alternadas com os atos litúrgicos, considerando que
a Igreja tentava intervir e acabar com as festas pagãs, mas como não conseguia, acabava
admitindo e incorporando as manifestações de dança e música em seus cultos.
Quanto à temática, o amor, a primavera e a religião fazem parte de um ritual de dança
feminina, que remonta às antigas festas pagãs, realizadas durante o mês de Maio,
também chamadas de festas primaveris. As bailadas geralmente aconteciam sob as
árvores floridas, reportando-nos à idéia de fecundidade – a flor da árvore precede ao
fruto e, dessa forma, a menina que dança sob a árvore demonstra estar pronta para o
amor.
Em muitas dessas cantigas, era comum a figura da aveleira, reforçando a idéia de
fertilidade descrita anteriormente. Segundo Lurker (1997, p.32): “A avelaneira é [...]
símbolo da fertilidade e da vida, [...] uma espécie de planta sagrada, [...]. Diversas vezes
encontra-se na aveleira um sentido erótico: é o local cercado de mistério de onde vêm as
crianças”.
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Na cantiga Bailemos nós, já, todas três, ai amigas, deparamo-nos com um quadro
composto de três moças que dançam sob a aveleira florida.
Bailemos nós já todas três, ai amigas,
so aquestas avelaneiras frolidas
e quen for velida, como nós, velidas,
se amig’amar,
verrá bailar.
Nas bailias, quando a menina não aparece sozinha, o número das amigas geralmente
chega a três. Na pintura, esse mesmo número lembra as Três Graças3, ou seja, as três
irmãs, filhas de Júpiter e Vênus, que representam a alegria, a beleza e a mocidade. Três
jovens amigas dançam sob as aveleiras floridas. Graça, formosura e amor lembram a
célebre tela de Botticelli A Primavera4.
As bailadas propiciavam certa liberdade à menina, que se encontrava distante da
vigilância proibitiva da mãe e, dessa forma, entusiasmava-se com a idéia de poder ver
ou rever o amigo. Na cantiga de D. Dinis Ma madre velida,/ vou-m’a la bailia/ do amor,
a donzela comunica à mãe sua intenção de ir ao baile, ir à casa do amigo Vou-m’a la
bailada/ que fazem en casa/ do amor e lá exibir sua beleza e a arte de dançar, mesmo
sem a aprovação da mãe. Depreende-se que a idéia de liberdade estava acima da
autoridade materna, uma vez que o verbo ir, no presente, demonstra a firme decisão de
participar dos bailes.
De acordo com Nunes (1928), o canto e a dança eram de predileção do povo galegoportuguês, porque se ligavam aos cultos e às diversões populares. Eram as mulheres,
principalmente as solteiras, que cantavam e dançavam. Reunidas no adro das igrejas ou
em outros lugares públicos, em dias festivos, principalmente na primavera, organizavam
os bailes de roda, acompanhando a dança com versos amorosos, cantados em coro.
Na Galiza, especialmente, em Santiago, depois da descoberta do corpo do apóstolo,
cantos eram entoados em honra do santo, numa atitude de intensa fé, a princípio em
3
Companheiras habituais de Vênus e Cupido, Aglai, Tália e Eufrosina, as Graças, eram jovens formosas,
que se davam as mãos como se preparassem para dançar. Praticavam boas ações, comportando-se sempre
com amabilidade e jovialidade. Pintores italianos retrataram-nas em suas telas, como Botticelli, em
Primavera.
4
A tela em questão é uma representação de caráter cosmológico-espiritual, quando Zéfiro (fecundador) se
une a Flora que se converte, assim, em Primavera, símbolo central da capacidade criativa da natureza.
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latim, depois mesclados com palavras vulgares, que se aproximavam ao romanço. A
esses cantos, Vasconcelos (s/d) atribui grande influência dos cantos austeros e solenes,
os quais, mais tarde, fizeram parte da poética galego-portuguesa e da dança. Segundo a
historiadora, essas manifestações ocorriam sem licenciosidades, talvez pela influência
da igreja compostelana, que, transigindo com as revelações de caráter religioso, ficaram
gravadas na memória do povo, transformando-as em cenas populares. Cabia às
mulheres, portanto, o papel de cantar e dançar nas festas religiosas ou profanas:
Cantando e con dança/ seja por nós loada/ a virgen coroada/ que à nossa esperança. O
repertório, muitas vezes, era recolhido do Cancioneiro do Povo.
Esse costume do canto e da dança foi também praticado nas dependências da corte
portuguesa. Entre os passatempos do rei, a caça e a dança eram muito comuns: “por
ocasião dos jogos e estas que ordenava por desenfadamento, de dia e de noite andava
dançando por aqui mui grande espaço”, fato referido por Fernão Lopes, nas Crônicas de
D. Pedro I, rei que nutria verdadeira paixão pela coreografia. Quando o rei chegava de
viagem, os que vinham recebê-lo traziam os mestres de danças e o rei saía dançando
com eles até o paço. Relata assim a crônica:
Jazia el-rei em Lisboa ua noite na cama e nom lhe viinha sono pêra dormir e
fez levantar os moços e quantos dormiam no paaço e mandou chamar Joham
Mateus e Lourenço Pallos que trouxessem as trombas de prata e fez acender
tochas e meteo-se pella villa em dança com os outros; as gentes que
dormiam saíam aas janelas veer que festa era aquella ou porque se fazia e,
quando virom daquella guisa el-rei, tomarom prazer de o veer assi ledo e
andou el-rei assi gram parte da noite e tornou-se ao paaço em dança.
(Cap. XIV da Crônica d’E-Rei D. Pedro I apud Nunes, 1928, p. 127).
Na cantiga – Bailad’oj’, ai filha, que prazer vejades,/ ant’o voss’amigo, que vós
muit’amades, de autoria de Airas Nunes de Santiago, a menina é intimada pela mãe a
dançar para o amigo, contradizendo as leis morais ligadas ao matriarcado medieval e
surpreendendo a filha. Embora houvesse certa liberdade no relacionamento entre mãe e
filha, era comum a mãe impedir a filha de ver o amigo, quanto mais dançar para ele. No
diálogo em questão, há uma clara insistência da mãe para que a moça demonstre a sua
arte coreográfica ao namorado, repetindo-se na forma de um paralelismo semântico, ao
longo das quadras: - Bailad’oj, ai filha, que prazer vejades,/- Rogo-vos, ai filha, por
Deus, que bailedes/ - Por Deus, ai mha filha, fazed’a bailada/ - Bailade oj’, ai filha, por
Sancta Maria. O clima já não é de alegria como na cantiga anterior, porque a mãe roga
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por Deus e por Maria que a menina dance. O tom da resposta é de submissão,
concordando “desta vez” (d’aquesta vergada), porém, argumentando com a mãe que
“pouco vos interessa que ele viva” (de viver el pouco tomades perfia).
A natureza está representada na romãzeira, na terceira quadra da cantiga, segundo verso:
ant’o voss’amigo de so a milgranada. A romã simboliza fecundidade, abundância e
apelo sexual, que, desde os povos mais antigos, incorpora o amor e o casamento. Na
Antiguidade Clássica era conhecida como originária do sangue de Dionísio (deus da
fertilidade). Afrodite e Hera consideravam-na fruto sagrado, tornando-se o símbolo do
casamento. Presente também na pintura, na tela Proserpina (1874)5, de Rossetti (pintor
italiano pré-rafaelita). Outros artistas também a interpretaram como o símbolo da
ressurreição de Cristo. Retomando a cantiga de Airas Nunes, a presença da romãzeira
sugere sedução e conquista do amigo, reiterada nas expressões prazer vejades (v.1), que
ben parecedes (v. 8) e fazed’a bailada (v.13), revelando a preocupação da mãe com a
vida amorosa da filha: ant’o voss’amigo, que vós muit’amades (v.2). Completa-se,
assim, o quadro lírico em que a dança e a natureza encontram-se unidas diante do amor
da menina que deseja ardentemente se casar. Verdadeiros quadros líricos, as bailias
apresentam sugestões da natureza e da vida social aliadas às situações sentimentais.
Essa variedade temática representa a verdadeira contemplação da natureza que provoca
emoção a amorosa e a saudade, sentimentos presentes nas cantigas portuguesas. Outra
modalidade lírica que exemplifica a natureza como elemento transformador do estado
de espírito feminino é a cantiga marinha ou barcarola.
Nesse modelo, encontramos os cenários relacionados, principalmente, ao mar, mas,
também, aos lagos e rios. O desenvolvimento do tema está baseado no choro e no
lamento da mulher simples e apaixonada, que tem o seu amigo ausentado e que, na
maioria das vezes, está a serviço do rei, ou para lutar ou para cumprir trabalhos em alto
mar. A donzela, saudosa, toma por confidentes do seu drama sentimental o mar, a mãe,
a irmã e a amiga. Tais elementos acabam por se constituir em personagens na estrutura
do diálogo, quando a moça vai para a beira do mar e, enquanto admira o movimento das
águas, conversa com as ondas, pedindo-lhes notícias do amado.
5
Proserpina (romana) corresponde a Perséfone (grega), deusa de grande beleza e feminilidade, raptada
por Hades e levada para o mundo subterrâneo. Na tela de Rossetti (1874), ela aparece segurando uma
romã. De acordo com a narrativa mitológica, Proserpina havia comido uma semente da fruta, o que
significava que não tinha rejeitado totalmente Hades.
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As cantigas (Ondas do mar de Vigo e Ai ondas que eu vim veer), de Martin Codax,
abordam a questão da donzela que pede às ondas do mar notícias de seu amigo que
partiu. Na ansiedade e na incerteza do retorno do amado, observa-se uma apelação ao
mar como se a ele fosse possível confortá-la. O mar apresenta, em ambos os poemas, o
papel de confidente: a menina o indaga, como se dele pudesse obter uma resposta
qualquer, pois que ter sido ele quem levou o seu amigo. Na primeira cantiga (Ondas do
mar de Vigo), a moça clama a Deus pela ausência do seu amado “e ai Deus, se verrá
cedo!”, manifestação dramática da religiosidade. Já na segunda, ela se dirige apenas às
ondas, numa tentativa de obter resposta à pergunta “por que tarda meu amigo/ sem
mi!”. Há exemplares de cantigas marinhas que o eu-lírico comunica a mãe de que vai a
Vigo encontrar o namorado “ca ven o meu amigo:/ e irei, madr’, a Vigo”, afirmando ter
certeza da chegada do amigo são e salvo “e ven viv’e e sano”.
Vale lembrar que tais cantigas corroboram o motivo da ausência do homem, que
partiam para o mar a serviço do rei, deixando a namorada saudosa a sua espera por um
tempo indeterminado. Na cantiga em questão, é provável que a menina tenha tomado
conhecimento de seu retorno por ele gozar de influência junto ao rei “e d’el rei privado”
e, portanto vai a Vigo ao seu encontro.
Já na cantiga Nas barcas novas foi-s’ o meu amigo daqui de Juan Bolseiro, há o relato
de outra situação: uma moça que, contando com a volta do amigo, vai esperá-lo à beira
mar e, enquanto vê as barcas que chegam “e vej’eu viir barcas e tenho que vem i,”,
revelando a esperança de que o amigo se encontra em uma das embarcações.
Confidencia suas idéias à mãe, expõe a sua preocupação com o retorno do amado,
afirmando ter certeza de que ele não moraria em outro lugar sem ela: “ca non podia
muito sem mi alhur morar”. Tais previsões e a espera ansiosa, nem sempre se
concretizavam, porque muitos homens morriam ou permaneciam por tempo
indeterminado nos locais de trabalho, gerando decepções e lágrimas.
João Zorro, na cantiga: Mete el-rei barcas no rio forte;/ quen amigo á que Deus lho
amostre:/ alá vai, madre, ond’ei suidade, aborda o evento das barcas lançadas ao mar –
espaço marítimo “no rio forte”, “na Estremadura” -, quando, mais uma vez, a serviço do
rei, o amigo está separado da donzela. Esta, por sua vez, toma a mãe por confidente da
sua tristeza e, diz que a partida de dele é motivo de saudades. Há no texto a presença da
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religiosidade e da esperança inspirada pelo “rio forte”, ao invocar a Deus para que se
tenha uma prova de que o amigo está vivo “quen amigo á que Deus lho amostre” e, em
seguida, que o traga de volta, no verso: “quen amigo á que Deus lho aduga,.
Na outra composição do mesmo trovador: Pela ribeira do rio salido o cenário é o “rio
salido” e a moça confessa à mãe acerca do seu relacionamento com o amigo. Esta toma
por defesa o fato de amá-lo, “amor ei migo, que non ouvesse/ fiz por amigo que non
fizesse!”, pois caso contrário, não teria brincado - “trebelhado”. Identifica-se com Vi
eu, mia madr’, andar/ as barcas eno mar:/ e moiro-me d’amor, versos pertencentes a
Nuno Fernandez Torneol, nos quais a donzela sai em direção ao mar, quando avista as
embarcações, na esperança de ver o amigo que havia partido. Revela nos versos que,
por várias vezes, foi aguardar as barcas na esperança de vê-lo, mas não o encontrou.
Isso resulta no sofrimento (coita de amor), que se intensifica. Cada vez que se dirige à
ribeira, a donzela não encontra o amigo, resultando no desejo de morrer de amor, como
expresso no refrão: “e moiro-me d’amor”.
Já em outros exemplos, como em Mia irmãa fremosa, treides comigo/ a la igreja de
Vig’, u é o mar salido,/ e miremo-las ondas, de autoria de Martim Codax, a donzela
insiste para que a irmã e a mãe, que exercem o papel de confidentes do seu drama
sentimental, acompanhem-na à Igreja de Vigo, à beira mar, onde possivelmente
encontraria o seu amado. Observa-se a religiosidade quando mencionada a igreja, no
caso a de Vigo, a qual se presta como ponto de referência dos acontecimentos amorosos
mais importantes da época. Há, ainda, a descrição das ondas do mar revolto “salido”/
“levado”, indiciando a ansiedade e os sentimentos da moça que espera o namorado que
foi para o mar.
Diferentemente, na cantiga El-rei de Portugale/ barcas mandou lavrare/ e lá irá nas
barcas migo/ mia filha, o voss’amigo, de autoria de Joan Zorro, é a mãe quem diz para a
filha sobre os acontecimentos, noticiando que el-rei mandou construir embarcações para
lançar ao mar e que o amigo partiria em uma delas. Configura-se aqui o poder exercido
pelo rei sobre os homens, afastando-os do convívio das mulheres. Esse fato tematiza o
lirismo existente na cantiga e o consequente sofrimento já discutido nos exemplos
anteriores. Em contrapartida, na cantiga de Paai Gomes Charrinho
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Disseron-m’oje, ai amiga, que non
é meu amig’almirante do mar
e meu coraçon já pode folgar
e dormir já, e por esta razon
o que do mar meu amigo sacou
saque-o Deus de coitas qu(e) afogou.
Mui ben é a mi, ca já non andarei
triste por vento que veja fazer,
nen por tormenta non ei de perder
o sono, amiga, mais, se foi el-rei
o que o mar meu amigo sacou,
saque-o Deus de coitas qu(e) afogou.
Mui bem é a mi, ca já cada que vir
algun ome de fronteira chegar,
non ei medo que me diga pesar,
mais, por que m’el fez ben sen lho pedir,
o que do mar meu amigo sacou
saque-o Deus de coitas qu(e) afogou.
Neste belíssimo exemplar, o sujeito lírico revela os sentimentos da moça que tem o seu
amigo libertado dos trabalhos no mar pelo rei. Ela confidencia à amiga o ocorrido
naquele dia: Disserom-m’oje, ai amiga, que non / é meu amigo almirante do mar /, fato
deixou-a aliviada e tranquila, porque já não terá mais que se preocupar com o mau
tempo como outrora e, agradece a Deus por isso, mesmo porque ela não havia feito tal
pedido. Dessa forma, não sofrerá mais com a ausência do amado, sentindo-se muito
confortável em saber que, apesar da chegada de notícias ruins, o seu namorado não
estará incluso. No refrão: o que do mar meu amigo sacou/ saque-o Deus de coitas
qu’afogou evidencia-se o pedido a Deus que o liberte do sofrimento que, finalmente,
acabou.
Há, porém, exemplos, nos quais o sujeito lírico fala diretamente com Deus, como na
cantiga: Ai Deus, se sab’ora meu amigo/ com’eu senlheira estou em Vigo/ e vou
namorada, composição de Martin Codax, um verdadeiro lamento a Deus que revela
solidão e tristeza pela ausência do amigo. Questiona se Deus sabe o quanto sozinha e
apaixonada ela se sente em Vigo “Ai Deus, se sab’ora meu amigo/ com’eu sen lheira
estou en Vigo/ e vou namorada” e, assim, implora-lhe que volte os olhos para ela:
“ergas meus olhos que choram ambos”, numa atitude de extrema dor e sofrimento:
“Com’eu en Vigo senlheira manho/ e nulhas guardas migo non trago”.
Ou, ao contrário, o eu-lírico se dirige diretamente ao amigo, como no exemplar Quantas
sabedes amar amigo/ treides comig’a lo mar de Vigo/ e banhar-nos-emos nas ondas, de
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autoria de Martim Codax, surpreendentemente, a menina convida o amigo para banharse nas águas do mar de Vigo. Este cenário marítimo faz-se presente nos encontros
idílicos dos apaixonados, nas referências ao mar encapelado, como se o movimento das
ondas externasse os seus sentimentos, entendendo-se que a construção do poema traduz
uma progressão que nos leva ao tema, o encontro amoroso nas águas do mar.
Embora as estatísticas ofereçam um número relativamente baixo para a frequência de
cantigas que mantêm algum tipo de relação com este cenário – o mar – são tão
sugestivas que têm chamado atenção de vários estudiosos.6 Vale lembrar que o mar está
presente nos textos literários, representando o que realmente significa – uma grande
extensão de água que delimita a Península Ibérica, bem como um meio de comunicação,
o lugar que aqueles que fizeram a história viveram e atravessaram-no. Perigoso (coita
do mar, que muitos faz morrer), especialmente quando se registram as tormentas, mas,
ao mesmo tempo, um elemento familiar, próximo e conhecido. As personagens das
cantigas (o almirante, por exemplo) consideram mais grave a coita de amor do que os
perigos do mar. A maioria das cantigas apresenta o elemento marinho integrado nas
cantigas de refrão, construídas sobre a estrutura paralelística e, em alguns casos, no
recurso leixa-pren. Essa característica formal é importante, porque os termos marcados,
do ponto de vista conceptual (mar/ rio/ barcas/ ondas/ águas) resultam em núcleos
centrais das cantigas.
Essa temática se une à das cantigas de romaria porque as ermidas, geralmente,
localizam-se à beira mar no alto das pedras e a donzela, sentada na escadaria da igreja,
espera a volta do amigo e contempla as ondas que crescem, multiplicam-se, mas não
trazem de volta o seu amado e, tampouco, respondem a sua coita. O perfil feminino e o
cenário identificam-se nessas cantigas.
Podemos encerrar com um dos mais belos textos do gênero, a cantiga Sedia-m’eu na
ermida de San Simion/ e cercaron-mi as ondas, que grandes son:/ eu atendend’o meu
amigo/ eu atendend’o meu amigo, de autoria de Meendinho, jogral originário da cidade
de Vigo. Inicia-se com a apresentação da donzela diante do cenário, a igreja de São
Simão, localizada em um ilhéu da Ria de Vigo que, construída à beira mar, constitui-se
6
Brea, Mercedes (1994): Pai Gomes Charinho y el mar, entre outros.
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perfeita paisagem para o contexto do lirismo da época. Hoje, um santuário acessível por
terra quando a maré está baixa.
A cantiga narra um fato ocorrido nesse ambiente, quando a donzela, movida pela
paixão, encontra-se diante do altar “Estando na ermida ant’o altar” à espera do amigo
“eu atendend’ o meu amigo” e, distraidamente não percebe a maré alta. Quando se dá
conta da situação, em pânico, descobre que está cercada pelas ondas crescentes e sem
ajuda do barqueiro: “non ei i barqueiro, nen remador”. Sendo assim, entrega-se ao
destino de morrer bela e pensando no amigo, desejo enfatizado no refrão. Observa-se
que o desenvolvimento do drama ocorre de forma gradativa, à medida que o perigo
evolui. Segundo Saraiva (1950), a cantiga é um monólogo em que a própria
protagonista descreve a situação em que se encontra. Pidal (apud Ferreira s/d, p. 99)
registra que “…la angustia de la soledad crece, como la marea tormentosa, crece sin
traer barca ni marinero, para salir de entre las olas del dolor”.
Sem dúvida, essa cantiga é o exemplo mais expressivo da correspondência entre a
natureza circundante e o estado de espírito da donzela. No desenvolvimento da idéia, o
movimento paralelístico se adapta e parece evocar o ir e o vir crescente das ondas, com
a maré, que sobe, envolvendo-a, cuja solidão, na espera do amigo, é reiterada
obsessivamente no refrão “eu atendend’ o meu amigo”.
O cenário se repete na cantiga Irei a lo mar vee-lo, meu amigo;/ pregunta-lo-ei se
querrá viver migo/ e vou-m’eu namorada , de Nuno Porco, mas a situação se difere da
cantiga anterior: a donzela apaixonada vai até a beira do mar encontrar o seu amigo para
perguntar se ele deseja viver com ela “se querrá viver migo”. Corajosa, declara o
quanto sofre de amor por ele “a coita’n que por el vivo”. Nesse sentido, o amigo
provavelmente desagradou-a pelo mau comportamento: “Pregunta-lo-ei por que m’á
despagado/ e se mi-assanhou, á tort’endoado”, despertando-lhe a raiva e, ao mesmo
tempo, a paixão, que se confirma no refrão “e vou-m’eu namorada”. Neste exemplar,
contrariamente ao anterior, encontramos uma mulher corajosa e determinada,
contrastando-se com a fragilidade da donzela da cantiga anterior que, consumida pela
saudade do amigo, sugere a morte tragada pelas ondas do mar. O olhar perdido perante
a imensidão das águas naturais é glosado dando a entender que o amigo pode regressar
apenas pela força do desejo confessado.
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Os cancioneiros medievais contêm inúmeros exemplos assinados por trovadores como
Estevão Coelho, Meendinho, Martin Codax, João Zorro, Gomes Charrinho e Nuno
Fernandes Torneol. A natureza não se configura como um simples cenário em que
decorre a ação; apresenta vida própria, documenta o animismo típico das sociedades
mais primitivas. Espécie de testemunha viva das alegrias e tristezas da donzela, por
vezes, a sua personificação é total, como nas cantigas marinhas. Como registrou Spina
(1971, p.16) “são criações nacionais, sem correspondentes em outras literaturas, as
barcarolas exprimem com todo o encontro a experiência de um povo criado à “beiramar” onde tantas vezes se acendeu e se apagou a chama da saudade”.
6. Considerações finais
Devido à natureza breve do ensaio, seria impossível almejar, aqui, um estudo completo
e pormenorizado da simbologia dos elementos da natureza (o espaço) no corpus
selecionado para a pesquisa. Uma extensa bibliografia deve ser consultada para que o
estudo se complete. A finalidade não foi outra que a análise e interpretação crítica da
natureza e das formas de expressão do simbolismo poético de uma das mais
representativas composições do período áureo da poesia. Para a contextualização do
simbólico, foram selecionadas informações históricas e socioculturais de fundamental
importância para a introdução do assunto. Na leitura dos textos, os recursos da
expressão e da composição foram especialmente considerados, objetivando o
aprofundamento da hermenêutica interpretativa do simbolismo existente na construção
do cenário das modalidades líricas escolhidas.
Toda simbologia que percorre a poética medieval apresenta-se transfigurada pela
referência alegorizante herdada da tradição religiosa, da prática e da utilização exemplar
da alegoria, do símbolo e do símile para sublinhar sentimentos e ideais religiosos.
Foram longos séculos de tradição que tais preceitos permaneceram, laicizados somente
com o advento dos enciclopedistas do século XIII, trazendo a realidade natural e
humana. O simbolismo alegórico desempenha importante papel no eixo secular do
lirismo amoroso. Ligado ao substrato da ética e da moral, revela a influência do
procedimento alegórico utilizado com a finalidade religiosa.
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Na cantiga de amigo (de tradição oral) deve-se considerar a influência recebida da
filosofia e da ética amorosa dos trovadores provençais. Os valores simbólicos foram
inventariados e a explicação e a interpretação de temas e motivos sugeridos pelo
discurso poético justificam-se nas informações geográficas das regiões do Alto Minho e
da Galiza, suas paisagens e costumes e na teoria do espaço imaginário de Blanchot que,
ao se referir ao poeta, reconhece-o como criador da novidade imagética que origina a
linguagem. Aponta a imagem como elemento que antecede o pensamento, devido a sua
capacidade de ser gerada na alma muito antes de chegar ao espírito. É importante
esclarecer que a dualidade alma/espírito, em algumas filosofias linguísticas, quase não
se apresenta marcada. Contudo, na filosofia da poesia, a divergência entre tais
vocábulos não deve ser simplificada, como por exemplo, a palavra alma tem a
conotação de imortal, mas pode ser interpretada como uma convicção de animar o
poema.
A dança, o canto, a saudade e a natureza formam, portanto, a moldura de singelos
quadros sentimentais, impregnando de encanto e doce realismo a poesia original de
caráter feminino, sem correspondentes em outras literaturas. O cenário sugestivo à
localização espacial em causa, nas cantigas, foi considerado como a idéia de uma arte
verbal que já caminhava lentamente para a sua aptidão de suscitar visões sobre os traços
da arte figurativa, oferecendo-nos verdadeiros quadros e cenas do mais puro lirismo,
delineando a idéia de uma poesia que pinta. O perfil feminino harmoniza-se direta ou
indiretamente com o amor e o estado de espírito da menina, ora alegre ou triste,
vinculado ao espaço e à contemplação da natureza que provoca a emoção amorosa e a
saudade.
No século XVI, o significado de uma arte visual encontrou em Camões a verdadeira
equação entre a poesia e a pintura, relacionada ao retrato da mulher amada. Compôs
cenários semelhantes na medida velha e o locus amoenus na medida nova, pleno de
paisagens e espaços imaginados, presentes nos sonetos, nas odes, nas canções e nas
éclogas. Um olhar crítico em constante movimento, capaz de ver, observar, refletir,
sentir e criar deve ser a atitude do leitor de sempre. O trovador e o poeta dos séculos
subsequentes, assim como o pintor, movimentaram-se num mundo de perspectivas e a
produção artística encontrou sua razão de ser nessa plurivalência estética.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
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Referências
AUMONT, Jacques. A Imagem. 13ª ed.; Campinas: Papirus, 2006.
BELL, Aubrey. Da Poesia Medieval Portuguesa. 2ª ed., (Trad. Antônio Álvaro Dória).
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Série Estudos Medievais 2: Fontes
45
Breve reflexão quanto às fontes primárias,
em projeto sobre a lírica amorosa medieval
galega e italiana
Delia Cambeiro
Instituto de Letras (IL) – Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)
Resumo: O problema das fontes literárias é desafio constante no que toca ao acesso de textos
escolhidos para uma pesquisa, no campo da literatura comparada. Um professor que desenvolva
trabalho de pesquisa em literatura estrangeira – em nosso caso pessoal, as literaturas medievais
italiana e galega – , encontrará, sem dúvida, obstáculos no momento de dar continuidade a um
projeto individual ou de Iniciação Científica. A intenção de enriquecer de alguns corpora na
língua original o estudo muitas vezes trará ao orientador a experiência de múltiplas dificuldades
com relação às fontes primárias, em especial, em italiano, pois a lírica medieval galega é bem
mais divulgada, devido às famosas Canções de Amigo. Apesar disto, é normal, às vezes,
conseguirmos documentos essenciais em antologias especializadas ou em obras completas de
bibliotecas públicas ou de entidades culturais. Convém assinalar, finalmente, em especial, o fato
de as bibliotecas on line serem tantas vezes de ajuda constante às necessidades do estudioso, ao
lhes proporcionarem acesso a textos integrais. Este trabalho, com base em projeto de Iniciação
Científica (bolsas PIBIC/UERJ e FAPERJ 2008-2009), tem o objetivo de refletir a respeito da
precariedade de material literário em língua italiana dos séculos XII e XIII e dos resultados
obtidos.
Palavras-chave: Lírica amorosa medieval na Galiza; Lírica amorosa medieval na Itália.
Resumé: Le problème des sources littéraires est un défi permanent quant à l´accès aux textes
choisis pour une recherche dans le domaine comparatiste. Le professeur qui devellopera un
travail en littérature étrangère, dans notre cas personnel les littératures médiévales italienne et
galicienne, en éprouvera, sans doute, certains empêchements au moment de donner suite, par
exemple, à un projet individuel ou de « Iniciação Científica ». Le but de l´enrichir avec des
corpora en langue originale apportera très souvent au coordinateur d´études l´expérience de
multiples difficultés concernant les sources primaires, notament en langue italienne, car la
lyrique médievale galicienne est beaucoup plus répandue, ce dû aux fameuses chansons d´amis.
Malgré les obstacles, il est quelquefois normal pourtant de retrouver des documents essentiels
dans des antologies spécialisées ou dans des oeuvres complètes incluses dans des bibliothèques
publiques ou des sociétés culturelles. Finalement il faut signaler surtout le fait de que les
bibliothèques en ligne viennent souvent en aide aux besoins des chercheurs en leur
proportionant l´accès à des textes intégraux. Ce travail basé sur un projet de Iniciação Científica
(bourses PIBIC/UERJ et FAPERJ 2008-2009) a le but de reflechir sur le manque de matériel
littéraire en langue italienne du XII et XIII siècles et sur les résultats obtenus.
Mots-clés: Poésie médiévale d´amour en Galice; Poésie médiévale d´amour en Italie.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
46
1. Breve relato de projeto
Apresentamos, como orientadora, à FAPERJ e à UERJ, o projeto de Iniciação Científica
“A lírica amorosa medieval galega e italiana do século XII e XIII em perspectiva
comparada”, recebendo duas bolsas, que vigoraram de julho de 2008 a julho de 2009.
Da bibliografia, contavam títulos básicos e indispensáveis ao desenvolvimento de
estudos iniciais sobre Idade Média direcionados a alunos de graduação, ainda em fase
de descoberta das duas culturas literárias de: André Capelão, Tratado do amor cortês;
Georges Duby, Idade Média, idade dos homens. Do amor e outros ensaios; de Le Goff,
O imaginário medieval e de Maria do Amparo T. Maleval, Rastros de Eva no
imaginário ibérico, dentre tantos.
Dois alunos de 6º e 7º períodos, do curso Português-Italiano, foram selecionados para
concorrerem, pois demonstravam competente desempenho em sala de aula e obtiveram
bom resultado na avaliação feita a partir de textos constantes da ementa de Literatura
Italiana I. Além disso, apresentavam nota igual ou superior a 8 no Coeficiente de
Rendimento-CR.
No projeto, quanto aos Objetivos Gerais, destacávamos: estimular pesquisa literária da
lírica amorosa galega e italiana, a abordagem das respectivas histórias literárias e
pesquisa sobre o imaginário medieval, especialmente dos séculos XII ao XIV.
Já nos Objetivos Específicos estipulávamos:
a) pesquisar a lírica amorosa trovadoresca galega em perspectiva comparada com a
italiana;
b) refletir sobre fenômenos circulantes no imaginário cultural dos séculos XII ao XIV,
que respondam à hipótese de influência da lírica galega sobre a italiana;
c) investigar e demonstrar a importância da lírica amorosa produzida no âmbito dessas
duas culturas;
d) verticalizar e renovar o conhecimento sobre lírica amorosa;
e) estimular a produção de material para publicação sobre o assunto;
Série Estudos Medievais 2: Fontes
47
f) instigar a participação do bolsista em congressos, simpósios, seminários, encontros,
semana de iniciação científica etc., para divulgar a pesquisa a ser desenvolvida pelo
projeto.
Antes, porém, é preciso ressaltar que, no primeiro ano de bolsa, o projeto queria
investigar e demonstrar – com o estudo de um corpus constituído de textos oriundos da
lírica amorosa trovadoresca produzida entre os séculos XII e XIII, na Galiza – a
hipótese de tal produção ter exercido influência em alguns nomes exponenciais da
Scuola Siciliana e do Dolce Stil Novo na Itália. Começaríamos o estudo do século XIV
no segundo ano de bolsa, porém, devido à escassez de fontes primárias a serem
investigadas, limitamos nosso projeto aos XII e XIII, entretanto, se tivéssemos
conseguido o material necessário, teríamos avançado, sem dúvida alguma, ao XV e ao
XVI italianos.
O que sempre nos preocupou e sempre quisemos passar a nossos bolsistas é o fato de se
encontrarem, tantas vezes, estudos que não chegam ao texto primário, limitando-se aos
reproduzidos por críticos das obras e comentadores dos críticos. Por isto, a importância
de procuramos chegar às fontes primárias, para não termos de citar as citações das
citações.
Demos início ao projeto em reuniões semanais com os dois bolsistas, durante as quais
apresentamos os primeiros passos a serem efetuados, ou seja: inteirarem-se e
questionarem o mito negativo da Idade Média como “idade das trevas”, tão conhecido e
divulgado pelos meios de comunicação, entre eles, o cinema. Assim procedemos com a
intenção de sublinhar o prestígio literário da época e desvelar seu universo poético, com
o estudo da lírica amorosa.
Os estudantes – devemos ressaltar, há bastante tempo interessados nos estudos
medievais –, nos encontros foram estimulados a pensar sobre a importância do período
para a História da Literatura ocidental, munidos de suporte teórico em Literatura e em
História das Mentalidades. Tal début nos estudos medievais inseriu-os nas indagações
sobre o tema, levou-os a melhor conhecer o fenômeno literário designado amor cortês, o
mundo, o imaginário cultural dos séculos em evidência.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
48
Esse método de investigação lhes forneceu suportes científicos capazes de orientá-los a
provar/comprovar – enfim, a discutir – a importância da lírica ocidental, através de
leituras que evidenciavam o contributo provençal, mas que apontavam, principalmente,
para a diferença da lírica amorosa galega nas canções de amigo.
Os cursos de graduação do IL/UERJ incluem o estudo destas canções, durante as aulas
de Literatura Portuguesa e, nas de Literatura Italiana, explora-se também a Literatura
das Origens, com a poesia siciliana e a do stil novo.
Se nos estudos iniciais a constatação de identidade entre as cantigas de amor galegas e a
lírica amorosa italiana fez-se de forma praticamente clara, difíceis foram os recursos
disponíveis à investigação contrastiva que nos auxiliasse provar ou negar a hipótese de
possível influência das canções de amigo na lírica italiana de autoria masculina. O que
se nos configurou foram poemas de autoria feminina, cuja voz poética se lastima da
perda do amado.
Tal demonstração necessita de conhecimento histórico e textual, portanto, os
documentos já existentes em nosso poder serviram de modelo para outras investigações,
sob as responsabilidades dos bolsistas. Tínhamos intuição, porém, quanto à dificuldade
de eles encontrarem novos textos e a questão se agravou ao se buscarem as vozes de
trobairitz lamentando as penas do amor.
Para melhor explicarmos o que nos causou um indesejável obstáculo, a seguir,
traçaremos um sucinto trajeto do desenvolvimento da literatura dos séculos XII e XIII,
acompanhado de poemas explorados ao longo do projeto. Após esta exposição
comentaremos, finalmente, nossa frustrada tentativa de formar um corpus de cantigas de
mulher compostas por trobairitz italianas, do século XIV, período incluído na redação
inicial e infelizmente à espera de acesso às fontes.
2. Cantigas de amor e de amigo na lírica italiana
Falar de cantiga de amor e de amigo remete-nos, primeiramente, a um período em que a
língua galega atingiu o auge de sua vitalidade no registro escrito, aos séculos XIII ao
Série Estudos Medievais 2: Fontes
49
XV. O importante material poético dos cantares trovadorescos deveu-se ao grau de
independência cultural a que chegara o Reino da Galiza, no século XII e tal corpus
apresenta originais e ricos documentos, no panorama da literatura trovadoresca.
Refletimos a respeito desse tema e da interferência da cultura trovadoresca galega na
Itália, questionando como as composições dos travadores se expandiam nas cortes da
Europa.
Como bem nos explica o crítico italiano Francesco Flora (1979, p.18-19), ao direcionar
seu olhar crítico à Provença,
as ligações existentes entre as diversas cortes reafirmam terem sido
numerosos os que não apenas escreviam ou falavam o provençal, mas se
deslocavam de corte em corte, para desfrutarem das inovações poéticoculturais correntes entre as penínsulas ibérica e itálica e a França.
É evidente não ser possível ficarem veladas as diversas criações medievais na Europa
cristã, principalmente esse rico material literário, até hoje louvado por seu peso
considerável no lastro cultural do Ocidente. A literatura italiana nos séculos XII e XIII,
nos mostra que o 200 foi o primeiro importante período literário, após sete séculos de
literatura latina medieval. As criações eram compostas em língua vulgar, derivada,
como as outras línguas latinas, da lenta transformação do latim falado, substituído no
uso e na linguagem popular. Este é o século em que Francisco de Assis exprime um
primeiro esboço de poesia, ao dirigir-se à Criação e ao Criador. Muitos foram os que
trabalharam a linguagem no desejo de representar criativamente o mundo, mas os
primeiros poetas que revelaram uma clara consciência artística foram os da chamada
escola siciliana e os estilnovistas, ou do dolce Stil novo.
De modo diverso da galega, a lírica amorosa italiana, após sete séculos de literatura
latina medieval, apresentou uma tomada de consciência artística, do século XII ao XIV,
que chegará ao auge com Dante Alighieri.
A primeira escola literária nasceu na Sicília, precisamente na corte de Frederico II, da
Suécia, onde se eternizaram composições líricas cuja perícia poética já anunciava
formas superior da linguagem. Na corte, grande centro de cultura, circulavam filósofos,
Série Estudos Medievais 2: Fontes
50
juristas, cientistas e poetas. A chamada scuola siciliana revelou-se, então, sinal de
maturidade lingüística, de uma elaborada escrita em língua vulgar. A obra desses poetas
inaugurais seria resultado de remotos predecessores, cujas rimas infelizmente ficaram
perdidas e mostraríamos ingenuidade pensar na poesia italiana despontando em um
único jato das mentes desses criativos intelectuais.
Cultos e refinados, os poetas sicilianos – em grande parte homens da Jurisprudência –
concebiam a poesia uma alta forma de arte, cuja destreza representava dedicação, estudo
paciente, profissionalismo. Da mesma forma que em outras cortes, tiveram também
forte diálogo com a poesia provençal, mas sua importância poética ultrapassou o
território da ilha, indo até outras regiões da península itálica – Florença, Bolonha etc.. A
língua da poesia, ou variante dialetal, poderia ser diferente, porém os motivos de criação
eram os mesmos, pois os artifícios seguiam bastante o estilo vindo da França. Em
alguns, entretanto, já se fazia sentir maior delicadeza artística em um fazer literário já
precursor do “stil novo”. A criação advinda dessa escola deixou-nos versos engenhosos,
em que se cantava o amor em forma de homenagem feudal à mulher, à dama
inatingível.
Sicilianos e estilnovistas tinham um perfeito conhecimento da poesia provençal, mas
alguns deles acrescentaram à poética já conhecida uma visão filosófica. Entre esses dois
filões da lírica italiana pode haver diversidade na linguagem, porém não nos temas,
amor e mulher, nem nos artifícios estilísticos. Na poesia siciliana, a figura feminina
como objeto lírico recebia contornos elegantes, entretanto, quando relacionada às salas
aristocráticas notamos estarem representadas com um perfil modesto, acanhado, sem
vida.
Já a mulher do stil novo, mesmo que ideal, é uma criatura com vida, plena de claridade,
irradiando luminosidade, é tudo o que de mais puro estava na alma do eu lírico. Aqui
falamos de figuras femininas que inspiravam sentimento de humildade, anulavam
qualquer pensamento menos elevado e, principalmente, convidando à nobreza de
coração, palavra sem alusão à origem de nascimento, pois era a nobreza, a gentileza de
coração, não a de nascimento – la gentilezza di cuore, non di nascita – que unia os
amantes abstratamente.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
51
A palavra inaugural do stil novo veio com o bolonhês Guido Guinizzelli que, ao
trabalhar a suavidade religiosa do sentimento amoroso em relação à mulher, renova a
sinuosidade do objeto lírico, estático, sem vida, como assinalamos anteriormente, no
que toca à escola siciliana. Em Guinizzelli, a mulher, ou a donna citada em seus versos,
pode ser correlacionada à madonna, imaginada em forma de aparição circundada de um
halo de luz e de silêncio.
Em um segundo momento, Guido Cavalcanti enriquece a atmosfera da poesia
suscitando um singular fascínio à figura feminina delineada no poema, claramente
diversa daquela dos sicilianos. Em Cavalcanti, a crítica não reconhece a mesma
religiosidade de Guinizzelli, no entanto, devemos assinalar que, em sua obra,
permanecem fontes provindas daquele primeiro mestre, entre outras, a representação do
objeto, o tema da luminosidade e a sugestão dessa mulher como divina aparição. O tema
mais forte em Cavalcanti, depois desenvolvido por Dante, foi o do amor que arrasa e
abate o amante, que o aterroriza, no sentido de deixá-lo estupefato, pasmado, atônito,
entorpecido diante da visão do objeto.
Nesta fase de exploração textual, os bolsistas precisaram fazer a leitura de Umberto
Eco, cuja obra Arte e beleza na estética medieval nos esclarece quanto à silhueta
feminina sugerida em tais poetas. Em seu livro, Eco desenvolve, de linhas filosóficas
medievais, baseadas em Grosseteste, por exemplo, a “poética da luz”, que nos orienta na
compreensão de tantos versos que definem o perfil do objeto feminino aureolado de
uma luz envolvente, não apenas capaz de atrair o olhar, mas de encantar o coração.
Temos, assim, a tópica do amor fatal, podemos assim denominá-lo, não corresponde a
um sentimento negativo, ao contrário, refere-se ao amor fascinação, que está acima de
tudo na existência, ou seja, o Amor que fere por causa da mulher portadora de luz,
Amor que atinge o homem implacavelmente. Depois de Guinizzelli e Cavalcanti tal
poética já se dilui, a renovação do tema Amor deu-se um pouco mais tarde, com
Francesco Petrarca, um outro momento importante no história da lírica ocidental.
E ao tratarmos de fontes literárias, não seria possível citarmos Petrarca, sem lembrarmos
estar no poeta aretino as fontes do francês Pierre de Ronsard e do nosso Camões lírico,
o que não os desmerece, pois o princípio da imitação eternizou-os como grandes
Série Estudos Medievais 2: Fontes
52
seguidores e transformadores do precursor italiano – para Harold Bloom (1991, p.63),
são poetas fortes, que partiram da autoridade literária de outro “cuja influência procede
sempre através de uma desleitura do poeta precedente”.
Além das buscas de canções de amor, que serão apresentadas e comentadas, bastante
produtivas foram as que consolidaram as hipótese de existirem poemas com a voz
poética feminina: uns podemos considerar cantigas de amigo de autoria masculina,
outros são anônimos e alguns seriam classificados como cantigas de mulheres.
As canções de amor, as de amigo e as de mulher já mostram o estágio em que a língua
começava a se afastar do latim, ganhando corpo um renovado e substancial vocabulário
poético. É interessante assinalar que o amor expresso nas citadas poesias se apresenta
eivado de um romantismo avant la lettre – sentimento amoroso sempre insatisfeito,
fonte de tristezas e angústias pela falta do objeto de desejo, às vezes expresso em forma
de lamento ora doloroso ora apenas cheio de surpresa pelo abandono.
Apresentamos, a seguir, cantigas de amor de Jacopo da Lentini, da scuola siciliana; de
Guido Guinizzelli e Guido Cavalcanti, do stil novo; cantigas de amigo de Odo delle
Colonne e de Rinaldo d´Aquino; textos de anônimos; cantigas das seguintes trobairitz:
Compiuta Donzella, Nina La Siciliana, seguidos de traduções livres e de comentários
feitos pelos orientandos de Iniciação Científica, sob minha supervisão.
3. Vozes femininas de autorias diversas
Iniciamos com uma canção de amigo, do poeta Odo delle Collone, em que a jovem se
lamenta da separação do amigo e dialoga com a canção:
Oi lassa, ´namorata
Contar vo´la mia vita,
E dire ogne fiata,
[...] Ch´io son, [...]
