Arqueologia e Museus - Museu Nacional de Arqueologia

Transcrição

Arqueologia e Museus - Museu Nacional de Arqueologia
Fig. 1 Museu da Lucerna, Castro Verde
Pormenor de Lucernas
fotografia de Luís Raposo
Luís Raposo
Arqueologia e Museus:
experiências portuguesas recentes
Apresenta-se uma selecção de experiências recentes de musealização de acervos
arqueológicos portugueses, em de museus, colecções visitáveis e de sítios arqueológicos
musealizados.
A partir das observações feitas, realiza-se uma reflexão mais alargada acerca da relação
entre arquitectura e programa museológico, entre virtual e real, entre visível e oculto e
entre próximo e distante, inseridos numa avaliação crítica do actual ambiente societário
promotor de uma “cultura de eventos”. Defende-se a necessidade do estabelecimento de
redes dentro do domínio específico dos museus de arqueologia.
The article focuses on recent experiences displaying Portuguese archaeological assets in
museums, collections opened to the public and archaeological sites.
Based on observation, it analyses the relation between architecture and museum
program, virtual and real, visible and concealed, near and distant and criticises modern
“entertainment culture”. It supports the need to establish networks among archeology
museums.
PALAVRAS-CHAVE: Arqueologia, Arquitectura de museus, Novas tecnologias da
comunicação, Funções museológicas, Rede de museus de arqueologia.
Director do Museu Nacional de Arqueologia; Professor Convidado do Departamento de História da
Faculdade de Letras de Lisboa; Presidente da Comissão Nacional Portuguesa do ICOM
[email protected]
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exposições
1. Os pontos de partida
H
á meses, convidados para nos dirigirmos a estudantes de antropologia e
património, entendemos dar um título algo provocatório à nossa intervenção:
arqueologia, o mais democrático dos patrimónios. O nosso ponto de vista era o
de que os bens arqueológicos existem em todo o lado, da aldeia à cidade, literalmente
debaixo dos nossos pés, e preenchem um amplíssimo leque de expressões sociais,
que vão do instrumento comum à alfaia litúrgica, da pedra bruta integrada em muro
seco à cantaria finamente rendilhada, ou ainda do mais pequeno objecto móvel ao
monumento megalítico, ao castro e ao castelo.
Esta proximidade, espacial e afectiva, só encontra paralelo na etnografia. Por isso
certamente arqueologia e etnografia tiveram raízes em grande parte comuns e viveram
décadas de mãos dadas. As diferenças entre ambas são todavia importantes e jogam
em favor da arqueologia, segundo cremos. Resumem-se numa expressão: o carácter
distanciador do tempo. Tudo permite associar a lucerna romana, o candil islâmico, a
candeia medieval e a lamparina que ainda vemos em casas ou em mercados rurais.
E a todas estas peças chamamos património, valorizando talvez mais, no plano
estritamente pessoal, aquelas a que nos ligam memórias familiares. Mas se perguntados
pela sua valorização colectiva, as mais antigas adquirem novo estatuto. São-nos
próximas, mas vêm de “um país distante” chamado passado. Constituem por isso
plataformas mais comuns de identificação no plano colectivo.
Daqui resultam consequências. Uma delas, mais formal do que substancial, é a de
que na actual legislação, o património arqueológico é, todo ele, independentemente
de processos casuísticos, considerado como “património nacional”, querendo tal
significar que se encontra ipso facto protegido ao nível mais baixo previsto na lei, o
da inventariação, sem ser necessária a sua inclusão em listas nominativas específicas,
conforme se requer para as restantes categorias de bens patrimoniais. A mesma
orientação legal encontra-se expressa no plano das leis que regulam a actividade
arqueológica de campo e protegem os sítios e vestígios arqueológicos, os quais devem
ser todos preservados, fisicamente ou através do seu registo. Estes princípios, aplicados
actualmente extensivamente depois da introdução no ordenamento jurídico português
das directivas europeias referentes a impactes ambientais, têm conduzido a uma
modificação radical da actividade arqueológica, quer em termos disciplinares, quer em
termos sociológicos. E têm originado quantidades imensas de colecções, as mais das
vezes sem estudo adequado, que colocam enormes problemas de conservação ou até
de mera arrumação. Vivemos já em Portugal a “arqueologia a duas velocidades” que há
décadas se diagnosticou noutros países desenvolvidos, sendo certo, lamentavelmente,
que a velocidade mais lenta, a da investigação fundamental, tem entre nós nos últimos
anos sido confinada a expressões quase residuais. As implicações daqui derivadas e
a proposta de medidas para lhes dar resposta extravasam o âmbito do presente texto,
senão pela observação que faremos do lugar dado a reservas, laboratórios, áreas de
estudo e outras facilidades postas ao serviço das colecções.
Noutro plano, mais substantivo embora menos cadente, importa verificar as
consequências da valorização social dos bens arqueológicos, quanto à melhor
percepção que deles possuem e se esforçam por proporcionar os diferentes agentes
responsáveis pela sua mediação social, arqueológos, patrimonialistas, conservadoresrestauradores ou museólogos. Falamos aqui da tensão, porventura insolúvel, entre ruína
e reconstituição, ou entre fragmento e restauro.
Para o arqueólogo, a ruína e o fragmento são sempre preferíveis à sua recriação, sob a
forma de edifício ou vaso de cerâmica refeitos, quiçá funcionais e por isso imediatamente
mais perceptíveis e úteis. Mas existem aqui duas dificuldades. Uma, de ordem teórica, é
que “a ruína em si não é uma verdade, mas somente a recordação dessa verdade, e como
recordação, encontra-se joeirada e filtrada” pelo olhar do presente (GIL, 2006, 122).
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A outra, de ordem prática, é que no acto comunicacional se
requer não somente a existência de emissor e receptor, mas
também referentes comuns a ambos. Quer isto dizer que a
atitude puramente conservacionista conduz a padrões de
elitismo porventura intoleráveis socialmente, até porque
ela só faz sentido gnoseologicamente se entendermos que
a ruína ou o fragmento são em igual proporções aquilo que
foram, aquilo que o tempo fez deles e ainda aquilo que neles
entendemos seleccionar para hoje ver. As sucessivas cartas
internacionais sobre questões de restauro de monumentos
(Carta de Veneza, 1964; Carta do Restauro (Roma), 1972
e 1987; Carta de Lausana, 1990; Carta de Malta ou de La
Valetta, 1992; Carta de Cracóvia, 2000) espelham bem
este sentimento crescente de complexidade, de cuidado e
mesmo de hesitação no balanceamento entre conservação
e restauro (atente-se na remissão cada vez mais insistente
para o conceito de “reversibilidade”, que afinal não passa
de uma ilusão, por vezes perigosa).
Como em tudo na vida, a solução simples de dilemas
complexos está na postura optimista de que o “caminho
se faz caminhando”, com o fomento da mais ampla
pluralidade de abordagens. Não existe apenas conservação
ou restauro, tout court. Sem procurarmos ser exaustivos,
ocorre-nos imediatamente uma considerável diversidade de
avenidas: consolidação, anastilose, reconstrução parcial,
reconstrução total, reabilitação, réplica… Assim e no que
se refere aos sítios arqueológicos, é fora de dúvida que a
sua musealização deverá ser diversificada, preservando em
absoluto a ruína, ao ponto de a manter enterrada, quando
for caso disso, ou reconstituindo-a pesadamente, para que
nela se possa entrar, como num túmulo, ou se possa sentar,
como num teatro. Há lugar para tudo, inclusive para a
“destruição” do monumento antigo em nome do seu uso
hodierno. O mesmo se diga quanto aos objectos guardados
em museus. Como referia Adília Alarcão, é preciso dar ao
visitante “o direito à informação e fruição dos vestígios
do passado”, abrindo e não fechando horizontes, indo ao
ponto de lhe permitir ter acesso às diferentes percepções
que um mesmo objecto ou objectos equivalentes podem
conter: “deformados, fragmentados, ‘patinados’ por longo
enterramento”; “limpos e tratados por via química”;
“restaurados e reconstituídos”. Em todos os casos, a atitude
do mediador entre a ruína/fragmento e o corpo social
contemporâneo deve ser a de proporcionar a descoberta
dos “sentidos ocultos” de que falava Umberto Eco, que
inevitavelmente requerem um esforço de aproximação
ao “ao país distante” que é o passado, um esforço pois de
aprofundamento histórico, sem o que existe o perigo de
que esses bens se convertam em autênticos simulacros.
Existirão receitas quando ao tipo de apropriação dos
bens arqueológicos mais adequado em cada situação?
Mais concretamente, existirão estratégias de mediação
diferenciadas para locais onde se registam as ruínas (os sitos)
e para locais onde se guardam preferencialmente os bens
móveis que nelas se recolhem (os museus)? Não cremos
que haja receitas. Mas podem de facto ocorrer linhas de
orientação gerais, resultantes da natureza, das virtualidades
e das limitações próprias de cada um desses espaços.
Reflectimos em tempos sobre o assunto, apresentámos as
nossas ideias (RAPOSO, 1999a) e julgamos que as mesmas
mantêm actualidade. Os sítios musealizados oferecem,
sobre os museus, as vantagens do contacto “directo” com
os vestígios do passado, nos seus respectivos contextos,
podendo além disso servir necessidades sociais estimáveis
(refuncionalização de espaços antigos, turismo de massas,
etc.). Os museus, ao contrário, favorecem a integração
do particular em visões mais amplas, permitindo além
disso que se exerça, nas condições ideais e com serviços
complementares adequados, essa magia singular, umas
vezes pessoal e intransmissível, outras vezes colectiva, que
é a do confronto com a aura do objecto do passado e a
descoberta dos seus “sentidos ocultos”.
O panorama até aqui exposto constitui uma ferramenta
que nos permite antecipar e nos prepara para a previsível
diversidade do real, quando o pretendermos observar.
E prova de que o real é deveras variado é a dificuldade
existente em catalogar as diferentes modalidades de “ser”
museu. A tipologia do ICOM inventaria um total de mais
de três dezenas de tipos de museus, agrupados em oito
categorias. Mas trata-se de uma classificação demasiado
institucional, pouco sensível ao sentido social dos museus.
Por isso se verifica que proliferam na bibliografia da
especialidade as tipologias museais, baseadas em factores
tais como: a propriedade (públicos, privados, associativos,
cooperativos, etc.), a competência administrativa (estatais,
municipais, etc.), o âmbito geográfico (nacionais, regionais,
locais, de sítio, etc.), a amplitude temática (monográficos,
disciplinares, mistos, etc.), a natureza das colecções
(mistos ou exclusivamente arqueológicos, e neste caso
com que tipo de orientação dominante: histórica, artística,
antropológica…), a natureza dos recursos museológicos
usados (museus tradicionais; novos museus; ecomuseus;
museus virtuais; museus polinucleados; etc.), as condições
de instalação física (edifícios preexistentes sumariamente
adaptados ou profundamente remodelados; edifícios
construídos de raiz, e neste caso com que tipo de
prioridades no que se refere à relação, normalmente tensa,
entre “arquitectura de autor” e programa museológico).
Poder-se-ia imaginar ser interessante seguir este guião
e aplicá-lo ao universo dos museus com colecções de
arqueologia em Portugal. Mas tratar-se-ia de algo tão
ambicioso que ultrapassaria completamente o âmbito de
um mero artigo em revista da especialidade. Tenha-se em
conta o crescimento exponencial, a verdadeira explosão, de
museus desta tipologia no nosso País. Segundo os inquéritos
do Instituto Nacional de Estatística seriam menos de quatro
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exposições
dezenas em meados do século passado, tendo duplicado
em inícios da década de 90 do mesmo século (v. os dados
incluídos em RAPOSO, 1999b, a completar com a leitura
de RAPOSO, J., 1993 e RAPOSO, L., 1993), para atingirem
cerca de centena e meia no início deste século. A este
respeito convém assinalar, e lamentar, o empobrecimento
verificado na qualidade dos dados disponíveis nos inquéritos
de 1998 (Inquérito aos Museus em Portugal) e 2000 a 2002
(O Panorama Museológico em Portugal), no que aos museus
de arqueologia se refere, uma vez que passaram a ficar
espartilhados dentro de uma tipologia que reduz a sua efectiva
representatividade nacional. Com efeito, as percentagens e
os quantitativos aí indicados como “museus de arqueologia”
(20 museus, 4 % do total, no inquérito de 1998; 33 museus,
5,6% do total, no de 2000-2002) são totalmente equívocos,
uma vez que não dão conta da existência, muito mais
abundante, de museus com colecções de arqueologia, por
vezes até maioritárias, mas que não se reconhecem naquela
categoria estrita, identificando-se antes como museus mistos
ou como museus de história. Este facto torna-se perceptível
nos referidos inquéritos através de pergunta específica sobre
os acervos, onde mais de um quarto dos museus afirma
possuir colecções de arqueologia, que dão origem ao maior
número de sítios representados (quase sete mil no inquérito
de 1998) e ao maior número de objectos dos respectivos
acervos (cerca de dois milhões, aproximadamente 27% total,
de muito longe a maior categoria das colecções recolhidas
nos museus portugueses).
Na impossibilidade prática de abarcar todo este universo,
estabelecemos para o presente texto, conforme solicitação
dos responsáveis editoriais desta revista, um objectivo
bem mais modesto: observar a realidade dos últimos anos
e procurar nela aquilo a que na literatura anglo-saxónica
se costuma chamar de “casos de estudo” ou até de
“exemplos refrescantes” – que os há felizmente no nosso
País. É o que passaremos a fazer, sem pretendermos ser
exaustivos e correndo até o risco do desconhecimento
ou incorrecta avaliação deste ou daquele caso. Cada um
dos exemplos que escolhemos possui em nosso entender,
à sua maneira, algum traço distintivo ou paradigmático,
algum refrescamento, capaz de conferir novo sentido
semântico aos discursos anteriores, depois de realinhados
sintagmaticamente os elementos que os integram.
2. A amostragem
2.1. Museus arqueológicos
Museu da Lucerna, em Castro Verde
Inaugurado já há mais tempo (Abril de 2004), para além da
faixa temporal que entendemos observar (os últimos dois a
três anos), o Museu da Lucerna, de Castro Verde, merece
em todo caso ser retido nesta síntese porque nele se reúnem
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Fig. 2 Museu da Lucerna, Castro Verde
Geral
fotografia de Luís Raposo
alguns aspectos inovadores, dentro de um registo geral de
grande simplicidade, economia de meios, didactismo e
forte implantação na comunidade local.
Trata-se de um museu concebido para guardar e valorizar
publicamente a magnífica colecção de lucernas romanas
provenientes do sítio de Santa Bárbara dos Padrões,
descoberta cerca de uma década antes. Importa recordar
que neste local foi reconhecido um depósito votivo
romano contendo milhares de lucernas, provavelmente
relacionado com actividades de mineração (a cristianização
com invocação de Santa Bárbara é disso sintomática) e
em funcionamento nos primeiros séculos da nossa Era.
Estamos em presença de um achado único até hoje no
nosso País, embora conhecido noutras parte do Império
Romano. As escavações arqueológicas estiveram a cargo
dos Doutores Manuel Maia e Maria Maia, que estudaram
também a colecção de lucernas, publicando uma primeira
monografia em 1997. Chama especialmente a atenção a
diversidade e, frequentemente também, a qualidade técnica
dos temas tratados nos discos das lucernas. Incluem-se
neles numerosas figuras e cenas da mitologia clássica,
assim como representações da vida quotidiana, pública e
doméstica, objectos comuns ou meros motivos decorativos
geométricos. Enfim, um potencial imenso, servido por
iconografia sedutora, ingredientes susceptíveis de servir de
suporte a discursos museológicos variados.
