O eco das vozes enunciadora e enunciatária em Leite derramado

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O eco das vozes enunciadora e enunciatária em Leite derramado
O eco das vozes enunciadora
e enunciatária em Leite derramado
Juracy Assmann Saraiva*
Ana Paula Marques Cianni de Oliveira**
Resumo
Este artigo analisa os procedimentos técnico-narrativos que instalam a relação entre o enunciador e os diferentes enunciatários do romance Leite derramado, de Chico Buarque de Hollanda, a partir de fundamentos da narratologia. Ao enfocar o texto como um ato comunicativo,
o artigo realiza reßexões sobre o processo de sua execução e sobre os efeitos que ele provoca
no receptor, valorizando a produção artística de Chico Buarque.
Palavras-chave: Leite derramado. Enunciador. Enunciatário. Narratologia.
1 O modo discursivo e o enunciador em Leite derramado
A narrativa é um tecido textual formado por elementos composicionais superpostos e imbricados. Sua análise acontece por meio do esfacelamento das relações que nela coexistem, que compreendem desde o
estudo pormenorizado do acontecimento narrado, as relações entre as personagens, a conÞguração do processo de enunciação, até o contexto sócio-histórico ao qual ela se reporta.
Leite derramado, a premiada obra de Chico Buarque,1 é uma narrativa que engendra, por meio da palavra, fatos e acontecimentos que marcaram a trajetória do narrador Eulálio e de sua família, mas, ao se reportar
à vida do enunciador, o texto promove a inserção de fatos pertinentes à
história do Brasil, reapresentando-os literariamente.
Essa obra retoma a história de uma tradicional família brasileira. Em tom memorialístico, os acontecimentos são revividos a partir da
* Pós-doutora em Teoria Literária pela Unicamp. Professora e pesquisadora da Universidade Feevale, desenvolvendo suas pesquisas com o apoio do CNPq e da Fapergs.
(E-mail: [email protected]).
** Mestranda em Processos e Manifestações Culturais pela Universidade Feevale, pós-graduada em Literatura Brasileira Contemporânea pela Universidade do Rio dos Sinos
(Unisinos) e graduada em Letras – Português e respectivas literaturas – pelas Faculdades
Integradas Teresa d´Ávila, em São Paulo. (E-mail: [email protected]).
1
Leite derramado recebeu o prêmio Jabuti – tradicional premiação da literatura brasileira –,
e o prêmio Portugal Telecom de Literatura, na categoria de melhor romance de 2010.
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lembrança de Eulálio, narrador de um monólogo não linear que, idoso
e doente, reconta, do leito de morte, a decadente saga de sua família,
outrora inßuente e ligada às estruturas de poder presentes na história
do Brasil. Em Eulálio “a memória é uma vasta ferida” (BUARQUE, 2009,
p.10), especialmente quando se reporta a Matilde – esposa que o abandona –, cujo destino é enigmático, mas, também, devido à representatividade social, econômica e política que sua família progressivamente deixa
de simbolizar.
Assim, Leite derramado conjuga a experiência pessoal do narrador a
momentos históricos da sociedade brasileira, constituindo, portanto, um
recontar a partir da ótica das migalhas do cotidiano de uma elite declinante, no princípio cercada por ricos rendados, cristais e joias de família para,
posteriormente, Þnalizar na obscuridade, na falta de recursos materiais,
morais ou espirituais. Nada sobra da prosperidade e do prestígio da família Assumpção, e, dela, Eulálio mantém somente o nome, que também
já não importa, pois é desconhecido para as pessoas com quem ele se comunica.
Num relato ícone de confusão mental, o que dá verossimilhança
ao enredo, tendo em vista se tratar de um narrador idoso, doente, próximo à morte e com recorrentes falhas de memória, Eulálio faz questão de
presentiÞcar o passado da família; insiste em recorrer aos antepassados,
mostrando a inßuência que detinham, bem como a proximidade com o
luxo, o poder e a tradição, ainda que pobres em valores morais e éticos.
Da linhagem, Eulálio ganhou o orgulho de ter um trisavô que desembacara no Brasil com a corte, aliás, fugida de Portugal; do bisavô recorda-se
de ser um barão, título provavelmente – como relata o discurso historiográÞco – recebido em troca de favores ou bajulações prestadas aos
mandatários do poder; do avô, rememora tratar-se de um comensal de
D. Pedro II, que morrera em Londres, amargurado pelo asilo político,
devido a suspeitas de ter se locupletado com o dinheiro público; Þnalmente, do pai lembra que o senador republicano foi assassinado, possivelmente pelo comportamento adúltero com que afrontava os costumes
morais da primeira metade do século XIX.
