Corpo entre emoção, emoção com corpo
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Corpo entre emoção, emoção com corpo
Corpo entre emoção, emoção com corpo: pensando a polissemia do corpo teatral Gyl Giffony Araújo Moura Humberto Maturana e sua biologia cultural oferecem uma importante contribuição para o pensamento sobre corpo e emoção. Desta forma foi a nós apresentado pela Profa. Dra. Bya Braga em módulo intitulado “Corpo e emoção”, realizado no curso “Teatro: conexões contemporâneas”, da Escola Pública de Teatro da Vila das Artes, implementada pela Secretaria de Cultura de Fortaleza. O referendado biólogo chileno construiu uma importante teoria ao associar aspectos biológicos e contextos socioculturais nos quais estão inseridos os indivíduos. É assim que ele considera corpo e emoção. Não os aborda como matéria orgânica isolada, meramente funcional ou estrutural de um mecanismo vivo, mas os vê como portadores de significados erigidos na convivência intersubjetiva, bem como carregados das normatividades e tensões inerentes a vida cotidiana e ao processo civilizador 1, conceito cunhado pelo sociólogo Nobert Elias (2000), que se refere à adequação corporal, regras de civilidade e controle de pulsões perpetrados no sujeito da Educação. Tanto Maturana (2001) quanto Elias, assim como também o pensamento de Michel Foucault em torno do corpo como realidade biopolítica, enfatizam que a noção corrente para educado ou civilizado é uma construção sinonímia para o enquadramento da espontaneidade do comportamento e da vida afetiva dos indivíduos nos moldes dos ditames sociais hegemônicos. O corpo carrega marcas que por vezes antecedem seu devir neste mundo, mas perpassam sua existência. Introjeções que lhes são postas desde a infância por costumes e regras sociais, reafirmadas na dinâmica do presente e na interação com os grupos sociais com os quais interage: família, escola, grupo de amigos, lugares de trabalho, grupos religiosos, espaços de lazer, entre outros. O corpo e a emoção, suas posturas, estados e representações possuem significados atrelados ao senso comum, e qualificados por uma consciência coletiva: “este é um bom corpo”; “esta emocionalidade é ruim, pois é triste”; “esta posição não é adequada para uma reunião de negócios”; “a proximidade desses dois corpos sugere amor”. Só chegamos, portanto, a entendimentos como esses por causa de informações e 1 Nobert Elias procura compreender o processo civilizatório observando que ele “expressa a autoconsciência do Ocidente. Poderíamos inclusive afirmar: a consciência nacional. Ele resume tudo em que a sociedade ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas ‘mais primitivas’. Com esse termo, a sociedade ocidental procura descrever em que constitui seu caráter especial e tudo aquilo de que se orgulha: o nível de sua tecnologia, a natureza de suas maneiras (costumes), o desenvolvimento de seu conhecimento científico ou visão de mundo, e muito mais” (Elias, 2000, p. 5). comunicações que nos foram transmitidas pelo ambiente social e seus agentes; são eles que vão formando nossas subjetividades. Outro singular reconhecimento efetuado por Maturana (2001) aponta para a manifestação concomitante do corpo e da emoção no organismo vivo, fazendo-nos repensar uma tradição teatral que parece somente reconhece dois caminhos, ambos bipartidos: “a emoção que gera ação” ou “ação que leva à emoção”. Todas as ações como operações de um sistema vivo acontecem como parte de sua dinâmica de estados, tendo ele um sistema nervoso ou não, mas incluem a dinâmica do sistema nervoso quando ele está presente. Portanto, como operações na dinâmica de estados de um sistema vivo, todas as ações são fenômenos do mesmo tipo, independentemente do domínio no qual um observador afirma que elas acontecem, quando ele ou ela as leva em consideração ao ver o sistema vivo em relação com um meio. (...) As emoções são disposições corporais