O Museu foi instalado num antigo depósito de mercadorias,
um armazém comercial privado adquirido e recuperado
pela autarquia, mas de que se guardou escrupulosamente
a alma própria, quer ao nível da expressão exterior (ainda
hoje o visitante entra no Museu por baixo de um painel de
azulejos onde se lê “Prazeres & Irmão, Sucessores, Limitada
– Armazém de Produtos”), quer ao nível das volumetrias
gerais do interior (espaço amplo, compartimentado somente
através do mobiliário museográfico, com pé direito elevado
e estrutura de suporte do telhado visível).
Todo o projecto do museu é fruto de uma parceria
estabelecida entre a CORTIÇOL, Cooperativa de Informação
e Cultura Crl, que tem sede no mesmo, e a Câmara
Municipal de Castro Verde. E sente-se o empenhamento
esclarecido da sociedade civil no Museu, tanto ao nível
do seu discurso e actividades, como no que se refere aos
objectos oferecidos num pequeno espaço de loja, onde se
pode adquirir produtos de artesanato ou música tradicional
alentejana.
O projecto museológico foi concebido e posto em prática
pela Doutora Maria Maia, conservadora de museu com
larga experiência. Numa primeira sala, logo depois do
pequeno recinto preambular de entrada (recepção e loja)
apresenta‑se um espaço destinado a exposições temporárias,
que pode ser modelado de acordo com as circunstâncias.
No final, apresenta-se uma reconstituição muito realista
do depósito votivo, quando estava em curso de escavação,
o qual dá passagem a uma segunda sala, paralela à
primeira, consagrada à colecção permanente, organizada
por tipologias e temáticas decorativas. O mobiliário aqui
usado resulta de uma sábia adaptação de vitrinas e balcões
disponíveis para uso no comércio (especialmente adaptado
a ourivesarias, perfumarias ou outras lojas que procurem
mostradores baixos, elegantes e transparentes, susceptíveis
de se ligarem, formando ilhas). Também os suportes de
painéis verticais, destinados à apresentação de elementos
documentais, apresentam características de modulação
e elegância idênticas. No seu todo, este Museu chama a
atenção por uma combinação muito feliz entre a inegável
modéstia dos equipamentos e o muito bom gosto com que
foram escolhidos e articulados, tudo isto acrescido por
uma imagem gráfica agradável e convidativa, divertida até,
quando o deve ser.
A programação do Museu tem procurado manter, com
notável cadência, elementos sempre novos de descoberta,
explorando dimensões que projectam a comunidade
local no universo global da cultura greco-latina.
E os resultados são visíveis, nas múltiplas actividades
escolares de animação cultural realizadas no ou a
partir do Museu. Entre os exemplos mais originais deste
diálogo social está a realização de actividades criativas
pela Escola Secundária de Castro Verde, tendo por base
as colecções do Museu e os temas que elas oferecem.
Fig. 3 Museu de Almodôvar
Exterior
fotografia do Museu de Almodôvar
Cite-se a propósito a realização de um filme, trabalho
da área de projecto de um grupo de alunos do 8º ano
turma B, intitulado “O Pégaso de Alexandria” (este célebre
cavalo alado, símbolo da imortalidade, é um dos motivos
presentes nas lucernas do Museu), de que foi criado um
endereço próprio na Internet, onde se apresenta o “trailer”
e se realizam remissões para conhecimento das lucernas e
do próprio Museu (http://escv.drealentejo.pt/pegaso/museu/
museu.html).
Museu da Escrita do Sudoeste, em Almodôvar
O Museu da Escrita do Sudoeste foi aberto ao público
em Outubro de 2007, pouco depois de ter sido
igualmente dado a conhecer aos interessados nos temas
nele abordados, aquando da celebração das Jornadas
Europeias do Património. Trata-se de uma iniciativa
da Câmara Municipal de Almodôvar, que para o efeito
ouviu e teve em conta as recomendações que lhe foram
feitas por um conjunto de especialistas, a começar pelos
que desde há longo tempo vêem estudando a chamada
“escrita do Sudoeste”, uma manifestação proto-histórica
centrada no território do Sul do Alentejo e Serra Algarvia,
que representa uma das mais antigas escritas europeias.
Do processo indicado resultou a selecção do tema do
Museu. Em vez de, como costuma ser o caso, pensar
em fazer “mais um” museu municipal, cobrindo todos
os períodos históricos e contendo virtualmente todas
as antigualhas encontradas na região, houve aqui a
inteligência de procurar traços distintivos e fazê‑los
centrar naquilo que o concelho tem de realmente
importante, no domínio da arqueologia, fazendo ainda
ancorar todo o projecto numa equipa composta por
técnicos locais e por especialistas de nomeada, entre
os quais cumpre salientar o Prof. Amílcar Guerra.
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exposições
Não é demais salientar a motivação e o procedimento
seguido, porque o tema escolhido, sendo sem dúvida
muitíssimo relevante para Almodôvar (onde se encontra
um conjunto significativo de inscrições em “escrita de
Sudoeste”), está muito longe de ser local, quer quanto à
distribuição dos achados (que se estendem por amplas
regiões do Sul de Portugal e de regiões limítrofes em
Espanha), quer sobretudo quanto ao seu impacte,
importância e significado histórico.
A partir destas premissas, o projecto desenvolveu-se em
dois sentidos. Primeiramente, com a apresentação aos seus
potenciais parceiros, com relevo para o Museu Regional
de Beja e para o Museu Nacional de Arqueologia, ambos
com legítimos interesses e responsabilidades no tratamento
museográfico do tema proposto e com colecções
relevantes para o abordar. Em paralelo, com a adopção
de um projecto arquitectónico moderno, assumidamente
algo arrojado conceptualmente (o que não significa, de
modo nenhum, obra megalómana, de grande dimensão),
servido por museografia depurada e individualizante.
Foram estes os condimentos que levaram a que os
potenciais parceiros tivessem aderido ao projecto.
No caso do Museu Nacional de Arqueologia, o mais
sensível de todos pela quantidade de peças que se
requeria serem cedidas, estabeleceu-se uma relação
protocolar estável, que permite o empréstimo rotativo de
peças e a autorização da replicação das mesmas para,
gradualmente, ir constituindo um corpus de inscrições
de Sudoeste no Museu de Almodôvar, de tal sorte que, a
prazo, seja aí que todo o estudioso da matéria se dirigirá,
por possuir num mesmo espaço a colecção de referência
para o efeito.
O Museu veio a ser instalado em edifício especificamente
vocacionado para o conter, segundo projecto do
arquitecto Simão Janeiro: um volume de percepção
geral paralelepipédica, quase cúbica, com paredes lisas
de alvenaria, rasgadas por quatro janelas de pendor
vertical ao nível do primeiro andar, revestido por parede
decorativa de xisto de deposição laminar ao nível do résdo-chão, na fachada principal com desdobramento para a
fachada lateral, envolvendo uma janela ampla, de canto.
Trata-se de uma construção de traço assumidamente
contemporâneo, mas perfeitamente integrado na malha
urbana da vila, tanto planimetrica como altimetricamente.
Do terraço, desfruta-se uma vista panorâmica do burgo,
com relevo para a emblemática Torre do Relógio, segundo
um plano de vista situado quase ao nível dos terraços
envolventes.
A execução museográfica do guião científico (estabelecido
sob direcção de Amílcar Guerra), assim como a linha
gráfica e a gama de produtos de mercandização (ou
“merchadising”) foram adjudicadas a uma empresa
de arqueologia, a Arqueohoje. Esta empresa, fundada
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em 1995 em Viseu, constitui uma das mais antigas e
conceituadas do seu âmbito, tendo vindo ao longo do
tempo a alargar significativamente o seu campo disciplinar
e geográfico de actuação. Desde 2003 iniciou actividade
no domínio da museografia de centros interpretativos, que
continua até ao presente. Depois do Museu da Escrita do
Sudoeste, criou também, em 2008, o Museu do Território
de Freixo-de-Espada-a-Cinta. E o seu último trabalho, o
Centro de Interpretação à Descoberta do Novo Mundo,
em Belmonte, também chamado, talvez mal, Museu das
Descobertas, inaugurado em Abril de 2009, tem sido
citado com um exemplo da aplicação imaginativa de
recursos multimédia.
Não será preciso grande capacidade de antecipação
para supor que esta situação de encomendante público e
adjudicatário privado, visando a execução de conteúdos
expositivos, ou de museus inteiros, do tipo “chaves
na mão”, tornar-se-á corrente no futuro, como já é no
estrangeiro, a começar por certas regiões espanholas.
Voltaremos a esta questão na parte final do nosso texto,
para chamar a atenção para os perigos inerentes. Todavia,
no caso vertente pensamos que estamos perante um
exemplo de boa aplicação deste tipo de sinergias, tendo
sido condições muito favoráveis para o efeito a delimitação
prévia do conceito de museu pretendido, a construção
de um guião de conteúdos sólido e a clara exigência de
centralidade dos monumentos epigráficos a apresentar.
A partir daqui, as soluções museográficas visam favorecer
uma melhor leitura dos textos insculpidos, o que fatalmente
conduz a ambientes de luz fortemente controlada, paredes
e suportes de cor escura, mesmo negra, e focos incidentes
rasantes. Os elementos documentais surgem sobre
fundos negros, abertos a branco ou outras cores claras,
adoptando‑se estilizações que simplificam a apreensão
dos motivos, convertendo-os em ícones facilmente
memorizáveis, de que se pode extrair, como efectivamente
se faz no próprio logótipo do Museu, abundante matéria
inspiradora para produtos de venda em loja ou promoção
a distancia.
A opção por este tipo de ambientes, facilmente
manipuláveis, que também praticamos habitualmente no
Museu Nacional de Arqueologia, não está isenta de contraindicações. Umas são de sustentabilidade energética: há
muito que se lamenta não se fazer mais uso nos museus
mediterrânicos das magníficas condições de iluminação
natural de que dispomos. Chegou-se a criar um grupo de
trabalho internacional, que integrámos, para reflectir sobre
novos caminhos a seguir neste domínio e monitorizaram‑se
casos de estudo (por exemplo, a sala do auriga no novo
Museu de Delfos). Mas trata-se de um caminho difícil,
porque a solução do tipo “cofre de jóias” continua a ser a
que nos oferece melhores condições de encenação, sendo
certo que toda a exposição é um palco.
Fig. 3 Museu de Arte Pré-Histórica e do Sagrado no Vale do Tejo, Mação
Vaso neolítico em exposição
fotografia de Luiz Oosterbeek
No caso do Museu de Almodôvar existe uma outra
dificuldade resultante desta opção museográfica.
Referimo‑nos ao recolhimento do museu sobre si mesmo,
isolando-o do meio envolvente. Os autores do projecto
tiveram consciência deste problema e procuraram
solucioná‑lo através de redes não totalmente opacas postas
em algumas janelas, de tal modo que é possível vislumbrar
o exterior em certas horas do dia. Num caso, aproveitou-se
muito bem esta filtragem luminosa para apresentação de
uma linha cronológica. Pena é que, neste exemplo como
noutras partes do edifício, que não se tenha tido o cuidado
de escolher caixilharias de desenho e sobretudo de cor
compatíveis com os efeitos pretendidos.
Museu de Arte Pré-Histórica e do Sagrado
no Vale do Tejo, em Mação
Este Museu constitui um bom exemplo do que podem
ser os museus e a arqueologia postos ao serviço do
desenvolvimento social. Debaixo da consigna “pensar
local, agir global”, ele dá expressão a um projecto
amplo e ambicioso em que se juntam as valências da
investigação (sobre as suas colecções e sobre todo o
território), da conservação e da formação académica
(com o apoio de retaguarda do Instituto Politécnico de
Tomar), da comunicação (não apenas no meio académico
mas no quadro social geral) e dos serviços prestados à
comunidade.
A sobredita relação comunitária e territorial constitui o
cimento vertebrador do Museu, dando lugar a um discurso
“orientado – segundo Luiz Oosterbeek, o seu principal
dinamizador – para uma reflexão sobre os processos de
adaptação às modificações ambientais que marcaram o
nascimento da paisagem rural, nas suas diferentes dimensões,
procurando introduzir factores de perturbação dinâmica que
suscitem interrogações”. O mesmo autor acrescenta: “Este
discurso é localizado no tempo, valorizando a dimensão
histórica, mas é sobretudo uma abordagem antropológica
sobre as reflexões dos indivíduos nas sociedades agrícolas
sobre o sentido de futuro, incluindo o futuro para além
da morte. Se a exposição permanente se centra sobre a
Neolitização do Vale do Tejo, a temática global do Museu,
e diversas exposições temporárias procuram reflectir para
além dessa dimensão”.
Herdeiro do “velho” Museu Dr. João Calado Rodrigues,
fundado em 1946 e remodelado em 1986 mantendo o
seu estatuto generalista arqueológico e etnográfico, este
Museu surge na sequência das descobertas de rochas com
arte rupestre, algumas de idade paleolítica, na margens
do rio Ocreza, em 2000. Em 2001, abriu com uma
primeira exposição intitulada “Tempo antes do Tempo
– os Caçadores-Recolectores em Mação”. Entre 2003 e
2005 o edifício foi reestruturado e uma nova exposição foi
inaugurada (“Um Traço na Paisagem – Artefactos, lugares e
modos de vida nas origens da agricultura”).
Para além do corpo principal, um segundo edifício é
consagrado ao núcleo das colecções (não expostas), a
espaços de estudo, a uma zona de mostras etnográficas
(“Espaço Memória”) e a uma área de ateliês de educação
permanente (“Espaço Andakatu”). Este segundo bloco,
situado a pouca distância do principal, possui o carácter
refrescante de centro de investigação criativa que já se
não vai vendo nas nossas universidade e para o qual o
museu pode constituir um providencial enquadramento
institucional. Poderá ser esta uma das mais interessantes
vias a prosseguir no futuro pelos museus de arqueologia,
especialmente os de âmbito regional e local, dando resposta
a uma procura universitária que inevitavelmente crescerá,
na razão directa da implantação dos novos modelos de
ensino prático, virado para o desenvolvimento social.
Finalmente, encontra-se em fase de construção um
terceiro edifício, situado no vale do Ocreza, que passará a
constituir o “Parque Arqueológico e Ambiental do Ocreza
e do Tejo”.
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exposições
O Museu de Mação apresenta-se, por conseguinte, como
uma experiência inovadora e merecedora da maior
atenção não tanto pelas características museológicas mais
tradicionais (a arquitectura dos edifícios, a singularidade
dos espaços expositivos, os recursos museográficos,
a encenação dos objectos, etc.), mas pela amplitude
conceptual do seu projecto, onde se junta local e global,
investigação e animação social, tradição e inovação.
Fig. 4 Cartaz do Museu de Vila Real
http://museu.cm-vilareal.pt/index.php?option=com_content&view=ar
ticle&id=70%3Aanimais-a-solta-no-museu&Itemid=38
Os vários elementos indicados constituem um todo
coerente de recursos que incluem, de acordo com a
sistemática apresentada por Luiz Oosterbeek: a exposição
permanente e a biblioteca, espaços de acolhimento
privilegiado do Museu, em ligação física um como
outro de modo a sublinhar a sua complementaridade;
os roteiros arqueológicos, para visitas in loco realizadas
a partir do Museu; os espaços de memória, situados
em diversas freguesias, incluindo a sede do Concelho,
locais onde se procura recolher o saber acumulado pelos
mais idosos, que é sistematicamente negligenciado na
sociedade actual e no museu dão lugar à construção do
conceito de cultura material; as redes de intercâmbio,
que trazem a Mação um elevando número de pessoas,
e designadamente de residentes de fora do Concelho e
do País.
