A Cidade dos Sete Mares

Transcrição

A Cidade dos Sete Mares
A Cidade
dos Sete Mares
Victor Eustáquio
1
Em memória da minha mãe,
que não teve tempo para odiar este romance,
mas que continuaria a amar-me
2
Título original: A Cidade dos Sete Mares
© Autor: Victor Eustáquio
© Todos os direitos para a publicação desta obra
reservados pelo autor
Correio electrónico: [email protected]
Lisboa, Fevereiro de 2013
3
“Una enorme montaña se elevó del seno de la tierra y del ápice
se escapaban llamas que continuaron ardiendo durante diez y nueve días.
Una inmensa cantidad de peces cubría las playas.
Del mar erigían columnas de humo y llamas.
Tronaba horriblemente”
Don Andrés Lorenzo Curbelo
4
I.
O funeral da mãe não se arrastou durante muito tempo. Foram cumpridas todas as
formalidades, incluindo o carpido habitual entre os mais dados a manifestações de
pesar, sentida ou por que calha, sempre que a certeza da morte sorteia mais um. Mas
Tiago Penha não chorou. Ao invés, fumou cigarro atrás de cigarro enquanto decorria a
tradicional reencenação das exéquias que nem sequer foram objecto de qualquer
pomposidade. Não é que ele não tenha ficado consternado com a notícia, e a obrigação
de participar na cerimónia fúnebre e agradecer respeitosamente o extenso rol de
condolências que se enfileirou, tanto à entrada como à saída do cemitério. A questão é
que Tiago há muito que estava convencido de que quanto mais depressa se
concretizasse o inevitável desfecho, melhor seria para a mãe.
Algum tempo antes, havia assistido a um outro funeral que acabou com desmaios, troca
de sopapos e a chegada da polícia para pôr fim à bestialidade daquele festim de ódio e
intrigas familiares induzido por questões de partilhas mal resolvidas. O corpo do
defunto chegou mesmo a ser abandonado à sua sorte, dentro de um caixão que rebolou
para dentro da sepultura por descuido dos coveiros, mais interessados em atentar nos
pormenores do reboliço do que zelar pelos bons ofícios que merece um morto à beira da
cova.
Nada disso sucedeu, porém, com a mãe. Ou com o que restava dela no interior do
ataúde, no qual havia já dormido um dos funcionários da agência funerária numa noite
de farra. Se Penha o soubesse, não teria ido na conversa daquela empresa com larga
experiência no sector que garantia construir todas as suas urnas de forma ecológica, sem
metais, vernizes sintéticos ou outros materiais nocivos ao ambiente. Contudo, o
episódio nunca havia chegado ao conhecimento de terceiros, pelo que tudo decorreu de
forma normal, se é que o adjectivo é aceitável em contexto fúnebre, considerando que,
não obstante a morte poder ser normal, é sempre percepcionada de forma anormal. Já
para não referir que falar de normalidade ou anormalidade presta-se a muitos equívocos.
Vestido de forma casual, como está na moda dizer, até porque no caso dele decerto
nunca ninguém o apanharia de fato e gravata, fosse lá para o que fosse, apesar dos
inúmeros embaraços que já havia vivido pela sua condição de programador, sobretudo
nas reuniões empresariais para a discussão de grandes projectos,
(“Devemos apostar na web dinâmica: HTML5, CSS3 e javascript. O flash está a
morrer. Não faz sentido nenhum insistir em coisas moribundas”, havia dito
recentemente, mal sabia que estava prestes a reformar-se, perante um painel
empertigado de executivos engravatados que o olhava de soslaio, não tanto pelo cabelo
seboso e desgrenhado ou a barba esbranquiçada e mal cuidada, toda eriçada, mas pelo
rego do cu à mostra e os boxers vermelhos com carrinhos brancos estampados, que a
barriga não permitia um melhor aperto do cinto e as calças no lugar devido)
com uma camisa azul escura empalidecida, jeans debotados e um blusão preto de
cabedal, arrematado num leilão na net, Tiago pôs-se a pensar em Cuba. Estranhas
cogitações para tão solene momento; solene, porque se confundia com a evidência de
5
que ele, Tiago Penha, continuava vivo. Se bem que ultimamente a ideia de envelhecer
andasse a atormentá-lo. Não tinha filhos, nem tencionava perpetuar-se. Pelo menos
assim. De resto, por essa via, não chegara a permitir à mãe a possibilidade de uma
vingança.
Uma criança restabelece a ordem; acelera a contagem regressiva da vitalidade
existencial dos pais, apazigua o desenlace da existência dos avós, finalmente refeitos da
desilusão de tão curta passagem pela vida pela simples razão de que, através dos netos,
podem depositá-la nos filhos. Quer dizer, a desilusão. Uma outorga cíclica da
condenação à morte que se traduz no derradeiro sentimento de desforra. Por convicção
ou omissão. É claro que nem para todos é assim. Há ainda quem padeça de altruísmo e
invoque trivialidades como os laços de amor ou bizarrias mais sofisticadas como a teia
da vida xamânica de Oyasin, que vai dar no mesmo: teia de relações, troca de amor.
Orai e vigiai! Sempre com a aranha por perto. O tarô da desordem da condição humana
que não consegue reconhecer a acidez da convicção e o desterro da omissão. A filosofia
do aracnídeo ao serviço da retórica da genealogia. O dogma do génesis de cunho divino
como paliativo para o adultério molecular.
(Web Forum: Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Citação de
Lavoisier, seguida de uma nota: Por alguma razão isto lembra-me a frase de abertura
de «L'étranger», que li em Lisboa no remotíssimo ano de mil novecentos e sessenta e
sete; reminiscência de Camus)
Penha lembrou-se de Cuba, provavelmente por carência ontológica. É que, de momento,
a negociação antropológica dos sentidos da ritualização não lhe interessava. Lembrou-se
de Cuba e do amigo de Matanzas que havia recebido na sua casa em meados dos anos
mil novecentos e noventa naquela que foi a primeira e única saída daquele da ilha de
Fidel. Sociólogo de formação, ocupação profissional: o costume. Pouco importava.
Tiago massacrou-o durante vários dias sobre o que o caribenho realmente pensava de
Cuba e, ao fim de uma semana, lá conseguiu. Com lágrimas nos olhos, cabisbaixo, o
amigo cubano disse-lhe apenas: “Crees que vives mejor que yo?” A pergunta continuou
a intrigar Penha por muito tempo, sobretudo por ter vindo de um homem que, aos
cinquenta anos, comprou um relógio pela primeira vez na vida numa feira do velho
continente, uma imitação rasca de uma marca qualquer. Extasiado, ele só queria saber:
“Es hermoso, no? Crees que debo comprar?” Tiago não soube o que lhe dizer, depois de
no dia anterior ter sido desafiado: “Crees que vives mejor que yo?” Quer dizer, ainda
resmungou qualquer coisa como “Tu é que sabes! Se gostas, porque não?” O amigo
voltou a Cuba e nunca mais saiu do País. Já se disse. Mas os dois continuaram a manter
o contacto. Através de turistas portugueses que iam de férias para Varadero e Havana.
De quando em quando, Penha recebia telefonemas dos mais variados pontos de Portugal
com mensagens do caribenho, decerto sussurradas num recanto qualquer, longe de
olhares e ouvidos delatores.
Por que razão pensava Tiago naquilo, à medida que se afastava do cemitério e dos
carpidos pela morte da mãe? Não fazia ideia, tal como quase de certeza o próprio amigo
cubano também não faria ideia do que o levava a querer manter contacto com Penha. Na
noite em que embarcou de regresso a casa, após uma viagem de carro dos dois entre
Lisboa e Madrid – fora Tiago quem fizera questão de o levar pessoalmente até Barajas,
o único ponto da geografia migratória permitida ao sociólogo de Matanzas (VaraderoMadrid-Varadero) – na despedida, o amigo era um homem abatido. Quer dizer, para
Penha, que já julgava saber avaliá-lo. Mas no rosto, a expressão era outra; ao mesmo
tempo que dançava e perdia-se em sorrisos, cantava: «La Vida Es Un Carnaval». Foi a
última imagem que Tiago Penha guardou do caribenho.
6
Na realidade, desde que Tiago havia visto dois músicos cubanos em Havana, alguns
anos antes de conhecer o seu amigo, a cantar «Quero cheirar teu bacalhau», rendera-se:
La Vida Es (mesmo) Un Carnaval... Por que haveria de ser diferente no funeral da mãe?
Já quanto à ideia da velhice, a história era outra. Quanto menor era o prazo da sua
validade como ser humano, percepção assustadoramente presente pela irritante
insistência das sinapses em curto-circuito que o impeliam a pensar no assunto, maior era
a indecisão na acção. Resultado: crescente incapacidade de concentração e de empenho
no cumprimento das tarefas necessárias para a conquista dos objectivos por que tanto
almejava, naturalmente inatingíveis (pois é disso que se trata a felicidade); planos
eternamente adiados, engavetados numa torre de caixas corrediças sobrepostas que
passava a vida a abrir e a fechar, sem ousar em determinar por qual delas deveria
começar.
Com efeito, sentia-se cada vez mais a rastejar pela vida, cheio de ideias e poucas
certezas. Se houvesse sido bafejado pela genialidade – como chegou a acreditar em
tempos idos, nos tempos em que tudo parecia possível, porque a curva do tempo ainda
se encontrava numa fase ascendente e, por conseguinte, de evolução lenta – decerto que
estaria longe dos ténues e efémeros entrelaces sociais que desatou a estabelecer na web,
em rigor, nas redes de comunicação horizontal, após ter iniciado a contragosto a descida
do zénite dos quarenta; ao invés, mergulharia sem hesitar no êxtase de outros prazeres,
provavelmente todos aqueles que as elites burguesas se permitem experienciar pela sua
condição de excepção: é que tanto o prazer como o privilégio de o usufruir também têm
cor. A paleta social não é disposta ao acaso. E quem subscrever o contrário, só o faz
para esconder no acaso tudo o que não compreende, como o infinito ou a insanidade.
Talvez quem supusesse conhecê-lo bem, se aventurasse em afirmar que Tiago Penha era
cínico, despudorado, emocionalmente obsceno. Mas a impudência desta figura singular
tinha um carácter normativo de uma extrema racionalidade. Fria e dura como o aço.
Feita de carbono e ferro, bem entendido. Ou não fosse ele um artista dos bytes, um
mestre da lógica, por infortúnio, tanto tecnicista como empírica, também ele depositário
do ethos industrial do Ocidente moderno. Não será fácil, porém, decifrar o alcance e os
limites da escala de valores em que se movimentava. Será realmente cínico pensar
durante o funeral da mãe que La Vida Es Un Carnaval e recordar um caso de vida com
um caribenho que, em boa verdade, mal conheceu?
Penha ainda se sentiu na obrigação de pôr no rosto a desejável amabilidade com que
devia receber algumas condolências de última hora, à medida que a comitiva fúnebre se
dispersava, até conseguir enfiar-se no carro e abandonar de vez o cemitério rumo à
capital, via A8, para onde se mudara após o cansaço de viver na pequena cidade da sua
adolescência que se havia transformado num mero dormitório de Lisboa, impessoal,
com uma inusitada identidade que não entendia; uma profunda mutação no mapa da
sedimentação social, devido à proximidade com o admirável mundo novo de
possibilidades da grande metrópole, lamentável eufemismo para a sede do antigo
império pluricontinental português, fruto de um empreendimento marítimo colonial tão
corajoso quanto patético no limite da sua implosão.
(Web Forum: Entre os portugueses nunca faltaram críticas negativas para se dizer mal
de todos e de tudo. Primeiro era porque a monarquia era má para a governança de um
País e assim se instalou uma república que matou reis – pai e filho; depois dos
“republicanos” instalados na governança, era porque Portugal se afundava e assim,
como já tinham assassinado dois reis, em pouco tempo assassinaram Sidónio Pais, e a
instabilidade do País e as revoltas eram tantas que foram pedir duas vezes a um
economista e professor da Universidade de Coimbra que assumisse como primeiroministro: António de Oliveira Salazar. Foi ele que, ao longo de anos, pagou a dívida
7
externa do País, nacionalizou as maiores companhias inglesas que exploravam os
portugueses, avançou com a construção de escolas para alfabetizar os portugueses,
melhorou as estradas, portos e aeroportos e defendeu-nos das potências estrangeiras
nas nossas ex-colónias ultramarinas e afugentou os comunistas e evitou que o
comunismo se instalasse em Portugal. A que se segue mais um longo e inflamado
comentário na mesma linha: Concordo totalmente, mas há mais. É bom não esquecer. O
Dr. Salazar ainda teve de se equilibrar para evitar que Portugal entrasse na Segunda
Grande Guerra e criou um racionamento com senhas distribuídas aos chefes de família
de acordo com o número de pessoas em cada lar para que todos, ricos e pobres,
tivessem acesso a alimentos, sem passarem fome. Criou um abono de família para que
os trabalhadores recebessem um valor de acordo com a quantidade de dependentes –
filhos – para que os curtos salários da época fossem complementados para minorar a
pobreza de milhares de famílias. Em resumo, chamaram-lhe ditador. O seu substituto,
Marcelo Caetano, e os ditos democratas e comunistas de mil novecentos e setenta e
quatro derrubaram o seu Governo e causaram a catástrofe e a entrega das colónias
sem qualquer protecção ou organização para que tudo acontecesse em paz para todos e
que o progresso que se verificava naquelas possessões continuasse de forma tranquila e
amiga, após as suas independências. Ao contrário disso, semearam o caos também
nelas, como no jardim à beira-mar plantado chamado Portugal continental e insular.
Segue-se um desafio: Por que não fazem outra revolta, não uma nova edição com
cravos nos canos das espingardas, mas com balas reais? Por que não acabam com os
políticos corruptos e todos aqueles aos quais deram altas posições com astronómicos
salários, sugando nas mamas do Estado e o dinheirinho que para lá vai saído do
trabalho e do suor do povinho? E mais uma réplica de indignação, desta vez com sinal
contrário, embora pareça ir dar no mesmo: Para mim, tenho como certo que não foi
para isto que os capitães de Abril lutaram. O ciclo fecha com um remate lapidar: Isto é
tudo uma farsa! Ainda noutro dia vi na televisão o Obama no Museu do Holocausto, em
Washington, aos abraços ao Elie Wiesel, Nobel da Paz e sobrevivente de Auschwitz,
Buna e Buchenwald. Três campos de concentração, reparem bem. O homem sofreu, é
verdade, e ninguém tinha o direito de fazer o que lhe fizeram. A ele e a milhões de
outros judeus. O problema é que são todos iguais. Então não é que este vira-casacas
que está na Casa Branca saiu-se com esta: ‘Vou estar sempre do lado de Israel. Evitar
o genocídio é um objectivo possível no mundo moderno.’ Ai é? E então os
palestinianos? São o quê? Ovelhas a pastar, um rebanho esquecido por Deus? E os
desgraçados dos pretos em África?)
Em Torres Vedras, a pequena cidade na qual Tiago Penha havia vivido uma parte
considerável da adolescência – também ela, a cidade, situada bem perto do epicentro da
história monárquica imperialista – não conhecia ninguém ou mal reconhecia quando se
cruzava com rostos estranhos que sabia fazerem parte de um passado já muito distante.
Em casa, no coração da metrópole, perto da Cidade Universitária, bem longe do local,
na época suburbano, onde havia nascido – entre uma colmeia de bairros de lata que,
com os anos, havia dado lugar a uma nova paisagem de betão ainda mais concorrida do
que dantes (virtude camarária do acolhimento social a baixo custo para arrumar os
desalinhados, uma estratégia política de impotência de blocos que faliu, como era bom
de ver) – Maria Clara aguardava-o com ar impaciente. Após horas a fio de espera. Que
ela tinha a obrigação de adivinhar.
Quando Tiago pôs a chave à porta de entrada, já o esperava. Para ele, sempre havia sido
complicado perceber como as relações se complicam pelo padrão de desvio de
interesses e modos de olhar. A distância podia não parecer imediata, mas o certo é que
crescia à medida que esse mesmo padrão adensava o sobressalto de perspectivas.
8
Ainda assim, não obstante todas as cautelas em face dos prenúncios que pensava ter
avaliado com uma prudência esclarecida, Penha só foi capaz de começar a descodificar
os sinais quando caiu de costas, desemparado, numa tentativa desesperada de se agarrar
a qualquer coisa que pudesse suster o seu corpo pesado e balofo. Tropeçara num novelo
de malas depositado no vestíbulo, que se abria à esquerda e à direita para dois longos
corredores e à frente directamente para a sala; na verdade, uma pequena antecâmara
virada para um espaço rectangular sempre com as portas envidraçadas abertas de par em
par.
— O que é que te dói mais? — perguntou ela do fundo da sala sentada num recanto mal
iluminado.
— As costas, a nuca, eu sei lá.
— Tens de ser mais específico.
— Não consigo.
— Como não consegues? Precisas!
— Preciso mas é de uma cura.
Ela olhou-o de soslaio, brincou com o papel amarrotado entre os dedos e suspirou.
Acabou por se levantar e pôs-se a observar a rua pela janela.
— Não tenho interesse — rangeu Maria Clara entredentes, enquanto mantinha os olhos
presos no vazio distante da azáfama que lá fora se desenrolava.
— O quê? — quis saber Tiago, erguendo-se também para se encaminhar na direcção
dela.
Fê-lo calmamente, arrastando os pés. Quer dizer, deslizando, praticamente em silêncio,
se bem que isso pouco importasse. Os dados estavam lançados e a morte rodopiava com
ar desinteressado, falsamente desinteressado, que o móbil de abutre entranhava-se-lhe
em toda a sua textura.
— Não percebi — disse Penha, por fim, já ao lado da mulher, agora também ele a mirar
o exterior sem ver. — O que é que disseste? Não tens interesse?! Mas de que raio estás
tu a falar? — sublinhou, denunciando o seu crescendo de exasperação.
Ela não reagiu. Pelo menos de imediato. Terá demorado alguns segundos, mas pareceu
uma eternidade. Demorado, porque o que vinha a seguir era, afinal, imprevisível.
Desconcertante. O que Tiago sempre soubera, porém.
— Parto hoje.
— Hoje? — soltou ele, mais encolerizado. — Mas tu garantiste.