Ao enunciador do relato, enÞm, sobraram as migalhas de uma tradição desonrosa que tenta apresentar, juntando os cacos de si mesmo, com
ironia e dissabor. Dessa descendência não poderia emergir outra personagem que Eulálio, um homem desacostumado com o trabalho, despreparado para a vida que, em vão, tentara se beneÞciar das antigas e inßuentes amizades da família para manter os negócios do pai, mas que decaíra
paulatinamente na escala social, evidenciando, nessa trajetória, aspectos
da realidade social e política do Brasil. Portanto, a retomada do real que
a Þcção proporciona acontece, em Leite derramado, por intermédio da voz
discursiva de Eulálio, a partir do recorte particular que tem sobre os fatos
narrados. Trata-se de um discurso que traz uma acepção particular sobre
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os acontecimentos da diegesis, na qual são ressaltados não apenas o logos,2
ou seja, os fatos narrados, mas, especialmente, a lexis, a maneira de narrar,
que concorre para contaminar o auditório Þccional e real com a visão de
mundo que o enunciador transmite. A narrativa reporta-se mimeticamente à realidade, mas o faz com a devida elaboração artística, pois a literatura, neste sentido, imita o real, reelaborando-o.
A representação mimética que a narrativa promove não se limita à
narração objetiva. Ao contrário, Leite derramado enriquece-se com a subjetividade discursiva de Eulálio que continuamente interfere na construção
do enunciado e age de forma explícita no apontamento sequencial dos fatos narrados ou na inclusão de observações e comentários que trazem à
tona a maneira peculiar com que conceitua seu universo pessoal, como se
veriÞca a seguir:
E quando lhe anunciei que iríamos em breve ao cais do porto, para receber o engenheiro francês, ela se fez de rogada.
Porque você era recém-nascida, e ela não podia largar a
criança e coisa e tal, mas logo tomou o bonde para a cidade
e cortou os cabelos à la garçonne. Chegado o dia, vestiu-se
como achou que era de bom-tom, com um vestido de cetim
cor de laranja e um turbante de feltro mais alaranjado ainda.
Eu já lhe havia sugerido que guardasse aquele luxo para o
mês seguinte, na despedida do francês, quando poderíamos
subir a bordo para um vinho de honra. Mas ela estava tão
ansiosa que se aprontou antes de mim, Þcou na porta me esperando em pé. Parecia empinada na ponta dos pés, com os
sapatos de salto, e estava muito corada ou com ruge demais.
E quando vi sua mãe naquele estado, falei, você não vai. Por
quê, ela perguntou com voz Þna, e não lhe dei satisfação,
peguei meu chapéu e saí (BUARQUE, 2009, p.11-12).
No momento em que, ao dialogar com a Þlha Maria Eulália, opta
por introduzir expressões como ela se fez de rogada, logo tomou o bonde, já
lhe havia sugerido, vi sua mãe naquele estado, o enunciador deliberadamente
sugere à narratária e ao leitor a forma pessoal com que concebe a personagem Matilde, além de implicitamente concorrer para manipular a interpretação da Þlha e do receptor extradiegético acerca do comportamento da
esposa. Esse comportamento não atende às expectativas do aristocrático
Assumpção, que o avalia como sendo vulgar e de mau gosto.
Diante da força e importância que a voz enunciadora adquire no
texto, o crítico literário francês Gérard Genette considera relevante analisar a voz de quem enuncia, bem como a situação em que enuncia, pois não
se pode “desprezar a presença do narrador na história que conta” (GENETE, s.d., p. 212). A narrativa é uma construção que almeja neutralidade e
objetividade, mas não deixa de ser perpassada pelas escolhas subjetivas
2
Platão estabelece a polarização entre logos e lexis. Aquele aponta para o que se narra ou o
que é dito de forma objetiva – diegesis ou simples narrativa –, esta à maneira de narrar, o
como é dito – mimesis ou imitação propriamente dita, que pode ser permeada de subjetividade.
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daquele que fala por meio dela. Trata-se do que o linguísta Émile Benveniste, como rememora Genette (2009, p. 278), aponta como subjetividade
presente na linguagem, pois o enunciado é contaminado pelas marcas particulares do narrador – ainda que materialmente construído pelo autor –,
que não deixa de ser uma personagem da estrutura diegética. “A situação
narrativa de Þcção não se reduz nunca somente à sua situação de escrita”
(GENETTE, s.d., p. 213), já que o autor é alguém que imagina a narrativa,
enquanto o narrador, neste caso, é a personagem que vive, tem contato
íntimo ou certo domínio sobre os acontecimentos a serem narrados. A narração, portanto, contém marcas daquele que a pronuncia, pois a diegesis
é narrada a partir do viés interpretativo e ideológico de seu enunciador.
Com efeito, Leite derramado acentua a função discursiva da linguagem, visto que a subjetividade do discurso contamina o enunciado, ao
apresentar a versão que o narrador tem sobre os fatos narrados. Não há
uma narração neutra, mas, sim, impregnada de pessoalidade, pois o narrador, além de responder às questões da função narrativa, é um dos atores da
narrativa que conta a própria história, sendo, pois, homo e autodiegético.
Eulálio, portanto, intervém de forma explícita no enunciado, o que
concorre para particularizar o texto que, ao se alimentar da subjetividade,
é impregnado por axiomas típicos da camada social a qual o narrador pertence. A construção linguística adquire, portanto, pessoalidade e expressa
particulares visões de mundo, promovendo a inclusão de aspectos modais. Ao iniciar a obra, Eulálio diz:
Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da
minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o
vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar
sentimental, não é por causa da morÞna. Você vai dispor
dos rendados, dos cristais, da baixela, das joias e do nome
da minha família (BUARQUE, 2009, p.5).