Esta abertura do local ao global encontra-se facilitada pela
inserção do Museu em redes europeias diversas, umas da
natureza eminentemente científica, outras patrimoniais
ou até artísticas. De acordo com os ciclos próprios
dos seus programas de estudo, numerosos bolseiros e
estudantes de diversos países europeus e extra-europeus
frequentam os espaços do Museu e utilizam as facilidades
que os mesmos conferem, permanecendo alguns todo o
ano. Daqui resulta uma actividade muito diversificada,
que se traduz em projectos educativos, animações sócioculturais, programas de turismo cultural e, claro está, em
programas de investigação.
museologia.pt nº3/2009
82
Museu de Numismática e Arqueologia, em Vila Real
Não obstante a designação, que decorre do núcleo
central das suas colecções, este Museu possui um
âmbito conceptual mais amplo do que a “numismática
e a arqueologia”. O seu Regulamento, realizado já em
cumprimento das disposições da Lei-Quadro dos Museus
Portugueses, é disso testemunho, quando estabelece como
“objectivo primordial… o conhecimento e interpretação da
região em que se insere”, dando conta da “especificidade
geográfica e persistência da actividade humana ao longo
de milénios de ocupação desta zona geraram uma matriz
inigualável” que o Museu deve dar “a conhecer e a sentir”.
Ainda de acordo com o preâmbulo do mesmo Regulamento,
constituem objectivos principais do Museu: a extensão
cultural (actividades de divulgação para o grande público
e muito especialmente para as escolas, assim como outras
iniciativas que visem a divulgação e a fruição cultural); a
inventariação e preservação do acervo que lhe está confiado
em condições adequadas, em termos de conservação; e o
apoio à investigação (no sentido de facultar o acesso às
colecções para estudo, sempre em condições de segurança
para o espólio).
Fica situado em magnífico solar setecentista, a Casa do
Caminho de Baixo, que conheceu diversos proprietários
e teve vários usos, entre os quais o de ter albergado
desde os anos 30 do século passado, durante cerca de
quatro décadas, até à sua extinção, o Museu Etnográfica
do Província de Trás-os-Montes e Alto Douro. A Casa foi
adquirida pela Câmara Municipal de Vila Real em 1982,
que em 1995 a decidiu confiar ao Padre João Parente, para
aí instalar o actual Museu, o qual em grande medida resulta
da sua iniciativa, do seu inquebrantável esforço e até das
suas colecções e daquelas que soube reunir a partir de
ofertas e compras diversas.
A inclusão deste Museu neste nosso elenco exemplificativo
não resulta assim do facto de ter tido criação recente, mas de
ter sido reconfigurado institucionalmente, com a adopção
de planos e práticas museológicas modernas, que cumpre
assinalar, num contexto em que se tornam evidentes os
ganhos que resultam das políticas museológicas nacionais e
da troca de saberes entre os museus e os seus profissionais.
A já referida adopção de documentos regulamentares ao
abrigo da mais recente legislação portuguesa de enquadramento dá um primeiro sinal do refrescamento indicado.
Fig. 5 Museu Arqueológico José Monteiro, Fundão
Epigrafia
fotografia do Museu Arqueológico José Monteiro
Mas ele está também patente na estrutura de conteúdos e
concepção formal do seu sítio Internet (http://museu.cmvilareal.pt). Trata-se de um instrumento de divulgação do
Museu e da sua actividade dotado de ambientes atractivos,
embora graficamente contidos, com informação diversa sobre
a história, as colecções e os objectivos actuais do museu, as
principais notícias de imprensa que se lhe referem, desde 1997,
assim com as exposições temporárias passadas e presentes,
as acções educativas, etc. Alguns dos recursos disponíveis
merecem especial referência: um “arquivo de notícias” que
remonta a 2007; uma página de serviço educativo rica de
conteúdos (onde apenas se pode lamentar a incapacidade de
acesso em linha às apresentações multimédia indicadas); e
sobretudo um sistema expedido, mas eficaz, de visita virtual às
exposições permanentes de arqueologia e de numismática.
No plano das actividades, merecem relevo as exposições
temporárias de temática criativa, mesmo quando a base de
partida são moedas, peças que todos os trabalham em museus
de arqueologia sabem constituir uma enorme dificuldade,
quer em termos de inventário e conservação, como em
termos de exposição e mais ainda em termos de divulgação
e valorização educativa. Veja-se, a título exemplificativo, a
exposição inaugurada no Dia Internacional dos Museus de
2009, intitulada “Animais à solta no Museu”, onde se exibem
55 moedas, de que se podem observar ao detalhe os respectivos
reversos, que figuram gazelas, cabras, touros, cavalos e até
animais imaginários, como centauros, hipocampos, pégasos,
entre outros.
Não podem também ser esquecidos os programas
educativos, direccionados para públicos escolares e
não escolares e contendo frequentemente acções que
extravasam as portas do Museu, como foi o caso de
um percurso e jogo pedonal (“peddypaper”), realizado
nas férias escolares da Páscoa, envolvendo cerca de
100 crianças, que percorreram um trajecto com início
no Museu (após visita às exposições), passando pelo
Seminário de Vila Real, Posto de Turismo, Conservatório
Regional de Música, Governo Civil, Câmara Municipal
e sede do Parque Natural do Alvão – entidades que
demonstraram disponibilidade para colaborar nesta
iniciativa – e terminando no Museu da Vila. A este
acrescentam-se outros exemplos de jogos, onde se
conjugam criativamente os princípios da pedagogia do
“aprender, fazendo” (“hands‑on”).
Museu Arqueológico José Monteiro, no Fundão
Vem de longe a ligação do Fundão à pesquisa arqueológica,
da qual resultaram colecções que levaram o Dr. José Alves
Monteiro a criar um primeiro museu deste âmbito. A sua
memória é por isso, e com inteira justiça, homenageada
hoje na própria designação do museu actual, que surge
no seguimento de um plano de requalificação dos
equipamentos culturais do concelho, de acordo com uma
lógica que importa sublinhar porque nela, ao contrário
do habitual, cada coisa teve o seu lugar, no seu tempo
próprio.
83
exposições
Sabemos bem como muitas vezes o primeiro impulso em
cada terra é o da criação do museu, se possível com obra de
arquitectura nova, mesmo quando não existem colecções
para lhe colocar dentro, as quais depois se procura
parasitar junto de entidades terceiras, sendo no domínio da
arqueologia o respectivo Museu Nacional encarado como
uma espécie de entreposto de abastecimento grossista.
No Fundão fez-se o contrário. Primeiro deu-se início ao
trabalho de inventário de pré-existências arqueológicas e
à pesquisa de terreno. Assim, constituiu‑se em 2003 uma
equipa de estudo de arqueologia; em 2004, iniciou‑se
a publicação da revista “Eburóbriga”, que depois se
converteu em órgão do Museu e vai já no 5º número, com
uma irrepreensível cadência anual de publicação, paralela
à edição dos “Cadernos do Museu”, de periodicidade
ocasional. Finalmente adquiriu-se para futuro museu um
edifício de grande significado patrimonial, situado no
centro histórico da urbe, o Solar Taborda d’Elvas Falcão,
casa do século XVI, de escadaria frontal e balcão, mais
tarde (século XVIII) convertida em palácio. O Museu viria
finalmente a ser inaugurado em 2007,iniciando desde aí
uma actividade intensa, que mereceu já o reconhecimento
nacional através da concessão de uma menção honrosa da
APOM em 2008, na categoria “melhor museu nacional”,
atribuída para premiar “a originalidade e concepção do
espaço museológico”.
No que respeita ao edifício, regista-se que a sua história foi
recuperada e respeitada durante o processo de adaptação
a Museu: continua a ser perceptível a função diferenciada
de cada um dos pisos, inclusive a existência de antigas
lojas destinadas aos animais no piso térreo, diferenciadas
tipologicamente de outros compartimentos contíguos,
para habitação. E, no geral, o visitante quando circula
pelo Museu “sente” o carácter histórico da arquitectura
evolvente, que não se procurou dissimular, mesmo quando
houve necessidade de criar novos ambientes, destinados a
novas funcionalidades. Estamos, pois, perante um exemplo
muito conseguido, de contenção no plano do projecto
arquitectónico – o que é sempre de saudar.
Mas a grande inovação deste Museu ocorre nas suas valências
museológicas propriamente ditas, a começar pelos seus
espaços expositivos e a acabar em toda a gama de serviços
que presta, dir-se-ia mesmo, no conceito de equipamento
cultural que oferece à cidade. Diz o seu director, João
Mendes Rosa, que este Museu “é bem o resultado de uma
determinação plural: autarquia, unidades académicas
e museais várias, universidades, individualidades,
investigadores e a própria sociedade fundanense.” Talvez
como nenhum outro dos que nos foi dado conhecer,
este Museu, simples e económico (custou cerca de 600
mil euros), é fruto de uma construção social baseada em
indicadores de verdadeiro desenvolvimento sustentado, que
são também indicadores de qualidade de vida.
museologia.pt nº3/2009
84
Acima de tudo é esta perspectiva integradora que nos
interessa colocar em relevo. Ela tem tradução da pluralidade
de serviços que o Museu presta, na sua qualidade de “espaço
comunitário de cultura”: exposição permanente (uma
abordagem panorâmica da ocupação humana regional,
devidamente contextualizada em escalas mais amplas, desde
a mais remota Pré-história até ao final do Período Romano,
com relevo especial, quase monográfico, para domínios em
que as colecções são especialmente representativas, caso
da epigrafia latina), exposições temporárias, laboratório de
conservação e restauro, auditório, biblioteca especializada
em História e Arqueologia, edição livreira e de produtos
originais para venda na loja, espaço Internet (Sala
Universia)… e uma simpática cafetaria, onde se podem até
ler os jornais do dia, nacionais, regionais e locais.
A mesma sensação de serena felicidade, desprende-se dos
espaços expositivos, que conseguiram construir ambientes
próprios, onde se conjugam harmoniosamente, sem excessos
barrocos ou novo riquistas, os recursos da imagem e do texto,
postos ao serviço da melhor intelecção das peças. A imagem
de reconstituição de ambientes, relativamente realista, mas
sem excessos, é usada como envolvência, dentro de uma
linha de traço original, de que rapidamente o visitante se
apercebe e antecipa, sala a sala, causando-lhe um conforto
muito agradável ao longo de todo o percurso. Os textos
são frequentemente dotados de uma poética própria,
obedecendo igualmente a um linha narrativa construída
com grande sensibilidade. Os sistemas de exposição de
peças, mormente a epigrafia, são engenhosos e eficazes,
reforçando o sentido geral da encenação. A iluminação geral
de ambiente e a iluminação direccionada para objectos é
usada com grande critério.
A tudo isto soma-se um sítio Internet moderno, que não se
limita a ser um mero livro de endereços, com a repetição
estática de serviços disponíveis no próprio Museu.
Nele encontramos e expressão viva da instituição, com o
arquivo de notícias, imagens e vídeos, a possibilidade de
encomenda de bibliografia, o anúncio de novas actividades,
a remissão para outros sítios e motivos de interesse na cidade,
etc. Haverá muito ainda a fazer no aprofundamento nos
serviços prestados por este sítio (por exemplo, digitalização
e disponibilização de bibliografia própria, de fichas de
actividades pedagógicas e de ficheiros bibliográficos, ligação
à biblioteca municipal, visita virtual a sítios arqueológicos
do concelho, construção de narrativas baseadas nos textos,
imagens e peças da exposição, etc.), mas uma vez mais
estamos perante um produto que constitui um instrumento
atractivo, útil e dotado de personalidade própria, sem se ter
sentido obrigado a trilhar a via da exuberância feérica de
conteúdos e recursos digitais gráficos, tão patrocinada pelas
empresas que nisso têm interesses comerciais e tão sedutora
para quem não possui um lastro de solidez e autenticidade
que possam dispensar o fogo de vista.
Fig. 6 Museu Municipal de Portimão
Interior geral
fotografia de Luís Raposo
2.2. Museus mistos
Museu Municipal de Portimão
Sonhado e aguardado há longos anos, pelo menos desde
os anos 80 do século passado, o Museu Municipal de
Portimão foi inaugurado por ocasião dos festejos do Dia
Internacional dos museus de 2008. Trata-se de um obra
de grande envergadura (cerca de 10 milhões de euros), na
qual se mobilizaram fundos municipais e fundos europeus
do Plano Operacional de Cultural, em partes sensivelmente
iguais.
O edifício e toda a sua história, inclusive o processo da
sua adaptação às actuais funções, constituem por si mesmo
património do Museu, que este promove. Trata-se da antiga
fábrica de conservas “Feu Hermanos”, cujas instalações
foram adquiridas pela Câmara Municipal de Portimão em
1986, já com a finalidade da musealização. As obras para o
efeito decorreram a partir de 2004, segundo um projecto de
adaptação arquitectónica muito arrojado, pela conjugação
entre dois princípios aparentemente inconciliáveis: o
respeito e até a promoção do significado histórico das
pré‑existências; e a construção de novos volumes interiores,
adaptados às novas funcionalidades e aos novos conteúdos,
que se não pretenderam fixar exclusivamente no anterior
papel industrial do local. Ou seja, não se quis neste caso
realizar, como seria mais expectável, talvez mais fácil e
seguramente igualmente aceitável pela comunidade local,
uma “mera” reconstituição da antiga fábrica conserveira.
Quis-se executar um conceito de museu mais ambicioso,
tendo para o efeito havido a felicidade de encontrar um
programa arquitectónico igualmente audacioso.
Desta primeira observação resulta um dado que identifica e
distingue este Museu: o programa museológico antecedeu
e comandou os passos que depois se fizeram a todos
os níveis. Dizia-nos há dias um dos mais eminentes
arquitectos portugueses que os bons clientes fazem os
bons arquitectos, querendo com isso significar que a
existência de programas de conteúdos bem estruturados,
exigentes, inflexíveis quando tal tiver de ser, constitui
também condição indispensável do bom desempenho da
arquitectura. Ao percorrer os espaços do Museu Municipal
de Portimão sente-se que este princípio foi plenamente
executado, com assinalável êxito.
Não sendo um museu industrial, o Museu de Portimão não
deixa em todo ocaso de dar grande relevo à actividade
conserveira, de tal modo que nenhum visitante deixa de
entender o espaço em que está, o qual começa por ser
perceptível desde o exterior (que mantém totalmente a
expressão fabril, nas volumetrias, nos dísticos identificadores,
inclusive no ritmo de janelas que, mesmo cegas, se
retiveram na fachada principal) e é depois apreendido
interiormente por nele se ter mantido a configuração global
de duas naves, de 5000 m2 no conjunto, em sistema de
“espaço aberto”. A isto, acresce obviamente o próprio
discurso museográfico. Este, seguindo a realidade fabril
pré-existente, consagrada toda uma das naves, a chamada
“sala do descabeço”, para explicar o processo de fabrico,
na sua “parte suja”, através de equipamentos originais
85
exposições
manipulados por figuras escultóricas em tamanho natural,
frias e neutras na sua cor branca, mas quentes e cúmplices
na sua proximidade humana. Na segunda nave, de amplo
pé direito, é feito o acompanhamento do processo, até à
expedição e comercialização do produto final.
Na perspectiva deste nosso texto, muito do discurso anterior,
assim como das colecções em que se baseia, constituem já
de si matéria de reflexão, porque se trata em bom rigor de
arqueologia industrial. Mas, como sublinhámos, este Museu
pretende e consegue alcançar outra dimensão. Nas palavras
do seu director, José Gameiro, “a missão do Museu e o seu
programa deverão contribuir para a concretização de quatro
grandes objectivos: investigar, salvaguardar e promover o
património histórico; valorizar a relação da cidade com o
rio; interpretar e divulgar a evolução histórica, territorial
e social da comunidade; e, por fim, potenciar a formação
de novos públicos, desenvolvendo uma oferta cultural de
qualidade.” Ou seja, trata-se de um “Museu de Sociedade,
de Identidade e de Território”, um museu que, além do mais,
pelo que oferece e pela localização de que desfruta à beira
do Arade, constitui como um centro cultural e de animação
social da cidade de Portimão e do Algarve no seu todo.