D´assai pene guernita
Per uno, ch´amo e voglio
E noll´agio in mia baglia [...].
[...] E or mi ha a disdegnanza,
E fami scanoscenza,
Par ch´agia ad altra amanza.
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O Dio, chi lo m´intenza
Mora di mala lanza,
E senza penitenza.[...]
[...] Va, canzonetta fina,
Al buono aventuroso,
Ferilo a la corina,
(...)No ´l ferir di rapina.
(...)Ma fer´illa ch´il tene,
aucídela sen´fallo.
poi saccio c´a me vene
Lo viso del cristallo,
E sarò fuor di pene
E avrò alegrezza e gallo.1 (RONCORONI, 1983, p.93)
Já na canção de Rinaldo d´Aquino, a mulher se dirige ao trovador de nome Dolcietto,
pedindo-lhe uma canção para seu amado:
Già mai non mi conforto
né mi voglio ralegrare,
le navi sono giunte ao porto
e vogliono collare.
Vassene lo più giente
in terra d´oltra mare,
oi me lassa, dolente,
como deggi´io fare?
Vassene in altra contrada
e non lo mi manda a diri,
ed io rimango ingannata,
tanti sono li sospiri
che mi fanno gran guerra
la notte co´la dia [...].
Però ti prego, Dolcietto,
che sai la pena mia,
che me facie n sonetto/e mandilo in Soria.
Ch´io non posso abentare/la notte né la dia:
in terra d´oltra mare
istà la vita mia.2 (BRUNI; GIUDICE, 1983, p.154-155)
Assinalamos o breve contraste de um anônimo, no qual lemos uma confissão das
fantasias de amor da jovem à sua mãe, em linguagem de grande liberdade erótica:
1
Ai de mim pobre apaixonada/ Quero cantar a minha vida,/ e dizer a todos,/ Que estou cheia de dor/ Por
um homem, que amo e desejo/ Mas não o tenho a meu lado./ Agora me desdenha/ e me desconsidera./
Parece ter outro amor./ Ah Deus que me ouça,/ que ela morra [ferida] por uma lança/ E sem se confessar./
Vai singela canção/ Até aquele homem venturoso,/ Atinge seu coração,/ Sem feri-lo mortalmente./ Mata
porém aquela que o tem,/ depois disso voltará para mim/ aquele rosto cristalino/ E não sofrerei mais/
Terei alegria e glória.
2
Não me conformo/nem quero sentir alegria,/ os navios estão no porto/e vão partir./Vai-se embora o mais
gentil dos homens/para terras de além-mar,/deixando-me chorosa/ o que devo fazer?/ Vai-se para outras
paragens/ e não me mandou dizer,/eu me sinto enganada/ tantos são os suspiros/que me golpeiam/de noite
e de dia./Por isso te peço, Dolcietto,/ tu conheces minha tristeza/faze-me um soneto/e manda-o à
Síria./Pois não posso ter paz/nem de noite nem de dia:/em terras de além-mar está a minha vida.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
54
Matre, tant ò ´l cor açunto,
la voglia amorosa e conquisa,
ch´aver voria lo meo drudo
vixin plu che non è la camixa.
Con lui me staria tutta nuda
né mai non vorria far devisa:
e o l´abraçaria en tal guisa
che´l cor me faria allegrare.3 (RONCORONI, 1983, p.83)
Já na próxima cantiga, considerada uma coita amorosa de provável autoria de Nina la
siciliana, que nos dá excelente figura simbólica, ao comparar o amado com um pássaro
fugitivo, no caso, um gavião propenso a inúmeras conquistas amorosas, a dor do Eu
lírico feminino está em tê-lo perdido, depois de ter-lhe ensinado a mestria do cantar,
bela metáfora para a união amorosa:
Tapina me che amava uno sparviero,
amaval tanto ch´io me ne morria,(...)
Or è montato e salito sì altiero,
assai più altero che far non solia,
ed è assiso dentro a un verziero,
e un´altra donna l´averà in balia.
Ispavier mio, ch´io t´avea nodrito,
sonaglio d´oro ti facea portare,
perché nell´uccellar fossi più ardito.
ed hai rotto li geti e sei fuggito,
quando eri fermo nel tuo uccellare.4 (DE SANCTIS, 2008)
A seguir, também de um anônimo, apenas alguns versos do “Lamento della sposa
padovana”, “Lamento da esposa padovana ” uma coita em que a voz feminina expressa
dor e saudade pela separação do marido, “´l mario meo”:
Responder voi´a dona Frixa,
ke me conseja en la soa guisa
(...) ke´me´ ma -rio se n´e´andao,
ke´l me´cor cun lui a´ portao (...).
En lui e tuto el me´conforto:
(...) ke´tropo m´e luitan la festa
ke plu desiro a celebrare (...)
prego Deo ke guarda sia
3
Mãe, meu coração foi flechado/o desejo de amar o venceu/Gostaria de ter o meu amante/O mais
pertinho de mim possível/Com ele ficaria toda despida/sem que nada pudesse nos separar:/eu o abraçaria
de tal maneira/que o meu coração alegrar-me-ia.
4
Infeliz sou eu que amava um gavião,/amava-o tanto que me sentia morrer,/Agora voou com tanta
altivez/mais altivo do que precisava,/está sentado em outro jardim/e outra mulher o tem a seu lado./Meu
gavião, eu te nutri,/um guizo de ouro te dei para levar,/para que fosses mais agudo no teu cantar./mas
quebraste os elos e fugiste,/quando eras seguro no teu cantar.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
55
del m´segnor en Pagania,
e facza si´ke ´l mario meo
alegro e san se´n tone,(...)
ke ´ç me´signor tosto se´n´venga.5 (BONOMI, 2008)
É importante citar a trobairitz florentina Compiuta Donzella, chamada a Divina Sibila,
pelo escultor Pietro Torrigiano. Vejamos este soneto da autora:
A la stagion che ´l mondo foglia e fiora
cresce gioia a tutti fin´amanti,.
vanno insieme a li giardini alora
che gli auscelletti fanno dolzi canti.
La franca gente tutta s´inamora,
e di servir ciascun tragges´inanti,
ed ogni damigella in gioia dimora;
e me, n´abondan marrimenti e pianti.
Ca lo mio padre m´ha messa´n errore
e tenemi sovente in forte doglia:
donar mi vole a mia forza segnore,
ed io di ciò non ho disio né voglia,
e ´n gran tormento vivo a tutte l´ore,
però non mi ralegra fior né foglia.6 (BRUNI; GIUDICE, 1983, p.163).
Convém esclarecer que, até o momento, os poemas acima relacionados foram retirados
de livros pertencentes à biblioteca particular da autora e adquiridos no Brasil e/ou na
Itália, ou recolhidos a partir de bibliotecas on line italianas. Dentre elas citamos o
importante portal http://www.liberliber.it que permite a leitura e impressão de textos
integrais de vários títulos de livros importantes.
A bibliografia crítica em português é inexistente, no que toca às italianas dos séculos
XV e XVI, Isabella Morra, Gaspara Stampa e Veronica Franco, cujos textos serão
reproduzidos abaixo. Em verdade, nosso trabalho seria o primeiro a refletir sobre suas
obras. A dificuldade de tradução do material fez-nos progredir a passo lento e ao final
5
Quero responder a dona Frixa,/que a seu jeito me aconselha/porque meu marido foi embora,/ e meu
coração partiu com ele./Ele é todo o meu conforto:/muito está longe de mim a festa/que mais desejo
celebrar/ peço a Deus que seja guardião/de meu senhor em Pagania/faça logo meu marido/alegre e são
retornar, (...) que o meu senhor logo volte de lá.
6
Na estação em que o mundo se adorna de folhas e de flores/aumenta a alegria dos finos amantes,/juntos
vão para os jardins/enquanto os pássaros cantam docemente.//As pessoas de alma nobre se
enamoram/abrem-se ao serviço do amor/ e toda dama fica feliz;/em mim dominam a tristeza e o
pranto//Porque meu pai me deixou em grande pena,/ quer-me dar à força um marido/ que não desejo nem
quero/vivo as horas atormentada/por isso não me alegram nem as flores nem as folhas.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
56
da bolsa e de nossa pesquisa não contamos com nenhuma publicação que nos desse
leitura crítica capaz de dialogar com a nossa.
Demonstramos, assim, os obstáculos que enfrentamos, no que toca à consulta a fontes
primárias, secundárias e mesmo terciárias, portanto, confirmamos que nossos estudos
vêm impulsionando, com bastante dificuldade, um leitura crítica dos textos
reproduzidos neste trabalho, em especial dos referentes aos italianos autores de canções
de amigo por nós encontradas e reconhecidas como tal, mediante pesquisa comparada.
Com a finalidade de seguirmos com o projeto, entramos em contato com entidades
capazes de localizarem ou indicar-nos os meios de adquirimos a necessária bibliografia,
o que se mostrou difícil, pois tanto na Itália quanto no Brasil, não recebemos resposta
favorável, visto que alguns títulos se acham esgotados, sendo necessário consulta a
bibliotecas no exterior.
Apresentamos, a seguir, à guisa de ilustração, apenas trechos em que os nomes das
autoras do século XVI estão em destaque nos poemas. De Veronica Franco, as Terze
Rime, em diálogo com seu amante, Marco Vernier, grande senhor de Veneza, e com
outros autores de nome incerto:
[...]
III
Della signora Veronica Franca
Questa la tua Franca ti scrive,
dolce, gentil, suo valoroso amante;
la qual, lunge da te, misera vive 7
[...]
XVII
Della singnora Veronica Franco
Questa la tua Veronica ti scrive,
signor ingrato e disleale amante,
di cui sempre in sospetto ella ne vive.8
[...] (http://www.liberliber.it).
7
Terça rima III, (resposta) Da senhora Veronica Franco. Esta tua fiel Franca te escreve,/dolce e gentil, a
seu valoroso amante;/ a qual, longe de ti, mísera vive. (...).
8
Terça rima XVII, (resposta) Da senhora Veronica Franco. Esta tua Veronica te escreve,/ senhor ingrato e
desleal amante,/ de quem sempre em suspeita ela vive. (...).
Série Estudos Medievais 2: Fontes
57
Acrescentamos não se tratar de uma constante, nas Terze Rime de Veronica Franco, seu
nome vir no corpo do poema. O mesmo acontece com Isabella Morra, que, na seguinte
estrofe de um soneto, registra a espera do pai, uma triste passagem de sua existência,
tempos antes de ser assassinada pelos irmãos, por questões políticas:
D´un alto monte onde si scorge il mare
Miro sovente io, tua figlia Isabella,
s´alcun legno spalmato in quello appare,
che di te, padre, a me doni novella.9
[...] (http://www.liberliber.it)
Vejamos, ainda, o trecho de um soneto de Gaspara Stampa, em que a voz feminina fala
da beleza de seu “senhor”:
Chi vuol conoscer, donne, il mio signore,
miri un signor di vago e dolce aspetto,
giovane d´anni e vecchio d´intelletto,
imagin de la gloria e del valore:10 [...] (http://www.liberliber.it)
Em continuação, canções de amor da scuola siciliana e do stil novo.
Io m’aggio posto in core a Dio servire,
com’io potesse gire in paradiso,
al santo loco, c’aggio audito dire,
o’ si mantien sollazzo, gioco e riso.
Sanza mia donna non vi voria gire,
quella c’à blonda testa e claro viso,
che sanza lei non poteria gaudere,
estando da la mia donna diviso.
Ma no lo dico a tale intendimento,
perch’io pecato ci volesse fare;
se non veder lo suo bel portamento
e lo bel viso e ’l morbido sguardare:
che´l mi teria in gran consolamento,
veggendo la mia donna in ghiora stare.11 (BRUNI; GIUDICE, 1983, p.175).
9
De um alto monte de onde se descortina o mar/ Miro sem descanço, eu, a tua filha Isabella, / se nele
alguma embarcação aparece/ que de ti me dê notícias (...).
10
Quem quiser conhecer, oh mulheres, o meu senhor,/ mire um homem de vago e doce aspecto,/ jovem
na idade e velho de intelecto,/imagem da glória e do valor (...).
11
Eu me dispus servir Deus/ e ir para o Paraíso/ o lugar santo de que ouvi falar/onde divertimento,
brincadeira e riso são eternos// Sem minha senhora lá não quero ir/ aquela de dourados cabelos e claro
rosto/ pois não experimentaria alegria nem prazer/estando dela separado// Não digo isto com intenção/ de
com ela querer pecar/ e sim de admirar-lhe o porte// e o belo rosto e o doce olhar./ eu teria grande
consolação/ ver na glória a minha senhora.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
58
Neste soneto percebem-se motivos da tradição cortês, imersos em uma atmosfera entre
céu e terra, resultado do esforço de síntese da dimensão ultraterrena e humana.
Aparecem, entretanto, mais autênticos os reclames à realidade terrena, à materialidade
feminina da “senhora”, a “donna”, de cabelos dourados (louros), rosto claro, lívido e
olhar dolce. A preocupação do Eu lírico é de livrar suas intenções de provável suspeição
de que o desejo humano prevaleça sobre a devoção a Deus, aliás, tema do soneto. O
texto reflete o conflito entre cultura cortês e religiosa, que, de âmbito provençal,
marcará parte da poesia italiana do século XIII. O soneto encerra, de fato, o sentimento
religioso e o amoroso, delinendo-nos uma mulher que parece não tocar o chão. Jacopo
Lentini introduz uma representação do Paraíso como um lugar em que “divertimento,
brincadeira e riso”, com forte contradição entre amor físico e concepção cristã do reino
celeste. Assinalamos o estereótipo da poesia provençal a descrição da mulher,
caracterizada com pele clara e cabelos louros, ou dourados. Mas aqui temos, sem
dúvida, uma homenagem à figura feminina, mais interessante ainda, pela importância da
sorte da alma depois da morte no imaginário cultural da Idade Média.
De Guido Guinizzelli selecionamos, dentre outros apresentados para estudo, o soneto
“Io voglio del ver la mia donna laudare”, outra exaltação à “donna”, à senhora, à amada,
que remete ao amor cortês e, neste caso, ao stil novo, em que a figura feminina assume
um aspecto religioso. Sentimos uma espécie de amor absoluto, em relação à mulher
como um ser superior próximo da inteligência celeste, dos anjos , por isto ela é louvada,
laudada, como um imago dos anjos e das criaturas celestes.
O poeta insiste em laudar a mulher comparando-a às mais belas formas da natureza,
como as flores, as cores presentes na criação. De fato, o tema dominante no interior do
soneto é a “Lode”, de caráter laudatório, em louvor dos dotes, das virtudes da senhora,
cuja aparição provoca efeitos miraculosos, benéficos. Em especial, ela faz as pessoas
serem tomadas por um tipo de humildade resultante de sua “saudação”, aqui no sentido
de seu cumprimento, sua reverência ao passar.
E lembramos a ambigüidade provocada pelo termo saudação, tanto em italiano como
em português. Segundo o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, o termo é
derivado do latim eclesiástico salvatìo, ónis 'salvação', cujo sentido literal em nossa
língua é ação ou efeito de salvar(-se), de libertar(-se); ato ou efeito de saudar;
Série Estudos Medievais 2: Fontes
59
cumprimento, saudação. Mas o sentido literal da palavra dá-nos apenas uma leitura de
valor denotativo, do que vem explícito, do que está inteligível gramatical e
sintaticamente nos versos. Temos que nos voltar também e principalmente para o campo
semântico de ampla carga teológica e religiosa, pois, nas cantigas medievais de autores
italianos, salvação conota, sugere a redenção, a remissão, enfim, a felicidade eterna
obtida depois da morte. Por intermédio da Linguagem, os poetas expressavam
magnificamente um dos conteúdos marcantes de ordem religiosa e teológica do
imaginário cultural da Idade Média.
De tal forma, a cantiga de Guinizzelli trabalha a linguagem alçando-a da leitura literal e
enriquecendo-a com um sentido anagógico, aquele do êxtase místico, do que concede à
alma elevação, contemplação das coisas divinas. Com isto, a figura feminina, por meio
da palavra criadora, passa à categoria de ser superior, que concede a salvação do
homem. Apenas para citar, lembramos que tal tipo de leitura nos é sugerida na Divina
Comédia, de Dante Alighieri.
Assim, após nossa sucinta análise, apresentamos o poema de Guinizzelli seguido de
tradução literal e passaremos ao próximo item, encaminhando nosso estudo sobre o
problema das fontes primárias para a conclusão.
Io voglio del ver la mia donna laudare
ed assemblarli la rosa e lo giglio:
più che stella diana splende e pare,
e ciò ch' è lassù bello a lei somiglio.
Verde river' a lei rasembro e l'âre
tutti color di fior', giano e vermiglio,
oro ed azzurro e ricche gioi per dare:
medesmo Amor per lei rafina meglio.
Passa per via adorna, e sì gentile
ch' abassa orgoglio a cui dona salute,
e fa 'l de nostra fé se non la crede;
e no-lle pò apressare om che sia vile;
ancor ve dirò c'ha maggior virtute:
null'om pò mal pensar fin che la vede.12 (BRUNI; GIUDICE; 1983, p.191).
12
Quero louvar minha senhora como é de verdade/ compará-la à rosa e ao lírio:/ela parece mais luminosa
e resplandecente do que a estrela da manhã/ e às coisas mais belas lá do alto ela se assemelha// Comparoa ao prado verde, e à atmosfera/ e a todas as cores das flores amarelas e vermelhas/ ao dourado, ao azul e
a ricas jóias/ pelo Amor, que por causa ela é mais refinado//Por onde passa, tudo adorna com tanta
nobreza/ a quem saúda torna humilde/ converte quem não tem fé//o homem vil não pode dela se
aproximar/ sua maior virtude e de nenhum homem a olhar com maus pensamentos.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
60
4. Conclusão
Finalizamos nosso relato de projeto e de seu conteúdo, afirmando que, apesar do apoio
da FAPERJ e da UERJ, em nos conceder duas bolsas de Iniciação Científica, foi-nos
bastante difícil prosseguir até onde esperávamos, devido aos obstáculos encontrados no
acesso a textos primários em língua italiana, tanto dos séculos XII e XII como os de
mulheres, algumas cortesãs, do século XVI: Gaspara Stampa13, Isabella Morra14 e
Veronica Franco15. Tencionávamos, no segundo ano do projeto, estendermos nossas
buscas às obras das citadas poetisas, entretanto, sem sucesso.
Limitamo-nos a desenvolver com os bolsistas uma leitura de analogias e contrastes a
partir de material composto por poetas que, constatamos, criaram em língua italiana,
canções de amigo semelhantes às de trovadores galegos. Poucas foram as encontradas,
mas já nos serviram para uma próxima investida em momentos mais propícios, quando
já encontremos, certamente, publicações suficientes e capazes de dialogarem com as
críticas a que demos início, bem antes de concorrermos com o projeto “A lírica amorosa
medieval galega e italiana do século XII e XIII em perspectiva comparada”.
Bastou-nos o mérito de investigar algo praticamente sem correspondente até agora no
país.
Acrescentamos que as reflexões desenvolvidas ao longo deste trabalho
correspondem, com algumas poucas modificações, a anotações pessoais e a resenhas
que me foram entregues pelos bolsistas e cuja redação orientei, quando das reuniões.
13
Gaspara Stampa (1523-1554 Veneza, Itália). Cortesã, de formação intelectual, apaixonada pelo conde
Collatino di Collalto, que não lhe dedicava a devida atenção. A difícil, conturbada e insegura relação
levou-os à separação. Apesar de ser cortejada por outro nobre, matou-se em Veneza.
14
Isabella di Morra (1520-1546 Basilicata, Itália) Mantinha um sentimento platônico com Diego
Sandoval di Castro, enviando-lhe versos, por intermédio de seu professor. Quando seus irmãos souberam
destas ligações, mataram o professor e a irmã, com medo de que tal relacionamento resultasse em perda
das terras. Depois, mataram Diego Sandoval di Castro em uma emboscada.
15
Veronica Franco (1545-1591 Veneza, Itália) também uma cortesã de formação intelectual, que
desfrutava principalmente da atmosfera cultural da corte de Veneza. Além de Tintoretto pintar seu retrato,
ela privava com os principais intelectuais da época e se valeu de seus privilégios de beleza, para ter
acesso à instrução e às artes. Ficou famosa a sua relação com o rico senhor de Veneza Marco Vernier. O
belo filme do diretor Marshall Herskovitz, de 1998, cujo título é Beleza Perigosa, faz um esboço de sua
vida.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
61
Referências
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SURDICH, Luigi. Il Duecento e il Trecento. Bologna: Il Mulino, 2005.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
62
A notação musical como fonte
para o estudo do ritmo lingüístico
no período trovadoresco do português:
as cantigas de amor de D. Dinis
Gladis Massini-Cagliari
Universidade Estadual Paulista (UNESP)-Araraquara; CNPq
Resumo: Este trabalho objetiva discutir a contribuição dos documentos contendo notação
musical como fontes para o estudo do ritmo lingüístico de períodos ancestrais da língua, em
especial o medieval. A exemplificação é feita a partir das sete cantigas de amor de D. Dinis
presentes no manuscrito Sharrer.
Palavras-chave: Cantigas medievais galego-portuguesas; Ritmo lingüístico; Ritmo musical.
Abstract: This paper aims to discuss the contribution of documents which contain musical
notation as sources to the study of linguistic rhythm in ancient periods of the language, with
special reference to the medieval period. Examples come from medieval Galician-Portuguese
poetry (XIII-XIV centuries), particularly from seven cantigas de amor (love songs) composed
by D. Dinis, which survived in Sharrer manuscript.
Keywords: Galician-Portuguese medieval cantigas; Linguistic rhythm; Musical rhythm.
1. Introdução
Este trabalho objetiva discutir a contribuição dos documentos contendo notação musical
como fontes para o estudo do ritmo lingüístico de períodos ancestrais da língua, em
especial o medieval. A exemplificação é feita a partir das sete cantigas de amor de D.
Dinis que sobreviveram, acompanhadas de pauta musical, no manuscrito conhecido
como Sharrer, em homenagem a seu descobridor. Pretende-se, aqui, mostrar que a
observação do mapeamento dos “acertos” e “desacertos” entre as proeminências
musicais e poéticas pode fornecer importantes pistas para a análise da língua sobre a
qual se estruturam os versos dos trovadores, em diversos aspectos, sobretudo
prosódicos. Com relação a esses aspectos, a análise da relação entre a música e o texto é
de suma importância, na medida em que o sistema de escrita vigente na época não
costumava reservar anotações especiais para fenômenos rítmicos como ocorrência de
acento primário e secundário e de silabação. Desta forma, a análise da estrutura poética
Série Estudos Medievais 2: Fontes
63
dos versos, aliada à combinação que esta faz com a música, pode contribuir de forma
decisiva para a elucidação de elementos da fonologia da língua da época, trazendo pistas
de como possivelmente “soariam” os versos que sobreviveram apenas em seu aspecto
gráfico.
Propõe-se aqui uma nova metodologia, baseada em uma interface com a Música, que se
baseia na extração de elementos da notação musical que possam se constituir em
argumentos para a realização fonética das cantigas quanto à sua estrutura silábica e ao
seu ritmo lingüístico. O fundamento básico da metodologia proposta é a idéia de que as
proeminências musicais devem se combinar preferencialmente com proeminências nos
níveis poético e lingüístico (FERREIRA, 1986, p. 33). Neste sentido, a divisão da
música das cantigas em suas unidades (frases melódicas e rítmicas) pode auxiliar, por
exemplo, na determinação de proeminência principal de palavras que não tenham
ocorrido em posição de rima no corpus (a sílaba que ocorre em posição de proeminência
musical tem muito mais chance de ser tônica do que a que não ocorre); ou na
determinação do status prosódico (átono ou tônico) de clíticos (que geralmente não
ocorrem em posição tônica final de verso).
2. O Pergaminho Sharrer no contexto do patrimônio poético-musical galegoportuguês
Apesar de o patrimônio poético-musical galego-português da época medieval ser vasto,
pouquíssimos exemplares sobreviveram registrados nas duas dimensões, poética e
musical.
De todos os documentos remanescentes que registram cantigas medievais profanas,
apenas os Pergaminhos Vindel – fólio que contém sete cantigas de amigo de Martim
Codax (musicadas), atualmente na Pierpont Morgan Library de Nova Iorque – e Sharrer
– fólio que contém fragmentos de sete cantigas de amor de D. Dinis (acompanhadas de
notação musical), atualmente nos Arquivos Nacionais Torre do Tombo (ANTT), Lisboa
– contêm notações musicais.
Oliveira (1994, p. 21) calcula que o conjunto da lírica profana galego-portuguesa soma
cerca de 1700 composições, entre cantigas de amor, de amigo e de escárnio e maldizer,
Série Estudos Medievais 2: Fontes
64
produzidas no espaço temporal compreendido entre o final do século XII até meados do
século XIV. Toda a produção lírica profana sobreviveu até os dias de hoje em um
número muito reduzido de cancioneiros – apenas três, Cancioneiro da Ajuda,
Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa e Cancioneiro da Vaticana – ou folhas
avulsas contendo uma ou mais composições. Portanto, de toda a produção profana
medieval em galego-português, conhecemos (e imperfeitamente, devido ao estado de
conservação dos manuscritos) apenas 14 melodias, 6 de amigo (uma das cantigas do
Pergaminho Vindel sobreviveu apenas em texto) e 7 de amor.
Já a vertente religiosa da produção poética galego-portuguesa teve mais sorte:
sobreviveram, com partitura, quase todas as 420 Cantigas de Santa Maria, uma coleção
de cantigas em louvor da Virgem Maria, mandadas compilar pelo Rei Sábio de Castela
na segunda metade do século XIII, que sobreviveram em quatro códices: o de Toledo
(To), o menor e o mais antigo; o códice rico de El Escorial (T), o mais rico em conteúdo
artístico, que forma um conjunto (os chamados códices das histórias) com o manuscrito
de Florença (F); e o mais completo, o códice dos músicos – El Escorial (E).
O Pergaminho Sharrer é um fólio mutilado e muito danificado da última década do
século XIII ou, talvez, dos primeiros anos do séc. XIV, que contém fragmentos de sete
cantigas de amor de D. Dinis, que se apresentam na mesma ordem em que aparecem nos
Cancioneiros da Biblioteca Nacional de Lisboa e da Vaticana (e em uma versão muito
próxima à desses cancioneiros), acompanhadas da música. Foi descoberto por Harvey
Sharrer, um professor universitário americano, em 02 de julho de 1990, nos Arquivos
Nacionais da Torre do Tombo (ANTT), quando procurava informações bibliográficas
sobre os manuscritos descobertos pelo Pe. Avelino de Jesus da Costa na década de 40.
Assim como o Pergaminho Vindel, o Sharrer também servia de capa a outro livro, um
registro de documentos notariais de Lisboa. Atualmente, continua na Torre do Tombo,
guardado na Caixa Forte, onde recebeu a cota Capa do Cartório Notarial de Lisboa, no
7-A, caixa 1, maço 1, livro 3. É conhecido pela abreviatura D.
É o único manuscrito de data medieval da obra de D. Dinis, e também o único a
conservar (mesmo que parcialmente, devido ao estado de deterioração do manuscrito) a
Série Estudos Medievais 2: Fontes
65
música de cantigas de amor.1 Se considerarmos, por outro lado, a origem galega de
Martim Codax (cujas cantigas de amigo estão preservadas, em texto e música, no
Pergaminho Vindel), o fólio descoberto por Sharrer é também o único a conservar
melodias de cantigas portuguesas (FERREIRA, 1991, p. 35).
Figura 1. Slide do Pergaminho Sharrer, contendo 7 cantigas de amor de D. Dinis, com respectiva
notação musical (recto). Arquivos Nacionais Torre do Tombo, Lisboa, 1996.
Segundo Sharrer (1993, p. 534), trata-se de uma folha extraviada de um livro mais
avantajado, produzido talvez no scriptorium régio de D. Dinis. No estado atual, como
folha avulsa, mede 455 X 271 mm e traz os textos poéticos e a música anotados em três
colunas (fato raro na época, segundo Sharrer).
1
Para um estudo da notação musical presente no Pergaminho Sharrer, remetemos o leitor aos trabalhos
de Ferreira (1991, 2005).
Série Estudos Medievais 2: Fontes
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Aparecem vários estilos caligráficos no manuscrito, mas todas góticas (SHARRER,
1993, p. 535). A primeira letra é gótica francesa minúscula, própria dos séculos XIII e
XIV; o segundo estilo adota uma gótica minúscula, comum nos últimos anos do século
XIII. Há também anotações feitas por outra mão, posterior, do século XIV e anotações
bem posteriores (de quando o pergaminho já se tornara capa do livro notarial), do século
XVI (GUERRA, 1991, p. 33). As letras iniciais e capitais são alternadas em azul e
vermelho e uma filigrana modesta ornamenta as capitais das primeiras estrofes
(SHARRER, 1991, p. 16).
Figura 2. Slide do Pergaminho Sharrer, contendo 7 cantigas de amor de D. Dinis, com respectiva
notação musical (verso). Arquivos Nacionais Torre do Tombo, Lisboa, 1996.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
67
3. As cantigas de amor de D. Dinis registradas no Pergaminho Sharrer: letra e
música
Manuel Pedro Ferreira pode ser considerado, atualmente, o maior especialista na música
das cantigas medievais compostas em galego-português, profanas e religiosas. Por este
motivo, optou-se por basear as análises desenvolvidas por esta pesquisa no seu trabalho
mais definitivo sobre a música do manuscrito Sharrer: Ferreira (2005).
A interpretação musical das cantigas do Pergaminho Sharrer feita pelo autor no seu
trabalho de 2005 (Cantus Coronatus – 7 Cantigas d’El Rei Dom Dinis) adota a mesma
definição de acentuação musical cunhada por ele em 1986, quando editou a música e o
texto das cantigas de amigo de Martim Codax, presentes no Pergaminho Vindel.
Ferreira (1986, p.133) não considera que a música da época fosse organizada em
unidades rítmicas do tipo “compassos”, mas a partir de um ritmo que ele classifica
como “rapsódico”, baseado na “alternância irregular de valores breves e longos, [n]o
uso de fórmulas e [n]o emprego de padrões rematados por longa” (FERREIRA, 1986, p.
47).
Dentro desta concepção de modelo “rimnésico” de Ferreira (1986, p. 39), a “acentuação
musical”, nas cantigas de amigo de Martim Codax, realizava-se da seguinte forma:
A maior duração, a maior acuidade ou a maior densidade não bastam,
separadamente, para que se conclua da existência de uma acentuação; se
queremos que a análise seja concludente, teremos que ver sobre que sílabas
estes indicadores aparecem total ou parcialmente conjugados. Propomos
neste trabalho que se considere condição necessária e suficiente para a
identificação de um apoio acústico a conjugação de dois desses indicadores,
desde que o terceiro factor de acentuação não dê uma indicação negativa.
Assim, será considerado apoio acústico o lugar em que um elemento
melódico apresente, relativamente ao anterior, a) maior duração, maior
acuidade, e densidade superior ou equivalente; ou b) maior acuidade, maior
densidade, e duração superior ou equivalente; ou c) maior densidade, maior
duração, e acuidade superior ou equivalente. (FERREIRA, 1986, p. 33)
Ferreira (2005, p. 56) considera o ritmo anotado no Pergaminho Sharrer como “semimensural”; para ele, a notação presente no manuscrito tem “características mensurais”:
“inclui não apenas informação sobre a linha melódica, mas igualmente [...] indicações
sobre a duração relativa das notas” (FERREIRA, 2005, p. 52). Para o autor, o estilo
rítmico predominante nas cantigas sobreviventes de D. Dinis pode ser descrito como
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68
“um isossilabismo florido”, que corresponderia a “uma tendência para equalizar a
duração das sílabas, dando a estas um valor suficientemente prolongado para admitir
floreados melódicos invulgarmente ricos” (FERREIRA, 2005, p. 98).
Segundo Ferreira (2005, p. 15), as proeminências musicais, no caso das cantigas de D.
Dinis no Pergaminho Sharrer, tendem a ser reforçadas pela “presença de melismas
invulgarmente numerosos”.
A análise partiu da transposição que faz Ferreira (2005, p. 129-141) da notação
medieval das cantigas de amor de D. Dinis para um padrão atual de notação. Abaixo, a
título de exemplificação, transcreve-se a terceira cantiga do manuscrito, O que vos
nunca cuidei a dizer, na interpretação de Ferreira (2005, p. 132-133).
Série Estudos Medievais 2: Fontes
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Figura 3. Interpretação de Ferreira (2005, p. 132-133) para a cantiga
O que vos nunca cuidei a dizer, de D. Dinis, a partir de Sharrer 3.
A partir da determinação da posição exata das proeminências musicais feita por Ferreira
(2005, p. 72-82) para as sete cantigas do Pergaminho Sharrer, foi feito um
levantamento da pauta prosódica das sílabas que coincidiam com essas posições de
proeminência musical – apresentada na tabela 1.
Ferreira (2005, p. 57) esclarece que adotou os seguintes princípios na edição musical
que realizou da música das cantigas de D. Dinis: os restauros editoriais (necessários,
dado o estágio de deterioração do manuscrito) foram marcados em parênteses angulados
(< >); os restauros baseados em música contemporânea ao Pergaminho Sharrer, mas
Série Estudos Medievais 2: Fontes
70
externa a ele, aparecem entre parênteses redondos – ( ); já os restauros baseados em
material extraído de outras canções de D. Dinis, extraído do próprio manuscrito, foram
marcados em colchetes ou parênteses quadrados ([ ]). A quantificação apresentada
neste trabalho considera apenas estes últimos.
Tabela 1. Pauta prosódica das sílabas em posição de proeminência musical – manuscrito Sharrer
(geral).
Pauta prosódica da sílaba em posição de
proeminência musical
tônica de polissílabos e monossílabos tônicos
monossílabo possivelmente átono (clítico)
pretônica
átona final de palavra
TOTAL
quantidade de unidades de
proeminência (percentual)
270 (74.8%)
29 (8.1%)
46 (12.7%)
16 (4.4%)
361 (100%)
A tabela acima mostra que existe uma forte tendência em direção às proeminências
musicais se combinarem com proeminências textuais, uma vez que, em 270 das 361
proeminências musicais consideradas por Ferreira (2005) (feitos os descontos
estabelecidos acima, obviamente) para as 7 cantigas de D. Dinis presentes no
manuscrito (em 74.8% dos casos, portanto), ocorre uma sílaba acentuada de polissílabos
ou um monossílabo tônico.2 Na minoria dos casos ocorrem na posição de proeminência
musical monossílabos átonos ou sílabas átonas finais de polissílabos (respectivamente:
29 ocorrências de clíticos – 8.1%; 16 ocorrências de sílabas átonas finais de palavras –
equivalendo a apenas 4.4%).
Em 12.7% dos casos (46 em 361), a sílaba que coincide com a proeminência musical é
uma pretônica.
Em alguns casos específicos, o posicionamento da proeminência musical sobre uma
sílaba pretônica pode indicar a realização de um acento secundário, principalmente
quando esta ocorre em posições nas quais, nos demais versos da cantiga, ocorrem
sílabas tônicas. É o que ocorre na terceira sílaba do verso 16 (figura 4), em que ocorre a
2
Entre os monossílabos tônicos, estão sendo considerados e, ca e que, considerados por Cunha (1961)
como tônicos, com base no comportamento dos processos de sândi nas cantigas de Paio Gomes Charinho
e João Zorro, além de mi, so, u, etc. considerados igualmente tônicos por Massini-Cagliari (2005), que
retoma e amplia a análise original de Cunha, também a partir da consideração de processos de sândi
vocálico externo.
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71
sílaba inicial da palavra paroxítona maravilha; à posição ocupada por esta sílaba
correspondem, nos versos 4 e 10, os monossílabos tônicos por e gran.
Figura 4. Versos 4, 10 e 16 da cantiga Que mui gran prazer que eu ei, de D. Dinis, no Pergaminho
Sharrer 4, na interpretação de Ferreira (2005, p. 135) – linha musical 4.
O mesmo fenômeno pode ser observado no verso 14 da sexta cantiga do manuscrito
(figura 5), em que a primeira sílaba da palavra oxítona descomunal co-ocorre, no
mesmo ponto da cadeia musical, com as sílabas tônicas das palavras ollos e fremosa.
Figura 5. Versos 2, 8 e 14 da cantiga Non sei como me salv’a mha senhor, de D. Dinis, no
Pergaminho Sharrer 6, na interpretação de Ferreira (2005, p. 138) – linha musical 2.
Há, no entanto, outras explicações para a ocorrência de pretônicas em posição de
proeminência musical. Uma dessas ocorrências (a proeminência musical sobre a nona
sílaba poética dos versos 1, 8 e 15 da terceira cantiga do manuscrito, figura 6) é
justificada por Ferreira (2005, p. 77) como resultado da importância atribuída à
antepenúltima sílaba do verso no fazer poético trovadoresco:
[...] este tratamento contradiz a acentuação da palavra em rima, mas sublinha
a sua importância na construção poética; na tradição trovadoresca, o peso
musical da palavra em rima concentrava-se, por convenção, na penúltima
sílaba. O ímpeto descendente e o suspiro final da penúltima sílaba são
expressivos da renúncia anunciada (“nunca cuidei a dizer”) e mostram-se
Série Estudos Medievais 2: Fontes
72
especialmente adequados no terceiro verso, ao veicularem a palavra
“morrer”.
Figura 6. Versos 1, 8 e 15 da cantiga O que vos nunca cuidei a dizer, de D. Dinis, no Pergaminho
Sharrer 3, na interpretação de Ferreira (2005, p. 132) – linhas musicais 1 e 2.
Apesar da grande predominância de coincidências entre proeminências musicais e
lingüísticas, é possível observar que, além dos 12.7% de casos em que há coincidência
com sílabas que podem receber uma proeminência pelo menos relativa (pretônicas), em
12.5% dos casos, a proeminência musical coincide com um monossílabo átono (29
ocorrências - 8.1%) ou com uma sílaba átona final de palavra (16 ocorrências - 4.4%).
Na quinta linha musical da quinta cantiga do manuscrito, há um exemplo de
coincidência de uma sílaba átona final de palavra (venho, figura 7) em um ponto da
melodia ao qual correspondem, nas demais estrofes cantadas com a mesma melodia, o
monossílabo tônico que e a pretônica inicial de coraçon. Embora sejam necessários
mais estudos para se poder fazer afirmações mais seguras acerca da pauta acentual dessa
sílaba em questão, é possível que a possibilidade de co-ocorrência de sílabas com pautas
tão diferentes em um mesmo ambiente musical e prosódico indique uma realização não
tão reduzida das sílabas átonas finais de palavras, se comparada com as possibilidades
de realização atuais nas vertentes européia e brasileira do português.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
73
Figura 7. Cantiga Senhor fremosa, non poss’eu osmar, de D. Dinis, no Pergaminho Sharrer 5,
na interpretação de Ferreira (2005, p. 136) – linha musical 3.
No exemplo abaixo (terceira linha musical da cantiga 5, figura 8), o monossílabo átono
e (conjunção) (verso 10) ocorre em um contexto em que, nas demais estrofes, aparecem
os monossílabos tônicos tan e mui (versos 3 e 17, respectivamente); logo em seguida, o
monossílabo de (verso 17) co-ocorre, na posição de proeminência musical, com a sílaba
tônica da palavra muito (verso 3) e com a pretônica de assi (verso 10).
Figura 8. Cantiga Senhor fremosa, non poss’eu osmar, de D. Dinis, no Pergaminho Sharrer 5,
na interpretação de Ferreira (2005, p. 136) – linha musical 3.
O mesmo fenômeno acontece nos versos 2, 8 e 14 da cantiga Sharrer 6 (figura 9), em
que o monossílabo tônico que convive em um mesmo ambiente musical com os clíticos
me e lhi.
Figura 9. Versos 2, 8 e 14 da cantiga Non sei como me salv’a mha senhor, de D. Dinis, no
Pergaminho Sharrer 6, na interpretação de Ferreira (2005, p. 138) – linha musical 2.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
74
Embora a tendência, mesmo em um “canto coroado”3 como o de D. Dinis, seja a
combinação entre proeminências nas dimensões musical e lingüística, como foi
mostrado na tabela 1, há a possibilidade de esses dois tipos de proeminência não
coincidirem. Mesmo nesses casos, há que se considerar a possibilidade apontada por
estudos anteriores (MASSINI-CAGLIARI, 1995, 1999, 2005) de monossílabos átonos
receberem tonicidade no nível da palavra, adjungindo-se a outros vocábulos apenas em
níveis prosódicos superiores. Neste caso, para a totalidade das cantigas do manuscrito, a
coincidência entre proeminências musicais e possíveis proeminências lingüísticas
subiria para 82.9%.
No entanto, há momentos em que, segundo Ferreira (2005, p. 77), apenas aparentemente
não há coincidência entre proeminências musicais e lingüísticas (figura 10). É o que
explica o musicólogo a respeito da terceira sílaba da segunda frase musical, sobre a
qual, apesar de não haver um “floreado melódico invulgarmente rico” (FERREIRA,
2005, p. 98), como o esperado, é possível considerar a existência de uma proeminência
musical:
A terceira sílaba, verbalmente acentuada nos versos segundo e quarto
(tendência que se manterá na segunda e terceira estrofes) parece ter recebido
um tratamento musical contrário à sua importância, já que tem metade das
notas encontradas sobre as posições silábicas anterior e posterior; no entanto,
o dó grave que precede o ataque desta sílaba e o facto de ela finalizar o
movimento melódico iniciado na primeira dão ao ré inicial um peso cadencial
que compensa a menor densidade mélica (apesar da pausa de finalização ser
evitada).
Por outro lado, há momentos em que, na opinião de Ferreira (2005, p. 76), embora haja
aparentemente uma proeminência musical (figura 11), ela não deve ser considerada. É o
que ocorre no refrão da segunda cantiga do manuscrito, no qual “as palavras-chave são,
na primeira secção, “vir” (realçada por acuidade, densidade e duração relativamente às
3
Cantus cononatus (= canto coroado) é a expressão que Ferreira (2005, p. 12) foi buscar em Johannes de
Grocheio, teórico francês contemporâneo de D. Dinis, para caracterizar sua música. Designa uma “canção
em língua vulgar, de alto nível artístico, composta e apreciada pela melhor aristocracia, e caracterizada
por uma pulsação rítmica pausada e regular. A coroação significa a atribuição de uma dignidade
hierárquica superior, comparável à de um monarca”. O canto coroado se distingue, também, “pelo tipo de
melodia, pela lentidão da execução e pela tendencial uniformidade de sua articulação rítmica, de divisão
idealmente ternária” (FERREIRA, 2005, p. 15). “O conteúdo densamente melismático poderá também
estar implicado no conceito de cantus coronatus, embora possa igualmente ser um traço mais
característico da cantiga de amor dionisina ou galego-portuguesa do que dos seus modelos de alémPinineus.” (FERREIRA, 2005, p. 98)
Série Estudos Medievais 2: Fontes
75
sílabas prévias) e na segunda, “vi”(cadencial), já que o prolongamento sobre “por”
parece ter apenas um valor de preparação e intensificação musicais”.
Figura 10. Versos 2, 9 e 16 da cantiga O que vos nunca cuidei a dizer, de D. Dinis, no Pergaminho
Sharrer 3, na interpretação de Ferreira (2005, p. 132) – linha musical 2.
Figura 11. Refrão da cantiga A tal estado m’adusse, senhor, de D. Dinis, no Pergaminho Sharrer 2,
na interpretação de Ferreira (2005, p. 131) – linha musical 5.
A importância da observação do posicionamento das proeminências textuais com
relação à música pode apontar também fatos interessantes à elucidação da prosódia da
época, mesmo em se considerando apenas as posições tônicas. Por exemplo, uma
sucessão de sílabas tônicas coincidentes com proeminências musicais, como acontece
no início dos versos 4, 10 e 16 da cantiga Que mui gran prazer que eu ei (figura 12),
quarta a aparecer no manuscrito, pode indicar que choques acentuais não eram sentidos
na época como problemáticos, na entoação musical e/ou na declamação poética.
Figura 12. Versos 4, 10 e 16 da cantiga Que mui gran prazer que eu ei, de D. Dinis, no Pergaminho
Sharrer 4, na interpretação de Ferreira (2005, p. 135) – linha musical 4.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
76
A observação da notação musical pode se constituir, também, em uma aliada no
esclarecimento de questões de silabação, especialmente as concernentes à realização dos
encontros vocálicos como hiatos ou ditongos, na medida em que a estrutura melódica
pode confirmar ou infirmar hipóteses de silabação construídas com base na contagem de
sílabas poéticas do verso. No exemplo abaixo (figura 13), os ditongos intravocabulares
foram marcados com retângulos, ao passo que o único hiato intravocabular que ocorre
neste trecho específico, com formas arredondadas.