No fragmento inicial do romance, evidencia-se a lexis, ou seja, a maneira que o narrador escolhe para expor a história a outrem emana de sua
situação, de sua caracterização e de seus valores. Eulálio dirige-se a um
narratário especíÞco, a enfermeira, com quem imagina casar quando sair
do hospital. Mostra que está doente e usa remédios fortes como a morÞna, informações que podem explicar o tom delirante e, algumas vezes,
desconexo de seu relato. Faz prevalecer seu ponto de vista sobre os acontecimentos – postura que igualmente adotara no trecho referente à esposa
Matilde –, e, ao aÞrmar que irão se casar na fazenda da infância, ou que a
futura esposa usará o vestido da mãe, assim como poderá dispor dos bens
e do nome da família, o narrador mostra que, sozinho, toma decisões sobre
acontecimentos futuros. Ele simplesmente os comunica à narratária sem
considerar sua opinião, pois não lhe importa o que ela desejaria em relação
ao casamento, caso fosse se concretizar. O uso enfático de pronomes pessoais e possessivos é esclarecedor desse aspecto, visto que não só indicia a
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predominância da ótica do narrador, mas também a prepotência com que
estabelece sua relação com o interlocutor.
Em outro momento da diegesis, Eulálio promete não ter com a futura
esposa a mesma postura sufocante que delegara a Matilde. Ao aÞrmar que
“quando sair daqui, vou levá-la comigo a toda parte, não terei vergonha
de você. Não vou criticar seus vestidos, seus modos, seu linguajar, nem
mesmo seus assobios” (BUARQUE, 2009, p. 61), o enunciador revela uma
postura reßexiva, pois, ao se considerar as ações narradas, nota-se que Eulálio repensou suas atitudes anteriores e propõe a si mesmo uma mudança
comportamental, segundo a qual deseja não ter vergonha dos modos simples da enfermeira, promete não criticar seu vestuário, seu linguajar e suas
condutas, como fazia com Matilde. EnÞm, Eulálio promove uma reßexão
crítica de si, fato que determina a postura homo e autodiegética da voz
dessa instância narrativa, em que as avaliações de Eulálio assinalam o tom
confessional. Portanto, não se ausenta da diegesis a voz que a constitui,
além de que o discurso é impregnado por sinais que evidenciam aquele
que o pronuncia, como, por exemplo, quando Eulálio julga as ações, o vestuário, o penteado de Matilde por ocasião da vinda do engenheiro francês.
Nesse sentido, em consonância com a teoria estruturalista de
Genette, observa-se que a representação mimética que a literatura promove não se limita à narrativa objetiva, mas inclui a subjetividade do enunciador traduzida em seu discurso. Na maneira de narrar, isto é, na mimesis
de Leite derramado estão presentes a pessoalidade e a interferência constantes do enunciador.
Na narrativa de Chico Buarque, essa presença se traduz, também,
em elementos que, aparentemente, parecem exercer apenas a função de
produzir efeitos de realidade, corroborando a importância que Gérard
Genette atribui à descrição, visto que, para ele, é “mais fácil descrever sem
narrar do que narrar sem descrever” (GENETTE, 2009, p.273). O teórico
francês mostra que narração e descrição se entrelaçam na estrutura do relato, que se constitui tanto da representação de ações e acontecimentos
como da apresentação de personagens e objetos, ou seja, da composição
descritiva. Isso ocorre porque, além de constituir um elemento estéticodecorativo, a descrição introduz conotações, pois permite a exposição do
mundo interior das personagens, ao agregar símbolos e percepções axiológicas ao processo de concepção da narrativa.
Os elementos descritivos em Leite derramado realçam a caracterização das personagens e expõem, de forma implícita, sua psicologia,
agregando considerações pessoais à narrativa. Dessa forma, a descrição
adquire uma função relevante, superando o aspecto meramente decorativo. Em “confesso que, para mim, era um pouco melancólico ver as ruínas
da sede colonial, a capela em esqueleto, o estábulo carbonizado, a relva
seca e a terra estéril da fazenda da minha infância” (BUARQUE, 2009,
p.79), a descrição denuncia a degradação econômica, social e moral de Eulálio, realçando seu universo íntimo.
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No momento em que contrapõe passado e presente, Eulálio evidencia a polarização entre um tempo vivido entre luxo e riqueza e outro de
decadência e pobreza. A sede da fazenda, outrora imponente, agora se
encontra em ruínas; a capela, consagrada pelo cardeal arcebispo do Rio
de Janeiro – o que indicia representatividade e poder – mantém somente a
estrutura e seu estado de incúria é ressaltado pelo uso do termo esqueleto,
sema que refere não apenas o desmazelo com o prédio e o desnudamento
dos ritos sustentados pela decoração, mas a própria extinção de sua Þnalidade; a estrebaria aponta para a destruição e o vandalismo; a grama,
além de seca, está estéril, ou seja, é incapaz de gerar vida ou agregar uma
perspectiva em que ela se desenvolva. EnÞm, a descrição não denota exclusivamente a degradação dos objetos e bens, mas, igualmente, conota a
ampla derrocada da estirpe de Eulálio, sendo a comprovação de seu Þm.