A arqueologia mais tradicional encontra-se presente na
restante área expositiva, constituindo um dos principais focos
do primeiro percurso (“Origem e Destino da Comunidade”)
da exposição de longa duração do Museu, sugestivamente
intitulada “Portimão – Território e Identidade”. E também
aqui detectamos a originalidade e a qualidade museográfica
que fazem a distinção deste Museu. As diferentes fases de
ocupação humana são apresentadas não apenas através
das peças arqueológicas que as documentam, mas
também, em certos casos sobretudo, através do recurso a
instrumentos de mediação atractivos, como é o caso do
diorama, da maqueta em grande escala, da reconstituição
funcional, etc. A própria apresentação dos materiais
arqueológicos, enquanto tais, é quase sempre estudada por
forma a conferir-lhes expressividades próprias, plásticas
ou funcionais, constituindo por vezes exemplos que não
repugna passar a aceitar como paradigmas. É o caso da
vitrina com a rica colecção de ânforas do Arade, que
preenchem magestaticamente todo um sector da exposição,
dispensando grandes construções cénicas em seu redor.
Por fim, mas não por último, importa sublinhar o exercício
deste Museu nas áreas educativas (com uma oficina muito
activa), documental (com um centro de documentação
bem apetrechado) e de animação cultural geral (para o que
muito contribui a existência de um magnífico auditório
com lotação para 180 pessoas).
No conjunto, todos estes equipamentos e sobretudo a
visão conceptual dada ao Museu, fazem dele um dos
mais conseguidos exemplos da moderna museologia
portuguesa, estando especialmente adaptado a uma
região onde se juntam tradições locais e cosmopolitismo,
museologia.pt nº3/2009
86
onde confluem públicos os mais diversos, com relevo
para os que demandam o Museu em período de férias,
por vezes no âmbito de pacotes turísticos. Não estamos
nada certos que, seja na grande dimensão conceptual
e física que efectivamente tem, seja nos ambientes e
soluções museográficas que adoptou, aproximando-se
intencionalmente do conceito de “pavilhão da descoberta”,
este seja um modelo a seguir noutros ponto do País, em
museus municipais generalistas ou até de temática mais
restrita. Mas seguramente que, na região onde está, é o
Museu de que o Algarve carecia.
Museu Municipal de Penafiel
O novo Museu Municipal de Penafiel, inaugurado em Março
de 2009, constitui porventura a mais recente experiência
portuguesa de requalificação profunda de uma já antiga
instituição museológica municipal de tipologia mista, isto é,
com colecções de temáticas variadas, neste caso arqueologia,
história local e etnografia. Com efeito, o Museu inicial data
de 1948, adquirindo ao longo do tempo as condições
suficientes para que em 2003 tivesse podido aderir à Rede
Portuguesa de Museus. Para além do núcleo-sede agora
refeito, o Museu conta com algumas extensões, das quais
uma, o castro de Monte Mozinho, constitui um conhecido
sítio arqueológico, escavado desde meados dos anos 40 do
século passado, por Elísio Ferreira de Sousa, cujos trabalhos
foram continuados, intensificados e ampliados aos aspectos
de valorização patrimonial por Carlos Alberto Ferreira da
Almeida e, mais recentemente, por Teresa Soeiro.
Poder-se-ia dizer que estamos aqui perante mais um exercício
de requalificação e ampliação de um edifício histórico
pré‑existente. Mas dizendo isto, pouco ou nada se diria,
porque este exemplo dá conta de um tipo de concepção
projectual e articulação multidisciplinar diferente de todas
as que encontrámos nos casos precedentes.
Com efeito, o edifício pré-existente, o palacete setecentista
dos Pereira do Lago, situado em pleno centro histórico e
comercial de Penafiel, no nobre edifício onde posteriormente
funcionou o Colégio do Carmo e mais tarde o Liceu, foi
neste caso objecto tanto de uma profunda reabilitação e
reconfiguração de interior, como de uma ampliação de
grandes dimensões (ainda que discretamente inserida na
malha urbana), que veio conferir nova vida ao Museu, em
todas as suas valências. Esta intervenção, da autoria de
Fernando Távora e José Bernardo Távora, revela padrões
de enorme qualidade, quer na sua vertente patrimonial
(pode agora “ver-se melhor”, quer dizer compreender‑se,
o interior do palacete e a sua relação dinâmica com a
rua e o largo fronteiros), quer na sua vertente criativa
contemporânea, onde se realiza o prodígio de permitir o
enlace das naves de exposição por corredores de trânsito e
serviços periféricos, situados uns em pisos inferiores, com
ligações de serviço ao exterior, muito funcionais, e situados
Fig. 7 Museu Municipal de Penafiel
Sala de exposição de arqueologia
fotografia de Luís Ferreira Alves
outros no bloco mais antigo, em pisos superiores, de onde é
possível percepcionar a planta geral dos blocos expositivos,
naquilo que se poderia considerar uma inesperada quarta
dimensão arquitectónica, destinada a visualização em
plano aéreo.
Pressente-se, quando se circula pelo Museu, que o projecto
de arquitectura precedeu o programa museológico e
impôs-lhe as suas normas. Esta ideia é confirmada pelos
responsáveis da empresa a que foi confiada a execução
museográfica (Cariátides, produção de projectos e eventos
culturais, Lda.), os designers Gabriella Casella e Francisco
Providência, os quais afirmam: “A presença de uma
arquitectura resolvida e serena fez com que a concepção
do layout expositivo demonstrasse o máximo respeito
pelo traçado arquitectónico existente, de modo a permitir
uma clara leitura da forma (arquitectura do espaço)
como suporte do conteúdo (exposição).” E noutro ponto
acrescentam: “Neste sentido o tratamento museográfico dos
conteúdos a apresentar na nova exposição permanente do
Museu, constituiu sobretudo um exercício de adequação
de suportes à natureza e exibição das peças, explorando
metaforicamente a singularidade de cada espaço e
procurando tanto quanto possível não comprometer a
arquitectura com soluções expositivas definitivas.”
Este procedimento é susceptível de introduzir contrariedades
em matéria museológica. Nuns casos, as tensões poderão
situar-se na relação entre museologia e arquitectura.
Um exemplo clássico é o do ambiente luminoso e da
ligação com o exterior: algumas transparências e linhas de
visão para o exterior, inerentes ao conceito arquitectónico,
poderão conflituar com o intimismo desejado para
determinados temas, ou até com a pura e simples
necessidade de filtragem da luz exterior, por questões de
conservação das colecções. Noutros casos, os obstáculos
poderão decorrer da relação entre conceito e execução
museográfica, sendo tradicional defrontar nesta ocorrência
a dificuldade do justo equilíbrio entre a centralidade das
colecções e toda a parafernália de recursos gráficos e
equipamentos a que hoje se pode recorrer, postos ao serviço
da criação de “eventos”, comercializando conteúdos, reais
ou inventados, quaisquer que eles sejam, e sem respeito
pela natureza específica da instituição museal.
87
exposições
A advertência feita no parágrafo anterior vale como tal:
uma advertência, a que aliás voltaremos nas considerações
finais deste texto. Mas funciona aqui principalmente como
suporte para afirmarmos que neste Museu os escolhos
e perigos indicados foram ultrapassados com enorme
eficácia funcional e, o que não é de somenos, com
elegância formal.
Para que assim seja, conta em primeiro lugar a dimensão
conceptual e funcional do Museu, que é muito completa,
dando conta da totalidade das chamadas “funções
museológicas”. No plano expositivo, apresenta-se um
conjunto de cinco salas temáticas, ou ambientes como
ali se prefere designar, a justo título: Da Identidade,
Do Território, Da Arqueologia, Dos Ofícios, Da Terra e
Da Água. Cada uma possui a sua própria linguagem,
havendo em todas o recurso a soluções inventivas,
originais, “de última geração”. Alguns desses recursos
revestem um carácter esfusiante ou histriónico (caso
do chamado “olhómetro”, uma máquina para espreitar
virtualmente o território) – o que se justifica quando, como
é o caso, se situam no espaço quase vestibular, de iniciação
ao museu. Outros, a maior parte, envolvem padrões de
elegante serenidade, quase intimista (caso do candil da
primeira metade do século X, apresentado sob a forma
de holograma desenvolvido pela Universidade de Aveiro).
Acresce o uso, muito conseguido, de filmografia histórica,
e uma narrativa textual de grande qualidade literária.
De notar que este tipo de recursos é quase sempre posto ao
serviço dos conteúdos e das colecções, de forma adequada.
Se num tema como “Da Identidade”, por força da natureza e
escassez e de espólio original, os ambientes e recursos são
muito obrados (chegando a construir-se uma caixa central
que quase preenche a sala), já no último tema, “Da Água”,
são as embarcações originais e os próprios mecanismos de
moagem que ocupam os olhares e exercem o fascínio.
A sala de arqueologia merece referência especial pela
forma de montagem das peças dentro e fora de vitrinas,
assim como pela reconstituição, subtil, mas eficaz, de
elementos em falta e ainda pela evocação da história
das investigações no concelho e especialmente em
Monte Mozinho. Já a encenação de uma escavação
arqueológica feita no centro da sala, nos oferece mais
dúvidas, tanto pelas limitações decorrentes da sua
execução técnica, como principalmente pela centralidade
que lhe foi conferida. Independentemente do sucesso
junto de públicos escolares, que estará certamente
garantido, mas poderia também ser alcançado noutro
espaço, preferencialmente ao ar livre, julgamos que esta
concreta solução conduz irresistivelmente o visitante mais
exigente a supor que não existem colecções para expor
em quantidade suficiente ou que os locais estudados não
forneceram ainda documentação bastante para ser tratada
museograficamente – o que é injusto porque bastaria
museologia.pt nº3/2009
88
ter presente a magnífica planta de Monte Mozinho para
perceber como a partir dela se poderia realizar, através
de maqueta, real ou virtual, uma animação narrativa em
relação interactiva com as colecções daí provenientes.
A toda esta dimensão visível acresce neste Museu
uma retaguarda exemplar a vários títulos: inventário e
gestão de colecções, serviços educativos, laboratórios
de conservação e restauro, centros documentais, linha
editorial (onde se inclui um revista prestigiada, os
“Cadernos Museu”)… Neste “lado oculto” das coisas,
impressionaram-nos especialmente as áreas de reserva,
tanto a de arqueologia, muito bem equipada, como a
reserva geral situada em cave, dimensionada para o futuro,
com zonas de expurgo e facilidade de acesso de cargas.
O que, retomando as questões de articulação interdisciplinar
acima evocadas, nos remete para a conclusão que, pesem
embora as mil e uma dificuldades do percurso, a existência
de boa arquitectura constitui sempre uma mais-valia para
qualquer museu.
Museu Convento dos Lóios
O novíssimo Museu Convento dos Lóios, em Santa Maria
da Feira, inaugurado em Junho de 2009, constitui mais um
exemplo de reconversão de espaço monumental antigo
(neste caso com raízes no século XVI e uma longa história
que, depois do abandono do local pela congregação
da Ordem dos Lóios, em 1836, conduz até funções de
tribunal da comarca, cadeia municipal e biblioteca-museu
da então Vila da Feira) e de requalificação de museu
pré‑existente.
Trata-se de um típico museu misto, com secções de
arqueologia, história e etnografia e com uma missão que
lhe confere o papel de guardião e promotor da memória
história do concelho a que pertence. O programa
museológico dispõe que a exposição permanente “tem
como objectivo primeiro identificar e mostrar as diversas
vivências de uma região, concretizadas na criação de
núcleos de Arqueologia, História, Etnografia, Indústria
e Arte, explicando a origem do Homem, a evolução e o
desenvolvimento da vasta região da Terra de Santa Maria.”
E acrescenta um segundo objectivo, traduzido “no papel
que o Museu Convento dos Lóios assume no seio da Rede
Municipal de Museus, pois ele é o pólo central da Rede.
Neste sentido, a exposição permanente deve integrar um
vasto conjunto de elementos interpretativos da região
em que se insere, permitindo uma contextualização dos
diferentes museus que compõe a Rede, visto que, apesar
da multiplicidade temática, se assumem como partes de
uma uniformidade cultural representativa.”
Os serviços disponibilizados incluem recepção e loja,
espaços de uso polivalente, serviços educativos, serviços
técnicos e exposição permanente (subordinada aos temas:
“As origens do povoamento”, “A Terra de Santa Maria”,
Fig. 8 Exterior do Museu de Sines
http://www.sines.pt/PT/Actualidade/fotoscaracterizacao/patrimoniohistorico/
Imagens de Alta Resoluo/Museu de Sines - Casa de Vasco da Gama.JPG
“O culto religioso”, “Do mundo rural à industrialização”,
“O Município”). Na área arqueológica, dá-se especial relevo
a locais tais como os castros de Romariz e de Fiães, conhecidos
sítios arqueológicos a nível nacional e internacional.
Do primeiro deles, para além dos materiais cerâmicos,
líticos e outros, apresentam-se recursos museográficos mais
originais, tais como duas maquetas, uma de registo geral
do povoado e outra de reconstituição e encenação de um
cartibulum, aparecido no átrio de domus, que documenta
a romanização do local.
A avaliar pelo vasto elenco de objectivos integrantes da
missão deste Museu Convento (a própria designação
compósita é sintoma da amplitude conceptual pretendida)
é de esperar que esta instituição venha futuramente
a desempenhar um papel central na gestão de todo o
património concelhio. Abarcam tais objectivos aspectos
que vão desde o cuidado do próprio Convento, passando
por tarefas de recolha, registo, protecção legal e gestão do
património concelhio, assim como de apoio ao movimento
associativo patrimonial, até às de estudo e divulgação
do mesmo, nomeadamente pelo recurso aos meios
tradicionalmente associados aos museus (investigação,
exposição, acção educativa, edição, etc.). Este amplo
leque de atribuições, dá conta de um figurino institucional
que, não sendo propriamente original, não tinha ainda
sido detectado nos exemplos referidos anteriormente.
Parece revelar uma renovação, agora com capacidades
técnicas acrescidas e uma bem perceptível modernidade
conceptual, do velho modelo municipal de serviço de
cultura ou de património algo indiferenciado, que tem
vindo a ser abandonado, em favor da especialização
institucional e disciplinar. Trata-se por isso de uma
experiência que importa acompanhar no futuro, porque
pode constituir uma via alternativa, eventualmente melhor
adaptada a parte da realidade nacional.
Museu de Sines
Finalmente, retemos na nossa amostragem o novo Museu
de Sines, inaugurado em Novembro de 2008. Constitui
um outro exemplo de museu misto, com importantes
89
exposições
colecções de arqueologia, grande parte das quais reunidas
por José Miguel Costa, saudoso arqueólogo amador
falecido em 2005 e que naquela cidade tinha criado em
sua casa um “museu”, que generosamente abria a todos
os que o quisessem frequentar. Recordamo-nos bem da
visita a esse espaço encantatório e do convívio com o seu
proprietário. A colecção reunida era, e é, de facto notável:
basta evocar o magnífico tesouro proto-histórico do Gaio
ou a excepcional colecção de elementos arquitectónicos
de época tardo-romana, provenientes talvez de uma
basílica visigótica. Mas, muito para além da colecção,
era sobretudo o calor humano do anfitrião e a simbiose
quase imperceptível entre casa e museu, que nos deixava
lembrança.
O caso de Sines, sendo um dos mais notáveis, não é
no entanto único, longe disso. Trata-se de um exemplo
comum em todo o Pais, que dá conta da passagem de uma
época em que a actividade arqueológica foi protagonizada
por amadores (no sentido etimológico, “aqueles que
amam”), com relativo desinteresse das instituições do
Estado, para uma outra em que o profissionalismo e
a responsabilização públicas adquirem centralidade.
E julgamos que existe espaço no presente para que o papel
deste tipo de precursores e as memórias que nos deixaram
sejam devidamente evocadas e transmitidas para o futuro,
inclusive sob a forma museal.