Ela virou-se e fez o caminho de regresso à cadeira de verga almofadada que jazia no
recanto da sala. Inexpressiva, indecifrável, sentou-se e voltou a suspirar.
Penha seguiu-lhe os movimentos com o olhar mas permaneceu junto à janela.
Expectante. À espera de uma justificação, de uma qualquer tentativa de desagravo, que
seria de bom tom para aplacar os instintos de ódio que sempre se desprenderam daquele
corpo gaseado, agora mumificado, em queda livre como a vida que se esvazia a cada
impulso de ansiedade, a cada desejo de mudança que não se concretiza, a cada sopro de
paixão que esbate contra o silêncio da indiferença, esse gosto mórbido pelo sofrimento
fugidio, escorregadio, escrito com palavras de passagem, sob olhares desconhecidos e
promíscuos que desafiam a intriga que escondemos sob a camada da personificação do
pretendemos ser aceitável, para conforto próprio e dos demais.
A vontade assim o determina. Como o desejo, mas Tiago estava já a repetir-se
mentalmente. A ensaiar uma sinfonia de enfado, a mesma que tinha tocado durante toda
a vida, mesmo nos momentos em que julgava não o fazer.
— Afinal qual é a razão para esta partida, agora, passados tantos anos? — rosnou ele,
após o silêncio que se havia prolongado em razão de nada haver para dizer.
— Do que estavas à espera?
9
— Sei lá. Não sei. Talvez de algo mais… Não sei explicar.
— Mais…
— Promissor?
— Perguntas ou afirmas?
— Na verdade, contava com alguma mudança.
— Um fluxo e um refluxo.
— O quê?
— Como as marés. Também pode ser um refluxo e um fluxo.
— Não percebo nada do que dizes. Tem de ser sempre esta merda? Não podes ser mais
eloquente?
— Uau! Eloquente. Palavra chique, hein.
— Bardamerda. Foda-se!
— Pronto. Já baixaste o nível.
— Porra, o que queres, merda? — disparou Penha, sabendo bem que o caminho do
insulto não passava da velha fórmula sinuosa de inverter o sentido da razão.
A armadilha sempre fora perfeita. E ele lá caía na mesma. Igual a si própria, propícia à
tal queda livre, sem apoios; um corpo pesado num movimento descendente com o sabor
amargo do desfecho bem à vista. Inevitavelmente evidente. Tragicamente iminente.
Irremediavelmente imutável. E, logo, irrecuperável.
— Está bem. Saio primeiro — anunciou Tiago. — Já processei a mensagem. Estou
ligado, entendes?
— Ainda com tiques do Brasil? Olha lá! E as borbulhas? — indagou ela.
— As borbulhas?! – indignou-se ele. — E não perguntas pelo funeral? Como correu?
— Nunca morri de amores pela tua mãe. Tu sabes bem disso.
(Pois é, se calhar és tu quem deve morrer. Devias decidir morrer pelo teu desamor)
— E então perguntas-me pelas borbulhas — disse Penha, por fim.
— Exacto. Não têm andado a atormentar-te tanto?
Era verdade. E ele lembrou-se. De tudo. De tudo o que estava por esclarecer. E do nada
aterrador que conseguira perceber.
10
II.
O caso havia acontecido cerca de dois meses antes, em rigor, um dia depois de Tiago
Penha ter sentido finalmente o avião a preparar-se para aterrar na Portela
(Mais uma volta, mais uma viagem! O poço da morte! Ouvira algures ao imaginar uma
aterragem abortada com a aeronave a acelerar de repente, a empinar o nariz e a subir
de novo, quando devia fazer-se à pista. A cena repete-se: mais uma volta, mais uma
viagem! O poço da morte!)
após a longa estada no outro lado do Atlântico, em trabalho e em prazer, que os gringos
também gozam.
Já recuperado do cansaço da viagem, e dos sobressaltos que o atingiam sempre que
sobrevoava a linha do equador – latitude zero, o que não é rigorosamente certo devido à
rotação do eixo da Terra e às irregularidades do geóide, para não falar na importância da
altitude, a terceira coordenada geográfica, fundamental, mas tão frequentemente
esquecida – e, um pouco mais a Norte, o arquipélago de Cabo Verde, Tiago Penha
estava a almoçar na baixa pombalina, assim chamada em memória de Sebastião José de
Carvalho e Melo, esse nobre e ilustre déspota iluminado que reconstruiu a cidade após o
terramoto de mil setecentos e cinquenta e cinco, quando sentiu pela primeira vez a
borbulhagem no pescoço. A descoberta fora fruto daquele gesto maquinal de levar a
mão à cabeça para coçar qualquer parte do couro cabeludo, onde não há qualquer
comichão mas que dá sempre jeito para disfarçar o nervosismo e a imobilidade
confrangedora que resulta dele. Pelo menos para Tiago era assim que funcionava. Podia
também cruzar e descruzar as pernas, remexer nas hastes dos óculos encavalitados na
cana do nariz aliviando o peso por instantes, afagar a barba esbranquiçada no queixo
sob um som áspero, torcer o dorso à espera do pequeno estalido de uma qualquer
vértebra ou cartilagem amassadas pela inércia, e, claro está, acender um cigarro e deitar
cá para fora umas longas baforadas de fumo, que lhe rendia pelo menos uns cinco
minutos de companhia tão virtual quanto cancerígena.
Penha odiava aquele ritual diário de ter de almoçar. De almoçar sozinho num qualquer
restaurante de fast food sobrelotado, que o tempo não dava para mais, sem ninguém
com quem conversar, remetendo-se para uma apatia forçada enquanto escutava e
observava as conversas e os movimentos alheios. Nunca havia conseguido habituar-se a
Lisboa e entabular relacionamentos que expressassem mais do que uma mera e
superficial convivência profissional. Sempre preferira o estrangeiro. Talvez porque a
maior parte da sua existência havia sido vivida fora. Feitas as contas, sempre foram
breves e escassas as estadas em Portugal desde que tinha começado a trabalhar. Pelo
que não chegara a dar ensejo à tentativa de compreender as regras da sociabilidade em
terras lusitanas.
Eram pequenas bolhas na pele que cediam sob a pressão dos dedos de Tiago. Pelo tacto,
pareciam formar uma espécie de colar à volta do pescoço. A princípio, não se apercebeu
bem da extensão da borbulhagem. Parecia ter descoberto qualquer coisa de novo no seu
corpo, algo com que podia brincar, ensaiando gestos inovadores contra a imobilidade.
11
Deslizou os dedos da mão direita sobre o tapete de empolas e nem sequer se preocupou
muito em tentar perceber o que seria aquilo. Quando voltasse ao escritório, olhar-se-ia
no espelho da casa de banho e verificaria se era algo com que se devia realmente
preocupar. Trata-se definitivamente de borbulhas. Incapaz de as contar, Penha percebeu,
todavia, que eram muitas. Passou a mão pela cara para ver se o mesmo destino havia
sido reservado àquela outra parte do seu corpo. Mas nada. Além do tufo da barba, nada
mais sentia. É evidente que, dado o diminuto tamanho das borbulhas, também lhe seria
difícil. Se ainda conseguisse esgravatar a barba, tacteando à flor da pele, talvez
houvesse algo lá por baixo.
Teria de ser mesmo no escritório, em frente ao espelho que encimava um lavatório de
louça que havia já conhecido melhores dias. Ninguém se inquietava muito com o estado
dos lavabos da empresa. Para quê, afinal? Só serviam para mijar e cagar. Quer dizer,
para expelir urina da uretra e expulsar excrementos pelo ânus. Ou para pôr ou tirar as
lentes de contacto, porque comprar novos óculos estava fora de questão e aqueles eram
simplesmente odiosos. Ofuscavam todo o brilho dos seus olhos azuis; davam-lhe uma
aparência pesada, de um qualquer idiota ultrapassado pelo tempo. Que podia esperar ele
depois de derrapar em queda livre pelo zénite dos quarenta? Disseram-lhe várias vezes
que havia novas armações, com hastes mais leves e um design mais moderno e
confortável. Mas Tiago insistia na relutância em mudar de óculos. Se tinha de gastar
dinheiro, que o gastasse com lentes de contacto e soluções de limpeza, para eliminar
proteínas e outras substâncias químicas, gasosas e líquidas, lipídios e componentes
inorgânicos, principalmente o cálcio e mucina, oriundas da lágrima. Óculos novos é que
estavam fora de questão.
Voltou a mexer no pescoço e deu-se conta que lá continuavam todas aquelas borbulhas,
aquele estranho e inesperado matagal de bolhas. Seria uma doença? Podia ser uma
infecção sistémica causada por bactérias associadas ao intestino. Ou talvez varicela ou
escarlatina. Não se lembrava de haver tido alguma vez em miúdo aqueles males. Riu-se
interiormente. Seria estranho apanhar agora, naquela idade, uma doença típica de
crianças. E se fosse contagiosa? Teria mesmo de ver o que era aquilo.
Mas ao invés de voltar ao escritório, na República – com várias estações de metro pelo
meio e uma mudança de linha no Marquês – e adiar por uns vinte a trinta minutos a
investigação cutânea que teria de encetar, movido por um impulso fugaz, dirigiu-se para
as instalações sanitárias do restaurante que ficavam lá em baixo, numa cave pestilenta e
sórdida, à qual se acedia por umas escadas estreitas e íngremes ao fundo do salão de
refeições. Quando se olhou no espelho, reconheceu de imediato aquele rosto que o
fitava no reflexo. Aparentava ser mais velho: a barba branca e os óculos, aqueles
malditos óculos, não ajudavam nada. Abriu ligeiramente o colarinho da camisa e, de
lado, tentou divisar o pescoço no reflexo do espelho. Lá estavam elas: dezenas,
centenas, pequenas bolhas encarniçadas a cobrir a pele. Tinham um ar achacado.
— Que merda! — praguejou, entredentes.
Puxou a camisa para cima, que usava sempre solta ou à solta, fora das calças, e
descobriu, estupefacto, que as borbulhas cobriam-lhe o peito e a barriga. Tinham
alastrado por todo o lado. Sentiu um calor súbito, como se de repente as empolas
tivessem acordado para começar a atormentá-lo.
Aquilo não era normal. Teria de ir às urgências de um hospital qualquer. Podia ser
contagioso, podia abraçar-se ao corpo dele de forma galopante para o prender a um
qualquer desígnio desconhecido. Que raio de porra seria aquilo? Onde teria apanhado
aquela porcaria?
Baixou a camisa e voltou a olhar-se no espelho, desta vez de forma expressiva,
manifestando a sua estupefacção e uma certa raiva.
12
— Só me faltava esta! — desabafou mentalmente, fixando no espelho o reflexo dos seus
olhos escondidos por detrás das lentes dos óculos, emoldurados por um longo tufo de
barba branca.
Passou o resto da tarde a pensar naquilo, enquanto cumpria maquinalmente os seus
deveres profissionais. Uma porcaria de uma base de dados com importação de
fotografias via FTP, redimensionamentos vários pela medida maior e publicação nas
páginas web, tudo gerado de forma automática através da indexação dos campos de
metadados IPTC e EXIF. A sorte é que já havia feito algo semelhante no Brasil, pelo
que tinha de alterar apenas algumas linhas de código. Mal chegaram as seis da tarde,
que naquele dia Penha não estava para mais, arrumou à pressa as suas coisas sobre a
secretária, desligou os dois computadores que tinha à sua frente e preparou-se para sair.
Tinha de ir ao hospital. Mas qual? E para quê? Um perto de casa, talvez o de Santa
Maria ou o Pulido Valente, para tratar do diagnóstico associado àquele misterioso
assalto de bolhas assanhadas? Ou o da mãe, na pequena cidade a norte da grande
metrópole, para reavaliar o paradigma crucial da existência humana? Decidiu-se pelo
segundo.
Ao volante do carro começou a sentir-se mal disposto. Não sabia ao certo de que
indisposição se tratava, mas algo não estava bem com ele. Além da sensação de
formigueiro, que podia muito bem derivar daquele ataque de borbulhagem, por
enquanto de natureza desconhecida, sentia também uma certa ansiedade. À medida que
conduzia a sua viatura pelas ruas empedradas e cheias de trânsito de Lisboa, naquele
labirinto paralelo às avenidas novas, para chegar à Calçada de Carriche e abandonar de
vez a cidade, fustigada por uma chuva miudinha que irrompera nos céus logo após o
almoço, a ansiedade dava lugar a qualquer coisa mais séria. Talvez um ataque de
pânico. Seria perfeitamente normal. Psicossomático. Mas não. Havia mais. As mãos
tremiam-lhe ao volante, sentia uma dor aguda no peito, provavelmente uma contracção
muscular em consequência de um impulso eléctrico errado do sistema nervoso central, e
o corpo agitava-se de modo independente, como se Tiago tivesse perdido o controlo
sobre o seu próprio invólucro material e estivesse à beira de entrar numa espécie de
transfiguração espiritual e incorpórea. Talvez viesse aí uma tempestade eléctrica. O céu
estava cada vez mais carregado de nuvens escuras e, à medida que a noite começava a
cair, Penha ia divisando os clarões de relâmpagos, lá longe, sobre o cabeço de
Montachique, ainda bastante espaçados entre eles. Uma trovoada distante e surda, afinal
própria da época. Não fazia muito frio e os meteorologistas estavam confiantes de que
aquele Inverno seria menos rigoroso que o anterior. Um ano antes, havia nevado em
Lisboa, imagine-se. Nunca na vida Tiago tinha visto algo parecido. Nevar em Lisboa?
Todos pareceram incrédulos mas saíram à rua, aos magotes, para registar nas suas
pequenas câmaras digitais aquele que seria decerto um momento único na vida deles.
Isto é, se o aquecimento global não trocasse as voltas entretanto. Efeito Estufa, subida
mundial média da temperatura, degelo das calotas polares, gases poluentes, Protocolo de
Quioto, furacões, ciclones, toda uma panóplia de vaticínios desastrosos para a condição
humana de que se andava para aí a falar sem que ninguém realmente prestasse atenção.
Acompanhado por estes pensamentos, Tiago Penha saiu finalmente de Lisboa e
começou a rolar na auto-estrada em direcção a Norte, aumentando por conseguinte a
velocidade, não obstante o piso molhado e os perigos do aquaplaning. Confiava na
fiabilidade do seu carro em matéria de segurança e capacidade de resposta a qualquer
perigo. Talvez em excesso. De resto, a auto-estrada estava praticamente vazia. Só de
vez em quando ultrapassava uma viatura mais vagarosa ou via os faróis de outros carros
a aproximarem-se, do outro lado da via rápida, em sentido contrário. Ainda bem que se
decidira pelo hospital onde a mãe agonizava em vez de se dirigir a algum dos
13
metropolitanos onde teria de esperar horas para ser atendido, após a triagem, já o sabia,
de tão caóticos que eram os bancos de urgências daquelas unidades de cuidados de
saúde, apesar de um novo e revolucionário sistema informático que permitia, diziam os
criadores da aplicação, uma melhor gestão dos pacientes e uma maior eficácia no
atendimento dos mesmos. Sempre gostava de analisar como havia sido implementada.
Quanto tinha custado ao erário público? Quem havia adjudicado o desenvolvimento?
Pouco importava. O sistema era bom, estava apenas em fase de testes. É certo que
assim, pelo menos Tiago estaria perto do seu lar, doce lar. Quer dizer, do seu novo lar.
Porque, bem vistas as coisas, doce era aquele onde havia passado a adolescência, na
pequena e pacata cidade a norte da capital, famosa pelo Carnaval, e a sua longa história,
ligada às Linhas de Torres, o extenso conjunto de linhas fortificadas erguidas em
absoluto segredo em mil oitocentos e nove, por ordem do duque de Wellington, linhas
que garantiram a defesa de Lisboa e do seu porto perante o ataque invasor das tropas
napoleónicas durante a Guerra Peninsular. Estava tudo no Google. E nos velhos livros
de História. Velhos, porque ele se considerava um verdadeiro netizen, filho da
revolução digital e da desmundialização, esse controverso substantivo – perdão,
conceito – olhado por uns como uma interpretação fascista da globalização e, por
outros, paradoxalmente, como um apelo revolucionário para o regresso às origens do
compromisso ideológico com o socialismo científico marxista. Como sempre, ninguém
se entende quando a proposta de uma ruptura epistemológica ainda não teve tempo de
transitar para o passado e dar lugar a novas discussões que terão o mesmo destino. O
pensamento está sempre fora dos espaços de debate de que supostamente é objecto.
(Web Forum: O pensamento deveria ser um lugar organizado, limpo, sempre com
espaço livre para a circulação e uma boa entrada de luz. A frase é de uma amiga: o
pensamento cria o espaço. O espaço só está lá para o que vier. Ele aceitará tudo.
Inclusive o pensamento sobre ele próprio. Ninguém é moderno de si próprio)
Aquela cidade era, com efeito, uma das povoações mais antigas da região com despojos
da forte presença de civilizações pré-históricas, romana e árabe, e até aparecia nos
manuais escolares, como se isso valesse alguma coisa. Aliás, com um Carnaval tão
intenso, regado por milhares de litros de cerveja, quem se interessava pelo assunto? O
importante era mesmo o hospital. E o seu estado, que passou de caótico a lastimoso, um
progresso significativo. Talvez tivesse de reconsiderar. Dois não é a conta que Deus fez,
mas estava a soar-lhe bem. Dois hospitais numa só noite; visitaria a mãe e regressaria a
Lisboa para passar pelo Pulido Valente. Mesmo que demorasse a noite inteira, mesmo
que estivesse de estar acordado até às tantas da madrugada, para ser diagnosticado e
devidamente medicado, Tiago havia decidido e assim estava decidido: determinado a lá
ir, ou não fosse aquele ataque de borbulhas tomar conta de todo o seu corpo, obrigandoo a vergar-se ao peso de uma qualquer doença bizarra e mortífera. Quais eram mesmo
os sintomas do Ébola? Febre, dores de cabeça e conjuntivite. Depois diarreia, náuseas e
vómitos, por vezes com sangue. Talvez tivesse febre. Dores de cabeça por enquanto
não. Ou Sida. Não, não tinha, sabia que apesar do calor que emanava das bolhas, a
temperatura do corpo estava normal. Quanto ao vírus da imunodeficiência, há muito que
se convencera de que não o atacaria. Fazia sempre sexo seguro, embora com pessoas
inseguras, e mesmo assim nem por isso era muito regular nessa actividade a dois,
porque tendia mais a consumá-la a um, ou seja, sozinho, agora que o tempo passara e
havia já envelhecido demais. Mas tanto quanto sabia, bater uma punheta ainda não era
passível de infecção com o vírus da Sida.