Relacionado a isso, outro aspecto que peculiariza Leite derramado é
o tratamento dado ao tempo. A referência temporal delimita a distância
entre o tempo da história e o tempo da narração, marcando, ou não, o afastamento temporal do narrador com relação aos acontecimentos da narrativa. Sob esse ângulo, a narração pode ser classiÞcada como ulterior, uma
vez que os fatos narrados ocorrem anteriormente à narração; entretanto, a
distância em relação aos fatos narrados é variável, pois o enunciador não
omite sua emoção em face dos episódios, estejam esses distantes ou próximos do momento da enunciação.
O romance conjuga, portanto, diferentes planos de temporalidade
que abarcam tanto o passado remoto da família, como narrativas encaixadas, das quais Eulálio participou, além dos acontecimentos do dia a dia no
espaço do hospital. A inclusão de eventos diegéticos – como o que envolve
Dubosc, o engenheiro francês, com quem Eulálio imagina que Matilde tem
um caso amoroso; o de Amerigo Palumba, que casa com a Þlha de Eulálio,
roubando-lhe parte da fortuna; o de Balbino, o empregado da fazenda a
quem Eulálio impõe ações degradantes e por quem se sente sexualmente
atraído; dentre outros – concorre para corroborar impressões, que interferem na narrativa como um todo. Quando introduz, por exemplo, o relato
que trata da personagem Balbino, o enunciador traz explicações ao leitor,
intra e extradiegético, sobre sua conduta e sobre os preconceitos sociais
que a regem, visto que esse relacionamento oferece índices que reforçam
o perÞl dissimulado e preconceituoso do enunciador. De acordo com a
signiÞcação global da narrativa, ele considera o criado um ser inferior, mas
aÞrma que “a convivência com Balbino fez de mim um adulto sem preconceitos de cor” (BUARQUE, 2009, p.20), declaração que faz parte de um
discurso pouco conÞável, que estabelece a oposição entre o que é dito e o
que realmente deve ser apreendido pelo leitor.
A ambivalência deixa evidente que o narrador tem funções próprias, que, interrrelacionadas, vão além da função propriamente narrativa
– o contar a história. A voz que narra adquire, na diegesis, função de regência – que recobre as decisões tomadas pelo narrador ao narrar – e a de
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comunicação – que remete aos procedimentos utilizados por ele para comunicar e persuadir o narratário e, por extensão, o leitor empírico. Por Þm,
“as intervenções, directas ou indirectas, do narrador a respeito da história
podem tomar também a forma mais didáctica de um comentário autorizado da acção [...] a que se poderia chamar a função ideológica do narrador”
(GENETTE, s.d., p. 255).
A partir da análise das funções do narrador, percebe-se que Chico
Buarque cria em Leite derramado um enunciador que tem comando pleno
da narrativa, no tocante às funções narrativa, regencial e comunicativa,
bem como no que tange à função ideológica, mediante a qual Eulálio
intenta fazer prevalecer seu viés interpretativo sobre os fatos narrados,
ainda que as Þssuras do discurso deixem perpassar o ponto de vista axiológico de outras personagens. No seguinte fragmento do texto,
Quando eu sair daqui, vamos começar vida nova numa cidade antiga, onde todos se cumprimentam e ninguém nos
conheça. Vou lhe ensinar a falar direito, a usar os diferentes
talheres e copos de vinho, escolherei a dedo seu guardaroupa e livros sérios para você ler. Sinto que você leva jeito porque é aplicada, tem meigas mãos, não faz cara ruim
nem quando me lava, em suma, parece uma moça digna
apesar da origem humilde. Minha outra mulher teve uma
educação rigorosa, mas mesmo assim mamãe nunca entendeu por que eu escolhera justamente aquela, entre tantas
meninas de uma família distinta (BUARQUE, 2009, p. 29),
o narrador, dirigindo-se à enunciatária – a enfermeira –, narra, comunica
fatos passados, revela percepções pessoais preconceituosas, divulga e valora seus pontos de vista, além de escolher correntemente as construções
da estrutura formal. O enunciador inicia o parágrafo dirigindo-se à narratária, e, apesar do tom inicial de cumplicidade – vamos começar vida nova –,
não deixa de evidenciar aspectos que excluem sua ouvinte do grupo social
a que ele pertence – Vou lhe ensinar a falar direito, a usar os diferentes talheres
e copos de vinho, escolherei a dedo seu guarda-roupa e livros sérios para você ler –,
concluindo com uma concessão que denuncia a valorização de sua classe
social, em detrimento dos valores morais, ao atribuir qualidades à enfermeira, quando aÞrma que ela parece uma moça digna apesar da origem humilde. A seguir, Eulálio menciona a educação da esposa, introduz comentários
de sua mãe sobre Matilde, regendo desta forma a escritura do texto, cujo
tecido incorpora, entre outras funções, a de determinar a avaliação do que
é narrado.