Figura 13. Versos 2, 7 e 12 da cantiga Pois que vos Deus, amigo, quer guisar, de D. Dinis, no
Pergaminho Sharrer 4, na interpretação de Ferreira (2005, p. 129) – linha musical 2.
Por fim, há que se observar que a notação musical contribui para reforçar observações
anteriormente já realizadas, com base na estrutura métrica dos poemas trovadorescos,
reforçando a idéia de estreita comunhão entre os domínios métrico e musical, naquela
época. Ferreira (2005, p. 75) mostra que “a palavra em rima, que consiste numa
inovação retórica, é associada a uma mudança de registro e à culminação do movimento
melódico, e a sílaba final recebe um tratamento especialmente importante, em todos os
níveis: maior acuidade, maior densidade, maior duração”.
4. Considerações finais
Com relação à coincidência entre proeminências musicais e textuais, Ferreira (2005, p.
72) registra algumas distinções entre as cantigas de amor e de amigo:
No que respeita as modalidades de interacção entre texto e música, é
imprescindível chamar a atenção para uma importante diferença entre a
cantiga d’amigo e a cantiga d’amor. Na cantiga d’amigo, mais próxima da
versificação tradicional, os cumes acentuais da música das estrofes estão em
relação directa com os nós acentuais do poema. Na cantiga d’amor,
idealmente regida pela versificação isossilábica de matriz provençal, a
Série Estudos Medievais 2: Fontes
77
regularidade acentual nas estrofes é pouco comum e não parece desempenhar
um papel construtivo, pelo que as frases musicais, necessariamente repetidas,
deveriam ser acentualmente neutras ou então frequentemente contrárias à
acentuação verbal do verso.
No entanto, para as cantigas específicas registradas no manuscrito Sharrer, analisadas a
partir da própria marcação das tonicidades musicais feitas por Ferreira (2005), “há a
registrar [...] a coincidência entre acentuação musical e o acento fraseológico”
(FERREIRA, 2005, p. 83), na grande maioria dos casos.
Portanto, conclui-se que, apesar de a possibilidade da não-coincidência entre
proeminências existir e ser explorada por D. Dinis em suas composições,4 há que se
considerar que, em termos quantitativos (cf. tabela 1), a freqüência de ocorrência desse
fenômeno é bem menor do que a tendência geral de fazer coincidir os acentos nesses
dois níveis. É justamente este fato que amplia as possibilidades de estudo lingüístico da
prosódia da época, trazendo novas interpretações possíveis, partindo da consideração de
que a posição de proeminência musical carrega preferencialmente uma sílaba tônica ou
que pode receber algum tipo de proeminência (secundária ou eurrítmica), no nível
lingüístico.
Referências
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Janeiro: MEC/Instituto Nacional do Livro, 1961.
versificação e ecdótica. Rio de
FERREIRA, M. P. Relatório Preliminar sobre o conteúdo musical do Fragmento
Sharrer. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO HISPÂNICA DE LITERATURA
MEDIEVAL, 4., 1991, Lisboa, Actas... Lisboa: Edições Cosmos, 1991. v. I. Sessões
Plenárias. p. 35-42.
_____. O som de Martin Codax: sobre a dimensão musical da lírica galego-portuguesa
(séculos XII-XIV). Lisboa: UNYSIS, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1986.
_____. Cantus coronatus. 7 Cantigas d’El-Rei Dom Dinis by King Dinis of Portugal.
Kassel: Reichenberger, 2005.
4
“A falta de solidariedade entre o texto trovadoresco e sua melodia parece ser confirmada pela reutilização da mesma música em estrofes de conteúdo variado, pelo recurso frequente a uma tipologia
musical convencional, pela falta de fixidez dos detalhes melódicos e pela práctica corrente de se retomar
uma melodia conhecida para se musicar outro poema (contrafactio) [...]. [...] devemos, porém, ter a
preocupação de evitar uma abordagem anacrónica da questão, já que os compositores poderiam ter outras
formas de reflectir a sensibilidade ao texto.” (FERREIRA, 2005, p. 65)
Série Estudos Medievais 2: Fontes
78
GUERRA, A. J. R. Contributos para a análise material e paleográfica do Fragmento
Sharrer. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO HISPÂNICA DE LITERATURA
MEDIEVAL, 4., 1991, Lisboa, Actas... Lisboa: Edições Cosmos, 1991. v. I. Sessões
Plenárias. p. 31-33.
MASSINI-CAGLIARI, G. Cantigas de amigo: do ritmo poético ao lingüístico. Um
estudo do percurso histórico da acentuação em Português. 1995. Tese (Doutorado em
Lingüística)-IEL/UNICAMP, Campinas, 1995.
_____. Do poético ao lingüístico no ritmo dos trovadores: três momentos da história do
acento. Araraquara: FCL, Laboratório Editorial, UNESP; São Paulo: Cultura
Acadêmica, 1999.
_____. A música da fala dos trovadores: Estudos de prosódia do Português Arcaico, a
partir das cantigas profanas e religiosas. Araraquara: Faculdade de Ciências e Letras,
2005. Tese de Livre-Docência.
OLIVEIRA, A. R. Depois do espetáculo trovadoresco: a estrutura dos cancioneiros
peninsulares e as recolhas dos séculos XIII e XIV. Lisboa: Colibri, 1994.
SHARRER, H. L. Fragmentos de sete cantigas d’amor de D. Dinis, musicadas - uma
descoberta. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO HISPÂNICA DE LITERATURA
MEDIEVAL, IV., 1991, Lisboa, Actas... Lisboa: Edições Cosmos, 1991. v. I. Sessões
Plenárias. p. 13-29.
_____. Pergaminho Sharrer. In: LANCIANI, G.; TAVANI, G. (Org.). Dicionário da
literatura medieval galega e portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993. p. 534-536.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
79
As fontes da
lírica profana galego-portuguesa
Lênia Márcia Mongelli
Universidade de São Paulo (USP)
Resumo: O que parece distanciar o leitor moderno da poesia lírica trovadoresca é o fato de ela
se prender a normas rígidas de composição, das quais resultaria uma fixidez incompatível com a
subjetividade que o lirismo costuma explorar à exaustão. Para rever os desacertos e as
incorreções desse juízo, em se tratando da produção poética galego-portuguesa, é necessário
buscar compreender as relações entre as fontes manuscritas dela e todo um arsenal teórico que
remonta à Antiguidade greco-romana e que a sustenta. Em linhas gerais, a estas relações visa
este artigo.
Palavras-chave: Poesia
Interdisciplinaridade.
medieval;
Lirismo;
Teoria
da
literatura;
Crítica
literária;
Abstract: What seems to put the modern reader apart from the troubadour's lyrical poetry is the
fact that it is tied to rigid norms of composition, from which results a very fixed state,
incompatible with the subjectivity that lyricism is used to explore to exhaustion. To review the
mismatches and incorrectness present in this judgment, concerning the Galician-Portuguese
poetic production, it is necessary to search for the relations between its manuscript sources and a
great amount of a theoretical arsenal, which goes back until the Geek-Roman Antiquity, and
which sustains it. This article is dedicated to present these relations.
Keywords: Medieval poetry; Lyricism; Literature theory; Literary criticism; Interdisciplinarity.
1. As perguntas
Da Antigüidade à Era Contemporânea, passando por todas a mudanças que as
circunstâncias históricas imprimiram à natureza e às manifestações do gosto1, o conceito
de poesia permanece substancialmente o mesmo2: Benedetto Croce (1967, p. 6-17)
remonta aos antigos gregos e à sua compreensão da poiesis como “sopro sagrado”,
“furor”, “divina mania” para justificar os privilégios de que a Modernidade continua
cercando os poetas, a quem foi dado o dom da “inspiração” e a “genialidade” para
1
Para a flutuação no conceito estético de “gosto”, cf. W. K. Wimsatt e C. Brooks (1971).
“There remains the problem of determining the degree of originality in medieval esthetic thought. It is
our impression – in fact, we are certain – that the same ideas, if we consider them in their purely formal
meaning, are constantly repeated in almost unvarying form throughout the three great Western
civilizations – Antiquity, the Middle Ages and the Renaissance” (BRUYNE, 1969, p. 45).
2
Série Estudos Medievais 2: Fontes
80
superiormente cumpri-la.3 Se Platão considerava os poetas, a exemplo de Homero e
Hesíodo, perigosos “forjadores de mitos”, porque falseavam com “mentiras” a imagem
dos deuses e dos homens, ameaçando corromper a integridade moral dos jovens
atenienses (PLATÃO, [s. d.], v. III, p. 80 e ss.), Mikel Dufrenne (1969, p. 102-103)
afirma que uma das funções da poesia é criar no outro, no interlocutor, “um estado
poético”, capaz de exercer efeitos quase físicos, “como uma droga, uma música
frenética ou um espetáculo fascinante. Falar-se-ia de bom grado em magia...”. Daí é que
nasce, segundo T. S. Eliot (1972, p. 35), “a diferença entre o escritor meramente
excêntrico ou louco e o poeta genuíno. O primeiro pode ter sensações únicas mas não
partilháveis, e, portanto, inúteis; o segundo descobre variações de sensibilidade que
podem ser utilizadas por outros”. Aqueles “loucos excêntricos” talvez se entronquem
numa das acepções de “poesia” (carmen) recolhidas por Isidoro de Sevilha (1993, v. I,
p. 351): acreditava-se que o nome se devia ao fato de estarem loucos (carere mentem)
os que cantavam poemas. Quando Aristóteles (1964, p. 278) estabeleceu a célebre
diferença entre o historiador – o que narra o acontecido –, e o poeta – o que narra o que
poderia acontecer –, portanto, entre “o verdadeiro” (perspectiva objetiva) e “o
verossímil” (perspectiva subjetiva), abriu caminho para que, no futuro, a
sentimentalidade romântica, o abstracionismo simbolista e até o nonsense futurista ou o
desconstrutivismo verbal concretista fossem apenas facetas daquele “eu-profundo”
entendido por Massaud Moisés (1984, p. 86-87) como o magma da poesia, cuja
“expressão em estado puro” constituiria a luta cotidiana do poeta, cônscio da
deformação das vivências ao assomar à superfície e de permanecer “puro” apenas o que,
paradoxalmente, não pudesse ser dito. Em suma, de ontem a hoje, a poesia, no plano da
“mentalidade”4, é uma espécie de mistério por desvelar. Tanto que já se disse ser ela o
elemento identificador do Ser de qualquer processo artístico que aspirasse a atingir o
universal, mesmo correndo o risco de perder sua especificidade enquanto criação
individual (MOISÉS, 1984, p. 86-87).
3
No caso da Literatura Portuguesa, o poeta Fernando Pessoa (1888-1935) fez do tema o núcleo mais
característico de sua mundividência: “Emissário de um rei desconhecido, / Eu cumpro informes
instruções do além, / E as bruscas frases que aos meus lábios vêm / Soam-me a um outro e anômalo
sentido...” (PESSOA, 1960, p. 56).
4
Conforme redefiniu o termo H. Franco Júnior (2003b, p. 95): “Se mentalidade é o complexo de emoções
e pensamento analógico (estruturas arcaicas sempre presentes no cérebro), imaginário é a decodificação e
representação cultural (portanto historicamente variável) daquele complexo.”
Série Estudos Medievais 2: Fontes
81
Ao contrário do que poderia parecer a um olhar mais ligeiro, os trovadores medievais,
que compuseram dentro de normas rígidas de fabulação – sintáticas, semânticas,
fonológicas, versificatórias, métricas, rítmicas e musicais – formuladas a partir das
diretrizes da Retórica para os atos da inventio, da dispositio e da elocutio5, viveram em
um ambiente teórico – o das Poéticas – que não perdeu de vista esse ângulo do
imprevisível e do inapreensível da poesia. Mesmo levando em conta a indiscutível
necessidade de matizar as distâncias entre aqueles receituários e a prática do poetar no
medievo, tantas foram as vezes em que os trovadores deles se desviaram6; mesmo
considerando-se os de certo modo limitadores compromissos da obra com a ars de um
lado, mas também com o artifex de outro, para atender às prédicas horacianas do
prodesse e do delectare (ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO, 1990, p. 53-68)
consentâneas ao ideal de cortesia da vida palaciana; mesmo sabendo que esse modo de
poetar, regulador inclusive de escolhas temáticas, não passa de um jogo metafórico que
camufla ideologias conflitantes (FRAPPIER, 1959; DUBY, 1989) – mesmo atentos a
esse perfil específico e histórico-cultural de uma poesia “datada”, não podemos deixar
de reconhecer que os preceptistas do medievo assinalaram, subjacente às normas, aquele
resíduo enigmático da arte em geral e, nela, da poesia. Afinal, embora traduzida para o
Ocidente apenas à roda de 1270 (LLORCA, 1998), a Poética de Aristóteles já havia
deitado raízes e colocado o dedo na ferida, ao dizer que “o historiador e o poeta não se
distinguem um do outro pelo fato de o primeiro escrever em prosa e o segundo em
verso” (ARISTÓTELES, 1964, p. 278).7 Não é só a “forma” – prevista pelas Poéticas
nos mínimos pormenores – que faz a poesia.
No período de mais ou menos 400 anos em que o lirismo trovadoresco esteve em
moda8, em que por toda a Europa se adotou um modelo de poetar de extração
5
Ver, a propósito, a obra clássica de J. Murphy (1974). De mesma perspectiva panorâmica, M. Menéndez
y Pelayo (1974). Tratei do assunto em A estética medieval (MONGELLI; VIEIRA, 2003).
6
Lembrar que muitos desses tratados são posteriores ao apogeu do Trovadorismo, conforme examina C.
M. Llorca (1995).
7
Por “poema”, entendia-se qualquer composição literária desviada do discurso comum pelo emprego de
figuras, de tropos ou de outros instrumentos lingüísticos geradores de duplicidades. Por isso distinguia-se
a ars rhythmica, cuja sonoridade é de molde acentual (alterna sílabas fortes e fracas), da ars métrica,
baseada na duração dos sons (sílabas longas e breves). Nas duas modalidades, o “ritmo” é a condição
essencial (KELLY, 1991). John de Garlande dedica o capítulo VII da Parisiana Poetria à definição de
ars rhythmica, com propósitos bem definidos: “Explicit de arte prosaica et versificatoria. Incipit ars
rithmica. Postquam sufficienter tractatum est de arte prosayca et metrica, consequenter tractandum est
de rhythmica. Rhythmica est species artis musice” (GARLANDE, 1974, p. 158).
8
Seus marcos cronológicos, sempre aproximados e variáveis como se sabe, costumam ser o aparecimento
das literaturas romances, entre os séculos XI-XII, e a invenção da imprensa, no século XV (LLORCA,
Série Estudos Medievais 2: Fontes
82
provençal9, muito se falou de poesia, na verdade de Arte, em tratados que são summa do
imaginário contemporâneo – inclusive no que diz respeito à Estética (ECO, 1993, p. 1928)10 – como o Didascálicon (1127?), de Hugo de São Vítor ou o Metalogicon e o
Policraticus (1159), de John de Salisbury. Nessas obras, antes de tudo escritos morais e
políticos, os poetas são referidos como homens especiais: no Livro III do Didascálicon,
onde se ensina a ler através dos bons autores que possam conduzir à Sabedoria e ao
encontro com a Divindade, os poetas velhos como Homero, Hesíodo, Simônides e
Tersícoro são aqueles que, já “perto da morte, cantaram não sei qual canto de cisne mais
doce que de costume”; Sócrates, em idade avançada e acusado de demência pelos filhos,
recitou perante o Juiz a tragédia de Sófocles que acabara de escrever e “transformou a
severidade do tribunal em entusiasmo pelo teatro”; Homero conta que da língua de
Nestor, já quase decrépito, “fluía um discurso mais suave que o mel” (SÃO VÍTOR,
2001, p. 163). No Policraticus, no capítulo intitulado “Da música e de seus
instrumentos, melodias e proveito” (Livro I), onde se condena sumariamente uma certa
espécie de canto profano em oposição à música sacra, lá está a referência, cheia de
desprezo, “àquela gente” dada a “cantos de amor que eles mesmos chamam, mais
apropriadamente, cantos loucos” (SALISBURY, 1983, p. 125-129).
Nas Poéticas medievais especificamente, compostas a modo de manuais didáticos,
quase sempre receituários de regras gramaticais para a correta utilização da linguagem a
serviço de finalidades retóricas11 e para o respeito à prosódia de um poema, distingue-se
a matéria formal – o instrumento concreto e mensurável que se tem às mãos, e o
conteúdo – cuja previsibilidade consubstanciada na inventio tem limites claros, além dos
quais está o insondável e o enigma. Num tratado frio e cerebrino como é o Ars
1998). Antecedentes e conseqüentes desse longo período, para orientar o leitor no difícil, mas fascinante
percurso das rupturas e permanências, podem ser examinados em P. Dronke (1968); E. R. Curtius
(1957); mais recentemente, M. Zink (2003).
9
G. Tavani (2002, p. 61-74) trata dessa koiné de que se serviram os poetas.
10
Para além de ser a ciência do Belo, o mesmo autor considera as implicações do termo “estética” na
Idade Média: “Assim, entenderemos como teoria estética todo discurso que, com qualquer propósito
sistemático e pondo em jogo conceitos filosóficos, ocupe-se de alguns fenômenos referentes à beleza, à
arte e às condições de produção e apreciação das obras de arte, às relações entre arte e outras atividades e
entre arte e moral, à função do artista, às noções de agradável, de ornamental, de estilo, aos juízos de
gosto e também à crítica destes juízos, e às teorias e às práticas de interpretação dos textos, verbais ou não
[...]” (ECO, 1989, p. 10).
11
O que é natural dentro do conceito de arte como “técnica” (em qualquer de suas modalidades: ars
poética, ars dictaminis e ars praedicandi), conforme discorreu, por exemplo, John de Garland (1974, p.
7). Veja-se, na seqüência, sua definição de inventio, que reconhece na criação literária certas “coisas
ignoradas”, as quais devem ser buscadas por mecanismos racionais: Inuenire est in ignote rei noticiam
ductu proprie rationis uenire.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
83
versificatoria (por volta de 1175) de Matthieu de Vendôme, em que toda a Parte IV é
dedicada ao rol de “assuntos antigos” e “assuntos novos” dentre os quais o poeta pode
fazer sua “escolha”, ao tratar da elegia, por exemplo, apresentada alegoricamente como
submissa à Filosofia, ao lado da tragédia, da sátira e da comédia (Parte II)12, atribui a
elegância dela, dentre outras duas qualidades, a venustas interioris sententiae, interior
favus (VENDÔME, 1962, p. 151-154). Na célebre Poetria nova (entre 1208 e 1213), de
Geoffrey de Vinsauf, que se propôs como inovadora ante a Epistula ad Pisones
horaciana, a Dedicatória ao Papa Inocêncio III traz uma passagem eloqüente sobre a
poesia, que começa por ser “diálogo interior” antes de ser verbalizada:
Se alguém tem de construir uma casa, não põe mãos à obra impetuosamente;
uma linha interior do espírito toma as medidas da obra, a mente do homem
prescreve-lhe as etapas numa certa ordem, e a mão do espírito configura-a
como um todo, antes que a do corpo a execute; a obra existe, portanto, como
um arquétipo antes de ser uma realidade sensível. Contemple também a
poesia, nesse espelho, a lei que se deve dar aos poetas. A mão não deve
precipitar-se a escrever, a língua não deve arder por falar. Não confies
nenhuma das duas às mãos da Fortuna; mas, para que mais acertadamente
prospere a obra, deixa que a mente, discreta, antepondo-se à ação, suspenda
as funções de ambas e por muito tempo discuta consigo mesma o tema. O
espaço interior da mente deve predeterminar o momento de tomar a pena o
seu curso ou o ponto onde os limites últimos devem ser fixados. Prudente,
comprime a obra toda na cavidade do teu peito; que ela esteja no teu coração,
antes de estar na boca. (VINSAUF, 1971, p. 16-17)13
Se o zelo de Vinsauf, neste excerto, visa à criação precipitada e sem reflexão,
inevitavelmente superficial, ele também aponta um caminho que vai do “arquétipo” à
“realidade sensível”, do “coração” à boca” – a poesia como processo inicialmente
anímico. Raimon Vidal, em Razos de trobar (composta entre 1190 e 1213)14, previne
que poetar é “arte do coração”15 e tarefa tão “sutil” que demanda inclusive elevadas
qualidades morais: “E sapies que aquest saber de trobar anch may no fo mes ne aiostatz
tant be em um sol loch, mas que cascus s’o ac en son cor segons que fo prims e
entendens. Ne creatz que nulls homs n’aia estat maestre n’en sia estatz perfeyts; car tant
12
A lição vem de Martianus Capella, The marriage of Philology and Mercury (1977), alegoria que, entre
410 e 429, deu identidade às “artes liberais” (MONGELLI, 1999).
13
Tradução do excerto de Marcos Martinho dos Santos.
14
O tratado parece “ter sido dirigido a um público de poetas que freqüentava as cortes catalãs e que
Raimon Vidal considerava ignorante das normas para bem compor em língua occitana. O seu intuito,
portanto, [...] terá sido o de instruir e corrigir os seus compatriotas catalães com pretensões a compor ou a
entender as produções poéticas provençais” (MONGELLI; VIEIRA, 2003, p. 86).
15
Para G. Agamben (2006, p. 92-93), na “Sétima jornada”, a passagem da ratio iudicandi dos antigos à
inovadora ratio iveniendi dos medievais (segundo os provençais, razos de trobar), esse “evento da
Série Estudos Medievais 2: Fontes
84
es le saber car e fis que nulls homes no s’en dona garda [...]”(VIDAL, 1972, p. 5).16 Em
uma de suas glosas à Poética de Aristóteles, aquela que ficou conhecida por
“Comentário médio” (circulou por volta de 1256, em tradução latina de Hermann, o
Alemão), Averroes afirma: “... a arte poética é aquela que permite ao homem elaborar
uma representação imaginária de cada coisa específica, de forma mais completa
possível”.17 No poema anônimo em inglês médio, supostamente da segunda metade do
século XIII, The owl and the nightingale, diálogo alegórico em que, dizem os críticos, a
coruja representa a velha poesia didática e o rouxinol as perigosas e sedutoras novidades
do amor cortesão, provoca aquela, em réplica aos seu contendor: “... quando pousas no
teu galho, atrais os homens para a luxúria da carne, sempre que ouvem os teus cantos”
(THE OWL..., 1971, p. 166). No Setenário (primeira metade do século XIII), ao tratar
das três artes de bem falar e escrever – a Gramática, a Lógica e a Retórica – Afonso X,
o Sábio, aproxima-as, por sua grandeza, à Trindade Perfeita: a primeira delas é a própria
Palavra e significa o Pai, porque pelo poder do seu Verbo foram feitas todas as coisas18;
a segunda separa a mentira da verdade e significa o Filho, que nos tirou do erro e da
falsidade; e a terceira, que é “razão bela e elegante”, significa o Espírito Santo, pois
ilumina as coisas obscuras ao entendimento e dá-lhes ornato e formosura (ALFONSO,
1984, p. 31).19 A mesma Retórica, sem cujo auxílio não se chega às “coisas obscuras”,
para Brunetto Latini (1948, p. 319-320) é “ouro fino”, “superior a todas as espécies de
metal”.20
palavra” é, “antes de mais nada, uma experiência amorosa, e a própria palavra é cum amore notitia, união
de conhecimento e amor [...]”.
16
“Esta arte de trovar não foi jamais limitada a um só lugar, mas cada um a traz no seu coração, desde
que seja uma pessoa de qualidade e bom entendedor. Nem creias que algum homem tenha sido mestre ou
perfeito nesse assunto. Pois é uma arte tão difícil e sutil que nenhum homem pode dominá-la
completamente.” (Tradução do excerto por Bruno Fregni Bassetto.)
17
Averroes intui muito bem, na arte poética, o poder da imaginatio como categoria psicológica, como
instrumento para “representar uma realidade para além dos sentidos, embora essas representações fossem
sempre limitadas pelo conhecimento racional” (MONGELLI; VIEIRA, 2003, p. 106; p. 103-112). J. C.
Schmitt (2001, p. 133-150) examinou o tema em “A imaginação eficaz”.
18
À força desta relação entre a Palavra e o Verbo divino voltará Afonso X em Las siete partidas, cuja
Partida II, tratando dos deveres “de los Emperadores e de los Reyes”, lembra, no incipit do Título IIII:
“Palabra es donayre que han los omes tan solamente, e non outra animalia ninguna”. E na Lei II do
mesmo Título, a recomendação da “mesura”: “E porende todo ome, e mayormente el Rey se deve mucho
guardar en su palabra, de manera que sea catada e pensada ante que la diga. Ca despues que fale de la
boca, non puede ome fazer, que no sea dicha” (ALFONSO X, MDLV, f. 10).
19
Na linha dos demais, a Retórica, que fundamenta as Poéticas, “ilumina as coisas obscuras ao
entendimento”, inacessíveis à linguagem comum.
20
A obra foi escrita entre 1260 e 1267.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
85
Nos séculos XIV e XV, o interesse dos humanistas pelos clássicos favorece a defesa
acirrada da poesia, cada vez mais claramente definida com relação à prosa e como a arte
das filigranas: na Epistola a Cangrande della Scala (1319), supostamente escrita por
Dante, o poeta oferta àquele poderoso senhor o texto do Paraíso para a Comédia e
aproveita para analisar-lhe o sentido ambíguo, polissêmico, dividido em um primeiro
nível literal, e outro alegórico, moral ou anagógico (ALIGHIERI, 1988, t. II, p. 608612)21; na Genealogie deorum gentilium libri (entre 1350 e 1374), Boccaccio (1951, v.
II, p. 721-723), ao justificar Virgílio por ter contado “fábulas” acerca de Dido, discorre
longamente sobre o que é “falso” e o que é “verdadeiro” em arte, principalmente no
âmbito da poesia, em que o poeta manipula com alguma liberdade artifícios
específicos22; tanto para Juan de Baena quanto para o Marquês de Santillana, ela, a
poesia, é a “gaia ciência” dos provençais, atividade de corte, “graça infusa do senhor
Deus” (BAENA, 1984, p. 37-38)23 e “composição de coisas úteis cobertas ou veladas
com mui formosa cobertura” (SANTILLANA, 1984, p. 51-63)24.
Fica evidente, portanto, que ao homem do medievo os fremosos cantos dos trovadores
eram tão intrigantes quanto a poesia para o século XIX romântico25, em que pese a este
movimento literário ter escancarado as comportas do mundo subjetivo e firmado o
princípio da “originalidade” como o selo de autonomia do bardo. Dentro daquela
maneira própria de conceber a imaginatio poética a partir do século XI e como um
ingrediente a mais para dimensionar sua natureza profunda, o componente de oralidade
desta poesia não é fator desprezível, conforme avaliaram os importantes trabalhos de
Paul Zumthor (1972; 1993; 1997).26 A mobilidade dela; seu destino parafrástico por
causa das atividades dos copistas superpostas às do “autor”, gerando às vezes
numerosas versões do mesmo texto; a obrigação de relacioná-las a um “contexto de
21
Para a linha hermenêutica sugerida por Dante, de longa tradição, v. J. Lupi (2000, p. 29-38).
Portanto, o extraordinário poeta português Fernando Pessoa (1960, p. 97) tem atrás de si uma longa
tradição ocidental, quando diz lapidarmente: “O poeta é um fingidor,/ Finge tão completamente, / Que
chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”.
23
O Cancioneiro de Juan Alfonso de Baena, onde está o “Prólogo”, foi escrito entre 1423 e 1430.
24
O texto está datado entre 1445 e 1449.
25
Contestando J. Huizinga, para quem “a consciência de um prazer estético” só aparece muito
tardiamente, depois do século XV, U. Eco (1993, p. 26) pondera com propriedade: “Mais ceci veut dire
qu’il n’existait pas un bagage categorial, critique et esthétique, pour traduire en termes ‘techniques’ la
jouissance esthétique, et non qu’une telle jouissance n’existait pas”.
26
Cf. também A. Gurevitch (1997).
22
Série Estudos Medievais 2: Fontes
86
produção” e a outro de “recepção”27, já que as “intenções” de quem compõe e a “voz”
de quem recita ou canta pode impor ao público – ativamente participante – sentidos
diversos, colocando barreiras entre “transmissão” e “interpretação”, tudo isto tem
instigado historiadores da arte e especialmente paleógrafos e filólogos em particular a
tentar reconstituir, se não a “verdadeira”, pelo menos a versão mais próxima de um
hipotético “original”.28 Frente a um objeto de estudos assim instável, compreende-se a
obsessão dos especialistas da Língua pela “objetividade” e a animosidade para com a
“interpretação”, que desde Lachmann (recensio sine interpretatione) tem sido a pedrade-toque da Filologia.29
E ainda há o jogral, que, ao dizer/cantar os poemas, atrai sobre eles – interferindo, é
claro, na compreensão – a polaridade de seu papel social.30 De um lado, conforme
vários testemunhos recolhidos por Christopher Page (1990)31, eles são histriones turpes,
peritos em contorcionismos abjetos, levando vida dissoluta e tabernária, a própria
imagem do Demônio seduzindo as almas incautas pelos gestos e pela voz; de outro, são
o joculator domini como Francisco de Assis, responsáveis por trazer um pouco de
alegria aos desvalidos e aos humildes, defendidos veementemente por S. Bernardo de
Claraval na Carta 87 (1140), através de uma analogia bíblica: todos nós somos “o
espetáculo dos anjos” (SAN BERNARDO, 1955, v. II, p. 250-251)32. A intromissão do
jogral na semântica prosódica do poema muito terá contribuído para as relações
subjetivas entre o ouvinte e o texto, cindido por apelos imagéticos antagônicos, parcela
importante daquele substrato nebuloso que vimos apontando como o cerne da poesia
através dos tempos.
27
“Em uma conferência sobre a poesia andaluza antiga, Federico Garcia Lorca celebrou outrora a união
primitiva da poesia, da música e da dança, conjunto ligado à magia: única entre nossas artes a exigir a
presença de um corpo, no recomeço incessante de um encontro. O poema assim se ‘joga’: em cena (é a
performance) ou no interior de um corpo e de um espírito (a leitura)” (ZUMTHOR, 2000, p. 71). Para os
limites e a conceituação do termo, v. H. R. Jauss (1978, p. 266-288).
28
Dois bons artigos abordam os aspectos conjunturais que colaboram extrínseca e intrinsecamente na
composição do texto “ideal”: F. Gómez Redondo (2003, p. 229-282) e J. M. Lucía Megías (2003, p. 417490).
29
Cf. G. Orduna, L. Funes e J. M. Lucía Megías, Fundamentos de crítica textual (2005) – principalmente,
a primeira parte, “Los fundamentos” –, e P. Hummel, Histoire de l’histoire de la Philologie. Étude d’un
genre épistémologique et bibliographique (2000).
30
Em artigo recente, M. Clouzot (2005, p. 63-98) aponta o quanto a amplitude da deambulação dos
jograis, circulando por diferentes camadas sociais e promovendo trocas culturais, ainda está por
determinar.
31
Ver, principalmente, o capítulo “Minstrels and the clergy”.
32
A propósito, o cineasta sueco Ingmar Bergman explorou com acerto essa dupla identidade do jogral
medieval no belo filme O sétimo selo, conforme abordei em “Ingmar Bergman e o ‘jogral de Deus’”
(MONGELLI, 2005, p. 573-584).
Série Estudos Medievais 2: Fontes
87
Enfim, se os teóricos passados e presentes, guardadas as distâncias espaço-temporais e
as nuanças específicas de cada modo de criar (maior ou menor expressão de um “eu”33),
têm os olhos postos nos resíduos primordiais da poesia, indevassáveis à palavra comum;
se, como se viu, as “núpcias” operadas pelo medievo entre a Gramática, a Lógica e a
Retórica – no círculo estreito das ciências da linguagem – representam um esforço
(lição duradoura!) para dar visibilidade a certos desvãos interiores, por que o cantar dos
trovadores continua a ser interpretado como “manifestação de aridez poética, de
intelectualismo paralisante”, como tão bem discerniu Umberto Eco (1989, p. 93)?34
Segundo ele na seqüência, o fato de a poesia “representar a verdade de forma figurada”
(Santo Tomás, Quaestiones quodlibetales VII, 6, 3, 2), pela alegoria, não pode ser
desmerecedor: “Interpretar alegoricamente os poetas não queria dizer sobrepor à poesia
um sistema de leitura artificial e árido; significava aderir a eles, considerando-os como
estímulo de máximo deleite concebível, precisamente o deleite da revelação per
speculum35 et aenigmate”. E ainda Eco: essa poesia “estava toda do lado da
inteligência”; mas não entender que o poeta “provava uma alegria efetiva neste
exercício significa não se permitir a compreensão do mundo medieval”.
Cabe a pergunta: em que medida, ou de que modo, o nosso trabalho crítico com as
fontes da lírica profana galego-portuguesa – porque é sobre esse corpus que se põem as
questões examinadas neste artigo36 – nos permitem participar daquele “deleite de
33
A questão é polêmica, porque fronteiriça à noção de “indivíduo”, cuja presença (ou não) na Idade
Média foi estudada de vários ângulos em L’individu au Moyen Âge, de B. M. Bedos-Rezak e D. IognaPrat (2005). Nessa obra, D. Demartini (2005, p. 145-165) tratou da ficção literária propriamente dita:
“Les discours amoureux dans le Tristan en prose.Miroir et mirage du ‘jeu’”, obra em que, lembre-se,
Tristão é poeta e cantor.
34
Não são poucos os críticos para quem as “cantigas de amor” galego-portuguesas representam mera
“cópia adaptada” das provençais, cabendo alguma novidade – não muita – apenas às “cantigas de amigo”,
conforme se repetiram, ad nauseam, as opiniões, por exemplo, de J. J. Nunes (1972) – cf. “Ao leitor”, p.
v-ix.
35
Talvez, no tocante à poesia, a polissêmica idéia de speculum e suas relações limítrofes com a alegoria,
o símbolo, a analogia, a metáfora e o mito sejam o elo de ligação mais evidente com a posteridade
moderna, que fez da maior ou menor densidade da linguagem metafórica um dos elementos distintivos
das diversas correntes literárias (MOISÉS, 1984, p. 195 e ss.). Para a Idade Média, ver H. Franco Júnior
(2003a, p. 39-58).
36
Falamos, até aqui, de modo geral, tendo em vista uma espécie de língua comum à poesia lírica, a qual
“adquirió la suficiente flexibilidad para poderse cantar ante auditórios de localidades muy distantes sin
que llamaran la atención giros ni fenômenos peculiares de um lugar determinado. Siendo
fundamentalmente una poesia que era llevada de corte en corte y de ciudad en ciudad, tenía que
amoldarse a un patrón lingüístico unificado, que para muchos poetas representaba cierta arbitrariedad y
un consciente abandono de formas propias de su dialecto materno”. Embora M. de Riquer (2001, v. 1, p.
11) esteja se referindo à “base última de Tolosa”, o raciocínio aplica-se à lírica galego-portuguesa: cf. Y.
F. Vieira (1999).
Série Estudos Medievais 2: Fontes
88
revelação” que terá vivido o homem medieval? Por que parecem submersas, no
Trovadorismo, as bases comuns a gostos diversos, mal dispondo o leitor atual? Terá
Luís de Camões (século XVI) genialmente percebido as semelhanças – ele, que foi
cultor da lição dos trovadores – quando disse:
Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente (CAMÕES, 1966, p. 105)?
Em que momento histórico a “revelação” operada pela poesia de qualquer tempo teria
ocorrido por “termos” que não fossem em si “concertados” e que não fizessem “sentir”
peitos estéreis? Os esquemas normativos – insista-se: presentes mesmo na literatura
iconoclasta do século XX – auxiliam ou atrapalham a “doçura” dessa fruição?
2. Os impasses
O ano de 1904 pode ser – e tem sido – considerado um marco quase inicial nos estudos
da lírica profana37 galego-portuguesa: é a data em que Carolina Michaëlis de
Vasconcelos publica a edição crítica do Cancioneiro da Ajuda (A), em dois volumes38,
o primeiro com os textos das cantigas e o segundo com o que ela chamou de
“anotações” ao códice39, envolvendo questões lingüísticas e histórico-culturais que
buscavam não só uma “lição” fidedigna para os poemas, como ainda a identificação
biográfica de seus possíveis autores. Duas razões justificam a notoriedade dessa
publicação: 1) o manuscrito do Cancioneiro da Ajuda, em pergaminho, é testemunho
único do tempo dos trovadores, datável dos finais do século XIII, princípios do XIV,
mutilado, incompleto, contendo apenas 310 composições, pertencentes a 38 autores,
embora não esteja indicada a atribuição (RAMOS, 1993); 2) as informações textuais e
37
Não se considerarão, neste trabalho, a não ser de passagem, as especificidades da lírica religiosa.
C. M. VASCONCELOS, Cancioneiro da Ajuda, reimpressão da edição de Halle [1904], acrescentada
de um prefácio de Ivo Castro e do glossário das cantigas (Revista Lusitana, XXIII), 2 v., Lisboa,
Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1990.
39
Tantas eram essas “anotações”, que o excedente delas compôs as Randglossen zum altportugiesischen
Liederbuch, que acabam de ganhar edição brasileira: Glosas marginais ao Cancioneiro medieval
português de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, organizadas por Y. F. Vieira et alii (2004).
38
Série Estudos Medievais 2: Fontes
89
contextuais fornecidas por Carolina, densamente eruditivas, atualizadas no diálogo
estreito com os principais teóricos de seu tempo, abarcando um amplo espectro de
interesses, continuam a orientar os estudos dessa lírica desde então, quer para serem
refutadas, quer reformuladas ou acrescidas – a ponto de, em muitos trabalhos
posteriores, assistirmos a reprises com sabor de déjà vu.40
Está aí o primeiro e incontornável problema ecdótico, que de 1904 para cá só tem
engrossado as águas de um rio caudaloso: o único manuscrito contemporâneo aos
trovadores está incompleto e mutilado41, contém apenas “cantigas de amor”, deixando
de fora as “cantigas de amigo” – justamente as de matiz autóctone42 − e “as cantigas de
escárnio e maldizer” (LAPA, 1995), sem contar que não inclui a bela produção de ElRei D. Dinis (1261-1325), um dos trovadores peninsulares mais produtivos (escreveu
137 textos). O panorama completo é dado por dois apógrafos, cópias italianas do século
XVI, Cancioneiro da Vaticana (V) e Cancioneiro da Biblioteca Nacional (B)43, ambos
mandados copiar pelo humanista Ângelo Colocci (o exame paleográfico da obra
comprova seis diferentes copistas), coleções intrinsecamente aparentadas entre si, sendo
o segundo o de maior interesse por ser o mais completo e suprir ausências nos demais:
além de testemunho único para 250 composições, contém em torno de 1680 cantigas,
elaboradas por 153 trovadores e jograis, e introduzidas por cinco anônimos conhecidos
por “lais de Bretanha”.44 Por interesses a mais, as anotações marginais de Colocci,
importantes para finalidades extratextuais de estudo da tradição manuscrita, e, apenso às
últimas páginas, o documento fragmentário Arte de trovar, tratado de poética, glosado
até hoje, incansavelmente, por conter as célebres distinções genológicas: são cantigas de
40
Publicaram-se dois livros por ocasião dos festejos comemorativos de 2004: O Cancioneiro da Ajuda
cen anos despois, atas do Congresso realizado pela Dirección Xeral de Promoción Cultural, em Santiago
de Compostela e na Illa de San Simon (2004); Carolina Michaëlis e o Cancioneiro da Ajuda hoxe,
coordenado por M. Brea (2005). Um pouco antes, a modo de preparação, apareceu o Colóquio
Internacional Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1851-1925), extrato da Revista da Faculdade de
Letras do Porto (2001).
41
O manuscrito está à disposição dos interessados em edição fac-similada do códice existente na
Biblioteca da Ajuda, com apresentação, estudos e índices de J. F. de Pina Martins, M. A. Ramos e F. G.
Cunha Leão (CANCIONEIRO, 1994). A deplorável precariedade do códice como um todo justifica o
apreço à memória de Carolina e a quantos, depois dela, buscam reconstituir esse documento que é a
memória mais próxima dos trovadores galego-portugueses.
42
Como introdução à vultosa bibliografia sobre o gênero, consultem-se: P. L. Gradín, La canción de
mujer en la lírica medieval (1990), e M. Brea e P. L. Gradín, A cantiga de amigo (1998).
43
V. os respectivos verbetes no Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa (LANCIANI;
TAVANI, 1993). Ambos têm edição fac-similada e a de melhor legibilidade é a de B: Cancioneiro da
Biblioteca Nacional (1982).
44
O corpus completo dessa lírica foi reunido em uma só publicação, sob coordenação geral de M. Brea,
Lírica profana galego-portuguesa (1996).
Série Estudos Medievais 2: Fontes
90
amor “se eles falam na primeira cobra”; são cantigas de amigo “se elas falam na
primeira cobra”; e “se ambos falam en hũa cobra, outrosi é segundo qual deles fala
primeiro”. Quanto às cantigas de escárnio, “som aquelas que os trobadores fazen
querendo dizer mal d’alguen en elas, e dizen-lho per palavras cubertas que ajan dous
entendimentos (hequivocatio)”; as cantigas de maldizer “son aquelas que fazen os
trobadores descubertamente” (ARTE, 1999). Por último: uma Tavola Colocciana (C) –
“índice de trovadores galego-portugueses escrito por Ângelo Colocci em oito fólios” –
cujo paralelismo entre sua sucessão de números e nomes e a sucessão dos textos e
rubricas atributivas no Cancioneiro da Biblioteca Nacional “não pode deixar de sugerir
que C seja o índice de B”45, colaborando para a compreensão deste, B, que Ana Ferrari
destaca “por sua notável e evidentíssima desordem”46. Temos ainda o Cancioneiro da
Brancroft Library (cópia de V, realizada entre 1592 e 1612), o Pergaminho Vindel
(datável do último terço do século XIII) contendo sete cantigas de amigo musicadas de
Martin Codax – documento notável por nos oferecer texto e música, e o Pergaminho
Sharrer (fólio mutilado da última década do século XIII), também fragmentos,
musicados, de sete “cantigas de amor” de D. Dinis, descoberto recentemente (1990).47
Essa é toda a documentação manuscrita de que dispõe o pesquisador para o estudo da
lírica profana galego-portuguesa. Em face da escassez48 e do estado precário dela, é de
supor que os trabalhos de crítica textual – codicológicos, paleográficos, ecdóticos,
filológicos – são o ponto de partida, de que tudo o mais depende. Sendo poesia, ou seja,
linguagem condensada, cifrada (“misteriosa”, como dissemos), com ênfase nos timbres,
nas sonoridades fonéticas, na silabação acentual, na rima e na métrica, na carga
semântica simbólica, a precisão – pelo menos aproximada – na reconstituição do texto,
que sobrevive do detalhe49, é fundamental. Investigadores portugueses (como Elsa
Gonçalves, Maria Ana Ramos e António Resende de Oliveira), galegos (como
Mercedes Brea e José Luis Rodriguez), espanhóis (como Carlos Alvar e Vicenç Beltrán)
e italianos (como Giuseppe Tavani, Anna Ferrari, Valeria Bertolucci Pizzorusso), para
45
V. o verbete correspondente em Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa (LANCIANI;
TAVANI, 1993). E ainda: E. Gonçalves (1976), “La Tavola Colocciana Autori Portughesi”.
46
Cf. seu importante estudo “Formazione e struttura del canzoniere portoghese della Biblioteca Nazionale
di Lisbona” (FERRARI, 1979).
47
Verbetes correspondentes no Dicionário citado (LANCIANI; TAVANI, 1993).
48
Comparem-se os 95 cancioneiros provençais conhecidos, abarcando em torno de 2.542 cantigas,
compostas por mais ou menos 350 trovadores (RIQUER, 2001, p. 9 e p. 12).
49
Provou-o C. Cunha, em Estudos de poética trovadoresca, versificação e ecdótica (1961).