Contudo, que não estava a sentir-se bem, lá isso não estava. Hipocondria? Não, o
mistério era outro e assomou-lhe sob a forma de uma luz, que rasgou de súbito o céu
encrespado de nuvens densas e o impeliu a afrouxar a marcha até imobilizar por fim o
14
carro, do lado direito, fora das faixas de rodagem. Havia qualquer coisa de etéreo ali. A
luz era intensa e avermelhada, e apontava directamente para ele. Contudo, Penha não se
assustou; ao invés, sentiu uma enorme e, por conseguinte, inexplicável atracção por
aquela forte luz vinda do céu que incidia sobre ele. Quase que o cegava. Tentou tapar os
olhos com o braço, desviar o olhar, mas a cabeça não se mexia. E ei-lo ali, sentado ao
volante do automóvel, com a cabeça levantada em direcção à luz no céu e a chuva a
fustigar o pára-brisas.
É claro que tudo sucedeu de forma muito rápida, não dando tempo a Tiago para ordenar
os pensamentos ou questionar-se sobre a origem daquela inusitada aparição luminosa.
Já não sentia o formigueiro nem a ansiedade. Agora, eram náuseas – se se lhe juntasse a
diarreia podia mesmo ser aquela terrível febre hemorrágica – e a dor no pescoço,
resultante daquela posição da cabeça, imóvel, virada para o céu, como se nada mais
pudesse fazer e se estivesse a preparar para a transição do seu mundo para outro, um
mundo qualquer desconhecido, de uma diferente natureza dimensional que não aquela
que sempre conhecera.
Instantes depois, que a Penha pareceram uma eternidade, tal era o seu desarranjo
mental, a intensidade da luz diminuiu e ele pôde ver o que se escondia por detrás dela:
um engenho em forma de disco, vermelho, que de repente, mal a luz perdeu a força,
subiu nos céus a uma velocidade colossal. Tiago conseguiu acompanhar com os olhos o
movimento daquela estranha máquina e por fim mexer ligeiramente a cabeça e o
pescoço.
Lá em cima, nos céus, a uma altura considerável, o engenho em forma de disco expeliu
de repente duas bolas de fogo azul, que começaram a cair até iniciarem um movimento
circular em volta de Penha, quando deveriam estar a cerca de cinquenta ou cem metros
de altura. Ele não conseguia avaliar a distância.
Foi então que ouviu uma voz, suave, mas misteriosamente audível considerando que
deveria partir daquelas bolas de fogo lá no alto, no céu.
— Não tenhas medo! — tranquilizou a voz. — Sai do carro e ouve com atenção.
Tiago abriu a porta da viatura, para sair cá para fora e ficar de pé, à chuva, com a cabeça
levantada na direcção das bolas de fogo, e o corpo a empapar-se de água.
— Esta luz que acabaste de ver é apenas um instrumento de navegação e comunicação
— prosseguiu a voz. — Mas não tenhas medo. Somos teus amigos. É difícil perceberes
que não fazemos parte do teu mundo, mas não tencionamos fazer-te mal. Pelo contrário,
precisamos de ti.
Penha foi acometido por uma necessidade imensa de beber qualquer coisa e a voz,
curiosamente ciente da sede dele, reagiu em conformidade.
— Tens sede? — indagou a voz oriunda das bolas de fogo.
E de súbito, sem mais nem menos, vindo do nada, apareceu um cálice de prata em cima
do capô do carro. Sem medo, invulgarmente calmo, Tiago agarrou na taça prateada e
ingeriu o líquido que estava lá dentro. Era incolor e inodoro como a água, mas tinha um
sabor diferente, algo indescritível que ele nunca havia experimentado.
No espaço, entre as bolas de fogo, que continuavam a desenhar círculos perfeitos em
volta de Penha, lá em cima, apareceu um ecrã em três dimensões, bastante luminoso. E
nele Tiago vislumbrou, absorto na estupefacção que o subjugava totalmente, uma
silhueta de uma criatura humana, a meio corpo, escura, na qual se viam apenas uns
olhos enormes e brilhantes.
Penha depositou de novo o cálice sobre o capô do carro, o qual desapareceu logo de
seguida.
15
— Há séculos que andamos a vigiar o teu planeta — continuou a voz. — A Lei
Cósmica impede-nos de fazer qualquer revelação sobre o assunto mas a Terra está em
perigo e temos de agir de imediato.
Mal acabou de soar a última palavra, o ecrã desapareceu, como se tivesse sido cortada
uma qualquer fonte de alimentação eléctrica e, novamente num momento repentino, as
bolas de fogo azul regressaram ao engenho em forma de disco.
Que porra de lugar-comum para tão estranha aparição, ele que nunca tivera vocação
para pastor!
Foi a última coisa que Tiago pensou antes de cair no asfalto, sem sentidos, metralhado
pela chuva que se precipitava agora abundantemente sobre a auto-estrada deserta.
Na Argentina, também houve quem visse o mesmo, até descobrir que tudo não passava
dos destroços de um satélite da NASA que se havia despenhado; não confundir com a
região com o mesmo nome no sudeste de Minas Gerais, no Brasil.
Ao acordar, sem conseguir perceber quanto tempo decorrera entretanto, veio-lhe logo à
memória aquele inesperado encontro de terceiro grau, mas tão depressa se lembrou do
episódio quanto se apercebeu que já não estava na estrada, debaixo de chuva, mas
algures, deitado em cima de qualquer coisa fofa, esponjosa, num local que lhe pareceu
ser uma enorme sala, totalmente banhada pela mesma luz avermelhada e absorvente que
contemplara aquando do inexplicável aparecimento do engenho em forma de disco.
Olhou em redor e confirmou a primeira impressão que os sentidos lhe apresentaram.
Estava com efeito numa sala imensa, debaixo de um dos muitos halos vermelhos que
iluminavam vários pontos. Havia algumas pessoas nuas a dançar, homens e mulheres,
de modo lento e arrastado, em transe, enquanto se ouvia oriundo de algures o som de
tambores com batidas num compasso lento, sempre iguais, guiadas por um metrónomo
invisível. Penha soergueu-se naquilo que lhe parecia ser um pufo mole e notou as cores
das paredes e do chão. Vermelho vivo na vertical e um tapete de mármore axadrezado, a
preto e branco, na horizontal.
— Estás vivo?
Tiago olhou da direcção da voz, que tinha vindo do seu lado esquerdo, e deteve-se a
observar uma mulher morena, também nua, deitada ao lado dele, aninhada na cova que
o corpo dela fizera no pufo que ambos partilhavam. Um pufo preto, de pele, como
Penha pôde descobrir entrementes.
Pela sala, entre nuvens de fumo geradas por dezenas de cigarros acesos, espalhavam-se
vários outros pufos, todos eles ocupados com pessoas deitadas. Estava toda a gente nua,
incluindo Tiago. Mas o local não era frio, pelo contrário; era abraçado por ondas de
calor que se incrustavam no corpo de Penha, não obstante estar nu e recordar-se do frio
que tinha sentido, embora não soubesse bem quando. Não havia sido durante o encontro
cósmico, porque ainda se lembrava com clareza da estranha apatia com que vivera tudo
aquilo. Completamente paralisado. Portanto, não houvera lugar a impressões físicas.
Todavia, algures na consciência, agitava-se uma remota memória da sensação de frio.
Algo de glacial, gélido, que lhe enregelara os ossos. Mas quando é que isso tinha
acontecido? Decerto que havia desmaiado. Houvera um apagão qualquer e talvez tivesse
sido nesse momento que foi atacado pelo gelo. As bolas de fogo azul haviam regressado
ao disco. Quase que conseguia vê-las agora. A imagem daquela ascensão veloz era
extremamente nítida. Mas a partir daí tudo se tinha tornado confuso. O que havia
sucedido depois? E como fora ali parar? Que lugar era aquele?
Atacado por um súbito sentido de pudor, potenciado pelo desconforto da nudez,
procurou as suas roupas ou algo que pudesse usar para se tapar, mas não havia mais
nada na sala, a não ser aquela nudeza absoluta, todos aqueles corpos em hipnose, a
dançar ou deitados nos pufos espalhados pelo chão axadrezado, cheiro intenso a tabaco
16
e álcool e o som compassado das batidas de tambores sob as várias auréolas
avermelhadas.
— O teu corpo está cheio de borbulhas encarniçadas — prosseguiu a mulher, a olhar
para o tecto, sem se mexer. — Deve ser a peste vermelha — e desatou a rir, desta vez
virando-se para ele.
A mulher soltava umas gargalhadas sonoras, dementes, que se sobrepuseram ao som
dos tambores. Tiago notou o batom vermelho em excesso que ela tinha nos lábios e, por
um momento fugaz, no meio daquela risada enlouquecida, como se fosse um insert
posto à frente dos seus olhos por um qualquer director de cinema sádico, pareceu-lhe
ver em grande plano a laringe da mulher, um órgão fibromuscular nada bonito de se
olhar se visto de tão perto. De resto, toda ela era de uma fealdade angustiante. É difícil
descrever uma pessoa feia. Que nos parece feia. Porque não há qualquer entusiasmo que
nos mova a procurar os adjectivos certos. Não basta registar a fisionomia e dizer que a
mulher tinha cabelo preto intensamente oleoso, uns olhos pequenos e mortiços envoltos
num torpor feito de álcool ou qualquer outra droga, ou um nariz curvo, bastante adunco
como o bico de uma águia. Como se narra os atributos da fealdade?
(Web Forum: A fealdade, seja ela qual for, é isenta de atributos, penso eu. A que se
segue a evocação de um poema épico grego: A primeira descrição física pormenorizada
da literatura ocidental é a de um homem muito feio, o grego Tersites. Veja-se a Ilíada,
II.211-219. Na tradução de Frederico Lourenço. “Era o homem mais feio que veio para
Ílion: tinha as pernas tortas e era coxo num pé; os ombros eram curvados, dobrando-se
sobre o peito. A cabeça era pontiaguda, donde despontava uma rala lanugem.” Alguém
pergunta: E o coração seria bonito? Resposta imediata: Pelo contrário, é uma figura
antipática, o que vai de acordo com as teorias antigas, segundo as quais havia uma
correspondência directa entre o corpo e a alma)
Na verdade, o que mais saltava à vista era aquela boca de lábios finos com contornos
mal definidos, carregados de batom vermelho, que lhe entrava pela boca e manchava os
dentes. Havia ali qualquer coisa de vampírico, que se assemelhava a sangue, como se a
mulher tivesse saciado já a sua sede daquele líquido espesso constituído por plasma e
células que nos faz viver, e agora consumasse com risos diabólicos a sua sorte e
condição de predadora.
Penha levantou-se de rompante, meio estonteado, consciente do ridículo da sua nudez.
Nada daquilo fazia sentido. A realidade havia perdido todo o sentido de verosimilhança
a partir do momento em que havia começado a vislumbrar nos céus aquela luz singular.
As gargalhadas ruidosas e demoradas da morena continuaram a fazer-se soar, mas
ninguém prestava atenção.
Tiago ensaiou alguns passos vacilantes pela sala à procura de uma saída. Mas parecia
tudo igual. Luzes vermelhas projectadas no chão de xadrez e o som dos tambores, com
uma multidão de gente nua a dançar. E pufos pretos, dezenas deles espalhados por
aquele salão que não parecia ter fim. Sempre o mesmo cenário obscuro, profundamente
tenso com a falsa aparência de serenidade, uma bonança falaciosa induzida pela
alienação. Seria uma casa de swinging? Ou de alterne com características muito
invulgares? Uma sala de chuto? Uma casa de ópio? Tiago Penha sabia bem que o uso de
ópio mascado ou fumado, que se espalhou no Oriente, provoca euforia, seguida de um
sono onírico. Mas não havia por ali qualquer sinal do cheiro típico desagradável daquele
suco resinoso. Não adiantava muito pensar no assunto.
Qual era a direcção que havia de tomar para sair dali? Teria forçosamente de abrir
caminho por entre os bailarinos em transe e talvez tropeçar, aqui e ali, nos pufos,
roçando o seu corpo coberto de borbulhas, fruto da tal misteriosa erupção cutânea, pelos
17
corpos dos outros. Nudez absoluta e hedionda, de corpos suados e odores vários, tudo
ao som de um frenesim melódico do tipo tribal e gargalhadas dementes.
O chão estava frio, completamente gelado. Começou a andar, devagar, em boa verdade
mais a cambalear do que a andar. Optou por uma direcção sem saber aonde o levaria. À
medida que avançava pelo meio daquele festim carnal e enquanto via, atónito, várias
pessoas em êxtase a rebolar pelo chão, apercebeu-se do som de gemidos e gritos, cuja
natureza rapidamente identificou. Do som e de um cheiro asqueroso, uma essência
odorífera genital complexa resultante de um cocktail de esperma e líquidos vaginais.
Um pouco mais à frente, dezenas de homens e mulheres, amontoados
desordenadamente, copulavam de modo desenfreado e diabólico, uns em cima dos
outros, selvagens, uma orgia alucinante e infernal, que nauseou e desnorteou Tiago
ainda mais.
Foi nesse momento que sentiu uma dor profunda e lancinante no maxilar inferior. E o
sabor a sangue que quase o asfixiou por instantes, de tão rápido que havia sido expelido
pelos lábios rasgados para o interior da sua garganta. Cheio de vertigens, Penha tentou
equilibrar-se sobre as pernas titubeantes, mas não conseguiu. Uma pancada violenta no
estômago deitou-o por terra, fazendo com Tiago embatesse com a cabeça contra o chão
de mármore. Vinda debaixo dela, uma mancha escura e viscosa começou a deslizar
vagarosamente por um dos quadrados brancos até se perder num quadrado preto.
18
III.
Há uma dor no lugar onde devia haver prazer, confidenciou várias vezes Tiago Penha
sempre que admitia ser um viciado em sexo, a única dependência totalmente inofensiva
para o corpo; a possibilidade de entender que o sentido da vida não passa do mero
suprimento de necessidades, da satisfação das necessidades primárias biológicas. E a
ideia de prazer era a melhor forma de o traduzir. É evidente que Tiago não escondia
uma certa vontade venenosa de tentar contaminar os fundamentos do funcionalismo de
Malinowski, tanto mais que reconhecia que o desejo de prazer pode ter danos colaterais.
Mas logo os remetia para o plano incorpóreo, pelo menos enquanto uma manifestação
directa de causalidade. Mal sabia ele que seria precisamente pelo prazer que Maria
Clara, já na etapa final da demência dela, lhe desferiria o golpe capital.
Maria Clara nem sempre fora assim. Quando se conheceram, era uma mulher tímida e
insegura. Mas o tempo dilatou-lhe as veias do opróbrio e Maria desatou num crescendo
de raiva permanente e degradação moral a todos os níveis. Contra ela própria, contra a
família, contra os amigos, contra o Mundo. Quanto ao móbil, esse, Penha conhecia bem:
ele mesmo, Tiago, o adúltero, Tiago, o cabrão, Tiago, o depravado, um professo da
ignomínia, da infâmia e da torpeza, que andou a esquadrinhar com particular empenho o
interior da vagina de uma colega de trabalho quando Maria estava grávida dele. Antes
de abortar. Antes de tomar a dolorosa decisão de matar a vida dentro do seu útero. Para
sempre. Renegando as Leis de Mendel e a possibilidade de cumprir a palavra do Senhor,
pela qual se apaixonaria mais tarde. Tarde demais.
Bem sensatos são os militares ao insistirem que colegas são as putas.
Demorou mais de duas décadas, mas a sentença acabou por ser proferida. E cumprida.
Tiago Penha foi vítima de homicídio por envenenamento.
Com diligências várias, e após uma investigação exaustiva mas secreta sobre o
verdejante mundo dos alcalóides venenosos extraídos de plantas facilmente acessíveis a
um olhar botânico mais atento, Maria Clara, uma mulher apetrechada que a princípio –
mas só apenas e rigorosamente no princípio, antes de descobrir a reiterada e abjecta
prática de infidelidade conjugal do marido – se apresentava como fogosa e nunca se
opunha aos criativos desejos carnais de Penha, que incluíam práticas sexuais um tanto
ao quanto invulgares, decidiu untar a vagina com cicutina, uma substância tóxica mortal
insípida com a aparência de um óleo amarelado.
Extraída da cicuta, uma planta apiácea também conhecida como abioto, a cicutina, ou
em rigor, a cicutoxina – que ficou inscrita na História como «o veneno de Sócrates» –
provoca o colapso do sistema nervoso central e, por conseguinte, a morte, que, por sinal,
não é coisa bonita de se ver. Pelo menos desta forma, já que a mors, no sentido da
mitologia greco-romana, até pode assomar de modo exuberante, como uma bela e
flamejante imolação por fogo. Mas não é o caso. Que o diga o filósofo grego, se ainda
falasse, ou escrevesse, após a famigerada ingestão do chá de cicuta que lhe arrefeceu e
enrijou o corpo. É certo que o ataque tóxico não foi imediato. Sócrates ainda teve tempo
de andar às voltas pelo quarto, mergulhado nos seus profundos e derradeiros
19
pensamentos até que começou a sentir as pernas pesadas. E aí sim, depressa passou das
voltas pelo quarto ao quarto às voltas, desaire locomotor que obrigou o pensador ateísta,
um malévolo instigador da corrupção moral dos jovens gregos, a deitar-se de costas. Os
seus carrascos examinaram-lhe os pés e as pernas até se certificarem de que o filósofo
havia deixado finalmente de as sentir. Seguiram-se as carícias mitigativas da toxina no
coração e o princípio do fim da existência cartesiana, ontológica e epistemológica do
enigmático pai da filosofia ocidental.
“E agora chegou a hora de nós irmos, eu para morrer, vós para viver; quem de nós fica
com a melhor parte ninguém sabe, excepto Deus”, ter-se-á despedido Sócrates, o ateu,
que aparentemente acreditava no Senhor, como relata o seu discípulo Platão, lançando a
dúvida sacrossanta dos filósofos, que pouco tem de sagrada para o venerável e sacro
conhecimento daqueles que condenaram o pensador à morte em nome da santidade. E
provavelmente de alguma, ou muita, necessidade de sanidade religiosa para tempos tão
adversos.