Não sendo forçoso que em todos estes casos o destino
das colecções antigas, recolhidas por privados, tenha de
ser o da sua gestão pública, é em todo o caso imperioso
reconhecer que, no contexto concreto do nosso País, é
esta a via que melhor permite acautelá-las e valorizá‑las
socialmente, como se impõe a bens que a legislação
considera como “património nacional”. E as instituições do
Estado melhor vocacionadas para o fazer são as autarquias.
Andou, pois, bem a Câmara Municipal de Sines quando,
por entre dificuldades várias, conseguiu recuperar e expor
parte da colecção de José Miguel Costa, à qual se juntam
outros acervos, entre os quais os que resultam da actividade
da antiga equipa do Gabinete da Área de Sines – o primeiro
exemplo existente em Portugal de criação de um núcleo
de profissionais integralmente dedicados a trabalhos de
minimização de impactes arqueológicos, no âmbito de
uma grande obra pública.
Dito isto, importa reconhecer que o actual Museu,
situado no Castelo, mais exactamente no chamado Paço
dos Governadores Militares (conhecido usualmente
como alcáçova), não se destaca especialmente pela sua
modernidade arquitectónica ou sequer pela originalidade
das suas soluções museográficas. Trata-se de uma
adaptação de edifício antigo a estas funções, seguindo
um projecto de intervenção minimalista. Os núcleos
expositivos, preenchem uma ampla diacronia, que vai
desde a Pré-História até às actividades económicas actuais.
museologia.pt nº3/2009
90
A parte arqueológica propriamente dita segue uma
lógica expositiva tributária da história das investigações do
concelho – e nisto consiste a principal originalidade deste
museu em matéria de conceito museológico.
Com efeito e contrariamente ao que é normal, ou seja,
apresentar as colecções arqueológicas seguindo a diacronia
histórica (opção comum no nosso país, onde a arqueologia
se insere disciplinarmente na história) ou distribuí-las sem
grande atenção à cronologia, colocando-as antes ao serviço da
ilustração de arquétipos de sociedade (opção seguida quando
se pretendem abordagens antropológicas, nomeadamente
as neo‑evolucionista ou as funcionalistas), decidiu-se neste
caso pôr em evidência o trabalho desenvolvido pelos
sucessivos investigadores isolados e equipas que, em mais de
um século, conduziram aos conhecimentos actuais sobre o
remoto passado da região. Para além de se prestar assim uma
justa homenagem a tais precursores, tornam-se explícitas as
circunstâncias da constituição do Museu, que aliás se situa
em local particularmente vocacionado para este pendor
celebratório e evocativo. Tratando-se ademais de um núcleo
sede, fica aberta a possibilidade de outras perspectivas,
históricas ou antropológicas, poderem ser desenvolvidas
noutros núcleo museológicos, porventura mais directamente
relacionados com os monumentos arqueológicos da zona,
alguns dos quais lamentavelmente abandonados e que bem
justificariam a musealização.
2.3. Colecções visitáveis de arqueologia
Aos exemplos mais extensivamente apresentados
anteriormente acrescem alguns casos daquilo a que se
poderia designar por “colecções visitáveis”, utilizando para
o efeito a expressão constante da Lei-Quadro dos Museus
Portugueses. Trata-se de pequenas exposições, chamadas
modestamente por “salas”, ou então por “museus”, posto
que a designação que julgamos melhor aplicar-lhes e aqui
retemos tem merecido pouca adesão por parte dos seus
promotores, certamente porque lhes parecerá menorizá-las
– no que fazem mal, porque se trata de figura legal dotada
de identidade própria, susceptível de ser apoiada pelos
serviços do Estado. Têm estas colecções visitáveis equivalente
naquilo que em Espanha se tem vindo a referir como “aulas
práticas”, embora estas sejam frequentemente também
equiparáveis ao nosso conceito de “centro interpretativo”.
Entre os casos deste tipo que recordamos, está o da
Sala/Museu de Arqueologia do Cadaval, inaugurada já
há alguns anos, mas que mantém toda a actualidade
enquanto exemplo interpelante. Situada no primeiro
andar de edifício histórico adaptado (antigos paços
do concelho, actual sede da Junta de Freguesia, que
mantém serviços no rés-do-chão), apresenta uma síntese
da ocupação humana do concelho, desde períodos
geológicos ante-quaternários até à subatualidade.
Em pouco espaço e objectivamente com poucas
colecções, executa-se um projecto museográfico simples
e sóbrio, sem o recurso a tecnologias muito sofisticadas,
mas dotado de um poder de sedução considerável.
Os desenhos e reconstituições gráficas possuem
didactismo e o espaço central da sala é reservado
a uma maqueta do concelho, onde se salienta a base
orográfica e, sobre ela, se posicionam os diferentes sítios
arqueológicos. Trata‑se de uma ferramenta muito útil à
compreensão dos padrões de povoamento da região ao
longo dos milénios, um excelente ponto de partida para
visita aos próprios locais, como é o caso do Castro de
Pragança ou as ruínas do Mosteiro da Senhora da Neves,
no alto da Serra de Montejunto, onde se pode juntar
a perspectiva real, à visão interpretativa, virtual, da
maqueta. Acresce ainda o facto de uma parte significativa
das colecções apresentadas figurar sob a forma de
réplicas de peças que pertencem a outros museus
(principalmente ao Museu Nacional de Arqueologia),
as quais convivem harmonicamente, em cada unidade
expositiva, com originais pertencentes ao acervo
próprio. O recurso extensivo a réplicas não diminui
em nada o interesse social deste espaço museológico.
Pelo contrário: aproximando-o mais do conceito de
“centro interpretativo”, confere-lhe um maior poder
educativo e permite-lhe alcançar muito mais utilidade
junto dos públicos escolares do concelho e da região
envolvente. A existência de recepção, espaço de projecção
multimédia, ponto de consulta da base de dados da carta
arqueológica do concelho, pequena biblioteca e loja
completam o leque de serviços deste pequeno espaço,
que entendemos possuir todos os requisitos básicos
para constituir uma espécie de “primeira plataforma” de
aproximação museológica aos bens arqueológicos.
Modelos basicamente semelhantes encontram-se em
diversos outros pontos do País, por vezes adoptados como
recurso preparatório para futuros museus de arqueologia.
É o caso, também mais antigo, de Vila Velha de Ródão,
com a sua “exposição didáctica de arqueologia”, que
se encontra já em vias de transformação para próxima
inclusão num “Centro Interpretativo da Arte Rupestre do
Vale do Tejo”. E é igualmente o caso muito recente de
Cascais, com a reabertura em 4 de Abril de 2009 da antiga
(e prestigiada) sala de arqueologia do Museu do Conde
de Castro Guimarães, reformulada dentro de padrões
sóbrios, mas eficazes, numa simplicidade intencional,
que declaradamente antecipa a necessidade de vir a
construir naquele concelho de um verdadeiro museu de
arqueologia. E é finalmente o caso das inúmeras pequenas
exposições de colecções arqueológicas, muitas vezes
situadas em monumentos históricos, procurando melhor
explicá-los ou simplesmente preenchendo-os, dando-lhes
maior uso.
2.4. Sítios musealizados
Como dissemos no ponto anterior, alguns dos exemplos
de “salas” ou “colecções visitáveis” de arqueologia
aproximam-se, nas suas intenções e na sua formulação
concreta, do conceito de “centro interpretativo”, sendo
este especialmente aplicável aos casos de musealização de
sítios e monumentos.
Referimos já antes, de passagem, a nossa opinião sobre
a identidade própria de “museus de arqueologia” e de
“sítios arqueológicos musealizados”, conforme expusemos
noutro local (RAPOSO, 1999a). Não nos repetiremos,
portanto, senão para insistir em que consideramos que
existe lugar para ambos, sendo desejável que cumpram
funções socais diferenciadas e, por consequência, que
possuam programas museológicos também diversos e
desenvolvam eventualmente até perfis institucionais
próprios, devidamente articulados.
A musealização da ruína arqueológica pode reduzir-se à
adopção de medidas que permitam a sua melhor fruição
in loco: circuitos de visita, painéis explicativos, restauros
mais ou menos pesados, reconstituições virtuais em tempo
real, etc., etc. Mas pode ir mais longe, com a construção
de centros interpretativos e a inserção destes em redes
museológicas mais amplas. Todos estes níveis de intervenção
podem num certo sentido ser assimiláveis a museus – é essa,
de resto, a perspectiva que tem acolhimento no conceito
muito amplo (em nosso entender, demasiado amplo) de
museu definido internacionalmente pelo ICOM.
Contudo, a questão da designação é de somenos. O que
importa é verificar se existem elementos distintos neste tipo
de estruturas de mediação, que têm felizmente conhecido
grande desenvolvimento no nosso País, em grande
parte devido ao impulso dado pela política de resgate e
valorização de sítios arqueológicos desenvolvida pelo
IPPAR, desde finais dos anos 90 do século passado.
Tomemos somente alguns exemplos desta actuação,
com prioridade aos que podemos considerar como
fundacionais, ou seja, aos programas de valorização dos
principais monumentos arqueológicos classificados e sob
gestão directa do IPPAR (actual IGESPAR), no Alentejo e
no Algarve. Em todos eles, uma mesma estratégia: a prévia
garantia da propriedade pública da terra, a subsequente
actualização da investigação de base, nomeadamente
ao nível do inventário, a delimitação de um área
devidamente protegida fisicamente, o investimento em
acções de limpeza, consolidação e restauro e, finalmente,
a construção de estruturas de apoio ao visitante, aquilo a
que, em sentido restrito, se tem designado por “centros
interpretativos”. Nos casos melhor conseguidos, a
musealização resulta de um trabalho de equipa em que
se juntaram “bons clientes” (neste caso, os arqueólogos e
museólogos responsáveis pelos sítios) e “bons arquitectos”.
91
exposições
Fig. 9 Miróbriga, Santiago do Cacém
Estrutura de apoio/Centro Interpretativo
fotografia de Filomena Barata
Em Miróbriga (Santiago do Cacém), por exemplo,
edificou‑se uma estrutura de apoio ligeira, moderna e muito
funcional, que constitui uma espécie de “porta de entrada”
sobranceira à estação arqueológica, sem contudo a perturbar.
No próprio sítio, os trabalhos arqueológicos foram conduzidos
com preocupações patrimoniais e museológicas, tendo-se
privilegiado a consolidação e limpeza de estruturas de grande
valia cénica, como é o caso de uma ponte medieval, porventura
com alicerces romanos. Apenas se lamenta que, neste como
noutros casos, não tenha sido possível prosseguir as políticas
iniciadas e tenha depois sobrevindo um certo sentimento de
incompletude, senão de abandono, de importantes áreas do
sítio que mereceriam melhor protecção e explicação.
Mas os exemplos mais conseguidos da política que indicámos
são os do Algarve, nomeadamente os de Milreu e Alcalar.
Num e noutro caso, prosseguiram-se projectos de investigação
preliminar e de subsequente valorização patrimonial que
reputamos de paradigmáticos, mesmo quando, como no
caso de Alcalar, se assumiu conscientemente o “sacrifício”
científico de um sítio, para o recriar, colocando-o ao serviço
de um turismo mais epidérmico: “As ruínas musealizadas
devem assumir-se como ‘objectos de sacrifício’. Sacrifício
de construções com valor histórico e artístico a objectivos
de incremento cultural, educacional e económico das
comunidades locais e forasteiras, usuárias destes sítios
arqueológico convertidos em ‘lugares de memória’” (Parreira
2007, 113). Uma estratégia tão saudavelmente arriscada
deveu-se, em grande medida, à qualidade das equipas
intervenientes, especialmente ao arqueólogo Rui Parreira,
coordenador e até certo ponto teorizador destes projectos de
Itinerários Arqueológicos. Para além das reconstituições, dos
restauros, das meras consolidações, da criação de circuitos,
da sinalética in situ, edificaram-se centros de interpretação
museologia.pt nº3/2009
92
relativamente modestos, mas de grande qualidade
arquitectónica e sabiamente implantados no terreno.
Em ambos os casos, o visitante acede ao sítio arqueológico
através destas estruturas interpretativas, que deixam depois de
ser vistas quando se passa às ruínas, uma vez que se situam
a quotas inferiores às mesmas. Nos centros interpretativos,
para além das funções de recepção e loja, existem espaços
para projecções, aulas ou exposições. Mas estas últimas
foram concebidas sem qualquer tipo de sobreposição com
os museus propriamente ditos. Trata-se de exposições que
versam monograficamente os respectivos locais. Usam
sobretudo a imagem cartográfica e fotográfica, assim como
o desenho de reconstituição e o texto. Contemplam ainda os
objectos, mas preferencialmente sob a forma de réplicas.
Esta opção, que pode parecer estranha à primeira vista (pois
não seria de supor que o primeiro impulso fosse o de deixar
“no próprio local” as colecções originais?), é apresentada
de forma muito clarividente por Rui Parreira, nos seguintes
termos: “O Centro de Interpretação de Alcalar não dispõe de
colecções próprias. Aproxima-se, nesta sua especificidade,
dos chamados ‘museus narrativos’, transmitindo mensagens
organizadas de acordo com um guião explicativo e com
recurso a ilustrações e imagens fotográficas, vídeo, ficheiros
informáticos interactivos, textos narrativos, maquetas
analíticas, mapas… A área de exposição, que permite
a reformulação periódica das soluções museográficas
(acompanhando assim os avanços da pesquisa científica),
tem como elemento central uma imagem aérea do conjunto
pré-histórico. Exibe, numa sequência de painéis/cartazes,
uma exposição narrativa da história das pesquisas, da
ocupação do território, dos espaços domésticos, da
demografia, da organização e arquitectura das necrópoles,
e dos procedimentos de construção dos templos funerários.
Fig. 10 Alcalar, Portimão
Vista aérea do agrupamento oriental de túmulos
fotografia CM de Portimão/Miguel Veterano
Complementa a narrativa uma instalação multimédia sobre
a intervenção arqueológica e a recuperação arquitectónica
do monumento... A interpretação dos resultados da
pesquisa tem o seu contraponto num dos núcleos da
exposição de longa duração do Museu Municipal de
Portimão, recentemente inaugurado e que constitui já um
dos mais importantes equipamentos culturais de todo o
Algarve. Mas são as actividades de divulgação cultural e
acção pedagógica promovidas em parceria com o Museu
que têm assegurado a difusão do conhecimento acerca do
conjunto arqueológico.” (PARREIRA, 2009).
A partir daqui estabelece-se uma relação em rede dos
sítios arqueológicos e dos seus centros interpretativos com
os museus de retaguarda, seja ao nível local e regional
(Museu de Faro e Museu de Portimão, respectivamente),
seja ao nível nacional (Museu Nacional de Arqueologia).
Em situações mais avançadas seria até desejável que a gestão
de sítios, ‘centros interpretativos’ e ‘museus de retaguarda’,
pelo menos a escala local, fosse feita conjuntamente,
porventura confiada à mesma entidade pública.
Os exemplos dados documentam uma política consistente
de intervenção patrimonial integrada (incluindo, pois,
a vertente museológica) especialmente direccionada
para sítios arqueológicos. Trata-se de uma política
que tem entretanto vindo a “fazer escola”, tendo sido
adoptada, total ou parcialmente, por diferentes tutelas do
património arqueológico. Tome-se a título exemplificativo
a musealização da Citânia de Briteiros, gerida pela
Sociedade Martins Sarmento. No sítio arqueológico
propriamente dito, para além da limpeza geral e melhor
sinalização de percursos, foi instalado um pequeno centro
de acolhimento, muito agradável, dotado de recepção,
loja e cafetaria, com magnífica esplanada sobre o vale.