Série Estudos Medievais 2: Fontes
91
ficarmos apenas em alguns nomes recentes, não têm poupado esforços, hipóteses e
conjecturas para tentar restaurar, com relativa fidedignidade, um (ou mais de um)
eventual arquétipo perdido, em exaustiva colatio textual.50
O resultado do labor é duplo. De um lado, a estrutura formal e temática da lírica galegoportuguesa está bem mapeada: como fez István Frank para a poesia provençal (19531957), Giuseppe Tavani (1967) inventariou, no caso peninsular, o tipo de estrofe, de
fórmula métrica, de rima, de abreviações, simplificando a tarefa obrigatória de examinar
comparativamente os textos; em antologias exemplares como a de Elsa Gonçalves e
Maria Ana Ramos (1983), a do próprio Tavani (1990), a de Carlos Alvar e Vicenç
Beltran (1984), ou, há pouco, a de Xosé Bieito Arias Freixedo (2003), a varia lectio das
“variantes” (ORDUNA, 2005, p. 73-87; CERQUIGLINI, 1989) é oferecida tendo em
vista um histórico que remonta aos manuscritos; o estabelecimento desses textos
franqueou as novidades trazidas pelos estudos literários e sociológicos de António
Resende de Oliveira51, que, na linha de alguns trabalhos de José Mattoso (1985), refez
uma espécie de cronologia biográfica dos trovadores, com base na localização espacial
de seus textos nos Cancioneiros, tornando mais “visível” a identidade poética de cada
um; as edições temáticas, assentadas na divisão por gêneros, também dão a sua versão
dos poemas e catalogam os ‘motivos’ mais típicos deles: a água, a natureza ou as aves,
na cantiga de amigo (GRADÍN, 1990; BREA; GRADÍN, 1998); a mulher, a coita, na
cantiga de amor (BELTRÁN, 1995); a intersecção de ‘campos semânticos’ na cantiga
de escárnio (LANCIANI; TAVANI, 1994)52; por fim, as edições monográficas da obra
dos trovadores – já com numerosos títulos dados à luz, no intuito inclusive de enfrentar
o velho tabu de delinear a “individualidade” (ENTWISTLE, 1945; DRONKE, 1981) do
poeta numa estrutura social como a da Idade Média, onde impera o coletivo (MORSEL,
2005, p. 79) – têm chegado a falar em “estilo” pessoal, tanto os textos fixados parecem
50
Desse ângulo, é importante ressaltar os estudos de M. A. Ramos sobre o códice da Ajuda
especificamente e as questões genológicas em geral, cujo rigor pode ser medido pela judiciosa resenha a
que submeteu a obra D. Denis. Cancioneiro, de Nuno Júdice (Lisboa: Teorema, 1998), em Revue Critique
de Philologie Romane (1999).
51
À obra de Oliveira, Depois do espetáculo trovadoresco. A estrutura dos cancioneiros peninsulares e as
recolhas dos séculos XIII e XIV (1994), se seguiu a significativa contribuição de J. C. Miranda, Aurs
mesclatz ab argen. Sobre a primeira geração de trovadores galego-portugueses (2004).
52
A propósito de variações no campo semântico do vocabulário das cantigas, E. Gonçalves (1991) deunos um estudo modelar em Poesia de Rei: três notas dionisinas, onde, por exemplo, examina as
ambigüidades lingüísticas na configuração de Juan Bolo, personagem satirizada em um escárnio de D.
Dinis. Com interesse semelhante J. Dionísio (1995) estuda a cantiga “Ai, amor, amore de Pero Cantone,
de Fernan Soarez de Quinhones.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
92
compor uma “unidade”: as cantigas de Pero Garcia Burgalês (por Pierre Blasco), de D.
Dinis (por Henry Lang), de Martin Codax (por Celso Cunha), de Fernan Paez de
Talamancos (por Carlos Paulo Martinez Pereiro), de Pero Mafaldo (por Segismundo
Spina), de Pero Meogo (por X. L. Mendez Ferrin e por Leodegário de A. Filho), de
Rodrigu’Eanes de Vasconcelos (por Manuel Ferreiro), de Pero da Ponte (por Saverio
Panunzio), de Martin Soares (por Valeria Bertolucci Pizzorusso) são, dentre várias,
algumas das edições críticas que restauram ecdoticamente textos freqüentemente
problemáticos, inseridos na ambiência histórica e sócio-lingüística das cortes régias e
senhoriais peninsulares (OLIVEIRA, 2001; TAVANI, 2002).
De outro lado, há tantas versões das cantigas – as “lições” – quantos são os especialistas
que as trabalharam criticamente. Ou seja: não só o poema medieval é “movente” por
força da reescritura de copistas e da entonação de intérpretes ao longo dos anos – fatores
endógenos – como também o é por razões exógenas, quase sempre não homogêneas, de
“interpretação” dos manuscritos.53 Entre a fruição do texto e os métodos para efetivá-la
hesita o leitor, sucumbido àquela “exigência de subtrair ao subjetivismo e à avaliação
puramente impressionista” um setor de estudos como o da “literatura”, por muito tempo
avesso à “racionalização científica”54 – polaridade acentuadíssima se o universo em
questão é o da poesia. Talvez esteja aí, na confluência desses dois ângulos, nossa recusa
moderna de chegar à diluída camada do “inefável” em um poema lírico trovadoresco –
degrau, no entanto, complementar de sua mundividência. Para não exceder nos
exemplos, cite-se apenas a que ficou conhecida por “cantiga de guarvaia” (No mundo
nom me sei parelha)55, de Pai Soares de Taveirós (trovador da nobreza galega da
53
As enormes dificuldades desse trabalho podem ser acompanhadas em Lire le manuscrit medieval.
Observer et décrire, de P. Géhin (2005).
54
Cf. G. Tavani, no Prefácio a Poesia e ritmo (1983). No capítulo “Tentativas de ‘leitura’ da poesia”, ele
esmiúça esses extremos e rende homenagem aos chamados “formalistas russos” pelo mérito de, por altura
dos anos 70, terem chamado a atenção para a necessidade de rigor na análise formal de um texto (p. 23 e
ss.).
55
No mundo nom me sei parelha
mentre me for como me vai,
ca já moiro por vós e ai!
mia senhor branca e vermelha,
queredes que vos retraia
quando vos eu vi em saia.
Mao dia me levantei
Que vos entom nom vi fea!
E, mia senhor, des aquelha
me foi a mi mui mal di’ ai!
E vós, filha de dom Paai
Série Estudos Medievais 2: Fontes
93
segunda metade do século XIII), supostamente se referindo à Ribeirinha, amante do rei
D. Sancho I de Portugal, um dos textos mais polêmicos do Cancioneiro e sobre o qual
Mercedes Brea levantou a “fortuna crítica” (BREA, 1996, v. II, p. 730-731): tantas são
as questões que envolvem a identidade desta “senhor branca e vermelha”, bem como a
natureza de sua adjetivação; o ter sido vista “em saia”; a espécie de “alfaia” que venha a
ser “guarvaia” (importante caso de rima a condensar sentidos); o termo “filha”, que
pode ser lido como substantivo, se o ligamos a “Paai Moniz”, mas também verbo, se o
objeto dele é “dom” etc. – “leituras” que digladiam com a camada morfo-sintática e
semântica da cantiga porque a restitutio de um codex optimus parece impossível – tantas
vertentes quase camuflam a evidência de que, nos dois últimos versos, um “eu”
(convencional?) mendiga a “valia” de alguma benevolência qualquer. E é isto que
coroa tudo o mais.
Uma segunda dificuldade, também complicada de contornar, é a questão musical. Se os
poemas foram feitos para serem cantados e se não existem as partituras com as melodias
que deveriam acompanhá-los, que espécie de leitura podemos fazer deles apenas
enquanto textos escritos e que não corresponda sempre à parte de um todo? Os
pergaminhos Vindel e Sharrer, com serem documentos únicos no gênero para a lírica
trovadoresca galego-portuguesa, são suficientes para permitirem generalizações –
embora remetam especificamente à obra de Martim Codax e D. Dinis?56 O estudo
imperiosamente comparativo com o contexto polifônico francês57 e com a lírica
provençal, além das Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, o Sábio58, pode levar à
Moniz, e bem vos semelha
d’aver eu por vós guarvaia,
pois eu, mia senhor, d’alfaia
nunca de vós ouve nem ei
valia d’ũa correa.
Esta lição é de Elsa Gonçalves (1983, p. 134-135).
56
Considerem-se as interessantes observações de M. A. Ramos (1984, p. 11-12) sobre “A transcrição das
fiindas no Cancioneiro da Ajuda”, a propósito da relação delas com a música: “O pergaminho Vindel dános a imagem do que poderia ser a execução melódica de alguns tipos de composição e o Cancioneiro da
Ajuda, ambicioso projeto de organizada compilação, não chega sequer às mãos do copista-musical ou do
musicólogo, embora não deixe o responsável pela compilação de prever e reservar o espaço necessário à
transcrição musical. A orientação da cópia é muito clara nesse sentido. É verdade que não temos o
pentagrama desenhado, mas é verdade também que não deixamos de ter o espaço correspondente – o que
permite várias conjecturas a respeito desse silentio”.
57
“os modos rítmicos têm um local de nascimento – Notre-Dame de Paris – e uma época de gestação: a
segunda metade do século XII. Entre o final deste século e as primeiras décadas do Trecento, a
composição polifônica esteve-lhe subordinada” (FERREIRA, 1986, p. 35).
58
Cuja organização mélica M. P. Ferreira julga poder enquadrar-se na teoria modal gregoriana, de que
muito se aproximam as cantigas de amigo galego-portuguesas. Verbete “Música” do Dicionário da
literatura medieval galego-portuguesa (LANCIANI; TAVANI, 1993). Gerardo V. Huseby lembra que,
Série Estudos Medievais 2: Fontes
94
reconhecida e particularíssima relação entre “a acentuação estrófica de uma cantiga” e a
determinação objetiva “de sua acentuação musical”, conforme se pergunta Manuel
Pedro Ferreira? “A resposta à questão”, diz ele, “é-nos dada pela própria idéia de
‘acentuação’. Esta afigura-se-nos como um fenômeno perceptivo relacionado com as
várias dimensões do som: longitude, altitude e crassitude – na terminologia, duplamente
milenária, de Marcus Varro” (FERREIRA, 1986, p. 31).59 No mínimo, portanto, três
formas de apelo à sonoridade de uma sílaba métrica.
Bom exemplo das múltiplas facetas postas pelas relações entre o texto das cantigas e a
música foi dado, recentemente, pelo estudo – ainda que parcial – do Pergaminho
Sharrer, publicado por Manuel Pedro Ferreira. Atento à manifestação já um tanto tardia
dessa criação régia60 e à personalidade de seu autor, Ferreira (2005, p. 12-13) intitula o
livro Cantus coronatus, que
é uma expressão usada por Johannes de Groecheio, teórico francês
contemporâneo de Dom Dinis, no tratado De Musica (c. 1300), para designar
uma canção em língua vulgar, de alto nível artístico, composta e apreciada
pela melhor aristocracia, e caracterizada por uma pulsação rítmica pausada e
regular. A coroação significa a atribuição de uma dignidade hierárquica
superior, comparável à de um monarca. O monarca medieval, como juiz
supremo, representa o primado da Razão, e como ‘lei animada em terra sua’,
corporiza o Bem em que a comunidade se reconhece; um ‘canto coroado’ é
assim, conceptualmente, um modelo de racionalidade artística e de bondade
poético-musical.
Segundo Grocheio, o cantus coronatus costuma “ser composto por reis e nobres e é
cantado na presença de reis e senhores da terra, de modo a comover os seus ânimos no
sentido da audácia e da fortaleza, da magnanimidade e da liberalidade, coisas que
levam, todas elas, à boa governação. Este tipo de canto trata de temas tão árduos quão
“durante vários séculos, a notação musical foi privativa da Igreja de Roma. [...]. Iniciado o segundo
milênio da era cristã, produziram-se duas importantes novidades na história da notação musical. Por um
lado, começaram a copiar-se os primeiros manuscritos que contêm música não litúrgica; por outro, a
certos repertórios de música litúrgica foi incorporada uma dimensão espacial, ao surgir e difundir-se a
polifonia. Em ambos os casos, a notação utilizada deriva diretamente daquela com a qual se copiava o
cantochão litúrgico. É graças à aplicação da escritura musical a certas manifestações de música não
litúrgica que chegou a nossos dias uma quantidade considerável de canções pertencentes ao repertório
cortesão dos trovadores, troveiros e Minnesänger [...]” (HUSEBY, 1999, p. 269).
59
Em nota, Ferreira (1986, p. 31) lembra que “a análise acentual das cantigas exige ainda uma
permanente atenção às particularidades da língua trovadoresca”.
60
As datas aproximadas de produção da escola trovadoresca galego-portuguesa situam-se entre 1196 e
1350, tendo D. Dinis reinado entre 1279 e 1325.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
95
deleitosos, como sejam a amizade e o bem-querer” (FERREIRA, 2005, p. 12-13). Se
assim é, a música da última geração de trovadores não deveria equivaler à da primeira, e
nem a melodia de uma cantiga de amigo mais primitiva teria os mesmos artifícios de
uma cantiga de amor “à moda provençal”, ou, ainda, o jogral não disporia do mesmo
potencial interpretativo que um trovador. E o texto, na dependência dessas
circunstâncias, mostraria nuanças muito pontuais61, apenas entrevistas sem a partitura
musical.
Lembrando que tanto a indigência de manuscritos das cantigas galego-portuguesas
quanto a falta de transcrição da melodia delas são percalços que, de forma sistemática e
constante, detêm a atenção de filólogos, críticos e historiadores da literatura, levando a
um tipo de análise do texto que privilegia a forma, consideremos, para finalizar, a velha
questão das “origens”.62 Quando, em 1934, Manuel Rodrigues Lapa resenha e resume as
idéias dos principais teóricos de seu tempo defensores das quatro “teses” que
explicariam as origens da lírica medieval peninsular, estava dando início a uma
polêmica que duraria pelo menos meio século: a “arábica” (que os românticos
justificaram pela “superioridade da cultura arábico-andaluza e a facilidade da sua
comunicação às populações cristãs”), a “folclórica” (fundada na idéia igualmente
romântica de “povo criador”), a “médio-latinista” (sendo a poesia trovadoresca “um
fenômeno de alta cultura”, era natural buscar sua gênese na tradição clássica latinomedieval) e a “litúrgica” (“assim chamada porque pretende derivar o lirismo
trovadoresco das formas da poesia da Igreja cristã”) (LAPA, 1973, p. 30-31; p. 55; p.
66-67 e p. 79). De um lado, os defensores convictos de cada uma dessas teses; de outro,
a posição conciliadora e ponderada, que acabou vingando ao atribuir aos quatro papéis
marcadamente significativos na consolidação das cantigas galego-portuguesas. O
próprio Lapa, inicialmente adepto da “tese litúrgica”, reconheceria, na 10ª edição das
61
P. H. Lang (1993, p. 99) resume: “[...] until recently scholars have concentrated their investigations on
its purely poetical side and have failed to make it understood that the lyric poetry of the Middle Ages,
since it was intended to be sung, must be considered as a combination of two arts, music and poetry,
ceaselessly influencing each other. […] The two cannot be separated because the accompanying music is
in a large measure responsible for the disposition of the verses and strophes of the poems. Medieval lyric
poets were themselves musicians and created melody and poetry simultaneously, fitting their lines to the
musical cadences”.
62
Como se sabe, o tema é amplo, complexo e controvertido, interessando aqui apenas uma de suas
implicações. Um trabalho antigo, já revisto, mas ainda instigante, é o de A. Jeanroy (1925), Les origines
de la poésie lyrique en France (1925). Igualmente os de M. R. Lapa, Das origens da poesia lírica em
Portugal na Idade Média (1929) e Miscelânea de Língua e Literatura Portuguesa medieval (1982).
Série Estudos Medievais 2: Fontes
96
Lições: “Quase todas as teorias padecem dum mesmo defeito: a unilateralidade e o curto
horizonte das suas concepções. Procuram reduzir um fenômeno complicado a linhas
extremamente simples. Se, ao contrário, interpretarmos a civilização trovadoresca como
um fenômeno de sincretismo, no qual se misturam diversíssimas influências, teremos
provavelmente achada a sua explicação”.63
Contudo, a invasão islâmica da Península Ibérica, em princípios do século VIII
(RUCQUOI, 1995; PIÑERO VALVERDE, 1997, p. 149-185), cujo “limite cronológico
não está no fim da chamada Reconquista (1492), nem na expulsão dos mouriscos
(1611), já que a marca do Alandalus na Espanha e em Portugal se mostrou indelével”64,
tem sido considerada por estudiosos como Emílio Garcia Gómez65 e Federico Corriente
(1997)66 uma fonte inesgotável de temas, motivos, empréstimos lingüísticos e artifícios
formais para a lírica galego-portuguesa, ainda muito longe de ser tomada na devida
conta pelos medievalistas. A não ser pela kharja, bastante conhecida, poema curto (algo
aparentado à fiinda) que arremata as muwassahat hispano-árabes e hebraicas, em
relação às quais ela apresenta evidente contraste conceptual e lingüístico – fato a que
muitos atribuíram as raízes das “cantigas de amigo” galego-portuguesas (SPINA, 1991,
p. 366-367), também porque ali donzela enamoradas expõem seus queixumes.
A complexidade dessas relações culturais vai além e foi testada, por exemplo, em um
artigo escrito a duas mãos por Rip Cohen e Federico Corriente (2002), acerca da
conhecida cantiga de Pedr’Eanes Solaz Eu velida non dormia, cujas duas primeiras
estrofes – paralelísticas, suficientes a nosso propósito – citamos:
Eu velida non dormia
+Lelia doura+
E meu amigo venia
+Edoy lelia doura+
Non dormia e cuidava
Lelia doura
63
Cf. o verbete “Manuel Rodrigues Lapa” no Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa
(LANCIANI; TAVANI, 1993).
64
Cf. F. Corriente (2006, p. 82), “Romania Arabica: uma questão não resolvida de interferência cultural
na Europa Ocidental”. Por “România Arabica” ele entende aqui “um espaço cultural e lingüístico
compartilhado”, resultado de um “longo período de coexistência de formas mais ou menos evoluídas de
romance hispânico com dialetos árabes berberes importados pelos conquistadores”.
65
V. o Prólogo a El mejor Ben Quzmán en 40 zéjeles (GARCIA GÓMEZ, 1981, p. 19-72).
66
Trabalho clássico sobre o assunto é o de A R. Nykl (1946), Hispano-Arabic Poetry and its Relations
with the Old Provençal Troubadours.
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E meu amigo chegava
Edoi lelia doura.
Em diálogo com C. Michaëlis, J. J. Nunes, R. Lapa e C. Alvar, aos quais contestam, os
autores do artigo consideram ser o nó do poema o refrão “lelia doura”, que procuram
ler ao abrigo de uma outra cantiga de amigo, de temática semelhante (acerca da “rival”),
Dizia la ben talhada. Para ambos, a expressão não é uma simples onomatopéia
ornamental, pois funciona como o sentido central do texto: “a) The language of lelia
doura is Arabic; b) lelia represents Andalusi Arabic líya, phonetically /leia/, na
allomorph of Arabic li, ‘for me’, ‘to me’; c) doura represents Andalusi Arabic ddáwra,
‘turn’, from the Semitic root dwr; d) líya ddáwa thus means ‘to me (belongs) the turn’”.
Quanto a edoy, “is not Arabic, but represents Latin et hodie in early Iberian Romance”.
De onde o verso todo seria assim lido:
ed oi / CODE SHIFT / líya ddáwra
com a tradução-interpretação:
“and today / CODE SHIFT / it’s my turn”.
Quanto a leli, a) “represents Arabic layli, the collective substantive layl with the first
person pronominal suffix, ‘my’”; b) “ya layli is a common exclamation in Arabic
poetry, meaning ‘what kind of nights I’ve had”. Como Pedr’Eanes Solaz esteve ativo na
corte de Afonso X, o Sábio, “we can infer that the poem may well have been composed
and performed in Toledo, which was still a bilingual city, and one where Arabic (and
Hebrew) poetry was being composed, performed and copied”. Daí nasce a pergunta:
“are we dealing with a Christian or an Islamic context?”. Quem exclama “hoje é meu
dia!”, “hoje é a minha vez!”, são amigas das “cantigas de amigo” ou “wives and slaves
of a harem”?
Este sumário do trabalho de Cohen e Corriente mostra o percurso inverso ao que vimos
ponderando, mas igualmente desafiador para a apreciação estética da lírica galegoportuguesa: o mau conhecimento do árabe e do hebraico, em contexto de produção lírica
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peninsular, pode fazer-nos perder outros tantos lelia doura que acusam intersecções
culturais diversas no plano da linguagem poética. Mais uma vez, o prejuízo é para a
“verdade” do texto, cambiante mas não impalpável. No caso, o viés do refrão trouxe à
tona uma cena “possível”, a do canto esponçalício, com ecos articulados de
antiqüíssimas rivalidades de amantes.
3. ut insanus vates delirabam67
No terreno das “permanências”, com que iniciamos as reflexões sobre a essência
profunda
da poesia e, segundo o corpus escolhido, da lírica galego-portuguesa
medieval, o verso de Fulgêncio, acima, poderia ser substituído pelos de Goethe: Et ce
qui est départi à l’humanité entière / Je veux en jouir dans mon moi intime68. Em
qualquer dos campos semânticos – o antigo, da “loucura” do poeta, ou o moderno – do
“eu” alargado à possibilidade de acolher a “humanidade inteira”, poesia é experiência
psicológica e subjetiva do “inefável”69, manifestação do numinoso (OTTO, 1992, p. 94103.), veículo privilegiado para apreensão do Belo através das coisas sensíveis70, tarefa
limítrofe de experiências místico-religiosas em que se reconhece a interferência do
próprio Deus. É recorrendo a Ele que Guiraut Riquier, em 1274, dirige sua célebre
“Súplica” ao rei D. Afonso X de Castela, para que regularize a profissão de trovador e a
distinga, hierarquicamente, do jogral:
[...] não se lhes [aos trovadores] deveria fazer tal injustiça, pois Deus quer
honrá-los com tal sabedoria que não se poderia encontrar igual no mundo via
humana. Em todos os outros conhecimentos, tem valor uma boa doutrina,
mas se Deus não leva o homem a iniciar-se na arte de trovar, não a dominará
nunca. É bem verdade que, se tiver em si mesmo a capacidade, o homem
pode obter aperfeiçoamento, ensinando; mas por si mesmo, de fato, não teria
por onde começar. (PIZZORUSSO, 1966, p. 69-70, v. 750-770)71
67
“Eu delirava como vate insano”, Fulgêncio, Helm, 13, 18 (apud CURTIUS, 1957, p. 505).
Faust, I, v. 1770-1771 (Trad. H. Lichtenberger. Paris, 1932).
69
V. o capítulo que C. C. Carreto (1996, p. 410-420), embora tratando da narrativa medieval, dedicou ao
tema em Figuras do silêncio. Do inter / dito à emergência da palavra no texto medieval.
70
Segundo as idéias de Tomás de Aquino, conforme estudadas por U. Eco (1993).
71
Trad. de Bruno Fregni Bassetto.
68
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No mesmo diapasão D. Afonso atende ao pedido:
É muito justo que esses sejam chamados trovadores e sejam denominados
‘doutores em trovar’ essas pessoas de valor que, com ciência e bom senso,
fazem versos e canções e outras boas composições proveitosas e agradáveis
pelos seus belos ensinamentos. E assim a sua obra se tornará ilustre.
(PIZZORUSSO, 1966, p. 69-70, v. 748-841)
Da relação entre “ciência e bom senso” nascem os “belos ensinamentos” que são ou
devem ser “agradáveis”. A fórmula – conhecimento científico + qualidades morais – é a
que preside o saber na Idade Média, desde a herança da Antigüidade clássica; nesse
composto também se inclui a Beleza que deleita. Por esses princípios se guiam os
trovadores medievais.
Tudo, portanto, parece favorecer a leitura puramente “técnica” da cantiga galegoportuguesa: as “artes de trovar” expõem rígidas regras de compor, prevêem conteúdo e
forma, aparentemente sem deixar brecha para qualquer coisa que pudesse resvalar para
a “inspiração”; o amor – motivo por excelência dos textos – é contido por normas
sociais inflexíveis72 (talvez por isso é que, nas “cantigas de amigo”, pouco se tenha
avaliado a dimensão, quase psicanalítica, do fato de uma mulher expressar-se por boca
do homem ou de este se fazer mulher para exprimir-se73). Do ângulo da crítica textual,
as perspectivas não são mais alentadoras: os três manuscritos existentes, em grande
parte em mau estado de conservação, com distância de pelo menos duzentos anos entre
o primeiro e os outros dois, a exigir filólogos especializadíssimos, não contam com um
original – desaparecido – para cotejo; a não ser por Martin Codax e D. Dinis – que,
somados, nos deixaram treze exemplares – não conhecemos as músicas específicas que
acompanhavam as cantigas; enquanto a relação com os provençais, óbvia, sempre foi
visada pelos historiadores da literatura, a influência de árabes e judeus, apesar de sua
importante presença peninsular, esteve em segundo plano na ordem de interesses.
Frente ao estranho fosso entre a admirável persistência de lingüistas e paleógrafos em
refinado trabalho arqueológico com a língua, de um lado, e, de outro, a insossa
72
Cf. Andreas Capellanus, De Amore (1985), e J. Markale, L’amour courtois ou le couple infernal
(1987).
73
O assunto foi lindamente abordado por M. Moisés em “Fernando Pessoa e a cantiga trovadoresca”
(1998, p. 233).
Série Estudos Medievais 2: Fontes
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caracterização genológica (amor / amigo / escárnio e maldizer) para onde quase sempre
conflui o longo percurso da interpretatio, alguma coisa se perde – como se o “sopro
sagrado” e o “furor divino” que moveram os poetas do passado não mais se fizessem
ouvir. E gera o desgaste, a fixidez, a sensaboria. Basta considerar, abaixo, a obra-prima
que é a “pastorela” de Johan Airas de Santiago (poetou a partir de 1270, na corte
alfonsina), para reconhecer que algo de fugidio – a tal subjetividade em estado puro –
mantém em suspenso o fôlego de um “eu” “mui quedo”, a contemplar com “gran medo”
sua pastor. Talvez essa miragem evanescente é que tenha feito história... Talvez seja ela
que clame por renovação metodológica:
Pelo Souto de Crecente
ũa pastor vi andar
muit’ alongada de gente,
alçando a voz a cantar,
apertando-se na saia,
quando saía la raia
do sol, nas ribas do Sar.
E as aves que voavan,
quando saía l’ alvor,
todas d’ amores cantavan
pelos ramos d’ arredor;
mas non sei tal que i ‘stevesse,
que en al cuidar podesse
senon todo en amor.
Ali ‘stivi eu mui quedo,
quis falar e non ousei,
empero dix’ a gran medo:
– Mia señor, falar-vos-ei
un pouco, se mi ascuitardes,
e ir-m’ ei quando mandardes,
máis aquí non [e]starei.
– Señor, por Santa Maria,
non estedes máis aquí,
mais ide-vos vossa via,
faredes mesura i;
ca os que aqui chegaren,
pois que vos aqui acharen,
ben diran que mais ouv’i (BREA, 1996, v. I, p. 399).
Seiscentos anos depois, como se o tempo não passara, Fernando Pessoa, em outro
registro histórico mas por mistérios da linguagem, sob o peso da “cruz de ser poeta”,
recebe os ecos dessa voz de penumbra e, tão silente quanto seu ancestral, vai atrás do
“vulto” de uma pastora qualquer:
Série Estudos Medievais 2: Fontes
101
Ela ia, tranqüila pastorinha,
Pela estrada da minha imperfeição.
Seguia-a, como um gesto de perdão,
O seu rebanho, a saudade minha...
“Em longes terras hás de ser rainha”
Um dia lhe disseram, mas em vão...
Seu vulto perde-se na escuridão...
Só sua sombra ante meus pés caminha...
Deus te dê lírios em vez desta hora,
E em terras longe do que eu hoje sinto
Serás, rainha não, mas só pastora –
Só sempre a mesma pastorinha a ir,
E eu serei teu regresso, esse indistinto
Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...74
Referências
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Belo Horizonte: UFMG, 2006.
ALFONSO X. Las siete partidas. Edição fac-similada da edição salmantina de 1555,
glosada por Gregorio Lopez e impressa por Andrea de Portonariis. Madrid: Boletín
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1964.
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ARTE de trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional. Ed. crítica de G. Tavani.
Lisboa: Colibri, 1999.
74
O soneto é o XII de “Os passos da cruz”, alegoria das estações do Calvário cristão sugerindo o martírio
do poeta, e corresponde, muito significativamente, ao momento em que Jesus morre crucificado
(PESSOA, 1960, p. 55).
Série Estudos Medievais 2: Fontes
102
BAENA, J. de. Prologus Baenensis. In: ESTRADA, F. L. (Ed.). Las poéticas
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Auto dos Escrivães do Pelourinho:
Linhas de transmissão do teatro medieval
Márcio Ricardo Coelho Muniz
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Resumo: Este texto analisa o Auto dos Escrivães do Pelourinho, texto anônimo do século XVI
português, tendo como referência básica o teatro do dramaturgo português Gil Vicente e o
gênero da farsa medieval.
Palavras-chave: Auto dos Escrivães do Pelourinho; Teatro Medieval; Teatro Português; Farsa;
Gil Vicente.
Abstract: This paper analyzes the Auto dos Escrivães do Pelourinho, a Portuguese anonymous
text from the sixteenth-century, with reference to the stage of basic Portuguese playwright Gil
Vicente and gender in medieval farce.
Keywords: Auto dos Escrivães do Pelourinho; Medieval Theater; Portuguese Theater; Farce;
Gil Vicente.
1. Gil Vicente e a Escola Vicentina
A produção teatral do dramaturgo português Gil Vicente data do período entre 1502 e
1536. Embora inserido cronologicamente no século do Renascimento, o XVI, a crítica é
unânime em lhe credenciar como um autor medieval. Um dos maiores estudiosos da
obra de Vicente, o professor português Antônio José Saraiva, afirma que com ele finda
o teatro medieval europeu (SARAIVA, 1992). E assim é de fato. Os autos vicentinos
constroem-se estruturalmente sobre base de gêneros teatrais medievais. Neles estão
reencenadas modelos do teatro religioso medieval (mistérios, milagres, moralidades),
formas de festas palacianas ou cortesãs (momos, justas, desfiles alegóricos, histórias
romanescas, entre outras) e também estruturas populares assumidas pelo teatro na Idade
Média (farsa, pranto, sermão burlesco, entremez etc.). Limitamo-nos apenas a referir as
formas dos gêneros do teatro medieval porque nos ocuparemos mais detalhadamente de
um deles mais à frente, mas poderíamos também tratar de temas, personagens,
linguagem, ideologia, enfim de um imaginário medieval a povoar os autos vicentinos.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
110
Detentor de obra que finaliza, resume e afirma, ao mesmo tempo, a criação e existência
de um teatro nacional português medieval, Gil Vicente representa um momento de
ápice, de afirmação de maioridade e certa universalidade que o teatro alcançou em
Portugal. Por isso, não raro a crítica literária e teatral reconhece e aponta seguidores de
suas obras.
São muitos os dramaturgos posteriores a Gil Vicente apontados como seguidores da
tradição teatral estabelecida por sua obra. No século XIX, o escritor e historiador da
literatura Teófilo Braga cunhou a expressão Escola Vicentina, referindo-se a
dramaturgos e textos anônimos que, no entender do crítico oitocentista, seguiam e
guardavam, do século XVI ao XIX, a tradição teatral vicentina (BRAGA, 1898). A
perspectiva de Teófilo Braga era a da nascente disciplina de Literatura Comparada,
centrada nos estudos de fontes e influências, para a qual os seguidores de um mestre
eram devedores de sua fonte, dependentes e, via de regra, inferiores àquele que
seguiam. Tal perspectiva, fortemente influenciada pelas teses evolucionistas de Darwin,
orientava-se por noções de progresso e desenvolvimento, e, consequentemente, pela
lógica da dependência entre as literaturas.1 De onde, expressões como influência,
imitação, dependência serem recorrentes no trabalho de Braga. Seu estudo, todavia, foi
e ainda o é fonte básica para os pesquisadores do teatro português na identificação de
textos e autores, em grande maioria, com uma única edição. Braga também arrola textos
manuscritos, anônimos, ou assim considerados até bem pouco tempo, e ainda textos
perdidos sobre os quais temos, por seu intermédio, referências a nomes, autoria, data da
provável publicação ou encenação, resumo de enredos, estrutura, enfim, uma quantidade
importante de informações possibilitada pela erudição filológica que marcou a crítica
oitocentista.
1
A título de exemplo, observe-se o que diz o crítico francês Joseph Texte, em texto de 1893, sobre a
nascente disciplina de Literatura Comparada: “[...] as literaturas somente se desenvolvem e progridem por
meio de empréstimos mútuos. É preciso, para fazer germinar obras originais, preparar-lhes uma espécie
de húmus composto de resquícios vindos de fora. Como as espécies em história natural, as literaturas não
possuem limites precisos, penetram-se mutuamente e transformam-se umas em outras, em virtude de leis
misteriosas ou, pelo menos, mal definidas” (TEXTE, 1984, p. 37) Mais à frente, ainda no mesmo texto:
“Não é mais possível pensar em escrever a história do gênio de nossa nação [a França], sem levar em
conta os laços que nos ligam a nossos vizinhos do mesmo modo que aos antigos. O estudo das literaturas
estrangeiras e da influência que elas exerceram sobre a nossa fornece-nos o segredo de nossos maiores
erros; às vezes também nos explica a rapidez de nossos progressos. Ao mesmo tempo, a influência da
literatura francesa sobre as literaturas estrangeiras, progressivamente fecunda, estéril, funesta, poderia
restituir às vezes o sentimento de nossa força mostrando-nos a facilidade com que nossas idéias se
projetam no mundo, às vezes a consciência de nossos defeitos, exagerados por uma imitação inábil”
(TEXTE, 1984, p. 41).
Série Estudos Medievais 2: Fontes
111
Esta perspectiva comparatista marcada por noções qualitativas que valorizavam a fonte
primária em detrimento daqueles que a seguiam – perspectiva já revisada pelos estudos
de Literatura Comparada, particularmente a partir da segunda metade do séc. XX
(COUTINHO; CARVALHAL, 1994; NITRINI, 1997) – limitou-se, no entanto,
frequentemente, à identificação da fonte, não avançando em termos da interpretação dos
sentidos dos textos, da renovação das estruturas que propunham ou ainda dos temas que
abordavam. Na pesquisa que atualmente desenvolvemos, cujo título é Para uma revisão
da Escola Vicentina, pretendemos atentar para aqueles autores e obras arrolados por
Braga, mas buscando entendê-los em suas individualidade e contextos estético e
histórico, embora não desconsiderando a possível filiação a uma tradição estabelecida
pelo teatro de Gil Vicente.
2. Auto dos Escrivães do Pelourinho: circunstâncias de produção
No limite deste texto, analisaremos uma das obras consideradas como pertencente à
Escola Vicentina, um texto anônimo do séc. XVI: o Auto dos Escrivães do Pelourinho.
Teófilo Braga dedica-lhe pouquíssimas linhas em seu estudo de 1898, porque só tem
notícias dele por um pequeno extrato do auto que encontrou no Glossário da edição de
1833 da História do descobrimento e conquista da Índia pelos portugueses, de 1551, de
Fernão Lopes de Castanheda (1500?-1599), feita pela Tipografia Rollandiana. Por isso,
Braga aceita a datação sugerida pelo editor da obra de Castanheda, que afirma, pelo
estilo da linguagem e pelo contexto, tratar-se provavelmente de uma obra do séc. XVI.
O editor de Castanheda indica ainda ter em mãos uma impressão do auto do séc. XVIII,
feita na Oficina de Bernardo da Costa, de 1722 (CASTANHEDA, 1833, p. 25). Por fim,
Teófilo Braga, em adendo ao final de seu extenso trabalho, informa ter notícias de um
exemplar da obra adquirido pelo bibliófilo Rego, mas, ao que parece, não teve acesso a
ele.2
2
Não alcançamos obter notícias mais precisas sobre este “bibliófilo Rego”. Carolina Michaëlis de
Vasconcelos, em seu Autos portugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina”, refere-se a este
bibliófilo como detentor de acervo fundamental para a história do teatro em Portugal: “As novidades que
damos [sobre a Escola Vicentina], são portanto realmente dignas de consideração e de aplausos,
comquanto ainda falte muito para chegarmos a possuir o Tesouro do antigo Teatro português, tão
completo como pode ser, depois das perdas sofridas. Seria preciso um corpo inteiro de edições críticas,
legíveis e comentadas, pelo menos, de todos os textos que até hoje não tiveram a vantagem de sair dos
Série Estudos Medievais 2: Fontes
112
A edição que utilizamos neste trabalho foi preparada pelo pesquisador do Centro de
Estudos de Teatro da Universidade de Lisboa, o professor José Camões, publicada em
um único volume, em 2007, e que reúne cinco autos anônimos do séc. XVI: Auto do
Caseiro de Alvalade, Auto dos Escrivães do Pelourinho, Auto do Escudeiro Surdo, Auto
de Florisbel e Auto de Guiomar do Porto . Do Auto dos Escrivães do Pelourinho, José
Camões edita um texto impresso em 1625, na oficina de António Álvares, que hoje se
encontra na British Library (C. 63. b.24). O pesquisador dá, ainda, notícias daquela
impressão preparada por Bernardo da Costa Carvalho, de que acima se falou, mas da
qual não se conhece exemplar (CAMÕES, 2007, p. 278).
Em texto introdutório à edição, apoiado em referências feitas no texto a pessoas, a locais
da cidade de Lisboa e a viagens feitas pelos reis portugueses D. Manuel I (1495-1521) e
D. João III (1521-1554), o professor Camões data o auto de um período entre 1515 e
1526, indicando maior probabilidade para os anos de 1520, 1523 ou 1524 (CAMÕES,
2007, p. 23). Se essas datas estiverem corretas, como tudo indica, estamos trabalhando
com um texto e um autor, em verdade, contemporâneo de Gil Vicente, que à altura está
no auge de sua produção e prestígio junto à corte portuguesa.3
O Auto dos Escrivães do Pelourinho coloca em cena, ao que tudo indica, personagens
do cotidiano da Lisboa quinhentista, ou seja, escrivães que desenvolvem seu ofício na
Praça do Pelourinho Velho, região central da cidade, próxima à Ribeira. Em mesas
postas ao longo da praça, esses homens ofereciam à população, via de regra analfabeta,
seus préstimos de leitores e, principalmente, de redatores de cartas, de ofícios, de
petições, de documentos de toda ordem.
prelos, bem grafados, pontuados, divididos nas partes estróficas constituintes. Para os reunir seria preciso
recorrer não somente aos raros da Biblioteca Nacional de Lisboa mas também às colecções particulares de
F. Palha, o conde de Sabugosa, conde de Tarouca, conde de Sucena, conselheiro Minhava, Dr. A. A. de
Carvalho Monteiro, bibliófilo Rego, a que foi de Fernandes Thomas” (VASCONCELOS, 1922, p. 106).
3
Neste mesmo texto introdutório, o professor José Camões afirma que “do teatro quinhentista que
[conhece], é do universo dos autos de António Ribeiro Chiado que estes Escrivães do Pelourinho mais se
aproximam” (CAMÕES, 2007, p. 25). Arrola ainda outras semelhanças deste auto com as obras de
Ribeiro Chiado: a presença da figura de negros, o “recurso a determinado fruto [os melões de Abrantes]
na construção de comparações”, a referência à taberneira Biscainha etc. (CAMÕES, 2007, p. 26).
Embora, ao final de seus comentários sobre o auto, a prudência do crítico leve-o a ressalvar que não
deseja “cair na tentação de ver no que pode não passar de mera coincidência matéria para atribuição de
autor a um determinado texto” (CAMÕES, 2007, p. 26), lembremo-nos que se a datação do auto proposta
pelo professor José Camões estiver correta, como pensamos estar, uma possível autoria de António
Ribeiro Chiado estaria completamente descartada, pois o autor de Natural Invenção, pelo que indicam
seus biógrafos, nasceu em 1520, sendo criança à época da escrita do Auto dos Escrivães do Pelourinho.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
113
Teófilo Braga, nos adendos finais de sua Eschola de Gil Vicente, já referidos, transcreve
um interessante excerto para o entendimento do contexto dos espaços e ações deste
auto, cuja fonte é uma descrição da Lisboa antiga, e que diz o seguinte:
Entrando na principal, que foi derribada por accasião da vinda de Phillipe III
a Portugal, entestava-se com a praça do Pelourinho Velho, onde se viam
sentados em suas mezas os doze Escrivães da cidade escrevendo cartas e
petições em serviço do povo. Facto assaz característico! Ninguém quase
sabia então ler. Menos ainda escrever. Cumpria que no interesse geral o
fizessem alguns empregados officiaes. (apud BRAGA, 1898, p. 542)4
O excerto citado por Braga, a partir de um contemporâneo do autor do auto, é
suficientemente eloqüente para dizer da atualidade do ofício dos escrivães do
Pelourinho e da utilidade de seu saber. José Camões, por sua vez, na Introdução aqui
referida, traz também uma série de depoimentos de contemporâneos (Damião de Góis
[1554], João Brandão de Buarcos [1552] e Cristóvão Rodrigues de Oliveira [1551]) que
comprovam a prática e utilidade da atividade dos escrivães do Pelourinho (CAMÕES,
2007, p. 20-22).5
3. Do farsesco e da estrutura do auto
Embora a rubrica inicial denomine o texto por Auto dos Escrivães do Pelourinho Velho,
não seria impróprio se a determinação do gênero textual fosse a de farsa.6 Estrutura,
4
Braga indica como fonte deste excerto a obra de Pedro da Costa de Sousa de Macedo (1821-1901),
Conde de Vila Franca do Campo, D. João I e a Aliança inglesa, de 1884, publicada pela Livraria Ferreira,
de Lisboa, p. 84, nota, em que este, por sua vez, cita Cristovão Rodrigues Acenheiro (1474-1538), autor
das Crônicas dos Senhores Reis de Portugal (1570?).
5
Da mesma forma, Jaime Cortesão, retratando as várias faces da Lisboa dos anos de 1500, também
apoiado na observação do quinhentista Damião de Góis, refere-se a esses profissionais e a seu lugar de
trabalho como algo único na Europa da época: “Era a Lisboa ardente e sequiosa, de escassos chafarizes, à
beira dos quais o povo e os escravos brigavam pela vez; dos açacais com seu asno e os quatro cântaros
engradados, apregoando a água pelas calçadas íngremes; e das mocinhas negras, quase nuas, que a
transportavam e serviam com as airosas quartas. Era a Lisboa honrada e mosteirosa dos mesteres
esquecidos – atafoneiros, regatões, gibeteiros, esparaveleiros e desses escrivães do Pelourinho Velho, que,
abancados às mesas, redigiam, ao sabor dos fregueses, cartas de amor, requerimentos, versos, discursos,
epitáfios -, ‘coisa que em parte alguma das cidades da Europa eu vi jamais’, diria o viajado Damião de
Góis” (CORTESÃO, 1922, p. 10).
6
Lembremo-nos, neste sentido, que o termo auto, na primeira metade dos Quinhentos, era denominação
geral para textos teatrais, não implicando caracterização de gêneros. De difícil e imprecisa definição, a
farsa é gênero teatral tipicamente medieval. Do latin farcire, pelo francês farce, farsa nomeava uma
massa condimentada para rechear e preencher pedaços de carne, daí o sentido teatral de uma pequena
encenação inserida no interior de uma peça séria (SPANG, 2000, p. 162 e ss.). Entendida e praticada,
assim, como uma pequena representação cômica feita para intercalar e distender momentos sérios de uma
Série Estudos Medievais 2: Fontes
114
personagens, linguagem, ações e temas desenvolvidos afirmam o caráter farsesco da
obra. O Auto dos Escrivães do Pelourinho é farsa de costumes, retratando pessoas e
práticas do cotidiano de uma cidade marcada pela efervescência comercial, em que a
comunicação por via da escrita começa ser um imperativo, daí muito provavelmente
essas personagens do cotidiano da cidade ganharem os olhares atentos daqueles que a
descrevem, estrangeiros ou nacionais, e também o espaço privilegiado das artes .