Foi pois sob «o veneno de Sócrates» que Tiago Penha sucumbiu entre as pernas da
mulher, com os lábios ainda molhados de sucos vaginais. E de uma dose letal de
cicutoxina. Uma mise-en-scène clitórica indigna para um homem que sempre se havia
mostrado como um arauto do prazer na sua dimensão mais funcional e, por conseguinte,
mais pura, condenado, também ele, a ser imortalizado, pelo menos ao olhar de Maria
Clara, com a boca caída sobre a púbis aloirada da mulher e o corpo retesado, nu, de rabo
para o ar.
Quem deles ficou com a melhor parte ninguém sabe, ele que partiu para morrer, ela para
viver, mesmo enclausurada. Na loucura. E num hospício. A cumprir a pena decretada
pelo tribunal. Sem possibilidade de redução da mesma por bom comportamento, que ali
não era coisa boa de se ajuizar. Na prática, absolvida do crime, por inimputabilidade,
mas condenada a pagá-lo perante a sociedade, como é bom de ver, sob a forma do
internamento compulsivo por tempo indeterminado e em regime fechado para
tratamento psiquiátrico, ou não fosse o mal propagar-se de forma epidémica
contagiando as demais, outras mulheres que porventura do mesmo se queixem e o
mesmo desejem fazer. Porém, Maria pouco se importava com a questão pelas razões de
que estava convencida ter, razões essas que, do seu ponto de vista, legitimavam em
absoluto a prática daquele nefasto gesto assassino.
Não deixa de ser curioso, contudo, no quadro deste bizarro crime vaginal, que alguns
investigadores forenses tenham perdido imenso tempo, na fase das entrevistas periciais,
a tentar descobrir se a expedita companheira marital de Tiago Penha, que acreditava ser
tanto a esposa de Cristo como a esposa do Senhor – o que vai dar ao mesmo, embora a
Igreja diga que não – terá chegado a atingir o orgasmo de tão excitada que estava em
atentar de forma definitiva e irremediável contra a integridade física do esposo. A
avaliar pelos fulgores a que costumava dar-se no acto do amor – no princípio, antes dos
crimes originais, o adultério e a asfixia de um feto, como várias fontes próximas da
homicida corroboraram – é bem provável que tenha chegado a sentir as universalmente
almejadas contracções reflexas ritmadas dos músculos perivaginais e perineais que
circundam a vagina, a intervalos de zero vírgula oito segundos. Para isso, e não obstante
estar consciente de que o seu centro gravitacional de prazer ocultava um alcalóide
altamente venenoso, Maria Clara terá de ter sentido uma vasocongestão e o início da
lubrificação vaginal, com os pequenos lábios ingurgitados a assumir uma coloração
intensa arroxeada ou cor de vinho e uma retração do clitóris em posição protuberante a
colocar-se por trás da sínfise pubiana.
São meras suposições fisiológicas, mas a ciência forense a tal se viu obrigada em busca
da validação das suas descobertas, tantos mais que era delas que dependia, em parte
20
considerável, uma boa acusação judicial e a conveniente condenação da ré. Que não se
verificou a instâncias da inimputabilidade.
Quanto a Tiago Penha, apesar de não ter sido tarefa fácil remover-lhe da boca e da
língua os restos de pêlos púbicos da mulher, pelo menos o seu corpo não apresentava
um tom cor-de-rosa, como sucedia com os judeus. É sabido que os nazis não resistiam a
dar umas boas gargalhadas sempre que abriam as câmaras de gás. E entende-se. Corpos
e mais corpos, todos amontoados, todos rosados. Não é por acaso que a diáspora judaica
escolheu o azul – felizmente apenas a cor, ao invés de bolas de fogo azul – para o centro
da sua bandeira nacional, a estrela de David, que traduz a primeira territorialização
soberana sionista: o Estado de Israel. Pelo menos é a tese defendida por alguns
especialistas que, melhor do que ninguém, sabem explicar estas coisas, embora não
esteja ainda muito claro o porquê do azul em prejuízo de outra cor primária como o
amarelo ou o vermelho. É certo que o azul é a cor da espiritualidade, da abóboda celeste
– ou a ilusão da mesma, que no espaço a imensidão de negritude bem que poderia ser o
paraíso cosmológico das mais variadas diásporas subsarianas, faltava aqui Isaac Newton
para o sugerir – a cor de um céu limpo e imaculado, o que faz supor uma predisposição
para uma maior proximidade com as divindades que erram pelo universo; mas remete
também o pensamento e, já agora, para um grupo de artistas de inspiração
expressionista, curiosamente germânico, o Der BlaueReiter, ou O Cavaleiro Azul.
Poder-se-á aduzir o argumento de que o azul simboliza a lealdade, a fidelidade, a
personalidade e subtileza. Trata-se, com efeito, de uma cor romântica, talvez porque
lembre a cor do mar, mas está igualmente associada à falta de coragem ou monotonia.
Por seu lado, o amarelo transmite calor, luz, descontracção; é uma cor cheia de energia,
activa, associada à prosperidade e que transmite optimismo. Tal como o vermelho, a cor
da paixão e do sentimento, do amor e do desejo, do orgulho e da violência, da
agressividade e do poder. Mas os hebreus assim decidiram, e está decidido. Para acabar
de vez com a humilhação da morte cor-de-rosa, e a fragilidade, delicadeza e o pendor
feminino que lhes são inerentes. Até nisso o nacional-socialismo alemão foi cruel:
chacinou a praga judaica sob o ditame da efeminação.
De certo modo, também foi este o destino de Tiago Penha: nu, de rabo para o ar, com a
língua enfiada na vagina ardente e possessa da mulher, com o corpo inerte e sem vida.
Um homem desvirilizado na hora definitiva e irreversível da partida. Por efeito do seu
desejo mais primitivo e animalesco – na verdade uma necessidade primária biológica –
atacado selvaticamente por um clítoris venenoso. O doce veneno do escorpião, esse
temível aracnídeo que nem no Zodíaco escapa de ter fama de má rês. Um invertebrado
artrópode cujo móbil gravitacional é tão-só o prazer e a posse na sua relação com o
outro; o sexo e a paixão possessiva; o amor e o ódio; sempre pronto a atacar. Não foi
este o animal enviado por Apolo para matar Órion, enciumado com a relação entre este
e a sua irmã Ártemis? Não está cientificamente demonstrado que as estrelas de Órion
desaparecem do Ocidente quando as do escorpião nascem no Oriente?
O sexo oral sempre teve destes problemas. Foi justamente através de um pequeno vídeo
caseiro, no qual se via uma mulher a lamber à força os baixios vaginais de uma
adolescente – à força é como quem diz, porque a menor estava inconsciente – que Karla
Leanne Homolka (a retratada no filme) e o marido Paul Bernardo, um casal de serial
killers canadiano, foram apanhados pela polícia. Após dezenas de casos de abusos
sexuais e assassinatos violentos de mulheres adolescentes que se arrastaram durante três
longos anos. Aliás, esta onda de produção de vídeos ditos caseiros com imagens de
natureza sexual mais ou menos explícitas tem muito que se lhe diga. Sobretudo quando
caem na rede.
21
Não é de supor, apesar de tudo, que valha a pena perder muito tempo com o tema. Tanto
mais que o mesmo está devidamente documentado e até se transformou numa prática
comum com intuitos nem sempre muito claros. Os visados tendem a queixar-se, com
ameaças várias em conformidade com a natureza e a dimensão da publicidade dada às
imagens, mas o protagonismo mediático que decorre destes já célebres vídeos leva a
crer que o fenómeno digital, que enferma de contornos claramente neuróticos – poderse-á dizer, embora se remeta a questão para quem melhor seja capaz de a avaliar – será
bem mais objectivo, nos efeitos que visa produzir, do que um mero e subjectivo fetiche,
posicionado a montante, como alguns defendem. Tudo somado, o certo é que, a jusante,
o resultado é o mesmo. Para delícia dos cibernautas adeptos deste voyeurismo pastoral.
O que parece dramático é o crescente apetite pela inocência roubada, uma liberdade
eufemística a que aqui se se dá ao luxo de recorrer para sublinhar a problemática da
devassa da intimidade por meios ilegítimos (ou quase, porque nestas coisas da
legitimidade a zona cinzenta é extensa e pantanosa). Devassa, pois não se trata de gente
adulta, ou no limite legalmente emancipada, a sopesar, lamber, sugar, tilintar, penetrar
ou deixar penetrar as protuberâncias e os orifícios erógenos e ejaculadores dos seus
corpos suados e tensos, no precipício do prazer supremo; mas de menores, seres
humanos ainda a caminho da consciência plena da sua sexualidade.
No Chile, o caso «Wena Naty» é paradigmático. A história começou com as imagens
amplamente divulgadas, sobretudo na Internet, de uma jovem de catorze anos, estudante
de um colégio católico, a abocanhar o falo erecto de um rapaz num dos parques mais
frequentados de Santiago, à luz do dia, enquanto um amigo da dupla, ou amigos – há
várias versões – registava às escondidas o famigerado felaccio juvenil. As provas
materiais da degustativa felação levaram milhares de visitantes ao sítio que as publicou
online e as autoridades locais a investigar o assunto depois de considerarem que havia
fortes indícios da existência de um grupo organizado de adolescentes que se dedicava à
produção de material pornográfico. Wena Naty, a rapariga da garganta prematuramente
funda, ficou conhecida em todo o Mundo, tal como o nome dela, que entrou inclusive
para o património lexical daquele País sul-americano. «Dicese de la mujer ke le gusta
lamer una y otra vez el miembro inferior masculino, sin importarle de kien es», «cabra
culia q le chupa el pico a todos los compañeros» ou «pequeña prostituta que le gusta
hacer mamadas en plazas y ser exhibida en youtube» são algumas das definições que
podem ser encontradas para a expressão «Wena Naty».
De resto, foi precisamente com este nome que se popularizou o sítio que divulgou os
três vídeos malditos da perversa filha da blasfémia, entretanto removidos pela Justiça.
Sublinhe-se, todavia, que a perfilhação demoníaca nunca chegou a ser estendida ao coprotagonista masculino, uma vez que, crê-se, em terrenos da Igreja e da fé – a Católica
Apostólica Romana, que as outras não são para aqui chamadas – quem manda são os
homens. É que, apesar de todos os encantos do misterioso feminino tão exaltados pelos
vários movimentos intelectuais fruto do romantismo europeu, as mulheres servem para
pouco. Basta lembrar o que o Senhor Deus disse no acto da criação: “Não é bom que o
homem esteja só. Vou dar-lhe um ajudante”. Então o Senhor Deus formou da terra
todos os animais selvagens e todas as aves do céu, e trouxe-os ao homem para ver como
os chamaria; cada ser vivo teria o nome que o homem lhe desse. E o homem deu nome a
todos os animais domésticos, às aves do céu e a todos os animais selvagens. Mas entre
todos eles não havia para o homem um ajudante à altura. Então o Senhor Deus fez cair
um sono profundo sobre o homem e ele adormeceu. Tirou-lhe uma das costelas e fechou
o buraco com carne. Depois da costela tirada ao homem, o Senhor Deus formou a
mulher e apresentou-a ao homem. E o homem exclamou: “Desta vez sim, é osso dos
meus ossos e carne da minha carne! Chamar-se-á mulher porque foi tirada do homem”.
22
Está tudo escrito no Antigo Testamento, e pena é que nunca tenha constado também nos
manuais eugénicos para a devida beatificação do Terceiro Reich. Quem somos nós para
contrariar os desígnios do Senhor Deus, nosso pai? Primeiro, há o homem. Depois há os
animais e as mulheres, cada uma das espécies com os seus respectivos deveres e
obrigações para com o homem, em nome da vontade divina.
Após o felaccio da jovem chilena, Wena Naty, o sítio da web, mostrou mais. Ainda
chegou a aventurar-se pela libidinosa adrenalina do bullying, mas os falos erectos e
robustos abocanhados por pequenas e pueris bocas femininas é que faziam sensação.
Daí que se seguiu mais um caso, de novo num colégio, agora franciscano, um pouco
mais distante do centro nevrálgico da capital, mas situado ainda nos limites da região
metropolitana de Santiago. Desta vez, o protagonista central foi um estudante,
igualmente de catorze anos, um aluno problemático e, por conseguinte, repetente, que
conseguiu derramar as sementes líquidas das suas glândulas reprodutoras sobre as
línguas e os lábios de pelo menos de três raparigas de doze anos. A diferença é que o
fez, entre ruidosos gemidos, em plena sala de aulas à frente de toda a turma. Uma, duas,
talvez três ou mais vezes, inquinando a conta que Deus fez. Por estranho que pareça,
ninguém sabe ao certo quantas foram nem as condições em que foi possível que os
supostos factos ocorressem e de forma tão reiterada. Mas há imagens que o provam,
captadas com telemóveis. As alegadas vítimas acusaram o rebelde de as ter forçado a
tão ignóbil prova oral perante o olhar impassível e complacente dos restantes alunos,
tanto rapazes como raparigas. Em contrapartida, o presumível autor dos desenfreados
crimes sexuais alegou que as bocas das meninas abriram-se milagrosamente, com o
devido consentimento, para receber a jeito e com prumo o seu membro viril,
determinado a distribuir esperma pelas demais, que se infiltrava pelas narinas e corria
em longos fios gelatinosos pela boca e o queixo de cada uma das raparigas. A Nação
chilena ficou chocada. Os media promoveram intensos e numerosos debates sobre o
assunto com psicólogos, psiquiatras, profissionais de educação, investigadores policiais
e até representantes do Governo; ouviram os testemunhos dramáticos das jovens
chupadoras de pénis, alegadamente à força, mediante a exigida e conveniente protecção
de identidade; ouviram os pais chorosos das supostas vítimas, que deram a cara e
deitaram por terra o anonimato das filhas amadas; e, por fim, ouviram igualmente o
presumível coleccionador exibicionista de felaccios. Ouviram, condenaram, mas
ninguém foi sentenciado.
A mise-en-scène brochante não passou disso mesmo. De um fait divers que acabou por
brochar com o tempo, não obstante os protagonistas do caso ou, em rigor, o próprio
caso em si ter ficado mundialmente conhecido. Ou quase. O que parece dramático,
insiste-se, é que há mais, muito mais. Que se cite apenas mais um caso, ainda no Chile,
referenciado aqui sem qualquer objectividade geográfica, aproveita-se para sublinhar,
mas tão-somente devido à profusão de notícias que do País chegam e que muito têm
contribuído para a história recente do sexo oral na sua dimensão paludosa: uma
adolescente de quinze anos foi filmada num quarto, também com telemóveis, com a
boca a saltitar entre os pénis de três amigos, com idades compreendidas entre os vinte e
cinco e os trinta anos, e houve rumores de que teria feito o mesmo com um outro
homem, uma fricção labial culminante que terá sido igualmente registada em formato
digital.
O sexo oral sempre teve destes problemas, repete-se, embora o essencial da questão não
resida na modalidade sexual em si. Esta constitui, aliás, uma prática saudável para a
vida íntima de qualquer casal – excepto para Tiago Penha – que até pode ser potenciada
quando exercida em simultâneo, numa desafiante amálgama de sucos vaginais e nacos
de esperma, com as variantes homossexuais, transexuais, lésbicas e mesmo grupais e
23
transgénicas, para arredar de vez a monotonia mórbida das paixões missionárias. O
problema está no apetite pela inocência roubada, movido por desejos erráticos
censuráveis e altamente condenáveis.
Não admira, pois, que Maria Clara andasse tão convencida de ter razões, e de sobra,
para usar, em sede de sexo oral, a mesma arma na versão feminina, após um curto mas
doloroso período de cedências esbraseadas aos mais variados desejos carnais de Tiago
Penha. Um ataque vaginal fulminante contra a integridade da vida do marido, um chefe
de família que fingia pisar convicto – embora não o manifestasse no plano racional mas
tão-somente no moral (coisa estranha e contraditória, que à frente se perceberá melhor,
sobretudo através de Hipócrates) – os terrenos da Igreja e da fé, onde quem manda são
os homens, mesmo sem uma costela, retirada à força pelos propósitos divinos para dela
fazer a espécie da mulher, uma vez criada a espécie dos animais.
E quem disto tem dúvidas, por eventualmente identificar nos textos sagrados um sentido
apócrifo, é bom lembrar os ensinamentos de Hipócrates, o insuspeito “pai da medicina”
da gloriosa cidade-Estado de Atenas. O estudioso da Grécia antiga, um homem com
uma total integridade ética, que até legou o famoso «Juramento de Hipócrates»,
encontrou uma forte causalidade exógena no pólo de explicação da maioria das doenças
e outras enfermidades. A malária, papeira, pneumonia e tuberculose, que assumiram por
vezes um carácter epidémico, são disso um bom exemplo ao aparecerem nas
proposições hipocráticas inelutavelmente relacionadas com factores climáticos, raciais e
mesmo dietéticos, denominadores comuns que fazem avultar a importância da escala de
valores em que cada povo se posiciona e o modo como cada um conduz a sua vida,
física e espiritual. A dicotomia é evidente e inevitável: está-se do lado das forças do
bem ou das forças do mal. E a isto ninguém escapa, pois não há meio-termo. É aqui que
entram as mulheres. Com efeito, Hipócrates demonstrou de forma cabal e inequívoca –
suprima-se a redundância pleonástica – como a mulher é uma espécie inferior,
equivalente à dos animais; é o que se pode inferir da sua análise sobre a histeria, um
desarranjo mental tipicamente feminino. Com base num extenso e demorado trabalho de
pesquisa científica – e aqui estão os fundamentos do padrão moral que guiava Tiago
Penha, isto é, a natureza muito peculiar dos terrenos da Igreja e da fé, mas só esta e nada
mais, que ele escolhera para pisar com convicção – embrionário é certo, mas longe do
empirismo áspero e penoso do polímata egípcio Imhotep (por vezes citado como
Immutef, Im-hotep ou Ii-em-Hotep), Hipócrates concluiu que, quando as mulheres não
podem ter filhos, o útero descai, impede-as de respirar e faz com as que as angústias
lhes subam à cabeça, o que explica os devaneios histéricos e a necessidade de cumprir a
palavra do Senhor. “Sede fecundos e multiplicai-vos; espalhai-vos pela Terra e
multiplicai-vos sobre ela”, disse Deus a Noé e aos filhos deste, aquando da nova
oportunidade dada ao homem após o fracasso pré-diluviano de toda a descendência de
Adão, a quem o Senhor havia recomendado o mesmo.