A observação do processo narrativo de Leite derramado permite
apontar que, ainda que se trate de uma enunciação autobiográÞca, de
caráter confessional, a percepção de outras personagens se mescla ao
discurso de Eulálio, ou seja, o enunciador transpõe, em sua enunciação,
valores e pontos de vista de outros atores, como os da mãe, da Þlha, do
genro, do neto e do bisneto. Em “olhou-me bem de perto e disse que,
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entre os Montenegro de Minas Gerais, ninguém tinha beiços grossos
como os meus” (BUARQUE, 2009, p. 74), percebe-se a existência de um
discurso bivocal, pois, ainda que seja a voz do narrador, esse enunciado
transmite o enunciado da mãe, revelando a concepção de mundo de uma
mulher conservadora e preconceituosa, especialmente com negros, em
que também é manifestada a rejeição do próprio Þlho. Já em “o garotão
viaja para não sei onde, anda com malas cheias de dinheiro, e ela diz, este
sim é um legítimo Assumpção” (BUARQUE, 2009, p. 78), o enunciado
é emitido pela voz de Eulálio, mas expressa a visão ingênua de Maria
Eulália acerca dos negócios escusos do bisneto. Eulálio, na situação em
que se encontra e após ter vivido uma ampla derrocada Þnanceira, moral
e espiritual, analisa com sensatez o comportamento dos familiares. Ao
citar a aÞrmação da Þlha, o narrador nela inocula sua compreensão irônica, pois tem a noção nítida de que as malas cheias de dinheiro advêm de
uma atividade ilícita, dando continuidade à forma de enriquecimento de
seus ancestrais. Finalmente, em “aos dezessete anos, segundo ele, já estava mais que na hora de eu conhecer a neve” (BUARQUE, 2009, p. 35), o
enunciado, como os anteriores, é contaminado pelas percepções de outra
personagem, no caso, o pai de Eulálio, que, neste fragmento textual, leva
pessoalmente o Þlho a uma experiência com entorpecentes, apresentados
sob o eufemismo neve.
Com efeito, ainda que Eulálio narre a partir do recorte pessoal que
faz da realidade, seu contar agrega conhecimentos, percepções e posicionamentos particulares de outras personagens. Como demonstra Genette
(s.d.), trata-se de uma narrativa com focalização interna Þxa que se realiza através de uma construção autodiegética, mas que, no entanto, em
vários momentos, se apropria do discurso de outros atores, fazendo-o
transparecer em sua voz enunciadora, comprovando que a narração é,
na deÞnição de Juracy Assmann Saraiva (2009, p. 25), um ato interenunciativo, por meio do qual várias vozes discursivas, superpostas, se fazem
presentes.
Eulálio, como narrador autobiográÞco, não pode ausentar-se da
narrativa, mas a forma como sua presença constante é instituída interfere
no processo de recepção e cria uma proximidade com o narratário e com o
leitor empírico. Ao aÞrmar que “... todos sabiam que a sua mãe, desarvorada, tinha partido sem deixar um bilhete ou fazer a mala” (BUARQUE,
2009, p. 95), o termo desarvorada, que abrange juízos de valor, interfere na
apreensão de Maria Eulália sobre o que está sendo contado e, por extensão,
na do receptor real. Não há, portanto, uma postura neutra do narrador, já
que ele expressa seus pontos de vista, orientando – devido à cumplicidade que estabelece com os agentes do ato comunicativo – a avaliação dos
eventos narrados. Todavia, o recurso técnico-composicional não anula as
contradições do discurso, permitindo que o leitor real apreenda os signiÞcados subjacentes às declarações do narrador.
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2 O enunciatário em Leite derramado
Assim como o narrador tem papel ativo, plural e complexo, o destinatário da narrativa, Þccional ou empírico, não é passivo e adquire função exponencial. O primeiro – o narratário – está inscrito na diegesis, pois
participa do processo de comunicação da narrativa sendo a personagem,
explicitamente referida ou não, a quem o enunciador destina seu discurso.
O narratário não se confunde com o leitor empírico, já que faz parte do
universo diegético, mas sua representação textual contribui para instalar
uma relação de proximidade ou de afastamento do receptor real em relação ao texto.
Em Leite derramado, Chico Buarque cria um narrador cuja palavra
decorre da emergência de diálogo com aqueles que o cercam, recurso que
contribui para instituir o efeito de veracidade. Dessa forma, cada capítulo expõe a interlocução de Eulálio com alguma personagem, que, como
receptora, lhe permite recuperar o tempo das experiências vividas para
ancorá-las no presente da enunciação. Frequentemente, ele se dirige à enfermeira com a qual simpatiza e à Þlha, no entanto, a narração contempla
outros enunciatários, menos invocados, como a mãe, alguns funcionários
do hospital e uma enfermeira que lhe desagrada.
