A Marinha na Amazônia

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A Marinha na Amazônia
Os Navios da Esperança
A Marinha na Amazônia
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Índice
19 | Amazônia
Gigante, Selvagem, Inóspita
33 | O Ribeirinho da Amazônia
Raça de Corajosos
47 | Missão: Salvar Vidas!
A História do Auxílio ao Brasileiro da Selva
63 | Cinco Vidas de Dedicação
Os Homens que dão Nome aos Navios
75 | A Flotilha
Os Navios que Singram os Rios da Amazônia
91 | Poucos Fazendo Muito
As Tripulações dos Navios da Esperança
103 | Comissão Rio Acima
Acompanhando a Marinha em Suas Missões
131 | O Navio Veio... e me Salvou
Histórias e Relatos dos Ribeirinhos da Amazônia
Páginas 02/03: Em início de comissão o NAsH U-19 Carlos Chagas segue pelo Paraná do Ramos. O convoo está liberado à espera da aeronave orgânica, que
está fora em missão de reconhecimento aéreo. O helicóptero também é empregado para localizar várias comunidades ribeirinhas. Páginas 04/05: Os NAsH contam
com consultórios odontológicos modernos e bem equipados, permitindo que seja dada total atenção à saúde bucal das crianças, um dos grandes desafios assumidos
pelos profissionais de saúde da Marinha. Páginas 06/07: A proa reta do U-16 Doutor Montenegro permite que ele “abarranque” com extrema facilidade pelas
ribeiras da Amazônia. Em muitas localidades não se pode contar com instalações adequadas para a atracação. Assim, abarrancado em frente à comunidade, basta
instalar uma prancha e receber os pacientes. Páginas 08/09: O Tucano 7086 do 3o Esquadrão de Helicópteros de Emprego Geral (HU-3) aparece aqui com
sua configuração de combate. No entanto, quando opera como aeronave orgânica nos NAsH, o Helibras Esquilo deixa seus lança-foguetes na base do esquadrão, em
Manaus, e voa em benefício da saúde. Página 10: Dois pequenos moradores de Vila Augusto Montenegro (AM) observam o Carlos Chagas fundeado em frente à
sua comunidade. Provavelmente, momentos mais tarde os dois deverão assistir às palestras de higiene bucal e passar pela cadeira do dentista. Tudo em benefício de
um belo sorriso. Página 12: Um marinheiro hasteia o Cruzeiro na proa de um navio de assistência hospitalar em algum ponto da Amazônia. Em todas as águas
interiores e em todo o litoral deste país continente, esse é o indicativo de que a embarcação pertence à Marinha do Brasil.
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Prefácio
O
Brasil tem a maior reserva de água doce e algumas das maiores bacias hidrográficas do mundo. Nesse imenso manancial, estima-se que tenhamos 60 mil
quilômetros de rios, dos quais 42 são navegáveis. Entretanto, na comparação
com outras nações de dimensões continentais, nosso sistema hidroviário permanece
subutilizado, pois apenas 10 mil desses quilômetros são explorados economicamente.
A matriz de transporte é concentrada. De tudo o que é transportado no Brasil,
60% está no modal rodoviário, 33%, no ferroviário e 7%, no hidroviário. Na transição
da economia rural para a industrial, na segunda metade do século XX, milhões de
brasileiros migraram do campo para as cidades. Com a implantação da indústria automobilística, a população e a produção passaram a viajar sobre rodas. Em 50 anos,
foram implantados 196 mil quilômetros de rodovias pavimentadas.
Historicamente, o transporte aquaviário está ligado a nossas origens. Fomos
“descobertos” por navegadores europeus que, quando chegaram com suas caravelas
à costa baiana, encontraram indígenas flutuando sobre canoas. No período colonial,
nossa madeira, ouro, diamante e borracha foram extraídos do solo e do subsolo e
embarcados para a Coroa Portuguesa, através dos meios fluviais e marítimos. Podemos
dizer que a vocação natural de nossas hidrovias é o transporte de commodities, em
grandes quantidades e a longas distâncias.
Atualmente, as vantagens do transporte aquaviário vão da economia de combustível à menor emissão de poluentes na atmosfera, passando pela maior eficiência
energética. O modal hidroviário exige menor aporte de recursos, viabilizando retorno
mais rápido do investimento na comparação com os outros modais. A longa vida útil
dos equipamentos de sinalização e das embarcações redunda em custos de operação
e manutenção mais baixos. Do ponto de vista ambiental, a implantação de hidrovias
produz impacto irrelevante, devido à menor utilização do solo e à leve interferência
na flora e na fauna nativas. Representa, ainda, risco menor de acidentes, pela desconcentração das rodovias que levam aos portos.
A estratégia de recuperação da infraestrutura do País, executada por meio
do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do Governo Federal, estimula a
multimodalidade do sistema de transportes. Em relação às hidrovias, entre os gargalos
a serem superados está a garantia de navegabilidade permanente nos cursos d’água,
seja pela conservação dos canais, seja pela instalação de eclusas junto às usinas hidrelétricas. O PAC está investindo R$ 1,5 bilhão na construção de duas eclusas no
complexo de Tucuruí, na dragagem e no derrocamento nas hidrovias Paraná-Paraguai,
do São Francisco e do Tocantins, além da construção de 39 terminais fluviais na
região amazônica.
A integração entre os modais na circulação das riquezas estimulará a expansão
do agronegócio e da extração mineral. O escoamento da produção a custo e distância menores aumentará a competitividade dos produtos brasileiros nos mercados
internacionais. Os corredores de navegação irão fortalecer nossa integração com os
Nome do Comandante
Comandante da Marinha do Brasil
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Amazônia
Gigante, Selvagem, Inóspita
E
sse trecho inesquecível, e constantemente lembrado, do Hino Nacional Brasileiro, parece talhado para a Amazônia.
Da mesma forma, a grande área verde que toma nossa bandeira, nos faz voltar os pensamentos ao fenômeno exuberante com que à natureza brindou esta terra. Um colosso, que durante muito tempo se manteve impávido devido ao
desinteresse dos descobridores, e que agora, em tempos de exploração predatória, espera ser estudado, entendido e protegido, para
que seu futuro espelhe fielmente toda aquela grandeza. A Amazônia é sim um patrimônio da humanidade, da qual nós, brasileiros,
somos fiéis depositários.
Mas afinal o que é este pedaço de Brasil tão desconhecido pela maioria de seus filhos; esse lugar de intensos contrastes que
nós brasileiros admiramos com espanto na tela da TV; esse mundo que, de tão plural e diverso, não cabe em definições simplistas?
Gigante ninguém tem dúvida. A Amazônia brasileira representa mais da metade dos 8.500.000 quilômetros quadrados do território
brasileiro. Uma fronteira verde tão poderosa que ultrapassa os limites nacionais. Países como a Guiana, Guina Francesa e Suriname,
têm a maior parte de seus territórios cobertos por ela. Já na Venezuela e na Colômbia essa cobertura gira em torno dos 40%. Peru
e Bolívia não ficam muito atrás. Naqueles países, a floresta recebe a moldura da cordilheira andina, nascedouro de muitos rios que
drenam a floresta. Por outro lado, no Equador, que como sabemos não possui fronteiras com o Brasil, é onde se verifica o menor
avanço da floresta.
Em extensão, a área da Amazônia brasileira equivale, por exemplo, a soma dos territórios da Índia, do Reino Unido, da
Alemanha, da Suécia, da Itália e do Japão. Para se ter uma idéia do gigantismo, apenas Marajó, a maior ilha fluvial do mundo,
localizada na foz do rio Amazonas, possui uma área equivalente ao território da Bélgica ou da Suíça.
Politicamente, essa imensidão de terras se insere na Região Norte, constituída desde a promulgação da Constituição de
1988, pelos estados do Amazonas, Pará, Tocantins, Roraima, Amapá, Rondônia e Acre. São mais de 15 mil quilômetros de fronteiras com nossos vizinhos, formando uma região de grande importância estratégica para a segurança e a soberania nacional. Hoje,
muitos terão dificuldades em lembrar que alguns estados da região passaram a fazer parte da federação como simples territórios,
alguns desmembrados de estados como o Amazonas e o Pará. O Acre foi o primeiro, em 1903. A área do atual estado foi alvo de
uma acirrada disputa entre brasileiros e bolivianos durante o auge da exploração da borracha. A pendência foi resolvida através de
um acordo negociado pelo Barão do Rio Branco. Pelo Tratado de Petrópolis, o Brasil incorporou os 191 mil quilômetros quadrados
do território e a Bolívia foi indenizada em dois milhões de libras esterlinas, além de receber a promessa de que seria construída uma
ferrovia para escoar a produção boliviana. Aquela pendência deixou claro às autoridades brasileiras, que numa região de limites tão
vastos, e de rarefeita ocupação, as regras deveriam ser outras. Os territórios federais não tinham autonomia executiva, legislativa e
judiciária. Seus dirigentes eram nomeados pelo Poder Federal, que assim, tinha liberdade de ação quando alguma ameaça se apresentava nas fronteiras. Ameaça como a que passou a representar a zona fronteiriça com a Guiana Francesa durante a Segunda Guerra
Mundial. Atento, o governo de Getúlio Vargas tratou de criar os territórios do Rio Branco (atual Roraima), Amapá e Guaporé (atual
Rondônia), na seqüência do conflito.
A Força da Floresta
Poucos lugares deste planeta estão deitados eternamente num berço tão esplêndido quanto a Amazônia. Aliás, ela é um dos
mais lindos, verdejantes e imensos jardins que a natureza criou em todo o planeta e, a despeito de todas as agressões que tem recebido,
ainda é considerado o mais importante ecossistema terrestre, tanto em extensão, quanto pela variedade de espécies animais e vegetais.
Adjetivar a Amazônia de modo ufanista e pomposo parece uma obviedade, mas é exatamente isso que vem a mente de qualquer
pessoa que mantenha contato com a região. É muito comum, e necessário, que as estatísticas apresentem comparações entre o que foi
a Amazônia e o que ela está se tornando. Aquela metade verde do Brasil precisa de constante cuidado, estudo e vigilância. Os números
são apenas um alerta de que algo está acontecendo. Um lembrete de que possuímos um patrimônio de incalculável valor, um sistema
complexo, que a natureza criou lenta e engenhosamente, e do qual começamos a ler as primeiras páginas do manual de instruções.
As primeiras linhas nos contam que a floresta amazônica, e a bacia do rio Amazonas, resultam de fenômenos geológicos que
começaram a ocorrer no planeta há cerca de 100 milhões de anos, no Período Carbonífero. Toda aquela região era, originariamente,
Páginas 16/17: O Doutor Montenegro encontra um pequeno espaço para “abarrancar”. Nem sempre é fácil localizar as comunidades que se embrenham na selva
fechada, mas logo se forma uma pequena multidão de ribeirinhos, que buscam alento para suas dores nos conveses do Navio da Esperança. Página 18: Quanto mais
se conhece a Amazônia mais ela causa espanto e admiração. Quanto mais se procura palavras para descrevê-la mais ela parece fugir dos conceitos comuns. Grandeza e
mistério que precisam de proteção e estudo.
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como uma imensa baía, que apresentava uma vasta abertura em
seu lado oeste, e se encaixava entre duas plataformas, o Escudo
das Guianas, ao norte, e o Escudo do Brasil Central, ao sul. Ao
longo de um processo que durou milhões de anos, todo esse
conjunto se elevou acima dos oceanos, e a antiga baía tornouse uma gigantesca depressão que passou a funcionar como uma
calha, recebendo a água que drenava por todo o continente. Todo
esse volume de água encontrava saída até o Oceano Pacífico,
vale dizer, que o rio Amazonas que hoje conhecemos, corria de
leste para oeste. Isso começou a mudar há 70 milhões de anos.
O continente terrestre, até então único e íntegro, começou a se
desmembrar, formando vários outros continentes menores. Um
deles, o africano, destacou-se, abrindo uma saída para as águas
a leste. Na seqüência, há 12 milhões de anos, a Cordilheira dos
Andes se eleva de norte a sul do continente, bloqueando em
definitivo a saída para o Pacífico, e o Amazonas começa a correr
para o lado certo, desaguando e empurrando o Atlântico com
a toda a sua magnitude. Outro período de tempo inimaginável
se esgota, até que o leito do rio possa se estabilizar, permitindo
que, lentamente, as áreas em suas margens sequem. Então, com o
aparecimento das primeiras espécies vegetais, a natureza começa
a formar aquele jardim que tanto admiramos.
Esse éden idílico, que já foi chamado de “Inferno
Verde” e, atualmente, carrega sobre seus ombros a responsabilidade de ser o “pulmão do mundo”, abriga uma coleção
de espécies vegetais cuja avaliação gera polêmica entre os estudiosos. Estima-se algo em torno de 60 mil espécies, número
que é constantemente corrigido e ampliado pelas pesquisas.
Pode parecer exagero, mas há quem sustente a tese de que,
em apenas um quilômetro quadrado de floresta amazônica,
podem ser encontrados mais espécies que em toda a Europa.
A parte mais visível desse sistema é o grande manto
verde que cobre toda a região. As gigantescas árvores que o
formam tem sido alvo constante da ambição desmedida dos madeireiros, da falta de planejamento e do descaso. O modo como
a região amazônica sempre foi olhada, como fonte inesgotável
de recursos vegetais, vem se configurando como uma balela
irresponsável, pois a floresta não tem conseguido se recuperar
na mesma velocidade em que é derrubada. O alerta que vinha
sendo feito por ecologistas e demais estudiosos, aparece agora
de forma escandalosa nas imagens feitas a partir de satélites. A
Amazônia está sendo derrubada e queimada num ritmo nunca
visto. Registra-se há décadas uma intensa exploração predatória,
que provocou danos incalculáveis, de difícil e custosa recuperação. As várias e mal-sucedidas tentativas de implantar projetos
agrícolas nas áreas devastadas, acabaram por revelar uma lei
natural irrefutável que vigora em todo o sistema amazônico. Em
seu parágrafo único, essa lei determina que a exuberância da
floresta se apóia num delicado equilíbrio, e que a manutenção
deste depende da interação entre inúmeras formas de vida. A
incalculável quantidade de matéria orgânica produzida pelos
vegetais é ininterruptamente decomposta, reciclada, e reincorporada ao solo por uma imensa gama de organismos, que
trabalham para fornecer as plantas os elementos químicos que
elas necessitam para crescer e se reproduzir. Exatamente, é uma
cadeia simbiótica, que quando se desequilibra, ou é quebrada,
perde sua capacidade de produzir vida.
Voando em meio a todo esse verde que ainda se
mantém, encontramos a mais rica avefauna do planeta. Nada
menos do que 10% de todas as espécies de aves identificadas
no mundo vivem na região, enchendo a floresta de sons e cores. Sob as águas há outro tesouro, que fez a fama da culinária
amazônica e despertou o interesse de aquariofilistas em todo o
mundo. São cerca de duas mil espécies de peixes, uns prestando
favores ao paladar, outros mantendo o Brasil na lista dos maiores exportadores de peixes decorativos, muita vezes de forma
ilegal e predatória. Entre os entomologistas o deslumbre é ainda
maior. Poucos desses pesquisadores se arriscariam a quantificar
o número de espécies de insetos, mas calculam, modestamente,
que eles devem representar 80% de toda a fauna local. Mamíferos também marcam na sua presença na Amazônia, apesar
da perseguição que fez com que muitos tenham sido incluídos
nas listas de animais ameaçados de extinção. Um deles, o peixeboi amazônico tornou-se um símbolo da luta preservacionista.
Outro, o boto cor de rosa, ou tucuxi, é praticamente um símbolo
da própria Amazônia, incorporado que foi às lendas e contos
populares. Entre os primatas a coleção é das mais extensas e
estudadas, e o número de espécies só fica a dever ao continente
africano. Por outro lado, grandes felinos como a onça-pintada,
antes extensamente disseminada pela região, vem enfrentando grande perseguição em virtude do avanço das fronteiras
agrícolas, e da introdução do gado em seu ambiente. Por fim,
répteis, anfíbios e quelônios, que ali existem em quantidades
e variedades impressionantes, ajudam a formar um enorme
contingente de animais diretamente ligados ao sistema hídrico.
Para alimentar todo esse imenso e rico sistema, nada
mais apropriado que um rio igualmente majestoso. O Amazonas forma a maior bacia hidrográfica do Brasil, e do mundo.
São quase sete milhões de quilômetros quadrados de terras
drenadas pelo rio principal, por seus afluentes e subafluentes.
São mais de sete mil cursos d’água que unem forças para formar
aquela grandeza. Durante muito tempo, a exata localização da
nascente do Amazonas constituiu um grande mistério geográfico. Hoje, sabemos que tem sua origem nos Andes peruanos, a
mais de cinco mil metros de altitude, de onde vem descendo e
ganhando volume, sem respeitar limites nacionais ou dar crédito
às divisões impostas pela geografia. Desde a nascente até entrar
em território brasileiro, ele é chamado de Marañon. Ao deixar
para trás as fronteiras com o Peru e Colômbia, toma o nome
de Solimões e, após o famoso encontro com as águas escuras
do rio Negro, ele passa finalmente a se chamar Amazonas. Da
nascente a foz são 6.868 quilômetros de extensão, deixando para
trás concorrentes de peso como o Congo e o Mississipi. Em
volume de água também não perde para ninguém. Sua vazão
é de 180 milhões de litros por segundo, ou seja, ele lança no
Atlântico um Mississipi a cada dez dias. O Amazonas faz um
rio como o Tâmisa, o maior da Inglaterra, parecer um filete de
água, pois a vazão de um ano inteiro do rio inglês representa
o fluxo de apenas um dia do nosso gigante. E é tal força com
ele invade o mar, que por centenas de quilômetros o Atlântico
apresenta sedimentos e se conforma em ter suas águas adoçadas.
Bem ao fim do século XV, ao navegar por essas águas salobras,
foi que os navegadores do Velho Mundo tiveram a ventura de
conhecer o maior rio do mundo.
Página 21: Um mundo de verde e água. Para navegar na Amazônia é preciso conhecer e respeitar o regime das águas. Durante meses grande parte da floresta fica inundada
formando verdadeiros labirintos. Em outras épocas os níveis dos rios ficam tão baixos que só permitem a navegação de pequenas embarcações.
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A Partilha de um mundo novo
Ao longo da história, o traçado das fronteiras políticas
da região amazônica foi tão volátil quanto os desejos e sonhos dos
poderosos. Em 1494, portanto, seis anos antes da descoberta de
Pedro Álvares Cabral, Portugal e Espanha, as duas maiores potências ultramarinas do século XVI, fizeram a partilha das ainda
“desconhecidas” terras americanas. O Tratado de Tordesilhas
estabelecia um meridiano situado a 370 léguas (aproximadamente 2.000 km) a oeste de Cabo Verde, definindo que os domínios
espanhóis ficariam a oeste deste limite imaginário. Aceitando
essa partilha, Portugal concordava em entregar a sua grande rival
uma área de seis milhões de quilômetros quadrados, que incluía
praticamente toda a atual Amazônia. Todavia, o tempo acabou
demonstrando que ambas as partes nunca tiveram as melhores
intenções, e que o tal tratado seria constantemente desrespeitado.
Inicialmente, a Coroa espanhola mostrou-se mais interessada em reforçar sua presença na América e, através da “mãopesada” de Francisco Pizarro e Diogo Almagran, que atuavam
na Bolívia e no Peru, e do tristemente lendário Hernán Cortez,
no México, arrancar dos indígenas todo o ouro e a prata que
pudesse ser levada para Madri. Por seu lado, Portugal também
encontrou muito o quê fazer na longa faixa litorânea que lhe
coube. A exploração do pau-brasil capitaneou o primeiro ciclo
econômico da nova colônia, e segundo estimativas recentes,
calcula-se que tenham sido retiradas da matas brasileiras 70
milhões de árvores em três séculos de extração predatória. Muito
antes de se exaurirem as reservas de pau-brasil, uma outra planta
passou a atrair a atenção da Corte: a cana-de-açúcar. Trazida
da Ilha da Madeira, onde já era um comprovado sucesso, foi
implantada com excelentes resultados no nordeste brasileiro, e
logo se tornou o principal produto de exportação da colônia e
fonte inesgotável de renda para a Corte. Estagnado pelo lucro
fácil, Portugal só começaria a empurrar com mais firmeza os
limites do Tratado de Tordesilhas quando o brilho do ouro das
Minas Gerais e do Mato Grosso chegou a seus olhos, já no final
do século XVII.
Pioneiros de Espanha
Enquanto isso, a Amazônia era uma terra aberta à
investida de espanhóis, ingleses e franceses. Para aquilatar o interesse que despertava aquele mundo verde e desconhecido, basta
lembrar que, entre 1499 e 1570, a Coroa espanhola patrocinou
nada menos que 22 expedições à região. A primeira delas ocorreu poucos meses antes da chegada de Cabral à costa brasileira.
Comandada por Vicente Yanez Pinzon, a pequena frota chegou
a Ilha de Marajó em janeiro de 1500. Após percorrer um curto
trecho da costa nordestina, Pinzon retornou ao ponto inicial,
ali encontrando à foz de um grande rio que o impressionou
vivamente. Era o Amazonas, ao qual batizou, aliás com muita
propriedade, como Santa Maria de La Dulce Mar.
Já Francisco de Orellana, outro espanhol, não foi tão
prudente. Cabe a ele a primazia de ter realizado a primeira
travessia do rio Amazonas. A viagem foi motivada por interesse
comercial, pois Orellana, assim como Gonçalo Pizarro, que o
acompanhava, estavam à procura das especiarias indígenas,
como o guaraná, o urucum e a castanha, conhecidas naquele
tempo como “drogas do sertão” e, obviamente, do ouro. Em
1539, a expedição saiu de Quito, no Equador, seguindo por
terra durante sessenta extenuantes dias até encontrar o rio de los
Omáguas, atual rio Napo. A descida deste rio frustrou aqueles
homens acossados pela fome e pelas doenças. Dos indígenas,
a única coisa que receberam foram flechadas. A essa altura,
Gonçalo Pizarro decide abandonar a expedição e retorna a
Quito. Orellana, convencido de que seria impossível enfrentar
a correnteza do rio, resolve continuar a descida do Napo em
companhia de 57 homens, entre eles o Frei Gaspar de Carvajal,
a quem se deve os registros da viagem. A descida rio abaixo até
a foz do Amazonas exigiu daqueles homens oito longos meses de
penoso esforço. Segundo Carvajal, a fome chegou a tal ponto,
que os obrigou a comer seus próprios cintos e sapatos de couro,
tornados mais “palatáveis” após longa fervura. Talvez, como
reconhecem muitos historiadores, o relato do frei dominicano
esteja carregado de exageros e fantasias. Seja como for, em um
dos trechos mais conhecidos de sua crônica, Carvajal descreve
o ataque das índias amazonas, mulheres altas, brancas e ferozes.
Isso foi o bastante para reavivar uma antiga lenda, e promover
a denominação do Rio das Amazonas.
Presença portuguesa
Oficialmente, a farra naquele El Dorado amazônico
acabaria em 1750, quando Portugal e Espanha voltaram à mesa
de negociações e assinaram o Tratado de Madri. Dessa vez, não
se tratava de arbitrar uma linha imaginária, mas determinar o
que cabia a cada Coroa, pelo direito adquirido com ocupação
efetiva da terra. Naturalmente, levou ainda muito tempo para que
espanhóis, ingleses, holandeses e franceses, reconhecessem a nova
realidade imposta pelo Tratado, mesmo porque, as autoridades
portuguesas tinham poucos meios de impor regras sobre aqueles
vastos e atraentes domínios. Mesmo assim, entre generosos lapsos
de tempo, a Coroa portuguesa pode contar com os esforços de
dois desbravadores notáveis que, com grandes sacrifícios pessoais,
concorreram para a ocupação da terra brasileira.
O primeiro deles foi Pedro Teixeira que comandou a
primeira expedição a subir o Amazonas. Ele não era um novato em seu ofício, já possuindo considerável conhecimento da
região, onde era destacado para dar caça a invasores e a índios.
Não fazia muito tempo, os franceses e sua França Equinocial
tinham sido expulsos da costa maranhense, e através daquela
expedição, Portugal pretendia mostrar à concorrência que
novas tentativas de colonização não seriam bem-vindas. Em 28
de outubro de 1637, por ordem do governador da Província do
Maranhão, Pedro Teixeira partiu de Cametá, no Pará, tendo
sob seu comando 70 soldados e 1.200 índios, todos embarcados
em meia centena de grandes canoas. Bem equipada e planejada,
a frota teve a rara ventura de encontrar poucos percalços pelo
caminho. Passado quase um ano, a expedição alcançou Quito,
no então Vice-Reinado do Peru, onde Teixeira toma posse das
terras, ainda que, oficialmente, elas fizessem parte da Coroa
espanhola. A bem dizer, a expedição comandada por Pedro
Páginas 22/23: O Carlos Chagas sobe o rio Trombetas. A beleza exuberante dos rios amazônicos encobre por vezes as carências da população. Todavia, com a
grande experiência adquirida na região, as tripulações dos NAsH sabem exatamente onde encontrar o alvo de sua missão. Página 25: Duas lendas se cruzam.
Após deixar a sede da Flotilha do Amazonas, em Manaus, o Carlos Chagas chega ao encontro das águas do rio Negro com o rio Solimões. Daí para frente o já
lendário navio seguirá pelas águas do maior rio do mundo.
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Páginas 22 e 23: O “Carlos Chagas” sobe o rio Trombetas. A beleza exuberante dos rios amazônicos encobre por vezes as carências da população. Todavia, com a grande experiência adquirida na região, as tripulações dos NAsH sabem exatamente onde encontrar o alvo de sua missão.
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Teixeira acontecia pouco tempo antes do fim da União Ibérica.
Desde 1578, quando do falecimento de Dom Sebastião, que não
deixou descendentes diretos, instalou-se uma crise sucessória que
permitiu a Espanha incorporar o Reino português. Em 1640,
essa situação seria revertida graças a Dom João IV, que apoiado
pela Holanda e pela Inglaterra, recuperou a autonomia portuguesa. Como se pode imaginar, durante mais de sessenta anos a
existência da União Ibérica proporcionou aos portugueses o livre
acesso as terras espanholas. Pedro Teixeira apenas se antecipou
ao fato histórico, e fez história. Na volta a Belém, trouxe um
enviado do Vice-Rei do Peru, o padre Cristóvão de Acuña, que
passou a se responsabilizar pelos registros de viagem que seriam
despachados para Felipe III, rei de Espanha. Ao minuciosas
anotações de Acuña foram reunidas numa publicação intitulada
Novo Descobrimento do Grande Rio das Amazonas, que foi rapidamente
retirada de circulação pelo governo espanhol, temeroso em não
inflamar as pretensões territoriais portuguesas, e a cobiça pelas
ricas minas peruanas. Pedro Teixeira, que não viveria para
testemunhar a autonomia de Portugal, traria em sua bagagem
ainda uma última e inestimável contribuição: o primeiro mapa
da Amazônia.
Cerca de uma década depois partia para a região
Raposo Tavares, um conhecido bandeirante que alcançou
grande renome como caçador de índios. Em 1648, convocado
pela Corte, ele partiu de São Paulo a frente de dois mil homens
com a missão de explorar as terras a oeste da linha do Tratado
de Tordesilhas. A bandeira desceu o rio Tietê e adentrou o rio
Aquidauana, já em Mato Grosso, aquela época uma terra ainda
intocada pelo homem branco. No final daquele ano atingiram o
rio Paraguai, seguindo daí até a embocadura do Guapaí, porta
de entrada para Potosi, na Bolívia, uma terra quase lendária
para os caçadores de ouro. Naqueles domínios espanhóis, Raposo Tavares e seus homens enfrentaram tantas dificuldades,
que as douradas promessas de Potosi pareciam um insuportável
castigo divino. Quando se viram reduzidos a poucas dezenas de
homens debilitados, decidiram retornar, empreendendo a difícil
travessia do rio Madeira, de onde, num esforço final, atingiram
o rio Amazonas. Raposo Tavares e os poucos companheiros que
retornaram, eram pálidas lembranças daqueles homens que há
quatro anos tinham largado das margens do Tietê, carregados
de sonhos e expectativas. Se não retornaram com as riquezas
esperadas, puderam contribuir em muito para a afirmação do
domínio português, através de descobertas geográficas e conhecimentos insuspeitados sobre a região amazônica.
Atraindo os olhares do mundo científico
Hoje, quando tanto se fala do interesse estrangeiro pelos inúmeros
recursos naturais da Amazônia, quando a comunidade científica
mundial rende homenagens à biodiversidade da região, e que,
tudo que ali parece grande, majestoso e infindável, ainda carece
de uma avaliação mais apurada, devemos olhar criticamente o
passado e entender que este interesse não é novo, nem descabido.
A grandeza e a riqueza da região vêm, há séculos, povoando os
sonhos de botânicos, zoólogos, geógrafos, comerciantes, artistas,
aventureiros, conquistadores e aristocratas. Enfim, uma gama
infindável de seres humanos que foram conquistados pelo desafio daquele pedaço inóspito do Brasil. A Amazônia foi palco
e patíbulo de homens e mulheres, que deixaram seus países de
origem, e ali teceram históricas memoráveis. Via de regra, a sabedoria de mensurar os riscos envolvidos fez a diferença entre o
sucesso e o trágico. Certamente, não se deve entender que todo
o olhar estrangeiro sobre a imensidão amazônica venha acompanhado de um movimento dominador ou predatório. É fato,
que boa parte do conhecimento que hoje temos daquele mundo
fascinante, deve-se ao trabalho de pesquisadores estrangeiros
verdadeiramente imbuídos do espírito científico.
Um desses grandes pesquisadores foi Alexandre Rodrigues Ferreira, um baiano. Sua viagem se reveste de uma
importância ímpar, pois foi a primeira oficialmente enviada pela
Corte de Lisboa, à época sob o reinado de D. Maria I, para fazer
o reconhecimento dos recursos naturais da colônia. O ponto de
partida da expedição foi Belém, no Pará. Em outubro de 1783,
Ferreira, acompanhado de desenhistas e de um botânico, parte
dali para cumprir uma missão de múltiplos objetivos. Naqueles
tempos, seria impensável fazer alguém atravessar um oceano
com o simplório objetivo de coletar plantas e desenhar aves.
Havia uma demanda por informações preciosas que a expedição
precisava atender. Assim, além de fazer um levantamento dos
aspectos naturais, era necessário avaliar o potencial agrícola da
região e, além de tudo, identificar possíveis marcos naturais que
permitissem demarcar uma linha de fronteira entre o território
da colônia e as terras espanholas da Colômbia e da Venezuela.
Não era pouco trabalho. Alexandre Ferreira começou por fazer
um levantamento da costa do Pará, da Ilha de Marajó e, chegou
até a foz do Tocantins, de onde pretendia atingir o rio Negro.
Para tanto, foi preciso enfrentar por cinco meses a força do rio
Amazonas. Uma ninharia, comparando-se que a expedição
precisou de quase um ano para chegar as partes mais altas do
rio Negro, já na zona de fronteira entre domínios portugueses e
espanhóis. Naquele tempo, uma terra de ninguém franqueada
aos mais ousados. Durante suas longas travessias fluviais, Alexandre Rodrigues fez detalhadas observações das comunidades
indígenas, dos aspectos naturais da região e ampliou o conhecimento dos rios da região. A importância de seu trabalho foi
reconhecida devido aos criteriosos e detalhados relatórios de
viagem que redigia, e que enviava a corte, acompanhados das
mais variadas espécies de aves, plantas e minerais. Nada escapava
a seu olhar atento, que abriu os olhos da Corte para as riquezas
de sua distante colônia.