A pouca distância, em S. Salvador de Briteiros, requalificouse o chamado Solar da Ponte, edifício senhorial com
traços barrocos, que fora a morada de Martins Sarmento
quando dirigia escavações na Citânia, para nele instalar
um “Museu da Cultura Castreja” (designação porventura
imprópria, por demasiado inclusiva). Neste museu faz‑se
a evocação desse pioneiro da arqueologia portuguesa
e europeia e apresentam-se algumas das principais
colecções da Citânia, entre as quais a famosíssima “pedra
formosa”, que em 2003 fez o trajecto de regresso à zona
de Briteiros, depois de Martins Sarmento a ter levado para
o Museu da Sociedade que hoje leva o seu nome, em
Guimarães. Temos assim desenhado mais um modelo de
rede museológica, em que o sítio musealizado é servido
por museus de retaguarda, nos planos local e regional.
A tudo isto acresce neste caso uma intensa actividade
didáctica e de reconstituição histórica (programa “Citânia
ao Vivo”), assim como uma aplicação muito inovadora
das novas tecnologias da informação, especialmente no
domínio do desenho computorizado e da apresentação de
dados (descubra-se por exemplo a Citânia, através de visita
virtual, em http://citania.csarmento.uminho.pt/).
Para além dos exemplos mais vocacionados para a
valorização do património arqueológico, com orçamento
geralmente muito limitado, existem outras ocorrências,
sobretudo de âmbito monumental ou artístico, embora
também arqueológico, em que se requerem intervenções
93
exposições
Fig. 11 Briteiros, Guimarães
A chamada “Casa do Conselho”
fotografia de Luís Raposo
mais pesadas, necessariamente mais dispendiosas e
também por isso mais excepcionais. É o que sucede
com o exemplo recente, e muito bem sucedido, da
valorização e musealização das ruínas do Mosteiro
de Santa Clara-a-Velha, em Coimbra, reabertas ao
público em 18 de Abril de 2009 (Dia Internacional
dos Monumentos e Sítios), após 18 anos de obras,
distribuídas ao longo de quatro fases, atingindo um
custo total superior a 25 milhões de euros. Classificado
em 1910 como Monumento Nacional, este Mosteiro
do século XIV foi desde cedo afectado pela subida do
nível das águas do Mondego, que o inundaram, a ponto
de ter sido abandonado pelas monjas clarissas, que se
transferiram no século XVII para Santa Clara-a-Nova.
O velho mosteiro foi caindo em ruína, pouco mais
subsistindo acima do chão do que a igreja, quase
permanente alagada. A aquisição pelo Estado, em 1976,
dos terrenos envolventes da igreja, nos quais existira o
mosteiro, permitiu iniciar o processo de valorização e
musealização do conjunto monástico, ora concluído.
Trata-se de uma intervenção notável a diversos títulos.
Antes do mais pelos problemas que a inserção em posição
situada abaixo do nível do lençol freático necessariamente
acarreta: contenção das águas do Mondego, drenagem das
águas pluviais e reconfiguração de todas a rede de esgotos
da zona. Depois pelas necessidade prévia de execução de
um programa de escavação arqueológica e de investigação
histórica multidisciplinar. Finalmente pelo desafio de conferir
dignidade e desafogo às ruínas existentes, permitindo ainda
expor as ricas colecções nelas recolhidas e tudo isto sem
prejudicar possíveis desenvolvimentos futuros de escavação
e fruição de espaços ainda enterrados.
museologia.pt nº3/2009
94
Sob coordenação geral do arqueólogo Artur Côrte-Real, as
equipas constituídas foram, no que se refere ao projecto
arquitectónico e de arranjos exteriores, dirigidas pelos
arquitectos Alexandre Alves Costa, Luís Urbano e Sérgio
Fernandez, que realizaram uma excelente intervenção.
A igreja, ressurge em toda a sua dignidade de ruína, com
amplas perspectivas de observação, em vários planos
verticais e debaixo de vários ângulos. A entrada no espaço
musealizado faz-se em posição afastada da igreja, através
de edificação nova, de linhas escorreitas e assumidamente
contemporâneas, onde se asseguram as funções próprias de
centro interpretativo ou até museu monográfico: recepção
e loja, cafetaria (com ampla esplanada sobre todo o
recinto), auditório (onde se projecta ciclicamente um filme,
muito cativante, sobre o Mosteiro e as suas monjas, talvez
o único local em que a figura da rainha “Santa Isabel” é
evocada, uma vez que se torna patente a intenção em
não centrar o valorização do conjunto monumental nesta
tão emblemática e quase mitológica personagem), áreas
de reserva, conservação e restauro, triagem e estudo de
colecções, etc., e um espaço de exposição permanente.
Depois de percorrido todo o circuito expositivo, o acesso à
zona exterior permite a contemplação de um amplo relvado,
debaixo do qual se situa a enorme reserva arqueológica
constituída pelas diferentes dependências do mosteiro, que
no futuro poderão ser escavadas. A visita à igreja decorre
através de circuito em que o visitante tem alguma margem
de escolha, mas que tendencialmente o conduz do plano do
rés-do-chão para o do primeiro andar, de onde pode tomar
o caminho de retorno ao centro de acolhimento, acedendo
por outra via e desembocando directamente no átrio de
recepção. A impressão geral é a da grande qualidade de
toda a intervenção realizada e de uma certa serenidade que
simultaneamente devolve este lugar à cidade, mas o aparta
também, como se requer do efeito distanciador do tempo,
realçado pela ruína e somado ao aqui pelo recolhimento
próprio de um espaço monacal.
A vertente mais especificamente museológica a que acima
aludimos merece referência especial, até porque se constituiu
no único elemento de controvérsia deste projecto. Com
efeito, verificou-se neste ponto particular uma acentuada
divergência de opiniões entre a equipa de arquitectos e os
arqueólogos e museólogos. Os arquitectos, que levaram a
sua oposição ao ponto de marcarem ausência no acto de
inauguração do conjunto, consideraram que “a natureza e
carácter do espaço, quer do novo edifício quer da antiga
ruína”, teriam sido deturpados através do que entenderam
ser uma “perversa ocupação do Centro de Interpretação,
particularmente nas áreas de exposição permanente e
espaço didáctico”. Segundo entendemos, pretendiam que
estas áreas fossem destinadas à apresentação de um número
mínimo de objectos, preferencialmente dotados de plástica
própria (peças escultórias ou elementos arquitectónicos,
Fig. 12 Santa Clara-a-Velha, Coimbra
Igreja do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha vista do Centro Interpretativo
fotografia de Artur Côrte-Real (Mosteiro de Santa Clara-a-Velha/Direcção Regional de Cultura do Centro)
supõe-se), mantendo-se um ambiente geral de “área
aberta”, de tal sorte que os volumes construídos envolventes
fossem muito melhor perceptíveis e se garantisse também
uma mais ampla relação com o ambiente exterior.
Os arqueólogos, pelo seu lado, desejavam, e impuseram,
que o espaço expositivo servisse para contar a história do
local, o que necessariamente conduziu a uma exposição
narrativa, dotada de número considerável de peças (apesar
disso, uma pequeníssima parte das colecções existentes),
com alguma segmentação interior do espaço, segundo
projecto museográfico em que paredes, vitrinas, maquetas,
desenhos e textos adquirem um quase pendor decorativista.
Compreendemos e respeitamos as posições de cada parte,
mas não podemos deixar de alinhar aqui pela perspectiva
que nos é mais próxima, a de arqueólogos e museólogos,
sem com isso significar concordância absoluta com as
soluções museográfica adoptadas. Tal como a vemos, a
questão de fundo é todavia outra, a saber: o primado do
programa museológico sobre o projecto arquitectónico,
conforme defendemos no ponto seguinte deste texto.
3. Os contentamentos e as inquietudes
Depois de tudo o que dissemos na primeira parte e da soma
de detalhes e apreciações que fomos dando na segunda
parte do presente texto procuraremos neste apartado final
enunciar uns quantos temas de reflexão futura, alinhados
sem especial ordem de prioridades, os quais deixamos à
consideração do leitor, na convicção que eles dão conta
da fusão entre teoria e praxis, no seu carácter criativamente
interpelante.
Assim:
3.1. O continente e o conteúdo: potencialidade
e limites da obra arquitectónica
Em diversos exemplos citados verificámos como a obra
arquitectónica, “de autor”, vem adquirindo centralidade na
construção de novos museus ou na adaptação de espaços
antigos para estes efeitos. Dir-se-ia que ainda bem; mas
95
exposições
nem tudo é luminoso neste contexto e convém reflectir
sobre as potencialidades e limites da “obra de autor”.
Detectámos tensões entre arquitecto e arqueólogo ou
museólogo. Para além do caso-limite do Mosteiro de
Santa Clara-a-Velha, limite porque atingiu um ponto de
ruptura e foi ruidosamente exposto publicamente, esta
situação ocorre noutros museus por nós seleccionados
e estamos em crer que será cada vez mais frequente.
No Museu Municipal de Penafiel, por exemplo, existiram
dificuldades resultantes dos requisitos aparentemente
opostos da conservação das colecções (nomeadamente ao
nível da sua protecção em relação à luz solar, obrigando
à colocação de filtros em superfícies amplas de janelões)
e da visibilidade, quase transparência, entre os espaços
expositivos e os pátios intermédios, pretendida pelo
arquitecto – o que faz obviamente todo o sentido debaixo
do ponto de vista da construção de volumes própria do
projecto de arquitectura.
Admitimos que existem de facto percepções e valores
diferentes no que respeita à apropriação dos espaços,
por parte de “autor” e “cliente” da obra arquitectónica.
A valorização social e disciplinar recente da arquitectura, e
dos seus agentes, os arquitectos, tem conduzido, a nossos
olhos, a excessos que só o tempo corrigirá e que serão tanto
mais gravosos quanto mais nós, arqueólogos e museólogos,
pelo nosso lado, nos deixarmos resignar debaixo do
convencimento de que estamos menos habilitados ou
de que a nossa capacidade de contratualização social é
inferior.
É muito tentador ao arquitecto proceder a um jogo criativo
de volumes, como se a sua obra constituísse uma escultura
em grande dimensão, sem outra funcionalidade que não
seja a de povoar o espaço. Existem aliás arquitectos,
famosos, que pouco ou quase nada construíram de
facto, sendo apreciados pela sua teorização de volumes,
inseridos (ou não) em territórios. Dir-se-á que exageramos.
Pode ser. Mas confessamos a incomodidade que sentimos
em face de espaços, ditos museus, que pouco mais valem
do que pelo seu invólucro (caso emblemático do Museu
Guggenheim, de Bilbao) ou quando folheamos revistas
especializadas de arquitectura e nelas verificamos que
raramente se apresentam recheios interiores dos espaços
projectados e executados, os quais dariam afinal conta das
suas efectivas funcionalidades. Existe como que um separar
de águas absoluto, e afinal absurdo, entre arquitectura e
recheios interiores, mesmo quando os arquitectos autores de
projectos aceitam, ou até reivindicam, serem eles próprios
a desenhar o mobiliário dos espaços, até ao pormenor
da gaveta do móvel ou do candeeiro de leitura. Tome-se
o exemplo de um número recente da revista Arquitectura
Ibérica (nº 31, de Abril de 2009), integralmente dedicado
à arquitectura de museus. Folheiam-se as suas 128
páginas, bem impressas, cheias de sedutoras fotografias
museologia.pt nº3/2009
96
de espaços ditos museológicos, mas… em nenhuma se
encontra um ambiente expositivo construído ou uma peça
sequer. Os sucessivos autores, querendo anunciar museus,
comprazem-se em apresentar volumes vazios, no que
constitui um curioso sintoma. E o resultado é que, mesmo
para o leitor mais atento, nada permite afirmar que estamos
perante museus. A maior parte dos espaços poderiam com
maior ou menor facilidade servir outros tipos de usos, desde
galerias de arte até escritórios em sistema de área aberta.
Compreendemos o ponto de vista do autor-escultor
de arquitectura. Mas não o podemos aceitar, na nossa
condições de “clientes”. De resto e pela terceira vez neste
texto, evocamos aquilo que ouvimos da boca de um muito
respeitado arquitecto português, segundo o qual um “bom
arquitecto” requer um “bom cliente”, ou seja, um cliente
que saiba explicitar bem as suas necessidades e que seja
determinado na sua defesa.
Em linguagem de museu, ser “bom cliente” significa
possuir um bom programa museológico, o qual nenhum
outro técnico, senão o museólogo e o arqueólogo (no
caso dos museus de arqueologia), está em condições
de elaborar. É para nós inconcebível que seja iniciado
um processo de instalação de um novo museu, ou de
remodelação profunda de museu pré-existente, sem possuir
um tal instrumento, uma verdadeira bússola de bordo.
A liberdade criativa do arquitecto terá obrigatoriamente de
estar contida dentro dos limites da satisfação do programa
museológico. E temos com humildade de reconhecer
que, em muitos casos, as carências ou desadequações
arquitectónicas resultam de deficiências do programa
museológico, quando não da sua não existência – o que
começa a ser escandaloso e deveria constituir por si só
razão suficiente de não eleição para financiamentos
públicos.
A partir de uma base sólida, tudo se simplifica depois.
E nisto incluímos desde logo a própria escolha sobre
construção nova ou adaptação de espaço antigo.
Os exemplos que apresentámos neste texto contemplam
ambas as opções e não detectámos preferências evidentes.
A adaptação de espaços antigos a museus talvez continue
a ser a via recomendável na maior parte dos casos.
Mas importa denunciar o equívoco que levou a que tivesse
sido a solução tradicional para instalar museus, a saber,
a de ser mais fácil e/ou de menores custos. Hoje, uma tal
opção deve resultar de uma avaliação do tecido urbano
em cada caso e das necessidades sociais que o museu
visa satisfazer. Sendo escolhida, deve sê-lo em plena
consciência de que a remodelação exigente de espaços
antigos pode ser mais desafiante, difícil e dispendiosa do
que a construção de raiz. O Museu de Portimão e o Museu
do Fundão, parecem-nos constituir, cada um à sua maneira
e à sua escala, bem diferentes, os melhores exemplos do
que pretendemos indicar neste ponto.
De resto, mesmo no caso da obra nova, temos de ter em
conta a realidade do País e considerar que, do ponto de
vista do utilizador, a qualidade do “continente” não decorre
tanto da ousadia do risco, muito menos da grandeza
dos volumes, mas da efectiva adequação às finalidades
desejadas e às expectativas da comunidade destinatária.
O Museu da Escrita do Sudoeste, em Castro Verde, pode
neste contexto ser evocado, porque concretiza projecto
arquitectónico novo, porém reduzido à essencialidade
volumétrica do cubo, de dimensões modestas, não deixando
por isso de constituir um marcador de contemporaneidade
no interior do casario do núcleo histórico da vila e sendo
além do mais (ou antes de tudo) funcional e apropriado ao
conteúdo museológico que serve.
O Museu Municipal de Penafiel, pelo seu lado, representa
uma experiência diversa, igualmente bem sucedida e com as
características mais apropriadas para fazerem dele um “caso
de estudo” que importa analisar, uma vez que dá conta de
um caminho que no futuro será cada vez mais frequente
(na razão directa da afirmação autoral do mercado da
arquitectura e da rendição aos mecanismos da fabricação
de conteúdos), caminho estreito, mas irrecusável. Falamos
de uma vereda que pode conduzir a verdadeiros becos sem
saída, ou seja, à negação do museu, na pluralidade das
“funções museológicas” que impõe o seu estatuto (e no nosso
País a própria legislação de enquadramento). Mas falamos
também de uma senda potencialmente compensadora se,
como em Penafiel, as equipas dos museus e as suas tutelas
souberem bem o que querem – e tal seja mais do que a mera
“produção de eventos”.