Com a enfermeira com quem imagina casar, o narrador compartilha
a retrospectiva de sua vida, relatando suas mazelas, na tentativa de juntar
lembranças e compreender sua própria vida e a saga da família. No trecho
abaixo, a enfermeira é a destinatária do discurso de Eulálio, que aÞrma:
Se eu não puder ir junto, farei um cheque para você comprar um vestido bacana, assim que o dinheiro entrar na
minha conta. Não se acanhe, porque numa butique de Ipanema qualquer rapariga vai lhe aconselhar tão bem quanto
eu. Você pode rir, mas no meu tempo nem havia butique,
com o meu dinheiro você compraria um corte em loja de fazendas, para a modista copiar um croqui de revista francesa. Mulheres mais abonadas faziam como mamãe, que todo
ano acompanhava meu pai à Europa e trazia vestuário para
as quatro estações (BUARQUE, 2009, p. 83).
A narratária, personiÞcada na Þgura da enfermeira, recebe de Eulálio
a conÞdência de que aguarda dinheiro proveniente do bisneto e a promessa
de ser presenteada com um vestido. Todavia, o narrador dirige-se a ela brevemente e, em seguida, passa a eventos pretéritos, acrescentando informações
sobre o perÞl da mãe, o casamento de seus pais e a riqueza de sua família.
Continuando o diálogo com a enfermeira, que, por vezes, assume
a forma de um monólogo, o enunciador aÞrma que “aquela que veio me
ver, ninguém acredita, é minha Þlha. Ficou torta assim e destrambelhada
por causa do Þlho. Ou neto, agora não sei direito se o rapaz era meu neto
ou tataraneto ou o quê” (BUARQUE, 2009, p. 14). O narrador reforça, ao se
reportar à narratária, a função comunicativa, dela se valendo para retomar
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o relato sobre outras personagens ou sobre sua história, além de investir
no presente da narração, o que, mais uma vez, assinala a importância de
sua atuação como condutor da narração. Eulálio intercala a seu enunciado
a oração ninguém acredita, a qual evidencia sua avaliação acerca da Þlha,
sendo, igualmente, uma estratégia comunicativa, que, no universo textual,
reforça a situação de diálogo. Entretanto, a ideia de contraste, inerente à
observação, permite depreender, também, a imagem do próprio Eulálio:
ninguém acreditaria que Maria Eulália, torta e destrambelhada, seria Þlha
de um homem distinto e polido como ele. Outro aspecto a salientar nessa
passagem diz respeito à senilidade de Eulálio, incapaz de distinguir sua
relação de parentesco com os descendentes.
Ao dialogar com a Þlha, Eulálio, em momentos que conjugam
lucidez e delírio, supostamente esclarece acontecimentos passados, especialmente os que tangem à ausência de Matilde na vida de ambos.
O enunciador tece considerações que recaem sobre o presente da narração
e presentiÞcam fatos sobre seus ascendentes e descendentes, que caminham progressivamente para uma maior perda de valores morais e éticos.
Bom dia, ßor do dia, mas deve haver modos menos agourentos de se despertar que com uma Þlha choramingando
à cabeceira. E pelo visto, mais uma vez você veio sem os
meus cigarros, que dirá os charutos. Que é proibido fumar aqui dentro eu sei, mas dá-se um jeito, também não
estou lhe pedindo para entrar no hospital com cocaína
(BUARQUE, 2009, p. 35).
A análise dessa passagem permite intuir a existência de um diálogo entre Eulálio e a Þlha, ainda que não integralmente expresso. Ele parece animado, cumprimenta a Þlha, chamando-a de ßor do dia e comenta
que chorar à cabeceira de um leito de hospital, logo pela manhã, é pressagiar a morte do paciente. O narrador aborrece-se ao ver que, novamente,
Maria Eulália viera visitá-lo sem trazer charutos. O enunciado que é proibido fumar aqui dentro eu sei é uma resposta de Eulálio à admoestação da
Þlha, que, anteriormente, deve ter observado que os cigarros são vedados
no espaço hospitalar. O enunciador, no entanto, retruca dizendo conhecer essa informação, aÞrmando que não lhe pedira para entrar com algo
absurdo ou ilícito.
Percebe-se, portanto, que o narratário interfere na enunciação do
narrador, visto que contribui para a evolução da história – já que a seleção dos eventos narrados está condicionada às diferentes personagens –,
evidenciando-se, ainda, suas marcas no discurso. O emprego do recurso
formal que evidencia a inclusão de situações comunicativas no interior de
um discurso homo e autodiegético revela a importância do papel interlocutor na organização textual, além de promover a iconicidade entre o que
é narrado e a maneira de narrar: Eulálio necessita estender a um ouvinte as
palavras e os acontecimentos que ele busca no escaninho da memória, para
ouvir a si mesmo e dar-se conta de que ainda está vivo.