Quer isto dizer que, sendo a histeria uma maleita das virgens e das estéreis, mulheres
com ausência de ovulação, lesões nas trompas de Falópio, endometriose ou problemas
do colo do útero e, portanto, desnecessárias, as mulheres, entenda-se, o sexo com fins
procriadores, e com mulheres férteis – sublinhe-se – apresenta-se como uma obrigação
de qualquer homem, tanto mais que só assim se cumpre a palavra do Senhor, que Tiago
respeitou com empenho mas só pela metade, a que lhe interessava.
Não se pode deixar de estranhar, todavia, que Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e
da terra e de todas as coisas visíveis, e até de algumas invisíveis, o mesmo que no
Jardim do Éden deu ao homem a liberdade total, incentivando a reprodução por via
sexual sem nunca referir que podia haver meios que não serviam os fins, tenha olhado
pouco tempo depois para o planeta e determinado, por um misterioso silogismo, que o
24
mesmo estava corrompido, quer dizer, ferido de uma certa ordem moral que, em boa
verdade, nunca foi muito inteligível, pelo menos de forma consensual entre toda a raça
humana. Por outras palavras, o cumprimento das ordens primeiras deu lugar afinal à
percepção divina da existência da Babilónia, a Grande, morada de meretrizes sentadas
no dorso de uma fera cor de escarlate, com sete cabeças e dez chifres – argumento que
voltaria a ser recuperado na Era pós-cristã. E, por isso, foi necessário julgar o homem e
abater sobre a cabeça deste um dilúvio apocalíptico, na senda da violenta destruição de
Sodoma e Gomorra, na senda da ira original contra Adão, que não resistiu a
desobedecer a Deus e comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. “No dia em
que dela comeres, certamente morrerás”, disse o Senhor a Adão. Mas o aviso não foi
suficiente. Resultado: Adão e Eva, que dantes andavam nus, perderam a inocência,
passando a cobrir os seus órgãos genitais, tal como perderam a imortalidade. E mais: o
parto, símbolo derradeiro da vontade celestial, que devia ser um momento de prazer
supremo, foi condenado ao sacrifício da dor. “Multiplicarei grandemente a tua dor, e a
tua concepção; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele
dominará”, ditou o Senhor à mulher. E a Adão disse: “Deste ouvidos à voz de tua
mulher, e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: não comerás dela, maldita é a
terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida. Espinhos, e cardos
também, te produzirão; e comerás a erva do campo.”
Por que razão se tornou Deus num ser tão vingativo e maldosamente hediondo? Por que
razão voltou Deus com a palavra atrás para encarar o acto do amor como um gesto de
pecado? Pode ser mais um dos mistérios divinos, mas aos olhos dos seres terrestres não
parece fazer grande sentido, tanto mais que Nosso Senhor acabou por dar uma nova
oportunidade ao homem e repetir a Noé e aos seus filhos o que tão claramente havia
ordenado a Adão. “Sede fecundos e multiplicai-vos!” Terá sido a bestialidade do sexo
demais para o olhar puro e imaculado dos anjos, os guardiões e mensageiros do céu?
Estaria implícito nas palavras do Senhor que a procriação deveria ser apenas um acto
missionário, mecânico, fastidioso, enfadonho? Que não deveria haver prazer mas apenas
sentido de missão? Se assim foi e assim é, compreende-se que a sodomia, a
masturbação e todo e qualquer outro gesto de manipulação de órgãos genitais, do
próprio ou de outrem, sejam condenáveis.
Como se tem vindo a dizer, e volta-se a insistir, para que se diga e assim fique dito, o
sexo oral sempre teve destes problemas, pelo que não admira que Maria Clara tenha
feito da sua vulva uma arma mortífera perante a qual sucumbiu Tiago Penha de forma
traiçoeira e grotesca. Com «o veneno de Sócrates» disfarçado com fragrâncias vaginais
a corroer-lhe a língua e os lábios. Após uma dança clitórica tão diligentemente
conduzida.
E pensar que tudo se deveu à velha problemática da misogamia, que se agrava com a
disfunção intelectual. Pode parecer excêntrica e contundente, mas nem por isso se trata
de uma conclusão desajustada.
Com efeito, ao longo da história da existência humana, centenas, milhares, milhões de
misógamos só descobriram sofrer da patologia muito tempo após terem cedido aos
pergaminhos da união marital. Pelos bons ofícios da Igreja e do legislador, a dissolução
do contrato matrimonial já não é uma tarefa tão árdua como em tempo idos. Ainda
assim, manda a sensatez e os bons costumes olhar para a questão com redobradas
cautelas. É certo que há a separação de credos, a separação de bens e acordos prénupciais; o problema é o património comum que resulta de tão nefasta empreitada,
sobretudo quando a patologia se revela tardiamente. Tanto mais que não é de fácil
diagnóstico. De resto, os activos e os passivos entretanto gerados pela relação conjugal
podem ser um quebra-cabeças pouco benemérito, sobretudo se estiverem em causa
25
poderes paternais – o que não sucedeu com Tiago e Maria – e compromissos
fiduciários.
Daí que o misógamo sinta por vezes o dever de se obrigar a expedientes vários para
apaziguar o seu desânimo e descrédito na boa sorte do que desejaria ultimar, longe de
serem devidamente pundonorosos. Pode até estender laços transversais que perturbem
outras ligações de amor e boa-fé, acumulando novos pecados à já sua tão perturbada
fonte de problemas: a misogamia, em sede de vínculo conjugal, abre assim a porta a
patologias emergentes às quais urge pôr cobro.
É que quem por esta porta ousar entrar, saberá decerto que vai encontrar recostado a um
canto, no escuro, debruçado sobre uma mesa com as mangas do casaco puídas, um ser
humano cabisbaixo, agastado pela dor da perfídia. A eterna dor dos seres humanos que
insistem em contrariar a condição selvagem com que Deus os dotou, a mesma entidade
omnisciente que sacralizou a comédia do amor, ditando desígnios contraditórios
aparentemente apenas por mera diversão. Uma estratégia insana que mais não faz do
que provar que a fé é afinal tão-somente um dilema de aritmética química.
É como a disfunção intelectual; tal como a disfunção eréctil, afecta um número
crescente de ilustres membros das elites intelectuais e caracteriza-se pela impotência de
manter erecto um pensamento coerente. A verborreia e a presunção, associadas a
comportamentos característicos de disfunção social, são sintomas evidentes desta
doença que, lamentavelmente, contagiou de forma epidémica todas as redes de
comunicação, tanto verticais como horizontais. E este, decerto, foi um dos problemas da
relação entre Tiago Penha e Maria Clara: um processo de comunicação contaminado por
um cavalo de Tróia, um trojan vulgar, mas tão trágico quanto infantil com o simplismo
típico dos script kiddies.
26
IV.
Uma das grandes ironias da buliçosa e controversa existência de Tiago Penha foi o
suicídio. Depois de ter sentido a força do impacto e o airbag a explodir-lhe na cara;
nesse momento, soube que o suicídio era a única opção. Precisamente por acreditar que
não é um acto de coragem nem de cobardia; é tão-somente o derradeiro insulto da
imperfeição do acto de existir. Não se tratava de nenhum sentimento de culpa ou
necessidade de infligir qualquer forma de punição. Não estava sozinho na viatura, é
certo, mas ambos haviam escapado ilesos. Ou quase, que ele ainda foi parar ao hospital
com uma fractura no ombro do lado esquerdo, na omoplata, e duas costelas partidas.
Quatro dias de internamento, com muitos sedativos à mistura, a que se seguiram várias
e demoradas sessões de fisioterapia. Quanto a Maria Clara nada sucedeu a não ser o
enorme susto que apanhou. O mesmo não se pôde dizer do carro, cuja troada metálica
assolou o espírito de Tiago durante muitos meses. Não é que o suicídio tivesse a ver
com a pessoa que seguia ao lado dele; tinha ver com ele próprio. E o acidente havia sido
apenas o catalisador dessa pulsão suicida. Aliás, nem era um impulso ou uma força
criadora de efeitos. Foi simplesmente o aviso para a medida da sentença.
Para Penha, matar-se era a única opção. Matar o corpo, os pensamentos, a depressão, a
raiva. Eram tantas as febres. Amordaçadas. Coladas à pele como sanguessugas de tal
forma que Tiago deixou de conseguir disfarçar o esgar de desespero que lhe esculpia o
semblante.
Se conduziu grande parte da sua vida de forma desregrada, não o fez intencionalmente,
mas a matriz punitiva da sua coabitação contratual com Maria Clara, mais formal do
que material, como é fácil imaginar na sequência da violação de uma das regras mais
basilares da união marital e logo exercida no início da mesma – cujas motivações a
montante devem merecer, aliás, algumas palavras no seu devido tempo – transmutou-se
numa filiação moral de imoralidade que acabaria por estruturar o curso dos
acontecimentos que experienciou desde então. Não é que não houvesse igualmente uma
certa predisposição de libertinagem inscrita no seu código genético, mas a fonte uterina
só encontrou espaço para se expandir a partir do momento em que Tiago sentiu não
haver outra opção. De resto, desde que saíra da universidade e o trabalho em engenharia
informática começara a correr-lhe de feição, ao serviço de uma poderosa multinacional
sediada em Atlanta, nos Estados Unidos, mas sob ordens do centro de operações de
Londres, obrigando-o a ausentar-se no estrangeiro cada vez mais e por maiores períodos
de tempo, graças à sua mais-valia ibérica, ideal para intervenções nos mares latinos –
lusitanos, hispânicos e afins, aonde quer que se encontrassem além-mar – Penha
descobriu a possibilidade de uma vida dupla, se bem que se trate de uma matéria que
merece algumas cautelas de análise. Se em Portugal era confrontado em permanência
com a obrigação de se penitenciar, mesmo que daí não resultasse mudança alguma,
quando seguia viagem overseas, o mundo tingia-se subitamente de vermelho e amarelo;
enchia-se de calor, luz, descontracção; um banho de energia e optimismo, de paixão e
sentimento, de amor e desejo, de orgulho e poder.
27
As duas cores primárias não eram suficientes, contudo, para aplacar tão volumosa carga
de culpabilidade; na prática, agia num sentido, mas pensava noutro. Fingia não ter
passado, o que abria campo para uma conduta censurável, ao mesmo tempo que, sempre
que se encontrava a sós, em segredo, era incapaz de afastar a dolorosa sensação do peso
das mãos sujas, a pressão da racionalidade. Se se libertava pela acção, não deixava de
ser prisioneiro de si próprio pelo pensamento.
É certo que, ao longo dos anos e em vários lugares do planeta, fez algumas tentativas
para sublimar o paradoxo, mas todas elas acabaram por agravá-lo ainda mais. Até
porque grande parte desses ensaios de fuga localizava-se tão-somente no plano da
imaginação, se bem que, regra geral, Penha os concretizasse materialmente mas não
nessa qualidade. Talvez seja melhor clarificar: mais do que propriamente ensaios de
fuga, os actos de Tiago Penha e a essência da conduta que os presidia resultavam de um
conflito inerente à sua própria natureza multifacetada, enquanto depositário e intérprete
de uma luta feroz entre duas forças opostas. A ideia de fuga, essa, podia e devia ser
encontrada noutra dimensão: a dos meros exercícios de criação ficcional; vontade de
viver diversos papéis como um actor. Como se fosse possível recomeçar a vida sempre
que assim o desejasse, da forma que bem entendesse. Dir-se-ia, pois, que era este o
carácter distintivo da sua vida dupla, em rigor, da vida dupla que julgava ser
protagonista. Como um interlocutor privilegiado da reinvenção permanente da fortuna e
da sorte. Para fintar o interlúdio do ocaso, os propósitos omniscientes e ubíquos do
destino, não fosse dar-se o caso dos mesmos existirem na realidade, esse triste fado
tridimensional, de aura dourado-esverdeada, traçado – supõem alguns ou talvez muitos
– pelas divindades que coabitam erraticamente na incerteza celestial.
E se apanhasse um avião para Havana, pensava às vezes Tiago Penha, e se instalasse
algures num local recatado, mas suficientemente perto do pulsar incandescente da
cidade, no qual pudesse chafurdar assim que lhe apetecesse, talvez num pequeno
pardieiro junto à praia, a viver de sexo, rum e charutos? Ou Vitória, entre o Rio e a
Bahia, uma pequena ilha tropical rasgada por curvas e curvas de água salgada com uma
baía aberta ao azul do Atlântico, agitada pelos ritmos frenéticos do seu Vital e os calores
irresistíveis da cópula social descomprometida enxertada durante vários séculos de
miscigenação? Teria a vantagem de ser um lugar onde se fala a mesma língua, onde o
custo de vida é suportável e a condição de descendente dos antigos colonos portugueses
ainda pesa nas regras da atracção dos capixabos, não pelo sotaque mas sobretudo pela
geografia da economia e a misteriosa divinização do mundo eurocêntrico, como se a
agonia deste nunca houvesse acontecido.
Sempre havia a hipótese de Ushuaia, La Ciudad del Fin del Mundo, La Tierra del
Fuego, perdida nos confins da Argentina em clima oceânico sub-polar, onde se pode
viver tranquilamente de filet mignons e do generoso fado do Cabernet Sauvignon. Tiago
havia lá estado uma vez em trabalho durante algumas semanas. Com Simão Saraiva, o
seu skin buddy para facelifts mais complexos, como o chamava por brincadeira, já que
HTML, JavaScript e outras ferramentas afins de scripting não eram propriamente uma
grande paixão para Penha.
Simão e Tiago desenvolveram ao longo dos anos durante os quais trabalharam lado ao
lado – dois crânios portugueses descobertos pela multinacional norte-americana por
força do notável percurso académico que haviam tido, chamando várias atenções
internacionais pela revolução do raciocínio algorítmico que ambos começaram a
implementar, se bem que em universidades distintas – uma relação muito estreita de
amizade. Apesar de andarem a ouvir falar um do outro há muito tempo e conhecerem
alguns pormenores do trabalho de cada um, só travaram conhecimento pessoal em
Londres e, para espanto dos dois, a empatia mútua foi imediata, coisa curiosa quando
28
em Portugal até parecia que se odiavam, sempre que sucedia manifestarem junto de
terceiros opiniões sobre os desempenhos de cada um. Decerto que a carreira aliciante
que lhes foi proposta, com a possibilidade e a obrigação de dar a volta ao mundo
literalmente, e mais do que uma vez, e um pacote salarial irrecusável, terá ajudado a
fundar esta súbita cumplicidade; mas também não deixa de ser verdade que, vencidos os
caprichos iniciais da coabitação em terras portuguesas, vá-se lá saber porquê, embora
não seja novidade para ninguém, depressa a relação profissional e pessoal tornou-se
bastante saudável. Às vezes acontece. Quando o inimigo é comum. E os dois tinham
pela frente um enorme desafio, justamente com ameaças comuns. Companheiros para a
vida, amigos para sempre, ou quase, a filosofia entranhou-se-lhes em poucos meses, não
obstante as estranhas e inesperadas ausências de Saraiva, que dava em desaparecer com
alguma frequência sem deixar rasto por períodos que chegavam a atingir um ou dois
meses. Incontactável, perdido algures nalgum recanto da imensidão terrestre, talvez para
retemperar as forças, algo que Tiago nunca compreendeu mas também não quis
perguntar. Também houve alguns arrufos pontuais, relacionados sobretudo com o gosto
obsessivo de Simão por armas de fogo, que acabou, aliás, por se interpor entre eles a
partir do momento em que Penha decidiu que o suicídio era a única opção. Quer dizer,
após o homicídio em Goa, na Índia, o único a que assistiu, apesar de suspeitar de que
poderia haver outros crimes, e um episódio em particular, registado precisamente em
Ushuaia, que agora, olhado à distância, parece ser sintomático do azedume que
começou a desprender-se de Tiago. Ter-se-iam passado umas duas ou três semanas
desde a chegada da dupla àquele remoto arquipélago da Patagónia, tempo suficiente
para Saraiva ter a arte de adquirir, por portas e travessas – que nisso era bastante
expedito – uma nova arma. Para o que desse e viesse. É que, em matéria de defesa
pessoal, ou de ataque, conforme a disposição – que, aliás, já lhe tinha valido alguns
problemas com a Justiça, de que foi (mau) exemplo a indiana, em Goa, como se referiu,
onde matou um muçulmano a sangue-frio numa praia virada para o Mar Arábico, por
sorte àquela hora despejada de vacas sagradas e vendedores de camisas de seda, regra
geral crianças, permitindo-lhe a veleidade de se desfazer do corpo sem grandes
parcimónias e com muita frieza, em boa verdade, como muita eficácia até, senão
provavelmente ainda estaria a bater com os costados nas grades metálicas e enferrujadas
de um qualquer cárcere como o de Margão – Simão não brincava em serviço, tais eram
os territórios inóspitos que ele e o colega estavam habituados a calcorrear. Em nome da
era digital e da democratização das novas tecnologias de comunicação em rede,
disponível a todos os povos do Mundo desde que houvesse petrodólares em quantidade
suficientemente atractiva ou outras moedas similares, regra geral ensanguentadas, que
assim até sabiam melhor.
(Web Forum: Matou e acalmou-se para respirar fundo e pensar que ar é vida)
Ao certo, Penha nunca chegou a saber, como adivinhava não saber muitas outras coisas
a respeito de Saraiva, como é que o colega tinha conseguido munir-se daquele novo
revólver, que obviamente teria de deixá-lo lá, assim que concluíssem o projecto pago
pelo erário público via Município de Ushuaia, mas também não se empenhou muito no
assunto de tão acostumado que estava àquelas iniciativas do amigo, por onde quer que
passassem.