O auto, embora relativamente curto, divide-se em duas partes, em que interagem grupos
distintos de personagens. A primeira parte, composta de 240 versos, ocupa próximo de
um terço dos 774 versos totais. Divide-se, por sua vez, em três cenas de tamanho
desproporcionais (45, 135 e 60 versos, respectivamente), em que o caráter farsesco do
auto se impõe. Suas personagens são dois “patifes”, Duarte e Gonçalo, e dois Escrivães,
denominados simplesmente primeiro e segundo, para os quais aqueles patifes
trabalham. Na cena inicial, uma espécie de monólogo introdutório, Duarte reclama da
vida que leva, amaldiçoando aquele que o convenceu a trabalhar a serviço dos escrivães:
O diabo me tomou
ir eu viver com ninguém
não sei quem me enganou
que vivia muito bem
o demo me cativou.
Vivia à minha vontade
tinha vida muito boa
que só por minha maldade
era dos velhacos coroa
da Ribeira desta cidade. (ANÔNIMO, 2007, p. 105)7
A cena serve para configurar o caráter pouco honesto do “patife”. Vivendo de pequenos
roubos e enganos, Duarte havia sido contratado pelo escrivão para ajudar-lhe em seu
peça teatral, como uma espécie de entremez, a farsa ganhou independência e alcançou longa tradição nos
últimos séculos da Idade Média, chegando até os dias de hoje. A farsa, via de regra, está associada a um
teatro de cunho popular, feito para entreter, marcado pela brevidade e pela comicidade. Sua estrutura é
basicamente narrativa e feita para representação. Não raro, recorre ao grotesco, à caricatura, ao baixo
calão, ao obsceno. Suas personagens são em número reduzido e caracterizam-se por serem tipos
representantes de classes ou grupos sociais, sobre os quais recaem o riso e a crítica. Seus temas são
tirados da vida cotidiana, relacionados aos jogos e às desventuras amorosas; às relações de autoridade
entre senhores e criados, marido e mulher, pais e filhos; às pequenas transgressões sociais, de modo geral,
por práticas que dizem respeito ao ato sexual; enfim, busca-se sempre expor ao ridículo a miséria e a
pequenez do dia-a-dia dos seres sociais (MOISÉS, 1997; BERNARDES, 1996; SPANG, 2000).
7
Todas as citações do Auto dos Escrivães do Pelourinho serão feitas a partir desta edição, cujos dados
completos podem ser conferidos nas referências, ao final deste texto. A partir deste momento, somente
indicaremos o número da página da citação, entre parênteses.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
115
ofício. Todavia, logo se torna claro para que não nascera para o serviço, a que se soma o
mau trato que afirma receber do patrão.
Na cena seguinte, Gonçalo junta-se a Duarte, também recém contratado por outro
escrivão, e num diálogo um pouco mais extenso não desmentem o denominativo de
patifes que o auto lhes dá. Embora empregados, não abandonam as pequenas
contravenções, nem a busca de fórmulas para se safarem das mãos da justiça. O tema
inicial do diálogo dos dois é justamente a transferência da já famosa Feira da Ladra da
Ribeira para o Rossio. Duarte logo observa que a mudança lhes é favorável, pois no
Rossio está a igreja do Hospital de Todolos Santos, onde sempre que necessário
poderiam se refugiar das mãos de Francisco de Casal, “meirinho das cadeias de D.
Manuel e de D. João III” (CAMÕES, 2007, p. 108, nota), já que as igrejas, à época,
concediam imunidade àqueles que nelas se refugiassem. Em seguida, Gonçalo confessa
que vendeu a mesa que o patrão mandou-lhe levar até a Praça do Pelourinho e que
perdeu no jogo o dinheiro da venda. Isto dá azo a que os dois patrões tornem-se tema do
diálogo. Em realidade, os dois patifes começam a falar mal das esposas de seus amos,
centrando-se num dado em comum as duas, o beber descomedido:
Gonçalo: Minha ama é desesperada
não tem nenhua rezão
e mais mal-aventurada
pespegava-me punhada
que dava comigo no chão.
Duarte: A minha é arrezoada
ữa cara d’estorninho
seu beber é biscainho
a cada comer ữa canada
há de beber de bom vinho.
Gonçalo: Olhai com que me acude
tudo isso não é nada.
Falas-me nữa canada?
Pois a minha um almude
Bebe de cada assentada.
Duarte: O mundo vai-se perdendo
porque já não há molher
moça, velha e qualquer
já todas o vão bebendo
e o chupam no pichel.
Entam se lho vem beber
dizem qu’é por amor da madre
sabem já tanta maldade
que não se podem escrever
cousas desta qualidade.
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Doutra cousa me espanto
e é para espantar
velhas mortas por casar
que não podem com o manto
e querem-se desposar. (p. 110)
Impossível ouvir a fala despropositadamente moralista desses dois patifes a acusar suas
amas de velhas e amantes do vinho e não se lembrar de outra figura com essas
características e contemporânea delas, a Maria Parda, do Pranto de Maria Parda, de Gil
Vicente. A datação proposta pelo professor José Camões para o Auto dos Escrivães do
Pelourinho (entre 1515 e 1526, com maior probabilidade para 1520, 1523 e 1524) torna
os dois textos contemporâneos, pois a crítica vicentina aponta o ano de 1522 como data
mais provável da criação do Pranto de Maria Parda (MENDES, 1988). Assim como as
amas de nossos patifes (“ữa cara d’estorninho”), Maria Parda é descrita como uma velha
feia, amante do vinho:
Triste desdentada escura
quem me trouxe a tais mazelas?
Ó gengibas e arnelas
deitai babas de secura
[...]
Ó velhas amarguradas
que antre três sete canadas
saíamos de beber
agora tristes remoer
sete raivas apertadas. (VICENTE, 2002, vol. 2, p. 491 e 494)
Semelhante à ama de Duarte, cujo beber “é biscaínho”, a taberneira Biscaínha, famosa
na Lisboa da época, é a primeira pessoa a que Maria Parda recorre em busca do tão
desejado vinho. Ouçamos mais uma vez Maria Parda:
Pede fiada à Biscainha:
Ó senhora Biscainha
fiai-me canada e mea
ou me daí ữa candea
que se vai esta alma minha.
Acodi-me dolorida
que trago a madre caída
e çarra-se-m’o gorgomilo.
Enquanto posso engoli-lo
Socorrei-me minha vida. (VICENTE, 2002, vol. 2, p. 495)
Série Estudos Medievais 2: Fontes
117
Além de utilizarem medidas de vinho semelhantes, bebem em “canadas”, atente-se que
tanto a ama de Duarte como Maria Prada também recorrem ao mesmo argumento para
justificar o consumo do vinho, a saúde do útero (“dizem qu’é por amor da madre”; “que
trago a madre caída”).
Segunda a crítica vicentina, pode-se entender o Pranto de Maria Parda como uma
denúncia das agruras sofridas por Lisboa com as conseqüências das grandes secas de
1521 e da conseqüente fome que atingiu o reino no ano seguinte, 1522 (MENDES,
1988, p. 14 e ss.). As dificuldades produzidas pela seca e pela fome não estão no centro
do discurso dos patifes ao tratar de suas amas amantes do vinho, mas as ameaças de
perda do amor e a própria carência amorosa, que serão temas de quase todas as cenas da
segunda parte do auto, podem, sim, estar metaforizando aquela crise de escassez que no
Pranto de Maria Parda está no centro do texto e que motiva o pranto.
Por outro lado, há certa recriminação ao hábito da embriaguez desenvolvido por
mulheres implícita nos dois autos. Não encontramos justificativa nos textos para a
particularidade feminina de um hábito, via de regra, masculino. Talvez, estejamos frente
a uma nova e original expressão da tópica do “mundo às avessas”, recorrente na
tradição literária satírica do outono medieval, como nos ensinou Bakhtin (1993). Pelo
menos, é sobre um mundo em transformação, de cabeça para baixo, para que aponta o
trecho citado da fala de Duarte: “O mundo vai-se perdendo/ porque já não há molher/
moça, velha e qualquer/ já todas o vão bebendo/ e o chupam no pichel” (p. 110).
Na continuação da cena, enquanto os amos não chegam, os dois patifes começam a
jogar a dinheiro. A matemática enviesada e farsesca de ambos...
Gonçalo: Jogo pois que assi quereis
eis ali tenho catorze
e sete são vinte e três
eis ali tenho mais doze
e fazem trinta e seis.
Duarte: Eis ali tenho eu dez
dez e quatro são catorze
e onze são trinta e três. (p. 111)
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118
faz com que entrem numa disputa que parece ir às vias de fato. Ainda brigando, os dois
saem de cena. Em seguida, entram os dois escrivães, amos dos patifes. Constatando a
ausência desses e a perda de uma das mesas, dialogam sobre a pouco confiança que
podem depositar em seus ajudantes. Um deles, então, parte em busca dos criados e do
bem perdido. O outro fica e monta sua mesa de trabalho, o que dará início à segunda
parte do auto.
Esta primeira parte, portanto, acaba por funcionar como introdução ao auto e
apresentação do ofício de escrivão do Pelourinho e do contexto em que agiam.
Diferentemente do profissional que compõe a administração burocrática do reino, às
vezes diretamente ligada ao rei, acompanhando-o em suas viagens, outras vezes
associados a outros cargos administrativos do corpo burocrático real, os escrivães
personagens de nosso auto anônimo transitam por um mundo paralelo ao oficial,
servindo a outro tipo de público e desempenhando funções menos nobres. De onde, para
ciência do público, serem apresentados por meio desta introdução, que revela o
rebaixamento social do mundo que freqüentam, acompanhados por ajudantes “patifes”,
casados com mulheres de hábitos pouco ortodoxos, anunciando assim o caráter farsesco,
de mundo fora do lugar, do que será encenado em seguida. Da mesma forma, a
independência das cenas, a pouca exigência com a linearidade narrativa, os saltos, as
brechas, as aparições e saídas repentinas de personagens, tudo isso, de alguma forma,
compõe a agilidade e a graça deste teatro de estrutura medieval.
4. Os Escrivães do Pelourinho a serviço da retórica amorosa
A segunda parte do auto se constrói de modo bem distinto da primeira, a marcar pela
forma a mudança do assunto de que irá tratar. Ela é composta por sete pequenas cenas,
nas quais, em estrutura processional, desfilam sete personagens que dialogam e
contracenam com o escrivão que ficou na Praça do Pelourinho. Cada uma das cenas do
Auto dos Escrivães do Pelourinho repete uma mesma sintaxe cênica: a personagem
entra em cena a dizer das questões que a aflige, todas de alguma forma relacionadas ao
tema amoroso. A fala permite que sejam apresentadas ao público e que se revelem os
motivos que as levam a necessitar dos préstimos de um escritor ou leitor de cartas. No
Série Estudos Medievais 2: Fontes
119
lugar de textos burocráticos, ofícios, petições, demandas etc., nosso escrivão será um
redator de cartas de amor.
Em seguida, cada personagem dirige-se ao escrivão solicitando seus serviços.
Explicitadas suas necessidades e tendo o escrivão redigido o que lhe foi solicitado, lê-se
a carta, para que o público assim conheça seu conteúdo, e a personagem, após pagar o
vintém devido e agradecer o serviço prestado, sai de cena. Registre-se, antes de
avançarmos, que este esquema de cenas justapostas e independentes é característica
desse teatro medieval, particularmente recorrente em estruturas farsescas. Sua unidade
compõe-se pela repetição e pelo acúmulo, não pela disposição linear ou cronológica de
ações e personagens. Há, em realidade, um imperativo da justaposição em detrimento da
subordinação de acontecimentos e pessoas (RECKERT, 1983; MUNIZ, 2003).
As personagens são todas tipos, ou seja, representam, particularmente pela linguagem
que utilizam e também pelo conteúdo do que dizem, tipos sociais facilmente
reconhecíveis pelos espectadores. São elas: um negro, um moço d’escudeiro, um vilão,
uma velha, um atafoneiro, um ratinho e um parvo. Com exceção do moço d’escudeiro e
do parvo, todas as personagens sofrem de um mesmo mal: a falta, a distância ou
ausência da pessoa amada. Isto motiva o desvelar de uma retórica amorosa calcada na
tradição do amor cortês, vazada em falas repletas de fórmulas lírico-amorosas, e eivadas
de graça farsesca porque ditas por personagens postas socialmente abaixo da altura
exigida pelo tom elevado do discurso amoroso. O riso, portanto, constrói-se pelo
contraste da personagem com o discurso que utiliza, ou melhor, pelo rebaixamento a
que o discurso lírico-amoroso é submetido (BERGSON, 1987, p. 53 e ss.).
O primeiro a entrar em cena é Fronando (ou Fernão Capado, como ao final da cena irá
se nomear), negro apaixonado, cuja mulher foi-se com o rei para Évora, deixando-o
saudoso e temeroso que ela encontre novo “negro amor”. Já de início, Fronando revela
não só seu estado de amante saudoso, mas também sua condição de “negro da guiné”,
pelas marcas de seu português estropiado:
Ah cotado malo-banturado
cotado mi coração
como vioer tam penado
sempre doente nunca são
sempre mai martorizado.
Ai cotado que barei
Série Estudos Medievais 2: Fontes
120
nunca ter em mi prazer
por isso nunca bom ter
mujer que anda com rei
porque nunca poder ber. ( p. 114)
A coita amorosa produzida pela ausência de sua mulher resulta em lamento do amante,
vazado em tradicionais marcas da sintomatologia do sofrimento amoroso (a doença, o
martírio, a falta de prazer). Todavia, a aparente sinceridade do discurso não resiste à
inadequação da linguagem “da guiné” que o negro utiliza, resultando no riso dos
espectadores e, consequentemente, no rebaixamento do próprio discurso amoroso.
Na Lisboa do XVI, o negro africano, junto com judeus, mouros, genoveses, venezianos,
entre outros, confirmam a internacionalização da metrópole marítima. A presença desse
primeiro amante revela, assim, um presente histórico da Lisboa quinhentista das
navegações, no qual a figura do negro já é plenamente absorvido pelo corpo social. Ao
mesmo tempo, registra linguisticamente o estranhamento produzido pelo falar desse
novo habitante da capital do reino. Da junção desses dois elementos surge essa figura
ímpar do negro com “fala da guiné”.
Salvato Trigo, em estudo dedicado à figura do negro em Gil Vicente, no aspecto
lingüístico, afirma que não se pode falar nem em “crioulo” nem em “pidgim” na língua
com que se retrata esta personagem no teatro vicentino. O que há, diz o estudioso, é um
“estropiamento estrangeiro não marcado do português”, já que “as alterações fonéticas e
morfossintáticas, registadas como inerentes à ‘língua de preto’ ou à ‘fala da guiné’,
poderem ser imputadas a um qualquer falante estrangeiro de nossa língua” (TRIGO,
1981, p. 16). O mesmo se pode dizer da língua de Fronando. Sua ‘língua da guiné’ é
estratégica cênica para melhor caracterizar a personagem, recurso cômico para provocar
o riso da platéia, e, ainda, uso estilístico da língua como forma de rebaixamento do
estatuto amoroso de que se revestem as lamentações da personagem. Para tudo isso
contribui também a particularidade, única no auto, de sua carta para Caterina Rabular, a
amante ausente, embora escrita pelo escrivão do Pelourinho, ser redigida na ‘fala da
guiné’ da personagem, reafirmando os propósitos autorais de rebaixamento cômico de
discurso amoroso de Fronando, dito para uma platéia que certamente achava muita
graça nesta “fala literária” dos negros. Veja-se o que diz a carta:
Série Estudos Medievais 2: Fontes
121
Carta do Negro:
Siora
se bós querer matai, matai
porquê já? Porquê? Falai
por que nunca mio agora?
Quer mi lebar
à coba a enterrar?
Nunca querê sacreber
não querê mandar recado
parece que há de morrer
e assi desoporado
para nunca más a ber.
Não querê malo falar
senão que mandar dezer
qu’outro negro tomar
para coso deender
senão mi há de raivar.
Pôr: de boso sobridor
e amigo Fernão Capado
muito grão boso morado
ora ser, ora sior. (p. 116)
Recorrendo a marcas estilísticas e a temas tradicionais da expressão cortesã do amor – a
amada em posição superior, “Siora”, a seu vassalo, “de boso sobridor/ e amigo”, e na
posição altiva de dame sans merci, “se bos querer matai, matai [...] quer me lebar/ à
coba enterrar?” –, a carta repete em suas lamentações algumas das causas e dos
sintomas tradicionais dessa “coita amorosa”, o não ver a amada, o morrer, o desesperarse, o dizer mal, o enraivecer, e o medo de ser trocado por outro amante – “qu’outro
negro não tomar”. A bela retórica, todavia, está de antemão desconstruída por sua “fala
da guiné”. O contraste, sabe-o bem nosso Anônimo, intensifica o caráter cômico da
personagem.
Considere-se ainda que, tendo em vista a data provável de sua criação (entre 1515 e
1526), o Auto dos Escrivães do Pelourinho é prova cabal da entrada e popularização
dessa personagem e de sua “língua literária” no sistema cultural do Portugal do
quinhentos. Junto com a Negra d’A lamentação do clérigo, de Anrique da Mota,
publicada no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, em 1516, e com o Negro de
Frágua de amor, de Gil Vicente, de 1525, Fronando é mais uma testemunha da
percepção dos homens de teatro da popularidade dessa personagem tipo, confirmando a
importância do papel social que desempenha nesse Portugal imerso no mundo por via
das Navegações e Descobertas.
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122
Observemos um último dado relativo à presença de Fronando no Auto dos Escrivães do
Pelourinho, agora em diálogo com o negro de Frágua de Amor, de Gil Vicente. Para
além da similitude dos nomes, Fronando e Furunando, atente-se para o lugar
privilegiado que os dois autores, o Anônimo e Vicente, concedem aos negros. No
desfile de personagens que vão em busca dos serviços do escrivão e dos préstimos
possibilitados pela frágua de amor, estrutura que também aproxima os dois autos,
vemos os negros assumirem a posição de frente no desfile, a revelar sua intimidade com
o público que facilmente os reconhece (em cena, pela provável pintura da pele de um
ator branco ou pela não completamente descartada possibilidade da presença de um ator
negro; no texto, pelo recurso à “língua da guiné”) e a consciência autoral de que o
contraste social e linguístico possibilitado pela personagem é caminho certamente mais
rápido para a construção do riso farsesco.
Retomando o Auto dos Escrivães do Pelourinho, nas cenas a seguir à de Fronando, três
personagens tipos, habitantes costumeiros da farsa quinhentista, vão também buscar os
préstimos de nosso escrivão. Primeiro, um moço de escudeiro que reclama da pobreza
de seu amo e da miséria em que vive:
Não pode maior mal ser
que ser moço d’escudeiro
que nunca tendes dinheiro
nem menos bem de comer.
Enfim qu’é vida de marteiro. (p. 117)
Na linha de Apariço, moço de Aires Rosado, escudeiro de Quem tem farelos?, e
Fernando, moço do Escudeiro que vai ao Juiz da Beira, na farsa homônima, reclamar
que o serviçal já não lhe quer mais servir, para ficarmos apenas com exemplos
vicentinos e contemporâneos a nosso auto anônimo, este Moço d’escudeiro diz da
atualidade no século XVI português desta personagem tipo, o escudeiro pobre, que já as
cantigas trovadorescas galego-portuguesas satirizavam. Na economia do Auto dos
Escrivães do Pelourinho, o escudeiro é personagem ausente do palco, mas é para e
contra ele a sátira que se encena. O percurso da sátira é original, possibilidade pela
singularidade temática do auto. Desejoso de conseguir “um muito fino vestido” que lhe
Série Estudos Medievais 2: Fontes
123
prometera seu senhor8, que “anda d’amores/ c’uma filha da sardinheira/ que agora é
tripeira” (repare-se no rebaixamento das figuras dos amantes), o Moço vai ao escrivão e
solicita-lhe que redija uma falsa carta da filha da sardinheira para seu senhor. Ao custo
do um vintém cobrado pelo escrivão, garante o ganho do vestido e mantém satisfeito
seu amo, inclusive para novos enganos.
Em seguida, com a saída do Moço d’escudeiro, entra em cena um Vilão, João Lourenço.
Tendo vindo à corte para resolver uma querela com um cunhado sobre suas terras,
estranha que sua mulher, que “tem mui bom rosto” (p. 121), não lhe tenha escrito uma
só linha nos três meses em que está longe de sua vila. Embora na carta que dita ao
escrivão considere a hipótese de a mulher sofrer das mesmas dificuldades que o levam a
recorrer aos serviços de um profissional da escrita – “quiçais não tereis papel/ ou o não
sabereis fazer” (p. 122) –, o que o motiva a escrever é temor semelhante ao do negro
Fronando, ou seja, que sua bela mulher tenha encontrado um amor novo: “Não me
parece a mim/ isso bem, a bem falar/ ela carta não mandar/ amorio novo anda por i/ não
posso menos cuidar” (p. 120). Se alguma dúvida paira sobre as motivações do Vilão
para escrever à mulher, o final de sua carta é eloqüente: “não quero mais escrever/ senão
que Deos vos dê bem/ e vos livre de bem querer” (p. 122).
Em contraste com essas vozes masculinas, temerosas da fidelidade de suas amadas, e na
antípoda da beleza que faz sofrer Fronando e João Lourenço, entra em cena uma Velha,
Ana Afonso. Ocupando lugar central no desfile daqueles que vão em busca dos serviços
dos escrivães do Pelourinho – quarta personagem entre sete, ainda que com a menor
cena dentre todas cujo tema é o amor9 –, única voz de mulher no meio do vozerio
masculino, a fala de Ana Afonso impõe-se pela diferença entre diferentes. Seus
propósitos, todavia, estão alinhados aos das outras personagens. Ela também busca seu
par amoroso:
8
No Juiz da Beira, o primeiro elemento de queixa que o Escudeiro faz ao representante da lei contra seu
serviçal envolve também o vestir. Diz o Escudeiro ao Juiz: “Ora pois que se quer ir [o moço]/ sem
pancada nem arroído/ muito farto e conhecido/ dei-lhe agora de vestir./ Torne-me cá o meu vestido/ e
mais lançou-me a perder/ ua cama em que jazia/ ele mesmo até o meo dia/ boa e de receber”(VICENTE,
2002, vol. 2, p. 307-308).
9
As sete cenas da segunda parte do Auto, cada uma ocupada por personagem que contracena com o
escrivão do Pelourinho, têm os seguintes tamanhos, em ordem de entrada em cena: a do Negro, 78 versos;
a do Moço d’escudeiro, 102; a do Vilão, 82; a da Velha, 56; a do Atafoneiro, 63; a do Ratinho, 106; a do
Parvo, 47. Como dissemos no início desses comentários, a cena final, do Parvo, tem propósitos diferentes
das que lhe antecedem, e funciona mais para realçar a circularidade e unidade do Auto, como se verá.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
124
Eu tenho bom parecer
e tenho boas feições
me desejam todos ver
e não posso tam velha ser
como foram as paixões.
[...]
Ua carta quero mandar
a um homem de prazer
hei-lha mui bem de notar
que se há de espantar
verei que me manda dizer. (p. 114)
A velha que não cede ao discurso da discrição exigida pela idade e que diz de seus
desejos, reafirmados no auto-elogio e na vontade expressa de um novo amor, é
personagem tipo tradicional, alvo da sátira literária desde há muito (CORRAL DÍAZ,
1993). Desejosa de casar (o verbo ‘casar’ e seus derivados repetem-se por três vezes ao
longo dos 15 versos da carta), declarando-se prenhe do destinatário da carta que manda
escrever, dizendo-se ‘esperdiçada’ (desperdiçada) pelo amante, Ana Afonso enquadrase com perfeição no tipo que encena. A objetividade com que anuncia seus propósitos
amorosos e a confiança que demonstra ter em suas qualidades físicas, de beleza e
juventude – “agora não me chegaram/ mocezinhas de quinze anos” (p. 123) –, resulta,
no entanto, ridículo e risível na fala da Velha. Mais uma vez, o discurso amoroso, que
deveria sustentar as pretensões da amante, constrói-se num contexto farsesco, em que a
inadequação às exigências do código amoroso daquele que o emite acaba por
desconstruir o próprio discurso, tornando-o alvo do riso satírico.
Um Atafoneiro (moleiro) é o quinto cliente de nosso escrivão. Desconhecemos esta
figura como personagem tipo no teatro português. A profissão liga-se a arte de moer
grãos, por meio de uma atafona, pequeno engenho movido à força animal ou humana.10
Todavia, a presença de Afonso Gil, nome do atafoneiro, no auto não se liga em nada a
sua profissão. Como o negro Fronando, Afonso Gil vê sua amada, uma padeira, ir-se
para Évora, acompanhando a comitiva real:
10
A Lisboa do século XVI conheceu grande número de atafonas, sendo prova disto o fato de haver
registro de um Regimento dos Atafoneiros na coleção de regimentos de Duarte Nunes de Leão, de 1572.
Cf. verbete “Atafoneiro”, Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Lisboa: Editorial Enciclopédia,
1945, vol. 3, p. 612.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
125
Esta ida del rei para Évora
me deu mui grande canseira
porque se ele não fora
estivera aqui agora
minha senhora padeira.
Que agora vivo penado
penado com afeição
penado meu coração
pois o amor tam chegado
se foi por me dar paixão. (p. 124-125)
Se nada ficamos sabendo sobre a profissão do Atafoneiro, seu lamento amoroso diz-nos
muito sobre as conseqüências para a capital do reino dos deslocamentos dos reis para
outras localidades. As andanças dos monarcas pelas diversas cidades de seu reino, via
de regra, são tratadas pela historiografia histórica e literária a partir da perspectiva da
cidade que recebe a comitiva real, por meia das festas denominadas Entradas. Sabe-se
que tais festas eram verdadeiros espetáculos públicos, partícipes da retórica do poder,
por meio dos quais os governantes locais, as corporações de ofícios e o geral da
população buscavam assegurar e ampliar os privilégios das cidades e vilas, e resolver
todas as querelas jurídicas pendentes, aproveitando-se da presença física e burocrática
da figura que corporificava a justiça, o monarca (CARDIM, 2001).
Em nosso Auto dos Escrivães do Pelourinho, é o reverso dessa moeda que parece
importar. Dois de nossos sofridos amantes, o negro Fronando e o atafoneiro Afonso Gil,
atribuem à viagem do monarca a Évora a causa de seus males, “esta ida del rei para
Évora/me deu mui grande canseira”, diz o atafoneiro.11 A repetição da causa, em cenas
distintas, poderá ser entendida como expressão metonímica das dificuldades porque
passava a capital com a ausência do monarca e de sua corte. Embora os prejuízos
pudessem ser também da ordem do pessoal, provocando dissensões amorosas pelo
afastamento obrigado de alguns casais, certamente estavam no campo do econômico e
do político os maiores prejuízos para a cidade e seus habitantes. Nossos escrivães do
pelourinho, em suas duplas funções de burocratas e mediadores das relações pessoais,
são personagens privilegiadas na construção de uma possível denúncia dessa
desconfortável situação da capital do reino.
11
O editor do Auto dos Escrivães do Pelourinho informa em nota, na p. 124, os anos em que D. Manuel I
e D. João III estiveram em Évora, saindo da capital do reino: 1509, 1513, 1520, 1523, 1524, 1525, 1533,
1535, 1537.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
126
O último dos amantes a buscar os serviços de nossos escrivães é um ratinho (um criado
beirão) de nome Gonçalo. Assim como os outros, ele também tem sua amada distante, o
que lhe causa tristeza e sofrimento. Um dado novo, todavia, particulariza sua história.
Gonçalo entra em cena em busca de leitor para uma carta recebida, que ele suspeita
traga o anúncio de sua desgraça: “Quero-te ir dar a ler/ tu serás o meu perigo/ nisso não
há o que fazer” (p. 128). A novidade atualiza a função de nossos escrivães, agora
também necessários para a leitura da carta recebida. Paralelamente, a cena se renova,
surpreendendo o espectador que esperava a repetição do modelo utilizado até o
momento.
A expressão do amor do Ratinho, construído em “sospirar” e “penar”, dá-se em
fórmulas da retórica amorosa comum aos poemas dos cancioneiros peninsulares.
Amante discreto, ele assegura: “de ninguém é conhecido/ meu mal e minhas dores” (p.
128). O inusitado da carta recebida lhe desperta temor de seu conteúdo, por isso ele
parece relutar em dá-la a ler. Vencida a resistência e lida a carta pelo escrivão, Gonçalo
desespera-se ao ouvir de sua amiga Catalina um pedido para que a socorra, pois ela está
sendo obrigada a casar-se. Sem saber bem ou sem ter o que fazer, resta a Gonçalo rogar
à namorada, na carta que lhe redige o escrivão, que resista ao casamento que lhe
impingem: “Eu vos mando encomendar/ que não caseis lá com ninguém/ e assi vo-lo
mando rogar/ porque vós sois o meu bem” (p. 130). A ingenuidade do pedido
certamente provoca o riso do espectador, que tem a oportunidade de confrontá-la com a
retórica amorosa, algo inflamada, das primeiras falas do Ratinho. Mais uma vez, no
descompasso entre o que se diz e a baixa estatura social daquele que diz o riso farsesco
se instaura. Porém, a cena não deixa de surpreender, pela inovação da carta trazida para
leitura, e emocionar, pela simplicidade com que reveste o amor de Gonçalo.
5. Unidade pela circularidade
A cena final, como já se disse, ainda que mantenha a estrutura do desfile que caracteriza
a segunda parte do auto, com a entrada da personagem do Parvo e seu diálogo com o
Escrivão do Pelourinho, não está ligada tematicamente às cenas anteriores. O Parvo não
deseja nem busca um amor. Suas ambições são maiores e, por isso mesmo, mais
Série Estudos Medievais 2: Fontes
127
invocadora do riso. Canta ele ao entrar: “Ai damalo ai damalo/ quem me dera um
condado” (p. 131).
Na improbabilidade do “condado”, o Escrivão oferta-lhe o lugar de ajudante do antigo
criado, o “patife” Duarte. O Parvo, antes de aceitar, assegura-se de que terá “[...] vinho a
beber// e cama para dormir/ e lume para [se] aquentar/ e pano para vestir” (p. 131).
Tudo lhe é assegurado pelo Escrivão. Contudo, um pedido final do Parvo vira de ponta
a cabeça este mundo que parece se acomodar definitivamente às letras escritas. Diz o
Parvo: “Não me heis d’ ensinar a ler/ porque logo chorarei/ e se não não quero ser” (p.
131). Esta exigência chorosa do Parvo, é claro, faz estalar o riso, agora não tanto por
quem o diz, mas, sim, pelo contexto em que se diz. No Auto dos Escrivães do
Pelourinho, que registra e comprova o importante espaço que a cultura letrada começa a
ocupar nas sociedades modernas e burocráticas, alcançando os estratos mais baixos da
população, como o comprovam todas as personagens que desfilaram na cena teatral, é
certamente motivo do riso franco a recusa birrenta do Parvo em aprender a ler.
Por outro lado, a exigência do Parvo deveria provocar a recusa por parte do Escrivão,
mas não é isso que acontece. O Escrivão aceita o exigido e ainda afirma ser “disto muito
contente” (p. 132). Num mundo de ponta a cabeça, a farsa encontra seu lugar de
unidade. As experiências vividas pelos Escrivães com os dois patifes, que os leva a
afirmações categóricas, como “Confiais lá em rapazes/ e vereis onde ireis ter” (p. 112)
ou “Nunca mais me hei de fiar/ em moço que eu tiver” (p. 113), não se caracterizam na
farsa necessariamente como elemento de aprendizagem cumulativa. Seu funcionamento
é de ordem mais presente, mais realista, servem como desencadeadora do riso. De onde
sua repetição sugerir a unidade circular com que se fecha, ou se volta a abrir, o Auto dos
Escrivães do Pelourinho.
Por fim, saímos de sua leitura com a mesma sensação ou sentimento com que
provavelmente deixavam as praças àqueles que a viram encenada, felizes com o riso que
as diversas cenas e personagens provocaram, lembrando de uma ou outra fala e ação de
que mais gostamos ou com que mais nos sensibilizamos, repetindo com um sorriso uma
ou mais das fórmulas de confissão lírico-amorosa utilizadas pelas personagens.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
128
A ausência de uma história linear, de uma narrativa cronologicamente arquitetada, de
um princípio, meio e fim, em nada compromete o prazer da leitura e, imaginamos,
menos ainda, o de ter assistido a representação. Nesse sentido, este teatro, distante
cronologicamente daquilo que consideramos como Idade Média, confirma a
inventividade do teatro medieval e a permanência da tradição criada por seus autores e
textos. Ao mesmo tempo, a constância com que na leitura do Auto dos Escrivães do
Pelourinho as personagens, estruturas, ações, linguagem e sintaxe teatral desenvolvida
por Gil Vicente em suas obras vêm a nossa lembrança, não deixa dúvida que seu teatro
pode não ter sido fonte necessária deste Anônimo, mas foi com certeza um excelente
elemento de transmissão daquela tradição medieval.
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Série Estudos Medievais 2: Fontes
131
O poligrafismo do Codex Calixtinus.
Seu contributo à história do teatro medieval1
Maria do Amparo Tavares Maleval
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)
Resumo: O Liber Sancti Jacobi (Livro de São Tiago) escrito no século XII, cujo exemplar mais
completo, pertença da catedral compostelana, é conhecido como Codex Calixtinus (Códice
Calistino) por atribuir-se a sua autoria ao papa Calisto II, constitui uma das maiores expressões
da Era Compostelana, época de máximo esplendor jacobeu graças à atuação políticoadministrativa do primeiro arcebispo de Santiago de Compostela, Diego Xelmírez. Trata-se de
um importantíssimo documento-monumento histórico, literário, litúrgico, musical, etc., que, em
sua preciosa recolha de ofícios religiosos diversos em honra do Apóstolo, ilustra fartamente
elementos indicadores das origens do teatro ocidental, como conductos, prosas, responsórios,
antífonas e farsas (isto é, missas ‘representadas’).
Palavras-chave: Códice Calistino; Teatro; Religião; Era Compostelana
Abstract: The most complete copy of the Liber Sancti Jacobi (Book of St. James), written in the
12th century, which belongs to the Cathedral of Compostela, is known as Codex Calixtinus
(Callixtinian Codex), because its authorship was attributed to the pope Callixtus II. It can be
considered one of the major expressions of the Compostelan Age, when the major splendor of
St. James cult was achieved, thanks to the political administrative action of the first archbishop
of Santiago de Compostela, Diego Xelmírez. It is a very important literary, liturgical and
musical document-monument, because of its precious collection of various religious offices in
honor of the Apostle, which richly illustrates indicative elements of occidental theater origins,
such as conducts, proses, responsorials, antiphons and farces (that is, ‘role played’ masses).
Keywords: Callixtinian Codex; Theater; Religion; Compostelan Age.
1. Introdução
Os estudiosos que têm se dedicado à história do teatro medieval na Península Ibérica
enfrentam, de saída, um grande obstáculo: a quase total ausência de documentos que
comprovem a sua existência, cuja exceção seria, em língua vernácula, o Auto de los
Reyes Magos, manuscrito em castelhano de fins do século XII.
1
Esse texto reproduz, com pequenas variações, conferência apresentada no 8º Congresso da AIEG,
realizado na UFBA, de 12 a 15 de setembro de 2006.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
132
Importa salientar a estreita ligação das origens do teatro2 no Ocidente com as práticas
religiosas, tal como ocorrera em outras civilizações, como por exemplo a da Grécia
antiga. A esse respeito já se pronunciara, dentre outros, Javier Huerta Calvo (1984, p.
14), nos seguintes termos:
Durante toda la Edad Media, en efecto, la Iglesia abrió las puertas de sus
templos a la ceremonia del teatro, confundida a menudo con el rito y oficio
litúrgicos, practicados por unos actores, los sacerdotes, dirigiéndose a una
colectividad que pasaba buena parte de su vida ociosa en el interior de los
templos, convertidos en ciertas épocas del año en lugares de libre y loca
diversión.
Desta forma, o especialista não somente destaca a relação das origens do teatro com os
ritos e ofícios litúrgicos, tendo como atores os sacerdotes, mas também que a Igreja
propiciaria, ao lado dessa dramaturgia ‘séria’, a eclosão de um teatro carnavalesco,
tradição que seria largamente cultivada no “teatro populista del siglo XVI” (HUERTA
CALVO, 1984: 14).
Pretendemos destacar a importância documental do Líber Santi Jacobi, ou Codex
Calixtinus, para a comprovação do caráter dramatizado dos ofícios e ritos religiosos
desenvolvidos na basílica de Santiago de Compostela no século XII. Esquecida pelos
estudiosos da história do teatro na Península Ibérica (e não só), essa obra é um
importantíssimo documento-monumento histórico, literário, litúrgico, musical... Escrita
em latim, provavelmente entre os anos 1160-1170, contém matéria de várias
procedências, embora a sua autoria moral seja imputada ao Papa Calisto II (1119-1124).
Seu exemplar mais completo se encontra no Arquivo da Catedral de Santiago, elaborado
em fino couro de vitela (CASARES RODICIO, 1999, p. 24), cuidadosamente copiado e
primorosamente ornamentado com belas capitulares e outras iluminuras.
Das cinco partes ou Livros, mais Apêndice, em que o Codex está dividido, interessa-nos
sobretudo a primeira, que apresenta ofícios litúrgicos específicos para as várias festas
em louvor a São Tiago, contendo lições e peças para serem recitadas e/ou cantadas.3
2
Entenda-se por teatro, de acordo com Mário Martins, tradutor de Donovan, “uma história representada
em ação, por actores que fazem o papel das respectivas personagens” (MARTINS, 1969: 12).
3
O segundo livro reúne 22 milagres do Apóstolo, considerados autênticos pela Igreja; o terceiro trata da
trasladação do corpo apostólico da Palestina para a Galiza; o quarto, também chamado de Pseudo Turpin
(uma vez que falsamente atribuído ao Arcebispo de Reims – 748-794), compõe-se de lendas relacionadas
a Carlos Magno e à sua “cruzada” para libertação dos Caminhos jacobeus; e o quinto é um Guia medieval
Série Estudos Medievais 2: Fontes
133
Reúne um significativo número de composições monódicas para as diferentes partes da
missa e numerosos conductus, prosas, farsas, etc. A estas se acrescentam, no Apêndice,
além de outros textos, várias peças musicais de caráter litúrgico e processional,
inclusive milagres jacobeus, em que o erudito e o popular interagem. Trata-se de um
documento de extrema importância, por registrar de forma completa exemplos da
música polifônica em seus primórdios, encontrando-se entre essas composições o
conductus Congaudeant Catholici, considerado a mais antiga peça a três vozes que se
conhece.4
Antes de nos atermos ao nosso propósito central – tal seja, observar as células
dramáticas existentes nos ofícios jacobeus –, achamos conveniente nos reportar, em
breve síntese, ao teatro medieval, suas espécies e características.
2. O teatro medieval
Primeiramente, acentuaríamos que não é de se estranhar o fato de as manifestações
teatrais ocorrerem à roda dos templos e Mosteiros, num período − a Idade Média − em
que a Igreja, além de ser grande proprietária de terras, era a detentora do monopólio do
ensino e mesmo da justiça, subordinada ao Direito Canônico. O quotidiano por ela se
norteava, uma vez que o calendário, as festas e as horas se relacionavam com a liturgia;
e as obras artísticas e/ou literárias eram religiosas ou de forte apelo religioso.
No interior dos templos, bem como nas procissões, eram feitas representações
relacionadas aos principais ciclos religiosos − o natalino e o pascoalino −,
desenvolvidas a partir dos tropos do rito romano, isto é, de pequenas recitações ou
diálogos entre os oficiantes do culto e o coro, inseridos na liturgia da missa. A
gestualística ritual, bem como a mistura de música e palavras no culto, aliadas à
intenção didática, de conversão dos fiéis, propiciariam o nascimento desse teatro, sendo
que, como frisa Henrique Harguindey Banet (1999, p. 7), nessa época de nascimento
do peregrino (possivelmente da co-autoria do chanceler Aimeric Picaud), que descreve o Caminho, a
cidade, a basílica, os costumes dos peregrinos, etc.
4
Desta forma, indica ter sido a Escola musical de Santiago juntamente com a de Limoges as duas grandes
expressões da polifonia no século XII, encontrando-se a escola compostelana a meio caminho entre a
escola limosina e os avanços posteriores da de Notre Dame da Paris.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
134
das línguas românicas as reuniões de cunho profano seriam menos abundantes que as
religiosas, como missas, festas de santos padroeiros, peregrinações, etc.
Essas representações incipientes evoluiriam para a encenação de episódios da Paixão
e/ou de outras passagens dos Evangelhos e do Antigo Testamento; e, com o aumento
dos elementos profanos e ao se tornar mais complexo o aparato cênico, passariam a se
realizar no adro. Nos pátios aconteceriam também dramatizações profanas, ligadas ao
cômico popular, proibidas por Concílios e Constituições sinodais de serem realizadas
nos recessos dos templos. Daí se estenderiam aos burgos, aos mercados e feiras, bem
como às cortes reais e senhoriais − enfim, aos lugares de reunião do homem medievo.
Na França do século XII, centro cultural hegemônico, à tradição já existente dos dramas
litúrgicos em língua latina se acrescentariam os paralitúrgicos em língua romance, que
daí se disseminariam geográfica e lingüisticamente. Na Península Ibérica, a ritualística
hispano-moçárabe que aí vigorara e da qual não se documentam dramas teria sido
inibidora da prática do teatro. Com a sua substituição pelo rito franco-romano, praticado
pela iniciativa beneditina desde o século IX na Europa, mas penetrando em solo
hispânico mais tardiamente, à exceção da Catalunha, não houve neste uma imediata
eclosão do gênero dramático, uma vez que foi podado pela ideologia cluniacense,
avessa a tudo que pudesse perturbar a seriedade do culto.5
O Auto de los Reyes Magos, do século XII, já citado, apareceria como exceção. Como o
Jeu d’Adam francês, não se originaria de fontes exclusivamente litúrgicas; expressa, nos
monólogos dos reis magos, o assombro de cada um deles diante da nova estrela e o
pequeno conflito interior ingenuamente dramatizado, como observa Francisco Ruiz
Ramón, “entre la duda de la razón y el impulso del corazón” (RUIZ RAMÓN, 2000, p.
25).6
5
Lembremos, a propósito, a síntese de Laura Tato Fontaiña (1999, p. 9): “O rito franco-romano,
estendido polos Benedictinos entre os séculos IX e X por Europa, chega na Península moi tardiamente, e
entra na man da orde Cluniacense, contraria á celebración de representacións dramáticas. Este atraso
na renovación da liturxia e a resistencia dos seus portadores a permitiren as dramatizacións (os
cluniacenses instaláronse en Galiza no século XII) explican a ausencia de textos dramáticos nunha
cultura que contaba cunha das líricas máis refinada e culta do mundo occidental”.
6
Esse auto é composto por monólogos sucessivos de Gaspar, Baltasar e Melchior, um diálogo entre eles,
outro entre eles e Herodes, um monólogo deste e mais um seu diálogo com um sábio e um rabi,
finalizando o texto.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
135
Centralizando a nossa atenção na parte ocidental da Península Ibérica, portanto em
Portugal e Galiza, vemos que, a exemplo do que sucedera nos demais reinos ibéricos
(menos a Catalunha), a tardia penetração da ritualística franco-romana estaria na base da
escassez das representações litúrgicas. A documentação a elas concernente costuma ser
apontada como restrita à antífona pastoral Quem vidistis, relacionada com o ciclo
natalino7 e encontrada pela musicóloga francesa Solange Corbin num breviário de
século XIV, procedente do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra.
Mas aos poucos ocorreria nos cultos o afrouxamento da austeridade proposta por
cluniacenses e cistercienses. Em Portugal, no século XV, são documentadas encenações
ligadas à procissão de Corpus Christi em Alcobaça; e em Caldas da Rainha, 1504, Gil
Vicente representaria o Auto de São Martinho, encomendado pela Rainha D. Leonor
para a ocasião.
Em meados do século XVI, as lamentações e o luto nessas procissões contribuíam para
a revivescência do drama da Paixão. Desta época é também um texto dramático: uma
‘prosa’ sobre a Ressurreição, na qual dialogam em latim Maria e os Anjos sobre Cristo
ressurgido, com comentários introdutório e conclusivo do coro.8 Faz parte de um
devocionário manuscrito, em letra renascentista de meados do século XVI, como
observa Mário Martins (1969, p. 27); ainda segundo este, muito se assemelha à versão
cantada de Gerona, embora esta não apresente as rubricas dramáticas, indicativas das
falas dos personagens; e também em Saragoça encontramos outra versão, impressa em
1485, o que dá provas da sua tradicionalidade.
