Sudário e esquecimento Paulo Herkenhoff

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Sudário e esquecimento Paulo Herkenhoff
Sudário e esquecimento Paulo Herkenhoff
Texto publicado na exposição do artista na Galeria Camargo Vilaça, em São Paulo, em 1993
Uma tela de Daniel Senise nos diz que é impossível esquecer.
Nada mais adequado aqui que um conceito de Sudário: conjectura e desejo de verdade,
fantasia e simulação da verdade, corpo como agente e memória de sua própria história.
O cinismo, naquilo que se caracteriza na pós-modernidade, indaga e inquire se a alma é
prisão da arte. A escatologia historicista da autonomia da arte moderna, estabelecendo
como “destino último” da arte a própria história da arte, converge para a geração de
símbolos na obra de Daniel Senise. O impasse que o artista constrói é resolver entre o
silêncio polêmico das fantasmagorias do teatro de um Beckett (Wilson Coutinho) e aquele
excesso de história como um horizonte ainda possível de criação.
Um vocabulário se articula numa região ambiguamente de memória e de esquecimento.
Figuras constituem um lugar de emanações e flutuações. De um fundo vazio da pintura
de Daniel Senise, espaço conjectural e hipótese de território da fantasmática, o que
emerge são símbolos de um excesso de conhecimento da história da arte, resolvidos
numa rememória pós-metafísica. O fundo vazio, antes do símbolo, jaz como o deserto
da abstração da história da arte. É o horizonte absoluto. E o que se descortina é paisagem
mental. Para Daniel Senise, as apropriações da história da arte são mais que citações
de imagens. O artista aborda como questões e problemas estilísticos, que sabe também
dimensionados numa época que constituem. Figuras em negativo, semelhantes às da tela
“Coruja numa Janela Gótica” (1836) de Caspar David Friedrich, ou, noutra obra, a posição da
menina (imagem extraída da história infantil “Mother Goose”) de costas para o espectador e
apreciando a paisagem panorâmica de símbolos. Essas duas pinturas remetem claramente
à tradição do Romanticismo.
Na segunda pintura, a menina é o sujeito romântico finito frente a infinitude do
universal. Se houver nostalgia nesses símbolos arcaicos, como ossos, a menina também
tem um descortino do futuro. Existe ainda, como no discurso de Böcklin, a possível
remissão a um vocabulário da escuridão, inerente à linguagem de luz, como dúvida
necessidade, angústia e limite. O método de emergência da pintura, como epifania de um
estado da matéria e da imagem, refere-se a uma transmissão de corporeidade e passagem
de um corpo que ali não esteve. O Sudário é então um método e não mais uma imagem.
Põe-se como um procedimento de presentificação das vivências. Se, numa dimensão
narcisista valem as mitologias pessoais e as crenças coletivas tanto quanto a historicidade
das imagens, a pintura, a um nível, propõe-se como uma qualidade da memória. O
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Sudário e esquecimento
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casco do chão do atelier se incorpora à pintura. Nessa operação, a ferrugem do prego transmissão da imagem em vestígios e partículas, orientados para a formação de imagens
- define um trabalho pictórico que se articula com a atmosfera. Na tensão esquecimento,
memória, a pintura de Daniel Senise não simula um envelhecimento do tempo. O que
se arranca e transpõe do ambiente do atelier como “fundo” e ponto de partida da obra é a
própria matéria do mundo impregnada num corpo, a pintura. A superfície será, então,
o próprio abismo. Na iconologia do Daniel Senise, um fragmento de um quadro, vestígio
da história da arte, é um símbolo readymade. Marcel Duchamp considerava que tudo partia
do readymade, desde a pintura mais pessoal e, no entanto, extraída de um tubo de tinta
industrial, até, em última análise, de um de nós, que saímos dos readymades que seriam
nosso pai e mãe. Na obra “Despacho” [310-93] de Daniel Senise a dupla silhueta de mulher,
extraída do “Retrato da mãe do artista” (1883) de Whistler, aporta, mais um nível icônico ao
trabalho do Sudário. Postas frente num diálogo mudo de uma mesma mãe, é uma espera e
uma situação especular. Está subjacente à delicada atmosfera e ao pathos distante da mãe
de Whistler, a idéia de transmissão da vida e transferência de uma imagem.
A cópula e a procriação, já se disse, como o espelho, reproduzem a imagem.
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