Naquela noite, no hotel, após mais um jantar de carne em sangue, regado, e bem, pelo
néctar da distinta, vigorosa e irresistível vinífera tinta, resultado de uma engenhosa
combinação aromática de pimentão verde, violeta, amora, cássis, ameixa, coco,
baunilha, couro, cacau e tabaco – no Sertão brasileiro, entre Pernambuco e a Bahia,
faziam o mesmo, mas só até à maturação da uva, que as restantes artes, entre
macerações e trasfegas para amadurecimento e envelhecimento, eram confiadas às
29
vinícolas da Serra Gaúcha, no Rio Grande do Sul, mais um dos tristes destinos dos
nordestinos, porque Nordestino não é gente, façam um favor, matem um nordestino
afogado!, escreveu na web uma tal de “Sophia Fernandes”, paulista, claro – Tiago
Penha e Simão Saraiva decidiram sair para dar uma volta e desentorpecer as pernas,
conveniente eufemismo para barriga cheia e cabeça vazia (ou quase) – faltava citar Tao
Te Ching, ou O Livro do Caminho e da Virtude, recuperado séculos mais tarde por
Maquiavel, o florentino, o desventurado arquitecto do poder. Desentorpecer as pernas e
brincar com o revólver, do qual Saraiva fazia questão de não se separar.
Obstinadamente.
Meteram-se no carro e andaram a circular durante quase meia hora, devagarinho, sem
rumo definido. Do alto da montanha, Simão avistou um vale, onde se aninhava um
pequeno lago congelado, e decidiu descer por um caminho sinuoso até lá abaixo.
— Emprestas-me a tua arma?
Estavam os dois de pé, à beira do lago, a olhar para um penhasco fustigado pela nevada.
Ao formular a pergunta, Penha imaginou a história completa: após o suicídio, o
companheiro sairia dali, a caminhar sobre aquele extenso sobrado de neve, com resíduos
de pólvora «sem fumaça» nos dedos, enquanto o cadáver de Tiago ficaria estendido no
chão, embebido em gelo e sangue. Não seria bem um suicídio. Mas antes um acto de
misericórdia para com ele próprio, julgava ele, Penha.
— Para que a queres? — devolveu Simão Saraiva, num tom aparentemente enfadado.
Havia percebido, porém, um certo empolgamento na voz de Tiago ao fazer o pedido e
sentiu o corpo a deslizar por uma vaga de frio induzida pela queda moderada mas
incessante de cristais de gelo. Flocos de neve de formato hexagonal com o aspecto de
pequenas estrelas a precipitarem-se sobre aquele vale abraçado por um conjunto sólido
de montanhas rochosas. Saraiva olhou para o seu revólver de calibre 357 Magnum, uma
arma de fogo manual mais temível que muitas pistolas semiautomáticas, dependurado
na mão direita, e contraiu os músculos para o agarrar com mais firmeza.
— Para me matar! — atirou Tiago.
Simão crispou ainda mais os dedos.
— Só deves matar quem te anda a matar.
— Eu sei. Mas apetece-me — disse Tiago, voltando-se para ele com um ligeiro sorriso
de bonomia.
— Não sejas idiota — censurou Simão, pouco seguro do registo ingénuo ensaiado pelo
amigo. — Não vale a pena o esforço. Usa as tuas forças para expedientes mais
inventivos.
O revólver continuava bem seguro na mão de Saraiva, com o cano apontado para o chão
e o depósito de cartuchos carregado, pronto a disparar.
— Dá-me um exemplo — prosseguiu Tiago, que recuou um passo e virou-se de novo
para o penhasco com as mãos nos bolsos do seu casaco de poliéster acolchoado com
capuz, semelhante ao que Simão vestia.
— Não estás a ouvir os latidos dos cães lá em cima? Não ouves o sopro rouco do vento?
— Acabo de ouvir um carro a arrancar — retorquiu Tiago, agora com um ar
desinteressado, ao notar o barulho do motor a espraiar-se pela noite à medida que se
afastava rolando célere pelo asfalto no alto daquelas escarpas.
— É esse o teu problema: não prestas a devida atenção ao que te rodeia — comentou
Saraiva, sossegando-se um pouco.
— Concordo. Sempre me disseram que sou mau observador — e riu-se.
— E mau ouvinte!
Foi a vez de Simão sorrir, não obstante manter a arma cravejada na mão. A pele da cara
luzia com a humidade. De capuz na cabeça, pouco mais se via do seu rosto. O mesmo
30
sucedia com Tiago, com as lentes dos óculos embaciadas e a barba branca, por aparar,
com os pelos enrolados em farrapos de neve.
— Contudo aqui estamos — observou Penha.
— De língua entaramelada num diálogo de surdos — avaliou Saraiva, afastando-se
lentamente a arrastar as botas pelo gelo.
— Admites então que também tu és mau ouvinte…
— Sou mais para o impaciente. Mas diz-me: se te emprestasse a minha arma, irias
mesmo usá-la para te matares? Ou dizes isso apenas por dizer? Afinal, para que a
queres?
— Já to disse. Para me matar – insistiu Tiago, que deixou escapar por breves momentos
um olhar soturno.
Simão não o levou a sério e desatou às gargalhadas, aliviando ligeiramente a pressão
dos dedos sobre o revólver.
— Lérias.
— Bem podes dizê-lo: tretas, lengalenga, tricas – notou Penha, abrindo os braços para
reforçar gestualmente o uso fastidioso de tantos sinónimos.
— Ou um ponto de croché. Decoraste o dicionário?
— Referes-te ao conjunto de vocábulos de uma língua dispostos por ordem alfabética
com a respectiva significação? — observou Tiago.
— Vês? Não te dizia. Definitivamente não vais usar a arma contra ti. Ainda se tivesses
coragem de a usar contra quem te anda a matar…
Penha arrastou também as botas pelo gelo na direcção de Simão e estacou a um metro
dele, de novo com um ar sombrio.
— Que mais queres que diga para te convencer? Preciso dela. Só isso.
— Olha que o suicídio é pecado e não dá direito a entrar no Reino dos Céus — afirmou
Saraiva, entre o gracejo e o circunspecto.
— Já cá faltavam, Cristo e a redenção dos homens. Deus é uma invenção conveniente
dos judeus comunistas e o paradoxo sanguinário da ditadura cristã, pior que as
ideologias totalitárias. E digo-te mais: pelo menos o suicídio não é nenhum dos Sete
Pecados Mortais.
— Também não é nenhuma das Sete Virtudes.
— Patientia. Eis a locução latina adequada e uma das tuas Sete Virtudes: a resistência a
influências externas e moderação da própria vontade. Ipsis verbis do épico
«Psychomachia», tão célebre na Idade Média.
— Se é assim, não respeita porém um dos Dez Mandamentos — atalhou Simão Saraiva.
Tiago Penha fez um esforço para se controlar. A emergência de um gesto sociopata
começava a sufocá-lo.
— Então por que andas com uma arma? Se não matarás… És ridículo!
— Ridícula é esta conversa, caralho! — decretou Simão, também ele assaltado por
súbitos sentimentos de ódio, dando consigo a pensar nas vastas estepes russas sem saber
por que razão. Ou talvez soubesse. Mas deveria antes rememorar o incidente de Goa,
que era, de momento, o que andava a incomodá-lo mais.
— Vou-me embora — fez saber Penha.
Saraiva respirou fundo. Toda aquela conversa não passava de um grande disparate. Já
nem sabia como tinham chegado àquele ponto. Tudo por causa de um simples revólver?
Majestoso, é certo, mas não deixava de ser uma arma de fogo. Que ele nunca havia
disparado. Pelo menos aquela. Ainda assim, seria justo condená-la pelos crimes do
mundo? Teria ele sangue nas mãos pelo facto de possuir um instrumento, que tanto
podia ser de ataque como de defesa, num planeta poluído de milhões de armas, essas
sim, cobertas de pecados e outras maldades? Goa fora apenas um acidente. Goa e alguns
31
outros casos, mas de somenos importância porquanto não houvera vítimas mortais, o
que não era verdade, como se saberia mais tarde, e ele já o sabia bem, mas fingia tanto
acreditar nisso que quase perdia a consciência da mentira.
— Vais-te embora? — tentou confirmar Simão, incrédulo. — No meio deste deserto
branco a esta hora da noite? Para onde irias a pé? Queres morrer enregelado?
A expressão do rosto de Tiago mudou, resvalando do sombrio para o pensativo.
Conservava-se a um metro de distância do companheiro, mas deixou tombar o olhar no
vazio.
— Não me referia agora. Quero dizer que vou deixar tudo. Está na hora de mudar. Há
muito que deixei de ouvir as vozes dos amantes.
— Sempre foste um lírico — rosnou Saraiva com uma ponta de sarcasmo.
Penha levantou os olhos e neles algo de diabólico brilhou suavemente. No interior dos
bolsos, tinha agora os punhos cerrados. Tal como Simão havia feito a princípio com o
revólver. Mas ainda com mais força. Enterrando as unhas nas palmas das mãos. E com
os nós dos dedos a vibrar. De dor. De raiva.
— Um indivíduo sonhador com fraco sentido da realidade?! — quis saber Tiago,
reeditando a ironia de Saraiva.
— Lá estás tu! Foda-se!
O deslocamento das massas de ar adensou-se, gerando um assobio caliginoso que varria
a alta velocidade toda aquela cadeia montanhosa que circundava os dois homens. Um
sopro lúgubre em crescendo, associado ao incómodo da precipitação dos flocos de neve,
que passou de moderada a intensa. O rugido da tempestade tornou-se medonho. Com o
peso da noite e a sensação de vertigem induzida pela imensidão daquela planície gelada.
Simão pôs a arma no bolso do casaco e sacou de uma lanterna. O foco iluminava de
forma ténue os farrapos de nevoeiro branco perante uma visibilidade quase nula.
O efeito do álcool estava já a passar.
— Vá lá. Empresta-me a arma — insistiu Penha.
— Já te disse que não. Estás doido?
— Tenho de usar a força?
— Tens! Mas tal como te disse para expedientes mais inventivos.
— És um imbecil. Ainda não percebeste que perdi o uso da razão? Que sou um servo da
demência?
— Que linguarejar tão rebuscado, homem! — brincou Saraiva.
— Pretensioso ou requintado?
— Aprimorado.
— Queres dizer perfeito? Insigne?
— Notável.
— Notável é a tua arma e o uso que dela vou fazer — proferiu Tiago Penha, em tom de
sentença.
— Pelo menos, posso dizer-te uma coisa: em teoria, ninguém tem o direito de tirar a
vida a qualquer outra pessoa, seja por que razão for; na prática, há sempre razões para o
fazer — declarou Simão com um sorriso zombeteiro.
(Web Forum: A Lei existe exactamente para administrar esse abismo...)
Mas as palavras não produziram efeito, acabando por se perder no meio do bramido da
intempérie. Por qualquer razão, tanto um como o outro decidiram calar-se. E prolongar
o silêncio até à eternidade possível. Afinal, tudo havia sido potenciado pelo consumo
excessivo de carne em sangue e a cobiça de um vinho requintado. A empreitada para o
desentorpecimento das pernas cessou ali, abruptamente, sem graça, com o eixo de
rotação longe do costumeiro centro gravitacional que animava o companheirismo entre
Tiago e Simão.
32
Saraiva voltou a pensar em Goa; Penha na mulher, Maria Clara, a autora da nefasta
dança clitórica que ele viria a conhecer. E a experienciar, mais tarde. Algum tempo mais
tarde.
Se ao menos abrisses os braços, me desses a cheirar um pouco da tua bondade, há
muito abandonada a favor da permanente exigência para que cumpra a sentença, talvez
eu tivesse como medir o ódio e arrancá-lo à força, num gesto súbito, inesperado, um
golpe rápido e firme. Para conter as desculpas. E as lamúrias. E as justificações.
Talvez pudesse aniquilar de vez essa maldita extirpe de comiseração.
Vá lá, mostra-me o caminho. Um carro não é tudo. Sei que o embate poderia ter sido
fatal. Sei que nada daquilo era suposto ter acontecido.
Mas aconteceu.
E eu soube logo que não me restava outra saída senão o suicídio. Lamento que tenha de
ser assim. Lamento não ter sido o homem que esperavas, o ser indestrutível que
manejava as forças do bem e do mal manietando todas as sombras do infortúnio.
Empresta-me o teu corpo para que não tenha de me matar. Sei que o tom soa a
lânguido, um gemido arrastado de dor, mas é fruto da sentença.
Dói-me a cabeça de tanto pensar que já não me apetece procurar as palavras certas,
esculpir esta narrativa mental com o esmero de um artista dedicado. Só quero escapar
ao tiro, à navalhada, à forca, ou seja lá do que for. Não é que o suicídio em si me
interesse. Esta mecha de cabelos e pele é demasiado frágil, pelo que decerto não será
difícil de encontrar um sentido épico para a forma da sua extinção. É a sentença que
me apoquenta. Não, nem sequer é a sentença, mas o desejo sanguinário que está por
detrás dela, escondida na penumbra, por ter sido esconjurado, banido da ordem
natural das coisas.
Onde param os teus oráculos?
Pois é, quase me esquecia. E os demónios? Que é feito deles?
Gostava de poder fechar os olhos e recostar-me na cadeira, a cadeira de verga
almofadada no recanto mal iluminado da nossa casa, e apagar a luz que exalta a
consciência. Afinal, não somos todos nós medíocres?
Estou cansado. Tenho a boca seca. Tento engolir mas há aquele gosto acre a tabaco, a
escorrer pela garganta. Bebi um café e terei fumado quatro ou cinco cigarros. Tenho os
olhos fechados. Talvez adormeça. Com a brisa do final de tarde a bater-me na cara e o
silêncio dos carros que passam a embalar-me.
Há alguns ruídos estranhos afinal. O ronco de um motor sobressalta-me, arrancandome desta espécie de torpor para o qual deslizei suavemente.
Malditos carros.
É terrível como a imagem do acidente, que permanece tão viva e não me larga. Estava
a conversar contigo, lembras-te? Caía aquela chuva miudinha e intrigante que me tinha
obrigado a ligar os médios e as escovas de limpeza do pára-brisas. Não ia depressa e,
apesar do piso apresentar irregularidades suficientes para adivinhar alguns
sobressaltos, sentia-me tranquilo, descontraído.
Até que, sem mais nem menos, a viatura atravessou-se na estrada. É bizarro. Porque
não senti nenhum puxão, nenhum movimento repentino. Apenas um deslize suave. Mas
já era tarde demais. A força bruta de um carro desgovernado sobre uma camada fina
de água no asfalto é imparável. Da sensação de deslize passei à da impotência
avassaladora perante a violência do imprevisto.
É difícil rememorar as coisas. Há momentos em que sei que o cérebro estava ligado.
Há outros em que se intrometem brancas totais. Vazios. Nada para dizer. Depois, a um
dado momento, tive o pressentimento de que ia morrer. Não sabia ao certo de quê, mas
esperava um impacto tremendo a qualquer instante. A pancada poderia ser fatal, ou
33
não, pelo que, por mais misterioso que possa parecer, tive tempo suficiente para
vislumbrar mentalmente possíveis cenários de corpos despedaçados, cobertos de
sangue e da imobilidade da morte. Terá havido decerto uma forte descarga de
adrenalina. Preparei todos os meus músculos e tecidos nervosos para o impacto.
Contudo, a par dessa inusitada e demorada percepção da tragédia mais que provável,
tive também a impressão de que o corpo se havia enrolado, como se estivesse a
retornar ao claustro maternal, como se fosse possível que a minha massa muscular, os
meus tecidos e tendões, toda a estrutura óssea e demais elementos de substâncias
gordurosas, pudessem adquirir uma posição fetal. Quer dizer, como se eu pudesse
encolher de repente e voltar a mergulhar nas águas aprazíveis da bolsa de gestação.
Só pode ter sido óleo derramado na estrada.
Noutro dia, ao volante de outro carro, a caminho do trabalho, vi do lado oposto da
estrada uma longa caravana de automóveis parada na berma. Tornou-se evidente
muito rapidamente que se tratava do cortejo de convidados de um casamento em
marcha lenta para a festa, depois da celebração religiosa. E, com efeito, na
extremidade da caravana, lá estava a noiva a acenar, pendurada na janela de um carro
preto, com o véu branco acobreado pela força do vento. Só então me apercebi de que já
havia visto um rapaz metido num fato escuro, deveras atípico no quadro do guardaroupa que deveria usar por hábito, indiciando tratar-se efectivamente de um casório.
Por que só o percebi ao ver a noiva, cheia de sorrisos, abraçada por uma enorme
nuvem de felicidade, a acenar, e não antes, mal vislumbrei o rapaz?
O prenúncio de morte já havia sido ditado quando senti o impacto. Vários meses antes.
Em que escapei ileso de um acidente, embora soubesse que o suicídio era a única
opção.
Tenho vontade de cagar. Mas vou esperar mais um pouco. Já não estou recostado na
cadeira da nossa casa e acabou o silêncio dos carros que passam. Agora, ouço-os bem,
tal como vejo pela janela uma loira de cabelos compridos a caminhar na calçada. Não
é que me interessem muito os cabelos. Ao invés, são aquelas calças de ganga que me
atraem. Estranho! Não passa de tecido. Mas lá dentro adivinho qualquer coisa que me
seduz e enleva. Ela anda devagar, só a vejo de costas, mas há ali uma carga erótica a
deambular. Pelo menos para mim, é claro, porque não tarda nada e sairá do meu
campo de visão. Há também árvores. Dentro do meu campo de visão, entenda-se. Não
faço ideia de que espécies são. Mal sei distinguir um pinheiro de uma árvore de fruto.
Sou um ignorante e, mais grave, pouco observador.
Não me sai da cabeça. O impacto, o acidente, tu sentada ao meu lado, a sentença, a
minha ignorância e a afirmação peremptória de que procuro ser quem não sou, embora
não me apeteça porque o suicídio é a única opção.
Afinal, como começou esta história? E trata de quê? Onde estou eu exactamente? Sim,
neste momento? Sentado, ora recostando-me à cadeira, ora endireitando-me nela, com
sono e cansado, ou a olhar para a rua através da janela? Deixei mesmo de ouvir o
silêncio dos carros que passam para observar o erotismo a vaguear, emoldurado por
árvores cuja espécie desconheço?
O dramático é que parece ser tudo realidade. Não, pelo contrário. Aconteceu de facto.
E mais: continua a acontecer. Com efeito, esta história ainda não terminou, nem sei
bem quando é que isso irá ocorrer.