Valeria lembrar, como textos precursores, além de algumas cantigas dialogadas dos
trovadores, as laudes e cantigas espirituais de Mestre André Dias de 1435: as
composições desse monge beneditino, como os cantares trovadorescos, se aliavam ao
canto, à dança e ao acompanhamento musical, com serem, antes de tudo, inspiradas e
poéticas orações. Constituiriam, na conclusão de Mário Martins, “um meio caminho
entre a simples descrição romanceada e o teatro” (MARTINS, 1951, p. 138); ou,
segundo Luís Francisco Rebello, a transição da poesia lírica para a dramática
(REBELLO, 1972, p. 22). Seriam também “poemas para vozes”, para usarmos a
7
8
Cf., a propósito, “O teatro litúrgico na Idade Média peninsular” (MARTINS, 1969, v. I, 23).
Cf. transcrição e tradução feita por Mário Martins (MARTINS, 1969, v. I: 27-33).
Série Estudos Medievais 2: Fontes
136
denominação atribuída por João Cabral de Melo Neto a alguns de seus poemas
dramáticos, inclusive Morte e vida severina, inscrevendo-se esse autor brasileiro do
século XX, dessa forma, conscientemente, em uma encruzilhada de gêneros semelhante
à do Mestre beneditino.
Não conheço, se é que existe, nenhuma história do teatro ibérico que faça referência ao
Codex Calixtinus como possível fonte para essas especulações sobre as origens do
teatro, muito embora Santiago de Compostela fosse no século XII o centro mais
importante de peregrinação da cristandade e aí se reconheçam registros de uma
elementar Visitatio Sepulchri (MARTINS, 1969, p. 18). A isto voltaremos.
Por agora, revisemos as diversas espécies dramáticas compreendidas na denominação
genérica de “Auto”, correspondente a Jeu, na França, a começar pelo teatro religioso,
sem esquecer que na Idade Média freqüentemente ocorria o imbricamento dos gêneros
sacros e profanos. Originados da França, no século XII, os mistérios limitavam-se
inicialmente a pequenos quadros de passagens bíblicas; mas, a partir do século XIV, já
compreenderiam encenações de vulto, as quais, buscando o realismo, contavam com
numerosos figurantes e extensos textos de muitos episódios, ligados aos Evangelhos e
às prefigurações messiânicas do Antigo Testamento. As moralidades, com finalidades
mais explicitamente educativas, surgem nessa época, colocando em cena tipos
psicológicos ou alegorias críticas, que personificavam abstrações como vícios e
virtudes. E os milagres, originados a par dos mistérios no século XII, encenavam
situações-limite da vida dos santos e suas intervenções miraculosas, nas quais se
incluiria com destaque a intermediação de Maria. Essas peças seriam representadas não
por atores profissionais, mas por membros de confrarias estáveis, da mesma forma que
as peças profanas.9
9
Vale lembrar, com Henrique Harguindey Banet: “o vencello destas confrarías e deste teatro coa
inversión da orde establecida, a liberdade total e o destronamento dos valores dominantes que se dá na
festa carnavalesca e demais celebracións análogas que tienen lugar dende o comezo da Idade Média,
como puxo bem en relevo Mihail Bahtín. O Entroido, a Festa dos Tolos, a Festa do Burro, a de Maio e
outras dan orixe a manifestacións parateatrais que parodian as cerimonias e as expresións relixiosas
(misas, sermóns, milagres de santos...), a vida administrativa e xurídica (ordenamentos reais, cartas e
privilexios, testamentos...), os xéneros literarios (cancións de xesta e epopeas convertidas en batallas entre
o Carnaval e a Coresma), os prognósticos astrolóxicos, etc. (HARGUINDEY BANET, 1999, p. 11).
Série Estudos Medievais 2: Fontes
137
Quanto a estas, desenvolvidas de forma notável em Arras, importante centro urbano
impulsionado pela indústria têxtil, alcançarão seu apogeu também na França, na
segunda metade do século XV, após terminada a Guerra dos Cem Anos (1337-1453),
que muito teria prejudicado a evolução do teatro (HARGUINDEY BANET, 1999, p.
10). O século XV é, aliás, também o século das grandes Paixões, que necessitavam de
vários dias para serem representadas.
Contavam-se entre as espécies profanas: as farsas, geralmente satíricas, caricaturais,
que foram o gênero mais popular do teatro cômico medieval, constituindo inicialmente
uma breve representação intercalada no drama litúrgico, para distensão do público.
Chamavam-se sotties uma sua modalidade carnavalizada, paródica, que colocava em
cena bufões, galanteadores, peregrinos e parvos, interpretados por confrarias de bufões,
aos quais se permitia uma crítica mais aberta e acirrada. Os sermões burlescos10 eram
monólogos enunciados por atores travestidos de frades, nos quais se parodiavam
elementos do culto religioso, como sermões, orações, ladainhas, hinos, etc. Existiam
ainda outros monólogos dramáticos, representados por um único ator, ridicularizando
tipos sociais. Em Portugal, registrou-se o termo arremedilho, relacionado ao espetáculo
proporcionado pelo “remedador”, termo através do qual era chamado, no tempo de
Afonso X de Leão e Castela, o jogral ou bufão que juntava a declamação à mímica.11
Aliás, o documento mais antigo relacionado à existência de dramatizações anteriores a
Gil Vicente em Portugal concerne a uma doação de terras feita por Sancho I aos bufões
Bonamis e Acompaniado, em troca de um “arremedilho”.12
10
Teria sua origem nas paródias religiosas da Festa dos Tolos, assim como as sotties.
O cognato “arremedação” ampliou-se semanticamente, tornando-se sinônimo de representação ou
comédia, significado que perduraria até o século XVI.
12
Lembramos que, já mais para o fim da Idade Média, na transição para o Renascimento, às espécies
dramáticas arroladas acima se acrescentariam os momos e entremezes, destinados à distração da corte,
cujos membros, e até mesmo o rei, neles tomavam parte. Embora se confundindo por vezes, os
entremezes, como o próprio termo originário (intermezzo) indica, serviriam de entreato aos momos e a
outras festividades. Por momos designavam-se as máscaras, os adereços, os trajes, as personagens e a
própria representação. Esta se caracterizava pela semelhança estrutural com a procissão, pelo caráter
alegórico e espetaculoso, galante e solene, apropriado aos temas representados, que compreendiam
matéria cavaleiresco-expansionista, apesar de o termo momo remeter ao deus romano da zombaria.
Apresentando raros ou mesmo inexistentes discursos e ação dramática, utilizavam dança e mímica, além
de muitos recursos técnicos, de muitas maquinarias e seus truques, que causavam o espanto e a admiração
dos expectadores. Muito embora oriundos de França, Castela e Itália (Veneza), encontraram nas cortes
portuguesas da Dinastia de Avis o terreno propício para o seu florescimento, abrilhantando festas de
casamentos reais e outras, contando-se entre as mais famosas as dos enlaces da Infanta D. Leonor com o
Imperador Frederico III em 1451, do Príncipe D. Afonso com a Princesa D. Isabel de Castela em 1490 e
11
Série Estudos Medievais 2: Fontes
138
Frisemos, para terminar essa breve síntese acerca do Auto medieval, que a Idade Média
não poderia jamais ser caracterizada por uma rígida compartimentação de gêneros e
espécies literárias. Antes, os textos seriam polivalentes, “camaleônicos” − para usarmos
a terminologia do medievalista suíço André de Mandach (1987) −, destinados ora à
leitura, ora à representação. Tal é o caso da Gesta de Fierabras, da qual defende o
citado medievalista a origem portuguesa (MANDACH, 1987). Girando em torno das
façanhas de Oliveiros contra os “turcos”, perpetuou-se no Auto da Floripes, encenado
anualmente a 5 de agosto na festa de Nossa Senhora das Neves, na vila deste nome,
próxima a Viana do Castelo e Porto; e, no Brasil, nas populares “reisadas”.
3. As ‘representações’ litúrgicas do Codex Calixtinus
Voltemos, agora, a nossa atenção para o Liber Sancti Jacobi, o Codex Calixtinus, assim
chamado por atribuir-se a sua autoria ao papa Calisto II (1119-1124), que era irmão do
conde de Galiza, Raimundo de Borgonha, e tio de Afonso VII, rei de Galiza (1111) e,
posteriormente, de Leão e Castela (1135). Foi escrito na chamada Era Compostelana,
que foi a época de maior esplendor da Galiza, graças à atuação de Diego Xelmírez
(1065-1140), primeiro arcebispo de Santiago de Compostela (1120), tornada Sé
Metropolitana graças ao seu empenho e argúcia política junto a Roma. Dessa forma, o
poder que antes pertencia a Braga passou a Compostela, o que “acelerou a separación da
Galicia de entre Douro e Miño – o nacente Portugal – do resto do país” (RUIBAL,
1992, p. 228). Aliás, fora também graças à sua intervenção contra a rainha Urraca, que o
filho desta, Afonso VII, seria coroado rei de Galicia em 1111(RUIBAL, 1992, p. 228).
Diego Xelmírez, descendente de família da baixa nobreza galega, “educado como
clérigo na escola catedralícia compostelana e como cavaleiro na corte de Afonso VI”
(FLETCHER, 1993, p. 129; apud SINGUL, 1999, p. 102), tomou importantes medidas
administrativas e culturais para fomentar a peregrinação, que nesse século XII atingiria
o seu auge, e para embelezar a catedral românica e a cidade, inclusive construindo o
palácio arcebispal. Contou com o beneplácito da poderosa abadia borgonhesa de Cluny.
as festas natalinas de 1500, no reinado de D. Manuel. No Brasil, os desfiles dos sambódromos, dos quais
o primeiro é o da Marquês de Sapucaí no Rio de Janeiro, no Carnaval dão continuidade ao seu explendor.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
139
Foi, inclusive, graças ao apoio de São Hugo (1049-1109), abade de Cluny, e do papa
cluniacense Calisto II que ele alcançou o arcebispado.
A Historia Compostelana, escrita a seu mando, documenta o período, evidentemente
que da sua perspectiva ideológica, estreitamente vinculada aos cluniacenses. Aliás, o
poder da abadia borgonhesa de Cluny alcançara a própria coroa de Leão e Castela, uma
vez que Calisto II era tio de Afonso VI, ao qual apoiou quando necessário. Este se casou
com a filha do duque de Borgonha, sobrinha do grande abade Hugo. E as suas filhas,
Urraca e Tareja, foram dadas em casamento a dois nobres borgonheses, Raimundo e
Henrique. Portanto, essas estreitas relações políticas e matrimoniais redundariam no
“afrancesamento” dos reinos cristãos ibéricos (SINGUL, 1999, p. 108) e, em
conseqüência, na consolidação da ritualística franco-romana nas suas igrejas.
Voltando à questão do teatro litúrgico13, que “desenrolava-se dentro das igrejas ou em
estreita conexão com as cerimônias propriamente litúrgicas”, teria sua origem nas
“formas literário-musicais, conhecidas pelo nome de tropos14 e seqüências15”, nas
palavras de Mário Martins (1969, p. 12-13). Se bem que muito devamos a este
medievalista por seus diversos estudos da cultura medieval, no entanto, em seu capítulo
sobre “O teatro litúrgico na Idade Média peninsular”, repleto de informações preciosas
colhidas principalmente de Richard B. Donovan (1958), sequer se refere ao Codex
Calixtinus como uma fonte para o estudo das origens do drama litúrgico. Todavia, o
primeiro livro desse códice é uma recolha preciosa de ofícios religiosos diversos em
honra do Apóstolo, em que se encontram elementos como conductos, prosas,
responsórios, antífonas, e farsas indicadoras dessas origens.
A ‘prosa’, no caso, é “a forma do canto religioso derivado da seqüência e que consistia
num desenvolvimento composto de letra e música que se acrescentava a um cântico,
reportando-se os seus exemplos mais antigos ao século IX (MORALEJO; TORRES;
13
Segundo Martins (1969, p. 12): “Ao falarmos em teatro litúrgico, pode esta palavra ser tomada em
sentido mais ou menos lato. Nem será descabido admitir a existência de certa paraliturgia, ou liturgia
secundária. Mas, primitivamente, o teatro litúrgico desenrolava-se dentro das igrejas ou em estreita
conexão com as cerimônias propriamente litúrgicas.”
14
Composição resultante da intercalação de notas e de palavras suplementares em um fragmento de obra
litúrgica.
15
“Hino litúrgico que acompanha o Gradual e a Aleluia”, ou: “repetição de determinado grupo de notas
ou acordes em diferentes posições da escala” (segundo a Grande Enciclopédia Larousse Cultural, volume
22, p. 5327).
Série Estudos Medievais 2: Fontes
140
FEO; Liber, 1998b, p. 290-291). Documenta-se, no Codex, uma “Prosa de São Tiago
em palavras latinas, gregas e hebréias, abreviada pelo papa Calisto”, como diz a
didascália (Liber, 1998b, p. 290). Trata-se de uma narrativa panegírica da vida do
Apóstolo e da peregrinação a que deu azo a sua trasladação, vazada em versos de
métrica bastante variável (desde dissílabos e trissílabos até decassílabos) e rimas
assonantes e consonantes. Além das palavras gregas e hebraicas de que fala a rubrica,
encimadas por suas correspondentes latinas, apresenta a expressão que se tornou típica
dos peregrinos e dos cruzados: sus eya, ultreya (arriba, eia, adiante, eia), retomada no
famoso hino Dum pater famílias, “Quando aquele bom Pai...”, mais conhecido como
“Canto de ultreya”, também chamado de “Canção dos peregrinos flamengos” e que
seria a mais antiga canção documentada da peregrinação a Compostela (MORALEJO;
TORRES; FEO; Liber, 1998b, p. 590).16
Essa ‘prosa’, que não é a única do Codex, faz parte de uma missa de São Tiago, para o
25 de julho, composta pelo papa Calisto (Líber, 1998b, p. 289-296). Também no
Apêndice do Codex pode ser encontrada outra, atribuida a Antão, bispo de Troyes,
vindo em seguida um tropo atribuído a D, Fulberto, bispo de Chartres, que é um
comentário do Kyrie: “Rei imenso, Padre pio / eleison” (Líber, 1998b: 562).
O ‘conducto’ é “forma primitiva da composição mesurada e amiudemente harmônica”.
Destacam Moralejo, Torres e Feo (1998b, p. 320) que a sua descrição se dava “através
de termos por vezes obscuros e contraditórios pelos teóricos dos séculos XIII e XIV”.
No que coincidiam era em considerar que possuía igualdade métrica, que admitia as
consonâncias imperfeitas, e que não se empregava nele o cantus firmus. O Codex
registra alguns conductos: um atribuído a um antigo bispo de Benevento, composto de
hexâmetros com estribilho de nove sílabas de ritmo parecido (Líber, 1998b, p. 320321); outro atribuído a D. Fulberto, bispo de Chartres, com estrofes em que se alternam
versos de quatro e seis sílabas mais estribilho de seis e quatro (Liber, 1998b, p. 32116
Observam Moralejo, Torres e Feo que por sua estrutura métrica pode ser “um precoce modelo
mediolatino da poesia romance. Sua notação musical é aquitana ou in campo aperto (sem pauta), mais
arcaica que a de todas as demais músicas do Códice, que se apresenta em pauta de quatro linhas”
(MORALEJO; TORRES; FEO; Liber, 1998b: 590). Compõe-se de seis estrofes de seis versos em ritmo
trocaico ou descendente, sendo os versos ímpares heptassílabos e de rima bissilábica átona, e os versos
pares hexassílabos e consoantes; apresentam um refrão e uma coda comuns, esta de quatro versos
semelhantes aos ímpares de cada estrofe em dois pareados. O refrão apresenta termos germânicos ou
flamengos (herru – senhor, e got – por gut, bom), e o termo Sanctiagu, já próximo do castelhano e do
galego (MORALEJO; TORRES; FEO; Liber, 1998b: 590).
Série Estudos Medievais 2: Fontes
141
322), sendo que este deveria ser entoado por “um menino, entrando entre os dois
cantores”, como indica a rubrica; outro atribuído a Roberto, cardeal romano17, formado
por versos endecassílabos, que deveriam ser entoados pelo coro, alternados com versos
pentassílabos, a serem entoados também por um menino, segundo a rubrica (Liber,
1998b, p. 322-323); outro atribuído a São Fortunato, bispo de Poitiers, no qual se
alternavam dísticos elegíacos com o estribilho Gaudeamus, isto é, ‘Alegremo-nos’, que
deveria ser repetido igualmente por “um menino entrando entre os dois cantores”
(Liber, 1998b, p. 323-324). Portanto, nestes conductus se destaca a presença dos
meninos cantores da escola catedralícia, com o seu papel específico na interpretação
dessas composições musicais.
Os ‘responsórios’ correspondem a uma das principais partes cantadas do ofício divino,
presentes desde o início da missa.18 E a primeira delas é justamente aquela em que o
povo é levado a repetir e/ou responder e/ou contestar as palavras pronunciadas pelo
leitor, sendo os cânticos baseados em tal procedimento chamados ‘responsos’ ou
‘responsórios’.
A ‘antífona’, segundo o seu étimo grego (composta de anti + phoné), significa
‘contracanto’ ou ‘canto alternado’. “É uma passagem tomada geralmente das Sagradas
Escrituras referente à vida do santo cuja festa se celebra”, cantada “no princípio e no
fim do salmo com uma melodia um pouco mais lenta que a deste” (MORALEJO;
TORRES; FEO; Liber, 1998, p. 262), embora no Codex elas não se restringem a
acompanhar apenas os salmos. Além das que se documentam no Apêndice (Líber,
1998b, p. 581), apresentam-se claramente indicadas desde o título nos capítulos XXII e
XXIII do Livro I:
- Capitulo XXII – “Responsórios do papa Calisto com suas antífonas e hinos para a
vigília de São Tiago. O Redentor pôs...” (Liber, 1998b: 8; destaques nossos.)
- Capítulo XXIII – “Responsórios evangélicos do mesmo papa Calisto, com suas
antífonas e hinos, para cantar nos dias das festas de São Tiago, ou seja, nos da sua
17
Roberto de Pullen, arcediago de Rochester e posteriormente cardeal e chanceler da Igreja Romana,
falecido em 1146.
18
Sendo que “desde o início da liturgia se observam três formas principais de distribuir o texto dos
salmos e cânticos entre o leitor e o coro” (MORALEJO; TORRES; FEO; Liber, 1998, p. 262;
traduzimos).
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142
paixão e trasladação. Havendo andado o Salvador um pouco...” (Liber, 1998b: 8;
destaques nossos)
Como se vê, as antífonas e hinos compunham os responsórios, que se construíam
hegemonicamente em torno de um tema relacionado à vida do santo homenageado. No
primeiro dos capítulos citados acima, vemos que o tema da nomeação dos apóstolos
diletos de Jesus e o significado dos nomes a ele atribuídos, a partir do Evangelho de S.
Marcos (3, 16-17), vai se repetir com pequenas variações e/ou acréscimos. Exemplos:
R. O Redentor impôs a Simão o nome de Pedro e a São Tiago e João os
nomes de Boanerges. Quando estava Jesus para subir ao monte, chamou
junto a ele São Tiago e João e lhes pôs o nome de Boanerges.
Palavras de São Marcos. Canto no II tom19.
R. Chamou Jesus a São Tiago e a João de Boanerges, que quer dizer filhos do
trovão. V. Assim como o som do trovão faz estremecer a terra, assim todo o
mundo estremeceu com as suas vozes. Que quer dizer... (Liber, 1998b, p.
258-259)
Da mesma forma comentam-no palavras atribuídas ao papa Calisto e a São Jerônimo
(Liber, 1998b, p. 260), além das antífonas, antecedendo não apenas os salmos, mas
também outras partes do ofício, como dissemos anteriormente. Também o hino
atribuído a D. Fulberto, bispo de Chartres, desenvolve o tema da nomeação,
acrescentando ao significado do nome Boanerges o de Tiago, que quer dizer
‘suplantador’: “Pois suplantador te chamas, / suplanta nossos pecados / e faça-nos tuas
santas preces / ir ao céu com os santos...” (Líber, 1998b, p. 260).
Esta era uma das fórmulas para a vigília, artística forma, em que o docere cum delectare
se processava. Em outros responsórios e antífonas vemos uma ainda mais variada
polifonia de discursos e sons, como por exemplo no capítulo XXIII, onde se revezariam
leitores e/ou cantores de São Marcos, São Jerônimo, dos Salmistas, de São Lucas, de
São Gregório, de São Mateus, do patriarca de Jerusalém Guilherme – enfim, dos
Evangelhos diversos e da História Eclesiástica, tendo por tema principal a Paixão de
São Tiago, as conversões e milagres por ele realizados.
19
Explicam Moralejo, Torres e Feo (Líber, 2008b: 258) que o tom é “a unidade de divisão da escala”,
som a partir do qual são regulados “a afinação dos instrumentos ou das vozes”. No canto litúrgico, “é a
fórmula melódica destinada a uma parte determinada do ofício”, sendo que “para o canto dos salmos
usavam-se oito tons”.
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143
Segundo as prescrições do Papa Calisto, que sucedem aos responsórios, as lições e
salmos deveriam ser recitados e cantados (Liber, 1998b, p. 278). Mas no capítulo
XXXI usa-se o termo farsa relacionado ao ofício da missa, “composta por D. Fulberto,
bispo de Chartres, varão ilustre, para cantá-la quem goste em uma ou outra festividade
do mesmo apóstolo”, São Tiago.
Os doutos tradutores do Liber Santi Jacobi, A. Moralejo, C. Torres e J. Feo, acharam
melhor traduzir o termo latino farsa por ‘representação’, por considerá-lo mais
apropriado ao ofício divino, uma vez que a farsa, posteriormente à época de elaboração
do Codex, denominava, como vimos, um espécime do teatro cômico, profano, que estes
autores definem como “uma espécie de ópera bufa, geralmente em um só ato”, com
assuntos “imaginários, inverossímeis e grotescos” (Liber, 1998b, p. 326). Lembram eles
que tal tipo de missa em francês chamava-se messe farcie, missa entremeada com
cânticos, versos ou explicações.
De qualquer forma, já se assumia a relação da missa com o teatro, sendo ela uma
representação elaborada, com autoria explicitada, à qual não faltam, neste exemplo de
que tratamos, as rubricas indicadoras das falas dos “atores”: “Uns cantores, entre os
quais esteja um bispo ou um presbítero, vestido com ínfulas, digam isto:” [...]
“Respondam outros cantores:” (Líber, 1998b, p. 325). Na Epístola estaria a farsa mais
propriamente dita indicada novamente: “farsa da lição da missa de São Tiago, composta
por D. Fulberto”, etc. Nela se alternam as rubricas indicativas das falas e cantos dos
atores (leitor e cantor). No Sanctus e no Agnus Dei a alternância ocorre entre cantores
e/ou coros. E a missa é concluída pelo Benedicamus20 composto por um “certo doutor
galego” (Liber 1998b, p. 334), como esclarece a rubrica, demonstrando-se a
preocupação com a questão da autoria, que nesta parte da missa não é de D. Fulberto.21
Muitas, pois, eram as vozes que representavam as missas em honra do Apóstolo, em sua
magnífica catedral. No Livro V do Codex, que é um guia medieval do peregrino,
documenta-se que ela possuía nada menos que “72 cônegos, em consonância com o
20
Dita missa preceitua os textos e cânticos para o Introito, Kyrie, Epístola, Sanctus, Agnus Dei e
Benedicamus.
21
Fulberto de Chartres, nascido possivelmente na Aquitânia (975/-1028), consagrado bispo em 1007, foi
mestre muito respeitado e querido, além de autor de poemas sacros e profanos, dos quais se conservaram
muitos hinos e prosas.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
144
número dos 72 discípulos de Cristo” (Liber, 1998b, p. 573). Obediente à lição de São
Lucas (10-1), Gelmires teria fixado este número no ano de 1102, segundo a Historia
Compostelana (I, cap. XX, 3-7).22
No altar-mor somente podiam celebrar missa “bispo, arcebispo, papa ou cardeal da
mesma igreja”, registrando-se, então, a existência de sete cardeais, confirmados no
posto pelo papa Calisto (Liber, 1998b, p. 569).
Até aqui vimos falando das missas em torno da Paixão de São Tiago e da sua eleição e
transladação, celebradas em 25 de julho e 30 de dezembro, respectivamente. Mas havia
também comemorações muito importantes em torno dos milagres jacobeus no dia 3 de
outubro, instituído como dia festivo por Santo Anselmo, abade da Cantuária, a partir do
Grande Milagre da ressurreição de um morto, levado ao suicídio pelo demônio, milagre
obrado por Santa Maria, com a intermediação do Apóstolo. Essa festa dos milagres era
suntuosa, dela participando a realeza, a nobreza e o clero, com seus trajes de gala e jóias
magníficas. A procissão que se fazia ao redor da basílica contava inclusive com um
“coro de veneráveis mulheres”, também portando trajes e adornos preciosos (Liber,
1998b, p. 400-401).
A “Missa dos Milagres de São Tiago” - composta de Intróito, Oração, Lição, Prosa,
Evangelho (segundo São Mateus), Ofertório, Comunhão, Poscomunhão23 -, termina
com o cântico “O Salvador, andando...” e com a leitura das “lições dos milagres de São
Tiago” (Liber, 1998b, p. 314). Esta última informação nos suscita o levantamento da
seguinte hipótese: essa leitura dos milagres estaria na origem de representações que a
partir daí aconteceriam.
O chamado ‘Grande Milagre’ de São Tiago, um dos vinte e dois milagres considerados
autênticos pelo Papa Calisto II, cuja autoria da redação é atribuída a Santo Anselmo
(1033-1109), arcebispo de Cantuária (1093), é na verdade um milagre mariano muito
22
O texto do ofício divino e distribuição das horas canônicas seguiriam os preceitos de Santo Isidoro
(MORALEJO; TORRES; FEO; Líber, 1998b, p. 573), embora no citado texto do Codex se diga que esses
cônegos observavam a própria regra de Santo Isidoro, Isto não seria possível, pois, conforme esclarecem
Moralejo, Torres e Feo (Líber, 1998b, p. 373), ele compôs “uma regra monacal, mas não canonical no
tocante ao método de vida”.
23
As que se celebram na atualidade diferem um pouco, constando de Intróito, Glória, Orações, Epístola,
Gradual ou tracto, Evangelho, Ofertório, Prefácio, Canon, Pai-Nosso, Agnus, Comunhão, Poscomunhão e
Orações finais.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
145
difundido na Idade Média.24 Conheceria no século XIII várias versões em línguas
romance, como as que se encontram nas Cantigas de Santa Maria de Afonso X, em
galego-português, nos Milagros de Nuestra Señora de Gonzalo de Berceo, em
castelhano arcaico, e em Les miracles de la Sainte Vierge de Gautier de Coincy, em
francês antigo. E, atravessando os séculos e mares, chegaria ao Brasil, onde se
perpetuaria nos romances e autos populares, como O castigo da soberba e A peleja da
Alma, mas já sem a participação de São Tiago. Daí seriam, inclusive, aproveitados pelo
conhecido autor nordestino Ariano Suassuna, para a composição do seu famoso Auto da
Compadecida, assunto de que nos ocupamos em estudo anterior25, onde estudamos as
variações que apresenta em relação às suas fontes e o sentido das mesmas.26
Por conseguinte, da leitura dos milagres passar-se-ia à sua representação. Nem é
gratuito o fato de serem chamados ‘milagres’ um dos espécimes do teatro medieval,
como vimos de início E o Codex Calixtinus, documentando-os, e ao costume de serem
lidos após o ofício religioso, dá o seu contributo para o estudo da gênese da dramaturgia
no Ocidente.
24
Apresenta uma narrativa muito rica, com muitos diálogos e vários episódios encadeados, que pode ser
assim resumida:
Um jovem leonês, que peregrinava anualmente a Santiago de Compostela, é induzido ao
suicídio pelo demônio, que se faz passar por S. Tiago, cortando as partes pudendas. Isto para
purificar-se, uma vez que havia fornicado às vésperas da peregrinação, embora levasse uma vida
muito casta junto à mãe viúva.
Ressuscitado miraculosamente, dá testemunho do que ocorrera após morrer: o demônio
que o tentara, seguido por uma multidão de companheiros malignos, arrebatara-lhe a alma.
Aproximando-se de Roma, são interceptados por S.Tiago, que os obriga a dirigirem-se a uma
etérea planície próxima à igreja de S. Pedro, em que se realizava uma assembléia presidida pela
formosíssima Santa Maria, Mãe de Deus. Advogando pelo morto, o Apóstolo narra à Virgem o
modo como o peregrino fora enganado, e esta, repreendendo severamente ao demônio, faz com
que a vítima seja ressuscitada. Tendo as suas feridas cicatrizadas, no lugar da genitália forma-se
uma verruga, por onde urinava.
Este milagre teria sido divulgado pelo próprio agraciado por muitos lugares, registrando-se
que inclusive o reverendíssimo Hugo, abade de Cluny, o teria visto com seus próprios olhos. E
Santo Anselmo termina a narrativa dizendo ter ordenado que no dia 3 de outubro se festejasse
este grandioso milagre, bem como os demais do Apóstolo.
25
Trata-se de comunicação apresentada recentemente no X Congresso Internacional da ABRALIC
(UERJ, 31/07 a 04/08/2006), na qual estabelecemos um minucioso cotejo do texto de Suassuna com as
suas possíveis fontes, destacando o caráter ideológico-contextual das diferenças que se observam nas
versões examinadas, estruturadas a partir de um fundo comum: a misericórdia da mãe de Jesus, advogada
dos seus fiéis junto ao Filho, ou deles salvadora, a ponto de serem ressuscitados por serem vítimas (dos
enganos do demônio ou do sistema capitalista, que os conduzem igualmente ao pecado).
26
Dentre estas, observamos que o lugar de advogado, ocupado pelo Apóstolo nas narrativas medievais, é
agora atribuído a Maria, que deixa de ser a obradora do milagre, semelhante às grandes deusas das
culturas arcaicas, para ser a intercessora junto ao seu divino Filho. Outra modificação essencial diz
respeito aos pecados postos em destaque, que não se restringem mais à luxúria do milagre jacobeu; são,
antes, a soberba, a avareza e a ganância. E não são mais atribuídos à tentação demoníaca, mas sobretudo
às carências do homem no sistema capitalista.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
146
Há, também uma passagem muito recorrente nas homilias, onde se apresenta com
diálogos, que, pelo assunto, muito se aproxima da tragédia: é a do apogeu de Herodes,
aclamado como um deus pelo povo, após ter mandado degolar o Apóstolo; esse auge de
poder e ostentação termina bruscamente com a morte mais inglória: comido por vermes
que lhe infestam o corpo coberto de tecidos e jóias os mais preciosos – modo como teria
sido justiçado pelos anjos celestiais (Liber, 1998b, p. 79, 101, 179, etc).
Portanto, o códice oferece assuntos próprios para a representação, além de apresentar
farta demonstração de recursos que caracterizariam a linguagem do teatro, como
diálogos (veja-se, por exemplo, a homilia atribuída a São Jerônimo e a São João
Crisóstomo no capítulo XVI – Liber, 1998b: 183-187), recitações e cânticos antecedidos
de rubricas que os destinam a diferentes leitores e/ou cantores, como se fossem
embriões dos “atores” teatrais. Nem é absurdo imaginarmos que os eclesiásticos, para a
leitura das palavras de personagens da Bíblia e da História Eclesiástica, pudessem
entrar “em cena” vestidos de apóstolos, ou de outras personagens bíblicas, tal como
sucedia em Vich, na procissão de Corpus Christi segundo Donovan (1958, p. 87). Ou
que São Tiago pudesse estar nas procissões com “seu bordom e cabaaça e soombreiro”,
como mais tarde, em 1435, figuraria no registro da procissão de Corpus Christi em
Alcobaça, por exemplo (MARTINS, 1969, p. 24).
Diante de tantas evidências, por que o Codex Calixtinus tem sido deixado de lado pelos
estudos sobre as origens do teatro ibérico (e não só)? Uma possível resposta seria a
mesma que poderia ser dada ao solapamento do prestígio do Apóstolo, em prol da
unidade da Igreja, assentada em Pedro. No códice lemos que a descrição da Paixão de
São Tiago, acompanhada da de Josias, se aproxima da Paixão do próprio Jesus Cristo.
Com muitos diálogos e recursos retóricos como exclamações e interrogações, o
Apóstolo assume a palavra durante o seu martírio. Após este, de forma semelhante ao
acontecido na morte do Messias, “produziu-se um violento terremoto, abriu-se o céu,
agitou-se o mar e ressoou um formidável trovão, e aberta a terra foi tragada a maior
parte dos malvados, e brilhou em resplendor uma grande luz naquele local e muitos
ouviram no ar um coro de anjos que levavam as almas dos mártires às mansões
celestiais, onde gozam eternamente” (Liber 1998b, p. 132; traduzimos). Além do mais,
muito se insiste no episódio bíblico em que Tiago e seu irmão João, em decorrência do
pedido da mãe de ambos ao Messias – para que lhes desse assento ao seu lado no Céu –,
Série Estudos Medievais 2: Fontes
147
dispuseram-se a sacrifício aproximado ao do Mestre (Líber, 1998b, p. 183-188). Fora,
evidentemente, o fato de ter sido Tiago o primeiro apóstolo a ser martirizado.
É como se, devido à importância de São Tiago e do seu culto, novos ciclos viessem se
juntar aos do Natal e da Páscoa, em torno dos quais o teatro se originara no Ocidente.
Esses ciclos seriam fundamentalmente os da nomeação/eleição do Apóstolo e o da sua
Paixão, além, evidentemente, dos milagres e prodígios, dentre eles a conservação da sua
cabeça após a decapitação e o traslado da Palestina à Galiza. Que os historiadores do
teatro ibérico dêem a merecida atenção ao Codex Calixtinus, esse verdadeiro tesouro
que se perpetuou para tantas aprendizagens!
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Série Estudos Medievais 2: Fontes
150
Fontes jurídicas medievais:
o fio, o nó e o novelo
Paulo Roberto Sodré
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
Resumo: O conjunto de leis organizado por Afonso X, Espéculo, Fuero real, Setenario e Las
siete partidas, produzido entre os anos de 1250 e 1270, tem sido estudado sob muitos aspectos.
Nos estudos filológico-literários, Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1990[1896]) e Ramón
Menéndez Pidal (1991[1942]) fundamentaram em algumas dessas leis parte de suas opiniões a
respeito da corte trovadoresca peninsular. Mais recentemente, Jesús Montoya Martínez (1991) e
Benjamin Liu (2004) voltaram em particular a Las siete partidas, observando sua relação com a
sátira. Neste estudo interdisciplinar, discute-se a procedência de se utilizarem essas fontes para a
compreensão do deostar e do jugar de palabras, base discursivo-poética das cantigas de
escárnio e maldizer.
Palavras-chave: Estudo de fontes medievais; Metodologia (Estudos medievais); Fontes jurídicas
medievais; Fontes jurídicas de Afonso X.
Abstract: The books of law organized by Afonso X, Espéculo, Fuero real, Setenario and Las
siete partidas, produced about 1250 and 1270, have been studied under many aspects. In the
philological and literary studies, Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1896 [1990]) and Ramón
Menéndez Pidal (1942 [1991]) based their opinions about Peninsular troubadour court in some
of those laws. Recently, Jesús Montoya Martínez (1991) and Benjamin Liu (2004) considered
particularly Las siete partidas to observe its relation to the Galician-Portuguese satire and joke
poetry. This paper proposes a discussion about the pertinence of using those juridical primary
sources to understand terms like deostar and jugar de palabras, basic poetic resources of the
cantigas de escárnio e maldizer.
Keywords: Medieval Juridical Studies; Medieval Studies Methodology; Medieval Juridical
Sources; Alfonso X’s Juridical Sources.
1. O fio: Os Livros Jurídicos de Afonso X
Os estudos sobre Afonso X, de inabarcável fortuna crítica, tendem a apontar o stupor
mundi hispânico, na expressão de Robert I. Burns (1990, p. 13), como um rei capaz de
organizar “un lavoro cosí ingente e ampio, gettando le fondamenta della lingua
spagnola” (D’AGOSTINO, 2001, p. 758). Além disso, é um monarca “amador de toda
música y el amigo de los trovadores, el consagrador de las Cantigas de Santa Maria”,
segundo Higinio Anglés (apud BALLESTEROS BERETTA, 1984, p. 310).
Série Estudos Medievais 2: Fontes
151
Resultado desse imenso e amplo trabalho é o fato de Afonso X ter composto razones
para obras de variado campo do saber. Joseph O’Callaghan (1999, p. 172) agrupou-as
em quatro blocos principais: obras legais, históricas, científicas e literárias; Alfonso
D’Agostino dividiu-as, entretanto, em cinco seções: astrológica e astronômica, jurídica,
histórica, lúdica ou de entretenimento e poética. Nessa produção bibliográfica e
tradutória, tratados sobre gemas (Lapidario) e jogo de xadrez (Libro de axedrez, dados
y tablas) justapõem-se a tratados sobre astrologia (Libros del saber de astrología),
livros de história (General estoria), de ficção (Calila e Dimna), de leis e cancioneiros
profanos e religiosos (Cantigas de Santa Maria), seja em espanhol, seja em galegoportuguês (D’AGOSTINO, 2001, p. 742-743; GONZÁLEZ JIMÉNEZ, 2004, p. 424439).
No que concerne especificamente ao trabalho jurídico, o conjunto de leis organizado por
Afonso X, Espéculo, Fuero real, Setenario e Las siete partidas1, foi produzido entre os
anos de 1250 e 1272. Os códigos jurídicos afonsinos apresentam, no entanto, datações
não muito consensuais. De acordo com Antonio Ballesteros Beretta (1984, p. 356 et
seq.), Azuzena Palácios Alcaine (ALFONSO X, 1991a, p. xv) e Alfonso D’Agostino
(2001, p. 743), as datas aproximadas (propostas por D’Agostino) hierarquizam os títulos
da seguinte maneira: Espéculo (1255), Fuero real (1255), Setenario (1256) e Las siete
partidas (1256-1265; a segunda versão é de 1272).
Esse conjunto pode oferecer ao pesquisador informações fundamentais para a
compreensão da cultura, das instituições e do cotidiano peninsular medieval, uma vez
que abarcam diversos aspectos da realidade da época: desde leis voltadas para os
clérigos até as atividades dos comerciantes; desde reflexões sobre as artes liberais até as
penalidades que sofreriam criminosos; desde encômios a pessoas e cidades até a
simbologia de números e planetas. Esta abrangência de assuntos e perspectivas
possibilita os livros jurídicos peninsulares atribuídos a Afonso X contornarem e
esclarecerem instâncias importantes do século XIII.
O Espéculo, “Libro del Ffuero que ffizo el rrey don Affonso […] el qual es llamado
Especulo, que quiere decir como espeio de todos los derechos” (ALFONSO X, 1990, p.
5) ou “Libro del espejo del derecho”, combina os propósitos de um guia ético e de um
1
Cf. as referências.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
152
manual jurídico, dirigido aos súditos em geral mas, sobretudo, aos juízes e funcionários
do rei (MACDONALD, 1990, p. xviii-xix). Dividido em cinco livros (sobre a fé cristã, o
rei e a realeza, a guerra e a justiça militar, a paz comum e a justiça, os procedimentos
nos pleitos [p. xxiii]), o Espéculo teria como novidade “la incorporación de los jueces
nombrados por los señores. Esta es la política alfonsina: que todos los jueces nombrados
directa o indirectamente por él juzgasen por el Espéculo” (p. xix), o que denuncia o
propósito centralizador do Sábio. Por essa razão, esse livro de leis, dado seu teor
doutrinário, teórico e filosófico, resulta mais amplo e mais extenso em seu âmbito e
aplicabilidade (MACDONALD, 1990, p. xlvi), diferentemente do Fuero real, código de
leis de natureza municipal.
Constituído de quatro partes (sobre o funcionamento do reino e da justiça [e sobre
procedimentos, instituições e crimes]), o Fuero real seria um livro de alcance mais
prático. Segundo Azucena Palácios Alcaine (1991, p. xvi), que o editou, o Fuero real
vigeu mais que o Espéculo, “pues como fuero del tribunal de las Cortes y como fuero
municipal su difusión fue muy grande, si bien nunca consiguió su promulgación como
ley general para toda la corona”.
Robert MacDonald (1990, p. xlv-xlv1), ao comparar esses dois livros presumivelmente
contemporâneos, deduz aspectos importantes da datação e da função de cada um,
indicando o caráter mais simples de consulta e uso do Fuero real:
De más dificultad para algunos historiadores es la simultaneidad, o al menos
la contemporaneidad, opinada para las dos obras, aun cuando aquélla no
parece haber resultado en ninguna contradicción entre ellas. Cualquiera que
fuese la fecha cuando se confeccionó el Fuero Real y cualquiera que fuese el
libro que salió primero, la simultaneidad o contemporaneidad del “Libro del
fuero” y del Fuero Real pude tener una explicación bastante sencilla y
aceptable. Partiendo de una propuesta de O’Callaghan, y hasta el momento
sin haber realizado un trabajo más a fondo sobre el asunto, sugerimos que el
“Libro del fuero” y Fuero Real tuvieran un fondo generalmente muy
semejante, si no igual, en teoría y planificación […]. En el proyecto real, el
“Libro de fuero” contendría el texto amplio y completo, y sería el ejemplar
maestro retenido en la corte real para uso en el tribunal superior y en la casa
real; un ejemplar podía ser enviado a cada lugar donde hubiera necesidad de
él. El Fuero Real será la obra cuyo contenido reflejaba – en una forma
sucinta, útil, conveniente e inmediatamente aplicable – las decisiones, los
principios, el razonamiento y los ejemplos de que consta el “Libro del fuero”.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
153
Mandado fazer por Fernando III, mas executado de fato por seu filho, o Sábio, o
Setenario – talvez uma versão inicial2 ou reescritura3 da “Primeira” das Partidas –
apresenta o que Kenneth Vanderford identifica como uma série de gêneros que não se
excluem nem sem contradizem:
El Setenario no es, ciertamente, obra histórica ni mero panegírico de San
Fernando, puesto que el “elogio” abarca menos de diez de sus ciento ocho
leyes. Ni es tampoco un tratado sobre las artes liberales, porque sólo trata de
ellas en la ley XI, aunque sea ésta la más larga de todas. En cierto sentido el
Setenario es todas estas cosas, pero también es algo más (VANDERFORD,
4
1945, p. xxv).
De fato, esse livro apresenta um conjunto de idéias que o afasta do gênero jurídico per
se. Embora tenha título de “ley”, várias partes são dedicadas, isto sim, a encômios
(como o de D. Fernando, o de Sevilha) e a conceituações (das artes liberais) fora do
âmbito rigorosamente legal. Este aspecto da lei, predominantemente canônico, vem à
tona apenas a partir da Lei XII, sobre as seitas da Antigüidade, o que ensejará a
exposição sobre a doutrina cristã.5
Afonso X, nas primeiras leis do Setenario – consideradas a parte introdutória do livro,
acrescentada pelo Sábio6 –, expõe as motivações de seu pai para escrevê-lo. Procurando
reprimir os sete erros que desviavam os homens dos bons costumes – mancebia, malentendimento, mau conselho, esquecimento, impunidade, vileza e desmesura – mandou
o rei D. Fernando
ffazer este libro (Setenario) que touyese él e los otros rreyes que después dél
viniesen por tesoro e por mayor e meior conseio que otro que pudiessen
tomar, e por mayor seso, en que sse viessen ssienpre commo en espeio para
ssaber emendar los ssus yerros e los de los otros e endereçar ssus ffechos e
ssaberlos ffazer bien e conplidamiente. Et por toller estos ssiete males partió
este libro en siete partes. Et mostró en cada vna dellas rrazones con que
entendiesen los omnes lo que les conuinía que ffiziesen e de lo que sse
deuyan guardar. (ALFONSO X, 1945, p. 25)
2
Cf. as opiniões a respeito (VANDERFORD, 1945, p. xxvi et seq.)
Essa é a opinição de Jerry R. Craddock (1990, p. 192). Manuel González Jiménez (2004, p. 432-433)
tende a concordar com Craddock, ao considerar que é o Setenario “obra no tan primeriza como se afirma
generalmente”.
4
Para Robert MacDonald (1990, p. xlvi), “el Setenario no fue pensado como un código de leyes, sino
como un tipo de espejo literario semejante a los manuales de instrucción destinados para los príncipes y
otros que habían de gobernar”.