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Em “não estou me queixando de nada, seria uma ingratidão com
você e com o seu Þlho. Mas se o garotão está tão rico, não sei por que diabos
não me interna numa casa de saúde tradicional, de religiosas” (BUARQUE,
2009, p. 11), o enunciador, dirigindo-se à Þlha, insere em seu discurso percepções particulares sobre a família, concorrendo para contaminar o auditório extradiegético com sua visão acerca dos fatos narrados. Ao aÞrmar que
o garotão está tão rico e que, mesmo assim, o narrador é relegado a um tratamento na rede pública de saúde, Eulálio induz o leitor a considerá-lo vítima
do abandono dos parentes. Portanto, o receptor real é levado, inicialmente,
a corroborar a perspectiva do narrador para, então, considerar outras razões
que justiÞquem a atitude dessas personagens, já que elas não detêm a regência da narrativa. Ao aventar novas hipóteses, o leitor não pode desconhecer
a pobreza dos descendentes da família Assumpção, fato que Eulálio relata,
mas que ignora ao aspirar a um tratamento médico mais adequado.3
Com diversos funcionários do hospital, Eulálio estabelece uma relação fria, considera-se superior, e mantém uma atitude sempre altiva e
arrogante. Em “não sei por que você não me alivia a dor. Todo dia a senhora levanta a persiana com bruteza e joga sol no meu rosto” (BUARQUE,
2009, p. 10), ou em “os senhores, por favor, sejam prudentes ao me deslocar, pois tenho uma fratura no fêmur de calciÞcação precária” (BUARQUE,
2009, p. 176), o narrador se dirige à enfermeira que desdenha e a alguns
funcionários do hospital, tratando-os como serviçais à sua disposição.
O diálogo que estabelece com esses narratários reforça a atitude de prepotência de Eulálio, representativa de sua classe social, embora esteja, devido
às circunstâncias, em situação de vítima, dado o descaso e o menosprezo
dos que deveriam zelar por sua vida e saúde. A distância entre o narrador
e esses narratários é demarcada, também, pelo registro linguístico, perceptível através da utilização de um léxico pouco usual entre pacientes e
atendentes hospitalares, como prudente e precário.
Ao se reportar à mãe, Eulálio retorna a fatos do passado e encontra,
em si próprio, atitudes que reßetem características e comportamentos maternos. Quando aÞrma que “fora da música, você tem sempre essa nobreza de represar os sentimentos, que certamente lhe doem, como deve doer
leite empedrado” (BUARQUE, 2009, p. 130), Eulálio elenca peculiaridades
da mãe, como a contenção na manifestação de sentimentos ou a adoção de
uma postura orgulhosa diante dos percalços da vida. Essas características
podem ser explicadas pela incomunicabilidade entre mãe e Þlho e pela atitude da mãe diante do assassinato do marido, cuja razão o leitor recompõe
pelas pistas que Eulálio fornece. Quando aÞrma que a mãe represa sentimentos doloridos, Eulálio assinala que os relacionamentos adúlteros do
pai e os motivos que envolvem sua morte despertam mágoas e frustrações
que a mãe, inutilmente, tenta esconder, assim como o próprio enunciador,
ao omitir a narração de eventos que o ferem.
3
Paralelamente, a Þcção conjuga-se ao real para denunciar as más condições do atendimento da saúde pública de que tantos Eulálios são vítimas.
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Percebe-se que a relação que o enunciador estabelece com os enunciatários faz parte de uma estratégia de construção da narrativa, pois constitui suporte às funções narrativa, regencial, comunicativa e ideológica do
estatuto do narrador. Esses personagens contribuem para o estabelecimento de sentidos múltiplos e para a interpretação sempre lacunar da narrativa; adquirem, portanto, relevante papel funcional.
Como demonstrado, em Leite derramado, enunciador e enunciatário assumem papeis complexos. Se o narrador é responsável pelas escolhas que fundamentam, permeiam e conduzem integralmente a narrativa, de outro lado, os narratários assumem funções que abarcam desde o
apoio ao ato da comunicação da narrativa, a possibilidade de instalar a
compreensão de fatos e de comportamentos, a partir de variadas perspectivas, a corroboração de informações ou a sugestão de índices. Diante
dessa riqueza de elementos, situa-se o leitor que deve reproduzir, no plano do real, o exercício de interpretação do ouvinte Þctício.
Portanto, o leitor não assume uma atitude passiva diante de Leite
derramado. Ao contrário, é responsável pela fundamental atribuição de
signiÞcados e de sentidos ao romance, sem a qual o texto não se concretizaria. Genette valoriza a recepção da obra estética ao aÞrmar que
“o verdadeiro autor da narrativa não só é quem a conta, mas também, e
por vezes muito mais, quem a escuta. E que não é necessariamente aquele
a quem é dirigida” (GENETTE, s.d., p. 260). Assim, se o narratário é a instância a quem, Þccionalmente, a narrativa é dirigida, o tratamento que o
narrador lhe confere repercute sobre o leitor real, envolvendo-o e tornando-o participante ativo da signiÞcação. Nesse processo, o leitor aplica ao
texto seus valores, conhecimentos e percepções particulares, integrando o
seu horizonte de expectativas àquele instituído pelo autor no texto.
O leitor é essencial à interpretação do romance. Como Leite derramado é uma narrativa proferida por um enunciador idoso e doente que,
em tom memorialístico, a repassa ora como diálogo, ora como um monólogo não linear, em que não há um enredo deÞnitivo, o leitor é constantemente convidado a preencher as lacunas que o narrador intencionalmente deixa de apresentar. Essa estratégia narrativa valoriza o texto
enquanto expressão artística, além de relevar a importância do papel do
receptor.