A mesma sorte não teve um dos maiores naturalistas de
todos os tempos. O alemão Alexander Von Humboldt bem que
tentou conhecer a Amazônia brasileira, mas nossas fronteiras
se fecharam para sua expedição. As autoridades portuguesas
sediadas em Belém, desconfiadas das intenções do naturalista,
impediram sua entrada na região. Em contraponto, recebeu
permissão de livre trânsito nos territórios que pertenciam a Coroa
espanhola. Em vista disso, as pesquisas de Humboldt ficaram
restritas à Ilha de Cuba, ao Peru, ao Equador, a Colômbia e a
Venezuela. Mesmo assim, entre 1799 e 1804, período em que esteve pela América, pode realizar extensas investigações científicas,
sobremaneira na área da geografia, o que lhe permitiu afirmar
categoricamente, que havia, como de fato há, uma ligação entre
as bacias dos rios Orenoco e Amazonas. Feito impressionante
para quem sonhava atravessar o continente americano, entrando por aquele mesmo Orenoco e navegando pelo Amazonas
JACARÉ
Página 27: Cercado de água por todos os lados, os ribeirinhos logo aprendem a conviver com os habitantes da mata. Alguns são sua fonte básica de alimento,
como os peixes. Outros, como esse jacaré, são um perigo constante.
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até alcançar o Atlântico. Em tempos anteriores à abertura dos
Portos por D. João VI, Humboldt teve que se contentar com
sua teoria, pois a prova cabal morreu nas mãos da burocracia
portuguesa da época.
Todavia, o sonho do sábio alemão tinha sido realizado
não havia muito, mas por um francês. Charles-Marie de La
Condamine era integrante de uma expedição enviada pela
Academia de Ciências de Paris, que deveria comprovar, ou
não, a teoria lançada por Sir Isaac Newton. Dizia o eminente
físico e astrônomo inglês, cuja genialidade o levaria à glória,
que a Terra teria a forma de uma elipse, e que apresentaria os
pólos achatados. Newton estava coberto de razão, mas nosso
pobre Charles-Marie, por conta de seu particular empenhado
nas medições físicas, e a mercê de uma série de contratempos,
ficou por essas plagas nada menos que dez longos anos. Tempo
suficiente para que vários membros abandonassem a expedição. Coube a La Condamine, em companhia de um jesuíta,
a honra de empreender a descida do rio Amazonas. Eles partiram do Peru em maio de 1743 e chegaram à Belém quatro
meses depois. Nessa época, a teoria de Newton já tinha sido
comprovada por um colega de La Condamine, mas nem isso
empanou o brilho de seu trabalho. Deve-se a ele um excelente
trabalho de cartografia do rio Amazonas, e a coleção de inúmeras espécies de animais e vegetais, até então desconhecidas
do meio científico.
Mas quando o assunto é botânica, não houve presença
mais marcante em terras amazônicas que a de Karl Friedrich
Philipp Von Martius. Aos 23 anos, o botânico alemão, chegou
ao Brasil como integrante da comitiva austríaca que acompanhava a Princesa Leopoldina, futura esposa de Dom Pedro
I. Entre 1817 e 1820, em companhia de seu compatriota, o
zoólogo Johann Baptiste Von Spix, percorreu cerca de 10 mil
quilômetros pelo interior do Brasil imperial, coletando informações sobre todos os aspectos da terra brasileira. Suas impressões
ficaram registradas numa obra em três volumes intitulada
Viagem pelo Brasil, na qual dedica especial atenção à Região
Norte. No entanto, o trabalho mais colossal empreendido por
Von Martius ainda levaria 66 para ser finalizado, e teve que
contar com a colaboração de 65 pesquisadores que assumiram
o trabalho após a morte do botânico, ocorrida em 1868. Flora
Brasiliensis é uma coleção de 40 volumes, onde se encontram
catalogadas 22.767 espécies vegetais brasileiras, coletadas por
Von Martius durante os anos de permanência no Brasil. Até
hoje, é considerada a mais completa obra sobre nossa flora.
Jean Louis Rodolphe Agassiz nasceu na Suíça, em
1807. Teve uma sólida formação científica dentro da carreira
de medicina, doutorando-se ainda muito jovem pela Universidade de Munique. Aos 19 anos sua carreira sofreria uma
reviravolta marcante. Após o retorno a Europa, Von Martius
se vê em dificuldades para catalogar toda a imensa coleção de
espécies trazidas do Brasil por conta do prematuro falecimento
de Johann Spix, seu grande colaborador. Grande parte dessa
coleção é constituída de peixes coletados no rio Amazonas. Sob
orientação de Von Martius, Agassiz assume a tarefa que o tornaria um dos maiores ictiólogos da época. Paralelamente a esse
trabalho, Agassiz passa a colaborar com o grande paleontólogo
Georges Cuvier na classificação de fósseis de peixes coletados
em pela Europa. Em 1846, transfere-se para os Estados Unidos
onde assume a cátedra de zoologia na renomada Universidade
de Harvard, o que só faz aumentar sua fama. Menos de vinte
anos depois, vivamente impressionado pela obra intitulada “Peixes do Brasil”, Dom Pedro II convida Agassiz para uma visita
ao Brasil. Entre 1865 e 1866, em companhia de sua mulher
Elisabeth Cary, Agassiz comanda uma expedição que atravessa
o Rio de Janeiro, Minas Gerais, Nordeste e Amazônia. Durante
a viagem foram coletadas mais de trezentas espécies de peixes,
além de anotações sobre botânica, geologia, hábitos, costumes,
formação e miscigenação étnica das regiões visitadas. Em 1868,
Agassiz lança o livro “Viagem ao Brasil”, um dos mais ricos e
detalhados relatos de viagem já feitos sobre a Amazônia.
A lista de visitantes é extensa, mas não pode ser finalizada sem o registro da presença de dois cientistas notáveis em terras
amazônicas. Em 1848, desembarcaram na região os ingleses
Alfred Russell Wallace e Henry Walter Bates, para empreender
uma série de investigações que amparassem uma teoria desenvolvida por Wallace. Ele vinha buscando evidências de um princípio
que denominava como seleção natural. A tese, que causaria uma
polêmica incendiária no meio científico, e daria notoriedade
mundial a Charles Darwin, vinha sendo desenvolvida em paralelo
pelos dois cientistas, sem que eles praticamente se conhecessem.
Em 1858, Wallace e Darwin, apresentaram suas conclusões aos
colegas da Linnean Society, em Londres. Fiel à grandeza de seu
caráter, Wallace reconheceu a qualidade do trabalho de Darwin
e, coube a este, a autoria da obra que passaria a ser conhecida
como Teoria da Evolução.
Bates, que havia se separado de Wallace, em 1850,
permaneceu por onze anos explorando a região amazônica,
ilustrando e coletando material botânico e zoológico para o
Museu de História Natural de Londres. A coleção de espécies
animais, principalmente insetos, é ainda hoje a maior já reunida por um só pesquisador. O interesse que a exuberância da
Amazônia despertou em Bates, é flagrante nas páginas de seu
famoso livro, Um Naturalista no Rio Amazonas, onde expõe suas
experiências naqueles anos em que conviveu entre os indígenas.
Conta-se que Bates, estimulado pelas inebriantes
descobertas nesse Novo Mundo e, com toda certeza, pelo calor
equatorial, teria deixado de lado toda a fleuma britânica, assim
como as inadequadas roupas européias, para se integrar de vez
aos costumes de seus anfitriões. Foi um exemplo de integração
poucas vezes seguido. Através de seus relatos de viagem, muitos
estudiosos passaram ao Velho Mundo uma visão estereotipada dos primitivos brasileiros que aqui encontraram. Parte da
intelectualidade européia dos séculos XVIII e XIX chegava
ao Brasil na expectativa de encontrar o “bom selvagem”, um
modelo de homem perfeitamente integrado ao seu ambiente,
pacífico e generoso. Em contrapartida, os conquistadores viam
nos indígenas uma fonte abundante de mão-de-obra escrava,
seres inferiores que deviam ser submetidos pela catequese e
pela espada. Naturalmente, essas visões distorcidas acarretaram
sofrimentos e o extermínio de muitas populações indígenas.
Revendo a história de nossa colonização, chega a causar espanto
que a cultura daqueles primeiros brasileiros tenha resistido e
encontrado forças para se integrar à formação de um povo
corajoso como poucos.
Página 29: Bela e perigosa. Muitos animais do habitat amazônico, como essa jararaca verde, são de uma beleza deslumbrante que encanta os estudiosos e atrai a
lente dos fotógrafos. No entanto, para os ribeirinhos ela é apenas mais um perigo que ronda nas matas.
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O Ribeirinho da Amazônia
Raça de Corajosos
C
omo podemos ver a esmagadora maioria das missões de estudo que chegaram à Amazônia naqueles
tempos, era formada por ingleses, alemães e franceses. A expedição de Alexandre Ferreira foi um momento solitário na história da investigação de nossos recursos naturais, patrocinada pela Corte de Lisboa.
Portugal, desde os tempos do achamento da terra brasileira, ora demonstrava desinteresse pela colônia ultramarina, ora
reagia às investidas dos concorrentes mais ousados. Assim, as expedições portuguesas que chegavam até aqui tinham antes
de tudo um caráter militar, missões de força que deveriam assegurar o domínio português sobre os cobiçados recursos
do Brasil colonial.
Os verdadeiros donos da terra brasileira, os milhões de indígenas que habitavam as vastidões desconhecidas que
o Tratado de Tordesilhas partilhou entre espanhóis e portugueses, e que Pedro Álvares Cabral veio a conhecer em 1500,
participaram de todo o processo de descoberta e colonização como meros coadjuvantes. Percebidos a princípio como
uma verdadeira curiosidade, os primeiros nativos a ter contato com os brancos não tiveram como prever as alterações
que surgiam no horizonte, e que seu recanto do Novo Mundo jamais voltaria a ser o mesmo. A época da conquista e da
colonização exigiria um posicionamento dos indígenas. Ou se colocavam ao lado dos conquistadores, ou seriam subjugados por eles. Como se diz, ficaram entre a cruz e a espada. Quando escolheram a parceria com franceses, holandeses
e ingleses, concorrentes dos portugueses, acabaram traídos e derrotados; quando ficaram ao lado dos lusos acabaram
escravizados.
As estimativas feitas ao longo da história dão conta de que nos primórdios da colonização, habitavam em todo
o território brasileiro cerca de dois milhões de indígenas. Talvez seja um exagero, ou por outro lado uma depreciação,
mas o fato é que já no final do século XIX seu número não chegava ao meio milhão. Uma devastação causada pela
perseguição, pela exploração escravista, pelas doenças trazidas pelo branco e pela destruição do ambiente e tomada das
terras em que viviam. Hoje eles estão reduzidos a cerca de 300 mil indivíduos, mas a contribuição dessa raça e de suas
inúmeras etnias foi decisiva na formação do homem ribeirinho. Sua presença é tão forte, que qualquer pessoa ao tentar
definir os traços de um habitante típico das margens dos rios amazônicos, acaba descrevendo um perfil indígena.
As três principais correntes de pesquisa, que tentam explicar a origem do homem americano, concordam num
ponto: ele não é autóctone, ou seja, não surgiu aqui e teria vindo de outras terras. Isso posto, vejamos as teorias que se
desenvolveram. A primeira diz que o homem aqui chegou atravessando o Estreito de Bhering. Segundo os estudiosos, essa
migração deve ter ocorrido no período compreendido entre 50 mil e 12 mil anos atrás, quando um istmo de gelo unia os
continentes Asiático e Americano, entre as atuais regiões da Sibéria e do Alasca. As duas outras correntes acreditam que
o homem tenha chegado as Américas a bordo de embarcações. Elas apenas diferem nos pontos de partida e chegada. A
Teoria Australiana aceita que o homem tenha vindo da Oceania e desembarcado na Terra do Fogo; já os que defendem
a Teoria Malaio Polinésia acreditam que ele partiu das ilhas do Pacífico, chegando nas praias da América Central.
Até hoje há controvérsias quanto a datas, locais e itinerários e, como a arqueóloga brasileira Niéde Guidon, que
realiza pesquisas no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, já detectou vestígios da presença humana com
mais de 30 mil anos, melhor deixar a polêmica para os especialistas e nos prendermos as evidências. As mais reconhecidas nos contam que as margens dos rios da Região Amazônica foram lar de algumas sociedades indígenas com certo
grau de organização. Entre elas, a mais exuberante foi a Civilização Marajoara, cuja trajetória histórica foi desvendada
pelos pesquisadores a partir de sua requintada cerâmica. Ao que parece, a civilização que habitava a Ilha de Marajó
congregava várias etnias, e desapareceu pouco antes da chegada dos europeus as terras americanas.
Talvez o destino dos Marajoara não tenha sido um caso isolado, mas o fato é que várias etnias se distribuíram
por toda a Amazônia. Ali, muitos povos sobreviveram devido à dificuldade de acesso encontrada pelo branco, razão
pela qual, até hoje, alguns grupos indígenas ainda permaneçam isolados. Gente muito rara, pois desde os primórdios do
Páginas 30/31: Porto de Parintins (AM) numa tarde de sexta-feira. O U-19 encerra sua primeira semana de trabalho e vai descansar junto ao colorido dos “regionais”. A cada comissão, novos conhecimentos e conquistas se somam no histórico da Flotilha de Saúde, confirmando o acerto da decisão que a Marinha do Brasil
tomou há 25 anos. Página 32: Nem bola nem carrinho. No meio da Amazônia não tem brinquedo a pilha, nem internet e nem videogame. São macacos, maritacas,
papagaios e araras que enchem de vida as brincadeiras da criançada.
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Brasil colonial se tentou dar solução para o problema que o
indígena representava. Aos colonizadores não-portugueses
interessava apenas e tão somente tê-los como aliados na
luta contra os lusos ou, através deles, explorar as riquezas
da terra ainda virgem. Por seu lado, vendo a colônia ser
tomada por invasores que aqui entravam sem a menor
cerimônia, os portugueses trataram de pacificar os nativos.
A corte envia para cá aqueles verdadeiros soldados da fé.
Os jesuítas são sem dúvida os mais lembrados, sobretudo
pelos nomes de Manoel da Nóbrega, que chefiou a primeira
missão jesuíta a desembarcar em terras brasileiras, isso em
1549, como também por Anchieta e Antônio Vieira, dois
literatos a serviço da religião. Mas foram os franciscanos
os primeiros a chegar a Amazônia, em 1618. Os carmelitas chegaram em 1627, e os Mercedários em 1639, com
a expedição de Pedro Teixeira. Os jesuítas só chegariam
à região em 1636. O que parecia uma solução acabou se
transformando num problema. A concorrência entre as
missões para catequizar os nativos amazônicos chegou a
tal ponto, que a Corte teve que intervir através de Cartas
Régias, definindo a área de atuação de cada ordem religiosa. Após essa real solução, os missionários trataram de
enquadrar os indígenas sob os estreitos padrões exigidos
pela Igreja e pela Corte. A partir daí os indígenas não
teriam mais sossego.
Os religiosos passaram a se organizar em expedições, os “Descimentos”, nas quais tentavam convencer os
nativos a descer para os aldeamentos. Aqueles que ouviam
as falsas promessas eram alojados nas chamadas “aldeias
de repartição”, para então serem entregues sob aluguel
aos colonos. Ingenuamente, muitas tribos eram exploradas
pelos próprios religiosos que os faziam extrair da mata as
cobiçadas “drogas do sertão”, além de madeiras e produtos de origem animal. Tudo isso era enviado para o Velho
Mundo gerando bons lucros para as ordens. Como se não
bastasse, em 1611, a Corte instituiu uma conjunto de leis
que permitia as tais “Guerras Justas”. Nada mais eram do
que expedições militares que tinham o único objetivo de
escravizar índios, todos eles, incluídos aí mulheres e crianças. Em seus reduzidos artigos, a lei definia que a guerra
era justa quando os índios fossem contra o cristianismo, ou
impedissem a pregação do evangelho; quando se negassem
a ajudar os portugueses na luta contra outras tribos ou na
defesa de suas vidas (a dos portugueses, claro); quando
atacassem ou roubassem os colonos; ou ainda, se fizessem
aliança com outros europeus.
Apenas uma nação muito numerosa e espalhada
pela vastidão da Amazônia poderia suportar tal perseguição. A violência empregada era de tal monta que um
religioso da época, o Padre João Daniel, assim se expressou,
em 1750: “Os homens os matam como se fossem mosquitos, e tratam
com mais caridade seu animais domésticos do que os índios.”
Tal situação perdurou por quase um século e meio
e, pelo menos na Amazônia, a colônia se desenvolvia à
custa da mão-de-obra escrava do índio. Essa situação só
começaria a mudar a partir de 1770, quando o Marques de
Pombal foi empossado como Primeiro Ministro da Corte
de Dom José I. Entre as medidas que ele logo adotou, estavam a expulsão dos jesuítas e o confisco de todas as suas
terras em território brasileiro, e a reformulação de toda a
política de escravidão indígena. Pelo Diretório dos Indos,
que vigoraria até o fim do século XVIII, a escravidão dos
nativos era legalmente extinta. Na prática, isso não causou
grandes alterações no quadro, posto que o índio continuou
a ser o combustível da máquina, não importando muito
quem a comandasse.
O início do século XIX, que traria profundas
alterações na vida da colônia, principalmente pela chegada da Família Imperial, em 1808, e pela Declaração da
Independência, em 1822, não indicava nenhuma grande
mudança na relação entre conquistadores e índios. Os
primeiros continuavam aferrados à idéia de transformar a
Amazônia num grande celeiro agrícola, aplicando técnicas
incompatíveis com a região e explorando o índio; e estes,
mantinham sua postura inicial de revolta contra a imposição
do trabalho e da invasão de suas terras. Esse conflito mais
que secular, faria com que os índios passassem a radicalizar
sua posição e, pouco a pouco ganhassem a liberdade que,
na prática, lhes era negada. Há registros de que a revolta
dos índios se estenderia até meados do século XIX, inclusive
com participação na Cabanagem, um dos mais importantes
movimentos revolucionários do Brasil Imperial, que sacudiu
a Província do Pará e a Capitania de São José do Rio Negro,
onde hoje se insere parte do Estado do Amazonas. Durante
a revolta, grande parcela da população local, formada por
índios, negros e mestiços que viviam em cabanas à margem
dos rios, explodiu contra os exploradores portugueses. Isso
ocorreu em 1835, ou seja, mais de uma década após Dom
Pedro I ter declarado a Independência do Brasil.
Mesmo esse atraso histórico não pode conter as
mudanças que se insinuavam. A partir da década de 1850
já se viam embarcações a vapor navegando pelo Amazonas.
Em 1866, os portos da região amazônica foram abertos
à navegação estrangeira e, em 1884, antecipando-se a
assinatura da Lei Áurea, todos os escravos negros foram
declarados livres em Manaus. Aliás, é preciso lembrar
que os negros representaram uma parcela minoritária
na mão-de-obra escrava empregada. Menos que 13 mil
negros foram introduzidos na região, que se baseava principalmente no extrativismo, atividade para a qual o índio
estava mais capacitado.
Os novos tempos, a luta e o sacrifício dos indígenas abriram caminho para sua emancipação. Os prejuízos
causados pela escravidão e pela destruição de sua cultura
ficaram evidentes na redução das populações originais.
Por décadas eles procuraram a proteção da selva e se
mantiveram afastados do homem branco, de tão triste
memória. Porém, a grande maioria desses primeiros
brasileiros se integrou lentamente, e não sem percalços,
à sociedade brasileira. A forte miscigenação que se promoveu na região amazônica, à exemplo de todo o país,
Página 35: Entre amigos. Essa imagem é recorrente nas ribeiras da Amazônia, pois os enfermeiros da Marinha, profissionais dedicados e queridos, estão sempre
cercados pela atenção de seus pequenos pacientes.
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produziu tipos como o mulato, mestiço do branco com o
negro; o caboclo ou mameluco, que se origina do branco
com o índio; e o cafuso, mestiço do negro com o índio.
Este último, como primeiro habitante da terra, juntouse a dois elementos estrangeiros para formar o perfil do
ribeirinho amazônico.
A fortuna da selva
Os indígenas lidavam há muito tempo com uma
árvore da qual extraíam uma seiva leitosa, aquela que seria
conhecida como seringueira. Para eles, ela não teria mais
utilidade do que fornecer matéria-prima para a confecção
de alguns utensílios. Porém, o homem branco descobriu
outras finalidades naquele produto elástico que chegou
como curiosidade à Europa. Em 1770, o inglês Joseph
Priestley conseguiu dar ao látex um uso que se tornaria
popular em todo o mundo, mas que à época parecia quase
um milagre: apagar a escrita feita a lápis. A novidade chegou aos Estados Unidos, onde Charles Goodyear descobriu
o processo de vulcanização da borracha, que consistia na
combinação do látex com o enxofre, dando ao produto
final uma grande flexibilidade e resistência as alterações
de temperatura. Aproveitando-se desse desenvolvimento,
John Dunlop, um veterinário irlandês, criou o primeiro
aro pneumático, o protótipo dos pneus que equipam os
veículos de todo o mundo.
E foi aí que a floresta amazônica começou a ser
invadida por exploradores ávidos pela riqueza branca.
A febre da borracha não atingiria apenas o Brasil, mas
em maior ou menor escala toda a região tropical onde a
seringueira era nativa. No Congo, então colônia Belga, a
corrida pela borracha levou a morte milhares de africanos.
Em terras brasileiras a extração do látex gerou o chamado
Ciclo da Borracha. A busca por áreas de seringueiras nativas criou pólos de extração e fortes movimentos migratórios. O primeiro desses pólos foi Belém, que era a cidade
portuária mais importante da Região Norte do Império
brasileiro. Em seguida a exploração chegou ao Amazonas
e, por fim, ao Acre, ainda pertencente à vizinha Bolívia.
Lentamente preciosa seiva da hévea foi sendo tirada da
floresta e enviada para os mercados da Europa e Estados
Unidos. Em 1827, a modéstia das primeiras exportações
mal passava de 30 toneladas. Pouco mais de meio século
se passaram e o montante alcançava as sete mil toneladas.
E não parou de crescer até a primeira década do século
XX, quando atingiu a média anual de 34.500 toneladas.
A borracha não chegou a desbancar o café do topo
da pauta de exportações mas, em 1910, chegou a bater em
seus calcanhares com um rendimento de 377 mil contos
de réis. Uma fortuna que havia engordado os cofres do
Império, e agora ajudava a manter as finanças da jovem
República. No apogeu do ciclo exploratório, Manaus teve
um desenvolvimento fantástico patrocinado pela riqueza
acumulada pelos Barões da Borracha, que transformaram
a capital amazonense numa metrópole calcada em padrões
europeus, com todos os requintes e comodidades que a
elite local almejava.
A mão-de-obra, que vivia no lado obscuro desse
momento de riqueza e ostentação, estava extraindo o látex
nos corredores da floresta fechada. Ele se fazia representar
pelo imenso contingente de migrantes nordestinos, levados
até ali em razão das terríveis secas que devastaram suas
regiões de origem, entre 1877 e 1880. O nordeste brasileiro era, desde tempos imemoriais, palco de secas que
desafiaram gerações de estudiosos e ações governamentais
e, por isso mesmo, “exportava” sua gente para todo o
país. O problema se registra desde a época das Capitanias
Hereditárias, quando malograram os primeiros esforços
para tirar algum proveito das terras inseridas no chamado
polígono das secas. Os naturalistas alemães Von Martius
e Johan Von Spix, que tão belas palavras deixaram sobre
a floresta amazônica quando a conheceram na expedição
que realizaram, entre 1817 e 1820, ao passarem pelas
terras do nordeste brasileiro registraram assim o quadro
que se apresentava: “A terra rasga-se então em grandes
fendas, a vegetação morre completamente, as feras do
mato e inúmeras boiadas são vítimas da fome e da sede, e
os habitantes são forçados a exilar-se.” Sem alternativas,
era o que faziam os nordestinos.
O crescimento da demanda pela borracha fez
com que os extrativistas partissem em busca de mais
áreas de seringueiras, penetrando continuamente num
território que era reclamado pela Bolívia. O conflito com
o país vizinho não tardaria, e ele se anunciava há tempos.
Segundo os termos do Tratado de Ayacucho, firmado por
Brasil e Bolívia, em 1867, ficava estabelecida um fronteira
descrita por uma linha traçada entre as nascentes do rio
Javari e a confluência dos rios Beni e Mamoré. Essa linha
imaginária era uma mera formalidade que, na prática, foi
ignorada pelos brasileiros que buscavam o látex. Inconformados, os bolivianos exigiram a demarcação definitiva
das terras por uma comissão de limites binacional. No
entanto, os enviados brasileiros se recusaram a executar
a tarefa, considerando-a como uma afronta aos interesses de seu país. A situação ficou indefinida por algum
tempo, até que uma associação de interesses europeus e
norte-americanos, cobiçosos pela borracha da região, se
aproximou do governo da Bolívia, na intenção de formar
uma entidade denominada The Bolivian Syndicate. Foi
o estopim de dois movimentos que tencionavam anexar
o Acre ao território brasileiro.
Páginas 36/37: À primeira vista, as casas ribeirinhas aparentam uma total fragilidade e carência de conforto. Mas quando se observa o ambiente e o clima da região
logo se vê o quanto elas são bem adaptadas às necessidades da população local. Páginas 38/39: A canoa está para a pequena ribeirinha como a bicicleta está para
as crianças das grandes cidades. Aquele meio de transporte, tão comum na Amazônia, é que a leva a todos os lugares, inclusive ao atendimento médico-odontológico que
está acontecendo na comunidade de Paraná do Albano, onde ela mora. Página 40: O perfil da população amazônica foi formado em séculos de repetidas e continuadas
migrações e miscigenações. A fórmula inclui boas doses de sangue indígena, europeu e uma minoritária participação negra. A exploração da borracha fez com que levas de
nordestinos chegassem à área em etapas mais recentes. O resultado é um tipo humano bem adaptado às difíceis condições de uma Amazônia inóspita e exigente.
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O primeiro foi encabeçado pelo espanhol Luís
Galvez Rodrigues de Arias. Patrocinado pelo governador
do Amazonas, Ramalho Junior, Galvez partiu para a região
em disputa, onde em 14 de junho de 1899, proclamou o
Estado Livre do Acre. Sua ação logo foi abafada pelo Governo Federal, que enviou uma flotilha da Marinha para
apaziguar os ânimos mais exaltados.
Quando o delírio de Galvez começava a desaparecer de cena, o governo boliviano finalmente assina um
acordo com o Bolivian Syndicate, dando a seus sócios
plenos poderes sobre a região do Acre. As cláusulas desse
contrato previam que os sócios da Bolívia poderiam dispor
de forças militares e poder fiscal para administrar o território acreano, bem como livre trânsito nos rios da região.
Ademais, lhes seria facultado o direito de comprar todos
os seringais produtivos da gigantesca área de concessão.
A notícia caiu como uma bomba nos ouvidos da
população brasileira. Incomodou particularmente um certo
gaúcho, que trabalhava na região como agrimensor. Seu
nome era Plácido de Castro e, apesar de jovem, tinha em
seu currículo a participação na Revolução Federalista ocorrida no Rio Grande do Sul. Em meados de 1902, a frente de
três dezenas de companheiros que conseguira arregimentar,
partiu para a cidade de Xapuri, então governada por bolivianos, prendeu o Prefeito local e declarou pela segunda
vez a independência do Estado do Acre. Em pouco mais
de um mês a revolução já tomava todos os seringais, e as
tropas contavam com mais de dois mil homens. As vitórias
de Plácido de Castro foram se sucedendo em várias frentes,
tomando cidades e obrigando o governo boliviano a ceder
terreno. As hostilidades só tiveram fim quando foi assinado
o Tratado de Petrópolis, em 17 de novembro de 1903. Por
ele, o Brasil tomava posse definitiva do território do Acre.
Em contrapartida, pagava a Bolívia uma indenização de
2 milhões de libras e assumia ainda o compromisso de
finalizar as obras da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré,
uma antiga exigência dos bolivianos.
Em 1912, portanto menos de dez anos após a
anexação do Acre, os embarques de borracha para o
exterior chegam a 42 mil toneladas, o que representava
então 40% de todas as exportações brasileiras. Em moeda
corrente, isso significava uma soma de quase 25 milhões
de libras. E foi tudo. Começava um desastre anunciado há
quase quarenta anos passados, quando 70 mil sementes de
seringueira foram contrabandeadas por Henry Wickman
e levadas para o Jardim Botânico de Kew, em Londres.
Elas deram origem as extensas plantações que os ingleses
estabeleceram em suas colônias em Cingapura, Ceilão
e Malásia. Em 1919, estas plantações já desbancavam a
borracha brasileira, levando caos aos seringais brasileiros. A
febre da borracha tinha deflagrado um intenso movimento
migratório para a Amazônia. A densidade demográfica
se adensou de forma nunca vista. Sua população, que em
1872, somava 337.000 habitantes, chegou a 1.100.000 em
1906. Gente de todos os cantos e principalmente do nordeste, que chegara ali para o encontro com o índio, com o
negro, e com a terra que ele não mais deixaria.
Epílogo de um sonho
A febre da borracha ainda teria uma recaída na
Amazônia, provocada pela eclosão da Segunda Guerra
Mundial, melhor dizendo, pela queda nas mãos dos japoneses dos vastos seringais do Extremo Oriente. De um
momento para o outro quase toda a produção mundial
de borracha passava para as mãos do Eixo, formado por
Alemanha, Itália e Japão. Os Aliados rapidamente lembraram de seus antigos fornecedores. Em 1942, o governo
dos Estados Unidos propõe ao Brasil, então sob a ditadura
de Getúlio Vargas, um acordo para que seja reiniciada a
produção de borracha em terras amazônicas. Pelo Acordo
de Washington, os norte-americanos financiariam a produção, a compra e a venda do produto, além de contribuir
na melhoria dos sistemas de transporte e de saúde. Por seu
lado, o Brasil arcaria com a mão-de-obra e se comprometia
a manter um preço fixo do quilo da borracha, que não deveria ser superior a 25% do preço praticado pelos bolivianos.
Começava aquela que passaria a história como a
Guerra da Borracha. Os soldados recrutados já eram bem
conhecidos nos seringais para onde foram enviados. Nos
três anos que durou o sonho, acredita-se que o contingente
de nordestinos que seguiram para a Região Amazônica
tenha chegado a 100 mil pessoas.
“Quando as grandes secas flamejavam sobre os sertões
adustos, e as cidades do litoral se enchiam em poucas semanas de uma
população adventícia de famintos assombrosos, devorados de febres
e bexigas, a preocupação exclusiva dos poderes públicos consistia no
libertá-las quanto antes daquelas invasões de bárbaros moribundos
que infestavam o Brasil. Abarrotavam-se as carreiras os vapores
com aqueles fardos agitantes, consignados à morte. Mandavam-nos
para a Amazônia, vastíssima, despovoada, quase ignota, o que valia
a expatriá-los dentro da própria Pátria...” Essas palavras de
Euclides da Cunha foram escritas décadas antes daqueles
milhares de nordestinos partirem novamente em busca de
uma nova esperança. O enredo se mantinha e os personagens eram os mesmos.
Infelizmente, a Guerra da Borracha foi perdida
apesar de todas as promessas. Ao fim do conflito os Aliados
retomaram os seringais da Indonésia, do Ceilão, de Singapura. O fluxo de produção foi retomado e a borracha que
vinha do Brasil deixou de ser interessante. Dos milhares de
nordestinos que haviam seguido para a Amazônia, muitos
se fixaram, formando famílias e se adaptaram a um novo
ambiente e a uma nova vida. É provável, que seus descendentes pouco saibam da saga vivida por seus antepassados,
que desterrados de sua terra natal, levaram para a Amazônia
toda a força e determinação que aquele mesmo Euclides da
Cunha enaltecia ao dizer: “o sertanejo é antes de tudo um forte.”
Página 43: Casa conjugada com local de trabalho. Nessa típica habitação à beira do rio Acará, no Pará, o ribeirinho vive com sua família e ainda tira seu sustento no
açaizeiro que frutifica na porta dos fundos.
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Missão: Salvar Vidas!