5
Sobre a estrutura e o plano do Setenario, cf. a introdução de Kenneth Vanderford (1945, p. xxvii et
seq.).
6
Cf. a descrição de Francisco Martínez Marina do Setenario (apud VANDERFORD, 1945, p. xxvi).
3
Série Estudos Medievais 2: Fontes
154
Uma das alternativas para a apuração de certos aspectos da produção trovadoresca, tanto
no campo geral da cultura e da sociedade, como no particular da poesia e da
mentalidade, pode ser a investigação de documentos coetâneos, como o código jurídico
organizado por Afonso X7. Para tanto, bastaria ter em mente que as diferentes obras
produzidas pelo Sábio – além da jurídica, a histórica, a científica, a lúdica e a literária –
fizeram parte de um mesmo projeto pedagógico, haja vista que
Tutta la storia culturale di Alfonso X si può riassumere nello sforzo
contrastato di imporre alla sua corte un modello di clerecía cortesana. Il re si
pone sia come regidor de pueblos (‘rettore di genti’), sia come gran
pedagogo, maestro di una cortesia basata non solo sulle semplici relazioni
vassalatiche, ma anche e soprattutto sull’entendimiento e sul saber (sulla
capacità di giudicare e sulla conoscenza, intesa in senso globale) [...].
(D’AGOSTINO, 2001, p. 747. Itálicos do autor)
Afonso X, ao planear essa perspectiva pedagógica da história cultural de seu reino,
pretendeu orientar os que freqüentaram sua corte e povoaram suas terras. Ademais, um
dos códigos jurídicos mais completos desse período, Las siete partidas estão longe de
ser “uma mera sequenza di norme (peraltro aggiornata sul rinnovato diritto romano), è
al contempo trattato morale, specchio dei tempi, progetto di reforma sociale,
monumento dei arte letteraria e altre cose ancora” (D’AGOSTINO, 2001, p. 745).
Sendo uma súmula de seu projeto jurídico, anunciado e preparado nos anteriores
Espéculo, Fuero real e Setenario, as Partidas condensam um ideário de jurisdição que
abraça todas as esferas de um senhorio de rei e de imperador8, o que as torna “una
magnífica puerta hacia el conocimiento de una época” (PALÁCIOS ALCAINE, 1991,
p. xx).
As Partidas foram produzidas sob a direção e os auspícios diretos de Afonso X,
provavelmente entre 1256 e 12659, quando já haviam sido postos em circulação
antecedentes importantes como o Espéculo, o Fuero real e o Setenario. Por
incorporarem-nos e ampliarem seu escopo legal, as Partidas estabeleceram a fundação
7
Metodologia, talvez conservadora atualmente, aconselhada por Zumthor: “La finalité idéale d’une telle
étude [de poética medieval] serait de permettre, à um lecteur de notre siècle, de décoder le texte médiéval,
à la fois selon son propre système et pourtant sans anachronisme” (1972, p. 12).
8
Como se sabe, o Sábio arquitetou as Partidas, tendo em vista principalmente sua chance de coroar-se
senhor do Sacro Império Romano. Devido a essa possibilidade, seu código jurídico ganhou dimensões
para além do reino local de Leão e Castela.
9
Sobre o período de produção das Partidas, cf. Otero (1993-1994) e O’Callaghan (2001).
Série Estudos Medievais 2: Fontes
155
do sistema jurídico do reino medieval de Leão e Castela e, mais tarde, da Espanha
moderna e dos países sob sua colonização.10
Sete livros ou “partidas” compõem a obra: a Primeira trata da Igreja medieval, em que
se regula a vida dos clérigos e leigos; a Segunda, da vida dos reis e de seus oficiais; na
Terceira, expõem-se a jurisprudência, os advogados e seu trabalho; na Quarta, trata-se
das relações domésticas e casamentos; na Quinta, regula-se o mundo do comércio, do
mar, e dos contratos; na Sexta, discorre-se sobre os testamentos, e na Sétima, sobre os
marginais, os crimes e as penalidades.
Robert I. Burns introduz sua edição, observando que nas Partidas
each title and law is an essay incorporating folk wisdom, touching myriad
aspects of ordinary society, a social and political encyclopedia in effect, a
mirror of medieval daily life. One reads them with delight – though perusing
the section on how to act and dress and talk like a knight, or on naval warfare
or labor unions, is more entertaining than working through the drier sections
on juridical procedures or last wills. Its inclusiveness, however, makes this
also a reference work on every kind of medieval arcanum. A compendious
and systematic architectonic whole, it is recognized today as a literary as well
as a legal masterpiece and is widely studied by literary and linguistic
scholars. (BURNS, 2001, p. xi-xii)
Um livro como esse, riquíssimo em vários aspectos, como indicou Burns, não passaria
despercebido aos pesquisadores.
Rip Cohen (1996, p. 6), ao estudar aspectos jurídicos nas cantigas de amigo de João
Garcia de Guilhade, considera que “o corpus de cantares de uma sociedade pode ser
uma fonte incomparável de direito consuetudinário e de moral (no sentido de mores,
costume)”. Se as cantigas, de natureza evidentemente ficcional, podem contribuir para
uma compreensão dos costumes de uma época, os códigos jurídicos, por sua vez,
ajudariam imensamente no entendimento do que poderia regular esses costumes e
direitos que, por sua vez, são representados nas cantigas. Nesse sentido é que utilizamos
as leis afonsinas: como um conjunto de documentos capazes de orientar o crítico na
percepção do que costumavam ou pretendiam costumar fazer os medievos da Península
Ibérica no século XIII, em especial quando produziam cantigas.
10
Robert Burns (2001) comenta a duração das Partidas inclusive nas leis norte-americanas.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
156
2. O nó: O problema das fontes e suas edições
No projeto que desenvolvemos sobre a sátira galego-portuguesa11, procuramos extrair
das leis afonsinas, em particular das Partidas, dados que pudessem esclarecer certo
horizonte de expectativas dos freqüentadores da corte e dos trovadores, no que diz
respeito à motivação e produção de cantigas de escárnio e maldizer. Pontualmente,
investigamos o Título IX (“Qual deve el rey ser a sus ofiçiales, e a los de su casa e de su
corte, e ellos a el”) da “Partida segunda”, composto de trinta leis; na Ley XXX (Quantas
cosas deven ser catadas en el rretraer”), Afonso X dedica atenção especial aos cuidados
na produção satírica, considerada a fronteira sutil, se não perigosa, entre o jugar de
palabras e o crime de injúria ou, como prefere Marta Madero (1992), entre a “injúria
lúdica” e a ofensa.
Entretanto, o desenvolvimento do projeto esbarrou em sérios problemas concernentes às
fontes, como de resto, sabemos, costuma ocorrer com a investigação de textos antigos.
Isso exigiu reflexões sobre a procedência e pertinência de usarmos as fontes jurídicas
peninsulares medievais, para o estudo das motivações e das delimitações da produção e
apresentação das cantigas, cujo propósito fosse o de entreter a corte por meio da burla,
do ataque, da crítica e do riso.
Em que pese ao uso freqüente das leis afonsinas pelos investigadores, quatro problemas
a respeito das fontes se põem àqueles que queiram se apoiar em particular nas Partidas
para fundamentar suas hipóteses: 1. a inautenticidade da redação atual, 2. a natureza
teórica (e utópica) de seu discurso, 3. a promulgação extemporânea do código legal e 4.
a ausência de uma edição crítica. Consideremo-los.
Desde 1952, quando Alfonso García Gallo concluiu que “resulta aventurado atribuir al
Rey Sabio, o a su época, lo que en ella [as Partidas] se dice” (GARCÍA GALLO, 19511952, p. 450), há uma suspeita generalizada de que “el texto impreso no reproduce
fielmente el primitivo de las Partidas” (p. 358). Tal desconfiança retiraria do documento
sua credibilidade. Entretanto, em 1991, Aurora Juarez Blanquer, ao introduzir sua
11
Projeto de pesquisa Non serie juego onde omne non rrye: aspectos da sátira galego-portuguesa,
supervisionado pela Profa. Dra. Yara Frateschi Vieira, do Instituto de Estudos da Linguagem da
Universidade Estadual de Campinas, e subsidiado por bolsa de estudos de pós-doutorado do CNPq.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
157
edição da “Segunda Partida”, considera ainda essa suspeita e admite a resistência de
juristas e lingüistas, para estudarem esse corpus afonsino. Contudo, a autora defende
sua edição e apóia-se no fato de que, ao menos no caso da “Segunda Partida”, “la
doctrina que allí se muestra tiene confirmación en otros textos alfonsíes, de tal modo
que podamos afirmar que su doctrina corresponde a la mentalidad del Rey o de su
equipo” (JUÁREZ BLANQUER, 1991, p. 378). Como nosso projeto se baseia
especialmente na “Segunda Partida”, pareceu-nos cuidadoso lançar mão, sobretudo, da
edição de Juárez Blanquer, referindo apenas como exemplos presumíveis outras
passagens das Partidas.
Assim sendo, pela razão exposta por García Gallo, e apesar do risco do uso de tal
testemunho, o texto das Partidas em geral foi tomado cautelosamente, tendo em vista
que seu discurso pode se aproximar muito da época, mas sem segurança de que o
manuscrito estudado se trate de um texto integralmente contemporâneo ao Rei Sábio e a
seus trovadores.
No que diz respeito ao segundo problema, ainda que se imagine que as Partidas sejam
um código jurídico de caráter eminentemente prático, seriam elas também ou,
sobretudo, um conjunto de textos doutrinários, uma suma (GARCÍA GALLO apud
O’CALLAGHAN, 2001, p. xxxviii) ou “an encyclopedic and systematic integration of
definition, prescription, explanation, and amplifications of materials from many sources
– classical and contemporary, canonical and secular, Roman and Castilian, legal and
literary – in different languages” (MACDONALD, apud O’CALLAGHAN, 2001, p.
xxxviii), marcas que lhe conferem um inegável perfil teórico – além do caráter oficial
que, para o caso desta pesquisa, voltada para um produto cultural de corte, é
inequivocamente adequado – o que a princípio reduziria seu alcance, em termos de
prática cotidiana. Embora “el derecho no refleja la realidad, la representa y la organiza;
actúa sobre ella creando las condiciones de su propia transformación” (ASSIERANDRIEU, 1987 apud MADERO, 1992, p. 24), seu discurso possibilita um
rastreamento dos problemas a que porventura estavam submetidos os homens de certo
período, se aceitar-se que as leis são criadas para resolver os problemas e os impasses
que as sociedades deparam no convívio comum.
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158
Jesús Montoya Martínez, um dos que mais se dedicaram ao exame histórico-literário
das Partidas, em especial da “Segunda”, destaca, porém, a importância, não apenas
jurídica, mas cultural do texto. Deve-se isso ao fato de seu régio autor12 nos ter
transmitido uma série de doutrinas que esclarece um largo período da história do
pensamento político do medievo (MONTOYA MARTÍNEZ, 1991, p. 319), assim como
um conjunto de concepções retóricas caras ao tempo e à corte literária de Afonso X.
Este mesmo argumento é observado por Francisco López Estrada e Maria Teresa López
García-Berdoy como critério para a edição de sua antologia das Partidas:
El criterio del que nos hemos valido para reunir esta antología fue escoger los
fragmentos en que mejor se testimonia la vida de la época: usos y costumbres
de las gentes, ceremonias, faustos, galas, rituales, signos propios de los
grupos sociales en relación con la Iglesia y el gobierno, la guerra y la paz, el
cautiverio, la convivencia de los cristianos con los moros y judíos, etc. Y
también hemos preferido lo que toca de una manera más directa con la
literatura en el amplio sentido que hemos indicado: la labor de los escribanos,
el grado de los conocimientos atribuidos a las diferentes clases sociales, la
enseñanza y sus instituciones, el establecimiento de una cortesía o ámbito de
la convivencia entre las gentes que rodean al rey, en la que una peculiar clase
y orden de vida se considera como la más adecuada, e impone un tono y un
estilo en las relaciones sociales, y alcanza también a la misma formulación de
la literatura. (LÓPEZ ESTRADA, 1992, p. 11-12)
Tais argumentos validam a utilização das Partidas como fonte primária fecunda para
o exame de questões relacionadas à produção cultural trovadoresca e, em particular, a
satírica. Nesse sentido, as leis afonsinas certamente ajudam a lograr noções caras ao
público cortesão sobre o escarnecer, uma vez que legisla não somente o que se pretende
que seja respeitado no futuro, mas o que já havia sido cristalizado como costume no
passado.
Em relação à natureza utópica das leis – ou seja, o que prescreve a norma estaria muitas
vezes distante do que os homens fariam no cotidiano –, é necessário ter cuidado e não
supor de antemão que o que vai expresso nas leis seria rigorosamente seguido. Tenha-se
em mente a discrepância entre o que determina a lei e, por exemplo, os muitos casos de
fraudes jurídicas da Igreja (OTERO, 1993-1994, p. 518). Além disso, o próprio Afonso
X lançou mão de casuísmo grave – como o de repartir o reino –, na crise de sucessão
12
A noção de autoria segue aqui a do próprio Afonso X: “el rey faze um libro, non por quel el escriua con
sus manos, mas porque compone las razones del, e las emienda et yegua e enderesça, e muestra la manera
de como se deuen fazer, e desi escriue las qui el manda, pero dezimos por esta razon que el rey faze el
libro” (apud GARCÍA SOLALINDE, 1915, p. 286). Aurora Juárez Blanquer cita esse autor em sua
introdução à edição da Segunda partida (1991, p. 12). Cf. ainda O’Callaghan (2001, p. 173).
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entre seu filho segundo e seu neto, para garantir a coroação do neto e não de Sancho IV
(O’CALLAGHAN, 1999, p. 331). Não obstante isso, não se pode imaginar tampouco
que as leis eram ignoradas.
Esse senão (a natureza teórica e utópica das leis) não obsta as reflexões propostas sobre
a sátira, uma vez que o objetivo da investigação não está propriamente na constatação
ou não da obediência legal dos peninsulares medievais. Está, isto sim, na observação de
possibilidades de linhas de compreensão da noção de sátira expressas nas leis e, por
conseguinte, da possibilidade de leitura das cantigas escarninhas por meio dessa chave.
Se é verdade que alguns trovadores, freqüentadores e profissionais da corte, poderiam
ignorar ou desobedecer ao que regularia a lei, isso não significa que não houvesse na
produção de alguns trovadores cantigas que a seguissem.
Isso nos remete à discussão sobre a validade ou não da Arte de trovar na consideração
dos gêneros. Decerto, a poética galego-portuguesa não consegue, nos capítulos mais
completos, tornar nítidos os contornos das cantigas. Contudo, a presença de uma razon
dele ou dela na primeira estrofe, o uso ou não da equivocatio ou a contraposição
dialogada de opiniões como parâmetro genológico, por mais simples que seja, conduz a
recepção crítica a uma noção mais próxima do que tinham em mente os trovadores
quando produziam seus cantares. Exata ou não, fragmentária e incompleta, a Arte de
trovar indica chaves de leitura imprescindíveis. Pensamos, por conseguinte, que o
estudo das leis sobre a o escárnio e a sátira no mesmo período do trobar não será
infecundo.
A promulgação das Partidas, por sua vez, espinhosa tarefa de Afonso X diante da
reação conservadora dos nobres – que preferiam os fueros, leis de natureza local e
consuetudinária, que garantiam mais seus direitos senhoriais (O’CALLAGHAN, 2001,
p. xxxix; GONZÁLEZ JIMÉNEZ, 2004, p. 367) –, não ocorreu durante o período em
que regeu o Sábio e produziram os trovadores13. Provavelmente, foi considerada como
13
O’Callaghan é de opinião que as Partidas dificilmente seriam utilizadas, como pensam outros
estudiosos, apenas como um instrumento acadêmico de referência, e que Afonso X utiliza, sim, aquelas
leis concomitantemente com os fueros: “I believe it is reading too much into the scanty evidence available
to conclude that the Partidas was set aside entirely as a result of the confrontation at Burgos in 1272 or
transformed from a code of law into a legal encyclopedia. I strongly doubt that Alfonso X was content to
consider the Siete Partidas merely a handy academic reference tool. The juridical situation thereafter was
somewhat ambiguous, as the Fuero real obviously was not discarded but continued to be used side by
side with the older fueros. The citation of two laws from the seventh partida in the Leyes del estilo, a text
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lei subsidiária apenas no séc. XIV (OTERO, 1993-1994, p. 460), embora se defenda a
idéia de que o próprio Afonso teria decerto deliberado pleitos de seu governo, baseandose nas Partidas, a despeito de sua publicação ou não: “en su época, su campo de acción
quedó delimitado a los pleitos del rey, para cobrar vigencia legal un siglo después en el
Ordenamiento de Alcalá (1348), bajo el reinado de Alfonso XI” (JUAREZ
BLANQUER, 1991, p. 13-14)14. A princípio, esses óbices inviabilizariam as hipóteses
de pesquisa, dependendo da perspectiva tomada para realizá-la.
Entretanto, a finalidade deste estudo, qual seja, observar em documentos jurídicos
coevos o ideário sobre a sátira no ambiente cortesão peninsular no século XIII, detecta
nas Partidas – além de outros textos da mesma época – justamente o que elas têm de
aspecto relevante: sua tendência doutrinária (a que se juntam as disposições da vida
cotidiana15) e, portanto – a despeito de sua natureza utópica –, orientadora dos homens
da época, como pretendia o Sábio com seu projeto pedagógico junto a sua corte
(D’AGOSTINO, 2001, p. 747). Assim, estudar a sátira, a partir do que prezam as leis
em sua doutrina e mentalidade, dá-nos indícios importantes da prática do trovar cantigas
escarninhas, se não, ao menos – e isso não deixa de ter sua relevância – de certa
expectativa dos que freqüentavam a corte.
O quarto problema diz respeito às edições. Mesmo sendo uma obra capital na história
do Direito espanhol, as Partidas carecem, ao contrário do Setenario, do Fuero Real e do
Espéculo, ainda de uma edição crítica. Alonso Díaz de Montalvo, em 1491, Gregório
López, em 1555, J. Thomas Lucas de Valencia, em 1758, B. Monfort, em 1767, Ignácio
Samponts y Barba, Ramón Martí de Eixala y José Ferrer y Subirana, em 1843
(JUAREZ BLANQUER, 1991, p. 14-19), editaram as Partidas, sem, contudo, lograr
resultados satisfatórios no todo.16 Atualmente, conhecem-se, além de uma vasta fortuna
crítica, uma edição fac-similada da edição salmantina de 1555, glosada por Gregorio
Lopez, de 2004, uma antologia espanhola de 1992 e uma tradução americana publicada
describing the practice of the royal tribunal at the end of the thirteenth century, also gives one reason to
believe that the court continued to make use of the Partidas.” (O’CALLAGHAN, 2001, p. xxxix-xl).
14
Cf. ainda Joseph O’Callaghan (2001, p. xxxix).
15
Como afirma Aurora Juárez Blanquer (1991, p. 13): “Basadas en el Derecho Romano, y canónico
(Código Justiniano y Decretales), las Partidas alternan los preceptos teóricos y normativos junto con
disposiciones de la vida de la época, conservando lo que quedaba presente en los fueros castellanos”.
16
Sobre as edições das Partidas, cf. Craddock (2001, p. xliii et seq.).
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em 1931 e editada em 2001.17 A dificuldade da edição está no número variado de
códices das Partidas, provenientes de escribas do século XIV e XV (O’CALLAGHAN,
2001, p. xxxiv). A mais autorizada, entretanto, continua a ser aquela da Real Academia
de la Historia, com glosas de Gregorio López.18
Felizmente para o propósito deste estudo, em 1991 foi publicada por Aurora Juarez
Blanquer e Antonio Rubio Flores uma edição do manuscrito 12.794 da Biblioteca
Nacional de Madrid da “Segunda Partida”, em que o Sábio discorre justamente sobre
três fundamentos do poder leigo: governo e papel do rei, defesa e arte da guerra, e
educação como recurso central e garantia sagrada do governo (BURNS, 2000, v. 2, p.
ix). Por sorte acadêmica, e a despeito das dificuldades de se estudar o corpus jurídico
afonsino, complexo objeto a que nos dedicamos preliminar e muito pontualmente,
conseguimos contornar relativamente o problema da escolha das fontes e trabalhar com
edições críticas de manuscritos também relativamente confiáveis.
3. O novelo: As cantigas satíricas e as leis afonsinas
No processo paulatino de colmatagem das lacunas da Arte de trovar, ler ou reler alguns
textos – sobretudo, os provavelmente contemporâneos dos trovadores – como pontos de
referência para a concepção poética, retórica e ética dos gêneros galego-portugueses
pode ser muito producente. Este é o arriscado propósito do trabalho que vimos
desenvolvendo: recolher nas Partidas e em outros códigos jurídicos contemporâneos,
como o Espéculo (ALFONSO X, 1990), o Fuero real (ALFONSO X, 1991a) e o
Setenario (ALFONSO X, 1945), dados que ajudem a perceber melhor um dos gêneros
mais intrigantes da lírica profana medieval peninsular: as cantigas de escárnio e
maldizer.
A intenção é inferir nas leis o que Lubomír Doležel, a propósito da noção de poética,
denomina “uma actividade cognitiva que reúne conhecimentos sobre literatura e os
incorpora num quadro de conhecimentos mais vasto adquirido pelas ciências humanas e
17
Conferir referências.
Vale notar que as traduções portuguesas das Partidas foram estudadas por José de Azevedo Ferreira, e
mais recentemente, por Aida Fernanda Dias. Cf. comentários de Jerry R. Craddock (2001, p. xli-xliii) a
respeito do estudo dos manuscritos espanhóis e portugueses das Partidas.
18
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sociais”.19 Restringindo o âmbito do conceito de Doležel à investigação que propomos,
a noção de poética que seguimos implica na busca de conhecimentos sobre sátira
medieval, não raro abstrata e genericamente sugeridos ou expostos nas leis atribuídas a
Afonso X. Nelas destacamos os aspectos que subsidiam uma noção mais ampla de
escárnio, por um lado, na medida em que uma lei tende a ser generalizante, e específica,
por outro, uma vez que resume e afiança uma expectativa contemporânea do que tenha
sido a produção satírica na corte afonsina. Em vez de se perquirirem dados pontuais
como denominações de gênero, léxico, sintagmas, métrica e ritmos, normalmente
estudados por um tratado poético, o intuito é o de reconhecer outros fundamentos que
operariam no trobar satírico.
No que concerne aos códigos jurídicos mencionados, foram analisados em especial a
“Segunda Partida” e seus títulos e leis, referentes ao domínio civil, de modo a tornar
mais compreensíveis os conceitos expostos no Título IX, como o de “corte”, “retraer”,
“juego”, “jugar de palabra”, “denostado”, “palaciano”20, palavras-chave para a
apreensão da legislação específica sobre a produção de cantigas satíricas.
Considerando que as Partidas, especialmente a “Segunda”, resvalam em outros gêneros
textuais, para além do jurídico, como o espelho de príncipes ou o tratado de cavalaria
(MONTOYA MARTÍNEZ, 1991, p. 359), parece que, esparsamente, algumas leis que
tangem aspectos culturais e literários poderão sugerir prescrições comuns à poética. Tais
tangenciamentos é que proporcionarão pistas para perceber mais acuradamente os
gêneros “que os trobadores fazen querendo dizer mal d’alguen” (ARTE, 1999, p. 42).
Referências
ALFONSO X. Setenario. Edición de Kenneth H. Vanderford. Buenos Aires:
Universidad de Buenos Aires, 1945.
19
Essa noção de Doležel deriva da comparação que o autor estabelece entre crítica (“uma actividade
axiológica e judicativa que integra e reintegra as obras literárias no sistema de uma cultura”) e poética
(DOLEŽEL, 1990, p. 11).
20
Infelizmente, os glossários dedicados à obra jurídica de Alfonso X (ALFONSO X, 1990; ALFONSO
X, 1991a; ALFONSO X, 1991b; VAN SCOY, 1986) apresentam o sentido do conceito e sua transcrição
exposta nas leis, sem comentário explicativo capaz de situar o leitor em relação aos matizes semânticos
históricos, sociais e culturais. A antologia de Francisco López Estrada e Maria Teresa López GarciaBerdoy atentam mais para isso, nas notas.
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Fontes literárias da difamação
e da defesa da mulher na Idade Média:
Referências obrigatórias
Pedro Carlos Louzada Fonseca
Universidade Federal de Goiás (UFG)
Resumo: Alguns dos mais significantes textos e autores antifeministas do século XII ao início
do século XV serão considerados na discussão do assunto deste estudo, que é sobre a imagem
da mulher no pensamento e na literatura da Idade Média. Dessa forma, no desenvolvimento do
estudo, serão examinadas algumas das principais manifestações daquela tradição antifeminista,
desde as suas raízes clássicas, da literatura patrística e do seu legado até as suas adaptações
vernaculares na tardia Idade Média. Respostas àquele antifeminismo serão conferidas em
algumas obras e autores do período. A proposta final do estudo é apresentar uma visão crítica e
analítica de alguns aspectos da misoginia e de um incipiente tipo de defesa da mulher na
expressão literária do período medieval.
Palavras-chave: Misoginia medieval e respostas; Ideologia; Política.
Abstract: Some of the most significant antifeminist texts and authors from the 12th to the
beginning of the 15th century will be considered in the discussion of the subject matter of this
study, which is about the image of woman in the thought and literature of the Middle Ages.
Thus, in the development of the study some of the main manifestations of that antifeminist
tradition from its classical roots, patristic literature and its legacy to its vernacular adaptations in
the late Middle Ages will be examined. Responses to that antifeminism will be checked out in
some works and authors of the period. The final purpose of the study is to present an analytical
and critical view of some aspects of misogyny as well as a kind of incipient defense of women
in the literary expression of the medieval period.
Keywords: Medieval misogyny and responses; Ideology; Politics.
Sem a intenção de se reproduzir aqui uma litania da desgraça sobre o que se tem mal
falado da mulher no período medieval, o presente estudo começa com os infelizes e
ultrajantes pronunciamentos antifeministas escritos nesse período, quer por pessoas
ligadas à prática da vida religiosa, quer por outras responsáveis por escritos do gênero
secular. E esse começo assim se propõe orientar por uma razão que pode ser constatada
como óbvia: em todo o período medieval, de feitio patriarcal, pode-se constatar a
presença de uma maior quantidade de textos de natureza misógina do que de textos
simpáticos e defensores da mulher.
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168
Apesar do risco da generalização, pode-se cogitar se um dos pensamentos onipresentes
nesse antifeminismo medieval não foi exatamente aquele que encontrou certo deleite em
tabular a mulher como um animal (bestia), sendo aqui lembrada para retratá-la a figura
da serpente ou de outra criatura tão quanto ou mais venenosa. Além dessa característica
estrategicamente naturalizadora, a tradição desse antifeminismo tinha outras preferidas,
as quais eram lembradas a partir de um inventário fabuloso das mais malsãs e perversas
características femininas.
Normalmente retratada como ciumenta das suas rivais e abrasivamente loquaz
(virulentis sermonibus), a mulher era ainda criticada por ser uma compulsiva e egoísta
consumista, frívola, dissimulada e imbecil para o conhecimento e entendimento das
coisas superiores.
Da imensa quantidade de textos misóginos medievais, é consenso, mais ou menos geral,
entre os estudiosos do assunto, que os escritos de Theophrastus (c.372-288), de São
Jerônimo (Eusebius Sophronius Hieronimus, c.342-420) e de Walter Map (1140c.1209) constituem referência clássica. O antimatrimonial e influente, mas
desconhecido, Liber de nuptiis [Livro do casamento], de Theophrastus foi, com
invocada autoridade, citado e apropriado por São Jerônimo no seu Adversus Jovinianum
(c. 393) [Contra Jovinianus]. Nesse seu livro, o santo convincentemente dissuade os
verdadeiros cristãos do casamento (DELHAYE, 1951, p. 65-86; SCHMITT, 1971, p.
259-263).
A obra de São Jerônimo chegou mesmo a motivar grandes obras pró-celibato como, por
exemplo, a Theologia christiana (c.1124) [Teologia cristã], de Abelardo (Petrus
Abaelardus, 1079-1142), e o Policraticus (c.1159), de John de Salisbury (c.1115-1176).
Walter Map não fica atrás, nessa lista misógina, com a sua não menos virulenta e
antimatrimonial The Letter of Valerius to Ruffinus, against Marriage (c.1180) [A carta
de Valerius a Ruffinus, contra o casamento] (MAP, 1983, p. 287-313).
Finalmente, mas não de somenos importância, encontra-se o mais triste dos livros de
sabedoria da Bíblia medieval, o Eclesiasticus (RICHARD DE BURY, 1960, p. 42-44;
PRATT, 1962, p. 5-27). Para esse trio, como para tantas outras obras misóginas na sua
esteira, a vida doméstica de casado era uma verdadeira desgraça, enquanto que o
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169
celibato era considerado como uma condição de excelências morais, intelectuais e
espirituais. Tudo isso, de forma política, servia para eternizar o monopólio masculino
da cultura literária relativamente à expressão do estado civil ideal dos homens e das
mulheres piedosas e devotas à vida cristã.
Entretanto, ao se considerar seriamente textos antifeministas como esses e outros do
passado, poder-se-ia de início refletir acerca da possibilidade de eles virem a ter uma
tradição. E, se esse fosse o caso, inquirir sobre quais deles seriam fundadores, passagens
obrigatórias.
Apesar de o assunto ser muito vasto, mesmo assim, quando se investigam as raízes
desse antifeminismo medieval, uma original passagem obrigatória se faz sentir
regressivamente em direção à antiga lei judaica e ao crepúsculo da cultura grega. Nesse
último caso, é sabido o quanto Hesíodo (Hesiodus, c.750 a.C.) já maldizia da praga do
mal introduzida no mundo através da mulher (ALLEN, 1985, p. 14-15). Ovídio (Publius
Ovidius Naso, 43 a.C.-18 d.C.), cujos antecessores misóginos foram temporariamente
perdidos de vista no período medieval, constitui um nome obrigatório na longa lista de
antigas e tradicionais sátiras contra a mulher.
Outra importante direção desse precedente antifeminismo tradicional, difundido e
reelaborado para atender à ideologia político-religiosa da Idade Média, são os antigos
estudos de fisiologia e de etimologia. Aristóteles (Aristotéles, 384-322 a.C.), em De
generatione animalium [Sobre a geração dos animais] (ARISTOTLE, 1963, 726b, 727a,
727b, 729a, 737a, 738b, 775a, p. 91-93, 97, 101-103, 109, 173-175, 185, 459-461), e
Galeno (Aelius Galenus ou Claudius Galenus, 131-201), em De usu partium (final do
século II) [Sobre a utilidade das partes do corpo] (GALEN, 1968, ii, pp. 630-632),
subestimaram o corpo feminino como deformado e impuro, frente à perfeição do corpo
masculino, com as suas eficazes propriedades gerativas e intelectivas (ROUSSELLE,
1988, p. 12-20; JACQUART, 1988, p. 55-56).
Por uma espécie de habilidoso curto-circuito, as condenações da natureza e da fisiologia
femininas corresponderam a pronunciamentos misóginos instruídos pelo entendimento
linguístico, sendo aqui exemplo ímpar a influente enciclopédia Etymologiae
[Etimologias], de Santo Isidoro de Sevilha (Isidorus Hispalensis, c.570-636), onde é
Série Estudos Medievais 2: Fontes
170
tratada a origem de palavras relacionadas à natureza e à fisiologia sexual da mulher.
Ainda nessa obra é comentado sobre o poder destrutivo, maléfico e monstruoso do
mênstruo (ISIDORE OF SEVILLE, 1962, XI, ii. 17-19, 23-24; XI, i. 140-141).
Nesse particular, estava o santo não só seguindo o que sobre o assunto dizia Plínio
(Gaius Plinius Secundus) em Naturalis historia (século I) [História natural], mas
também impulsionando uma sólida tradição de nomes que trataram dos danos
provocados pelo sangue menstrual, chegando mesmo a ser assunto tratado no condoído
livro De miseria condicionis humane [Sobre a mísera condição humana], do Papa
Inocêncio III (Lotario di Conti, 1198-1216) (INNOCENT III, 1978, I. 4, p. 100-101).
Aproveitando a ideia da impureza da menstruação, as vozes do cânone religioso da
Idade Média colocavam que a relação sexual com uma mulher nesse estado arriscaria o
homem de ficar enfermo e até mesmo de contrair a lepra (JACQUART, 1988, p. 186).
Já no terreno da fisiologia de raízes aristotélicas, considerações tidas como científicas
acerca do corpo e das funções femininas falavam da menstruação como uma
incapacidade da mulher para se evoluir para a forma mais completa do desenvolvimento
humano, isto é, o homem.
Várias são as vozes da misoginia medieval que comentam sobre a natureza destrutiva e
corruptível do sangue menstrual. Entretanto, a de Isidoro de Sevilha sobre o assunto é
de uma expressão derrogatória bastante marcante. Diz o santo que, “do contato com este
sangue menstrual, as frutas deixam de germinar, o mosto fica azedo, as plantas morrem,
as árvores perdem os seus frutos, o metal fica corroído com ferrugem, e os objetos de
bronze pretejam. Qualquer cão que o consome contrai a raiva. O betume, que resiste
tanto o metal quanto a água, se dissolve espontaneamente quando poluído com esse
sangue” (ISIDORE OF SEVILLE, 1962, XI, i. Tradução minha).
Não só o que a mulher expelia de impurezas era motivo para a paura femifóbica do
homem. O sexo feminino em geral e o seu inexorável poder de sedução exercido sobre
os homens eram considerados não só biologicamente adversos como também de
infalível destruição. Apesar das interdições impostas pela doutrina religiosa na
investigação da anatomia e fisiologia humanas na Idade Média, a autoridade de certos
pensamentos científicos cunhados na Antiguidade foi convenientemente acatada. Um
Série Estudos Medievais 2: Fontes
171
deles referia-se à excelência do sêmen masculino, explicada pelo maior calor
naturalmente presente no corpo do homem.
Com a redescoberta dos escritos de Aristóteles, esse e outros postulados acerca da
geração tiveram considerável impacto a partir do século XII. O filósofo grego havia
reduzido o papel da mulher, na geração, àquele de matéria prima, à espera da ação
formadora ou movedora do sêmen do homem. É de origem aristotélica o cultivo
discriminatório da ideia de passividade da mulher na procriação, pois, considerada
como um “macho deformado”, ela era pensada contribuir apenas como semente inativa.
A considerável autoridade de Aristóteles foi certamente responsável pela conservação
medieval da equação da mulher à matéria, enquanto o homem era responsável pela
forma que, equacionada à Alma, encontrava-se em estado superior apenas no sexo
masculino. Por essa e outras razões, o fisiologismo de Aristóteles e de Galeno acerca do
excelência do macho sobre a precariedade e defeitos da fêmea era frequentemente
glosado durante o período medieval, a exemplo do tratado ginecológico, popularmente
conhecido no século XII, intitulado De secretis mulierum [Sobre os segredos das
mulheres], espuriamente atribuído a Alberto Magno (Albertus Magnus, 1193-1206)
(LEMAY, 1978, p. 391-400).
Uma vez que o sêmen foi considerado como uma espécie de resíduo de sangue
altamente depurado, supôs-se, na opinião transmitida por esses pensadores da
Antiguidade, que a freqüente atividade sexual literalmente drenaria a vitalidade do
sangue do homem, causando-lhe deficiências (ARISTOTLE, 1963, 725b, 726b, p. 8990).
A metáfora máxima, jamais cunhada para figurar o simbólico sentido destruidor do
corpo feminino, foi, sem dúvida, a do aproveitamento do antigo medo da vagina dentata
(vagina dentada) para significar o portão do Inferno do imaginário religioso medieval:
“Medieval Christianity made the vagina a metaphor for the gate of hell and revived the
ancient fear-inducing image of the vagina dentata (toothed vagina) that could bite off a
man’s penis” (WALKER, 1988, p. 328). [A cristandade medieval fez da vagina uma
metáfora para o portão do inferno e reviveu a antiga imagem indutora de medo da
vagina dentata (vagina dentada) que podia cortar fora o pênis do homem].
Série Estudos Medievais 2: Fontes
172
Pelo que se sabe, nenhuma mulher, antes de Christine de Pizan (1365-c.1430), tratou
textualmente de apontar o absurdo de muitos pensamentos derrogatórios da natureza
feminina. Em Le Livre de la Cité des Dames (1405-?) [O livro da cidade das damas]
(CHRISTINE DE PIZAN, 1982, I. 9. 2, p. 23-24), como em outros escritos seus, é
realmente admirável a sua sabedoria e o seu engenho retórico em desconstruir muitos
momentos-chave desse discurso antifeminista.
Notável, por exemplo, é a sagaz argumentação, em favor da elevação da origem
genésica da mulher, que Christine de Pizan fez sobre o conhecido “topos da costela de
Adão” (D’AVRAY, 1980, p. 71-119), motivo muito glosado em vários textos medievais
em defesa da mulher, a exemplo do Mandamento VI, capítulo 4, do anônimo Dives and
Pauper (1405-1410) (D’AVRAY, 1980, i. p. 2, pp. 66-72).
Toda essa discriminação da natureza e da fisiologia femininas realizava, no
antifeminismo da Idade Média, uma ligação tendenciosa entre o teológico e o
ginecológico (BLOCH, 1987, p. 1-24).
Santo Agostinho (Aurelius Augustine Hipponensis, 354-430), um dos pilares da
cristandade, apenas aparentemente não discriminou o lamentável estado corpóreo da
mulher, ao seguir o ensinamento de Galateus 3: 26-28 acerca da equivalência teológica
dos dois sexos. Mesmo assim – e não concordando, em De Trinitate [Sobre a Trindade],
com o equacionamento da mulher ao corporal –, considerava, como perturbadora da
serenidade e da espiritualidade da mente masculina, a instigante predisposição feminina
para as solicitudes materiais e sensoriais (BORRESEN, 1981, p. 25-30).
Santo Ambrósio (Ambrosius, c.339-397), em De Paradiso (c.375) [Sobre o Paraíso],
propôs uma interessante alegoria para a Queda de Adão e Eva, na qual a mulher
representava os sentidos do corpo e o homem, a mente. Completava o santo dizendo que
os prazeres agitavam os sentidos, os quais, por sua vez, afetavam a mente (AMBROSE,
1961, XV, p. 351).
Os primeiros Padres da Igreja sempre se mostraram preocupados com a questão da
proximidade e da companhia femininas. Refletindo as considerações de São Paulo
Série Estudos Medievais 2: Fontes
173
sobre a distração que o casamento e a família poderiam representar para a consolidação
institucional do cristianismo e também para o alcance da excelência mental e espiritual
do homem, consideravam tais compromissos problemáticos. Sobre isso comentou São
Jerônimo. Fundamentado em Mateus 19: 12, no seu Adversus Jovinianum, comentou
acerca da felicidade de, ao invés de servir a uma esposa, servir a Deus, fazendo-se
eunuco para o reino do Céu (JEROME, 1893, 2nd. ser., vi, I. 12, p. 346-348).
Essa distração matrimonial e familiar podia ser evitada através do celibato. Entretanto,
na prática, o que complicava era a quase redução da mulher a um irrefreável arsenal de
vícios e a um lascivo convite ao homem para pecar, danificando a sua alma (OWST,
1933, p. 395). Devido ao fato de meramente existir ou cultivar a sua aparência ou
semblante, ficou famosa a metaforização da mulher como uma mortífera espada
desembainhada e um perigoso poço destapado (D’AVRAY, 1980, p. 102). Essa terrível
imagística misógina pode ser conferida, dentre outras fontes, em Tertuliano (c.160c.225), no seu De cultu feminarum (século I ou II) [Sobre a aparência das mulheres]
(TERTULLIAN, 1959, xl, II. 2). e no The Ancrene Riwle [Regra para as eremitas] (THE
ANCRENE RIWLE, 1955, pt. II, p. 23-25), um tratado anônimo do século XIII ou antes.
Associado aos temas metafóricos da mulher imaginada como poço destapado ou espada
desembainhada, bastante recorrentes na literatura medieval, encontrava-se o tema do
impuro e embusteiro olhar feminino, frequentemente glosado pelos Padres da Igreja, a
exemplo das advertências de São João Crisóstomo (Joannes Chrysostomus, c.347-407)
(BLOCH, 1987, p. 15). Tais pronunciamentos e imagens terminavam por qualificar a
mulher como um recurso infeliz, uma perpétua fonte de desavenças e discórdias. Tudo
isso pode ser conferido no Adversus Jovinianum, de São Jerônimo, fiel herdeiro das
ideias de Ovídio, em Amores (1982, II. 12, p. 232-234) e de Juvenal (Decimus Iunius
Iuvenalis, fim do século I e princípio do século II), na Sátira VI (1958, v. 242-243, p.
72).
A visão da embusteira disposição da mulher, não raras vezes considerada agenciada
pelo diabo, reforçou a ideia do monopólio do homem na pregação e na prática de
atividades religiosas sagradas. Nesse sentido, raríssimas foram as exceções que
acorreram em favor da emancipação religiosa da mulher (MCLAUGHLIN, 1976, p. 73-
Série Estudos Medievais 2: Fontes
174
90), a exemplo do que propunham os Waldenses (século XII) e os Lollards (1380-90)
(REGISTRUM JOHANNIS TREFNANT, 1984, p. 55).
Um dos principais defeitos da mulher associava a sua natural predisposição para a
incontinência, verificada em todos os sentidos, com a sua compulsiva, copiosa e
excitante falação, tal como a da esposa em The Wife of Bath (c.1390-95) [A esposa de
Bath], de Geoffrey Chaucer (c.1343-1400) (1955, p. 219-239).
Talvez um dos mais intrigantes paradoxos, bastante em voga no século XII, tenha sido
exatamente isso: uma ascética obsessão em condenar as mulheres de verem e de serem
vistas, em denegar acerbamente a sua mera realidade, associada com a prática de uma
adoração cortês da sua imagem (BLOCH, 1987, p. 15), nunca totalmente isenta de
titilantes ambivalências de erotismo (PATTERSON, 1983, p. 662). É de se cogitar aqui
se esse medo do poder de erotização e da prodigalidade sexual da mulher não trazia ao
homem uma apreensão ou complexo de inferioridade, dos quais ele sairia reconfortado
simplesmente pela atitude de naturalizar as mulheres ao nível das mais indecentes e
libidinosas criaturas.
Ideias desse tipo – e de que a luxúria do amor efeminava os homens – compareceram
com incrível insistência no pensamento medieval, a exemplo do que disseram Santo
Isidoro de Sevilha, nas suas Etymologiae (ISIDORE OF SEVILLE, 1962, XI, ii. 23);
Jehan Le Fèvre (séculos XIV-XV), nas suas Les Lamentations de Matheolus (c.137172) [As lamentações de Matheolus] (JEHAN LE FÈVRE, 1892, 1905, II. 1571-1702);
André Capelano (Andreas Capellanus, séculos XII-XIII), no seu De amore (c.1185)
[Sobre o amor] (ANDREAS CAPELLANUS, 1982, III. 50, p. 244-245) e John Gower
(1325?-1408), no seu Confessio amantis (1386-90) [Confissão de um amante]
(GOWER, 1900, ii, VII. 4239, 4292, p. 354-355).
Esse equacionamento da mulher à libido tornava-a, entre outras coisas, insuficiente de
inteligência e de razão mais desenvolvidas, sendo apenas boa para pequenos conselhos e
tomadas de decisão imediata. Sem levarem em consideração que as mulheres eram
verdadeiramente capazes, os contadores de histórias medievais ficavam surpresos pelo
fato de muitas heroínas dos fabliaux ultrapassarem os seus torpes maridos com provas
de notável presciência (SPENCER, 1978, p. 211). Tais aspectos foram retomados, em
Série Estudos Medievais 2: Fontes
175
defesa da mulher, na discussão que deles fez Christine de Pizan no seu Le Livre de la
Cité des Dames (CHRISTINE DE PIZAN, 1982, I. 8. 8, p. 21-22).
No início deste estudo, foram mencionadas algumas obras antifeministas sempre
lembradas, em primeira mão, quando se discute a misoginia medieval. Entretanto, a
tradição literária era, nesse terreno, o que se pode considerar de proficuamente
enredada, baseada naquilo que hoje pode ser chamado de precedente ou, numa
terminologia mais teórica, hipotexto.