Uma das questões que mais intriga o leitor em Leite derramado é a
ausência da deÞnição quanto ao destino de Matilde. Dadas as escolhas
técnico-composicionais do autor, constrói-se uma relação intensa entre
texto e leitor, que vive a experiência de tentar descobrir os segredos da
narração de Eulálio e de desvendar o real destino das personagens, cujas
histórias são continuamente recontadas e modiÞcadas pelo enunciador.
Desta maneira, o leitor não pode captar um enredo deÞnitivo, pois o tecido textual se esgarça, o que dá relevo à Þgura do leitor, que passa a ser
responsável pela unidade e coerência de um enunciado desconexo.
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Considerações Þnais
Como Leite derramado é homo e autodiegético, é fundamental que
o leitor reßita sobre as condições de produção do discurso para, então,
analisar o texto com certo distanciamento, já que o enunciador não produz um relato isento. Pelo contrário, ele narra a história de sua vida
pela recorrência à memória quando se encontra em seu leito de morte,
o que concorre para impregnar a narrativa com um tom nostálgico e
pessimista.
O discurso de Leite derramado é, portanto, marcadamente subjetivo
e privilegia a percepção que Eulálio tem sobre os fatos narrados, bem
como a relação comunicativa que estabelece com os narratários. Por isso,
a Þgura do narrador, enquanto personagem Þccional, é elemento nuclear, já que é responsável não só pelo estabelecimento do discurso, mas
também pelo papel que assume na diegesis.
Genette mostra que não se pode “desprezar a presença do narrador na história que conta” (GENETE, s.d., p. 212), pois a narrativa é
uma construção que, ainda que pretenda alcançar neutralidade e objetividade, não deixa de ser perpassada pelas escolhas subjetivas da voz
que a enuncia. O estruturalista aÞrma que se deve analisar a instância
narrativa como um tecido a ser prontamente retalhado, já que o bom
texto literário inclui múltiplas relações, expressas ou tacitamente estabelecidas, que atuam de forma interdependente ou agregam múltiplas
vozes. Como Juracy Assmann Saraiva deÞne, a diegesis é “produto de
ato interenunciativo, por intermédio do qual se institui a representação
do real do texto, encenada por personagens situadas em tempo e espaço
determinados” (2009, p. 25).
Em Leite derramado, a relação entre narrador e narratário concorre
para realçar os papeis funcionais do narrador, que narra, rege a narração,
estabelece sinais indiciais de comunicação através do discurso e investe na persuasão de seus ouvintes. A invocação do narratário, expressa
ou tacitamente, segundo Juracy Assmann Saraiva, registra as reações do
enunciador, promove o diálogo com outros textos, além de, pelo fato de
o narratário representar, no texto, o leitor, apontar para o trabalho consciente do narrador sobre o receptor textual, “manipulando-o, direcionando seu julgamento e controlando suas reações” (2009, p. 37).
EnÞm, a narrativa de Leite derramado é um corpo fragmentado, dissonante, proveniente de um narrador homo e autodiegético – o que torna
esse texto uma construção subjetiva e parcial –, que se dirige ao ouvinte,
como em uma conÞdência, com a devida proximidade do ßuxo de pensamento e das peculiaridades de quem, débil e confuso, fala próximo à
morte.
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Paralelamente, Leite derramado releva a importância da recepção,
valorizando o papel do leitor, o qual é instigado a estabelecer o signiÞcado de um texto caracterizado pela fragmentação, pela não linearidade, e
que é produzido a partir de recorrentes falhas de memória. Isso explica
por que a história de personagens, especialmente a de Matilde, é continuamente recontada e modiÞcada pelo narrador, o que impossibilita a
apreensão de um enredo deÞnitivo por parte do destinatário empírico.
No romance em questão, portanto, o leitor é responsável por proporcionar unidade e coerência a um enunciado intencionalmente confuso, o
que lhe transfere parte da função autoral.
A concepção do processo narrativo em Leite derramado evidencia
a qualidade com que Chico Buarque explora as palavras para transformá-las em arte. O romance é um produto elaborado que conjuga consciência e reßexão criadora, o que se torna visível na estruturação da narrativa,
como se demonstrou na análise de sua enunciação.
Recebido em abril de 2011.
Aprovado em outubro de 2011.
The echo of Enunciatory and Enunciatee voices in Leite derramado
Abstract
This article analyzes the technical procedures that establish the relationship between narrator
and the different textual readers of Leite derramado by Chico Buarque de Hollanda, by means
of narratology. By focusing the text as a communicative act, this article carries out an analysis
of the writing process and the effects that this work provokes in the receiver, enhancing
Chico Buarque’s artistic production.
Keywords: Leite derramado. Narrator. Narratee. Narratology.
Referências
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GENETTE, Gérard. Fronteiras da narrativa. In: BARTHES, Roland et al.
Análise estrutural da narrativa. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.
______. Voz. In: ______. Discurso da narrativa. Lisboa: Vega, s.d.
SARAIVA, Juracy Assmann. O estatuto do narrador. In: ______. O circuito
das memórias. São Paulo: Edusp; Nankin, 2009.
TODOROV, Tzvetan. As categorias da narrativa literária. In: BARTHES,
Roland et al. Análise estrutural da narrativa. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.
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