A História do Auxílio ao Brasileiro da Selva
T
oda essa gente que chegou a Amazônia, os milhares de nordestinos, que ali se encontraram com os primeiros
e mais bem adaptados homens da selva, formaram um massa colonizadora que seria responsável, ao longo de
décadas, pela ocupação legítima e permanente das margens dos rios e das terras adventícias. Sem o saber, mas
levados pela necessidade ou por promessas que desapareciam logo que chegavam as ribeiras, se comportaram como novos bandeirantes de um Brasil que despertava o interesse de muitos. Pela sua grandeza, pela sua riqueza, e pelo pouco que se fazia no sentido
de ocupá-la de forma organizada e não destrutiva, a Amazônia mais parecia um projeto de porvir que uma realidade exeqüível.
Pouco antes de começar a segunda grande migração de nordestinos, os exércitos que lutariam na Guerra da Borracha,
uma Comissão Mista de Problemas da Região Amazônica, elaborou um formulário que seria encaminhado ao Governo Federal.
Em interessantes trechos do trabalho, é possível perceber a visão de momento das autoridades e certo alheamento da realidade.
O alto valor do movimento migratório e da ocupação agrícola era colocado nestes termos: “A agricultura na Amazônia será uma das
fontes de sua riqueza no futuro, tanto mais próximo quanto forem as migrações naquela região. Condiciona-se, portanto, a questão agrícola, propriamente
dita e com significação econômica, à questão demográfica.” Mais a frente é notável um certo idealismo, mais que desejável, mas que, na
atualidade, ainda exige empenho: “O recrutamento de trabalhadores, tratando-se de qualquer região, na condições normais de vida, não pode ser
compulsório. O interesse é que desperta a vontade de emigrar. Por sobre isso, o desejo de melhor ambiente – clima mais favorável, facilidades de educação,
assistência social, em todas as suas formas.”
Tanto quanto os indígenas que não encontraram junto aos brancos senão problemas e desesperança, os nordestinos
que chegavam logo aprenderam que teriam que contar apenas com seu braço e seu instinto de sobrevivência. E ele foi vitorioso
contra todas as intempéries do destino. Afinal, como disse um estudioso das secas, o professor cearense Joaquim Alves: “As reserva
de raça, armazenadas no decurso de gerações, permitiu ao sertanejo uma capacidade de trabalho que hoje não é mais possível.” Estava coberto de
razão. Poucos seriam tão capazes de enfrentar os desafios de ocupar uma região tão inóspita quanto a Amazônia brasileira.
Problemas de ocupação
Se todas as promessas de apoio e assistência tivessem acontecido de fato, a região amazônica estaria em outro patamar
de desenvolvimento. Com toda a certeza não seria o paraíso idílico de muitos que se aventuraram por lá, ou o jardim organizado
e produtivo que alguns técnicos de gabinete chegaram a propor. Mas poderia, e pode, ser um gigante mais justo e próspero com
seus filhos. Por outro lado, há uma corrente já encanecida, que se baseia em pressuposições e conceitos trazidos de fora para
apregoar nossa incompetência para gerir aquele pedaço do Brasil. Em uma de suas obras, Samuel Murgel Branco, um estudioso
dos problemas amazônicos, cita frases proferidas por dois grandes cientistas que estiveram na Amazônia em meados do século
XIX. Louis Agassiz, um eminente ictiólogo, que veio ao Brasil como convidado de Dom Pedro II, afirmou: “... se anteviam os tempos
em que, sobre as margens do Amazonas, florescerá uma população mais ativa e vigorosa do que aquela que até agora tem aí tem vivido, em que todas as
nações do globo terão sua parte nessas riquezas.” Já Alfred Russel Wallace, que disputaria com Darwin o privilégio da autoria da Teoria
da Evolução, diria: “Dá até vontade de reunir meia dúzia de amigos, entusiasmados e diligentes, e vir para cá tirar desta terra tudo aquilo que ela nos
pode propiciar com fartura. Juntos, mostraríamos a gente do país como seria possível criar aqui um verdadeiro paraíso terrestre a curto prazo, abrindo-lhes
os olhos para uma realidade que eles até então jamais conceberam que fosse capaz de existir.” Na época, esse tipo de preconceito, bem formulado
por doutos e lapidares da ciência do Velho Mundo, parecia demonstrar nossa incapacidade frente a um desafio tão imenso como
aparentava ser a Amazônia. Existe ali um grande potencial, que foi durante muito tempo relegado ao plano das especulações e
aberto a iniciativa dos audazes. O problema era que algumas vezes essa audácia partia de estrangeiros.
No tempo das grandes navegações, quando o mundo parecia uma caixa de surpresas a ser descoberta, os soberanos eram
pródigos com os súditos que se arriscavam a atravessar os mares. Mesmo quando o Brasil já havia sido descoberto pelos portugueses, não foram poucos os navegadores que chegaram até o rio Amazonas e receberam a posse daquele desconhecido mar de
Páginas 44/45: O interior dessa casa ribeirinha expõe uma carência a que a maioria de nós está pouco acostumada, mas que não tem nada de excepcional na Amazônia.
No entanto, a falta do conforto corriqueiro é menos preocupante que a carência de assistência médico-social contra a qual lutam as tripulações dos NAsH. Página 46: A
caminho do trabalho. É lama, é barranco, é chuva e é sol. As profissionais da Marinha se superam nas missões a elas designadas. A Amazônia é forte, mas essas militares
não são nada frágeis quando o atendimento deve chegar a quem precisa, seja onde for.
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água doce. O espanhol Francisco Orellana recebeu a doação
do rei Carlos V. O mesmo se deu com os ingleses Thomas Roe
e Robert Harcourt, que receberam as terras descobertas por
ordem de Jaime I. Favor igual coube ao francês Daniel de La
Touche, que recebeu sua conquista das mãos da rainha Maria
de Médicis. Através dessas reais ordenações, o rio Amazonas
e as terras que ele banhava, eram batizados de acordo com o
idioma de seu descobridor. Não tardou para que holandeses e
franceses passassem a levantar fortes e feitorias pelas margens
do Amazonas, dando início a ocupação das terras e ao comércio com os indígenas. Em 1616, as coisas começaram a mudar
quando Francisco Caldeira Castelo Branco chegou à baía de
Guajará com três navios e 150 homens enviados pela Corte
portuguesa. Tratou logo de erguer o Forte do Presépio de Santa
Maria de Belém, semente do que se tornaria a atual capital paraense. Partindo desse ponto, saiu à caça dos invasores, tomou
posse da terra, e empenhou-se em conhecer aquela enormidade
que Portugal havia descoberto há pouco mais de um século,
mas que até então só lhe havia trazido despesas e atritos com
os concorrentes europeus. As lutas e as conquistas de Francisco
Caldeira Castelo Branco marcam o início da efetiva ocupação
da região amazônica pelos portugueses. Ao menos, até onde as
embarcações podiam chegar e a vista pudesse alcançar. Havia
muito mais Amazônia a ser desbravada, tomada e conhecida.
De certa forma essa empreitada continua até hoje, e teve muitos
heróis, conhecidos e anônimos. Os estrangeiros que haviam
partido retornariam com outro discurso, mas com o mesmo
interesse que a Amazônia sempre despertou.
Um Brasil apartado do futuro
A colônia deu lugar ao Império, e este a República.
Nós séculos em que transcorreram tantas mudanças, a Amazônia passou da cobiça à obscuridade, do paraíso ao inferno
verde, do estorvo ao ufanismo, e houve até quem propusesse
que deixando de ser brasileira passasse as mãos do mundo, a
tal internacionalização que gerou planos mirabolantes e pouco
dignos de consideração. No entanto, poucas idéias e propostas
colocavam em foco privilegiado o homem. Na Amazônia tudo
era grandioso, assustador, espantoso. Os números sempre foram
avantajados e os projetos pareciam pequenos para enfrentar
tamanho desafio. Muito partiam para enfrentar a grandeza da
região como se ela fosse um inimigo a ser batido. O homem
amazônico ficava a margem de tudo que se decidia sobre os destinos do mundo em que ele vivia, e tão bem conhecia. O índio,
já muito reduzido em sua população, continuava enraizado na
única terra que lhe pertencia de fato. O nordestino, trazido à
moda de guerreiro, embrenhara-se na selva depois que passou
a febre da borracha, formou família, espalhou descendentes
pelas margens dos rios.
Sentado no banco comprido do Posto de Saúde Raul
Alves, o rapaz conta o que consegue relembrar da história
recente da família: “Raul Alves era meu avô, sim, mas não conheci
de lembrar. Minha mãe ainda lembra que ele veio para cá, de Quixadá,
no Ceará. Disse que veio tirar madeira daqui e depois arranjou trabalho
numa fazenda. Quando pode chamou minha vó. Era minha mãe e mais
cinco. Uns meus tios voltaram depois para o Ceará, mas o resto ficou. Eu
já nasci ali em Barreirinha, do outro lado do rio, depois mudamos para cá
quando meu avô tinha levantado a primeira casa da vila. Agora aqui é só
Alves e Barros.” Esses últimos devem ter outra história, não muito
diferente da saga da maioria dos nordestinos que deixavam o
ressequido torrão natal.
Ao longo do tempo a ocupação da Amazônia sofreu
variações que foram do desprezível ao preocupante. Se na
virada do século XIX para o XX, viviam na região quase 700
mil habitantes, a corrida pelos seringais fez esse número dobrar, uma situação alarmante dada à precária situação a que
viviam entregues as condições de saúde, alimentação, moradia,
transporte e educação. Porém, nas duas décadas que seguem
entre 1920 e 1940, ou seja, entre os dois ciclos da borracha, o
crescimento demográfico pisa com firmeza no freio, e apenas se
verifica um acréscimo de pouco mais de 20 mil almas naquelas
paragens abandonadas.
Não há nenhuma novidade nestes números. O processo de fluxo e refluxo de gente procurando oportunidade
sempre foi uma constante na região, sempre vivendo a mercê
do grandioso, da fortuna, do El Dorado que nunca se encontrou.
Procurava-se continuamente uma solução na Amazônia, nunca
para a Amazônia. Tirava-se dali para o mundo. Exploradores
de todas as épocas levaram a madeira, as especiarias, amostras
de plantas, de insetos e de aves, conhecimento. A borracha
gerou um milagre econômico que, não planejado, acabou
em desastre humano. Não poucos empresários estrangeiros
apostaram suas fichas por ali. Henry Ford, numa de suas
poucas falhas de avaliação, perdeu uma fortuna ao investir
na produção de látex as margens do rio Tapajós. Saiu de lá
deixando para trás alguns milhões de pés de hévea, e uma
enorme dívida social que foi assumida pelo Governo Federal.
O também norte-americano Percival Farquhar, que já dominava boa parte do transporte fluvial e da operação dos portos
na região amazônica, empenhou-se na construção da Ferrovia
Madeira-Mamoré, que teve sua vida abreviada pela queda das
exportações da borracha brasileira. Como sempre, na esteira
de tudo, continua chegando gente.
Segundo contam, seu Romão é o habitante mais idoso
de Vila Augusto Montenegro. Na verdade não parecia, muito
menos pela lucidez que demonstrava ao lembrar do pai: “Ele foi
pra lá tirar borracha e deixou a gente em Baturité. Disse que tinha ganho
dinheiro mas depois largou de onde estava e veio para Belém trabalhar no
porto. A família chegou de vaporzão. Eu queria ir tirar borracha também
mas ele não deixou. Acabei trabalhando com ele carregando os regional.
Depois conheci em Santarém uma moça que era daqui. Acabei vindo. Só
voltei a Belém duas vezes. Meu pai já tinha morrido e lá só ficou uma
irmã que cuidava da mãe.” Seu Romão não demonstrava muito
incomodo ao fazer as contas com o tempo. O que é compreensível, pois se hoje em muitas localidades da Amazônia ainda
não é possível contar com certas facilidades de transporte e
comunicação, imagine-se a situação há trinta, quarenta ou
cinqüenta anos passados.
Oswaldo Cruz, nosso maior sanitarista, não precisou imaginar, pois esteve lá. Entre setembro de 1905 e
dezembro 1906, a bordo do República, um pequeno rebocador, Oswaldo Cruz empreendeu uma longa viagem de
inspeção aos portos brasileiros. Na primeira etapa, subindo
Página 49: Em 1985, quando a Marinha do Brasil lançou os Navios da Esperança, ela oficializava uma ação espontânea de suas tripulações que navegavam pela
Amazônia. O quadro de carência da população ribeirinha sempre emocionou o pessoal embarcado nas corvetas, como a que aparece nesta foto.
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nosso extenso litoral, foi de Cabo Frio a Manaus, com longas e demoradas escalas em vários portos. Já na segunda,
seguiu até Santos, adentrou a Bacia do Prata e seguiu pelo
rio Paraguai até Corumbá. Nos dois trechos, pode constatar a precariedade das condições de defesa sanitária em
todo a costa brasileira. A viagem, apesar de extremamente
desgastante, serviu para que Oswaldo Cruz compreendesse
a grandeza do problema sanitário que o país enfrentava.
O Brasil era um país de portas abertas para as doenças
exóticas, como se já não bastassem as endêmicas. Quando
de seu retorno, Oswaldo Cruz elaborou e encaminhou ao
Governo um plano em que privilegiava a reaparelhamento
dos portos, para que funcionassem como barreiras sanitárias, e um intenso trabalho de combate às doenças que se
alastravam pelo interior do norte e nordeste, chegando a
minúcias de indicar atenção à higiene infantil, à fiscalização
de gêneros alimentícios e às doenças venéreas. Recomendou
ainda a instalação de hospitais e a profilaxia rural contra
a febre amarela e a peste bubônica, que ladeavam com a
incontrolável malária no quadro de males que afligiam a
gente do interior. Em 1910, Oswaldo Cruz ainda retornou a
Amazônia. Esteve envolvido no atendimento aos debilitados
funcionários da ferrovia de Percival Farquhar e, na volta por
Belém, o governo local o convoca para enfrentar mais uma
vez a malária. Sempre ela. Na capital paraense, Oswaldo
Cruz instala uma verdadeira equipe de combate, que conta
com muitos colegas vindos do Rio de Janeiro, além de médicos locais. Alcança novo sucesso. As estatísticas mostram
que os casos de malária passam a decrescer, até que, em
maio de 1911, estão reduzidos à zero.
Naturalmente, não podemos nos esquecer daquele
plano proposto por Oswaldo Cruz. Bem, o sanitarista faleceu
pouco mais de dez anos após sua peregrinação sem que seu
plano tivesse qualquer resposta das autoridades.
Assim como aquele, muitos foram os planos para o
desenvolvimento da Amazônia. E vinham de longa data. Nos
tempos do Império algumas propostas viárias pretenderam
integrar as províncias do norte ao resto do território brasileiro,
mas pouco aconteceu de fato. As ferrovias que iriam rasgar a
selva encontravam adversários ferozes entre os índios, a terra, o
clima e as doenças. De resto a monarquia dava sua contribuição
ao mundo científico autorizando várias expedições, principalmente estrangeiras. No tempo da República, a necessidade de
consolidar a federação fez com que Rondon atravessasse boa
parte do Centro-Oeste instalando linhas telegráficas, e seguisse
para o Norte ainda pouco conhecido. No caminho travou contato com inúmeras tribos indígenas, sobre as quais lançou, pela
primeira vez, o manto protetor do estado brasileiro.
Em tempos mais recentes a região amazônica se
tornou, com graves prejuízos ao meio ambiente, uma das
maiores fornecedoras de madeiras nobres para consumo
interno e para exportação. Onde não há mais o que tirar
avança a fronteira agrícola num ritmo nunca antes imaginado. Desde os anos 50 do século XX a exploração de minérios
vem abrindo espaço no seio da floresta. O gigantismo da
região e as riquezas que se espera tirar do solo amazônico
alavancam investimentos vultosos. O interesse geral privile-
gia os projetos de grande porte em detrimento dos trabalhos
de intervenção pontual, como o extrativismo. O problema
é que tudo vem sendo feito num ritmo acelerado, sem que
se possa calcular com justeza a direção e a força das ações.
Tudo tem acontecido com excessiva rapidez no meio da
mata e longe dos olhares do resto do país. O questionamento
sobre as benesses e os males causados por tantas e tão rápidas
mudanças, pode ser respondido por técnicos. Todavia, se as
comunidades que vivem na Amazônia não puderem receber
os benefícios do tão desejado progresso, será preciso reavaliar o projeto para que essa gente se integre definitivamente
nele. Afinal, se sempre apregoamos que o progresso é bom,
melhor ainda quando é para todos.
A Flotilha do Amazonas
Se essa gente precisa de ajuda, alguém tinha que
chegar até eles. Os homens das nossas Forças Armadas sempre estiveram envolvidos na defesa das fronteiras brasileiras
e no atendimento aos brasileiros espalhados por aqueles fins
de mundo. Desde remotas épocas a Marinha do Brasil está
envolvida nesse processo. A façanha de Pedro Teixeira abrira
caminho para que a Amazônia fosse incorporada em definitivo
ao Brasil Colônia. Os rios da região sempre foram o caminho
certo e seguro para desbravar o território. As margens deles
eram construídos fortes, missões religiosas e estimulava-se o
povoamento. Em 1640, com o fim da União Ibérica, Portugal
recupera sua autonomia e as fronteiras com os domínios espanhóis são empurradas mais para oeste. No correr do século
XVIII, os novos acordos que viriam derrubar o desmoralizado
Tratado de Tordesilhas, assegurariam a Coroa portuguesa,
por Utis Possidetis, o domínio daquele infinito manto verde.
Num mundo de tantas águas era preciso ter meios de navegar. Vinham de Portugal as grandes naus que adentravam o
Amazonas, posto que aqui só se faziam reparos e construções
de menor porte. Em 1761, portanto quase meio século antes
da chegada de Dom João VI à sua mais importante colônia
ultramarina, foi estabelecido em Belém o Arsenal de Marinha
do Pará, unidade naval encarregada de construir embarcações
de guerra para a Marinha portuguesa.
Um século mais tarde, as obras dos mestres carpinteiros daquele Arsenal iriam guarnecer a Flotilha do Amazonas, criada em dois de julho de 1868, por ordem de Sua
Majestade Dom Pedro II. Nosso Imperador teve bons motivos para aplicar sua assinatura naquele Aviso Imperial. As
hostilidades entre Brasil e Paraguai começaram em novembro de 1864, quando as tropas de Solano Lopez invadiram
as terras mato-grossenses e foi apresado o navio brasileiro
Marquês de Olinda. A Marinha Imperial logo foi posta em
ação, conseguindo bloquear as águas do rio Paraguai, rota
de fundamental importância para o suprimento das forças
guaranis. De forma oportunista, a Bolívia, que pendia para
o lado paraguaio, passou a exigir a abertura de negociações
para o estabelecimento de fronteiras, uma questão antiga,
que só seria solucionada quase quarenta anos mais tarde
pelo Tratado de Petrópolis. O país andino, a exemplo de
outras repúblicas vizinhas, ainda pleiteava que seus navios
Páginas 50/51: Quando saíram da carreira do Arsenal de Marinha, os navios de assistência hospitalar apresentavam um padrão de pintura em branco com cruzes
vermelhas no costado. Posteriormente, adotaram o padrão cinza usado em toda a Marinha do Brasil. Página 52: Corredor verde. O Oswaldo Cruz navega por um estreito
igarapé durante uma comissão. Os milhares de milhas navegadas nestes 25 anos deram aos Navios da Esperança um conhecimento incomparável sobre os rios amazônicos.
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tivessem livre trânsito pelos rios amazônicos. Como se diz,
Dom Pedro II tomou suas decisões com um olho na missa
e outro no padre. Em dezembro de 1866, para não exaltar
ainda mais os ânimos, fez por bem franquear o rio Amazonas
e seus afluentes à navegação de navios mercantes de todas as
bandeiras. Ato contínuo mandou lançar de Manaus, capital
da recém-criada Província do Amazonas, uma flotilha de
doze lanchas a vapor tripuladas por 192 praças do Corpo de
Imperiais Marinheiros com a tarefa de patrulhar as extensas
fronteiras que o Brasil possuía com seus vizinhos.
Estendendo a mão
No entanto, o maior entre os méritos da Flotilha do
Amazonas, foi ter se tornado a base sobre a qual a Marinha
do Brasil implantou uma estratégica de ocupação e vigilância
de toda a Amazônia. A Guerra do Paraguai e a questão do
Acre que a sucedeu, evidenciaram ainda mais o interesse
que aquele pedaço desguarnecido gerava em todo o mundo.
A tal internacionalização da Amazônia, que parecia nunca
perder fôlego, mostrava suas garras ainda naquele início de
século XX, como mostram trechos de algumas notícias que
circulavam nos gabinetes. Em 1902, o Barão do Rio Branco,
em entrevista com o Ministro do Interior da Alemanha,
ouviu a seguinte declaração: “Seria conveniente que o Brasil
não privasse o mundo das riquezas naturais da Amazônia.” Por sua
vez, nosso embaixador nos Estados Unidos, Ministro Assis
Brasil, recebeu do Secretário de Estado norte-americano
John Hay uma diplomática recomendação: “Não vejo perigo,
Senhor Ministro, para a soberania das nações americanas, no fato
de companhias industriais se instalarem para o desenvolvimento das
terras que jazem incultas.” Era nesse espírito que a máquina
mundial operava.
Ao Brasil cabia se preparar para defender o que
era seu, dotando a Marinha do Brasil de meios operativos adaptados as funções fluviais. A Flotilha cresceu e se
modernizou. Desde os tempos das lanchas a vapor e da
Canhoneira Mista “Mearim”, veterana da Batalha Naval do
Riachuelo, a evolução técnica e a adaptação ao meio fluvial
vêm agregando maiores capacidades às embarcações. Hoje,
o nível de nacionalização dos Navios-Patrulha Fluvial e das
embarcações da Flotilha de Saúde é alto, proporcionando
uma desejável independência tecnológica. Da mesma forma,
a profissionalização de suas equipagens tem recebido grande
atenção, já que as exigências operativas não são pequenas.
A área de atuação básica da Flotilha compreende os rios da
bacia amazônica que se espalham pelos Estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima. Mas, em virtude das necessidades sempre crescentes, a Flotilha foi desdobrada, em
1974, quando foi criado o Grupamento Naval do Norte, com
sede em Belém (PA). Atualmente, o Comando da Flotilha
do Amazonas – ComFlotAm encontra-se subordinada ao
Comando do 9º Distrito Naval, sediado em Manaus (AM).
Criada inicialmente como uma força dissuasória,
policial e fiscalizadora, a Flotilha do Amazonas, à medida
que ganhava experiência em seu teatro de operações foi
agregando outras tarefas à sua missão. Dentre elas, uma
das mais recompensadoras tem sido a assistência hospitalar as populações ribeirinhas. Esse trabalho, empreendido
pelos homens e mulheres da Marinha, tem contribuindo
imensamente para a integração territorial e o desenvolvimento sócio-econômico de toda a região amazônica. Para
as comunidades atendidas é o resgate da saúde, da vida e da
esperança. Para a Marinha ele é mais que um dever, é uma
obra de gratidão por aquela gente que permaneceu e lutou
por um pedaço tão esquecido do Brasil.
Em tempos idos, aqueles que cruzavam as lonjuras
da Amazônia, contam que não poucos navios da Marinha
faziam atendimentos nas ribeiras, distribuíam comida e, vez
por outra, resgatando um doente. Antes da chegada dos NaPaFlu, na década de 70, eram as corvetas da Marinha que
faziam a vigilância daquela imensidão. Era uma dedicação
espontânea, sem compromisso com a missão original dos
militares. Algumas embarcações seguiam para dar apoio a
batalhões de fronteira do Exército Brasileiro, aqueles heróis
que mantém posição junto aos limites extremos do nosso
imenso território. Tendo a bordo um médico ou um dentista para atender nossos bravos soldados, não se furtavam a
socorrer da mesma forma os ribeirinhos necessitados.
Nas memórias que reuniu em livro, o então CapitãoTenente Aécio Pereira de Souza, que navegou pela Amazônia
entre 1949 e 1954, relembra: “...a Marinha embarcaria nos navios da
patrulha de fronteiras dois médicos e um dentista,e utilizaria todas as economias do rancho na compra de remédios mais usados no combate às doenças
tropicais, inclusive a lepra, e faria a partir da próxima viagem, a assistência
médica e medicamentosa às populações ribeirinhas. Este inestimável serviço
começado naquela época, continua sem alarde nem ajuda, até hoje.”
Como que registrado numa profecia otimista,
aquele inestimável serviço continua até hoje. Sem alarde,
mas com determinação, e muita ajuda. Um trabalho que
partiu daqueles que testemunharam, e jamais puderam se
conformar, com a situação de abandono em que vivam as
populações ribeirinhas da Amazônia. No começo dos anos
80, como porta-voz do trabalho voluntário e anônimo de
seus quadros, a Marinha assumiu o projeto de construir
embarcações dedicadas exclusivamente à assistência hospitalar. Subvencionada pelo Ministério da Saúde, partiu
decididamente do projeto para a execução, e logo desciam
das carreiras do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro os
Navios de Assistência Hospitalar Oswaldo Cruz e Carlos
Chagas. O trabalho, que agora completa 25 anos, está apenas
começando, pois a missão é muito maior que as limitações
do tempo. A Flotilha de Saúde é um marinheiro novato,
voluntarioso e cheio de ânimo para continuar estendendo
a mão a todos os necessitados que aguardam nas ribeiras da
Amazônia a chegada dos Navios da Esperança.
Oswaldo
Cruz
Página 55: O U-18 foi o primeiro navio da Marinha do Brasil batizado com o nome Oswaldo Cruz, uma justa homenagem ao reconhecido sanitarista, que tanto
lutou pela saúde do povo brasileiro. Há 25 anos, todos que chegam para servir neste navio parecem incorporar a causa do ilustre médico. Páginas 56/57: Itinerário
do dia a dia. O Doutor Montenegro segue pelos rios que tão bem conhece e onde é muito querido e esperado. Perto de completar 10 anos de vida, o U-16 vem dando uma
inestimável contribuição à saúde da região amazônica e honrando o nome do médico acreano Manoel Braga Montenegro. Páginas 58/59: Toda a dedicação e esforço
das tripulações e das equipes de saúde são plenamente recompensados por um sorriso agradecido e pelo bem-estar do povo ribeirinho. A cada comissão os bons resultados
do trabalho da Marinha ficam mais evidentes e confirmam que ela está na proa certa.
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Mapa da Comissões
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Cinco Vidas de Dedicação
Os Homens que dão Nome aos Navios
N
os primeiros anos do século XX, a febre amarela era um problema de calamidade pública no Brasil. Nem
o Rio de Janeiro, capital federal, escapava da sanha perversa da moléstia. A bem da verdade, aquela que
um dia seria chamada de cidade maravilhosa, tornara-se um foco conhecido e evitado pelos navios que
chegavam a costa brasileira. A simples menção da doença causava arrepios nos governantes da época.
Em 1902, quando o paulista Rodrigues Alves foi empossado na Presidência da República a situação era gravíssima,
ainda mais que as ofensivas contra a doença partiam de órgãos desarticulados, repartições de saúde desconectados, desprovidas de um plano geral. Um caos completo onde Rodrigues Alves não encontrava sequer uma perspectiva animadora.
Certo dia, durante um despacho rotineiro, o Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Dr. José Joaquim Seabra,
apresentou ao Presidente o nome de um certo médico para ocupar o cargo de Diretor de Saúde Pública. Rodrigues Alves
não deve ter aparentado muito entusiasmo, pois esperava ouvir o nome de algum expoente da medicina, um médico cheio
de galardões que pudesse enfrentar a aflitiva situação. Assim, desesperançado, questionou seu ministro:
- Doutor Seabra, quem é esse Oswaldo Cruz?
A resposta não diminuiu seus anseios.
- Senhor Presidente, também não o conheço. Um amigo em quem confio indicou-o como higienista consumado,
capaz de extinguir a febre amarela através de um novo processo americano.
No dia 23 de março de 1903, Oswaldo Gonçalves Cruz era nomeado como Diretor Geral de Saúde Pública, um
cargo que, nos dias de hoje, equivaleria ao de Ministro da Saúde. Nas conversas que havia mantido com o Presidente,
expusera seus planos de trabalho, demonstrando perfeita coesão de pensamento e ação. Seu preparo e competência eram
notáveis. Quando de sua indicação, prometera ao Presidente debelar a febre amarela no prazo de três anos, caso tivesse a
sua disposição os recursos necessários.
O filho do médico da roça
A casa onde nasceu Oswaldo Gonçalves Cruz ainda está de pé. Fica na cidade de São Luís do Paraitinga, no interior paulista. Hoje é um bem conservado centro cultural, localizado na parte alta da cidade. Porém, em 1872, quando
nasceu nosso maior sanitarista, era apenas o lar do Dr. Bento Gonçalves Cruz e de Dona Amália de Bulhões Cruz. O pai
de Oswaldo mudara-se há pouco. Vinha do Rio de Janeiro, onde nascera e se formara em medicina enfrentando muitas
dificuldades. Havia servido como aluno pensionista do Exército durante a Guerra do Paraguai e, mais tarde, foi nomeado
cirurgião da Armada Imperial. Com o fim das hostilidades, pode finalmente defender sua tese de doutorado e partiu para o
interior em busca de melhores oportunidades. Tornou-se um verdadeiro médico da roça, uma tradição que hoje se encontra
praticamente esquecida.
Quando o pequeno Oswaldo estava perto de completar cinco anos, a família volta ao Rio de Janeiro, onde o pai
vinha assumir o modesto cargo de médico na Fábrica de Tecidos Corcovado. Na capital, a carreira do Dr. Bento Cruz segue
então numa ascendente laboriosa, até que veio a falecer prematuramente, em 1892, no cargo de Diretor Geral de Saúde,
deixando esposa e um filho de 20 anos que, em breve, estará seguindo os passos do pai na carreira médica.
Oswaldo Cruz não foi, como se poderia supor, um aluno brilhante. Na faculdade de medicina era tido como um
tipo retraído, desses que passam despercebidos aos olhos de todos. Era, todavia, assíduo e dedicado aos estudos, aplicandose com vigor a leitura e aos exercícios práticos. O que lhe empatava a vida era o jeito introspectivo. Mostrava capacidade
com a pena e o papel, mas era um “Deus nos acuda” quando precisava enfrentar as provas orais. Mesmo assim, conseguiu
completar o curso de medicina em quatro anos e, em sua tese de doutoramento intitulada “Veiculação Microbiana pela
Água”, podia-se vislumbrar precocemente a veia do pesquisador.
Naquele período os acontecimentos se sucederam com grande rapidez na vida do jovem médico. Com a morte do
pai, e recém formado, Oswaldo Cruz assume o cargo deixado vago na fábrica de tecidos. O que se mostra muito conveniente,
pois, em 1893, casa-se com Emília Fonseca, que já no ano seguinte lhe dá a primeira filha. Premido pelas responsabilidades da
casa e da vida profissional, o rapaz encontra estímulo entre os aparelhos do pequeno laboratório que mantém em casa, e junto
Páginas 60/61: Pólos de saúde atendidos pela Marinha do Brasil. Página 62: O perfil do “castelinho”, onde funciona um dos maiores centros de pesquisa médica
do mundo, é conhecido por todos. Sua história começou humildemente, em 1900, sob a denominação de Instituto Soroterápico Federal e tendo Oswaldo Cruz, um talentoso
médico de apenas 28 anos, como seu primeiro diretor.
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aos amigos que o apóiam. Salles Guerra e Silva Araújo, que
logo ganhariam notoriedade na medicina carioca, estão entre
eles. Reconhecendo o talento do jovem Oswaldo Cruz, os dois
o convidam para assumir o laboratório de análises clínicas
que haviam instalado na Policlínica Geral do Rio de Janeiro.
Mas a roda do destino precisava seguir em frente, e
não haveria de permitir que aquele médico promissor passasse
o resto de seus dias entre amostras de sangue e urina. O responsável pela nova mudança de rumo chamava-se Francisco
de Castro, um amigo e colega de profissão, que o aconselhou
a continuar seus estudos no renomado Instituto Pasteur, em
Paris. Em 1896, a despeito das dificuldades, Oswaldo Cruz
tomou um transatlântico com a família, as bagagens, sua
insaciável vontade de aprender, e seguiu para a França.