dinâmicas que especificam os domínios de ações nos quais os animais, em geral, e nós seres humanos, em particular, operamos num instante. Conseqüentemente, todas as ações animais surgem e são realizadas em algum domínio emocional, e é a emoção que define o domínio no qual uma ação (um movimento ou uma postura corporal interna) acontece, independentemente de se, para um observador que vê o animal num meio, ela ocorre como uma ação abstrata ou concreta, ou sem depender do que especifica aquela ação (movimento ou postura corporal interna) como uma ação de um tipo particular (MATURANA, 2001, p. 128; grifo nosso). Resta explícito que ao mesmo tempo em que corpo condiciona emoção, a emoção congrega corpo enquanto faces de um mesmo prisma. Corpoemoção, emoçãocorpo. Em linguagem, um corpo que se apresenta reflete uma emoção que se dá na leitura do texto cênico sugerido, e a emoção dá-se enquanto visualidade na ação, externa ou interna ao corpo. O que Maturana ressalta com propriedade é a existência sociocultural da manifestação corporal e emocional. Corpo e emoção não partem de um vazio, nem são ponto inicial; trazem previamente consigo experiências tanto do observado quanto do observador que condicionam suas expressões e percepções. As construções de gosto, as vivências, as disponibilidades sensíveis, os capitais culturais e intelectuais dos indivíduos, por exemplo, é que irão condicionar os graus de relação e tessitura de um espaço de sensibilidade para a experiência estética. O aludido teórico remove o corpo e a emoção de um lugar meramente subjetivo, psicológico ou biológico para pensar como esses elementos manifestam-se (1) em relação com o meio e/ou o observador; (2) como este meio e/ou observador interfere no corpo e na emoção que é mostrado; (3) como o meio e/ou observador percebe a expressão corporal e emocional. Ele suscita-nos algumas reflexões: a partir de que lugar o corpo pode ser pensado? Que corpo teatral nos é pertinente? O que torna um corpo teatral? Indo além da biologia, partamos da simples constatação que um corpo é uma matéria, viva ou morta. Imersa em teatralidade, consideramos ser qualquer matéria (objeto, tecido, espaço, luz, som) um corpo potencialmente vivo, pois aparece eivada de significado, intenção, tensão e relação, mesmo que ainda aparentemente morto na sua falta de uso enquanto recurso cênico. Um corpo teatral apresenta-se pulsante por que alguém lhe imprime ou sugere existência, alguém ou algo o preenche seja no silêncio, seja com palavras, seja com luminosidade, seja com a fricção explícita ou implícita de um outro corpo. Como afirma Maturana (1998), “somente se aceitamos o outro, o outro é visível e tem presença”. Um corpo teatral é portanto uma matéria em interação, é um corpo social, em relação coletiva. Um corpo teatral é fruto de uma escolha: a opção pelo estar presente, vivo e cênico. Conforme expõe o teatrólogo alemão Hans Thies-Lehmann (2007, p. 332), O corpo vivo é uma complexa rede de pulsões, intensidades, pontos de energia e fluxos, na qual processo sensório-motores coexistem com lembranças corporais acumuladas, codificações e choques. Todo corpo é diverso: corpo de trabalho, corpo de prazer, corpo de esporte, corpo público e corpo privado. A concepção cultural sobre o que é “o” corpo está sujeita a flutuações “dramáticas”, e o teatro articula e reflete essas concepções (p. 332). Um corpo teatral é um corpo de polissemia, possui variados sentidos conforme seja o contexto de sua interpretação. O teatro trabalha diante dos usos e sentidos que as diferentes culturas atribuem ao corpo, portanto, o corpo teatral é tão diverso quanto o imaginário e os sistemas simbólicos que cada grupo social relaciona ao corpo e à emoção. Basta exemplificarmos isso tendo em vista a variedade de ênfases que a cultura teatral emprega ao corpo: a biomecânica de Meyerhold, as ações físicas de Stanislávski, a mímica corporal dramática