3.2. O real e o virtual: uso e abuso
das novas tecnologias comunicacionais
A indústria da “produção de conteúdos”, ou de “eventos”,
vai normalmente de par com a venda de sobredoses de novas
tecnologias, numa tal que profusão que em muitas casos
constitui um abuso, mais do que um uso. Compreende‑se
que assim seja, especialmente em meios deprimidos e
periféricos, onde o recurso a espectáculos de “luz e som”
constitui deslumbramento. Mas, como sabemos da teoria
da comunicação e nos ensina a sabedoria comum, o
refúgio excessivo em instrumentos fortes de captação da
atenção, cansa mais rapidamente do que os meios discretos
e tradicionais, menos agressivos, usados para o mesmo
fim. Ao que acresce um outro e não despiciendo factor: o
elevado custo de aquisição, manutenção e actualização de
recursos que tendem a envelhecer muito rapidamente.
A pergunta impõe-se, portanto: devem os museus de
arqueologia apostar fortemente em novas tecnologias
comunicionais? Se sim, em que doses, como e quando?
A resposta, que nunca será linear, está dependente de
múltiplas variáveis.
Antes de tudo, deveremos considerar aquilo que
efectivamente os visitantes em geral, e mais concretamente
os públicos a que nos dirigimos, esperam do museu e qual
a natureza de cada museu concreto. Contrariamente ao
que se possa imaginar, os estudos sobre a matéria, não
colocam a profusão de efeitos encantatórios como primeiro
critério de valorização dos museus por parte dos públicos.
Em inquérito realizado no Museu de Aix‑en‑Provence as
cinco primeiras motivações para a visita foram, por ordem
decrescente: a qualidade das colecções, a clareza do tema,
a qualidade pedagógica, a variedade das exposições e o
conforto. Em inquérito semelhante feito no Museu de
Marselha, a qualidade pedagógica passa para quarto lugar
(v. TEBOUL e CHAMPARNAUD, 1999, 86). Significa isto
que, aqui tal como na relação com a obra arquitectónica,
devemos ter presente que o mais importante está na
definição de um programa museológico a partir de
dentro, ou seja, a partir dos acervos de que dispomos e
dos saberes disciplinares que dominamos, produzindo
com eles discursos de qualidade e claros. Só depois faz
sentido recorrer a técnico de comunicação, cenógrafo ou
“produtor de eventos”, como agora se vai preferindo dizer.
E no nosso País, relativamente aos museus, não passamos
ainda de aprendizes de feiticeiro, neste domínio.
Nos casos que nos serviram de exemplo neste texto a
situação prevalecente continua a ser a da centralização
das iniciativas de instalação dos museus nas equipas
dos próprios museus, devidamente assessoradas e com
adjudicação parcelar externa de partes do produto final.
Apenas em dois casos, Almodôvar e Penafiel, encontrámos
ocorrências de adjudicação ampla dos recursos expositivos
a empresas vocacionadas para o efeito. Em ambos, porém,
a intervenção destas empresas teve por base os requisitos
definidos pelas equipas dos museus e foi depois validada
por elas, a par e passo. Ou seja: existiu um processo
interactivo de comunicação, em que as equipas dos museus
se envolveram activamente, aspecto que consideramos
capital.
Pudemos contactar de perto, e estudar, algumas
experiências estrangeiras em que o sistema de produção de
museus através de empresas “chaves-não-mão” foi levado
bastante mais longe, com resultados muito desiguais,
embora normalmente com grande êxito de bilheteira.
Para além dos níveis de investimento, sempre elevados (e
inimagináveis para o orçamento usual dos nossos museus,
mesmo na opção pelos pacotes de serviços e equipamentos
mais pobres), o requisito principal da qualidade
museológica do resultado final esteve quase sempre no
papel desempenhado pelas equipas internas dos museus
e dos seus colaboradores próximos. O exemplo espanhol
é disso elucidativo. Uma mesma empresa de produção
de exposições e eventos, sediada em Sevilha e dotada de
técnicos com extraordinária capacidade inventiva e exímio
97
exposições
domínio das novas tecnologias, traduziu em recursos
expositivos os conteúdos que lhe foram apresentados
pelas equipas dos museus de arqueologia de Alicante e
de Almeria. Posta de parte a atractividade dos aparatos
comunicacionais, quase equivalentes em ambos, é
para nós evidente que no caso de Alicante, onde existe
uma equipa de investigação e de museologia muito
experimentada, se detecta uma real valia substantiva de
conteúdos e colecções, não parecendo haver carácter
esdrúxulo no abundante uso de meios digitais de
projecção ou de recriação tridimensional de ambientes.
Foi este equilíbrio entre substância e forma, assim como
a exemplar adaptação do espaço envolvente (um antigo
hospital), que levou a atribuir-lhe o Prémio de Museu
Europeu do Ano, em 2004. Já no caso de Almeria, parece
óbvia uma maior debilidade do programa museológico,
centrado numas quantas palavras de ordem e desprovido
de colecções significativas em parte do seu percurso.
O próprio edifício foi construído de raiz para nele
albergar um museu, qualquer museu e supostamente
um museu regional misto; só no final do processo, com
o contentor já construído, é que se tomou a decisão de
consagrá-lo a museu de arqueologia. Daqui resultou
uma acumulação de insuficiências, que se traduziu em
maiores margens de indefinição, logo capturadas pelo
espírito criativo dos técnicos da empresa “produtora de
conteúdos” – o que inevitavelmente conduziu a que
os artifícios cénicos ocupem o centro dos espaços do
museu, relegando as colecções propriamente ditas para
o papel de meros adornos quase passivos de instalações,
dioramas, sonoridades e feixes luminosos.
Rafael Azuar Ruiz, director técnico do Museu Arqueológico
de Alicante, expressa exemplarmente o tipo de relação que
naquele museu se estabeleceu com a novas tecnologias
da comunicação, quando se refere àquilo que chama “o
ABC das tecnologias sustentáveis, quer dizer, que sejam
Acessíveis, não apenas quanto ao equipamento renovável
e homologado, como também quanto ao fácil manejo
por empregados com meros conhecimentos de usuário.
Que sejam de Baixo custo económico na sua manutenção
e reposição, graças à sua durabilidade e acessibilidade
no mercado. Por último, que seja uma tecnologia de
linguagem Compatível, o que facilita o desenvolvimento
de projectos multimédia, susceptíveis de difundir em
rede”… E, acima de tudo, que garantam “… uma
montagem museográfica que tenha como único fim dar
relevo às nossas colecções arqueológicas, postas ao
serviço do conhecimento da nossa memória histórica”
(RUIZ, 2005, 48).
Ao ABC acima citado acresce o requisito da autenticidade
disciplinar, que é especialmente sensível em museus
estritamente dependentes dos saberes gerados por uma
disciplina científica, como é o caso da arqueologia.
museologia.pt nº3/2009
98
“Os projectos de museus arqueológicos são talvez os
mais ameaçados pelas derivas do produto suscitado pela
engenharia cultural” – adverte judiciosamente Jean‑Bernard
ROY (2000, 44), para logo acrescentar: “Os perigos
do ‘museu-espectáculo’ têm origem em necessidades
mal assumidas de reconstituição. O risco não está na
finalidade indispensável dessas reconstituições, mas na
tendência em fazer substituir por intervenientes estranhos
à arqueologia, os especialistas indispensáveis a qualquer
projecto científico. A reconstituição, que corresponde
às expectativas do público, e que constitui também um
objectivo final de investigação, deve pois ser confiada
aos próprios investigadores-arqueólogos e conservadoresmuseólogos, claro que em parceria com cenógrafos,
arquitectos, técnicos de exposição, conceptualizadores e
especialistas de comunicação” (idem, Ibidem).
A conclusão a retirar é que o recurso a meios comunicacionais
sofisticados não constitui panaceia, sendo ilusória a agitação
que possam possibilitar no curto prazo. É preferível um
museu mais contido nas encenações que oferece, mas
sólido nas apresentação dos seus acervos e elegante na
sua contextualização, do que a perigosa figura do “lunaparque” para que tendem actualmente algumas instituições
museológicas, desnaturando-se. E pior ainda é o arremedo
provinciano de “luna-parque” que estabelecimentos dotados
de orçamento reduzido promovem, pensando que assim
adquirem estatuto cosmopolita e se libertam da sua periferia.
A virtualidade presencial que temos vindo a comentar
é todavia bem diversa de uma outra, que faz uso da
comunicação a distância, especialmente da Internet.
Neste caso, estamos perante um instrumento que é bem mais
acessível aos museus, com dignidade e interesse, mesmo aos
de mais baixos recursos. E poderá ser esta “a terceira via”
ideal para que os museus, mantendo-se no terreno do real,
captem e potenciem igualmente as solicitações decorrentes
de um mundo cada vez mais baseado em representações
virtuais. “Num futuro muito próximo, o público pode querer
que os museus sirvam uma função que tenha mais a ver com
interpretação do que a colecção e conservação de objectos.
Informação, mais do que objectos, pode constituir o
serviço primário dos museus no futuro”, advertem Christine
BURTON e Carol SCOTT (2007, 51), que acrescentam:
“A virtualidade de experiências oferecidas crescentemente
através da Internet está a desvanecer a distinção entre o que
é autêntico e o que é real. Os museus tem tradicionalmente
sido um ‘negócio do autêntico’, mas a dicotomia entre
autenticidade e virtualidade pode não ser mais sustentável.”
(idem, Ibidem, 52). Ora, a Internet surge neste contexto
como a grande oportunidade dos museus, uma vez que
permite explorar, complementarmente, o virtual, servido à
distância e o real, servido presencialmente, desenvolvendo
o desejo do conhecimento de ambos, como se requer de
uma equilibrada formação pessoal e comunitária.
Observámos, aliás, que museus como os do Fundão ou
de Vila Real recorrem com virtuosismo a este veículo.
A orientação neste particular estará, segundo cremos,
em procurar usar a Internet para ampliar o leque de
serviços prestados pelos museus e em reforçar os laços
de comunicação com receptores que, por motivos vários
(distância, falta de hábito ou de tempo, etc.), poderiam
nunca não estar disponíveis para os frequentar. O Museu de
Vila Real disponibiliza a visita virtual a exposições passadas,
no que constitui um excelente convite para actuais e futuras
visitas. E em ambos existem diversos instrumentos lúdicos e
pedagógicos que podem captar a atenção de jovens, em suas
casas, motivando-os também à descoberta dos respectivos
museus. Estamos ainda muito no início do caminho que
a Internet e o registo virtual irão possibilitar. Importa estar
atentos a estes desenvolvimentos. Insensivelmente, no
silêncio de cada internauta, eles constituem uma alavanca
de progresso democrático dos museus.
3.3. O visível e o oculto: a responsabilidade social
de guardar “cacos e pedras”
O museu é um lugar de paradoxos, como bem salienta
Ignácio Dias BALERDI (2008). Paradoxos conceptuais, de
espaço, do objecto, do sujeito e relacionais. O museu de
arqueologia não foge a este estatuto, antes o amplifica em
diversos aspectos. As três páginas de “cascata de perguntas
simples” com que Balerdi introduz a obra acima citada,
incluem interrogações que nos tocam particularmente:
“Conservar?, diz-se? Conservar ou sequestrar? Conservar
para que periodicamente os restauradores restaurem o
que não se tenha conservado bem porque as condições de
conservação não eram idóneas para conservar? Conservar
sem descanso para que tenhamos acesso a uma ínfima
parte do conservado ou restaurado? Porque parece sempre
pequeno o museu para tudo o que contem, ainda que haja
museus tão enormes nos tiram a vontade de visitá‑los?” (idem,
ibidem, 12). Ninguém pode ser insensível à pertinência
destas questões, embora elas decorram, em certa medida,
daquilo que entendemos ser uma deficiente compreensão do
conceito de museu, especialmente do museu de arqueologia,
enquanto instituição e enquanto serviço do Estado.
O museu, em geral, não é somente um centro de
exposições. Aquilo que nele se conserva não visa apenas
essa utilidade social. Nem sequer o contacto com os seus
diferentes utilizadores (termo preferível a “visitantes”,
como procurámos evidenciar noutro local: v. Raposo
1997) se resume a essa única modalidade de diálogo.
E muito mais assim é quando se está perante um domínio
patrimonial como o da arqueologia, a que a sociedade
entendeu conferir uma especial tutela legal, traduzida em
atitudes globalmente proteccionistas e mais concretamente
conservacionistas.
Como já referimos no primeiro ponto deste texto, no
nosso País (assim como na generalidade dos países ditos
desenvolvidos, e deste logo todos os europeus), os bens
arqueológicos são objecto de tutela legal específica, através
da qual o Estado se obriga a protegê-los. No caso dos
imóveis, dos sítios, a lei estabelece que tal protecção possa
ser feita somente através do registo, podendo-se destruir
o bem em si mesmo, por motivos imperiosos atendíveis.
Mas no caso dos bens móveis, tal hipótese não existe, pelo
que todos, todos mesmo, deverão ser conservados. Onde?
Em museus, conforme se institui no artº 14º da Lei‑Quadro
dos Museus Portugueses: “A incorporação de bens
arqueológicos provenientes de trabalhos arqueológicos e
de achados fortuitos é efectuada em museus”. Ou seja, o
museu de arqueologia constitui também, por força da lei,
um local de reserva estratégica de colecções arqueológicas
– situação que origina todo um conjunto de pesadas
consequências.
Desde logo, importa sublinhar que tais bens não
constituem na sua quase totalidade valores em si
mesmos, quer dizer, não são valorizáveis socialmente
sem que sobre os mesmos se tenha produzido adequada
investigação científica. Contrariamente a obras de arte,
que obviamente carecem igualmente de investigação, mas
podem estabelecer diálogo com o presente pelo recurso
aos imaginários ou ao puro sentido estético mais básico
existente em cada um de nós; contrariamente aos objectos
etnográficos, que mantém fortes laços de relacionamento
funcional e empático com a experiência do dia a dia;
contrariamente aos engenhos de todas as épocas, que
mesmo sem o conhecimento da função concreta “falam”
ao visitante pela criatividade que documentam…
os bens arqueológicos são, na sua esmagadora
maioria, mudos por natureza e não possuem especiais
qualidades plásticas ou outras que permitam fazer deles
objectos de contemplação. “Cacos e pedras” apenas
falam quando se lhes consegue entender o contexto.
A arqueologia distingue-se do antiquariato, precisamente
por ser uma ciência de contextos – e nisto está toda a sua
força, assim como toda a sua dificuldade.
Pode admitir-se, é claro, a existência de museus de
arqueologia com colecções fechadas, todas expostas,
sem novas incorporações e por isso sem reservas. Será o
caso de museus que se baseiem em acervos reunidos por
coleccionadores. Pode também aceitar-se a ocorrência de
museus de arqueologia em que as peças sejam expostas
como se de obras de arte se tratassem, adoptando a deriva
que tem sido seguida pelos museus de etnologia nos últimos
anos e que arrisca a constituir-se na sua falência disciplinar.
Mas estas serão sempre excepções. A regra, decorrente
das obrigações sociais e legais que indicámos, é a dos
museus de arqueologia possuírem reservas, normalmente
amplas e com colecções sempre em crescimento.
99
exposições
Ora, a natureza muda do objecto arqueológico, acima
invocada, obriga a que as reservas sejam muito mais
do que meros armazéns (e mesmo estes sempre teriam
de ser dotados das condições ambientais adequadas à
conservação de cada tipologia de material, as quais, como
se sabe, podem chegar a ser opostas, quando se pensa em
metais ou em materiais orgânicos, por exemplo). As reservas
de arqueologia devem obrigatoriamente relacionar-se com
espaços de triagem e estudo de colecções, com laboratórios
mais um menos sofisticados, com gabinetes de desenho e
fotografia, com bibliotecas, com recursos editoriais, etc.
A conclusão é a que retiram todos os que iniciam projectos
de construção de novos museus de arqueologia: a maior
parte das áreas a edificar nunca serão destinadas a espaços
públicos. E, dentro destes, menos ainda a exposições. Certos
autores chegam a recomendar que neste planeamento
se considere cerca de 2/3 da área total para espaços de
acesso condicionado, destinados a equipamentos e pessoal
interno, assim como a utilizadores externos, como sejam os
investigadores e os estudantes especializados. Recorde‑se,
por exemplo, as referências que fizemos ás áreas de reserva
do Museu de Penafiel, que constituem um dos seus pontos
fortes.