Vai um promessa, volta uma certeza
Em 1899, retorna ao Brasil como um consumado
bacteriologista. Enquanto esteve fora, as condições sanitárias
das cidades brasileiras não haviam melhorado muito. Foi
então que a peste bubônica voltou a assombrar o mundo.
Em 1894, um novo surto apareceu nas cidades costeiras na
China. Dali, através do crescente movimento de navios que
cruzavam os oceanos, a peste chegou ao Porto de Santos.
Alarmado, o Governo de São Paulo envia a Santos os médicos Oswaldo Cruz, Adolpho Lutz e Vital Brazil. Após os
exames realizados fica confirmada a presença da doença
em terras brasileiras. Em total consenso, a solução proposta
pelos técnicos era de que se deveria dar início à produção do
soro e da vacina dentro do menor prazo possível. Uma tarefa
de fácil proposição, mas de difícil realização, posto que até
então aqueles medicamento eram importados.
Em fins desse mesmo ano, Oswaldo Cruz recebeu
com certo espanto um convite para assumir a direção técnica do recentemente criado Instituto Vacínico Municipal,
obra pleiteada pelo Barão de Pedro Afonso junto ao Prefeito
Cesário Alvim. O Barão via naquela empreitada uma solução para enfrentar a contaminação da cidade pela peste.
O instituto seria instalado numa propriedade cedida pelo
município, a Fazenda Manguinhos, a mesma que alcançaria
renome mundial rebatizada como Instituto Oswaldo Cruz.
Naqueles tempos o bacteriologista ainda vivia
no anonimato. Na falta de um técnico especializado para
comandar os trabalhos em Manguinhos, o Barão de Pedro
Afonso havia escrito ao Dr. Émile Roux, diretor do Instituto
Pasteur, pedindo-lhe uma indicação. O Barão aguardou
aquela resposta como se esperasse a vinda do próprio Messias. Entretanto, a resposta que chegou da França foi breve e
conclusiva:“Entre o pessoal técnico que tive a honra de dirigir, ninguém
possui mais competência que o Dr. Oswaldo Cruz, cuja capacidade
e idoneidade científica pessoalmente conheci durante o tempo em que
lidou em nosso instituto.” Ou seja, a solução estava em casa.
A atuação de Oswaldo Cruz foi decisiva. Apesar da exigüidade de recursos humanos e materiais, o primeiro ano do
século XX mal terminara com Manguinhos já produzindo
soro e vacina anti-bubônica. Dessa maneira, a capital federal estava resguardada da peste. Oswaldo Cruz conseguira
apagar temporariamente o pavio da bomba. Todavia, sua
fama continuava restrita às paredes dos laboratórios e repartições públicas de saúde, mas, em pouco tempo, a catástrofe
da febre amarela jogaria seu nome na mesa do Presidente
Rodrigues Alves.
Defendendo a vida entre o amor e o ódio
Quando aceitou o convite de Rodrigues Alves,
sabia que sofreria todo tipo de pressão. O cargo de Diretor
Geral de Saúde Pública, em geral, era ocupado por médicos
ligados a uma forte tradição, aferrados ao poder e a antigos
procedimentos médicos. Oswaldo Cruz representava a modernidade, e ela incomodava. Teve que enfrentar a astúcia
das elites letradas e a ignorância das massas populares.
Em 26 de março de 1903, assumia oficialmente
suas funções. Começava a correr o prazo de três anos em
que prometera ao Presidente eliminar a febre amarela. E
assim, atacou o problema atuando pelos modernos métodos
propostos por Finlay. Esse médico norte-americano havia
conseguido eliminar a moléstia em Cuba, atacando sem trégua o vetor da doença: o mosquito. Oswaldo Cruz confiava
na sua proposta, mas logo teve que enfrentar hostilidades. A
imprensa começou a veicular artigos virulentos antevendo o
fracasso do trabalho, denunciando a inutilidade dos esforços,
e os males a que a população seria exposta.
Oswaldo Cruz não esmoreceu. Lançou às ruas
pelotões de funcionários, os conhecidos “mata-mosquitos”,
que atacavam diariamente os focos do mosquito transmissor. Vistoriavam casa por casa, intimando os proprietários
a sanar as condições insalubres em que a maioria delas se
encontrava. Notificavam a presença de doentes e distribuíam
folhetos com os “Conselhos ao Povo”, onde a Diretoria de
Saúde Pública expunha todas as medidas que a população
deveria atender para controlar a doença.
Apesar de provocar contrariedades, mesmo entre
seus pares, e lutando com a má vontade da população que
se sentia ultrajada, a campanha começou a apresentar resultados. Enquanto no primeiro semestre de 1903, haviam sido
registrados 469 óbitos, no mesmo período do ano posterior
eles despencaram para apenas 39 casos. Uma vitória, sem
dúvida, mas não o fim da guerra. Oswaldo Cruz haveria
de considerar o Rio de Janeiro livre da doença apenas em
1906. Já então, estaria se envolvendo em outra luta, mais
insidiosa e acirrada.
A Revolta da Vacina
A varíola é um mal milenar. Foi devastadora enquanto existiu e estima-se em muitos milhões o número de
vítimas. A humanidade só encontrou paz a partir de 1796,
quando Edward Jenner, um médico inglês, descobriu uma
vacina para o mal. Passado mais de um século desde a descoberta de Jenner, a varíola ainda fazia pouco das autoridades de saúde brasileiras. Em março de 1904 instala-se uma
epidemia. Entretanto, Oswaldo Cruz está determinado a
eliminar mais este inimigo, e conta com o aval do Presidente Rodrigues Alves. O sanitarista sabe que a única solução
possível é a vacinação em massa da população.
Página 65: A vida de Oswaldo Cruz foi curta, mas cheia de missões às quais ele nunca negou seu empenho. Lutou contra a peste bubônica, a febre amarela, a malária,
a tuberculose e, principalmente, contra a incompreensão de seus contemporâneos. Faleceu prematuramente, em 1917, e vitorioso em quase todas as lutas.
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A Comissão de Saúde Pública do Senado chega
a propor a vacinação obrigatória em todo o território nacional, mas, o projeto é engavetado em nome da liberdade
individual. Ocorre, que desde as campanhas contra a febre
amarela, a opinião pública se mostrava descontente com
os métodos oficiais. Aproveitando-se disso, muitos políticos
incomodados aproveitavam o momento para inflamar o povo
e boa parte da imprensa ajudava na missão incendiária. Entre boletins e jornais que circulavam na época, era comum
encontrar textos desse teor: “...charlatães sem clínica pretendem
fazer a Pátria retrogradar para além do regime colonial, para além do
tempo das feitorias, transformando o povo em um viveiro de cobaias”.
Tais barbaridades sem qualquer fundamento não
desviaram Oswaldo Cruz de seu intento. A pressão foi aumentando, a ponto de ameaçar até mesmo a permanência
de Rodrigues Alves no cargo. Entrementes, em meio a toda
essa celeuma, a varíola continuava a fazer vítimas. Só na
epidemia de 1904, contava-se 130 falecimentos por semana
na Capital Federal.
Os comícios eram corriqueiros, as classes operárias
se mobilizavam. Nem os quartéis e as escolas militares tinham
sossego. Afinal, a proposta da lei de vacinação obrigatória
seguiu para o plenário da Câmara dos Deputados. A sessão foi
tensa e longa, mas, após muita discussão, a lei foi aprovada em
31 de outubro. Porém, sem uma regulamentação específica.
Por inépcia, ou pela torpeza de algum parlamentar, o texto
vazou para a imprensa. Foi a faísca que faltava para atear fogo
aquela fogueira de interesses escusos e brados da ignorância.
A desordem irrompeu pela capital da república.
Nas ruas o povo demonstrava seu descontentamento
provocando destruição. O motivo, obviamente, não era apenas a lei da vacina. Havia o desemprego, havia a carestia,
e as reformas urbanas capitaneadas pelo Prefeito Pereira
Passos, que incomodavam a muitos. Tudo isso se avolumando
pelo pouco esclarecimento que o governo passou a opinião
pública. As cenas de vandalismo aconteciam por toda a cidade. Bondes eram arrancados dos trilhos e depredados, lojas
eram saqueadas, ruas foram bloqueadas. Alunos da Escola
Militar, cerca de duzentos, marcharam sobre o Palácio do
Catete, mas foram contidos por forças do Exército leais a
Rodrigues Alves. O Presidente, refém de uma situação que
parecia incontrolável, acabou decretando o estado de sítio.
Na manhã seguinte a situação começou a serenar, mas
só no dia 17 de novembro a revolta foi completamente dominada.
Após todo esse episódio lamentável, Oswaldo Cruz
permaneceu firme em sua crença no poder da vacina, e
indiferente à opinião daqueles que chegaram a recomendar
sua exoneração. No entanto, a resposta que Rodrigues Alves
deu a esta proposta insensata, cairia como um bálsamo nos
ouvidos do sanitarista. Assim disse o Presidente: “Oswaldo
não é funcionário a quem se exonere; ademais, a vacina obrigatória é
apenas um pretexto”.
Muito a fazer em pouco tempo
Em 1907, Oswaldo Cruz sofre a primeira crise
de insuficiência renal, que daí a dez anos ceifaria sua
vida. Neste mesmo ano, uma grande esquadra dos Estados Unidos, a caminho do Cabo Horn, fundeia na Baía
de Guanabara. O embaixador norte-americano consulta
Oswaldo Cruz acerca do perigo que representava a febre
amarela. O lamentável caso da fragata Lombardia ainda
o inquietava. Em resposta, Cruz lhe garantiu que a febre
amarela estava erradicada no Rio de Janeiro. E foi o que
se viu. Entre os 18 mil tripulantes que desceram em terra,
não houve um só caso da doença.
A varíola, essa sim retornou, em 1908. A lei continuava carente de regulamentação e Oswaldo Cruz insistia
na tese da obrigatoriedade. Por aquele tempo, a imprensa
havia amenizado o tom, e já estimulava a vacinação. O povo,
vendo que só os não vacinados morriam, passa a aderir
espontaneamente. Assim, a moléstia faz menos estragos.
Ainda neste ano, Afonso Pena, que havia sucedido
a Rodrigues Alves na Presidência, rebatiza o Instituto de
Manguinhos, que passa a se chamar Instituto Oswaldo Cruz.
Tocado por essa gentileza, e já desgastado pelo acúmulo de
funções, o sanitarista demiti-se do cargo de Diretor Geral
de Saúde Pública e passa a se dedicar com exclusividade à
casa que agora leva seu nome.
Isso, no entanto, não faz com que o ritmo de trabalho se reduza. Pelo contrário. Os resultados conquistados
nas campanhas que Oswaldo Cruz capitaneou, espalham seu
nome pelo país e pelo mundo. Em 1910, parte para a Região
Amazônica. Segue para Porto Velho a pedido da empresa
que constrói a famosa Estrada de Ferro Madeira-Mamóre.
Instala-se no Hospital da Candelária, onde são tratados os
funcionários da ferrovia, gente vinda de todas as partes do
mundo e que ali tombavam. Muitos para sempre. A malária era a grande vilã que devastava as frentes de trabalho,
atacando quase 90% dos trabalhadores.
Impressionado, mas não estagnado, Oswaldo Cruz
partiu para o trabalho e dentro de algum tempo conseguiu
minorar as condições epidêmicas. Conhecia de cor a equação
simples que solucionava as altas taxas de malária: quinina e
mosquiteiro. Como bem sabia, remédio existia, o que custava
era implantar as medidas profiláticas.
Toda essa dedicação teve um alto preço, que nem
as inúmeras homenagens que lhe foram prestadas, seriam
capazes de justificar. Minado pela insuficiência renal, a saúde
de Oswaldo Cruz piorava seguidamente. A falta de descanso
e as seguidas viagens a que ele não se furtava, concorriam
para piorar o quadro. A família e os amigos, preocupados
com seu estado, manobraram para que ele se afastasse de
Manguinhos.
Em meados de 1916, Oswaldo Cruz assume a
Prefeitura de Petrópolis, a cidade serrana em que D. Pedro
II veraneava. A contragosto, afastou-se do Instituto a que
dedicara a maior parte da vida. Mas não consegue se afastar do trabalho. Propõe uma série de reformas urbanísticas
que jamais realizaria. Meses depois é obrigado a pedir seu
afastamento do cargo, pois seu quadro clínico piora sensivelmente. A doença o imobilizava e o cega. Durante o carnaval
de 1917, enquanto o povo brincava pelas ruas da Cidade
Imperial, Oswaldo Cruz falecia aos 44 anos. Entre as valiosas
Página 66: Um pequeno grande problema de saúde. Os pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz travam uma luta sem tréguas contra os mosquitos transmissores de algumas
doenças muito conhecidas. Muitas batalhas foram vencidas, mas doenças como a malária ainda causam danos à saúde humana, principalmente entre a população da região amazônica.
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heranças deixadas por obra de sua mente privilegiada, está
uma frase que se eternizou:
“O saber contra a ignorância, a saúde contra a doença,
a vida contra a morte... mil reflexos da batalha permanente em que
estamos envolvidos...”
Que outros se envolvam nesta batalha pela vida com
a mesma dedicação com que ele o fez.
Carlos Chagas e a descoberta de uma vida
São Gonçalo das Tabocas é hoje um nome esquecido. Até o início do século XX nomeava uma localidade
do interior de Minas Gerais, que foi rebatizada, em 1908,
como Lassance. Foi uma homenagem ao Dr. Ernesto Antonio
Lassance Cunha, engenheiro que comandava, na região,
os trabalhos de instalação dos trilhos da Estrada de Ferro
Central do Brasil. O governo republicano, presidido à época
por Afonso Pena, pretendia integrar o país por ferrovias,
lançando trilhos que ligariam o Rio de Janeiro, então capital federal, a Belém. Todavia, a empreitada precisou ser
paralisada nas proximidades de Lassance por conta de um
pequeno, mas poderoso empecilho: o mosquito transmissor
da malária. O mal atacava em toda a região do rio das Velhas, local onde se concentravam os trabalhos da ferrovia.
Vendo sua força de trabalho ser derrubada pela
doença, a Central do Brasil buscou socorro junto a Oswaldo Cruz. O eminente sanitarista conhecia muito bem as
qualidades de um jovem médico chamado Carlos Chagas,
a quem havia orientado em sua tese de doutoramento, e
reconhecia nele a capacidade para debelar o surto que se
instalara em Lassance.
Carlos Chagas parte para a região, aonde chega em
junho de 1907, e logo acomoda seu laboratório num vagão
inoperante e passa a atender os doentes. Pretende adotar
os mesmos procedimentos que o fizeram ter êxito numa recente campanha contra a malária, para assim, combatendo
sem tréguas o mosquito transmissor, ser possível controlar
a epidemia em poucos meses.
No entanto, sua permanência em Lassance o levaria
a uma descoberta que marcaria para sempre sua vida e a
história da medicina brasileira e mundial.
Aos olhos de um pesquisador devotado como Carlos
Chagas, o acaso representa sempre mais que um simples
incidente cotidiano. Foi assim, que entre os atendimentos
realizados em Lassance, Carlos Chagas identificou muitos
casos de uma doença cujos sintomas nada tinham a ver
com a malária. As alterações patológicas eram visíveis. Os
doentes apresentavam um quadro de insuficiência cardíaca,
por vezes grave e, em alguns casos, levando a morte súbita.
O que causava ainda mais estranheza era o fato de que o
mal atingia em grande número os moradores da localidade
e nenhum dos operários da estrada de ferro.
Quase ao mesmo tempo, um engenheiro da ferrovia
chamou a atenção do médico para um inseto que infestava
as casas da região. O “barbeiro” é um inseto hematófago de
hábitos noturnos. Permanece escondido durante o dia nas
frestas das paredes das casas rústicas, construídas no antigo
sistema de pau-a-pique. A noite sai para se alimentar de
sangue humano, picando suas vítimas no rosto, hábito pelo
qual recebeu a merecida denominação popular.
Não eram poucas as doenças em que os insetos
desempenhavam o papel de agente transmissor. Seguindo
essa linha de raciocínio, Chagas preparou uma lâmina com
o conteúdo do tubo digestivo de um “barbeiro” e a levou ao
microscópio. Logo identificou a presença de um tripanossomo ainda desconhecido da ciência, e julgou que o parasita
pudesse ser a causa da desconhecida doença. A necessidade
de comprovar essa possibilidade fez com despachasse para
o Instituto de Manguinhos alguns exemplares do inseto,
pedindo a Oswaldo Cruz que tentasse infectar com o tripanossomo alguns macacos do laboratório. Assim foi feito,
e um dos animais realmente adoeceu. A resposta positiva
encheu Carlos Chagas de expectativas. Ele tomou o trem e
retornou ao Rio de Janeiro para ver com os próprios olhos o
animal adoentado. O exame realizado no sangue do macaco
comprovou a presença do tripanossomo, que seria batizado
por Carlos Chagas como Trypanosoma cruzi, em homenagem
a seu grande mestre.
Em pouco tempo lograra descobrir o parasita e o
agente transmissor. Sabia, ademais, que o mal era capaz de
infectar mamíferos. Agora, restava ao pesquisador comprovar a presença do tripanosomo em seres humanos para que a
ciência médica tomasse conhecimento de uma nova doença.
De volta à pequena Lassance, e a seus doentes,
Carlos Chagas viu a resposta ansiosamente aguardada caminhar até ele numa manhã de fevereiro de 1909. A menina
Berenice chegou até o consultório apresentando os sintomas
já conhecidos da doença que tanto intrigava o médico. Após
comprovar a febre alta e os inchaços que tomavam a face e
o corpo da pequena paciente, Chagas resolveu coletar uma
amostra de sangue para exame. Momentos após, ao tirar
os olhos do microscópio, tinha a comprovação, de forma
definitiva, da presença do Trypanosoma cruzi num ser humano.
O grande filho da pequena Oliveira
Carlos Justiniano Ribeiro Chagas nasceu a nove de
julho de 1879, no município de Oliveira, em Minas Gerais.
Muito cedo o pequeno Carlos Chagas perdeu seu pai, ficando
aos cuidados de sua mãe, Mariana Cândida, uma mulher
rigorosa e de forte personalidade. A família Chagas era muito
conceituada na região, sobretudo pela importância que dava
a cultura e a instrução. Assim, aos oito anos, seguindo o caminho já trilhado por alguns de seus tios e primos, o menino
deixou sua terra natal e foi enviado para Itu, no interior
paulista, onde foi matriculado num internato dirigido por
jesuítas. Em 1888, quando da assinatura da Lei Áurea, que
deu fim a escravidão no Brasil, passaram a circular boatos
dando conta de que fazendas estavam sendo atacadas por
escravos. Carlos Chagas, então com dez anos, preocupado
que estava com sua família que deixara em Oliveira, fugiu
do internato e voltou para casa. A atitude intempestiva lhe
custou a expulsão do Colégio São Luís.
Parecia que a carreira escolar do filho de Dona
Mariana Cândida começava de uma maneira nada auspiciosa, mas o destino se encarregaria de direcionar o talento
Página 69: Ainda jovem Carlos Chagas alcançou a glória ao descobrir a moléstia que eternizaria seu nome. A cura para a doença de Chagas ainda é alvo de pesquisas,
mas a descoberta do médico mineiro permitiu que a profilaxia salvasse inúmeras vidas.
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do jovem Carlos Chagas. Seguindo para São João del Rey,
onde deveria completar os estudos no Colégio São Francisco,
o menino ficou sob os cuidados de um religioso que teria
marcante influência no direcionamento de sua vocação. O
Padre Sacramento ministrava aulas de uma matéria que, no
final do século XIX, ainda era denominada pelo abrangente
título de Ciências Naturais. Englobava um pouco tudo que
tivesse relação com a natureza que nos envolve. Aprendiase um pouco de zoologia, de botânica, de biologia geral,
de química. Ademais, Padre Sacramento tinha um método
peculiar de passar seus ensinamentos. Ao invés de manter os
garotos presos a sala de aula, preferia levá-los para o campo,
onde teriam um contato direto com o tema a ser estudado.
Anos mais tarde, o adolescente voltou para casa
cheio de sonhos, e com a firme determinação de se tornar
médico. Na época, a medicina não era apenas uma carreira
de prestígio, mas também aquela que tinha relação mais
estreita com as ciências naturais, foco de interesse do estudante. No entanto, ao chegar a casa, aquela determinação
que parecia inabalável, esmoreceu frente à autoridade de
Dona Mariana Cândida. Ela queria que o filho seguisse a
carreira de engenheiro, pois não via futuro nesse trabalho
de tratar gente doente. Obediente, o filho cedeu à escolha
materna e se inscreveu para as provas de admissão ao curso
de engenharia. Como era de esperar, o fracasso foi completo.
De volta a casa da fazenda, em Oliveira, o abalado Carlos
Chagas recebeu a ajuda de um tio médico e do avô, que
encheram os ouvidos da matriarca para que atendesse o
desejo sincero do filho. Pelo bem da medicina brasileira, e
de tantos que seriam beneficiados pelo trabalho que Carlos
Chagas chegaria a desenvolver, a história deve reconhecer
que a compreensão daquela mãe tão austera, permitiu o
desabrochar de um imenso talento.
Enfim, médico
Em 1897, Carlos Chagas chegou Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro para iniciar sua carreira de médico.
Naquela época, dois professores foram determinantes na
formação do futuro sanitarista. Um deles, Miguel Couto,
foi um dos maiores clínicos de seu tempo. Era um grande
conhecedor da língua portuguesa, e defensor ferrenho da
educação. O outro, Francisco Fajardo, foi um dos pioneiros
da microbiologia em nosso país, e renomado especialista em
malária, que, reconhecendo a dedicação e o conhecimento
de Carlos Chagas, tomou-o como discípulo. Com o apoio
de tais baluartes, a carreira daquele promissor estudante
parecia caminhar seguramente para o sucesso. E assim o foi.
Mesmo porque, quase ao término do curso, Fajardo orientou
seu discípulo para que tomasse como orientador de sua tese
de doutoramento nada menos que Oswaldo Cruz. Naquela
época, o sanitarista já era diretor do Instituto de Manguinhos e ficou verdadeiramente impressionado com o perfil
daquele doutorando, a quem recomendou que se dedicasse
ao estudo da malária. Chagas assim o fez e, em 1902, com
apenas 23 anos, defendeu sua tese. Não demorou muito
para que Oswaldo Cruz o convidasse para integrar o seu
quadro de pesquisadores. Para seu espanto Chagas declinou
o convite, alegando que desejava se dedicar a clínica médica.
Aquela época, mesmo sendo um jovem e sonhador médico,
precisava ter coragem, ou ser um alienado, para recusar tal
proposta. Mas a sorte o perseguiria.
Então, enquanto Chagas passava por dificuldades
como clínico do Hospital de Jurujuba e num modesto consultório particular, irrompe um violento surto de malária
em Itatinga, no litoral paulista. Os trabalhos numa obra
portuária da Companhia Doca de Santos foram paralisados
porque os operários estavam completamente incapacitados
pela doença. Procurado pela empresa, Oswaldo Cruz indica Carlos Chagas para debelar o surto, pois tinha plena
confiança na capacidade do jovem médico. Como se sabe,
Chagas foi extremamente bem sucedido nesse caso, e de
retorno ao Rio de Janeiro, recebe novo convite de Oswaldo
Cruz. Convite que desta feita foi prontamente aceito.
Em 1907, Oswaldo Cruz o designa para novamente
enfrentar a malária. Porém, desta vez seu destino é outro.
Segue para o interior da sua Minas Gerais, para a pequena
Lassance, a esquecida São Gonçalo das Tabocas, que faria
o nome de Carlos Chagas entrar para a história.
Pela saúde do Brasil
A descoberta de uma nova doença repercutiu pelo
país e mundo afora. Chagas foi agraciado com prêmios e
as homenagens se sucediam. Em 1921, chegou a ser indicado ao Prêmio Nobel de Medicina e, neste mesmo ano,
tornou-se o primeiro brasileiro a receber o título de Doutor
Honoris Causa da Universidade de Harvard. Por outro lado,
manobrava uma vertente que procurava empanar o brilho
da descoberta. Chagas e o próprio Instituto de Manguinhos
eram acusados da divulgação de uma doença inventada. A
polêmica, criada por um grupo de médicos de pouca expressão, tinha um claro viés político, uma disputa de poder
dentro da Academia Nacional de Medicina, para a qual
Carlos Chagas tinha sido eleito em caráter extraordinário.
Em 1912, o governo federal, em função da crise
que atingia o setor de extração da borracha e, desejando
elaborar um plano de exploração dos recursos naturais da
Região Amazônica, firma um acordo com o agora denominado Instituto Oswaldo Cruz, que deveria organizar várias
expedições científicas pelos sertões do Brasil. Na primeira
delas, entre outubro de 1912 e março de 1913, Chagas percorre o rio Solimões, o rio Purus e o rio Negro fazendo um
completo levantamento das condições de vida da população,
e observando clinicamente as diversas doenças que afligiam
aquela gente. Os resultados dessa expedição foram apresentados na Conferência Nacional da Borracha, onde Chagas
expôs as condições de abandono social em que viviam os
povos ribeirinhos, e alerta o governo para a necessidade
urgente de implantar medidas sanitárias.
Em 1917, ao retornar de uma viagem a Argentina,
Carlos Chagas recebe a notícia de que Oswaldo Cruz, há
muito adoentado, tinha falecido. Em poucos dias assume
a direção em Manguinhos onde dá seqüência as diretrizes
traçadas por seu grande mestre e amigo. A gestão de Carlos
Chagas, durante os 17 anos que esteve a frente do Instituto
Página 71: O “barbeiro” ou “chupança” é o vetor que transmite a doença de Chagas ao ser humano. Felizmente a melhoria das condições sanitárias e habitacionais
vem permitindo que muitas localidades fiquem livres da moléstia.
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Oswaldo Cruz foi marcada por importantes reestruturações
internas e a ampliação da gama de atribuições. À frente
daquela casa, Chagas se tornaria uma figura extremamente
requisitada em todo o país quando o assunto era saúde.
Isso logo seria comprovado em 1918. Nos últimos
meses desse ano, a gripe espanhola, que vinha assolando o
mundo e, que em sua trajetória deixaria um saldo de milhões de vítimas, chegou ao Brasil pelo porto de Recife. Em
poucas semanas a epidemia atinge as principais cidades do
país, inclusive a cidade do Rio de Janeiro. Chagas assume
a organização dos postos de atendimento onde, apenas na
capital, são registrados mais 600 mil casos da doença, e o
número de óbitos chegou a 11 mil. Esse número impressionante, que não se ampliou em função do trabalho dirigido
por Chagas, revelava de forma cabal a desatenção das esferas governamentais em relação às necessidades básicas de
saneamento e higiene públicas.
O estrago causado pela gripe espanhola abriu os
olhos de Epitácio Pessoa, que assumiu a Presidência da
República, em 1919. Reconhecendo o excelente trabalho de
Carlos Chagas durante a crise, Pessoa o convida para ficar
a frente da recém-criada Diretoria Geral de Saúde Pública,
responsável pela reorganização dos serviços de saúde pública
em todo o país. No ano seguinte, seria criado o Departamento Nacional de Saúde Pública, órgão que ampliava o poder
de intervenção e regulação do governo federal no setor de
saúde pública. À frente daquele Departamento, Chagas pode
levar em frente uma ampla reforma dos serviços de saúde.
Entre as paredes do Instituto Oswaldo Cruz, ao
qual dedicou todo seu talento e fez honra ao nome de seu
fundador, Carlos Chagas teve a oportunidade de acompanhar grandes transformações. Muitas delas foram obra de
seu empenho pessoal, como também da visão de futuro
que tinha para a casa que o acolheu, e pela qual alcançou
fama internacional através da descoberta da doença que
leva seu nome.
Carlos Chagas faleceu subitamente, em oito de
novembro de 1934, deixando estabelecidas as bases que
transformariam o Instituto Oswaldo Cruz num dos maiores
centros de pesquisa, ensino e produção de medicamentos
de todo o mundo. A glória que cruzou seu caminho, em
1909, na pequena Lassance, jamais destemperou seu caráter.
Todavia, por mais incrível que possa parecer, a polêmica
que envolveu seu nome e sua descoberta continuou mesmo
após a sua morte. De um lado os detratores, os invejosos,
os inexpressivos, ávidos por obscurecer o brilho de Chagas.
De outro, seus amigos, colegas, e os próprios filhos, médicos
como o pai, que se empenharam na defesa do pesquisador.
No entanto, a polêmica agiu positivamente, atraindo o interesse de pesquisadores de todo o mundo pelo estudo do Mal
de Chagas. Dessa forma, pelo bem da ciência, a história se
encarregou de mostrar onde estava a verdade. Ela estava, e
sempre esteve, com Carlos Chagas.
Garotada experiente
A incorporação de novas unidades a Flotilha de
Saúde vem reforçar a equipe de trabalho em favor dos nos-
sos irmãos das ribeiras. Em 2000, chega um novo NAsH, o
“Doutor Montenegro”, cujo nome de batismo presta uma
justa homenagem ao médico acreano Manoel Braga Montenegro. Em 1956, ele se diplomou pela primeira turma
da Faculdade de Ciências Médicas de Belo Horizonte, em
Minas Gerais. Orientado por um professor, Montenegro se
dedicou aos estudos da hanseníase, que naqueles tempos
fazia muitas vítimas e atendia pelo temido nome de lepra.
Prestes a completar 30 anos, volta à terra natal e assume
o posto de médico “pau pra toda obra” no hospital de
Cruzeiro do Sul, as margens do Juruá. É o início de uma
longa folha corrida de ajuda aos necessitados. Ele mesmo
relembra aqueles tempos:“Mesmo sendo filho de Cruzeiro do
Sul não conhecia a realidade da região. Exercer a medicina naquela
época era muito mais do que medicar ou identificar doenças. Tínhamos
que chegar às pessoas, convencê-las da importância do tratamento e
de que não seriam prejudicadas. Também não tínhamos as condições
necessárias, faltava muita coisa, mas tinha muita disposição e desejo
de ajudar o próximo”
A disposição de Montenegro o fez sobrepujar inúmeras dificuldades. Passando por cima da falta de recursos
ele atendia seus pacientes onde suas pernas e uma canoa o
pudesse levar. Contava apenas com seu conhecimento e com
a experiência que ia ganhando pelas ribeiras do Juruá. A
necessidade era tão extrema que durante muito tempo uma
cozinheira teve que fazer o papel de auxiliar nas cirurgias.
Todavia, nada era mais gratificante que a luta contra a hanseníase. Montenegro era movido por uma vontade
imbatível de ajudar aqueles doentes que se isolavam do
contato humano. Não raro os encontrava enterrados em
buracos, e tinha que travar uma batalha para convencê-los
a aceitar o tratamento. Em geral a vitória o bafejava.
Em julho de 2008 o Doutor Montenegro deixou os
consultórios daquele mesmo hospital de Cruzeiro do Sul e
foi descansar. Tinha exercido o sagrado ofício da medicina
por mais de 50 anos e suas palavras parecem soar como um
incentivo aos tripulantes de toda a Flotilha de Saúde: “sempre
procurei trabalhar com amor, mesmo em meio às dificuldades.”
O caçula da turma é um senhor que viveu nada menos que 113 anos. A escolha do nome do Navio de Assitência
Hospitalar “Tenente Maximiano” homenageia um valente
voluntário que se engajou na Marinha, em 1913, aos vinte
anos de idade. Maximiano José dos Santos, pernambucano
de Bom Conselho, permaneceu nos quadros da Marinha
por mais de 35 anos. Nesse tempo, participou da Primeira
Guerra Mundial a bordo Encouraçado São Paulo, como
também nos navios South Carolina e Nebraska da Marinha
norte-americana. Durante a Segunda Guerra Mundial, já
baseado em Ladário (MS), serviu no lendário Monitor Parnaíba, uma das quinze embarcações em que esteve como
tripulante. Durante sua longa vida recebeu várias medalhas,
condecorações, elogios e títulos de cidadão honorário. Merecedor de todos eles, sempre foi grato aquela que foi sua
Pátria sobre as águas, e com um sorriso largo reconhecia:
“Tudo que sei e tudo que sou, devo à Marinha. A Marinha de Guerra
do Brasil foi minha segunda mãe. Deixei-a, olhando para trás. E se
ainda hoje a Marinha me chamasse, voltaria com muito orgulho e
recomeçaria tudo outra vez”.