de Drecreaux, o treinamento físico e de reconhecimento pessoal do performer exercitado por Grotowski, os princípios de antropologia teatral de Barba, entre outros. Em viés poético, podemos citar o gestus social em Brecht, o corpo sem órgãos em Artaud, o afastamento da “polícia na cabeça” buscada por Boal, etc. Podemos destacar ainda a polissemia do corpo teatral em um aspecto constitutivo de qualquer arte cênica: o relacional. Essa característica é pertinente a duas atitudes que constituem necessariamente o teatro: fazer e ver, consoante sugere Dénis Guenoun (2004). Sugerimos, portanto, que o corpo entre emoção e a emoção com corpo acontece na condição de alteridade, considerando que a arte teatral é realizada para e com o outro, entre atuante (aquele que faz) e espectador (aquele que vê). Compreendendo aqui o público também como um agente compositor do texto cênico (o observador, que nos fala Maturana), e não aquele que somente contempla passivamente. Aquele que observa reconhece corpo e emoção a partir de seu contexto real e do contexto ficcional que lhe é teatralizado. A alteridade, esse existir a partir do outro, dimensiona também um reconhecimento corporal e emocional fundado em qualidades de sensibilidade, afeto e contágio. Na percepção do atuante: sensível em conhecer forma, volume, peso, articulações, pulsações e possibilidades de seu corpo e emoção; afeto em perceber forças que o afeta, e também forças pelas quais afeta, aqui entra o ambiente, os objetos, a luz, o ar, a temperatura, um olhar e outros inúmeros afetos; contágio no que se refere a potência de êxtase, de presença e fervor, no viés que Antonin Artaud poetizava e clamava em seu teatro de crueldade. De Artaud também é importante lembrar sua visão do ator como um atleta afetivo, imagem e conceito que possui consonância com a escrita que estamos articulando. Na via do espectador: o sensível dá-se em sua leitura do que observa, da sua distinção das emoções ao reconhecer a ação, as classes de comportamento, os domínios de ação e os estados corporais; afeto em se dispor à interação, mostrando-se um ser poroso que recebe e emana forças para a cena, reforçando os conectivos do “entre” e “com”; contágio ao colocar-se como agente compositor do texto cênico, ao aceitar o convite para a presença efetiva que o teatro deve fazer. O que pode então o teatro diante de um corpo polissemântico? Gostaríamos como conclusão deste exercício de escrita apontar algumas sugestões, ou melhor, possibilidades em andamento: 1. Reconhecendo o corpo enquanto um processo de construção social, em estado determinado pela história ou condição de vida, podem os processos teatrais buscar libertá-lo das amarras que o prendem do mais pleno exercício imaginativo. Des/educar ou des/civilizar o corpo, provocar o atuante e/ou espectador a reconhecer seu barbarismo, buscar um re-ligare entre a estética e a lógica; 2. Buscar conexões entre o ver e o fazer, entre o observar e o observador, compreendendo a simultaneidade orgânica e social de corpo e emoção, bem como o caráter de jogo pertinente ao ato teatral; 3. Experienciar a polissemia do corpo teatral, almejando reconhecer que corpo e emoção são pertinentes a ética, política e poética que nos é pungente; (...) Referências bibliográficas ARTAUD, A. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1993. BARBA, E. A canoa de papel: tratado de antropologia teatral. Tradução Patrícia Alves Braga. Brasília: Teatro Caleidoscópio, 2009. ELIAS, N. The Civilizing Process – sociogenetic and psychogenetic investigations. Massachusetts: Blackwell, 2000. GUENOUN, D. O teatro é necessário? Tradução Fátima Saadi. São Paulo: Perspectiva, 2004. LEHMANN, H-T. Teatro pós-dramático. Tradução Pedro Sussekind. São Paulo, Cosacnaify, 2007. MATURANA, H. R. Cognição, ciência e vida cotidiana. Organização e tradução Cristina Magro, Victor Paredes. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.