Entre os Padres da Igreja dos seis primeiros séculos depois de Cristo, precedente era um
extenso conjunto de citações bíblicas, discretamente reforçadas por citações provindas
da literatura romana. Entre os escritores de textos antifeministas do século XI em diante,
precedente significou extratos da primeira onda de textos feministas como, por
exemplo, o Adversus Jovinianum, de São Jerônimo, o qual foi como que reliberado no
século XII; The Letter of Valerius to Ruffinus, against Marriage, de Walter Map; e o De
amore, de Andreas Capellanus.
Além dessas fontes, assim sucintamente arroladas, precedente significou, entre os
escritos antifeministas a partir daquela data, um número relativamente pequeno de
lúgubres considerações sobre as mulheres, provenientes dos livros bíblicos Provérbios,
Eclesiastes e Eclesiasticus, hoje considerado apócrifo; a segunda das narrativas gêmeas
da Criação tratada no Genesis, juntamente com o relato da Queda e da punição de Eva;
certas histórias de celebrados heróis bíblicos que caíram no pecado do sexo; as epístolas
de São Paulo; máximas ou aforismos de Ovídio, Juvenal, Virgílio e outros, tais como,
Valerius Maximus, o qual se notabilizou como compilador de uma coleção de anedotas,
do primeiro século depois de Cristo; e afirmações extraídas, com o correr dos tempos,
de escritos de Padres da Igreja.
Esse corpus antifeminista se caracterizou, compactamente, por uma obcecada
recorrência homogênea de seus exemplos, tornando essa tradição uma intrincada rede de
absorventes relações entre os textos, de curiosas entreleituras.
Não raramente, as
citações eram descontextualizadas. Exemplo disso acontecia frequentemente com
aquelas extraídas do livro Provérbios, quando uma referência condenatória de uma
mulher, considerada má ou esquisita, era escolhida sem se levar em conta que uma
Série Estudos Medievais 2: Fontes
176
passagem a ela adjacente podia trazer muito bem um elogio a uma boa mulher
(ROGERS, 1966, p. 6-7).
Entretanto, muito mais desconcertante do que essa simples descontextualização era a
manipulação de uma citação inteira, de forma a extrapolar ou anular o seu sentido no
contexto original, resultando numa postura condenatória da mulher. É o caso da
parcialidade na condenação de Bathsheba, uma vez que a Bíblia não dá a entender se ela
propositadamente havia seduzido o rei David para, com ele, cometer o pecado do
adultério.
Pretextos
antifeministas
como
esse
constituíram
um
apanágio
verdadeiramente mal intencionado de muitos comentadores misóginos. Estavam tão
arraigados na prática que, ainda em 1983, C. Conroy, reexaminando o assunto,
desconfiava da integridade moral de Bathsheba (CONROY, 1983, p. 115-16).
Pelo que se pode observar, a misoginia medieval dá a impressão de ter se constituído
como um verdadeiro depósito de textos miscelânicos, onde provérbios antifeministas e
de imprecações bíblicas contra as mulheres misturavam-se com outros de igual teor,
indo e vindo em busca de fontes, dando a impressão de repetir as mesmas fórmulas e
convenções, as mesmas vozes ressoantes e incansáveis de lugares-comuns (MANN,
1991, p. 50; JOHN OF SALISBURY, 1938, p. 355).
Além das condenações anteriormente apontadas, era ainda imputado às mulheres,
constituindo uma espécie de defeito primaz, o compulsório vício de sempre resmungar,
associado a uma incontinência verbal abusiva e licenciosa (BLOCH, 1987, p. 4-5),
própria de uma língua trocista (PATTERSON, 1983, p. 660-661). A ênfase nesse tipo
de incontinência feminina, referida à sua incapacidade de manter a discrição e de se
afastar da presunção, além das indicações bíblicas, remonta a São João Crisóstomo que,
na sua Homilia IX, acerca da Carta de São Paulo a Timóteo, culpou Eva por arruinar
tudo, no minuto em que ela abriu a boca no Paraíso (JOHN CHRYSOSTOM, 1843, pp.
69-72).
Apesar de nesses textos antifeministas haver uma recorrência consistente a certas
imagens e motivos, isso não parece constituir um sistema, com princípios e padrões
estruturais presidindo a sua expressão. Não obstante esse fato, algumas características
podem ser apontadas, as quais dão certa coesão a essa postura antifeminista. A primeira
Série Estudos Medievais 2: Fontes
177
delas é o fato de os tratados misóginos, a exemplo de Les Lamentations de Matheolus,
de Le Fèvre, terem sido estruturados de forma extremamente solta, com tiradas e
invectivas, cuja maneira justapositiva parecia mesmo desafiar qualquer sentido de
ordem lógica (CASSELL, 1975, p. xx). A segunda é a presença de uma relativa escassez
de modelos recebidos da tradição antifeminista literária, tendo, muitas vezes, o autor
que se basear em modelos de outros setores da escrita medieval.
Apesar dessa falta de estruturação, alguns modelos tradicionais de escrita foram
apropriados pelo antifeminismo medieval. O mais simples deles foi o modelo de
catálogo de exemplos ilustrativos de mulheres notáveis pela sua lascívia,
frequentemente encabeçados por Pasiphaë. Esse modelo, ao que tudo indica derivado
de Ovídio, incluía também a forma de panegírico, em que as boas e virtuosas mulheres
bíblicas serviam como contraste, de efeito retórico negativo, para denegrir as más. Aqui,
a heroína do Livro de Judite conduzia um desfile de mulheres notáveis, entretanto
renomadas pelas qualidades varonis já exigidas por São Paulo. Walter Map, em sua The
Letter of Valerius to Ruffinus, against Marriage, foi um dos grandes divulgadores desse
modelo de catálogo, conseguindo, com ele, atrair uma enorme quantidade de
comentários acadêmicos, com propostas educacionais (MAP, 1983).
Outro modelo derivava de Juvenal, da sua conhecida Sátira VI que, desaconselhando o
casamento, catalogava um rol de mulheres romanas satirizadas por sua impropriedade
para o matrimônio (JUVENAL, 1958).
Outro modelo – talvez o mais influente devido não só à sua concisão, mas também à sua
aura de antiguidade autoritativa – foi o suposto libelo de Theophrastus acerca da
dissuasão ao casamento. Incorporado ao Adversus Jovinianum, de São Jerônimo, tecia
ardilosos comentários misóginos, como aquele que comentava sobre a impossibilidade
de se assegurar da fidelidade da mulher que, se fosse bonita atrairia um enxame de
amantes e, se fosse feia, iria à procura deles.
O Adversus Jovininanum foi, para a época, uma espécie de pequeno estoque,
principalmente acerca das desvantagens do casamento. Entretanto, não providenciou
nenhuma fórmula geral, mas sim uma sequência de fórmulas individuais. Destas, as
mais apreciadas tocavam no exemplo dos modos de falar das esposas e na forma de
Série Estudos Medievais 2: Fontes
178
nivelá-las todas para provar que, ricas ou pobres, bonitas ou feias, sempre significavam
problemas.
Finalmente, ainda outro modelo consistia no recurso expressivo de reclamação em
primeira pessoa, utilizado pela linguagem feminina. O próprio monólogo de The Wife of
Bath, de Geoffrey Chaucer, atestava o enorme potencial eventualmente a ser encontrado
nesse modo de reclamação em primeira pessoa, do qual uma pequena informação já
podia ser encontrada no ensaio de Theophrastus e em Juvenal. Esse modelo podia,
ainda, ser encontrado em partes de La Veuve (século XIII) [A viúva], de Gautier Le Leu
((?1210-?) (GAUTIER LE LEU, 1965, pp. 145-146); em Les Lamentations de
Matheolus, de Le Fèvre; e em Il Corbaccio (c. 1355) [O Corbaccio], de Giovanni
Boccaccio (1313-1375) (BOCCACCIO, 1975).
A seleção de referências feitas neste estudo a propósito da misoginia na Idade Média é,
na realidade, apenas incipiente. Na lista de autores e textos apresentados, poder-se-ia
ainda incluir nomes como Hildebert de Tours, Hugh de Fouilloy, Peter de Bois e muitos
outros. Também nela poderiam ser incluídas comédias medievais, numerosos poemas
curtos – como, por exemplo, os selecionados por Fiero (1989) – e produções em
diferentes línguas vernáculas como, por exemplo, as de Juan Ruiz, Cecco d’Ascoli e
Deschamps. Na verdade, conforme observou Christine de Pizan, em Le Livre de la Cité
des Dames, existiu uma verdadeira corrente desse tipo de escrita a evidenciar que a
cultura literária medieval pareceu unívoca na sua denúncia da feminilidade
(CHRISTINE DE PIZAN, 1982, I. 1. 1, p. 3-5).
A prática do discurso antifeminista medieval, muitas vezes representada pelo simples
costume ou gosto da denúncia pela própria denúncia, leva à suposição de que a
intelligentsia do período considerou as fórmulas retóricas da misoginia como um jogo
ou uma arena apropriada para mostrar os seus dotes literários. John de Salisbury,
comentando sobre o gosto dos escritores, de qualquer época, de falarem contra a
frivolidade do sexo, chegou ao ponto de querer considerar que a misoginia talvez não
passasse de invenção. Entretanto, concluiu que as mulheres se enfatuavam facilmente e
nutriam o ódio sem medida (JOHN DE SALISBURY, 1938, p. 360).
Série Estudos Medievais 2: Fontes
179
Talvez nenhum escritor tenha chegado tão perto da conclusão de a misoginia medieval
ser uma espécie de esporte como Jehan Le Fèvre que, declarando ter impulsionado os
seus argumentos acerca da mulher à sua conclusão lógica, ainda assim, não conseguiu
se isentar de lugares-comuns e símiles cunhados, desde longa tradição, para
representarem a sua figura (JEHAN LE FÈVRE, 1892, 1905, II. 2589-2648). O que
pode levar à consideração de que as atitudes misóginas de muitos textos medievais
poderiam tratar-se simplesmente de jogo é o exemplo da posição do próprio Le Fèvre
que, provando que podia jogar dos dois lados, des-escreveu as acusações antifeministas
de Les Lamentations de Matheolus logo depois de escrevê-las, refutando-as, uma por
uma, no seu Le Livre de Leesce. Antes dele, Marbod de Rennes (c.1035-1123), havia
exemplificado essa dualidade em De meretrice [Sobre a meretriz] e em De matrona
[Sobre a boa mulher] que, constituindo, respectivamente, os capítulos III e IV do Liber
decem capitulorum [Livro de dez capítulos], emparelhavam ataque e defesa da mulher.
Fosse ou não um jogo ou um desporto, a verdade é que a mulher era sempre o objeto de
um jogador posicionado em controle da situação.
O caso de se levar longe demais o fato de a misoginia, tal qual praticada na Idade
Média, não passar de um jogo para o exercício de habilidades retóricas, apresenta,
entretanto, o risco de se subestimar e desvalorizar a questão. Embora não se possa negar
que existiu, no tratamento da misoginia medieval, um elemento de paixão pelo debate
per se, também existiu muito de provocação tendenciosa e política nesse debate, para
que ele seja considerado simplesmente como não-sério e desportivo. Nesse caso, basta
ser lembrado que, como saldo desse debate antifeminista, resultou, entre outras coisas, a
incriminação da responsabilidade feminina na Queda e no Pecado Original e, daí, a
continuação da exclusão da mulher do serviço e da vida pública.
Na melhor e mais inocente das hipóteses, a misoginia, tal qual manifestada na Idade
Média, pode ser considerada como um simples exercício de habilidades dialéticas e
retóricas, não condenável por sua inconseqüência, frivolidade e inocuidade. Se esse for
o caso, então o que dizer da indignação de vários escritores medievais acerca dessa
prática discriminatória e derrogatória da realidade feminina. Houve, sem dúvida, a par
dessa literatura antifeminista medieval, uma contraparte sua que, apesar de acanhada,
constituiu uma espécie de resposta em favor da mulher.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
180
Esse tipo de literatura medieval pró-mulher foi representada por textos dos mais
variados gêneros. A seguir merecem ser destacados os seguintes, nas edições
recomendadas no original ou em tradução: o The Thrush and the Nightingale (final do
século XII) [O tordo e o rouxinol], de autoria anônima (1991, pp. 237-248); o De
matrona [Sobre a boa mulher], do Liber decem capitulorum [Livro de dez capítulos], de
Marbod de Rennes (1984); a Carta 6, De auctoritate vel dignitate ordinis
sanctimonialium [Sobre a origem das freiras], de Abelardo (1974, p. 129-175); o Liber
consolationis et consilii (1246) [Livro de consolo e conselho], de Albertano de Brescia
(Albertanus da Brescia, c. 1193-?) (2nd ser., viii, 1873); a resposta, de autoria anônima, a
Li Bestiaire d’Amor (c.1250) [O bestiário do amor], de Richard de Fournival (1201-?)
(1986, pp. 41-43); a The Southern Passion [A paixão sulina], texto anônimo, datado de
antes de 1290 (1927); a Confessio amantis, de John Gower (1900, ii, pp. 354-355); o
Tratado em refutação de Walter Brut, possivelmente de autoria de John Necton e
William Colville e o Registrum, do Bispo Trefnant (ambos, o Tratado e o Registrum,
eram relativos ao julgamento (1391) de Walter Brut, que defendia o direito de as
mulheres ensinarem e pregarem em público, assim como de exercerem certas funções
religiosas consideradas sagradas e privativas dos homens) (1914); o Dives and Pauper,
de autoria anônima (1980); o Merelaus imperator [Merelaus, o imperador], contido na
Gesta romanorum [Histórias dos romanos] (começo do século XIV), de autoria
anônima (1879, p. 311-319) e, finalmente, a L’Epistre au Dieu d’Amore (1399) [Carta
ao deus do amor] (1891), a La Querelle de la Rose (c.1400-c.1403) [A querela da rosa]
(1978) e Le Livre de la Cité des Dames (1405- ) [Livro da cidade das damas] (1982), de
Christine de Pizan.
Tendo-se mencionado aqui que muitos antifeministas medievais defenderam o que
atacaram, é de se perguntar o que havia, antes do século XII, em termos de literatura
pró-mulher. Na época dos Padres da Igreja, vários tipos de panegíricos femininos, de
autoria masculina, já eram praticados. Tais panegíricos se relacionavam a três séries de
perfeição, incentivadas como passíveis de serem alcançadas pelas mulheres, a saber, a
fidelidade da vida de esposa, a viuvez casta e a virgindade. Esta última era considerada
– nos catálogos de heroínas do Velho Testamento, aparecidos em São Jerônimo e em
Santo Ambrósio – como a virtude de mais alta admiração. Os principais modelos para o
elogio da virgindade feminina podiam ser encontrados nas Vitae das santas mártires da
Igreja que, a exemplo da pioneira Santa Catarina da Alexandria, martirizada em 307,
Série Estudos Medievais 2: Fontes
181
defendiam com decência e fortaleza a sua castidade, transcendendo o seu sexo
(CLARK, 1979).
Era natural que, no rol das virgens, a Virgem Maria era o modelo-presidente, derrotando
os adversários antifeministas com a simples menção do seu nome, como acontece, por
exemplo, em The Thrush and the Nightingale. Entretanto, há uma ironia nesse respeito
dos antifeministas medievais pela Virgem Maria. Isso porque, apesar de o seu
nascimento tê-la feito única do seu gênero, ainda assim deveria servir de modelo
supremo às simples virgens mortais, se a exigência da moralização fosse além do que os
exemplos que Sara, Rebeca, Ester, Judite, Ana, Naomi e muitas outras podiam dar. Isso
porque, os pontos de descrição de Maria, numa espécie de efeito colateral, serviam para
sublinhar as falhas das mulheres normais, à medida que ela, a Virgem, se isentava
completamente dessas falhas.
É impressionante a descrição, de sublime beatitude e santidade, da Virgem Maria feita
por Santo Ambrósio no seu tratado sobre as virgens; descrição essa que com certeza era
de humilhar e inferiorizar qualquer mulher da época, filha de simples mortais na trilha
das falências e imperfeições da vida decaída pelo Pecado. Entretanto, São Ambrósio
havia escrito que a Virgem Maria era intocável pela culpa, de fala frugal, sem inveja das
suas companheiras. Também não havia nada de tendencioso em suas palavras, nada de
estranho em seus atos, não havia nela movimento frívolo, nem um passo indeciso, nem
era a sua voz petulante (AMBROSE, 1896, II. 7, p. 374-375).
Dado o contexto misógino em que tais considerações foram escritas, pode muito bem
parecer que Santo Ambrósio, através da descrição da Virgem, estivesse contribuindo
para apontar as falhas que o leitor estava implicitamente sendo requerido registrar, uma
por uma, como prevalentes no sexo feminino. Na melhor das hipóteses, revendo-se a
figura das virgens de Santo Ambrósio, poder-se-ia considerar que ele havia caído na
armadilha de tentar defender a mulher por meio da mera negação dos motivos da sua
acusação. Reflexões desse tipo acerca do sexo feminino, centradas na visão do homem,
não eram infrequentes na Idade Média.
Para a visão androcêntrica, essa questão da virgindade e do celibato da mulher devota e
espiritualizada constituía, naturalmente, uma solução para a tranquilidade mental e
Série Estudos Medievais 2: Fontes
182
espiritual do homem. Pouco ou quase nada se tem notícia do enfoque da questão do
ponto de vista das mulheres que, muitas vezes, preferiam se manter virgens para não
terem que sofrer os abusos, as agruras e as dores do casamento. De qualquer maneira,
virgens ou casadas, as mulheres eram sempre acessórias às disposições dos homens,
vítimas dos seus comentários detratores e discriminatórios. Muitas vezes, o próprio
elogio que a elas era feito constituía o fundamento de uma visão oposta, preocupada em
conceituá-las más por natureza (DELANY, 1990, p. 159).
Mesmo no caso das poucas ocasiões de defesa da mulher medieval, parece ter havido
um gosto em reprisar os dogmas antifeministas apenas para se lembrar preocupações
que pertenciam às instituições estabelecidas pelos valores culturais tradicionais. Em
última análise, esse procedimento consistia em justificar a figura feminina dentro dos
parâmetros de aceitabilidade tradicionalmente fixados pela cultura masculinista. Um
exemplo claro dessa situação foram as discussões geradas em torno do já mencionado
“topos
da costela de Adão”.
Não obstante essa verdadeira litania detratadora, defensores da mulher, considerando o
posicionamento bíblico acerca da secundariedade de Eva na Criação, elaboraram toda
uma irônica retórica da superioridade do osso da costela de Adão, do qual Eva foi
formada, em relação ao pó da terra que inicialmente serviu para Deus criar o primeiro
homem. Assim, estaria estabelecida para Eva a paridade de posições relativamente a
Adão e, em decorrência disso, as mulheres deveriam acompanhar os seus parceiros lado
a lado, e não servi-los atiradas a seus pés.
Ainda de forma mais prática, os defensores da mulher utilizavam-se das mesmas ideias
de superioridade discriminatória, elaboradas pelos homens, para responsabilizá-los em
muitos dos seus atos e comportamento. Por exemplo, se os machos eram mais ativos e
as fêmeas mais passivas, tais defensores, em resposta ao antifeminismo, entendiam que
os homens eram mais culpados nos assuntos sexuais do que as mulheres. Estava-se aqui
ironizando, de forma aparentemente inocente, o que São Tomás de Aquino (Thomas
Aquinus, 1225-1274), seguindo pegadas tradicionais sobre o assunto, havia exposto na
Summa Theologiae (1266-1272) [Suma Teológica], ao argumentar que, se a mulher era
como um macho manqué (deformado), ela não devia ter sido produzida no momento da
produção original das coisas, porque Deus não podia ter originalmente criado nada
Série Estudos Medievais 2: Fontes
183
defeituoso ou mau (AQUINAS, 1963-, xiii, 1a. 92, art. 1, p. 35-39). Daí ser justificada a
sua posição de secundariedade em relação ao homem.
O escrutínio da responsabilidade da culpa – originalmente imputado à mulher, devido à
sua fraqueza moral no Paraíso – tornou-se, na realidade, um elemento condutor nos
textos medievais tardios, permitindo interessantes avaliações da culpabilidade de
testemunhas-chave, tais como Bathsheba e a própria Eva. Muito desse debate
antifeminista sobre o assunto e sobre matérias a ele relacionados, direta ou
indiretamente,
evidentemente
aconteceu
dentro
de
limites
de
assunções
e
pronunciamentos feitos por homens.
Uma dessas capciosas assunções, cinicamente irônica, era relativa à natural fraqueza da
mulher, a qual, intrigantemente, tinha sido menos contestada do que aceita. A estratégia
aqui era incentivar a fortaleza feminina, a qual seria aplaudida ao satisfazer as
expectativas do homem em relação ao comportamento da mulher. Assim, não é de se
admirar que Marbod de Rennes, cujo critério era nitidamente androcêntrico, tenha se
referido às contribuições das mulheres para a sociedade, pelas quais elas deviam ser
condecoradas.
Entretanto, foi a partir dessas ultrajantes assunções e pronunciamentos antifeministas
medievais, forçando as suas barreiras vigorosamente estabelecidas desde longa data, que
uma reação contrária começou a vingar. No alvorecer mais promissor dessa reação,
propondo abalar os alicerces antifeministas, o vulto de Christine de Pizan se apresentou
como um arauto que, para além da polêmica e do debate, mostrava-se reivindicador do
direito de reconhecimento e de justiça à mulher.
Christine haveria de ficar conhecida principalmente pelo seu fresco e vigoroso poder de
ofensiva, não só particularmente contra a supressão e a depreciação do intelecto
feminino, mas também contra a validade do tradicional saber autoritativo acerca da
realidade, controle e domínio do seu sexo, isto é, do seu ser-mulher.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
184
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Série Estudos Medievais 2: Fontes
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Os mais antigos manuscritos
portugueses existentes no Brasil1
Rosa Virgínia Mattos e Silva
Universidade Federal da Bahia (UFBA); PROHPOR; CNPq
Américo Venâncio Lopes Machado Filho
Universidade Federal da Bahia (UFBA); PROHPOR
Resumo: O presente trabalho objetiva oferecer uma notícia circunstanciada sobre a existência e
as características paleográficas e linguísticas de um conjunto de manuscritos medievais
portugueses, do século XIV, composto do Livro da Aves, dos Diálogos de São Gregório e de
um Flos Sanctorum, trazidos para o Brasil pelo eminente filólogo, Serafim da Silva Neto no
ano de 1950 e que, depois de adquiridos pela Universidade de Brasília, vieram, pelas vias do
destino, a ser editados − em sua plenitude − por pesquisadores do Setor de Língua Portuguesa
da Universidade Federal da Bahia, traduzindo-se, entrementes, em fonte documental bastante
prolífica para estudos que objetivem o conhecimento da língua portuguesa, notadamente de seu
período arcaico.
Palavras-chave: Manuscritos medievais portugueses no Brasil; Mss. Serafim da Silva Neto;
Português arcaico; Diálogos de São Gregório; Flos Sanctorum; Livro das Aves.
Abstract: This paper is intended to be a detailed notice of the existence and the characteristics of
three Portuguese medieval manuscripts from the fourteenth century, composed by Livro das
Aves, Dialogues of St. Gregory and a Flos Sanctorum, brought to Brazil by the eminent
philologist, Serafim da Silva Neto in 1950 and after acquired by the University of Brasilia.
Edited in its entirety by researchers of the Department of Portuguese at the Federal University
of Bahia, these texts represent a prolific source for new studies related to Archaic Portuguese.
Keywords: Portuguese medieval manuscripts in Brazil; Mss. Serafim da Silva Neto; Archaic
Portuguese; Dialogues of St. Gregory; Flos Sanctoru;, Livro das Aves.
1. Introdução
O renomado, internacionalmente reconhecido filólogo e uma das mais expoentes figuras
acadêmicas brasileiras do século passado, Serafim da Silva Neto, não teve a
oportunidade de ver editado na íntegra o raro conjunto de manuscritos trecentistas que
trouxe de Lisboa para o Brasil no ano de 1950.
1
Baseado na comunicação intitulada Manuscritos trecentistas portugueses no Brasil: notícia
circunstanciada, publicada originalmente nos Anais do VII EIEM, 2009.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
189
Embora não se possa discorrer com vagar sobre a origem e história mais recuada desse
raro espólio documental, a história recente e o processo de aquisição desses documentos
apresentou, sem grandes explicações e, ademais, muito resumidamente, Silva Neto
(1956, p. 105-106), em seu conhecido livro Textos medievais portugueses e seus
problemas. Em suas palavras:
A história desses códices é simples. Alguns anos antes de 1925 o Dr. Jorge de
Faria, ilustre intelectual português, adquiriu em Vila do Conde, pouco mais
de duzentas folhas sôltas de pergaminho, oriundas certamente do desbarato
dalgum mosteiro ou casa religiosa, ou por causa da extinção das Ordens, em
1834, ou por causa dos atos violentos que se seguiram aos acontecimentos de
1910. Daí passaram às mãos do atual proprietário.
Antes de serem trazidos para o Brasil, porém, esses manuscritos estiveram cedidos por
empréstimo à Biblioteca Nacional de Lisboa - BNL, por seu anterior proprietário, Jorge
de Faria, a quem José Joaquim Nunes (1925, p. 231) sugeriu que tal “generosidade”
deveria se converter de empréstimo em doação,
valorizando por um lado ainda mais aquele estabelecimento, contribuindo por
outro para que esses códices se não percam ou deteriorem por completo, se
com o tempo vierem a cair em poder de alguém que os não apreciem como
merecem.
O certo é que, se essas mais de 200 folhas realmente chegaram ao Brasil, como afirma
Silva Neto em seu livro, boa parte de seu volume original aqui deve ter se perdido, já
que o conjunto conta hoje com o total de apenas 168 fólios e meio, de que 81 folhas2
são referentes ao Flos Sanctorum, 79 aos Diálogos de São Gregório e apenas 8 folhas e
meia compõem o Livro das Aves, o que dentre todos se encontra em estado de
deterioração mais avançado e mais fragmentário.
É desses textos que se dará aqui notícia circunstanciada, espólio histórico que, pelas
vias do destino, veio a ser editado − em sua plenitude −, por pesquisadores do Setor de
Língua Portuguesa da Universidade Federal da Bahia, e estudado parcialmente por
2
Existe mais um fólio, o de número 78, que se julgava pertencer ao conjunto do Flos Sanctorum em
função da numeração moderna nele inserida, mas que foi devidamente identificado pelo professor Nelson
Rossi como parte integrante dos Diálogos de São Gregório, corrigindo-se o equívoco da numeração
moderna.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
190
diferentes pesquisadores nacionais e estrangeiros, mas sobre os quais muito ainda se
poderá depreender do comportamento da língua portuguesa na Idade Média.
2. Pequeno recorte do passado
Às vésperas do vergonhoso golpe militar que iria marcar profundamente os destinos do
povo brasileiro, em todos os aspectos da vida social, econômica, política e, não menos,
acadêmica, e já então falecido Serafim da Silva Neto, foi esse conjunto de manuscritos
adquirido, pela Universidade de Brasília, junto à sua viúva, Srª Cremilda de Carvalho e
Silva, pela quantia de R$2.000.000,00 (dois milhões de cruzeiros), que, indexada ao
real, equivaleria a algo em torno de R$23.400,00 (vinte e três mil e quatrocentos reais).
Todo o processo de aquisição − registrado no ofício de n. 08/64, de 29 de fevereiro, do
Departamento de Letras da UnB, assinado pelo professor Cyro dos Anjos, Coordenador
do Curso-Tronco de Letras − foi intermediado pelo Professor Nelson Rossi, Catedrático
de Língua Portuguesa da Universidade da Bahia (hoje, Universidade Federal da Bahia),
um entre muitos outros acadêmicos que integravam, temporariamente, então, o corpo
docente fundador da Universidade de Brasília (UnB).
Com a turbulência política vivida no País após o 31 de março, esses manuscritos foram
levados, sem protocolo institucional, para Salvador pelo Professor Nelson Rossi, que os
manteve sob sua guarda durante quase uma década.
Os documentos só foram devolvidos, por seu circunstancial guardião, à Universidade de
Brasília, por ocasião das comemorações do quarto centenário da publicação de Os
Lusíadas, em 1972, precisamente no dia 12 de outubro, após longa tramitação
burocrática e troca de correspondências entre a Universidade de Brasília e o Professor
Nelson Rossi, cuja documentação se encontra disponível nos arquivos da UnB.
Se seu percurso no século XX pode ser satisfatoriamente reconstituído − embora não se
encontre registrada qualquer menção sobre o processo de sua aquisição pelo professor
Serafim da Silva Neto em Portugal, senão a minimamente expressa em seu trabalho de
1956, anteriormente citado −, sua história mais remota, assim como sua origem de
produção, são ainda uma incógnita.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
191
Mas é o próprio Serafim da Silva Neto (1960, p. 298-299) que – baseado,
principalmente, em algumas referências de catálogos da biblioteca medieval do Oratório
de São Clemente das Penhas, em Leça da Palmeira, ao norte de Portugal, que, em 1367,
ou mesmo em catálogos posteriores, se referem a um livro sobre vida dos padres santos
escrito em linguagem, e fundado em registros sobre desbarates bibliográficos da Sé de
Braga, ocorridos desde os inícios do século XVIII – vai levantar a possibilidade que
esse conjunto de manuscritos "tivesse pertencido originariamente a alguma igreja ou
mosteiro de Braga ou arredores" (SILVA NETO, 1960, p. 299), nos domínios regionais
do norte de Portugal, portanto. Note-se, entretanto, que sua impressão não chegou a ser
até o presente confirmada por nenhum dos pesquisadores que tiveram a oportunidade de
investigar sobre cada um desses manuscritos.
3. Cada um dos textos integrantes do conjunto documental
3.1 O livro das aves
Esse texto foi publicado pela primeira vez em 1925, por Pedro Azevedo, que, na Revista
Lusitana, vinha divulgando textos manuscritos medievais portugueses. Fez se tornar
conhecido, então, o que intitulou de História natural das aves (AZEVEDO, 1925, p.
128-147). Tal título foi criticado pelo medievalista Padre Mário Martins (1956) que
considerava mais adequada a denominação de Tratado sobrenatural das aves, como
se encontra em seu estudo A simbologia mística dos nossos bestiários. Serafim da
Silva Neto foi quem o derradeiramente “batizou” − ao menos com aceitação mais geral
− de Livro das aves, de que apresentou uma leitura parcial em 1956.
O Livro das aves, segundo tudo indica, foi traduzido do Primeiro Livro do De bestiis et
aliis rebus, do pseudo Hugo de São Vítor, provavelmente Hugo de Folieto. O nome de
seu tradutor é desconhecido.
O texto é estruturado em “tractados” autônomos sobre determinada ave, em que são
apresentados seus defeitos e virtudes, como simbologia aplicável ao ser humano.
Série Estudos Medievais 2: Fontes
192
Compõem o Livro das aves, ou melhor, o seu fragmento remanescente, oito folhas e
meia soltas de pergaminho, numeradas modernamente a lápis, com 320 x 220mm,
escritas em reto e verso, em duas colunas, em geral de 36 linhas.
Destaca-se no fragmento o corte ao meio no sentido vertical do quarto fólio, que
continha as colunas XIII a XVI, restando dessas a primeira coluna do reto e a segunda
do verso.
Parece ter sido escrito por uma única mão, em letra identificada como do século XIV
por Pedro de Azevedo. A vermelho estão os títulos dos “tractados”. As maiúsculas que
os iniciam são, alternadamente, a vermelho e azul. Há iluminuras que precedem cada
um dos “tractados”, em cores variadas e em geral apresentam a “ave” que a ele se
relaciona.
O estado do manuscrito, como antes referido, é bastante precário. Faltam o início e o
fim do texto, além de alguns “tractados” que devem ter, provavelmente, existido. As
folhas restantes encontram-se em adiantado processo de fragmentação (cf. Figura 1,
adiante), às vezes se estendendo a quase todo o corpo da coluna.
O único “tractado” que pode ser lido por inteiro é o do ‘paaon”; o da “aguya”, embora
em bom estado, não está completo.
Além das edições antes mencionadas, a de Pedro de Azevedo e a parcial de Silva Neto,
foi publicada uma edição completa em 1965 pelo Instituto Nacional do Livro, na
coleção Textos e vocabulários, coordenada por Antônio Geraldo da Cunha. Essa
edição tem uma história original que, passado quase meio século, merece ser noticiada.
O professor Nelson Rossi, Catedrático de Língua e Filologia Portuguesa da
Universidade da Bahia (depois, Federal da Bahia), como antes mencionado, costumava
na 4ª série dos cursos de Letras − ainda anuais e não semestrais − fazer, coletivamente,
um trabalho de pesquisa com seus estudantes. A turma, que se licenciou em 1961,
escolheu fazer a edição do Livro das aves, de que se dispunha dos fac-símiles,
publicados por Silva Neto em 1956. Como dizia o Mestre Rossi em suas próprias
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193
palavras, o grupo − e ele aí se incluía − pôs mão à obra “no peito, na raça, na valentia,
por não ser nem de paleógrafos, nem de filólogos”.
Figura 1. Fac-símile de fragmento do Livro das aves (Ms. Serafim da Silva Neto).
Desse esforço e dedicação coletivos surgiu a edição do Livro das aves, composta de
uma introdução detalhada sobre o manuscrito, de um confronto com o original em latim
e de um estudo sobre as características linguísticas do texto. Fecha a introdução a
descrição do tipo de edição com os critérios adotados. Segue-se a leitura completa do
texto, acompanhada das notas que se fizeram necessárias. Por fim, apresenta-se o
glossário exaustivo, segundo o modelo da Coleção em que foi publicada.
Vale ressaltar que, depois de pronta a edição, pôde-se, em julho de 1962 e fevereiro de
1963, conferir o texto com o manuscrito, graças à viúva de Silva Neto, Dona Cremilda
Silva, antes referida, que permitiu a consulta direta ao original trecentista, em sua casa,
em que mantinha, cuidadosa e, não menos, curiosamente, guardado em uma pasta de
cartolina, no guarda-roupa de seu quarto. A referida edição desse documento se
encontra, todavia, digitalizada e integra o Banco Informatizado de Textos do Programa
para a História da Língua Portuguesa (BIT-PROHPOR).
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3.2 Os Diálogos de São Gregório
Figura 2. Fólio 83 reto dos Diálogos de São Gregório (Ms. Serafim da Silva Neto).
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195
Os Diálogos de São Gregório serviram como documento de base para a elaboração da
edição crítica realizada por Mattos e Silva na sua tese de doutoramento, em 1971, ainda
hoje inédita, que lhe atribuiu a condição de mais antiga versão portuguesa conhecida de
um “número significativo de códices que transmitiram até nós essa obra dos fins do
século VI” (MATTOS E SILVA, 1971, v.I, p.3), do papa Gregório Magno que viveu
entre os anos 540 e 604, mas de que restaram apenas, em língua portuguesa, mais três
cópias alcobacenses, que hoje se encontram na Biblioteca Nacional de Lisboa, sob as
cotas 181 e 182, atribuídas, respectivamente, ao início do século XV e aos finais do
século XIV ou início do XV e uma também provavelmente dos finais do século XIV e
inícios do XV, recentemente editada por Machado Filho (2006, 2008), que se encontra
na Casa Forte do Instituto dos Arquivos Nacionais Torre do Tombo, em Lisboa, sob a
cota Manuscrito da Livraria 522.
A versão mais antiga dos Diálogos, assim como os outros textos integrantes do códice,
apresenta suporte em pergaminho, medindo 320x220mm, em que se distribui seu texto,
em reto e verso, em duas colunas de 36 linhas cada. De elaboração cuidada, exibe
iniciais em vermelho e azul, alternadamente, tendo sido, provavelmente, escrito por uma
única mão, em minúscula gótica do século XIV, compreendendo − se considerada a
numeração moderna existente no Manuscrito Serafim da Silva Neto − os fólios 83r a
161v.
Além de ser o mais antigo das versões conhecidas em língua portuguesa, é esse texto o
mais completo, faltando-lhe alguns fólios do último livro, apenas, dado que reforça a
sua importância para o conhecimento histórico da obra gregoriana, em português.
Esse texto serviu de base para a elaboração do estudo lingüístico procedido por Mattos e
Silva (1989), que culminou na publicação de Estruturas trecentistas: elementos para
uma gramática do português arcaico, pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda, de
Lisboa.
Machado Filho (2008, p. 19) descreve da seguinte forma o contorno temático dessa
importante obra gregoriana:
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196
O livro primeiro busca retratar histórias milagrosas relacionadas com feitos
fantásticos e sobrenaturais de ressurreição de mortos, de exorcismos, de
repartição e multiplicação de alimentos, assim como de exemplo de
humildade e de esmola, a partir de personagens da vida monástica, abades e
alguns bispos, mas também de homens comuns, humildes e santos, no
cenário de dominação de confronto com lombardos e godos.
O segundo livro trata da vida e da morte de São Bento, das tentações, dos
milagres realizados, do enfrentamento com Totila, rei dos godos, das
profecias anunciadas, de acontecimentos relacionados a sua irmã Escolástica,
que veio a ser santa da Igreja, e da gênese e escrita de sua regra, largamente
ainda hoje adotada por seus discípulos.
O terceiro livro, mais extenso do que os dois primeiros, trata de padres santos
mais antigos e dos embates que se travaram com os seguidores da seita
ariana, sobretudo dos mártires católicos dessa época. Bastante prolífico no
que concerne à antroponímia e à toponímia, associa os milagres narrados aos
espaços, regiões e cidades em que ocorreram, revelando-se como precioso
registo histórico-geográfico.
O quarto livro, embora incompleto na presente versão, a que faltam alguns
fólios, provavelmente um caderno, é muito mais filosófico e denso,
provavelmente mais complexo do que os demais, por discutir questões
concernentes à alma, sua natureza em relação às entidades viventes e como se
constrói, segundo a ótica gregoriana, a passagem do estado carnal para o
espiritual, assim como da existência do céu, do purgatório e do inferno e
como se relacionam os que a esses espaços são destinados, após a morte.
3.3 O Flos Sanctorum
O Flos Sanctorum é um conjunto de 81 folhas de pergaminho, escritas em reto e verso,
medindo, no geral, 330mm por 220mm,3 cuja mancha de texto apresenta, em geral,
235mm por 175mm, em duas colunas, com 36 linhas cada.4 Essa medida corresponde à
apresentada por Silva Neto (1956, p. 105) e por Askins (1995, p.40), mas não coaduna
com a proposta por Nunes (1925, p.231), que registra “0,m033 X 0,m025”.
O pautado distribui 82mm de espaço de texto para cada coluna, em que se interpõe uma
margem central de 11mm. A altura da linha mede algo em torno de 6mm.
3
Medida que corresponde à apresentada por Silva Neto (1956, p.105) e Askins (1995, p. 40), embora não
coadune com a medição empreendida por Nunes (1925, p. 231), que propõe 0,m033 X 0,m025.
4
À exceção do fólio 27rº, com a segunda coluna de 28 linhas, relativo ao final de um dos livros
integrantes do manuscrito, provavelmente um segundo livro de que não se dispõe da respectiva rubrica;
do fólio 36rº com apenas 35 linhas; do fólio 58rº, cuja primeira coluna só apresenta 35 linhas.
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Figura 3. Fólio 27v do Flos Sanctorum (Ms. Serafim da Silva Neto).
As letrinas são em geral em azul ou vermelho, decoradas com filigranas e antenas em
oposição cromática entre essas duas cores. No tocante aos elementos decorativos em
azul, pode-se apenas inferir que tenham sido originalmente produzidos nessa tonalidade,
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já que restaram apenas vestígios muito tênues que nem sempre se evidenciam
categoricamente no pergaminho.
Os títulos ou rubricas são regularmente escritos em tinta vermelha, cor que também é
utilizada pra indicar majoritariamente as correções no texto, assim como para realçar
letras maiúsculas e geminidas, também profusas no documento.
Os indícios paleográficos patentes no Flos Sanctorum parecem revelar se tratar esse
manuscrito de uma cópia de outra versão desaparecida já anteriormente escrita em
linguagem e não de uma cópia direta de um original latino. Se essa cópia em vernáculo
de fato existiu, até o momento dela não se tem notícia.
Dentre os textos medievais, hoje tornados acessíveis por intermédio de boas edições
filológicas, cujas narrativas se concentrem sobre vidas de santos, que, porventura,
pudessem recomendar alguma possibilidade de correlação com o Flos Sanctorum,
encontram-se os relacionadas ao códice alcobacense CCLXVI, cujos trabalhos,
coordenados por Ivo Castro, em Portugal, foram posteriomente coligidos em Separata
da Revista Lusitana (CASTRO, 1985).
Muitas das histórias constantes do referido códice integram também o Flos Sanctorum,
a exemplo de [Vida de Tarsis], [Vida de Santa Pelágia] e [Vida de uma Monja].5
Com intuito de se procurar avaliar uma possível relação entre o Flos Sanctorum e o
códice alcobacense CCLXVI, Machado Filho empreendeu (2002) o confronto direto
entre os dois documentos, nomeadamente entre seus conteúdos e linguagem, utilizandose como recorte os textos relativos à [Vida de Tarsis]6 ou [Tassis], cuja edição do
manuscrito alcobacense foi realizada por Ana Maria Martins, apoiada no cotejo direto
com a edição anterior apresentada por José Joaquim Nunes (1908), de quem em alguns
pontos da leitura discordava.
As diferenças detectadas, tanto a nível de conteúdo quanto a nível da linguagem,
descartaram logo a priori a correlação genética dos documentos em confronto,
5
Esta última se encontra fragmentária no Flos Sanctorum.
Até pouco recentemente se acreditava se tratar o relato da [Vida de Tarsis] do códice alcobacense 266 a
única versão existente: afora um pequeno menológio, seria "o único testemunho medieval conhecido em
português, desta lenda" (DUARTE, 1993).
6
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conquanto tivessem permitido corroborrar com a noção de se tratar o Flos Sanctorum de
um documento mais antigo, com características próprias aos documentos bem anteriores
ao século XV, em função de sua linguagem, estritamente arcaizante, se comparada ao
manuscrito quatrocentista (MACHADO FILHO, 2001).
Tem-se, ainda, é claro, conhecimento da existência de alguns relatos que se relacionam
à Legenda Áurea do arcebispo de Gênova Jacobo de Vorágine (1230-1298), como o
Flos Sanctorum impresso por Hermão de Campos, em 1513 (cf. MARTINS, 1961),
mas provavelmente cópia de um mais antigo, também impresso, cujo conteúdo de
antemão denuncia sua dissociação com o Manuscrito Serafim da Silva Neto.
Duas leituras integrais do documento foram apresentadas por Machado Filho (2003),
como parte de sua Tese de Doutoramento: uma paleográfica e outra interpretativa, além
de um Glossário exaustivo e de um estudo linguístico de perspectiva gerativista, sobre
os anafóricos hi e ende arcaicos. Este estudo linguístico foi publicado em coletânea do
Grupo de Pesquisa Prohpor (COSTA; MACHADO FILHO, 2004, p. 83-113), a edição
intepretativa se encontra publicada pela Editora Universidade de Brasília (MACHADO
FILHO, 2009) e o Glossário se encontra no prelo, com contrato de publicação assinado
com a mesma Editora da UnB.
4. Conclusão
Foi intuito deste trabalho dar notícia de três importantes manuscritos trecentistas que,
por caminhos não muito bem identificados, chegaram ao Brasil e sobrevivem ainda hoje
na Divisão de Coleções Especiais da Universidade de Brasília. Embora estejam
arquivados em um cofre climatizado, as reais condições de guarda − a que se sujeitam
essas fontes preciosíssimas para o conhecimento da história da codicologia, da escrita
medieval portuguesa e do processo de constituição gramatical portuguesa − não
obedecem aos padrões internacionais de preservação documental, denunciando a
necessidade de desenvolvimento de um projeto voltado para a identificação do espólio
bibliográfico raro, existente nos arquivos privados e públicos brasileiros dispersos no
País, assim como demanda urgententemente uma política institucional nacional para
definição de regras adequadas de conservação. Ademais, a riqueza textual, que esse
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200
conjunto trecentista exibe, traduz-se, entrementes, em fonte documental bastante
prolífica para estudos que objetivem o conhecimento da língua portuguesa, notadamente
de seu período arcaico, assim como para desenvolvimento de novos trabalhos de verve
histórica ou literária que possam ser desenvolvidos a partir de disponibilização, quer
impressa, quer digital, dessas obras.
Referências
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de fr. Hilário da Lourinhã, Cód. Alc. CCLXVI / ANTT 2274). Separata de: Revista
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