Não disse que, quando senti a força do impacto e o airbag a explodir-me na cara,
soube de imediato que o suicídio era a única opção? Há aquela troada metálica do
carro a embater contra um separador na auto-estrada. E a certeza de que a pancada
poderia ter sido fatal. Se calhar, foi. Terá sido?!
34
Maria Clara estava longe, muito longe para ser capaz de ouvir os pensamentos de
Penha. No espaço e no tempo. Pelo que restou a Tiago pôr-se a meditar sobre a
possibilidade de não pensar. Naquilo ou no que quer que fosse. É que a compaixão mais
não é do que uma máscara para a incapacidade de sentir amor-próprio. Quem luta contra
sofrimentos alheios não sente piedade; mas ódio. E ódio não é compaixão. É a energia
da aversão, o poder da mudança.
35
V.
Ela fingia estar feliz, mas ter esperma a infiltrar-se-lhe pelas narinas e a correr em fios
gelatinosos pela boca e o queixo não deveria ser uma sensação particularmente
agradável, tanto mais que havia aquele odor sexual intenso que lhe era estranho. No
entanto, sorria. Com os lábios e os olhos. Ofegante, após ter deixado sair do seu corpo,
encharcado em suor, longos compassos de gemidos de prazer. Falso prazer, como a
falsa bonomia do seu sorriso de felicidade.
— Me parece que has gozado mucho — comentou, em castelhano usando uma
expressão brasileira.
O tecto espelhado reflectia a imagem dos dois corpos nus, que se espraiavam pelo
colchão no meio de um quarto vazio, com as paredes totalmente escondidas por detrás
de longos cortinados franzidos, de um vermelho vivo e sanguinolento. Pelo chão frio
atapetado de azulejos pretos com estrelinhas brilhantes, avivadas pelo foco ténue de um
projector de luz com um filtro azul-claro, espalhavam-se várias peças de roupa e dois
pares de sapatos tirados à pressa, na antecâmara da cópula, reinventada como urgente à
força de dólares. Ou pesos argentinos, que Tiago Penha já não se lembrava bem qual
havia sido a moeda discutida para a transacção.
— También gozei — informou ela, em murmúrio.
A mulher parecia falar uma mistura de espanhol com português do Brasil.
— No me crees? — quis saber, à medida que remexia na roupa à procura de algo com
que se limpar.
O espelho no tecto reflectia agora as nádegas e as costas esguias da mulher, estendida de
bruços à beira da cama.
— No sé qué me pasó — continuou, à medida que limpava a cara com um lenço de
papel e apertava as narinas, uma de cada vez, para soltar o esperma entranhado nas
cavidades nasais. — Hay algo en ti… Cuando te besé en la boca allá abajo. Quería darte
un beso. Así, de repente.
Penha, que se encontrava deitado de barriga para cima, exausto, aquiesceu com a cabeça
e falou pela primeira vez desde que havia ejaculado na boca dela. Definitivamente era
castelhano.
— Pareceu-me estranho também. Não é comum, mas sei lá. Não faço a ideia de como
funciona aqui na Argentina. No Brasil também é bem diferente da Europa, pelo que me
parece.
— Diferente? Diferente como? — indagou a mulher, deitando-se ao lado dele, também
de barriga para cima.
No lugar das nádegas e costas da mulher, desta vez via-se no tecto o reflexo dos
mamilos dela e das púbis de ambos, pontos escuros que sobressaíam da brancura
viscosa dos seus corpos. Tudo filtrado pela luz pálida do foco azul-claro, com a estranha
mistura de feixes luminosos muito subtis produzidos pelo vermelho vivo dos cortinados.
Havia ainda dois tufos de cabelo castanho e loiro, dele e dela, que emolduravam mais
36
quatro pontos luminosos, os olhos deles, a juntaram-se ao brilho das estrelas no chão de
azulejos.
A mulher fez uma bola com o lenço de papel, cheio de esperma, e arremessou-a para
longe, para o chão.
— Tengo que ir al banheiro — prosseguiu ela. — Pero dime: diferente como?
Curioso: outra expressão brasileira.
— Já estiveste na Europa? – respondeu ele com uma pergunta.
— No, sólo no Brasil. Además, ter llegado a Buenos Aires ha sido una aventura.
— Uma aventura?
— Sí — confirmou a mulher. – Soy de Ushuaia, La Ciudad del Fin del Mundo. Has
oído? — e hesitou. — Falar?
– Não — mentiu Penha, tentando disfarçar o súbito e aterrador sentimento de
atarantação pelas bizarras e mais que improváveis coincidências da existência humana.
Lembrou-se de imediato de uma viagem de comboio que fizera pela Europa, de mochila
às costas, já lá iam quase três décadas, no tempo em que havia começado a aventurar-se
pela descoberta do Mundo. Estava a fotografar os impressionantes complexos
arquitectónicos do norte de Berlim, que havia já percebido na Potsdamer Platz, durante
um passeio turístico de barco pelo rio Spree – uma boa forma de ter uma ideia mais ou
menos geral daquela cidade gigantesca que, ao contrário da maioria das grandes capitais
europeias, se espalha na horizontal – quando decidiu usar um casal com um ar muito
enamorado como primeiro plano para dar profundidade de campo às imagens. Imaginese o espanto de Tiago, cinco dias mais tarde e já com uma paragem em Praga pelo meio,
ao dar de caras com a mesma dupla à saída de um restaurante no centro de Viena. Qual
seria a probabilidade estatística daquele acontecimento tão improvável? No mesmo
local, à mesma hora, quase uma semana depois, a cerca de setecentos quilómetros de
distância entre um ponto e outro.
— La Tierra del Fuego. Deberias saber. Parece que es alguien que pasa su vida
viajando. Es un viajero?
Tiago riu-se, mas não respondeu. Por onde andaria Simão Saraiva? E como estaria
Alexanderplatz, não a da minissérie dramática da televisão alemã dos anos mil
novecentos e oitenta ou a do enfadonho romance publicado em mil novecentos e vinte e
nove por Alfred Döblin, mas a imponente praça no coração da antiga Berlim Leste,
perto da qual havia ficado hospedado?
— Como foste parar ao Brasil? – inquiriu, ao invés. — E ainda por cima para o Recife?
Ela fitou-o por momentos com um olhar sonhador e levantou-se.
— Mi amor, tengo que ir. Hemos gastado nuestro tiempo — e encaminhou-se para a
casa de banho. — Si lo quieres, podemos seguir hablando, pero que tiene de ser allá
abajo.
Penha olhou para os dois preservativos usados, abandonados no chão, e o lenço de papel
enrolado embebido em esperma, que ela havia arremessado, e começou a vestir-se.
Sem saber porquê, lembrou-se da sua chegada ao aeroporto de Ezeiza, naquela manhã, a
trinta e cinco quilómetros da cidade, vindo da Patagónia, em escala demorada a
caminho de São Paulo. Para trás, ficara Simão Saraiva e o revólver. Na Tierra del
Fuego. Tiago conhecia bem o caso de Goa. Também lá havia estado, hospedado a sul,
em Galgibaga Beach, num hotel de cinco estrelas de uma cadeia britânica, com acesso a
uma praia privativa e saída de piroga para atravessar o estuário do rio Talpona. Na
verdade, Penha tinha observado de perto, ainda que a contragosto, os contornos do
incidente. É que apesar de se ter tratado de um homicídio, e o termo expressa tudo – é
crime – houve atenuantes que provavelmente levariam outra pessoa, no limite com um
temperamento próximo do de Simão, a fazer o mesmo. Se tivesse uma arma de fogo à
37
mão. E a frieza violenta que o companheiro mostrou ter. Contudo, a mera evocação do
crime, mesmo que em silêncio, mesmo que apenas de forma mental, por mera
associação de ideias, produzira em Saraiva qualquer coisa de novo. Dir-se-ia que, de
todos os silêncios que incomodam, os indecifráveis são decerto os mais indigentes de
espírito. E aquele era um bom exemplo. Com efeito, nada voltou a ser como dantes
desde aquela noite, no pequeno lago congelado abraçado por um conjunto sólido de
montanhas rochosas. De objectivo pouco havia; de substancial apenas uma troca de
palavras implicitamente azeda por efeito do abuso de álcool e talvez do aumento do
volume de tensão induzido por aquele clima sub-polar bastante agreste. Tiago Penha
havia tido uma sensação que possivelmente se poderia assemelhar àquela, pelas
dificuldades de aclimatação, aquando de uma breve estada na estância de Les Deux
Alpes e, sobretudo, da visita a um vale perdido algures no maciço glaciar, perto do
Monte Branco, já a mais de três mil metros de altitude, após uma longa subida de
teleférico. A forte dor de cabeça acompanhada por um crescendo de ansiedade e uma
percepção geral de mal-estar levaram-no a regressar rapidamente a Lyon, onde apanhou
um voo para Nice e para os excêntricos prazeres da Côte d'Azur, que começam logo no
aeroporto, a sete quilómetros da cidade, para quem aprova e adere; o sexo animal a
troco de euros em plena luz do dia como cartão de visita. De Les Deux Alpes,
conservava apenas a memória aprazível da empregada do bar do hotel a confirmar: “Un
Jack Daniel?”, dito à portuguesa com sotaque francês. À falta de uísque a sério, restavalhe o bourbon do Tennessee, que sempre era à confiança.
Em Buenos Aires, havia ficado hospedado no bairro de Palermo, uma das áreas mais
seguras e policiadas da cidade, mas naquele momento não fazia a mínima ideia de onde
estava, sobretudo depois de ter andado às voltas de táxi pelas ruas da capital durante
cerca de uma hora, incluindo a Nueve de Julio, uma das avenidas mais largas do mundo
com os seus cerca de cento e quarenta metros de lado a lado e dezoito faixas de
rodagem para o trânsito que, nalguns pontos, chegam às vinte e duas.
Até nisto os brasileiros e argentinos se opõem com os primeiros, especialmente os
candangos, como é bom de ver, a reclamar a existência de uma avenida ainda mais larga
em terras de Vera Cruz: o Eixo Monumental de Brasília, no Distrito Federal, que se
estende entre a Praça Municipal e a Praça dos Três Poderes. Nesta, a largura atinge os
duzentos e cinquenta metros. Contudo, defendem alguns, o problema é que o Eixo
Monumental tem apenas doze faixas de rodagem, sendo apenas mais largo por causa do
enorme canteiro ajardinado entre elas. Assim sendo, só deve ser considerada a avenida
útil em si, ou seja, onde os carros circulam.
(Web Forum: A avenida mais larga do mundo, na minha opinião, é a avenida nove de
Julio em Buenos Aires. O Eixo Monumental é a mais larga contando o canteiro. A nove
de Julio é a mais larga contando apenas pista. Ora, acho que é mais justo que a nove
de Julio leve o título porque você pode fazer duas ruas de uma faixa, colocar um
canteiro gigantesco no meio e dizer que é a avenida mais larga do mundo. Resposta:
Meu amigo, você nunca visitou a cidade de Itu? Você tem que ver o tamanho do farol
do semáforo e a cabine telefónica pública... coisas para gigantes.... E a discussão
continua: É! O Brasil adora recordes. O maior estádio do Mundo; a maior usina
hidrelétrica do Mundo, a maior rodovia do Mundo, a Transamazônica. Somos grandes
em tudo, principalmente na miséria. E sobe de tom, virando-se para o nacionalismo:
Recordes?! Minha gente, o Brasil é o País que mais acolhe, gentilmente, os
estrangeiros, sem barreiras e sem preconceitos. Dividindo seus empregos com eles)
Matéria acalorada e absorvente, mas com quase duas garrafas de Cabernet Sauvignon
bebidas – sempre a mesma sinfonia vinícola de que não abria mão; até na capital
paulista, terra de chopes, tanto em dias quentes como em frios, havia descoberto belos
38
exemplos daquela opção vinífera de que ingeria uma garrafa todas as noites, sozinho,
enquanto jantava no seu flat arrendado no último andar de um hotel pomposo em Bela
Vista – Tiago Penha queria lá saber da Nueve de Julio, do Obelisco ou da Plaza de la
República, ou da eterna contenda entre argentinos e brasileiros.
E assim foi. À saída do restaurante em Palermo, um estabelecimento de luxo e
requintado onde se comia que nem um alarve por meia dúzia de pesos, pronto para se
aventurar na noite, havia dado apenas uma indicação ao motorista: Chicas!
Voltou a ver a puta no dia seguinte.
Esfumou-se na memória o nome dela, bem com os traços do seu rosto. Recordava-se
apenas de que tinha olhos verdes, como os dele, cabelos loiros e que lhe parecia bonita.
Realmente bonita, sensual, alguém que Tiago podia amar. Na madrugada anterior,
haviam trocado números de telemóvel, manifestada a vontade mútua de novo encontro,
que aquele tinha de acabar, já a aurora despontava e eram horas da boate encerrar
portas,
(Logo à noite há mais uma volta, mais uma viagem! O poço da morte!)
para arrumações e certas limpezas, bem entendido, que boate não passava de um
embuste linguístico de néones e ecos de tango para esconder a verdadeira natureza
daquele espaço de diversão nocturna, uma casa de putedo com pista de dança no piso
térreo e quartos de cópula no primeiro andar, acanhados e supostamente secretos, quer
dizer, objectos de um pudico secretismo, pelo menos para quem não ousava em entrar,
uma boate que até tinha uma certa aparência respeitável, se é que respeitosamente assim
se pode designar uma actividade empresarial de prestação de serviços sexuais, efectivos,
tanto consumáveis como consumíveis, tal como as que havia encontrado em Madrid, os
propalados e inúmeros bares de copas y pubs que agitam a capital espanhola, e não uma
casa de alterne decadente, como essas que se desmultiplicam como formigas nos locais
mais recônditos de terras lusitanas, casas de putas como dizem, mas onde não se fode
nem se se pode pôr em cima, as brasileiras e as eslavas são nisso umas privilegiadas,
basta uns esfreganços, eventualmente uma punheta, e lá se vai o rendimento mínimo
numa só noite, numa garrafa de champanhe, que compra trinta minutos de conversa da
treta, o negócio assim o dita, que a vida de puta é à comissão e o dinheiro ganho não
estimula aventuras vaginais, orais ou anais, só para referir as mais comuns.
Não deixava de ser intrigante: tal como sucedera em Buenos Aires, também em Madrid
Tiago Penha trocara contactos com uma equatoriana, que fazia lembrar a actriz norteamericana Claire Danes em versão morena. Não era bem o seu género; preferia as
nórdicas, como aliás pôde confirmar de modo conclusivo em Copenhaga ao deambular
eufórico e extasiado por aquele paraíso ariano, uma paisagem abrasadora pintada de
azul, branco e dourado – curiosamente uma cor terciária que se obtém com vinte por
cento de magenta, sessenta de amarelo e outros vinte de preto – morada de tentações
supremas que foi adivinhando por um processo de crescente embranquecimento no
sentido da pureza angélica à medida que avançava de carro entre Hamburgo e a capital
dinamarquesa, com uma transposição marítima pelo meio, num ferryboat. É certo que
paraíso ariano é uma expressão que se presta a equívocos e, em Copenhaga, nem sequer
corresponde à verdadeira dimensão do Jardim do Éden terreno, que se situa
supostamente mais a Norte, algures na Finlândia ou na Suécia. De resto, a questão é
controversa, especialmente para os ufologistas. De acordo com uma pesquisa em sede
de academia sobre a tipologia de entidades biológicas extraterrestres, os arianos não
lideram o ranking de popularidade entre a vida terráquea, apesar de figurarem na lista
dos visitantes alienígenas considerados inofensivos para a integridade geológica do
nosso planeta. Até porque a forma de comunicação destes obstinados aventureiros do
cosmos assenta na telepatia, como asseveram os investigadores universitários, tal como
39
acontece com os orion greys. Apenas não se pode dizer o mesmo dos greys e dos zeta
reticuli greys, que recorrem fortemente à abdução.
(Web Forum: Muitos arianos também foram vítimas. Devemos tanto a Heidegger. E
tenho amigos alemães, colegas da turma de Kabbalah em Israel, que só de pensar dáme vontade de abraçar de novo. Réplica: Acho que essa bandeira, de subscrever a
verdade sobre Heidegger, já foi brilhantemente adoptada por Hannah Arendt, que
nunca negou a sua paixão por ele. Aprendi um pouquinho, não muito, ao ler a obra
quase completa dos dois, que admiro muito – assim como Husserl e Kant – a cujos
pensamentos eles deram uma digna sequência. Contra-réplica: É sumariamente infantil
pensar em superioridade racial em termos de cor de pele. Com analogias esotéricas
pueris ou fora delas. Meditação: Mas de que raio andam para aí a falar? Será possível
que uma simples palavra como «ariano» se preste a tantas interpretações diferentes?
Remate, ou quase: Gosto do Mundo com cor; odeio, porém, que a cor defina o Mundo.
Ora aí está. E uma nova catadupa de comentários…)
Sempre temas e debates acalorados e absorventes. Que obrigam a recuperar
problemáticas epistemológicas como a extensão geográfica subalternizada dos vários
saberes, esse tão popular quanto desconhecido modelo de hierarquização de padrão
ocidental, a ego-política subjacente numa lógica de conflito norte-sul, o
multiculturalismo identitário, a colonização disciplinar, as epistemologias descoloniais,
as revisões críticas da perspectiva histórica, da perspectiva ontológica, da perspectiva
epistémica, para renegociar as definições do ser e dos seus sentidos, a
transmodernidade, o etnocentrismo, tendencia emocional que hace de la cultura propia
el criterio exclusivo para interpretar los comportamientos de otros grupos, razas o
sociedades, faltava a jovem equatoriana para o dizer, mas é de supor que ela não
consultasse com frequência o Dicionário da Real Academia Española.
O certo é que apesar de não fazer o género de Penha, a beldade de Quito, latitude zero
(o que não é rigorosamente verdade, nunca é demais relembrar) era dotada, porém, de
uma beleza singular. No rosto, na expressão ferozmente encantadora que nele se
desenhava. E nisso Tiago reparou num ápice, ao mesmo tempo que sentiu igualmente
uma inesperada empatia por parte dela, reeditando em tudo o jogo improvável da troca
de afectos violentos com a loira de olhos verdes da Tierra del Fuego. Talvez tivesse
algo a ver com o filme «Romeu + Julieta» ao qual Claire Danes emprestou uma brisa
intensa de sedução angelical. Numa e noutra, o mesmo olhar, tão cândido quanto
provocador, mais ainda precisamente por essa qualidade de imaculabilidade, a que
acrescia o fetiche da possibilidade imaginária de trocar beijos, afagos e outras
intimidades com uma estrela de Hollywood.