Página 73: Tudo é beleza nessa imagem, o visual e a missão. As paisagens encontradas na região amazônica são um cenário ideal para captar cenas como essa. Inspiradora como o destino do Doutor Montenegro: levar saúde e salvar vidas.
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A Flotilha
Os Navios que Singram os Rios da Amazônia
A
Guerra do Paraguai, que abalou a América do Sul desde fins de 1864 até março de 1870, testemunharia a coragem
e o destemor de dois grandes comandantes militares. Um deles, Joaquim Marques Lisboa, o Almirante Tamandaré,
a Marinha do Brasil elegeria como seu Patrono. O outro, o Brigadeiro Antônio de Sampaio, foi escolhido como
Patrono da Infantaria do Exército Brasileiro. Durante a Batalha de Tuiuti, considerada como a mais violenta daquela guerra, Sampaio comandava a 3ª Divisão do Exército Imperial, conhecida como “A Encouraçada”, quando foi ferido por três vezes. Apesar da
gravidade de seu estado, ele só deixou o campo de luta quando percebeu a retração das tropas paraguaias, que caminhavam para
a derrota. Recolhido a um hospital argentino, resistiu aos ferimentos por um mês. Findo esse prazo, como seu estado se agravasse,
solicitou que o transferissem para um hospital brasileiro localizado em Buenos Aires. No dia seis de julho de 1866, nas proximidades
da capital argentina, Sampaio veio a falecer. Todo o furor dos acontecimentos e o brilho daquele herói, às vezes empurram para o
esquecimento certos detalhes. Está registrado nos livros, mas poucos hão de se lembrar que foi a bordo de um navio-hospital que
Sampaio entrou definitivamente para a história. Eponina era o nome daquela embarcação. Decorridos exatos seis meses, ela foi
destruída por um incêndio devastador e afundou com muitos enfermos e feridos a bordo. De certa forma ela também entrava para
a história. Talvez, sem o brilho de um Sampaio, mas com a mesma dignidade daquele guerreiro.
Podemos ver que não é de hoje, nem exclusividade do Brasil, a manutenção de navios-hospitais. Essas embarcações participaram de inúmeros conflitos e foram responsáveis pelo socorro a legiões de combatentes em todo o mundo. Atualmente, incorporam
quase todas as Marinhas do mundo. Da mesma forma, ações de atendimento à saúde também vem sendo realizadas há bastante
tempo. Em nosso território, esse trabalho já acontece durante as Ações-Cívico Sociais, as ACISO, em que regularmente a Marinha do Brasil envolve seus meios operativos, com especial destaque na Região Amazônica através de seus Navios-Patrulha Fluvial
(NaPaFlu). São operações, geralmente em caráter temporário, que atendem às carências mais prementes das comunidades. Muitas
vezes, essas operações visam socorrer vítimas de calamidades naturais, como as cheias que regularmente assolam as áreas ribeirinhas
do Norte e Nordeste brasileiro, quando as embarcações da Marinha transformam-se em verdadeiros pólos de atendimento médico,
vacinação, resgate, distribuição de víveres e medicamentos. Em períodos menos críticos, as ACISO cumprem um valoroso papel de
disseminadoras da cidadania e de comprometimento com a vida humana. Trabalhando em atendimento a diversas Prefeituras, leva
a efeito campanhas de vacinação, de doação de alimentos, de prevenção de doenças e procura interferir positivamente nas áreas
onde são detectados altos índices de mortalidade maternal e infantil. Atuando pelo lado sócio-educacional, promove palestras sobre
saúde, prevenção de acidentes na navegação e, em parceria com órgãos governamentais, realiza campanhas para expedição de títulos
de eleitor, carteira de identidade e de trabalho, além do registro civil de muito brasileiros como nós, que legalmente permaneciam
à margem de nossa sociedade.
Sem dúvida, um trabalho soberbo, indispensável e meritório sob todos os aspectos. Mas a Marinha do Brasil sabia que era
necessário fazer mais, e que tinha capacidade para tanto.
Um projeto de saúde para a Amazônia
Um rápido levantamento sobre as condições de saúde no Brasil mostra que é obra de gigantes o empreendimento a ser feito
para minorar o sofrimento de muitos brasileiros. Mormente em regiões desprovidas das condições mais elementares para a manutenção da vida, da saúde e da cidadania, esse quadro se apresenta ainda mais grave. Tudo isso não é uma novidade para nós, nem é
um problema restrito às fronteiras do Brasil. É sim um problema a ser enfrentado por brasileiros em benefício de todos, pois não há
grandeza que se estabeleça sobre a doença, a carência e a miséria. Essa situação formou-se ao longo da história, e uma longa luta vem
sendo travada apresentando muitas vítimas e fracassos, mas também com brilhantes vitórias conquistadas por heróis inspiradores.
Quando a Marinha do Brasil percebeu a necessidade de incrementar suas ações em prol das comunidades da Região Amazônica, tratou de buscar dentro de casa um projeto que atendesse a seus anseios. Foi encontrá-lo junto ao Arsenal de Marinha, que
desenvolveu e executou um dos mais bem-sucedidos projetos de embarcação, que se tornou um modelo de adaptação ao meio fluvial
e de atendimento as missões de assistência hospitalar. O nome de Oswaldo Cruz, o eminente sanitarista que tantas vitórias alcançou
sobre a doença, foi escolhido para inaugurar uma nova classe de navios que surgia na Marinha do Brasil.
A idéia era dispor de um navio que atendesse a especificações bem definidas. Teria que apresentar uma grande autonomia
para poder transitar pelas grandes extensões da Amazônia, alcançando assim as comunidades mais distantes. Quando se fala nestes
Página 74: A equipe do convoo forma durante uma passagem do Tucano 89, enquanto o sol doura as águas do rio Trombetas, no Pará. Sempre há grande movimentação
a bordo durante as operações aéreas, já que o apoio da aeronave é de fundamental importância, mas envolve riscos que precisam ser acompanhados de perto.
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termos não é simples retórica, pois as distâncias naquela região
configuram um desafio para quem se dispõe a percorrer mais
de 20 mil quilômetros de águas fluviais, em condições adversas
de temperatura e umidade. Precisaria ser compacto e altamente
manobrável para enfrentar o traçado nem sempre confiável dos
rios, bem como ter pouco calado, para uma melhor estabilidade,
e fundo chato para escapar dos baixios. Essas características
também permitem que o navio abarranque nas ribeiras quando
não é possível contar com outros meios de atracação, algo muito
comum nas comunidades visitadas. Deveria também ser provido
de um convoo que permitisse as operações de uma aeronave
orgânica, papel atualmente desempenhado pelos Esquilos do 3°
Esquadrão de Helicópteros de Emprego Geral (HU-3), Esquadrão Tucano, também sediado em Manaus, e fundamental nas
missões de deslocamento das equipes de AssHop. Por fim, deveria
ser dotado de uma ampla, completa e eficiente área hospitalar,
que tivesse capacidade de atender à maioria dos problemas de
saúde que são encontrados entre as comunidades ribeirinhas.
Assim, o projeto original apresentava dois ambulatórios, dois
gabinetes odontológicos, um laboratório, uma farmácia, uma
sala de raios X, duas enfermarias e uma sala de cirurgia.
O ano de 1980 se iniciava, quando o então Presidente
da República João Baptista de Oliveira Figueiredo, em despacho
datado em dois de janeiro, autorizava o projeto e a construção
pelo Arsenal de Marinha de dois navios de assistência hospitalar.
A aprovação da Presidência atendia a uma exposição de motivos
enviada pelos titulares as pastas da Marinha, dos Transportes, da
Saúde, da Previdência Social e do Ministro-Chefe da Secretaria
de Planejamento. Por este ato, era dada a largada para que a
Marinha passasse a dispor de meios para o cumprimento da
tarefa humanitária a que se propunha. O Oswaldo Cruz foi o
primeiro a entrar na carreira, um projeto único, que comprovava
a capacidade da engenharia e da indústria naval brasileira, responsáveis pelo elevado índice de nacionalização da empreitada.
Em nove de julho de 1982 ocorreu o batimento de sua quilha
e, passado pouco mais de um ano, ele já era lançado ao mar.
Realizou as prova de mar finais em maio de 1984, quando seus
motores mostraram que estavam prontos para encarar as duras
exigências de qualquer mar e de qualquer rio. Na seqüência,
passou pela Mostra de Armamento quando foi incorporada
à Armada e entregue a seu primeiro Comandante, o então
Capitão-de-Corveta Odolfo Hermano de Carvalho Franco, que
finalmente o conduziria a seu verdadeiro ambiente de trabalho.
No final de 1984, o U18 Oswaldo Cruz seguiu para Manaus,
onde se incorporou a Flotilha do Amazonas (FlotAm), e não demorou muito para que realizasse a primeira de muitas comissões
de assistência hospitalar. Desde então ele nunca mais parou, e os
ribeirinhos esperam que continue assim por longos anos.
Em atendimento ao seu projeto, o Navio de Assistência
Hospitalar Oswaldo Cruz apresenta as seguintes características:
deslocamento padrão de 360 toneladas, que se eleva a 450 toneladas quando carregado. Dimensões básicas: 47,18 metros de
comprimento, 8,45 metros de boca e, 1,75 metros de calado máximo. A propulsão é fornecida por dois motores principais Scania
DSI 14 74M 41-5, com potência de 552 HP, que funcionam num
giro de 1.800 RPM, e dotam a embarcação desde julho de 1999.
Como motores auxiliares encontram-se dois motores Scania DSI
11M-01, apresentando uma potência nominal de 270 HP, que
foram instalados por ocasião da construção do navio. Em regime de emergência, opera um gerador movido a diesel, modelo
MWM D221-6, com potência de 180 HP. A capacidade de 70
mil litros de óleo permite que a embarcação desenvolva uma
boa velocidade, principalmente quando aproveita a correntada.
Mas, independente do fluxo do rio, em velocidade de cruzeiro o
raio de ação se estende a cerca de três mil milhas. Os conveses
são em número de cinco, abrindo espaço para oito camarotes
de oficiais e outros quinze para os praças, capazes de acomodar
confortavelmente toda a tripulação e mais os oficiais destacados,
que sempre vem a bordo durante as comissões. Vale lembrar, que
todas as dependências do navio são interligadas por via telefônica e rede digital. A Praça d’Armas, que apesar de modesta é
bem dimensionada para atender a oficialidade, permite que se
disponha de conforto e algumas facilidades de lazer.
Na parte operacional, o navio dispõe de duas lanchas
para transporte de pessoal, imprescindíveis nos deslocamentos
pela ribeira, nas operações de resgate e nas manobras de abarrancagem. Como já citado anteriormente, o NAsH recebe o
apoio de uma aeronave orgânica, o Helibras Eurocopter HB 350
Esquilo (UH-12). Este helicóptero é equipado com uma turbina
Turbomeca Arriel 1B de 680 HP, e seu peso total de decolagem é
da ordem de 2.100 kg, incluindo dois pilotos e até três passageiros.
Com um raio de ação de até 150 milhas náuticas, ou mais de
três horas de autonomia, ele se torna extremamente eficiente na
introdução das equipes de atendimento e na retirada de vítimas,
na qual é configurado para receber uma maca.
Logo abaixo do convoo encontra-se a área hospitalar,
um verdadeiro oásis de saúde flutuante. Em suas dependências
é possível atender um grande número de pacientes nos consultórios médicos e nos gabinetes odontológicos, que contam com
modernos equipamentos e toda a estrutura, a mesma usada em
procedimentos básicos de enfermagem. Em casos mais graves o
navio dispõe também de uma bem aparelhada sala de cirurgia
que, não raro, já foi palco de inúmeros partos. Na farmácia
encontramos uma completa relação de medicamentos, disponibilizados pela própria Marinha e pelo Ministério da Saúde, que
atendem a uma ampla gama de enfermidades, que são objeto de
estatística apuradas que se renovam a cada comissão. Anexo a ela
está o laboratório, capaz de realizar as diversas análises clínicas
solicitadas pela equipe médica. Visto que, a grande maioria das
doenças que atacam as populações ribeirinhas está relacionada
à má qualidade da água, ou o seu tratamento ineficaz, à falta
de saneamento, e ainda, a transmissão por vetores endêmicos,
os serviços dos laboratórios são vitais para o diagnóstico e tratamento dos pacientes.
As operações de AssHop adotam padrões que tem sido
aperfeiçoados ao longo desses 25 anos de atividades ininterruptas.
A prática e a observação tem sido as melhores diretrizes para
o trabalho dos NAsH, pois são tantas as variáveis encontradas
que é preciso formatar padrões que direcionem as operações.
Tudo isso sendo registrado e debatido para ser incorporado a
Página 77: No caso de falha nas comunicações internas o telégrafo da máquina ainda é usado para comandar o seguimento da embarcação. Apesar dos NAsH
Oswaldo Cruz e Carlos Chagas estarem completando seu jubileu de prata os equipamentos de bordo têm sido constantemente modernizados e atualizados. Páginas
78/79: Um UH-12 Esquilo do Esquadrão Tucano se aproxima para pouso enquanto o U-19 segue pelo rio Amazonas. O piloto segue a orientação do OLP, que
estende seu braço esquerdo instruindo para que a aeronave se desloque a boreste e alinhe com a embarcação. Operação como essa é corriqueira, mas exige grande
adestramento dos pilotos e das tripulações para que o helicóptero toque o convoo em total segurança.
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futuras comissões. O modo de atendimento varia conforme a
localização e as possibilidades de acesso à comunidade. Se for
possível abarrancar na ribeira ou atracar num pequeno porto,
o atendimento se torna mais ágil e produtivo, visto que os pacientes podem ser recebidos a bordo pelas entradas laterais do
costado e da popa. Caso contrário é preciso estabelecer uma
base em terra e uma equipe de médicos, dentistas e enfermeiros
é transportada até o local por lancha, juntamente com seus
equipamentos e medicamentos. Para instalar um posto de
atendimento provisório bastam poucas salas de escola ou de
um centro comunitário. Na falta desses, qualquer área aberta
ou a própria beira de um rio podem servir. Vulgarmente se
podem encontrar os profissionais de saúde atendendo embaixo
de árvores ou sob barracas de campanha, tão eficientes como se
estivessem nas dependências de um hospital. Como diz o ditado:
a necessidade é a mãe da criatividade. Em casos extremos, mas
bem comuns em se tratando da Amazônia, as comunidades que
não possuem acesso por terra ou por rio, exigem que as equipes
de AssHop cheguem a bordo da aeronave orgânica embarcada
no NAsH. Para tanto, basta que o local disponha de uma área
aberta, como um pequeno campo de futebol, área mais que
suficiente para os habilidosos pilotos da Marinha. Na verdade,
o que importa é que a ajuda chegue aos mais necessitados. No
cumprimento dessa missão, qualquer sacrifício é pequeno para
não deixar uma comunidade sem atendimento.
Em boa companhia
Como vimos, o Oswaldo Cruz, havia sido concebido
num projeto que lhe daria em breve um irmão de igual estirpe.
Em dezembro de 1984, esse seu par foi também incorporado
a Armada brasileira e, em seu batismo a sorte também o havia
premiado. Chamava-se Carlos Chagas, nome de outro ilustre médico sanitarista, herdeiro espiritual e sucessor da obra humanista
de Oswaldo Cruz. Em 23 de janeiro de 1985, o U19 deixou as
águas do Rio de Janeiro e seguiu para Manaus, onde, em março
daquele ano, foi igualmente incorporado a Flotilha do Amazonas.
O “Peixe-boi da Amazônia”, como é carinhosamente conhecido, não difere em nada do Oswaldo Cruz Sua configuração é a
mesma, e o destinos dos dois estão ligados pela mesma missão:
levar saúde aos povos ribeirinhos. Apenas ela os faz deixar a
Estação Naval do Rio Negro e partir para infinitas distâncias.
No ano de 2000, a Flotilha de Saúde ganhava um reforço inesperado, mas muito bem-vindo. Em 19 de maio daquele
ano era incorporado à Marinha o Navio de Assistência Hospitalar
Doutor Montenegro (U-16). Essa embarcação, que homenageia
um ilustre médico acreano, o Dr. Manoel Braga Montenegro,
foi construída num estaleiro da capital amazonense e durante
alguns anos operou sob a coordenação do Governo do Estado
do Acre. No entanto, um pequeno e incontornável detalhe inviabilizou sua utilização continuada em benefício das populações
ribeirinhas daquele Estado. O período de vazante dos principais
rios que banham o território do Acre acabou impossibilitando o
deslocamento da embarcação. Durante vários meses do ano o
Doutor Montenegro ficava retido no porto a espera de melhores
condições para navegar. Não demorou muito para que o Governo
do Estado percebesse que o melhor caminho para dar fim aquela
subutilização seria firmar um convênio com a Marinha do Brasil,
que possuía nesta época uma boa experiência na operação de
navios-hospitalares. Celebrado o acordo, a embarcação seguiu
para reparos e obras de adaptação que o colocariam em condições de ser incorporado, como de fato aconteceu, em 19 de maio
de 2000. Desde então, está sediado na FlotAm, em Manaus, a
disposição da Flotilha de Saúde.
Quando se observa o Doutor Montenegro próximo
aos outros NAsH da Flotilha de Saúde, a primeira coisa que
salta aos olhos é seu perfil diferenciado. Enquanto o Oswaldo
Cruz e o Carlos Chagas assemelham uma embarcação como
o NaPaFlu da Classe Roraima, no qual se baseou o projeto
daqueles navios-hospital, as linhas do Doutor Montenegro
lembram as linhas de um catamarã, ou de um barco de turismo.
No entanto, sua configuração o diferencia em muito dessas embarcações. Hoje, ele está muito bem adaptado as exigências que
encontra durante as AssHop e, excetuando a ausência de um
convôo que o impede de receber aeronaves, sua produtividade
durante as comissões não deixa nada a desejar.
O Doutor Montenegro apresenta um comprimento
total de 42 metros, e uma boca moldada de 11 metros. Seu
calado máximo, razão de seus infortúnios no passado, alcança
os dois metros e quarenta centímetros. A embarcação desloca
400 toneladas com a força de dois motores diesel Cummins
NT 8554-300HP. Como motores auxiliares estão instalados
dois motores diesel geradores Cummins Stemaq de 135 KVA
cada. Mantendo uma velocidade média de cinco nós, o navio
apresenta um raio de ação de 3.200 milhas náuticas, mais que
suficiente para atender a totalidade de suas missões.
O passadiço do “Doutor Montenegro” é dos mais
bem equipados da Flotilha. Ali estão instalados dois radares
de navegação Furuno, modelos 1942 MK 2 e 1505 MK 3, um
GPS modelo GP80 e dois ecobatímetros LS 6000, também do
mesmo fabricante, e uma agulha giroscópica Sperry MK-25.
Navegar com segurança não é problema a bordo. E, muito
menos fornecimento de água potável, já que o navio conta com
uma estação de tratamento de água capaz de suprir todas as
necessidades da tripulação.
Sobre a coberta, existem três berços alojando lanchas
rápidas e dotadas de potentes motores de popa, que fazem o
transporte de pessoal durante as operações. Mas a razão de ser
do “Doutor Montenegro” ocupa uma grande área da embarcação, alguns conveses abaixo. As instalações hospitalares contam
com uma enfermaria que abriga quatro leitos para adultos e
dois infantis, um centro cirúrgico, sala de parto, unidade de
terapia intensiva, sala de raios-X, laboratório de análises clínicas, farmácia, dois gabinetes odontológicos, um consultório
clínico, um consultório pediátrico, e ainda outro dedicado ao
atendimento ginecológico e obstétrico.
Dá para imaginar a enorme quantidade de gente que
passa por aquelas instalações. Em média, são 27 mil atendimentos a cada ano, fazendo com que o Doutor Montenegro já
tenha ultrapassado a impressionante marca de 100 mil milhas
navegadas. Grande parte desses atendimentos são realizados em
favor da população carente do Acre, “estado natal” do NAsH,
que para lá se desloca anualmente durante a comissão ao Pólo
Juruá “C”-Acre. Para comandar toda essa obra assistencial, são
Páginas 80/81: Na cadeira de comando senta quem tem competência e sensibilidade. Comandar um NAsH é honra disputada por muitos e merecida por aqueles que
demonstram alto nível de profissionalização e tato para lidar com questões sociais e humanas por vezes críticas. Página 82: Apesar de ainda estar dando seus primeiros
passos o Tenente Maximiano vai ganhando reconhecimento junto às comunidades ribeirinhas do Pantanal. Em breve o currículo da embarcação estará carregado de histórias
comoventes e vitoriosas. Um incentivo maior para que a missão continue sem esmorecer.
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embarcados 50 tripulantes, estando incluídos nesse número
médicos, dentistas, farmacêuticos e enfermeiros. Uma turma
determinada, que a cada comissão incorpora com maior convicção o espírito do bom “Tracajá do Juruá”, aquele que segue
sem pressa, mas com a certeza de quem vai cumprir sua missão.
Um novo reforço, e a mesma produtividade
Recentemente, no dia 17 de março deste ano de
2009, em cerimônia ocorrida na Base Naval de Ladário (MS),
foi incorporado à Marinha do Brasil o Navio de Assistência
Hospitalar Tenente Maximiano, que vem se juntar à Flotilha
do Mato Grosso, sediada no 6º Distrito Naval. Naquela Base,
ombreando com embarcações carregadas de história, como o
Navio Monitor Parnaíba, que permanece em serviço ativo há
mais de 70 anos, o Tenente Maximiano chega para dar uma substancial colaboração aos programas de assistência à população
ribeirinha da fronteira oeste do país. Em tempo, o 6º DN decidiu
ampliar a sua participação junto às comunidades já atendidas
pelas Ações Cívico-Sociais, as ACISO. Para tanto, no início de
2008, adquiriu uma embarcação de recreio, que foi inteiramente
reformada, modernizada e preparada para as atividades de
assistência médica, odontológica e sanitária. As comunidades
que vivem às margens da bacia do rio Paraguai dispõem agora
de um verdadeiro hospital flutuante, equipado com consultórios
médicos e odontológicos, centro cirúrgico, laboratório, farmácia,
enfermaria e sala de Raios-X.
A chegada do Tenente Maximiano vem corroborar
a sábia decisão tomada pela Marinha do Brasil há mais de 25
anos. Logo que percebidas as necessidades prementes da uma
parcela importante do povo brasileiro, a Marinha não tardou a
dar resposta com a construção e lançamento de seus navios de
assistência hospitalar. Lentamente, essa iniciativa vem se replicando, pois que o exemplo é positivo e seus resultados o comprovam.
Alguns números espelham essa realidade e estimulam todos os
envolvidos na luta pela vida.
A atuação dos NAsH em rios da Amazônia e, agora
também, na fronteira oeste, tem sido tão intensa, que os números
crescem de maneira vertiginosa. O novato Tenente Maximiano
está apenas começando sua carreira, que se espera seja tão
longa quanto a do homenageado, o 2° Tenente da Marinha
Maximiano José dos Santos, que faleceu aos 113 anos, deixando
como herança e exemplo a ser seguido uma folha de serviços das
mais elogiáveis. Mas, apenas como mostra de sua capacidade,
na viagem inaugural, ocorrida entre 10 de junho e 12 de julho
deste ano, foram realizados a bordo e nas ribeiras, mais de dois
mil atendimentos e distribuídos 23 mil medicamentos para o
tratamento de diversas doenças que atingem as populações que
vivem às margens dos rios Paraguai e Cuiabá. Imagine-se quando
ele atingir a respeitável idade de um Oswaldo Cruz ou Carlos
Chagas. O “Tenente” promete vida longa e profícua.
Próximo de completar sua primeira década de bons
serviços, o Doutor Montenegro há muito deixou de ser uma
promessa para se tornar uma feliz realidade, que os dados finalizados do ano de 2008 o comprovam. Ao término daqueles
doze meses, o navio tinha levado saúde a 222 comunidades, nas
quais ocorreram mais de 71 mil atendimentos, entre consultas
médicas, odontológicas, vacinações, cirurgias e evacuações aeromédicas, entre outros procedimentos. Parece muito, mas não
chega nem perto dos impressionantes recordes registrados em
anos anteriores. Somando mais de 1.500 dias de mar, mas ainda
um “menino” em águas amazônicas, o Doutor Montenegro vai
conquistando sua maioridade operacional.
Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, dois veteranos da região
amazônica, seguem enviando números sempre auspiciosos para
a sede da Flotilha de Saúde, no 9° Distrito Naval, em Manaus.
Nesses 25 anos de atividades que se completam em 2009, esses
dois navios já percorreram inúmeras vezes os mais de 16 mil
quilômetros de rios que banham os 12 Pólos de Saúde espalhados
pela vastidão da Amazônia brasileira. Os dois já realizaram mais
de 600 comissões, levando saúde a localidades que, muitas vezes,
nem aparecem nos mapas. Na década que medeia entre 1998 e
2008, o “Candiru” e o “Peixe-Boi” foram responsáveis pela maior
parte dos 1.408.210 atendimentos realizados naquelas paragens
que, como se diz vulgarmente foram “esquecidas pela sorte”. À
vista destes números, se vê que jamais foram esquecidas pelos
navios de assistência hospitalar da Marinha do Brasil.
Apoiando operações militares
Assim como o valente “Eponina” que ilustrou o começo
deste capítulo, os Navios de Assistência Hospitalar baseados na
Flotilha do Amazonas, subordinada ao 9º Distrito Naval, fazem
parte de um contingente que participa como força de apoio nas
operações que a Marinha do Brasil realiza rotineiramente. Ainda
que as operações de cunho humanitário dêem mais visibilidade
ao trabalho dos NAsH, nunca se deve esquecer o lado militar que
desempenham numa região tão estratégica como a Amazônia,
que apresenta acesso fluvial a vários países vizinhos fronteiriços,
determinando uma constante vigilância e prontidão. Assim, no
cumprimento de sua missão de salvaguardar o território nacional
a Marinha dotou o 9º Distrito Naval com meios operativos eficientes e adaptados as condições fluviais. Nos anos 70, chegaram
à Estação Naval do Rio Negro os Navios-Patrulha Fluvial (Classe
Pedro Teixeira) P-20 Pedro Teixeira e P-21 Raposo Tavares e,
logo a seguir, os NaPaFlu (Classe Roraima), P-30 Roraima, P-31
Rondônia e P-32 Amapá, embarcações totalmente projetadas
e construídas no Brasil. Entre suas funções estão as missões de
patrulha fluvial, fiscalização de portos, controlar as atividades de
segurança da navegação fluvial, socorro e salvamento nas vias
interiores, que marcam a presença dos poderes constituídos nos
mais longínquos pontos do nosso território.
Terra que de tão vasta e tão rica, exige o melhor de
seus guardiões. Nesse sentido, a Marinha, visando o preparo
e o adestramento das Unidades Navais, Aeronavais e Anfíbias,
realiza diversos exercícios em rios amazônicos envolvendo seus
meios operativos, fundamentais para manter a prontidão operativa de material e de pessoal. Nessas ocasiões, a Força Tarefa
que é formada conta com o apoio dos NAsH, que ficam posicionados na retaguarda da área das ações em curso, servindo como
verdadeiros hospitais de campanha. Um trabalho que dignifica
ainda mais a história de um “Eponina”
Página 85: O sistema interno de som do navio anuncia: “Carlos Chagas, o navio vai abarrancar”. O mestre, calejado tripulante, comanda sua equipe nas manobras
junto à margem do Paraná do Ramos (AM). Essa turma que trabalha no convés é boa de braço, de laço e de nó, e depende dela a segurança do navio quando atracado,
fundeado ou abarrancado. Páginas 86/87: O inconfundível perfil do Doutor Montenegro cruza as águas do rio Amazonas. Na proa, as equipes manobram os cabos,
prontas para mais uma parada do navio. Em cada escala mais números vão se juntando às estatísticas crescentes do U-16. Do total de atendimentos, 64% acontecem em
benefício da população do Acre. É o “Tracajá do Juruá” levando saúde ao seu povo.
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Poucos Fazendo Muito
As Tripulações dos Navios da Esperança
O
navegador inglês Ernest Shackleton entrou para a história como um dos maiores exploradores de todos os
tempos. Era considerado um homem voluntarioso, experiente e ousado. Em agosto de 1914, poucos dias após
o início da Primeira Guerra Mundial, ele partiu da Inglaterra no comando do navio Endurance, um navio
polar que levava a bordo uma tripulação de 27 homens, dezenas de cães polares e uma gata. A missão era das mais espetaculares,
já que Shackleton pretendia cruzar todo o continente antártico passando pelo Pólo Sul, numa caminhada de mais de três mil
quilômetros. Ele, como todo o povo inglês, esperava ver sobrepujada a glória alcançada pelo norueguês Roald Amundsen que,
em 14 de dezembro de 1911, fincou no Pólo Sul a bandeira de seu país, vencendo uma disputa com o inglês Robert Scott. Mas
Shackleton jamais alcançaria seu objetivo. O Endurance acabou aprisionado pela calota polar, vindo a naufragar após resistir
durante meses à monstruosa pressão do gelo. Entregues a uma situação desesperadora, a tripulação enfrentou aquela que é considerada uma das maiores aventuras da chamada Era Heróica da Exploração Antártica. Shackleton e seus homens conseguiram
retornar a Inglaterra em maio de 1917, sendo recebidos como heróis, apesar do insucesso. Nem uma vida foi perdida e o crédito
dessa façanha deve-se em grande parte ao espírito de liderança e ao carisma do comandante Ernest Shackleton. Ele era capaz de
tirar o máximo de sua tripulação apesar de ter um modo muito peculiar de escolher seus comandados. Fazia questão de entrevistar
pessoalmente os candidatos a enfrentar as duras condições a bordo do Endurance. Não se detinha nas qualificações profissionais
de alguns de seus homens, parecendo dar mais valor ao que captava na conversa cara-a-cara. Exceto pelos problemas causados
por poucos tripulantes, o tino de Shackleton foi de uma correção impressionante.
Ainda que as aventuras vividas pela tripulação do Endurance despertem uma viva admiração, devemos considerar que
os padrões de escolha pessoal usados por Shackleton não configuram uma regra a ser seguida, mesmo na época em que ele viveu.
A marinha inglesa da primeira década do século XX, a muito tinha abandonado a prática de arrastar “voluntários” para dentro
de suas embarcações, sempre esvaziadas por deserções e motins. A formação de seus quadros já era então muito mais profissional.
Desse modo, a despeito dos acertos de Shackleton, podemos considerar seus parâmetros de avaliação como uma excentricidade.
Em nossos dias, a formação dos quadros da Marinha do Brasil, atende a rigorosos padrões de seleção e capacitação
pessoal. Foi um processo longo, onde o Poder Naval foi sintonizando suas necessidades de mão-de-obra qualificada com um forte
investimento em seus centros de formação e aplicação de tecnologia. O resultado vem se comprovando no alto grau de profissionalismo alcançado em todas as atividades em que as unidades da Marinha do Brasil se envolvem.
A bordo de seus meios flutuantes essa realidade se mostra ainda mais verdadeira. Durante séculos de desenvolvimento
e observação, as forças navais de todo o mundo entenderam que a operação a bordo das embarcações envolve riscos e níveis de
desgaste que precisam ser monitorados, estudados, controlados e minimizados. Todos aqueles que precisam enfrentar longos
períodos de mar, sob condições adversas, expostos a riscos e confinados em espaços limitados, precisam atender a estritas especificações e receber preparação adequada. Em suma, o homem do mar precisa ter um perfil determinado e ser trabalhado para
que saiba explorar suas melhores qualidades em benefício de todos.