Estamos, pois, perante um conjunto vasto de requisitos,
que obviamente remetem para o conceito de rede, quer
dizer, para a necessidade imperiosa de criar complementos
de intervenção entre diferentes museus de arqueologia – o
que decorre tanto de argumentos realistas (limitação dos
recursos financeiros, diversidade das colecções, etc.) como
sobretudo da própria natureza científica interdisciplinar
da arqueologia. Não se trata de proceder a repartições de
competências e capacidades operacionais a partir de uma
qualquer planificação centralista, ditada a régua e esquadro.
Dos exemplos portugueses que demos, verificámos como o
Museu de Mação corresponde e um perfil muito centrado
em todas as actividades de contextualização das colecções,
através do seu estudo, detendo para o efeito equipamentos,
espaços e equipas muito qualificadas, sem todavia ser um
museu de grande dimensão. A questão está em definir em
cada caso um perfil institucional próprio, desenvolvendo
mais algumas das muito diversificadas vertentes que um
museu de arqueologia pode ter, e depois constituir redes
de entreajuda que dêem lugar a um todo coerente à escala
regional e nacional. A questão das reservas estratégicas
de materiais arqueológicos, só por si, constitui tema
suficientemente grave para que esta necessidade seja levada
a sério. E está ainda quase tudo por fazer e regulamentar
em Portugal quanto a esta matéria.
Acresce outro aspecto que nem sempre é bem
compreendido, mesmo dentro do universo dos museus.
Quem detém responsabilidades num museu de arqueologia
não pode deixar de sorrir complacentemente quando
lhe perguntam (e por vezes fazem-no com preocupante
museologia.pt nº3/2009
100
repetição) quantas peças tem o respectivo acervo, quando
se prevê tê-lo inventariado ou, pior ainda, quando se
pensa poder expô-lo todo ou qual o plano que se tem para
que, através de rotação de colecções, ele possa um dia
vir a ser exposto. Existe aqui um enorme equívoco, que
infelizmente penaliza internacionalmente os museus de
arqueologia junto de decisores políticos e de tutelas mais
dadas ao espectáculo. Como explicar-lhes que a maior
parte do acervo de um museu de arqueologia estará sempre
em reserva? Mais ainda: como fazer-lhes entender que
porventura essa maior parte nem sequer nunca mereceria
ser exposta, ainda que houvesse espaço para o efeito?
As colecções de arqueologia conservavam-se porque a lei
assim o obriga, dado que constituem documentos históricos
a que qualquer investigador pode legitimamente querer
recorrer, a todo o momento. Constituem, na sua maioria,
bens que estabelecem diálogo com a sociedade através de
recursos comunicacionais diversos dos da exposição, dos
quais a publicação científica é o privilegiado. Mas será isso
inteligível por quem detém poder de decisão no “mundo
dos museus”? Não haverá o perigo de ter já a truncagem e
o empobrecimento do conceito de museu, decorrente da
“cultura de eventos”, conduzido a que se julgue que este
tipo de funções não é própria de museus ou lhes é menos
prioritária do que a da exposição, preferencialmente
temporária para que se mantenha sempre em movimento a
corrente que proporciona agitação mediática? Infelizmente,
pensamos que o perigo não apenas existe como é já uma
realidade.
3.4. O público e o privado, o próximo
e o distante: virtudes e perigos da “cultura de eventos”
Nos museus que retivemos neste texto encontramos
experiências múltiplas no que respeita a dimensão e
dependências orgânicas. Quanto a estas, observámos farta
dominância da tutela autárquica – o que corresponde ao
panorama geral dos museus portugueses e está na matriz
genética do património arqueológico, pelas relações de
pertença que estabelece com as comunidades que hoje
se sentem suas depositárias. Mas detectámos também o
impulso associativo no caso do Museu da Lucerna, em
Castro Verde, ou no da Citânia e Museu da Cultura Castreja,
em Briteiros. O papel regulador do Estado central apenas
surgiu nas referências aos programas de musealização de
sítios classificados e geridos directamente pelos serviços do
Ministério da Cultura. Finalmente, a iniciativa puramente
privada esteve ausente da nossa amostragem.
Existem disparidades notórias em matéria de dimensão
(amplitude conceptual, grandeza de instalações, montantes
investidos) entre os museus das diferentes tutelas acima
indicadas? Talvez, mas não tão lineares como se poderia
supor.
A injecção na economia portuguesa de importantes capitais,
provenientes de fundos europeus, aliada a um certo
encantamento pelo mercado e pela cultura mediática, tem
aguçado o engenho de quase todos os agentes. Exceptua‑se
talvez o movimento associativo de base, quer dizer, o
impulso gerado a partir dos cidadãos anónimos, como vimos
em Castro Verde, que continua a viver um tanto alheado dos
“fumos da canela” europeia (no que se dá conta tanto da
debilidade da nossa “sociedade civil” como da falta de êxito
ou até de vontade das políticas públicas em promovê-la).
Mas já a iniciativa protagonizada por elites empresariais e
sócio-políticas consegue outra audição, sendo tratada muito
favoravelmente pelo Estado central, como se viu no caso da
musealização do campo da Batalha de Aljubarrota.
Neste ambiente social, o lado mais promissor do
desenvolvimento dos museus portugueses, mormente os de
arqueologia, vem das autarquias. Não obstante os excessos
decorrentes de uma transição demasiado rápida da pequenez
ruralista para o deslumbramento provinciano (hoje muito
mais inquietante e perigoso pela consumição de cabedais
que provoca e sobretudo pela alienação social a que
conduz, mantendo afinal o subdesenvolvimento secular do
País), a vitalidade e a aproximação às gentes e ao território
deste nível de poder político conduz a que, entre situações
menos felizes, possam sempre ser indicados exemplos
altamente positivos a que, com o necessário optimismo,
devemos conceder valor seminal. É manifestamente o caso
dos Museus de Penafiel ou do Fundão, sobretudo este no
âmbito em que nos situamos porque versa especificamente
a arqueologia e desenvolve projecto modesto na aparência,
mas ambicioso e altamente estruturante na substância.
Importa acentuar que modéstia e ambição são ambas virtudes
e nem sequer são antagónicas. Sobretudo não se discriminam
através do valor financeiro dos investimentos efectuados em
cada caso. Nada obriga a que em cada situação concreta e
em face da vontade política ou económica de potencializar
a arqueologia (como em geral o património) se opte por
fazer museus. Em muitos casos será muito mais apropriado
realizar um parque temático, um centro cultural ou qualquer
outro equipamento de maior visibilidade e rentabilização
mais imediata. Sempre considerámos, por exemplo, que
mal andaram os arqueólogos que se opuseram à realização
em Foz Côa, por iniciativa privada, de uma espécie de “feira
popular” da Pré-História, um “jardim zoológico” de animais
e cenas de caçadores destinado a atrair o turismo de massas.
Seria bom que existisse uma tal ferramenta recreativa. E que
tivesse êxito, para ser economicamente compensatória e
criar fluxos de frequentadores dos quais bastaria que uma
baixa percentagem fosse também ao museu e aos núcleos
de arte rupestre, para que estes vissem aumentar a sua
frequência.
O museu pode efectivamente dar resposta a muitas
necessidades sociais, como salienta por exemplo Fioma
McLean, num conhecimento manual sobre mercandização
nos museus, retomando estudos anteriores: passeio e
turismo; educação, formal ou informal; visita histórica,
geral ou específica; entretenimento; compra de prendas;
refeições; investigação: profissional (académica) ou
amadora; colecção e registo; trabalho social ou comunitário;
entretenimento pessoal da família, amigos, colegas de
trabalho; preenchimento de objectivos pessoais, políticos
e sociais; empréstimo de material; criação de emprego;
voluntariado; imagem de marca: local, regional ou
nacional; cenário de trabalho para televisão, cinema, rádio;
lançamento de produtos; envolvimento comunitário; treino
de capacidades e técnicas artesanais (McLean 1997, 89).
Todavia, se analisados de perto, nem todos estes usos
sociais possuem o mesmo estatuto. Uns, sobretudo os mais
directamente relacionados com a criação de receita, podem
do mesmo modo, porventura com vantagem, ser prosseguidos
por numerosos estabelecimentos comerciais, inclusive por
alguns que se entenderiam igualmente como equipamentos
culturais. Outros constituem um reduto quase singular dos
museus: estudo e investigação, incorporação, inventário
e documentação, conservação, segurança… – afinal as
cinco primeiras “funções museológicas” definidas pela
Lei‑Quadro dos Museus Portugueses, antes das duas finais,
que são interpretação e exposição e educação. Por isso, aos
profissionais que trabalham com acervos arqueológicos,
especialmente aos arqueólogos e aos museólogos, cabe o
papel indeclinável de tornar claro o que deve ser um museu,
prevenindo os seus potenciais promotores para equívocos
poderão ser danosos no médio prazo.
Uma vez tomada, conscientemente, a decisão de criar um
museu de arqueologia, a questão seguinte será a de avaliar
criteriosamente o seu objectivo social. Em geral, pode
dizer-se que quanto mais um museu dispuser de acervos
ricos e diversificados, quanto mais pretender transmitir
mensagens de síntese, visões históricas integradas, menos
dependente se encontra de “efeitos especiais”. Pode e deve
utilizá-los, mas com conta, peso e medida. Inversamente,
na falta de colecções substantivas ou no caso da fixação
monográfica, ou quase, em determinado sítio ou tema, o
recurso a novas tecnologias adquire maior oportunidade.
Faz por exemplo mais sentido, em nosso entender, recriar
ambientes realistas, dotados de som, luz e talvez odores
em centros interpretativos de sítios arqueológicos, ou em
museus monográficos, temáticos ou de território, do que
em museus arqueológicos “de retaguarda”, sejam eles
concelhios, regionais ou nacionais. O sítio musealizado,
na sua aparente veracidade, no seu contacto com o
ambiente imediato, no carácter impressivo da ruína, é por
natureza um local onde o apelo à epiderme dos sentidos
se impõe mais intensamente, podendo e devendo esse
convite ao “mergulho sensorial no passado” ser facilitado,
e moldado, através de recursos comunicacionais fortes.
101
exposições
Veja-se, a título de exemplo, a passagem “do multimédia
à Idade Média”, que o centro interpretativo da Batalha de
Aljubarrota promove e que (questões de política patrimonial
e prioridades de investimento à parte) se mostra eficaz
junto do visitante, permitindo-lhe o coração “sentir” o
simbolismo do local onde se encontra e “ver”, com os olhos
da imaginação, a realidade quase invisível que o rodeia.
Logicamente, estas ofertas museais atrairão, pelo menos no
curto prazo e enquanto não envelhecerem, mais público do
que os museus ditos tradicionais. Tal como os monumentos,
mesmo os menos musealizados, são por via de regra mais
visitados do que os museus, mesmo os mais sedutores.
Mas constituiria um erro crasso medir o serviço público
dos museus somente através do indicador do número de
visitantes. Os museus são e devem continuar a ser corredores
de fundo, instituições cuja garantia de perenidade está no
cumprimento das funções bem mais amplas que os definem
e acima evocámos. “O maior erro que o Museu pode e
está em muitos casos a cometer é de convencer-se que
apostando tudo em marketing e na atracção de um grande
número de visitantes, oferecendo-lhes mais espectáculo
do que conteúdo e excelentes serviços comerciais, será
uma instituição de sucesso”, afirma Nuno Guina Garcia,
num dos mais ponderados e profícuos estudos portugueses
sobre esta temática que conhecemos (GARCIA, 2003).
O mesmo autor acrescenta logo depois: “Ao fazer isto,
ao abandonar o que o distinguem dos restantes sectores,
estará a entrar em concorrência directa com outras formas
de entretenimento e, certamente, acabará por perder essa
batalha, porque os outros, nesse campo, são muito mais
eficazes. Se, pelo contrário, assumir que tudo aquilo que
faz se baseia na autenticidade e honestidade e convencer
os seus stakeholders de que desempenha um papel útil
enquanto organização de comunicação cultural e científica,
terá as condições para manter o seu valor social. Esta não
é, portanto, apenas um princípio ético; é uma receita para a
sobrevivência” (idem, Ibidem, 158).
Por fim, resta recordar que o serviço dos museus só se
cumpre inteiramente quando se exploram as vantagens
da complementaridade das articulações em rede. Esta é
verdadeiramente a condição do seu êxito e a arqueologia
está especialmente favorecida para a construção de redes
museais, porque a sua identidade disciplinar a tal conduz,
conforme indicámos no ponto anterior deste texto, e porque
dispõe de coesão sócio-profissional tal que lhe permite
auto-organizar-se, com alguma facilidade. Redes entre sítios
musealizados, centros interpretativos e museus; redes entre
museus locais, regionais e nacionais; redes entre “museus
pequenos” e “grandes museus”…
Esta última complementaridade parece-nos em especial
promissora e temos procurá-lo praticá-la. Os “pequenos
museus” possuem em arqueologia um papel central,
dada a natureza profundamente democrática dos bens
museologia.pt nº3/2009
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arqueológicos, quando apropriados patrimonialmente,
conformemente à tese com que iniciámos este texto.
Jean‑Michel Tobelem assinala-o com particular felicidade:
“Parece possível evocar três tipos de justificação para
a existência de museus ‘pequenos’. Eles dão origem
por vezes a uma vida social e associativa activa,
nomeadamente através do canal das sociedades históricas
e arqueológicas e de múltiplas associações locais; eles
permitem a numerosos benévolos participar na salvaguarda
e na valorização do património; e eles aparecem
frequentemente próximos dos visitantes: os seus temas,
o seu modo de aproximação e a disponibilidade dos
seus responsáveis fazem que frequentemente eles surjam
mais acessíveis do que os grandes museus intimidantes
e que parecem – com ou sem razão – reservados a uma
certa elite cultivada.” (TOBELEM, 2005, 161-162).
Dir-se-ia que fica expressa nas considerações anteriores a
defesa dos “pequenos museus” de forma que pode causar
estranheza por vir de quem detém responsabilidades
num “grande museu”. Nem tanto, porém. Tobelem, logo
depois da passagem citada, acrescenta ainda: “Pode-se
também considerar que os pequenos museus possibilitam
desempenhar um papel pedagógico incitando os seus
visitantes a frequentar depois os grandes estabelecimentos”
– e aqui encontramos parte da explicação que permite
compreende a nossa perspectiva: existe lugar para todos,
e também para o nacional, pelo menos enquanto nos
considerarmos colectivamente detentores de identidades
que se constituíram num território que chamamos nosso,
através da sedimentação de gentes diversas, com recortes e
procedências geográficas as mais díspares.
A verdade é que os bens arqueológicos estão disseminados
pelo território, originando sentimentos de pertença
comunitária muito fortes, porventura ingénuos, mas
estimáveis. O sítio musealizado, o centro interpretativo e
o “pequeno museu” local constituem por isso instrumentos
básicos de cidadania. É certo que, em certo sentido,
podemos afirmar que a cidadania plena apenas se atinge
com a percepção daquilo que está para além da nossa rua,
sendo o plano do Estado-Nação um dos que historicamente
mais nos mobiliza e que de modo algum julgamos
ultrapassado. E, já que falamos de arqueologia, sabemos
bem como numerosos vestígios de tempos remotos não
constituem sequer pertença de países particulares, porque
objectivamente são património comum de regiões inteiras
ou até da humanidade, no seu todo. Assim é, facto.
Uma boa articulação de museus de arqueologia não pode
dispensar nenhuma das escalas. Em Portugal, país de tão
longa sedimentação histórica, a situação nem sequer é
complicada. Devido à tradição e à nossa própria dimensão,
estamos convictos que o local e o nacional tenderão a
polarizar por muitos e bons anos o modus vivendi social,
inclusive no mundo dos museus de arqueologia.
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