Isso não difere quando se passa da água salgada para a água doce. O Brasil dispõe de um sistema fluvial privilegiado
e a maior bacia hidrográfica do mundo está na Amazônia. As travessias pelos rios da região amazônica podem durar semanas
ou meses. É comum que os navios de assistência hospitalar, os NAsH, se desloquem por dias sem tocar em terra, e não custa
lembrar, que eles atravessam longos trechos desabitados e desprovidos de recursos que são facilmente encontrados junto aos
grandes centros urbanos. O navio precisa dispor de uma razoável auto-suficiência para enfrentar sua missão. Por isso mesmo, seu
deslocamento é chamado “escoteiro”, o que significa dizer que ele dispõe de uma grande autonomia operacional. Afastados dos
centros decisórios superiores, os Comandantes dos NAsH são soberanos ao enfrentar qualquer situação. Não poucas desafiam o
sentido humanitário e sensibilizam os oficiais mais experimentados. Há que ter sensibilidade, tato e pulso para comandar dentro
das condições críticas que a região exige.
Por tradição, a bordo de um navio, apenas duas pessoas recebem o tratamento de Senhor. Uma, naturalmente, é o
Comandante. O comando dos NAsH é, em geral, exercido por um capitão-de-corveta, que permanece no cargo por um ano.
Nesse período, ele ganha uma experiência única em toda a Marinha brasileira, ao participar de várias comissões que o levam à
Páginas 88/89: Uma visão saudável. É com esperança que os ribeirinhos recebem a chegada dos NAsH da Marinha do Brasil. Pelo menos duas vezes por ano as
comunidades recebem a visita das equipes de saúde, permitindo que, efetivamente, se observe a melhoria do quadro geral das populações assistidas. Página 90: Macacão
cinza, boné da Marinha, estetoscópio no pescoço, receituário na mão e olhar atento. Esses são os traços gerais da turma que encara o trabalho nas ribeiras. Gente jovem e
cheia de disposição para ajudar quem mais precisa. Gente com conhecimento e competência que causa admiração aos mais experientes.
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regiões pouco conhecidas pela maioria de nós brasileiros. Ele
vê e participa de uma realidade que carece de ajuda e proteção,
navega num mundo que é Brasil, mas está longe de ser o país
que merecemos dada a carência muitas vezes extrema. O que
o ampara é a sólida formação ética e moral que lhe foi incutida
durante os anos de engajamento militar. Os oficiais da Marinha
do Brasil tem a oportunidade, dada a poucos brasileiros, de
conhecer sua própria terra, com as grandezas e os problemas
que só um país tão vasto e plural pode possuir. Nesse sentido,
as palavras de um comandante da Flotilha de Saúde, são esclarecedoras: “Eu pedi minha transferência para Manaus após os primeiros
contatos que tive com a região, quando constatei a situação precária em que
vivia o povo daqui, o isolamento e a necessidade de quase tudo.”
A responsabilidade de comandar um NAsH é muito
amenizada pela atitude de toda a tripulação, que se irmana no
trabalho de assistência ao ribeirinho. É uma missão humanitária
das mais louváveis, da qual todos guardam boas lembranças.
Nesse contexto, cabe ao comando usar de toda a sua experiência
e discernimento para levar a missão a bom termo. A responsabilidade é grande, mas é para assumi-la que o Comandante
se prepara durante os anos de estudo no Colégio e na Escola
Naval. Dentro do rio, toda a teoria vai se aplicar na prática,
ao conduzir com segurança mais de sessenta vidas embarcadas
num navio da Marinha do Brasil.
A segunda pessoa a ser chamada de senhor é o Mestre
do Navio. O tratamento não se deve a sua posição hierárquica,
pois trata-se de um tripulante subordinado aos oficiais embarcados. O que se reconhece nele é a comprovada experiência,
adquirida ao longo de muitos anos como marinheiro que, gradativamente, se eleva na carreira a custa de esforço e dedicação
profissional. Em geral, esses sub-oficiais especializam-se em
manobras, reparos e equipamentos de convés, em cujas fainas
vão sendo calejados e adquirem o respeito de subalternos e
superiores. O Mestre é responsável pela manobras de fundeio,
atracação e desatracação. Quando de uma manobra de fundeio, é a sensibilidade do Mestre que permite saber quando a
âncora “unhou”, ou seja, o momento em que ela efetivamente
agarrou no fundo, travando o andamento da embarcação. Por
fim, cabe a ele manter o aspecto marinheiro do navio, aquela
boa apresentação da embarcação que impressiona tão favoravelmente todos que vão a bordo.
Na escala de comando, a segunda posição mais importante é assumida pelo Imediato. Nas telas do cinema e da
TV muitos deles se tornaram familiares a todos nós, tomando
o comando quando capitães tresloucados e caricatos ameaçavam levar o navio a ruína, ou quando encabeçavam violentos
motins. Toda essa aura de fantasia tem pouca relação com a
realidade de nossos dias. Esse oficial se configura no braço
direito do Comandante, seu grande apoio nas operações e no
trato com a tripulação, seu substituto imediato. Daí o título. A
bordo dos NAsH, capitães-tenente assumem esse cargo e, sobre
seus ombros, recaem um bocado de trabalho e de responsabilidade. Por conta disso, ele é uma das figuras mais requisitadas
e visíveis em todos os conveses da embarcação. Poucas são as
manobras e fainas em que não esteja envolvido. Qualquer
demanda que tenha que ser levada ao Comandante precisa
passar necessariamente por ele. Seu posto o transforma num
verdadeiro centro de triagem das informações que circulam
verticalmente. Cabe ao Imediato formalizar e transmitir aquelas
que partem do Comando e, no caminho inverso, repassar ao
seu oficial superior as necessidades e reivindicações do pessoal
e da embarcação. É nos ouvidos do Imediato que chega toda
e qualquer sugestão ou reclamação, da mais simples a mais
complexa. Isso sem falar na enorme carga burocrática que lhe
toma um bom tempo, e uma boa parte de seu camarote. Não
espanta, que ao fim de seu período como Imediato, qualquer
oficial apresente condições ideais para assumir o comando.
Subordinada ao Comando, o restante da oficialidade
assume variadas funções a bordo. Uma das mais abrangentes
é exercida pelo Encarregado do Convés. O título não espelha
a quantidade de trabalho que precisa ser desenvolvido por esse
oficial. Cabe a ele zelar, em detalhes, pelo bom aspecto do navio.
Verifica o estado geral dos cabos, sua arrumação e conservação,
da pintura da embarcação, da organização do convés, e da
manutenção do armamento. No caso dos NasH, que se valem
de uma aeronave, é costumeiro que o Encarregado do Convés
assuma também a função de Agente de Segurança de Aviação,
cargo que o responsabiliza pela segurança das operações aéreas,
desde a qualidade do combustível empregado até a elaboração
dos relatórios que são repassados ao Serviço de Investigação
e Prevenção de Acidentes Aéreos da Marinha – SIPAERM.
Esse oficial, realmente se desdobra para dar conta do recado.
Mas como ninguém é de ferro, e a bordo o tempo
passa devagar, o Encarregado do Convés aproveita as horas
menos ocupadas para planejar as comissões em que o NAsH
se envolve. Mal acaba uma comissão e a próxima já começa
a ser delineada. Afinal, o intervalo entre as comissões é curto
e precisa ser aproveitado na preparação do navio. O processo é complexo e analisa uma infinidade de variáveis, mas os
ingredientes da receita o oficial conhece bem. Coloca a sua
frente cartas náuticas, previsões meteorológicas, relatórios do
reconhecimento aéreo das comunidades, dados disponíveis por
outras embarcações da Flotilha de Saúde, além de informações
vindas de fontes externas, como: Secretarias Municipais e
Estaduais de Saúde, Fundação Nacional de Saúde, Fundação
Nacional do Índio e, da imprensa. Quando finalizar essa coalizão de dados, precisa levantar os custos relativos ao consumo
de combustíveis, peças, alimentação e material hospitalar.
Fechado o pacote, ele o encaminha ao Imediato que, por sua
vez, o apresenta ao Comandante. Ao fim da análise interna,
o planejamento segue para a sede da Flotilha de Saúde onde
aguarda aprovação. Não parece simples, e realmente não é. Todavia, a experiência adquirida pelo oficial que assume o cargo
de Encarregado do Convés, permite que as comissões atendam
a um rigoroso planejamento de datas, custos e objetivos. Todos
cumpridos com rigor.
Ainda que extremamente ocupado, a situação desse
oficial não difere muito da “garotada” que freqüenta a Praça
D’Armas de um NAsH. A oficialidade a bordo é completada
por Primeiros e Segundos Tenentes, jovens que optaram por
conhecer a realidade de um outro Brasil, que vai muito além dos
mapas e das estatísticas oficiais. A maioria provem de grandes
Página 93: Navegar pelos rios da Amazônia não é tarefa para leigos. O labirinto formado por rios, paranás, igarapés e furos impressiona os novatos, que precisam ganhar
estofo sob a orientação de tripulantes mais safos. Páginas 94/95: Enquanto faz a aproximação por bombordo, o piloto de um Tucano do HU-3 observa o NaPaFlu P-21
Raposo Tavares, em seguimento por um rio amazônico. Esses navios formam a linha de frente de vigilância das fronteiras fluviais entre Brasil e seus vizinhos sul-americanos.
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centros, ou de cidades do interior das Regiões Sul e Sudeste.
Navegar nos grandes rios da Amazônia é uma oportunidade
única que se abre em suas carreiras. Pelo testemunho que se
ouve de muitos que já passaram por essa experiência, as águas
dos rios amazônicos tem um fascínio quase inescapável, e,
quando chega a hora de optarem por uma nova Unidade da
Marinha, não são poucos os que solicitam a permanência em
Manaus e, adotando a cidade como sua, formam família e
tornam-se verdadeiros ribeirinhos.
Aliás, o tema família é recorrente nas conversas a bordo, e causa freqüente de comoção. O trabalho embarcado exige
mais que dedicação. Exige uma boa dose de sacrifício. Não
apenas dos oficiais e praças, como também de esposas, filhos,
mães e pais daqueles militares que permanecem semanas a fio
longe dos seus. Quem segue uma rotina normal de trabalho terá
dificuldades para imaginar o sentimento que impregna cada
partida e cada chegada de uma comissão. Talvez as palavras
de um jovem 1° Tenente, servindo a bordo de um NAsh como
Encarregado da Divisão de Apoio, casado e recém empossado
no cargo de pai, sirvam de alento para muitos companheiros
de carreira: “É sempre difícil o afastamento da família. Tivemos um
filho a pouco e minha mulher ainda está se adaptando em Manaus. Mas
essa é a carreira que escolhi e de qualquer modo ela me apóia. A missão
que recebemos é esta e temos que cumpri-la.”
Esse não é um caso isolado. A bordo, muitos têm que
deixar de lado seus problemas pessoais e persistir na tarefa que
assumiram. Independente da função que ocupem, a dedicação
de todos é que faz com que o navio funcione bem “azeitado”. O
ronco ininterrupto que sobe da Praça de Máquinas, e as luzes
que nunca se apagam no passadiço, são o testemunho vivo
dessa entrega à missão. A saúde do coração do navio fica nas
mãos de dois jovens oficiais da Divisão de Máquinas. Todo o
funcionamento da embarcação está ligado à força e a energia
que se produz abaixo do convés. Portanto, a responsabilidade
não é pequena e sobra trabalho. Do mesmo modo, as tarefas
de abastecimento, planejamento do consumo e aferição da
qualidade dos combustíveis usados no navio, também fazem
parte das funções da Divisão de Máquinas. Durante as vinte
quatro horas do dia é essa turma que mete a mão na graxa
para manter firme o pulso da máquina.
No outro extremo da embarcação, alguns conveses
acima, fica o cérebro que comanda toda aquela força. O
passadiço concentra todos os equipamentos de comando e
controle da embarcação, bem como a sala de rádio e a estação
de comunicação e monitoramento das operações aéreas. Em
regime de quartos de serviço, os oficiais de bordo se revezam
nas operações que transcorrem naquela sala, ganhando mais
prática nas manobras usuais e proficiência ao lidar com radares, ecobatímetros, programas informatizados de navegação e
sistemas de governo. Ademais, esses períodos são aproveitados
na supervisão do trabalho dos subalternos, um exercício fundamental para a formação de futuros comandantes. As turmas
que se formam na Escola Naval do Rio de Janeiro trazem alguma experiência adquirida nos Avisos de Instrução, mas nada
que possa se comparar à navegação pelos rios amazônicos. A
natureza daqueles cursos d’água é cheia de peculiaridades e
imprevistos, obrigando os oficiais a manter uma permanente
prontidão, e afiados com todos os conhecimentos teóricos. No
passadiço dos NAsh eles podem mostrar que valeu tudo que
estudaram. Outra importante tarefa exercida pelos oficiais em
seus quartos de serviço é o cumprimento de uma determinação
da Marinha, que exige o contato via rádio para a identificação
de todas as embarcações que cruzem com os navios da Armada
brasileira em rios brasileiros. Todos esses dados são registrados,
checados e, posteriormente, enviados ao Comando do 9° Distrito Naval, em Manaus. No contexto da Região Amazônica,
que concentra tantos problemas relacionados a invasões do
território brasileiro, ao tráfico de drogas, ao contrabando de
armas e ao desrespeito às normas de navegação, deve-se reconhecer a justeza dessa diretriz imposta pela Marinha do Brasil.
Em síntese, ainda que não disponham de armamento, todos os
navios da Armada são considerados embarcações de combate,
mesmo os Navios de Assistência Hospitalar.
Gente de saúde
A bordo todos estão preparados para toda e qualquer
missão. Principalmente aquela para a qual os NAsH foram desenvolvidos: levar saúde às populações ribeirinhas. Para tanto,
além dos oficiais da área de saúde que incorporam a tripulação,
os NAsH recebem a bordo um grupo de médicos, odontologistas
e farmacêuticos que constituem formalmente as equipes de AssHop. Essa turma está subordinada ao Encarregado da Divisão
Hospitalar, cargo geralmente ocupado por um oficial-médico
pertencente ao quadro complementar da Marinha, que vem
ganhando capacitação no decorrer de comissões anteriores.
Entre os oficiais destacados para as AssHop encontramos
muitas mulheres, que com sua habitual competência e trato
delicado, colaboram com o bom andamento dos trabalhos e
dão um toque mais ameno ao ambiente militar. A despeito de
sua propalada fragilidade, as meninas da Marinha encaram
qualquer desafio e não deixam missão por cumprir. Suportam
o desconforto das viagens e a restrição de muitos recursos com
uma boa vontade contagiante. Se bem que não dispensem o
capricho na aparência, na prática, essa turma deixa de lado o
salto alto para por o pé no chão. Cabe lembrar, que a mulher
marca sua presença na Flotilha de Saúde desde 1997, quando
a 1ª Tenente Cirurgiã-Dentista Virgínia de Oliveira Aragão
subiu a bordo de um NAsH. Desde então, o elemento feminino
tornou-se parte insubstituível das comissões, sendo sua presença
saudada com admiração por tripulação e ribeirinhos.
Independente do gênero, o que o Corpo de Saúde da
Marinha do Brasil mais preza é a capacidade de trabalho e a entrega à missão. Levar atendimento e dar conforto a populações
que vivem em condições tão precárias como as encontradas nas
ribeiras, não é tarefa que seja enfrentada por qualquer pessoa.
Há limitações em vários níveis, e mesmo assim o atendimento
tem que seguir em frente, pois os reclames daqueles brasileiros
precisam ter pronta resposta. Quase nunca se consegue alcançar
o ideal, mas é necessário fazer sempre o melhor. Isso requer
Páginas 96/97: Na ribeira, banco escolar vira cadeira de dentista, e árvore serve de telhado para o consultório improvisado. Vale tudo para que a ajuda chegue
a todos os cantos da Amazônia. Os problemas odontológicos têm sido o grande vilão da saúde naquela região. Assim, não dá para negar atendimento por falta de
instalações adequadas. Página 98: Um sargento sinaleiro sobe acima do tijupá para ajeitar com carinho a bandeira brasileira. Uma das inesquecíveis lembranças
de quem embarca nos navios da Marinha do Brasil é o cerimonial da bandeira que acontece duas vezes por dia, pela manhã às 8h, e à tarde, no exato momento do
pôr do sol. Coisa linda de se ver navegando pelos rios da Amazônia.
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pessoal gabaritado e, assim, pode causar estranheza a presença
de elementos tão jovens nas equipes de AssHop. Mas nesse caso,
não se deve julgar a capacidade pela aparência. A Marinha
recebe e seleciona anualmente inúmeras solicitações de engajamento, que chegam de profissionais de saúde egressos das
melhores instituições de ensino superior do país. Esses rapazes
e moças demonstram uma capacitação acima da média e, como
traço comum, buscam um aprimoramento profissional atuando
junto às condições extremas da região amazônica. O contato
com doenças endêmicas e problemas específicos, só encontrados
em locais tão desprovidos de qualquer suporte, proporcionam
uma experiência ímpar, impossível de ser adquirida em outro
ponto do país. Não raro, muitos desses jovens são gente da terra,
estando ali para dar uma significativa contribuição em favor de
seu próprio povo. É o caso de um médico de 25 anos, nascido
em Manaus, que se integrou voluntariamente aos quadros de
saúde da Marinha, e explica como a bordo dos NAsH: “Eu
cursava o último ano da Universidade Estadual de Manaus quando oficiais da Marinha deram uma série de palestras explicando o que era feito
durante as operações de ASSHop. Fiquei empolgado com a oportunidade
de conhecer melhor as condições de saúde do meu povo. Uma coisa é você
conhecer a situação nas salas de aula, outra é ver a realidade. Acho que,
além dos atendimentos, um dos aspectos que devem ser mais cultivados é
a orientação de saúde, as pessoas precisam saber como manter sua saúde
a partir de cuidados básicos.” Em resumo, o que todos esse jovens
talentos querem é meter a mão na massa, pois o que não falta
é trabalho naquelas paragens.
Dentro desse espírito, os médicos e dentistas engajados nas AssHop contam com a inestimável colaboração de
uma equipe de enfermeiros. Algumas qualidades necessárias,
e certamente encontradas entre a turma de enfermagem dos
NAsH, são a dedicação, a solicitude e a paciência infinita.
Sem isso o trabalho nas ribeiras se torna inviável. Lidar como
o povo das comunidades, em meio às condições mais adversas,
nem sempre é uma tarefa fácil. Os ribeirinhos são ariscos e
reservados. Às vezes, para tirar deles alguma informação
tem que ter uma boa lábia, demandando um bom tempo de
atendimento, o que nem sempre isso é possível já que existem
horários e um calendário a ser seguido. Por outro lado existe
a questão cultural. Implantar bons hábitos de higiene e princípios básicos de educação num prazo curto exige um esforço
continuado. Após uma longa manhã de consultas na ribeira,
um médico foi conciso ao definir a situação que as equipes de
AssHop enfrentam diariamente: “O bem mais fundamental não
conseguimos dar a eles em apenas um dia. Esse bem se chama educação.”
Todavia, longe de ser um empecilho, essa dificuldade torna-se
um estímulo. A turma da enfermagem enfrenta a maratona
de trabalho com uma disposição invejável. Envolvem-se no
transporte dos medicamentos, na instalação dos postos de
atendimento, na distribuição de senhas e na organização das
filas, apóiam as consultas, e ainda saem em campo no socorro
aos pacientes incapacitados. Não poucas vezes, quando o médico chega para uma consulta domiciliar, encontra a situação
do paciente muito bem encaminhada em função da perícia
dos enfermeiros. A bordo dos NAsH é possível encontrar
profissionais de alto gabarito e extrema dedicação. Exemplo
disso é um 2° Sargento-Enfermeiro, cearense, casado e pai de
um menino. Engajado na Marinha há 17 anos, ganhou uma
inestimável experiência em Unidades de Terapia Intensiva
no Hospital Marcílio Dias, no Rio de Janeiro, como podemos
entender por suas palavras: “Eu me especializei no atendimento em
UTI, o que requer muita determinação, pois ali a batalha nunca está
perdida. Já vi pacientes em estado terminal, desenganados pelos médicos,
terem uma melhora impressionante. Certa vez, um desses pacientes fez
questão de voltar ao hospital para fazer um agradecimento a toda à equipe
que o havia recuperado. Essas coisas gratificam nosso trabalho.” São
assim os integrantes do Corpo de Enfermeiros da Marinha,
figuras bem-vindas, queridas e respeitadas em toda a ribeira.
O sustentáculo
Frequentemente, a maioria de nós se esquece de elogiar a arrumação da casa ou qualquer detalhe mais caprichado
que, mesmo escapando a nossa embotada percepção, torna o
ambiente mais acolhedor. No caminho inverso, basta aparecer
algo fora do lugar que logo nos vem à mente uma palavra mais
crítica. Felizmente, ela fica por lá mesmo e não permite que
cometamos uma terrível injustiça. Andando pelos conveses de
um navio da Flotilha de Saúde, podemos avaliar o quanto esse
erro é comum a todos nós. A turma de praças assume sua tarefa
com valentia, e fica difícil encontrar motivo de repreensão. O
que chega do Comando são elogios, e são mais que justificados.
Afinal, essa turma, que cumpre uma missão quase anônima,
forma a estrutura do navio, faz com que as operações sejam
levadas a bom termo e, tudo isso, baseado na estrita noção de
cumprimento do dever. Se bem, que pareça muito mais que isso.
Em decorrência do escopo da missão, é visível o envolvimento
de todos num espírito de fraterna cumplicidade e extremada
dedicação. Em alguns NAsH, é comum encontrar praças que
já ultrapassaram os quinze anos de serviços prestados, acumulando em seu currículo mais de mil dias de mar. Gente lutadora
que veio de pontos distantes do país para se engajar na Escola
de Aprendizes Marinheiros. Jovens com menos de vinte anos,
que vão aprender um profissão, descobrir um talento, ganhar
especialização e dedicar uma vida à serviço da Marinha e do
Brasil e pelo bem de seus conterrâneos.
A bordo, os Praças assumem as mais diversas tarefas
e, não raro, acumulam algumas. Há aqueles que se internam
no Rancho, e a melhor lembrança de seus talentos vem à
mesa com um aroma e um paladar excelentes. Alguns, como
os NatSalv, mergulhadores exaustivamente treinados nas
missões de resgate, são indispensáveis nas operações aéreas,
se bem que todos façam torcida para que seus serviços nunca
sejam requisitados. Por outro lado, os Patrões das Lanchas
trabalham sem descanso, pois a maioria dos deslocamentos
para terra depende dos meios que eles comandam. Podemos
ainda encontrar nessas pequenas cidades flutuantes barbeiros,
eletricistas, encarregados de refrigeração, eletricistas, sinaleiros, escreventes, técnicos em eletrônica e comunicação e
arrumadores. São representantes de todas as raças, gente de
todas as regiões, que encontram na missão assumida a resposta
para as gigantescas necessidades de uma Nação continental
como o Brasil. Entre essa turma, o difícil é não encontrar
alguém disposto a colaborar para o bem deste país.
Página 101: Após um dia de trabalho intenso em uma comunidade ribeirinha, esse jovem médico paraense dedica seu tempo livre a esses escandalosos e emplumados
habitantes amazônicos. Por mais que se esforçasse, nenhum deles conseguiu falar o nome do navio Carlos Chagas. Já entre os ribeirinhos a lembrança desse nome é eterna.
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Os Navios da Esperança − A Marinha na Amazônia
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101
Comissão Rio Acima
Acompanhando a Marinha em Suas Missões
O
s efeitos da maior cheia já registrada nos rios da Amazônia ainda se faziam sentir quando o Navio de Assistência
Hospitalar Carlos Chagas desatracou do cais da Estação Naval do Rio Negro, em Manaus (AM). Exatamente às
nove da manhã, 24 de agosto de 2009. Um dia que amanheceu com uma pequena nebulosidade, logo desfeita
pelo sol equatorial que dominaria soberano os 22 dias da Comissão Tapajós, Trombetas, Nhamundá, Paraná do Ramos, a de número
308 da longa e produtiva carreira do Carlos Chagas. No ano anterior, o navio havia percorrido nada menos que 23.700 quilômetros,
prestando atendimento médico e odontológico, e levando esperança e cidadania às populações ribeirinhas na imensidão da Amazônia.
Em 2009, ano em que completava 25 anos de incorporação à esquadra da Marinha do Brasil, havia a certeza de que aquela marca
seria batida no cumprimento do lema que lhe servia de diretriz magna: “Saúde onde houver vida”.
Manaus é lentamente deixada para trás enquanto a embarcação avança sobre o encontro das águas. Descendo 1.700
quilômetros desde sua nascente no Planalto colombiano, as águas escuras do rio Negro encontram as águas barrentas do Solimões.
Dessa improvável união surge o mais caudaloso rio do mundo: o Amazonas. Aproveitando a corrente favorável, o Carlos Chagas
segue para sua primeira parada, a Vila de Itapeaçu, uma pequena localidade na margem direita do Paraná do Ramos. Os menos
acostumados à terminologia amazônica merecem uma explicação. Um paraná não é um afluente, um tributário de um rio principal.
É como um atalho, um curso d’água secundário que liga dois pontos de um mesmo rio. E, ainda que o porte de muitos desses paranás
seja impressionante, nos mapas hidrográficos da Amazônia eles não passam de uma tênue linha.
Às 18h30 o navio deixou a cidade de Itacoatiara por seu través de bombordo, e enquanto as últimas luzes da cidade desapareciam na escuridão da floresta, o alto-falante de bordo, o conhecido “boca de ferro”, fez a convocação: “Carlos Chagas, oficiais à
Praça D’Armas.” Eram 19h00 quando o Comandante chega para a reunião com seus oficiais e dá início ao primeiro briefing da missão.
Nesses encontros diários, essenciais para todos os envolvidos nas operações de assistência hospitalar, são colocadas em pauta todas as
informações sobre a comunidade a ser atendida, tais como: nome, número provável de habitantes e de domicílios, milhagem do rio,
latitude e longitude, e em qual margem do rio se localiza. Também fica estabelecido a formação das equipes que seguirão para terra,
em que horário o farão, e por qual meio. Da mesma forma, esse pessoal fica ciente das opções disponíveis para estabelecer suas bases
de operações, já que em algumas localidades é possível contar com postos de saúde, escolas ou centros comunitários. Caso isso não
seja viável, lança-se mão de um grande talento brasileiro: o improviso. Afinal, como todos a bordo reconhecem, o importante é dar
atendimento aos necessitados, ainda que as condições não sejam as melhores.
Enquanto o briefing prosseguia na Praça D’Armas, o navio entrou pelo Paraná do Ramos. Nessa noite, a lua estava entrando na
fase crescente, e sua luz ainda era muito fraca para romper a pesada escuridão da mata. Quem estivesse no convés, teria muita dificuldade
de enxergar a margem do rio, que deveria estar a menos de cinqüenta metros do costado do navio. Naquele momento, não fosse pelo
ronco surdo dos motores o navio estaria mergulhado no mais absoluto silêncio. Era o som das máquinas que nos trazia a lembrança de
uma civilização que tínhamos deixado há poucas horas. No mais, navegávamos num tapete negro que parecia não ter fim.
Eram 21h40 quando as luzes de Vila Itapeaçu apareceram na margem direita, varando a copa de algumas árvores. Tínhamos a impressão de que alguns barcos estavam se movimentando no que parecia ser um trapiche, ou um pequeno porto. Algumas
luzes de bordo foram acessas e imediatamente os insetos se atiraram contra elas. Sob a luz baixa do passadiço, o Comandante
seguia orientando as manobras de aproximação, mantendo o navio numa velocidade segura, tateando as águas escuras do Paraná
do Ramos. Os profissionais que lidam em nossos rios, sabem que esses elementos são extremamente dinâmicos e que as alterações
de traçado são constantes. Ainda que se possa contar com toda a tecnologia disponível, a prudência recomenda que olhos e ouvidos
sejam mantidos em prontidão.
O Senhor Mestre havia sido convocado e neste momento estava reunido à proa com sua equipe. Havia uma névoa fraca que
se dissipava aos poucos, permitindo que algumas estrelas escapassem na escuridão do céu. À luz fraca do cais próximo era possível
distinguir algumas figuras que se agitavam sob uma cobertura, parecendo prontas para receber os cabos que estavam alinhados no
convés de nossa embarcação. Quando o sino de bordo assinalou as 22h00, as defensas rangeram entre as tábuas grossas do pequeno
porto de Vila Itapeaçu e o aço do Carlos Chagas.
Vilas da Amazônia
Pela manhã, foi necessário reavaliar o número de habitantes de Vila Itapeaçu. Não parecia que a povoação pudesse abrigar os
1.250 habitantes que nos foi passado no briefing da noite anterior. Na Amazônia, lugar de constantes migrações internas, isso não causa
Página 102: O U-19 cruza o rio Amazonas durante sua sexta comissão em 2009. Ainda faltam duas para fechar o calendário anual. Navegando assim dá para
imaginar as enormes distâncias percorridas nesses 25 anos de atividades. Descanso só a cada quatro anos, quando os navios passam por uma revisão geral, em um
programado período de reparos.
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espanto a ninguém. Como mostram os números do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a ocupação da Região Amazônica é muito esparsa. No norte do Brasil a densidade
demográfica não chega a três habitantes por quilômetro quadrado,
a menor do país. Numa comparação extrema, no Distrito Federal
esse número sobe para quase 365 habitantes dividindo o mesmo
quilômetro. A mercê das cheias, e na busca de melhores oportunidades, os ribeirinhos são os mestres da mobilidade.
Vila Itapeaçu era uma rua principal que se perdia, à
direita e a esquerda no meio da mata. Atrás da comunidade,
emoldurando o casario antigo que se misturava com algumas
construções mais recentes, mais mata. De todo aquele verde
subia a umidade que ajudava a aumentar o calor já sufocante.
As equipes de atendimento seguiram em busca da escola e do
posto de saúde mantidos pela Prefeitura de Uricurituba.
Na escola, os alunos interromperam os ensaios para as
comemorações da Semana da Pátria, e se reuniram no grande
refeitório para assistir a palestra de higiene bucal. A Marinha do
Brasil considera que as ações preventivas são fundamentais para
enfrentar o grave quadro de saúde bucal, principalmente entre
as crianças. Um trabalho educativo bem realizado pode ajudar
a conter o crescente número de atendimentos odontológicos que
são realizados durante as AssHop. Problemas graves, como os
verificados nas comunidades atendidas, podem ser evitados, ou
ao menos minorados, quando os bons hábitos de higiene bucal
começam cedo. No meio da manhã, cada criança deixa a escola
com escova e pasta de dentes nas mãos, instrumentos para por
em prática a idéia que ficou naquelas cabeçinhas.
Uma outra frente de trabalho operava no Posto de
Saúde de Vila Itapeaçu, que apresentava uma boa estrutura e
um pequeno quadro médico que visitava regularmente a localidade. Quando isso se verifica, o que não é comum na maioria
das pequenas comunidades atendidas durante as AssHop, as
equipes da Marinha trabalham em paralelo com seus colegas e
disponibilizam uma ampla gama de medicamentos.
A hora do almoço já estava sendo esquecida pelas
equipes de terra do “Carlos Chagas”, a todo instante convocadas pela população ribeirinha, ansiosa por aproveitar aquela
oportunidade. Em determinados casos os médicos e enfermeiros
não se furtam a fazer atendimentos domiciliares. Foi o caso de
uma senhora de 57 anos, que impossibilitada de sair de casa,
foi atendida na varanda de sua casa. Uma típica construção
ribeirinha, com colunas altas de madeira, que durante as cheias
mantém o piso acima das águas e, na seca, abrem espaço para
a criação de galinhas, patos e tartatugas, que vivem em meio à
infinidade de plantas de que a Amazônia é rica. Dentro de casa
muitos parentes que convivem ou visitam a doente. Em meio a
toda essa exuberância de vida, destoava a saúde da matriarca.
Apesar da falta de recursos para um diagnóstico mais apurado,
tudo levava a crer que o estado da paciente era grave e irreversível. O médico a seu lado, um jovem de apenas 24 anos, que
durante anos tinha queimado as pestanas nos livros de medicina,
levava de Vila Itapeaçu a dura lição de que a luta pela vida é
desigual, e mais difícil ainda para nossos irmãos brasileiros,
esquecidos na imensidão da Amazônia.
A luta continuaria em Vila Alves, localizada no quilômetro 120 do Paraná do Ramos. Uma localidade formada por
duas famílias, os Barros e, naturalmente, os Alves. Toda essa
gente poderia se acomodar com facilidade na igrejinha dedicada
a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Ao lado ficava o Posto
de Saúde, que ficava fechado a maior parte do tempo por falta
de médicos, medicamentos e equipamentos. Por falta de macas,
os médicos tiveram que atender os pacientes no chão. A distribuição de medicamentos foi feita sob uma cobertura de palha,
improvisada como almoxarifado. A única coisa que funcionava
razoavelmente era a escola, permitindo que as crianças, e não
eram poucas, pudessem receber as palestras de higiene bucal.
As condições de vida em Vila Alves são muito precárias.
As facilidades mínimas que encontramos nos grandes centros
são um luxo inalcançável para aquela gente. O fornecimento
de energia é feito por um gerador que, por economia, funciona
por poucas horas após o anoitecer. Naquele calor uma bebida
geladinha vai bem, certo? Errado, ali gelo é artigo raro, e vem de
longe. Há um telefone público, um só, ao lado do posto de saúde,
mas caso ele esteja funcionando, provavelmente não haverá cartão
para fazer a ligação. Também não existem sistemas de distribuição
de água e tratamento de esgotos. A água para uso domiciliar é
tirada diretamente do rio, e para lá retorna levando todo tipo de
dejetos. Ainda assim, é comum que as crianças se banhem no rio
em meio a contaminação. Dentro desse quadro, comum a muitas
localidades da região, pode-se imaginar que a saúde também não
receba muita atenção. Isso é verdade, precisa mudar, e a Marinha
do Brasil vem mostrando que a mudança é possível.
Pouco antes das 11h00 uma aeronave do 3° Esquadrão
de Helicópteros de Emprego Geral (HU-3), estava no visual. O
Esquadrão Tucano, sediado em Manaus, é responsável pelo apoio
aos navios da Flotilha do Amazonas, e seus helicópteros Esquilo
monoturbina participam regularmente das operações ribeirinhas
e das patrulhas fluviais. Em poucos instantes o Tucano 7089
pousou no convoo do Carlos Chagas, fundeado no Paraná do
Ramos, em frente a Vila Alves. Como aeronave orgânica dos Flotilha de Saúde, ela é uma peça chave no conjunto das atividades
que acontecem durante a comissão, atuando no reconhecimento
aéreo (RECON), no transportes das equipes para regiões de difícil
acesso, e nas operações de Evacuação Aeromédica (EVAM). A
partir daquela manhã, contando com todos os seus recursos, o
NAsh Carlos Chagas operaria com força total.
Próxima parada: Vila Augusto Montenegro. O atendimento nesta localidade foi feito numa escola municipal, o que não
atrapalhou em nada as aulas. A razão era que não haveria aula
naquela quinta-feira. E o motivo muito compreensível dentro
do contexto amazônico. Uma vez por mês os professores são
dispensados de suas atividades para que se desloquem de barco
até Uricurituba ou Itacoatiara, onde recebem seus salários. Ida
e volta são dois dias de viagem, portanto, eles tinham deixado
seus alunos naquela manhã e retornariam no sábado seguinte.
Esta situação está longe de ser uma raridade, e é preciso entender
que as enormes distâncias, e as dificuldades de transporte ditam
as regras por ali. Ademais, na Vila Augusto Montenegro não há
sequer uma agência bancária.
As equipes de terra, sem saber da dispensa dos professores, não tinham a quem atender. A folga forçada esvaziou a
escola, mantendo mães e crianças em casa, escondidas do calor
implacável que fazia àquela hora. Não fosse a pronta intervenção
AD
Página 105: Cuidados nos mínimos detalhes. A aeronave embarcada é checada regularmente e nada escapa ao olhar atento e experimentado deste sargento especialista.
Há minuciosas inspeções diárias e, também, antes de cada decolagem e após cada pouso. Páginas 106/107: O sino é uma presença tradicional nas embarcações da
Marinha. Ele é usado no período entre a alvorada e o toque de silêncio. Os toques são dados a cada meia hora para marcar os intervalos dos quartos de serviço.
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de duas tenentes, os registros de atendimento em Vila Augusto
Montenegro ficariam zerados. Elas foram atrás das líderes comunitárias e pegaram as mães no laço, convocando-as a tirar
seus filhos de casa, aproveitando que a saúde batia a porta. Em
pouco tempo a escola se encheu. As salas da frente viraram
consultórios, que atenderam por toda a manhã. Nos fundos
da escola aconteceram as costumeiras, e sempre necessárias,
palestras de higiene bucal. Umas cinqüenta crianças deixaram
a escola naquela manhã sabendo o que fazer para manter seus
dentes saudáveis, e havia a grande e desejada possibilidade que
eles passassem isso também a seus pais.
A parte da tarde foi reservada aos atendimentos domiciliares. E não foram poucos. De maleta e receituário na mão, dois
médicos percorreram as ruas da comunidade. A todo momento
eram chamados, e mal saíam de uma casa logo passavam a outra.
Numa delas, atenderam uma senhora que dizia sofrer de diabetes.
Fosse verdade estaria em maus lençóis, pois enquanto corria o
exame preliminar, servia-se de um café fartamente adoçado. Com
muito tato, e afastando a lata de açúcar, o doutor a convenceu a
deixar certos hábitos. Trabalhando muitas vezes em condições
precárias, e tendo que se desdobrar para entender as queixas de
seus pacientes, pessoas arredias, desconfiadas e carentes de tudo,
os médicos que participam das AssHop desenvolvem um forte
sentimento de amor ao próximo e doação ao trabalho. Sabem
que, além de ajudar, estão se tornando pessoas mais humanas e
dignas de profissão que abraçaram.
A chuva começou a cair fininha enquanto as lanchas
voltavam para bordo. Durante a noite ela ganhou força e o vento
levantou as águas do rio, mas nada que perturbasse a marcha
do Carlos Chagas, que enfim deixava o Paraná do Ramos. Seguíamos em direção a Jurupari, uma cidadezinha na margem
direita, milhagem 186 do grande rio Amazonas.
Quando se procura uma definição para a Amazônia
acabamos por chegar a um impasse. Será uma floresta alagada,
ou um rio tomado pela selva? A natureza encontrou a resposta
nos igapós. Nesses ambientes especialíssimos, que as cheias
mantêm submersos por meses, a flora adaptou-se perfeitamente
as condições de prolongado alagamento. Por vezes, as águas
avançam até vinte quilômetros sobre essas várzeas, formando-se
verdadeiros labirintos por entre as imensas árvores, cujas copas
formam uma cobertura quase impenetrável. Esse ambiente é
extremamente favorável às espécies aquáticas, que ali encontram
fartura de alimento e abrigo.
Bem, onde há fartura o homem consegue se adapta com
facilidade. Os índios foram os pioneiros e mostraram ao homem
branco como sobreviver nesse meio. A adaptação dos ribeirinhos
vem de longa data e, nas localidades próximas a Jurupari isso
pode ser visto, se bem que, às vezes, a invasão das águas cause
um grande transtorno.
Foi isso que as equipes de AssHop encontraram. Desde
1953 não se registrava uma cheia como aquela. Os efeitos foram
sentidos em toda a Amazônia. Na capital amazonense, o rio Negro alcançou 29,71 metros no final de junho, batendo todos os
recordes históricos, registrados, desde 1902, num livro guardado
com muito carinho pela administração do Porto de Manaus. Mas
os moradores da Vila do Paraná do Albano, uma povoação de
menos de quarenta casas espalhadas pela mata, pouco sabiam
do que tinha acontecido em Manaus. Estavam mais preocupados com a situação da Escola Nova Jeruzalém, que tinha sido
invadida pelas águas e estava numa situação deplorável. As aulas
foram interrompidas há meses, e os marimbondos, em número
assustador, eram os únicos que ocupavam as salas de aula.
Mas nada disso impediu o atendimento à comunidade.
Enquanto procuravam não incomodar os donos do espaço aéreo,
as equipes montaram seus “consultórios’ na varanda, e nas salas
abandonadas da escola. Naquela manhã foi grande o número
de atendimentos odontológicos. Habituados a enfrentar todo
tipo de situação, os dentistas precisam trabalhar sob condições
que estão longe de serem ideais, mas encontram um poderoso
lenitivo no reconhecimento das comunidades ribeirinhas. Por
mais acanhadas que sejam, sempre havia um forte sentido de
hospitalidade e gratidão pelo trabalho das equipes da Marinha
do Brasil. Não era pequeno o esforço que muitos faziam para
chegar até o local de atendimento. Mesmo assim, chegavam
com disposição, mostrando um grande espírito de colaboração.
Havia passado pouco do meio-dia quando as lanchas
retornaram ao Carlos Chagas, que seguia lentamente pelo rio
Amazonas em direção a seu próximo objetivo, Boca do Cabori.
O vento forte trazia chuva e esbarrava na poderosa corrente do
rio, criando marolas por toda a superfície. Pior para as equipes
das lanchas Tefé e Tapauá, que subiram a bordo de banho já
tomado. Nada que uma boa refeição e algum descanso não
resolvessem, pois a tarde precisavam estar prontos para voar.
A saúde ganha asas
A faina para que o Tucano 7089 estivesse pronto para as
operações do dia começava cedo. A guarnição do Destacamento
Aéreo Embarcado (DAE), a bordo do Carlos Chagas, é formada
por dois pilotos, um fiel, um especialista em motores, outro encarregado da aviônica e, o último, é responsável pela estrutura
da aeronave. Às 6h00, antes mesmo de tomar seu desjejum, o
fiel, um piauiense de 36 anos, segue para o convôo onde realiza
uma rigorosa inspeção da aeronave. Verifica o nível do óleo, testa
o combustível para detectar impurezas e a presença de água,
inspeciona o motor, o cone de cauda, a estrutura da aeronave e
os instrumentos da cabine. Nada escapa a seu olhar experiente
e, com a competência conquistada em mais de 1.100 horas de
vôo e 20 comissões de AssHop, registra em seu relatório que a
aeronave está pronta para o vôo.
Como havia sido determinado no briefing do dia anterior, às 12h30m toca postos de vôo. Na meia hora seguinte uma
grande movimentação toma conta do Carlos Chagas. É nesse
momento que se prontifica a aeronave para o voo. Ela é “despenteada”, ou seja, são desdobradas as pás do rotor principal,
e abastecida de querosene. As redes de proteção do convoo são
arriadas e a lancha de resgate é lançada. Essa embarcação, que
leva a bordo um mergulhador e um médico, cumpre uma função
de enorme importância, podendo prestar socorro imediato em
caso de acidente durante as operações aéreas. No passadiço, em
reunião com os oficiais do Carlos Chagas, os pilotos recebem o
briefing final e pormenorizado da missão. Naquele momento se
Páginas 108/109: As lanchas de transporte são o meio mais ágil para se alcançar a margem mais próxima. As equipes de atendimento partem preparadas para tudo, equipadas
e supridas de grande quantidade de medicamentos. Todavia, podem sempre contar com o apoio logístico do NAsH e basta uma chamada-rádio para que ele seja acionado. Página
110: Para que possa melhor desenvolver seu trabalho junto às comunidades, a Marinha faz um completo e detalhado levantamento de todas as localidades por onde passa. Nada
é deixado ao acaso pelos militares que cuidam da inteligência. Todos os dados coletados ajudam a traçar um perfil mais real das carências e possibilidades da região amazônica.
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determina para onde devem seguir, a que distância fica, qual a
função, a rota e o tempo do vôo, a freqüência-rádio a ser usada,
a quantidade de carga e passageiros a serem embarcados e, em
função disso, o peso de combustível que a aeronave precisa receber. Ao chegar ao convoo, os pilotos encontram a aeronave pronta
para voo, os demais passageiros já recebendo o indispensável
briefing de segurança e a carga embarcada. Tomando assento na
cabine fazem o checklist dos instrumentos antes de dar partida ao
motor. Bem a sua frente, sobre o convoo, uma grande equipe de
apoio está pronta para qualquer eventualidade. Entre eles, em
seu vistoso macacão amarelo, o Oficial de Lançamento e Pouso
(OLP) está pronto para orientar a decolagem. Enquanto embala o giro da hélice, o som da turbina vai quebrando o silêncio
daquele trecho do rio. Em instantes ele se torna ensurdecedor
e a comunicação só é possível pela fonia ou por gestos. O vento
varia um pouco e o navio guina alguns graus a boreste para pegar
pegá-lo de proa. O Tucano, aguardando a ordem de partida,
vibra com a hélice em máxima rotação. A lancha de resgate está
ao largo, saltando sobre as marolas e acompanhado pela fonia
tudo que se passa a bordo. E é pela fonia que o piloto recebe o
OK vindo do passadiço. Ele ergue o polegar para o OLP, que faz
avançar as equipes que liberam os cabos que peiam a aeronave.
O passo da hélice muda, o vento varre todo o convoo e parece
que vai jogar toda a equipe de apoio nas águas acinzentadas do
Amazonas. Seguindo as orientações do OLP, o Tucano deixa
lentamente o Carlos Chagas por bombordo, se ergue em direção
ao céu nublado daquela tarde e, enquanto desaparece atrás da
muralha de árvores que escondem a comunidade de Boca do
Cabori, ouve-se pelo alto-falante a mensagem exaustivamente
repetida: “Carlos Chagas, navio em operação aérea. É proibido jogar lixo
na água, fumo, uso de cobertura, trânsito e permanência de pessoal em todos
os conveses abertos à ré da caverna 38”.
Em todas as rotinas de bordo a segurança é fator primordial. Durante as operações aéreas essa preocupação é levada
a níveis extremos, pois manter a integridade da tripulação, da
embarcação e da aeronave é uma regra inquestionável. Ademais,
apesar da faina, todos concordam que a presença do helicóptero
amplia consideravelmente a gama de operações dos NAsH.
A manobrabilidade e a rapidez da aeronave permite
que equipes médicas possam se deslocar para áreas remotas e
de difícil acesso. Essa capacidade de deslocamento é ainda mais
valorizada durante uma Evacuação Aeomédica (EVAM). Como
em nenhuma outra missão, uma EVAM exige toda a perícia das
equipagens envolvidas na retirada de vítimas, em meio a locais
impraticáveis para qualquer outro meio de transporte. Dada à
brevidade do socorro, tem sido possível salvar inúmeras vidas.
Em operações de reconhecimento aéreo, os helicópteros
possibilitam a coleta de dados relevantes, que orientam as atividades de assistência às comunidades estabelecidas em locais não
acessíveis por terra ou pelo rio. Do alto, é possível ter uma visão
abrangente da área, localizando os assentamentos, identificando
possíveis locais de pouso e os acessos disponíveis. Toda uma gama
de informações que ganham ainda mais importância na intrincada geografia da região. Mas, ainda que os pilotos desfrutem
de uma visão privilegiada daquele aparentemente infinito manto
verde, todos são unânimes em reconhecer as dificuldades de
voar sobre a Amazônia. Na pequena lista que os mais calejados
passam aos novatos, estão relacionados três pesadelos que, cedo
ou tarde, todos terão que enfrentar: a presença de pássaros; a
angustiante ausência de um local de pouso e; o aru, aquele nevoeiro matinal que, com uma rapidez assustadora, cobre a mata
e obriga o piloto a confiar nos instrumentos de navegação e em
todo o conhecimento adquirido na carreira militar.
Garantido, Caprichoso e o Oriente perdido na
Amazônia
Por obra de dois bois, e de seus fanáticos admiradores,
Parintins é hoje uma cidade conhecida internacionalmente. A
história de Caprichoso, simbolizado pela estrela azul, e de seu
rival, Garantido, que traz um coração vermelho no estandarte,
remonta as primeiras décadas do século XX. Garantido foi fundado em 1913, por Lindolfo Monteverde, um afamado cantor
da região. Caprichoso nasceu uma década mais tarde pelas mãos
de dois irmãos cearenses. Ao que parece, a fé foi o mote para a
criação dos bois. Adoentado, Lindolfo fez promessa para que São
João lhe concedesse a cura. Por seu lado, os cearenses apelaram
ao mesmo santo para que fossem bem-sucedidos na terra que
haviam adotado. Seja como for, a festa protagonizada pelos bois
ganhou uma grandeza insuspeitada. Desde 1964, quando adotou
o formato que hoje conhecemos, passou a atrair a atenção de
todo o país e, há poucos anos, de todo o mundo. Atualmente é
considerada a segunda maior festa popular do Brasil.
Na tarde de uma sexta-feira, 28 de agosto, o “Carlos
Chagas” conseguiu atracar sem dificuldades no porto de Parintins. O famoso festival que toma a cidade tinha acontecido havia
dois meses. As ruas, agora tranqüilas e aliviadas da invasão de
turistas que multiplicam por dez a população local, ofereciam
uma oportunidade de descanso à tripulação. E seria um merecido descanso. Até ali tinham sido realizados entre atendimentos
médicos, odontológicos, de enfermagem e vacinações, nada menos que 4.468 procedimentos. Nada mau para aquela primeira
semana de trabalho.
A segunda semana de comissão começava sob o mesmo
calor escaldante que nos acompanhava desde Manaus. Às 9h00
o Carlos Chagas deixou Parintins para trás e, não tinha navegado
mais que meia-hora, quando o Mestre foi novamente convocado
à proa. Fundeamos em frente a uma localidade chamada Vila
Amazônia. Fora algumas ruínas um tanto deslocadas no cenário
habitual, aparentava ser apenas mais uma entre tantas paradas.
O que era um grande engano. Vila Amazônia foi um dos maiores
pólos de colonização japonesa em todo o Brasil. A partir dos
bons resultados obtidos pela primeira leva de imigrantes que
chegou a São Paulo, em 1908, os governos do Amazonas e do
Pará convidaram os japoneses a se estabelecerem na Amazônia.
Em 1929, Tsukasa Uetsuka adquire 100 mil hectares de terras
e estabelece 100 famílias japonesas em Vila Amazônia. A laboriosa comunidade prosperou rapidamente. Aos poucos a mata
nativa abriu espaço para serrarias, olarias e pequenas fábrica de
farinha e beneficiamento de arroz, além de um engenho onde
Páginas 112/113: “Xô cárie!” A turminha está sempre atenta durante as palestras de higiene bucal, uma rotina mais que necessária. A Marinha acredita que é preciso
incutir bons hábitos entre os mais novos para que os problemas bucais se reduzam nas próximas gerações. Página 115: “Abre o bocão pra tia.” E a garotada abre mesmo.
Apesar de ainda serem grandes os problemas odontológicos entre a população infantil, percebe-se uma maior aceitação do tratamento. Afinal, ninguém quer perder o sorriso bonito.
Páginas 116/117: O acompanhamento da gestação e do desenvolvimento da criança são tarefas que ajudam a derrubar as taxas de mortalidade materno-infantil. Os
números ainda não são ideais, mas tendem a declinar com a ajuda prestada pelos Navios da Esperança.
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era produzida aguardente e mel de cana. Também ergueram um
hospital, uma escola, um posto meteorológico, abriram estradas
e estabeleceram um porto. Além do arroz e da mandioca, o
produto que prosperou na região foi a juta. Após anos de trabalho e pesquisa os agricultores conseguiram adaptar a planta na
região e passaram a obter boas colheitas. Vila Amazônia, e as
demais comunidades nipônicas estabelecidas na Região Norte,
despontavam no cenário brasileiro. Quando, em 1940, Vila Amazônia recebeu a visita do Presidente Getúlio Vargas, parecia que
todas as dificuldades enfrentadas desceriam rio abaixo, abrindo
caminho para um futuro de prosperidade. Todavia, menos de
um anos depois o sonhou desmoronou com o ataque das forças
japonesas a Pearl Harbor. A campanha xenófoba chegou a extremos, denunciava-se como nociva aos interesses brasileiros aquela
“invasão amarela”. Quase ao fim da Segunda Grande Guerra,
um navio chegou a Parintins. Ironicamente, chamava-se Dom
Pedro II, nome do imperador que havia sido um dos maiores
incentivadores da vinda de imigrantes para o Brasil. Presos em
seus porões seguiam mais de uma centena de japoneses. Em
pouco mais de meio século a história e as obras daqueles colonos
foram transformadas nas ruínas que hoje vemos.
A lancha Tefé, que levava as equipes de atendimento,
abicou ao lado de uma ambulancha do Governo do estado do Amazonas.
Ainda que estranho, o sentido do termo é óbvio. É uma lancha
que serve de ambulância, e a necessidade dela se revela mais
óbvia ainda numa região tão dependente das vias fluviais. Vila
Amazônia também contava com um Posto de Saúde e com uma
obra social e educacional mantida por religiosas. Na creche, ao
lado da Igreja de São Francisco Xavier, as dentistas puderam
encontrar um bom número de bocas carentes das palestras de
higiene bucal. Ali, como de resto em todos os pólos atendidos
pelos NAsH, os problemas dentários formam um quadro assustador, sobretudo entre a população infantil.
Os médicos do Carlos Chagas colocaram uma boa quantidade de medicamentos a disposição do Posto de Saúde local e
voltaram para bordo. A razoável estrutura de atendimento que se
verificou em Vila Amazônia deve-se a proximidade de um centro
maior como Parintins. Mesmo assim, pode-se ouvir o testemunho
preocupante de ribeirinhos que viviam em comunidades mais
afastadas. Necessitados de assistência médica, muitos não tem
como chegar até um posto de saúde, ou mesmo como solicitar
atendimento pela absoluta falta de um meio de comunicação.
Mesmo quando bafejados pela sorte, e tendo conseguido contatar
algum órgão de saúde, precisam esperar que estes possam driblar
a constante falta de recursos e as grandes distâncias para que o
atendimento chegue até às comunidades. Essa é a dura realidade
enfrentada por muitos brasileiros que, felizmente, há 25 anos vem
contando com o apoio dos Navios da Esperança.
Em águas do Pará
O Carlos Chagas suspendeu as 19h00, e lentamente
deixou para trás as luzes de Vila Amazônia. O perfil de uma
grande construção em ruínas foi a última lembrança que ficou
da próspera comunidade que chegou ali vinda do outro lado do
mundo. Tinha coragem aquela gente. A lua quase cheia iluminava o caminho pelo grande Amazonas. À noite, em meio ao
rio, a paisagem se alterava em pequenos detalhes. O céu parecia
um bloco pintado sobre as águas, carregado de estrelas, como
não se vê em nenhuma cidade. Vez por outra uns maciços de
nuvens clareadas por relâmpagos cruzavam o horizonte, e ribombavam tão baixinho que dava para imaginar a que enorme
distância se encontrava. Pela madrugada entramos nas águas
do rio Trombetas onde pretendíamos fundear, o que não foi
possível devido a pouca profundidade. Pela manhã avistamos
uma pequeníssima comunidade, São Sebastião, localidade de
Boca dos Currais. Ali, uns poucos atendimentos odontológicos
são realizados a bordo, enquanto a equipe médica segue para
terra e comprova a razão de tanto abandono. A intensidade
da cheia do rio havia obrigado a população a se deslocar para
pontos mais altos. Poucos tinham ficado para trás e cuidavam
do gado magro que comia os restos de uma pastagem alagada.
Parecia que as enormes castanheiras a margem do Trombetas,
eram os únicos seres vivos que não se incomodavam com a
falta de cerimônia do rio. Nas paredes das construções era
possível ver a absurda altura a que as águas tinham chegado e
permanecido por meses. Ao fim daquela tarde, um enfermeiro
do Carlos Chagas, um cearense de Itapipoca e profundo conhecedor da realidade enfrentada pelos ribeirinhos, voltou para
bordo com poucos números para acrescentar ao seu relatório
de atendimentos.
Melhor sorte teria no dia seguinte em outra São
Sebastião, localizada poucas milhas a frente, já no rio Nhamundá, um afluente do Trombetas. Esse curso d’água é um
dos mais belos de toda a região amazônica. Apesar da cheia
não ter sido menos intensa por ali, seus efeitos devastadores
não eram facilmente observados. O rio é estreito e a mata
que o envolve é poderosa, variada e exuberante. Em alguns
trechos, parecia que navegávamos por entre ilhas dos mares
tropicais, tal era a verdura da vegetação em contraste com o
azul profundo da manhã.
Ás 8h40m a aeronave Tucano foi lançada para fazer
o reconhecimento da região. Poucos minutos depois as lanchas
Tefé e Tapauá partiram para atender a comunidade enquanto
o navio manobrava para fundear em frente à Escola Municipal
Laura Viana que serviria de base para as equipes de terra. O
estabelecimento recebia uma quantidade de alunos como ainda
não tínhamos visto em toda a comissão. Fazia pensar de onde
surgia aquela criançada, pois em volta da escola víamos tão
somente poucas moradias, uma igreja, um galpão que servia de
quadra de esportes e um campo de futebol. Naturalmente, não
havia mistério algum, e tudo se esclareceu ao fim das aulas matinais. A partir desse momento não se achava um uniforme que
fosse. A criançada debandara pelas ribeiras a bordo de qualquer
coisa que flutuasse. Um transporte escolar eficiente como ele só.
Às 15h00, a exemplo dos alunos da Escola Laura
Viana, o Carlos Chagas se afasta pela ribeira e retorna pelo
Nhamundá. Passa em frente à cidade Oriximiná, na boca do rio
Trombetas, e segue agora em direção ao Estreito de Óbidos, um
trecho do rio Amazonas onde toda a sua poderosa vazão se vê
estrangulada num aperto de apenas 1.500 metros. Em virtude
desse estreitamento, é ali também que o rio atinge sua maior
profundidade, nada menos que 100 metros. Naquele estreito
o movimento de grandes navios é intenso durante todo o dia,
Páginas 118/119: É nessas horas que se vê a utilidade do helicóptero. Nenhum outro meio de transporte consegue recolher a vítima e levá-la até uma unidade hospitalar
tão rapidamente. O tempo que se ganha pode ser o tênue limite entre a sobrevivência e o óbito. Página 120: O sorriso cativante é um bom recurso para ganhar a confiança dos arredios ribeirinhos. Depois da conquista basta atendê-los com a natural sensibilidade e a reconhecida competência que destacam as profissionais da Marinha.
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as águas mais agitadas e o vento incansável, exigindo atenção
dos oficiais a postos no passadiço. Exceto estes, poucos a bordo
puderam sentir a passagem por Óbidos, pois o Carlos Chagas
apresenta uma singradura confortável e o comando era suave e
estável. Tão suave quanto à navegação foi a operação de fundeio.
Às 21h30m estávamos ao largo da pequena Menino Deus de
Ipaupixuna, uma comunidade ribeirinha situada na margem
direita do Amazonas.
Bem, a verdade é que se não dispuséssemos da
longitude, da latitude e da milhagem exatos, poderíamos ter
passado pela comunidade sem dar pela coisa. Mesmo sob a
luz do dia era difícil visualizar mais do que um ajuntamento
ralo de construções que contava-se nos dedos, de uma mão.
Na praia uma cobertura aberta servia de escola, já que a original havia sido invadida pela cheia. A igrejinha ao lado não
teve melhor sorte. Perto dali erguia-se a sede deserta do Santa
Cruz Clube, onde se podia encontrar vestígios de uma festa
recente. De resto, algumas casas esparsas e nada mais. Através do empenho de um Agente Comunitário de Saúde, dos
médicos e dentistas, foi possível reunir nas salas de aula uma
boa quantidade de pequenos ouvintes durante as rotineiras
palestras. Contudo, foi durante os atendimentos domiciliares
que a prontidão das equipes médicas e de toda a tripulação
do Carlos Chagas se fez mais atuante. Numa visita preliminar,
um enfermeiro pode constatar que uma grávida apresentava
um quadro de saúde preocupante. O fato foi imediatamente
comunicado via rádio ao navio, que alterou seu ponto de
fundeio, ficando mais próximo ao local do evento. A aeronave
Tucano e sua equipagem se prepararam para uma possível
operação de Evacuação Aeromédica, aguardando apenas
a solicitação que partiria, ou não, da equipe que atendia a
paciente. A tensão permaneceu por algumas horas até que a
perícia dos médicos pudesse reverter a situação desfavorável
da grávida. A rotina de quem opera a bordo de um NAsH é
pontilhada de episódio como esses. A bordo, a torcida pela
saúde é forte, e o time está sempre pronto para entrar em
campo, não importa quem seja o adversário.
No dia seguinte, navegando no encontro entre o Amazonas e o Tapajós, o “Carlos Chagas”, envia suas equipes para
atender a comunidade de Aninduba. Conforme foi passado no
briefing da noite anterior, o povoado possuía pouco mais de 80
domicílios e ficava na margem direita do rio Amazonas, na altura
da milhagem 371. Só esqueceram um detalhe que se revelou estafante, principalmente para quem carregava as pesadas canastras
de medicamentos: Aninduba ficava no alto de uma barranca
altíssima, só alcançada por uma escadaria de 72 degraus. Mas
foi válido o esforço, pois lá no alto a recepção foi reconfortante.
A banda da escola municipal ensaiava para as comemorações
do Dia da Independência. Os pequenos puxavam a fila, logo
seguidos pela charanga, que atacava os couros sem piedade e
com muita competência. Nos mastros panejavam as bandeiras do
Brasil, do Pará e de Santarém, a sede do município. Enquanto a
parte jovem da comunidade saía em desfile, os médicos aproveitaram para atender a população de mais idade, mães e crianças
de colo, ali mesmo nas salas da escola. Apesar de o atendimento
ter acontecido apenas na parte da manhã, foi possível realizar
nada menos que 461 procedimentos. Assim, a segunda semana
de comissão se encerrava com números animadores. E, como
para descer todos os santos ajudam, lá fomos baixando das alturas
de Aninduba para voltar ao Carlos Chagas.
Na proa de casa
Teríamos um fim-de-semana prolongado pelo feriado
de Sete de Setembro. O Carlos Chagas atracou no Cais Turístico
de Santarém, uma das maiores cidades portuárias do Pará e de
toda a Região Norte. O local onde se encontra Santarém era
um reduto de índios Tupaius, ou Tapajós, que não tiveram um
bom relacionamento com os primeiros brancos que apareceram
por lá. Em 1542, a passagem de Francisco Orellana não deixou
boas lembranças. Promoveu um saque às plantações dos índios,
que os espanhóis consideravam como selvagens hereges, que
deviam ser amansados pela cruz e pela espada. Em 1626, foi a
vez de Pedro Teixeira. O capitão português foi mais diplomático
no contato com os donos da terra. Mas, como sua real intenção
era comprar índios de tribos inimigas para usar como escravos,
os Tapajós mais uma vez se decepcionaram com os brancos.
Coube ao Padre Antonio Vieira, um jesuíta, a aproximação e
o início da pacificação dos indígenas. Um processo longo que
culminou com a instalação de uma missão religiosa em meio à
aldeia Tapajó. Isso ocorreu em 1661, pelas mãos do Padre João
Felipe Bettendorf. Nascia então aquela que seria conhecida como
a “Pérola do Tapajós”.
Oficiais e praças se espalharam pela cidade e outras localidades vizinhas. Alter-do-Chão foi o destino de muitos. Aquele
pequeno distrito, que fica a 30 quilômetros de Santarém, recebeu
de seus admiradores o título de “Caribe da Amazônia”. E não lhe
faltam os méritos, como também a toda a região ribeirinha do
Tapajós, que encanta desde os primeiros tempos da colonização.
Três dias de descanso foram suficientes para que a
tripulação esticasse as pernas e o navio fosse reabastecido. Após
duas semanas de comissão as reservas de água, combustível e
víveres precisavam de reposição.
Pontualmente às 12h do dia 8 de setembro, uma terçafeira, o Carlos Chagas deixou Santarém e adentrou pelo Tapajós.
Nosso destino era a comunidade de Aramanaí, em frente a qual
fundeamos após uma hora de navegação. A paisagem era belíssima. Nas duas margens pontilhavam inúmeras praias de areias
claras, que se faziam ainda mais belas contra o verde da mata
intocada. Naquela tarde, um pequeno grupo foi enviado a terra
para avisar o povo local dos atendimentos que aconteceriam no
dia seguinte.
Pela manhã, com o navio fundeado ao largo, as lanchas
tiveram que percorrer uma considerável distância beirando às
margens do Tapajós. Aramanaí logo apareceu na sua simplicidade de vila de pescadores. A localidade era uma praia de recreio,
um programa de fim-de-semana para os moradores de Santarém
e de cidades vizinhas. Naquela terça-feira, a praia e as ruas de
terra próximas, estavam desertas. Os únicos que viram o desembarque das equipes do Carlos Chagas foram os japins, umas aves
barulhentas que bicavam a fartura de alguns cajueiros. Àquela
hora da manhã o povo de Aramanaí se concentrava em dois
pontos. Os pequenos na Escola Pública, os adultos no Posto de
Saúde. Por sorte, os dois pontos estavam separados por uns vinte
passos. A turma pequena recebeu a costumeira prédica de bons
hábitos higiênicos. Os donos de algumas bocas menos cuidadas
Página 123: O pequeno pantaneiro está em boas mãos a bordo do NAsH Tenente Maximiano. Assim como todas as equipes da Flotilha de Saúde, as equipes do U-28
estão capacitadas para atender a todas as demandas da população ribeirinha ao longo dos rios Paraguai e Cuiabá.
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levaram um carinhoso sermão. No Posto de Saúde, salas foram
franqueadas ao trabalho dos médicos e o atendimento correu
sem problemas por toda a manhã.
Aramanaí pertence à Belterra, um município que fez
parte do sonho de transformar a região numa grande plantação
de seringueiras. Sonho que começou em 1928, numa imensa
área que foi batizada como Fordlândia, em homenagem ao empresário norte-americano Henry Ford, que pretendia tirar dali a
borracha para os pneus dos carros que produzia. Mas as terras
escolhidas e as técnicas de plantio se revelaram incapazes de sustentar o projeto. Além disso, os conflitos entre os administradores
norte-americanos e a mão-de-obra nativa chegaram ao ponto de
exigir uma intervenção do Exército brasileiro. Assim, em menos
de duas décadas o sonho virou um pesadelo, e coube ao Henry
Ford II, neto e herdeiro de Ford, devolver as terras ao governo
brasileiro. Fordlândia transformou-se numa cidade fantasma.
Por sua vez, Belterra aplicou em seu brasão a imagem de uma
seringueira e o símbolo da Ford, lembranças de um progresso
que não teve bases para se desenvolver.
Às 11h deixamos Aramanaí, Belterra, Fordlândia, e
todo o passado que pode servir de alerta aos que desejam explorar
a Amazônia com desmedida ganância, e pouca consideração por
sua gente e por sua terra. Passava pouco das 13h quando voltamos
a águas do Amazonas. A intenção do Comandante era navegar
sem escalas até Itacoatiara, no Amazonas. Isso não prejudicaria
em nada o trabalho de atendimento às comunidades ribeirinhas,
mas significava que as equipes teriam que chegar até elas voando. Ou seja, o Tucano 7089 viveria “despenteado” durante a
viagem de volta a Manaus. Os pilotos do 6° Esquadrão ficaram
exultantes. A função do piloto é voar, colocando em prática tudo
que assimilou nas escolas de formação e nas centenas de horas
com a mão no manete, e sabe que não há campo de treinamento
como a Região Amazônica.
Os vôos começaram naquela tarde. O objetivo era
localizar comunidades que estavam no roteiro de atendimento
durante as 72 horas de navegação ininterrupta até Itacoatiara.
A primeira a aparecer na visada do Tucano foi São Sebastião
do Coró-Coró, uma comunidade de pouco mais de cem domicílios e nenhuma estrutura de saúde, ou seja, o perfil ideal para
receber o atendimento de saúde da Marinha. A equipe médica,
enfermeiros e uma sortida canastra de medicamentos seguiram
nas próximas pernadas do helicóptero. Esse tipo de deslocamento
era essencial para a cinemática da operação, pois permitia que
o navio continuasse em andamento sem interromper o trabalho
de assistência aos ribeirinhos. Chegando pelo ar, muitas milhas
a frente do Carlos Chagas, as equipes de terra podiam trabalhar
normalmente e, hora depois, eram recolhidas pelas lanchas.
Esse processo se repetiu no dia seguinte, 11 de setembro.
Pela manhã em benefício da comunidade Paurá, que fica na Boca
do Paraná do Mocambo, um dos tantos atalhos que cortam as
águas do Amazonas. À tarde o Tucano levou as equipes até Santa
Cruz do Amazonas, um ajuntamento de duas dezenas de casas
modestas empinadas sobre palafitas. Em meados de setembro,
as águas ainda estavam bem altas para aquela época do ano,
mas pelo menos os ribeirinhos já conseguiam por o pé em terra
firme quando desciam as escadas de casa. Entre junho e julho
não tinham muitas opções: ou subiam na canoa amarrada à
entrada, ou da porta mergulhavam direto no rio.
A bordo do Carlos Chagas a situação era um tanto
parecida. Exceto as equipes de atendimento, a maioria da tripulação já não colocava o pé em terra há quase três dias quando
Itacoatiara apareceu por boreste. Com seus quase 90 mil habitantes, o município é, segundo o IBGE, o terceiro mais populoso
município do estado do Amazonas. Isso dá uma boa idéia de
quanto é rarefeita a ocupação demográfica na Amazônia. Em
Itacoatiara registra-se menos de dez habitantes por quilômetro
quadrado. Deve ser verdade. Pelo menos naquele fim-de-semana,
em que a tripulação do Carlos Chagas tomou conta da cidade,
era difícil encontrar muita gente pelas ruas. Certamente, o calor
sufocante era outra boa razão. Em vista disso, muitos preferiram
o aconchego refrescante do ar condicionado que tinham a bordo.
A segunda-feira chegou com um misto de melancolia
e ansiedade. Faltavam pouco mais de cem milhas para chegada
em Manaus, e isso era razão suficiente para que cada um a
bordo fizesse seu balanço pessoal daquela comissão. Havia ali
tripulantes que acumulavam em sua carreira quase dois mil dias
de mar a bordo do Carlos Chagas, enquanto outros se iniciavam
na vida marinheira navegando pela primeira vez num rio. A
maioria era veterana em diversas comissões, e mesmo assim
continuavam demonstrando um entusiasmo de novato. A razão
era que o tempo entre a partida e a chegada se enchia de histórias inesquecíveis, de casos pessoais que tocavam o coração, de
sorrisos agradecidos pelo muito que se podia fazer por quem tem
tão pouco. Os relatórios de atendimento podem trazer números
frios, mas o arquivo de boas lembranças devolvia o rosto e a voz
a cada ribeirinho atendido por aquele navio.
Após o almoço o Tucano decolou para levar as equipes
até duas comunidades ribeirinhas. Em São José do Amatari e
Benjamim Constant seriam realizados os últimos atendimentos
daquela comissão. A aeronave fez três pernadas antes de seguir
definitivamente para Manaus, onde os outros Tucanos do HU-3
o esperavam. Após cumprirem com dedicação sua tarefa de apoio
às operações do NAsH Carlos Chagas, os pilotos retornavam
para casa. Infelizmente, não puderam ouvir as palavras de uma
professora da escola pública de Benjamim Constant, que ao vêlos descer na comunidade, exclamou: “Este voo foi inesperado,
quando eu vi pareciam anjos vindos do céu.” Pareciam mesmo,
e que esses anjos continuem a voar sob os céus da Amazônia.
Manaus estava ali, a poucas milhas, mas o Carlos Chagas
navegava sem pressa, como que descansando sobre os ombros do
Amazonas, parecendo coma aquele peixe-boi que lhe serve de
símbolo. Após 22 dias de comissão todos concordavam que o lema
“Saúde aonde houver vida” havia sido aplicado com distinção.
Navio e tripulação bem que faziam por merecer um “Bravo Zulu.”
Quando o sol se pôs naquela tarde, exatamente às
17h52m, o convoo vazio reunia toda a tripulação para o cerimonial da bandeira. O silêncio era profundo enquanto o Pavilhão
Nacional era arriado, drapejando sobre as águas poderosas do
Amazonas. Naquele momento, e nas cores de nossa bandeira,
reuniam-se todas as grandezas deste país. Lá estava o verde das
matas, o azul mais puro do céu, e o ouro mais rico que há sobre
essa terra: a solidária, soberana e brava gente brasileira.
Página 125: As últimas cheias causaram muitos prejuízos nas comunidades ribeirinhas amazônicas. As precárias condições das construções que se encontravam no Paraná
do Albano (AM) obrigaram que a distribuição de medicamentos fosse feita na varanda da escolinha local. Um pequeno detalhe na grandeza da missão. Páginas 126/127:
Sentindo o coração do Doutor Montenegro bater a 600 HP. A equipe da Praça de Máquinas não descuida de suas atribuições, esteja o navio navegando ou atracado num
porto. A força da embarcação depende desse carinho cheio de conhecimento técnico.
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O Navio Veio... e me Salvou
Histórias e Relatos dos Ribeirinhos da Amazônia
H
á dez anos, uma cabocla residente em Boca do Mineiroá, uma localidade perdida as margens do rio Solimões,
virou notícia em todo o país. Em sua certidão de batismo consta o nome de Antonia Régia, mas sabe-se lá
porque, era conhecida por todos como Elvira. E foi assim que o Brasil a conheceu, e torceu por ela. Tinha
24 anos à época, e era mãe de dois meninos pequenos. Em fins de outubro de 1999, durante uma comissão de atendimento ao
Pólo Solimões “A”, os caminhos de Elvira e do NAsH Carlos Chagas iriam se cruzar de forma emocionante. Fundeado próximo
a Tamanicurá, um povoado formado por 40 casas modestas, distante mais de 600 quilômetros da capital amazonense, o Carlos
Chagas lançou suas lanchas com equipamentos, medicamentos e equipes médicas. Em consultórios improvisados no campo
de futebol que ficava próximo, os clínicos começaram o atendimento aos ribeirinhos. As filas haviam se formado desde cedo
e Elvira, senha na mão, esperava sua vez. Rotineiramente, os médicos fazem uma avaliação geral dos pacientes, procurando
identificar a causa dos males relatados. Não é raro, devido à falta de recursos locais e à própria inibição dos ribeirinhos, que
haja certa dificuldade em diagnosticar casos mais graves. No caso de Elvira, após um procedimento simples, o médico encontrou
um caroço em seu seio e mostrou-se bastante preocupado pela possibilidade de ser um câncer de mama. O fato é que ali, e
num raio de centenas de quilômetros, não havia meios de fazer uma melhor avaliação do caso da cabocla e, se necessário, dar
início ao tratamento. Tudo indicava que o caso de Elvira caminhava para o mesmo calvário já conhecido por tantos brasileiros.
Mas o fato chegou aos ouvidos de um jornalista que estava a bordo do Carlos Chagas fazendo a cobertura da comissão. Em
pouco tempo a história da cabocla chegou aos gabinetes de Brasília, montou-se uma verdadeira “operação de guerra”, como
manchetaram os jornais na época, e Elvira foi retirada da pequena Boca do Mineiroá de helicóptero e embarcada num naviohospital. Em poucos dias estava internada no Hospital da Aeronáutica, em Manaus, onde os exames mostraram que o tumor,
afortunadamente, não era maligno.
A história da pequena Elvira teve uma enorme repercussão, provocando um longo debate entre os que condenavam
o uso de tão grande aparato em favor da ribeirinha, e aqueles que achavam plenamente justificável todos os esforços empreendidos para ajudá-la. Todavia, o que as partes envolvidas na polêmica não sabiam, é que para a Marinha do Brasil aquele era
apenas mais um entre tantos casos que exigiram o empenho profissional e humano de suas equipagens. A diferença naquele
episódio tinha sido a divulgação, e a celeuma criada por alguns órgãos de imprensa. No mais, para as tripulações dos Navios
da Esperança, aquela tinha sido mais uma missão cumprida.
Casos assim passam pela vida de médicos, dentistas e tripulantes dos NAsH da Flotilha de Saúde a cada momento.
Difícil é participar de uma comissão em que algum caso em particular não cause apreensão e uma torcida ansiosa por um final
feliz. A conta é bem simples: pegue três navios de assistência hospitalar navegando por milhares de milhas de rios, multiplique
por milhares de atendimentos realizados a cada comissão. Como resultado teremos uma Elvira em cada ribeira. Acontece,
que para todos os envolvidos nas missões de AssHop, qualquer vida humana vale o esforço para que o atendimento chegue até
ela. Nunca se pode prever quando um caso será mais grave, mais dramático ou exigirá mais empenho. Portanto, o que vale é
a prontidão e o empenho na função.
Ao anoitecer, quando findam as missões do dia, os convoos dos NAsH se transformam em ponto de encontro de
tripulantes. À essa hora a aeronave já está penteada e coberta e, de tão acostumados, poucos se incomodam com o ronco dos
motores do navio. Corre uma brisa fresca que empurra para o rio o resto de calor do dia. É o ambiente para lembrar da família
e dos casos. Após dar a última olhada no Tucano ali quieto em seu ninho, um integrante do Destacamento Aéreo Embarcado
(DAE), com mais de 60 comissões e quase 900 dias de mar, rememora: “Uma senhora um tanto aflita apareceu na barranca quando
estávamos quase encerrando a faina da manhã. Pelo olhar dos enfermeiros que a atenderam dava para perceber que o caso era de certa gravidade. Só
faltava o paciente. Depois entendemos que não era ela, mas seu filho. O rapaz, que devia ter uns quinze anos estava em casa, incapaz de chegar até
o atendimento por conta de uma infecção que lhe tomava a perna. A causa segundo ela tinha sido um prego enferrujado. Foi preciso acompanhar a
mãe até onde ele estava. Fomos eu e um médico, achando que seria possível resolver o caso. Chegamos na base de uma elevação e ela nos disse que o
rapaz estava lá em cima. Me perguntei várias vezes porque alguém morava num lugar como aquele e jamais consegui uma resposta que me deixasse
satisfeito. Mas, lá fomos nós morro acima até o casebre que ficava como que equilibrado no topo do morrote. O rapaz tinha a perna gangrenada pelo
tétano e sentia dores horríveis. Não havia como retirá-lo dali por terra, ele não resistiria. O médico estava impotente. A solução foi chamar por rádio
Páginas 128/129: Um brinde à guarnição do Doutor Montenegro e a todos os tripulantes embarcados nos Navios da Esperança. Guerreiros que deixam o convívio
de sua própria família para ajudar brasileiros que vivem no isolamento da maior floresta do planeta. Página 130: No convoo o oficial de lançamento e pouso (OLP)
direciona a aeronave que parte para mais uma missão. As operações aéreas são uma constante na rotina de bordo, seja no reconhecimento aéreo, no transporte das equipes
médicas ou durante uma Evacuação Aeromédica (EVAM).
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uma aeronave, e contar com a perícia do piloto para conseguir pousar
num espaço menor que esse convôo. Enquanto o Tucano se aproximava,
tivemos que enrolar o rapaz na colcha em que estava deitado e arrastá-lo
para fora. O helicóptero hoverava na tentativa de encontrar um ponto de
contato. Voava poeira, palha, galinha pra todo lado. O máximo que o
piloto conseguiu foi apoiar um esqui sobre barranco e nos fez embarcar o
mais rápido possível, pois a posição era crítica. Não deu para ter muito
cuidado com a vítima. Umas pancadas e uns gritos de dor foram inevitáveis. E lá fomos nós para o hospital de Belém. Soubemos dias depois
que o garoto estava salvo, mas tinha perdido a perna. Na situação em
que estava foi um lucro enorme.”
Tinha sido mesmo. Em se tratando da região amazônica, é comum que pequenos problemas se tornem casos graves
de saúde. A razão disso muitas vezes está na dificuldade de
encontrar atendimento médico e medicamentos, nas crenças
populares, nos precários métodos de tratamento de água, na
falta de saneamento, nos péssimos hábitos higiênicos ou na pura
e simples falta de informação, ou seja, razão é que não falta.
O piloto de uma aeronave conta a situação deplorável
em que um bebê chegou ao posto de tratamento instalado
durante a Comissão Purus, considerada por todos como das
mais difíceis de toda a programação da Flotilha de Saúde: “A
mãe parecia muito jovem e muito pobre. Era um tipo bem caboclo. A criança que segurava no colo tinha a cabeça coberta
de feridas. O médico que a atendeu não teve muito trabalho
para identificar a causa do problema. O couro cabeludo do
pobrezinho estava tomado por pediculose. Piolhos! Eles tinham
causado tanto estrago que a pele era uma ferida só. Dava pena.
E a razão era muito simples: a mãe nunca tinha lhe dado um
banho. Olha o que a gente encontra por essas ribeiras?”
Em outro ponto da Amazônia, um médico de 24
anos, embarcado no NAsH Carlos Chagas, teve bons motivos
para rir. Durante uma consulta a bordo a paciente já chega
com o diagnóstico: “Ela me disse logo que estava na menopausa.
Quando eu perguntei por que ela tinha certeza disso, me respondeu que
sentia tudo o que as amigas mais velhas diziam que era coisa da menopausa, aqueles calores, inchaços e a falta de menstruação. Preenchi a
ficha já não acreditando muito naquela história. A mulher tinha apenas
44 anos, e nada menos que 17 filhos. Para não decepcioná-la propus
que fizéssemos um exame para averiguar a situação. À saída, não lhe
dei a resposta que esperava, mas a única que o exame comprovava: nada
de menopausa, mas o 18º filho estava a caminho.”
Nos 12 pólos atendidos durante as comissões, os
problemas de saúde vão dos mais básicos aos mais complexos,
passando por enormes variações. Os médicos e dentistas são
unânimes em afirmar que muitos males que afetam quase
todas as comunidades ribeirinhas estão relacionados à falta
de educação. Os efeitos se revelam em problemas simples
como conseguir ler uma receita ou manter cuidados básicos
com a higiene pessoal. A turma da saúde vai improvisando
para contornar a situação, passando receitas com desenhos
substituindo palavras. Por exemplo, onde aparece o sol ao
lado de um traço significa que o paciente deve tomar um
comprimido durante o dia, já se aparece uma lua... bem, viu
como é fácil? Vale tudo no esforço de se fazer entender, pois
a luta pela saúde não admite trégua.
Nessa luta também estão engajados os agentes comunitários de saúde. Quando os NAsH estão em comissão
os agentes circulam pelas comunidades convocando as pessoas, notificando as equipes de AssHop sobre pacientes que
exigem uma consulta domiciliar e organizando os pontos de
atendimento. Esse é uma trabalho silencioso, e não acontece
apenas durante a presença dos Navios da Esperança, mas tem
continuidade por todo o ano, pois é assim que o agente se
mantém informado sobre as condições de saúde da comunidade. Em Menino Deus de Ipaupixuna, o agente comunitário
informa sobre as dificuldades mais comuns que afligem sua
gente: “Aqui nós enfrentamos muitos problemas mesmo. O que mais
tem por aqui é desinteria, problemas com a água. Tem algum tempo que
estamos usando um modelo de filtro fabricado em Santarém. As pessoas
não podem usar a água do rio sem tratamento. As crianças são as mais
prejudicadas, pegam verminose e para tratar é difícil e falta recurso. Para
levar uma pessoa ao médico só de rabeta e a viagem é longa. Comprar
um remédio é outra dificuldade. Quando a Marinha vem é uma grande
ajuda, melhor se viesse mais vezes.”
O Agente Comunitário de Saúde também comentou
sobre o aumento da incidência de diabetes entre os ribeirinhos,
o que é facilmente comprovado pelos médicos. A doença vem
campeando entre as comunidades, principalmente em função
da mudança dos hábitos alimentares. Apesar das distâncias, o
alimento industrializado tem chegado à mesa do ribeirinho e
desbancado os produtos da terra, que eram a base da dieta.
Quando o mal aparece, se agrava rapidamente por conta da
falta de atendimento, de medicamentos, e da própria dificuldade que tem o doente para entender e seguir o tratamento.
As doenças não fazem distinção de idade, gênero ou
cor. Nem respeitam fronteiras, ainda mais num mundo onde
tudo é verde e água. Onde as distâncias, as carências e as necessidades irmanam a todos. Recentemente, a tripulação do
NAsH Doutor Montenegro teve mais uma oportunidade de
mostrar a solidariedade do brasileiro. Quem conta o episódio
é o Comandante da embarcação: “É por isso que somos chamados
de Navios da Esperança. Por tudo que vemos acontecendo nessas ribeiras,
se o navio não estiver passando naquela hora e naquele local exato, é
muito provável que um óbito ocorra. Estávamos navegando no rio Javari,
que é o limite do Brasil com o Peru. Enquanto nossas equipes estavam
atendendo nas localidades brasileiras, do outro lado do rio, na margem
peruana, observei uma senhora que abanava uma camisa. Eu estava no
passadiço vendo a cena pelo binóculo e ordenei que o navio retornasse.
Alguma coisa acontecia na margem e queria averiguar. Por conta de acordos internacionais, não podíamos dar atendimento, nem mesmo atracar
naquela margem. Mas afinal, eram seres humanos. Quando chegamos
mais perto havia muita gente na ribeira, mas como a situação parecia
calma, comandei que voltássemos a descer o rio. Foi quando duas grandes
canoas abarrotadas de mulheres e crianças partiram da margem e vieram
ao nosso encontro. Mandei parar o navio e embarquei aquela gente que
vinha pedir atendimento. Pessoas com febre, com dores intensas e todo o
tipo de problemas. Mas um caso nos marcou profundamente. Havia um
garoto, de uns dez ou onze anos, de quem a mãe tinha tentado extrair um
dente à força, na base da pancada. Isso tinha acontecido na noite anterior
e a boca do garoto era um enorme abscesso. Nós demos atendimento, mas
tínhamos que entender que na situação em que viviam, era a escolha entre
a dor desesperada e a dor suportável. Não há opção para esse povo.”
O que fazer frente a situações como essas? Tenta-se
o melhor, às vezes lutando contra dificuldades insuperáveis
ou de difícil compreensão. No atendimento às comunidades
Página 133: Não se espante: isso não é uma emergência. É apenas a realidade com que os médicos da Marinha se defrontam nas comunidades ribeirinhas por onde
passam. A missão deve seguir em frente e não é a distância de um centro médico que vai atrapalhar o trabalho.
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Os Navios da Esperança − A Marinha na Amazônia
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indígenas, também alvo do trabalho da Flotilha de Saúde em
apoio aos pólos da FUNAI, não poucas dificuldades precisam
ser superadas. Quando se faz necessário remover um indígena
o trabalho de convencimento nem sempre é bem sucedido.
Na aldeia Manauai, em Roraima, uma menina de apenas dois
anos sofria de hidrocefalia e sua remoção foi recomendada
pelos médicos e apoiada pelos próprios funcionários do órgão
federal que administrava o posto indígena. Só não foi possível
demover a família da criança, que aferrada a seus costumes
causaram uma grande frustração ao pessoal do NAsH e,
involuntariamente, a própria criança.
Os Navios da Esperança seguem uma programação
que tem sido ditada pela experiência e pela logística que envolve toda a operação nos rios da bacia amazônica. Em geral,
os 12 Pólos de Saúde são atendidos em duas oportunidades a
cada ano, sendo, preferencialmente uma vez a cada semestre.
Assim, há uma rotatividade entre os NAsH para que as comunidades programadas não fiquem sem atendimento durante
um longo período. Em situações emergenciais a rotina precisa
ser alterada. Isso ocorreu durante as últimas grandes cheias
que afetaram a região. A calha principal do rio Amazonas,
seus vários tributários, paranás e igarapés subiram a níveis
elevadíssimos, registrando recordes que bateram as cheias de
1922, 1976, 1989 e a de 1953, até então considerada como
a maior da história.
Em 2009, a Marinha do Brasil precisou deslocar seus
meios operativos para socorrer as comunidades ribeirinhas,
assoladas por uma tragédia sem precedentes. A Operação
Marinha Solidária, vinculada a Operação SOS Enchente,
prestou socorro às vítimas das enchentes no interior do Estado
do Amazonas. Os municípios de Anamã, Borba, Barreirinhas,
Manacapuru e Itacoatiara foram os principais focos do trabalho dos NaPaFlu Pedro Teixeira, Amapá e Rondônia, que
auxiliaram entre outras tantas atividades, na evacuação e no
transporte das comunidades atingidas, nas distribuição de
víveres e no controle do tráfego aquaviário, que ameaçava
moradias e embarcações já em precário estado; e dos NAsH
Doutor Montenegro, Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, que se
encarregaram do atendimento médico, odontológico, laboratorial e de vacinação. O apoio de todos esses meios foi de
fundamental importância nas atividades da Defesa Civil, da
Vigilância Sanitária e da Secretaria de Saúde do Estado do
Amazonas, que puderam usar as embarcações da Marinha
como plataforma de trabalho.
A parceria da Marinha nessas situações é ponto de
honra. Mesmo porque, os Comandos estão conscientes da
realidade da região amazônica. Sabem que a participação
do Poder Naval é quesito insubstituível na manutenção da
integridade do nosso território, e que poucos conhecem
aquele pedaço do Brasil tão bem, e há tanto tempo, como as
tripulações da Flotilha do Amazonas. Gente que vive para o
rio e dá tudo pela Pátria.
Em geral, no passadiço dos NAsH não há muito
tempo para conversa. Ali, atenção, prontidão e competência
estão no topo da lista de prioridades. Mas de vez em quando,
enquanto o navio cruza um trecho livre de rio e nenhuma
operação está em andamento, pode ser ouvida aqui e ali uma
história marcante. Aproveitando o tempo entre as marcações
na carta náutica, um Cabo vai relatando o caso que testemunhou: “Nosso navio tinha deixado uma comunidade não fazia muito
tempo e seguia para Manaus. Logo depois recebemos uma chamada pelo
rádio de um regional. Tinha acontecido um acidente de moto naquele
mesmo lugar, coisa feia, tinha gente muito ferida. Não sei como pode num
lugar desses, mas parece que tinha batido com um carro. Colocamos a
lancha na água para dar o primeiro atendimento enquanto o pessoal do
DAE preparava o helicóptero para uma emergência. Reduzimos a marcha
do navio para aguardar notícias da ribeira. O patrão da lancha avisou
que estava voltando com duas vítimas que precisavam ser levadas para
um hospital. Foi só encostar e embarcar as duas macas na aeronave. Era
uma menina e o pai dela que estavam na moto. Depois ficamos sabendo
que só ele tinha sobrevivido. A filha não suportou.”
O trabalho do pessoal a bordo dos Navios da Esperança é assim: cheio de compensações e decepções, pois
elas andam de mãos dadas no dia-a-dia de quem atende
pelas ribeiras da Amazônia. As equipes da Marinha lutam
sem descanso para que a vida saia sempre vitoriosa. Nem
sempre o consegue, mas não desiste nunca, nunca se entrega
enquanto vida houver. Por esse espírito, que impregna todas
as comissões de todos os Navios de Assistência Hospitalar, as
comunidades vêm reconhecendo que tem alguém que olha
por elas, e que, onde estiverem, sempre haverá meios de fazer
chegar esperança, saúde e cidadania.
Em abril de 1999, durante uma AssHop na localidade
de Curralinho, no Pará, a equipe médica recebeu uma pequena carta, escrita por uma ribeirinha de 13 anos. Em poucas
linhas ela conseguiu expressar o sentimento de gratidão que
as comunidades ribeirinhas alimentam pelo trabalho humanitário que a Marinha do Brasil desenvolve na Amazônia.
“Gostaria de dizer a todos vocês que eu nunca havia
visto em toda minha vida um trabalho prestativo que ajudasse
nossos velhinhos a ter de volta a sua visão. Eu pensava que
era só Deus que ajuda as pessoas que há muito tempo não
enxergavam, mas me enganei. Não é só Deus que ajuda as
pessoas, mas sim seus filhos que são todos vocês, acho que
quando vocês eram crianças não pensavam em nada, mas
Deus mostrou o caminho certo e vocês o escutaram”.
A Marinha do Brasil, a Flotilha de Saúde e todas as
equipes envolvidas nas operações de assistência hospitalar,
crêem sinceramente que estão no caminho certo, pelo bem
dos nossos irmãos da Amazônia e pelo progresso do Brasil..
Página 135: Improviso cheio de sabedoria. Além das doenças, muitos ribeirinhos sofrem de um mal ainda presente na imensidão da Amazônia: a falta de educação
básica. Os médicos então se viram como podem aviando receitas adaptadas aos poucos conhecimentos dos pacientes. Páginas 136/137: Lá vem o “novato”. O Tenente
Maximiano é o mais novo Navio da Esperança a ser incorporado à Marinha do Brasil. Chegou com toda disposição para operar em benefício das populações ribeirinhas
atendidas pelo 6o Distrito Naval, sediado em Ladário (MS). Páginas 138/139: Mobilidade, flexibilidade, adaptabilidade. Seja qual for o termo usado, estará bem
escolhido para definir a aeronave orgânica que guarnece os NAsH. O Esquilo monoturbina é a melhor solução para operar dentro das condições que exige a região amazônica.
Páginas 140/141: A noite cai dando novas cores ao céu da Amazônia. Com o Tucano 89 “peiado” e “penteado” em seu convoo, o Carlos Chagas encontra-se fundeado
ao largo de Aramanaí, uma pequena comunidade localizada no rio Tapajós. Na manhã seguinte mais trabalho está à espera nas ribeiras. Páginas 142/143: O apito
soa forte no convés de um Navio da Esperança. Para todas as tripulações que navegam por águas interiores brasileiras o sopro forte desse marinheiro faz lembrar a missão
que se renova a cada dia: levar saúde à população ribeirinha. Página 144: O Sol vai caindo e a noite em breve irá imperar. Antes que a escuridão cubra totalmente as
águas e as matas da Amazônia, a lancha de um NAsH segue para recolher uma equipe médica que encerra mais um dia de luta pela vida.
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Editor
Carlos Lorch
Texto
João Augusto Rodrigues
Fotografias
Alexandre Durão, Christian Knepper (pág. 21), Domingos Tadeu
de Oliveira Pinto/PR (pág. 14), Margi Moss (págs. 26 e 30),
Monica Lorch (pág. 25)
Acervo/coleção
Bertolini (fotografia nas páginas: 130/131),
Departamento Hidroviário da Secretaria de Transporte do
Estado de São Paulo − DH-SP (fotografia na página: 64),
Eletronorte (fotografias nas páginas: 45 e 57),
Fundação Biblioteca Nacional - Brasil (Mapa de autor desconhecido “Mapa das Cortes”, de 1749, na página: 34),
Grupo André Maggi (fotografia nas páginas: 66/67),
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais − INPE (imagem
nas páginas: 16/17),
Museu Histórico Nacional – MHN (Óleo sobre tela de Edoardo
de Martino “Combate Naval do Riachuelo”, na página: 38),
Reuters (fotografias nas páginas: 42, 84/85, 98/99, 102/103,
118/119 e 125),
Tyba (fotografias nas páginas: 18, 32),
Theodore Roosevelt Collection, Harvard College Library (fotografia na página: 41)
Ilustrações
Alexandre Argozino (págs. 22/23 e 80/81),
Daniel Uhr (págs. 58/59)
Paginação Eletrônica
Teófilo Luís do Nascimento
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Revisão
Mariflor Rocha e Andrea Bivar
R613e
Rodrigues, João Augusto, 1957 Estradas d’água : as hidrovias do Brasil / João Augusto Rodrigues. - Rio de Janeiro : Action Ed., 2009. 144p. : il.
ISBN 978-85 1. Rios - Brasil. 2. Hidrovias - Brasil. 3. Navegação interior Brasil. 4. Transportes em águas interiores - Brasil. I. Título. II.
Título: As hidrovias do Brasil.
09-4268. CDD: 386.30981
CDU: 656.62(81)
21.08.09 31.08.09 014687
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