A necessidade de entabular diálogo em castelhano ou em espanhol (que nisto são
poucos os que se entendem, pois a língua pode ser oficial mas os nomes que se lhe dá
nem por isso) não abonava muito a favor da vontade em deitar por terra os fundamentos
cartesianos da paixão, que pretendem questionar o inquestionável. Também não deixava
de ser verdade, após uma apreciação mais atenta, quando ela se levantou, desta vez a
caminho dos servicios – e não do banheiro – que a equatoriana estava longe de possuir
as curvas sumptuosas do genótipo latino, como a colombiana Sofia Vergara ou a cubana
Eva Mendes. Só para citar duas. Mas esse era um assunto a que Tiago havia deixado de
dar muita importância, depois dos desaires com uma mexicana balofa que lhe apareceu
à porta do quarto de um hotel em Paris e de uma italiana escanzelada e amulatada em
circunstâncias semelhantes em Hamburgo.
Por estas e por outras, no meio de tantas actividades localizadas na outra margem da sua
existência, imaginada como uma vida dupla pela presumível sede de interpretar os
papéis mais diversos, como um actor – vida que de dupla, bem vistas as coisas, nada
40
tinha, a não ser a dualidade em conflito inerente à sua própria essência multifacetada e
turbulenta, uma luta titânica entre duas forças, no limite entre as do bem e as do mal, já
aqui se disse – Penha acabou também por nunca chegar a decorar o nome da
equatoriana (Buenos Aires queixava-se do mesmo!), não obstante as quatro tardes e as
quatro noites em que privaram activamente em todos os sentidos. Como chegou a dizer
uma vez por graça a um amigo que brincava com letras, em rigor pleonástico, um
director editorial de uma editora, o saudoso Roberto Cavalcanti, ou RC, como era
conhecido, que viria a morrer prematuramente de forma fulminante, vítima de leucemia,
um homem brilhante e cáustico ligado à famosa família brasileira de origem florentina,
espalhada sobretudo pelo nordeste do País e também por Portugal, Tiago dava consigo
próprio a pensar se figuras de estilo não seriam, afinal, as silhuetas dos corpos humanos
que tão ardentemente se deseja ou abomina. Pedaços de carne, com ou sem charme,
para transaccionar nos becos sombrios da irracionalidade por onde vagueiam os
agarrados ao ópio sexual.
Quanto dás por esta metáfora? Troco por uma boa onomatopeia. Não quero nada
disso! Orienta-me aí mas é umas anástrofes ou uns hipérbatos. Fico louco de tesão.
Tesão?! É só um substantivo. Ou queres a coisa em sentido figurado?
Curioso: Tiago Penha não chegou a ir a Puerto Madero.
41
VI.
Escusado será dizer que Maria Clara nunca soube nada disto. Nem precisava. Até
porque não faria diferença alguma, mesmo que imaginasse. Mesmo que suspeitasse de
que poderia haver uma mexicana balofa, uma italiana escanzelada e amulatada, uma
russa hirsuta com cara de bolacha mas exímia nas artes da felação, que grande
chupadela numa cama larga de umas águas-furtadas transformadas em quarto de hotel
numa rua estreita e sinuosa perto da Gorokhovaya, por onde erraram Dostoyevsky e o
seu amigo Rodion Raskolnikov, em São Petersburgo, bem entendido – benditos rublos
russos sem cobrança de extras, quer dizer, sem crime nem castigo ou sem qualquer
ponta de sentimento, que o pior inimigo da mulher não são as outras mulheres mas a
mão do homem, resta saber se a esquerda ou a direita, faltava afirmar uma falsa
puritana, não a do pudoratus mas a da mais rigorosa e presbiteriana genuinidade, ao sair
em defesa da prostituição, e até mesmo do lenocínio, numa diatribe obstinada e confusa
contra o preconceito, a discriminação, a segregação e outras coisas que tais, seja lá com
que base for, na raça, no credo, nas economias paralelas ou nos vários rodízios que
abrem pernas e dão a ver as excrescências erécteis das vulvas, pois sexo é sexo e há
mais putas que putedo, aquelas que fingem não querer ser pagas em numerário mas que
fodem os homens e as mulheres e a vida a toda gente, grandes cabras filhas de uma
grandessíssima puta (o que vai dar tudo no mesmo) – ou uma Claire Danes do Quito.
Ou uma ninfa de olhos verdes da La Ciudad del Fin del Mundo. Todas umas putas ou
filhas de uma grandessíssima meretriz – e lá se está no mesmo – que está para nascer
uma mulher séria e imaculada. Não é que alguém lhes possa atirar a primeira pedra,
como Cristo Nosso Senhor deixou ficar bem claro com aquela rameira de nome
Madalena. Mas depois do pecado original, o de Eva,
(confira Eva sendo comida na cozinha sem dó! Me visitem no Face, obrigada, espero
vocês. Beijo)
que quis comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, sabedoria não parece ser
coisa que Deus goste de ver nos seres que criou à sua imagem, nada voltou a ser como
dantes, embora os Livros Sagrados digam que não, tal como dão o dito por não dito,
com Sodomas e Gomorras pelo meio, Babilónias e cavaleiros vingativos, em número de
sete, que seis seis seis é coisa do Diabo, com selos numa mão e uma espada na outra,
pelo menos estes não são inimigos da mulher de tão ocupadas que andam as mãos.
As mãos e os dedos. Dedos que não brocham, tal e qual como o estranho título de um
livro – curiosamente da autoria de uma baiucha, nome dado aos gaúchos que migram
para a Bahia – a cujo lançamento Tiago assistira em Minas Gerais. As voltas que o
mundo o dá. Até com dedos que não brocham, pois mineiro come quieto, lá diz o
ditado. Queripodos inundados de tendões. Para tocar e sentir. Os mesmos que Maria
Clara nunca mais quis sentir perto dela, os de Penha, bem entendido, tal como de todos
os outros afinal, que qualquer contacto deixa uma marca, incapaz de combater a
ferocidade querelosa em que mergulhou desde que decidiu matar a vida dentro do seu
útero. Para não ter de carregar a cruz do Calvário, não o de Cristo senão teria de aceitá42
lo para que pudesse tornar-se sua discípula – coisa que, porém, acabaria por fazer mais
tarde, apesar de em sede de desaprumo mental, à porta de um frenocómio
(lendário Meneghetti)
donde não voltou a sair – mas daquele que Tiago conseguiu reinventar ao prostrar-se
diante das promessas de vida eterna no paraíso
(não o vindouro com a ressurreição dos mortos e a entrada triunfal dos cento e quarenta
e quatro mil eleitos na Nova Jerusalém, após o Juízo Final – que nessa matéria há muita
discórdia – mas o terreno, sem demoras, sem compromissos de fé ou fidelidade, um
novo Jardim do Éden ou a possibilidade de uma ilha na terra do pecado, o paraíso
vestido de verde, a cor da vida e das forças da natureza em plena harmonia e equilíbrio,
sem igrejas nem castiçais, sem selos nem cavaleiros do Apocalipse)
exaladas pelos baixios vaginais de uma colega, é recomendável que se sublinhe, com
Maria em estado de graça a caminho da desgraça.
Bem vistas as coisas, Nosso Senhor até é capaz de ter razão: é que nada de lícito ou
aprazível é de se esperar do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. A
ignorância é uma virtude. E para quem a larga não há retrocesso possível.
Que o diga Maria Clara, obrigada a abandonar o imaginário dos príncipes e princesas,
que é disso que o amor se faz, o primeiro, coagida à insensibilidade e à frigidez total
como se de uma condenação se se tratasse. É claro que tudo poderia ser diferente, se ela
tivesse optado por mandar Penha à merda e seguido um outro caminho, uma fuga para a
frente, para se afastar da encruzilhada da vitimização. Mas não foi capaz. Nem para tal
estava preparada, tanto mais que naqueles tempos mandavam os bons costumes o
silêncio da mulher diante um marido putanheiro (um homem de respeito que por acaso
frequenta prostíbulos e consome prostitutas, na verdade, um homem moderno sempre
disponível para una agradable velada de vanguardia putanheirista), haveria de lhe
passar, o tempo tudo sossega, para que a vergonha não fosse maior, havia acabado de
casar, com pompa e altar, tudo seguido à risca de acordo com a tradição, levada pela
mão do pai ao retábulo do digníssimo mandatário da entidade suprema, espartilho e
vestido de noiva a condizer, valha-me Deus, que desgraça, já não bastava estar prenhe e
agora queria desunir o que a Igreja havia unido, até que a morte vos separe – o que
ainda não era o caso – que andar a foder fora do leito conjugal com a mulher grávida,
poucos dias após a sacralização do matrimónio, pode ser pecado, mas não mortal, está
tudo bem representado e devidamente documentado por Bosch (o caricaturista holandês
e não o industrial alemão, é bom que não se confunda, senão com mais ou menos
palavras a «Nau dos Loucos» ainda se transforma num qualquer Boesch 970 St. Tropez,
com um motor de duzentos e oitenta cavalos e capacidade para sete pessoas), apesar da
jurisprudência canónica – que sempre condenou, por exemplo, o sexo com vegetais – ter
acabado por considerar que o adultério não deveria ser apenas uma transgressão venial,
passível de um bilhete de ida para o Purgatório, mas definitivamente mortal, já que
incorpora o frémito pecaminoso da luxúria, desde que verificados, é claro, os devidos
requisitos que consubstanciem o princípio do nexo de causalidade.
Resultado: ao invés da revogação do contrato marital, Maria Clara calou-se, fingiu a
audácia altruísta do perdão, em nome de uma nova oportunidade, que a coisa não podia
repetir-se, como é evidente, mas lá no fundo – quer dizer, não tão fundo quanto isso,
porque sentia a humilhação à flor da pele e a devassa do misterioso encanto feminino,
alimentado durante anos e anos pela dinâmica romanesca das histórias de príncipes e
fadas, da graciosa harmonia desses distantes reinos e principados – ditou a sentença:
doravante sentir-se-ia sempre a respiração ofegante do cobrador. Uma espécie de sopro
na nuca, uma leve aragem cuja intensidade foi aumentando; a brisa amena inicial deu
43
lugar à ventania e a ventania deu lugar à tempestade ciclónica, a um bafo insuportável
de enxofre vulcânico.
Foi pois por estas veredas que Maria Clara passou a caminhar, um atalho para o acesso
rápido à diabolização do objecto do pecado com vista ao exorcismo do mesmo, com a
falsa roupagem do perdão, belo engodo que seduziu Tiago Penha, na expectativa de que
ainda era possível recuperar o irrecuperável. Mas o irrecuperável é assim mesmo;
perdido para sempre, pelo que nada voltou a ser como dantes.
(Em dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará)
Ainda assim, Tiago nunca conseguiu perceber ao certo a razão e aonde Maria Clara foi
arranjar coragem para uma decisão tão radical. As discussões violentas ou os silêncios
prolongados até à eternidade possível seriam de esperar. Mas matar o bebé e a própria
capacidade de gerar vida dentro dela, quase imediatamente após a inesperada resignação
– em boa verdade só na aparência – de Maria Clara à infidelidade de Penha, permaneceu
para sempre um mistério, que se estendeu para além da morte, para além do aluimento
clitórico que ditou a extinção capital de Tiago e finalmente o apartou da mulher.
(Deus perguntou-lhe: Comeste da árvore de que te ordenei que não comesses? Ao que
respondeu o homem: A mulher que me deste por companheira deu-me a árvore, e eu
comi)
É enorme a controvérsia sobre as consequências da histerectomia. Acredita-se, porém,
de forma mais ou menos generalizada, que o útero está associado ao conceito de
feminilidade. Daí que pode ser importante considerar a percepção que cada mulher tem
da sua sexualidade e da possibilidade de procriação. É que parece ser grande o risco de
desajustes emocionais e sexuais após a remoção do útero. A qualidade do vínculo
conjugal aparenta ser também de extrema importância para o bem-estar psíquico e
sexual após a cirurgia.
(Web Forum: Quando o útero é extraído, os períodos menstruais param e é impossível
engravidar. Mas não é verdade que as histerectomias fazem uma mulher engordar ou
mudam a sua personalidade. Réplica no feminino: Não fazem? Fazem sim. Há uma
alteração do estilo de vida que nos vai tornando cada vez mais sedentárias com a perda
natural da massa muscular. A que se segue uma outra observação: E ainda não falaram
da morte do orgasmo intravaginal e clitoriano. Ou da diminuição da lubrificação
vaginal. Com que vontade vai a mulher fazer sexo?)
A discussão é longa mas decerto inconclusiva, já que os estudos não parecem ter
encontrado ainda o seu verdadeiro objecto, apresentando resultados meramente
exploratórios e, nalguns casos, até mesmo contraditórios. O certo, porém, é que para os
dois, Maria e Tiago, naquele momento pouco importava todo esse vasto mundo a
jusante. Na prática, a percepção dos factos, apesar de alicerçada em razões diferentes,
resumia-se a pouco: nem a montante nem a jusante, mas tão simplesmente o presente; o
confronto com uma nefasta experiência de morte, entendida quase em todos os sentidos,
em todas as dimensões do que lhe é inerente. Uma dupla morte, a bem dizer, com a
remoção do útero mas também com a remoção do feto. Porque não podia nascer. Com
vida. E o resultado foi inevitável, não obstante ter acabado por se mascarar sob o ónus
das obrigações profissionais, pelo menos na imagem projectada fora da privacidade da
vida conjugal (se é que se podia designá-la assim, porquanto soa a um estranho
eufemismo para uma convivência claramente mais formal do que material, assente
numa distância que doravante se aprofundou, no tempo e no espaço). Tanto mais que,
entre a infidelidade de um e a decisão unilateral do outro para a remoção do útero e a
sentença de morte para o feto, a trajectória da culpa assumiu contornos de contradição.
Se podia haver um nexo de causalidade, existia igualmente um profundo dissentimento
quanto ao peso das transgressões, avaliadas no contexto das respectivas consequências.
44
Com efeito, como prerrogativa ou imposição (depende do ponto de vista), Penha viu-se
a partir daí a calcorrear meio mundo: porque aceitou, nunca alegando constrangimentos
de natureza familiar; porque lhe convinha. A sorte estava ditada mas não havia solução
à vista, não se sabe se por falta de coragem ou por mero expediente de protelar o
inadiável na indecisão do amor, afinal a mesma que tinha levado Maria a não mandar de
imediato Tiago à merda, para que a vergonha não fosse maior, que o tempo tudo
sossega.
Tempo gasto entre locais inóspitos e sumptuosos, cosmopolitas e desterrados, em terras
que Penha não desejava conhecer e outras que sempre havia sonhado sopesar, mas
também lhe escaparam destinos que talvez o enlevassem. Nessa roda-viva entre o ir e
vir, entre o ficar e o querer voltar, ou simplesmente partir, Tiago Penha foi descobrindo
que o planeta tem cores a mais. Tantas quanto os códigos que teve de aprender a
manobrar. Se tudo se reduzisse ao preto e branco, bastar-lhe-ia decorar, ele que estava
habituado a lidar com expressões matemáticas complexas, combinações tão básicas
como 255 255 255/#FFFFFF, ou 0 0 0/#000000. Mas havia o vermelho, a cor da paixão
e do desejo (255 0 0/#FF0000), ou o azul, a cor do mar e da fidelidade (0 0
255/#0000FF), ou a humilhação da morte cor-de-rosa com que os nazis tentaram
eliminar a praga judaica (255 192 203/#FFC0CB), entre tantas outras e mais um semnúmero de gradações.
Na verdade, a cor foi sempre um problema. E para Tiago, com a mulher distante, um
problema crescente, à medida que foi descobrindo os fragmentos dispersos desse
misterioso espectro luminoso que varre o universo nos destinos a que vida o conduziu,
revelações inesperadas sob a forma de meteoros convulsivos; escalas de valores sitiadas
entre visões parcelares, orgulhos étnicos, vaidades tradicionais, discursos
fundamentalistas, despesismos desenvolvimentistas e um sem-fim de outros jargões
ideológicos em permanente e violenta agitação em shakers de luxúria empírica – não os
da Sociedade Unida dos Crentes na Segunda Aparição de Cristo, mas os populares
recipientes para cocktails, é bom que se distinga. Entre tantos códigos estranhos, no
limite adversos (pela profunda dissonância em relação aos quais estava habituado),
Penha acabou por começar a sentir-se cansado; farto de observar inúmeras pequenas
tragédias ditadas precisamente pela cor. A cor das ideias, a cor do território, a cor da
pele e dos olhos, a cor da existência humana, como se houvesse a possibilidade de
habitar um mundo monocromático apartado da diferença. Mesmo que desejável ou
condenável. Na verdade, tornou-se tão cansativo como sentir a obrigação de pensar
sobre o assunto, a obrigação de tomar partido, de situar o seu posicionamento num lado
ou noutro, ou entre os dois, ou fora deles, quando a razão da cor é a sua ausência, a sua
própria negação. Afinal, para quê discutir uma ilusão óptica? É que procurar sentidos no
ângulo de reflexão e refracção da luz mais não é do andar em círculos até à infinitude.
Em Kinshasa, quase na recta final do reinado de Mobutu Sese Seko, em vésperas do
conflito armado entre hutus e tutsis – de malas feitas para abandonar à pressa a Avenue
Batetela e o célebre Grand Hotel, cinco estrelas mas decrépito, por ironia a poucos
metros da Embaixada da Índia, para apanhar a porra do primeiro avião que saísse de
N'Djili, a cerca de trinta quilómetros a sudeste do centro, que bem podiam ser cem ou
duzentos, no meio daquele inferno – a cidade das crianças-feitiçeiras onde nunca
conseguiu superar a indecisão de determinar se estava ainda ou não nas terras descritas
por Henry Morton Stanley, Roger Casement, Joseph Conrad, V. S. Naipul, entre outros,
havia passado horas a olhar para uma fotografia com um casal a posar:
(Que pensez vous de cette couple? On ne voit que ses dents et ses yeux…)
ele preto, ela branca, ambos sorridentes. Preto, porque negro pode ser ofensivo, se nele
se evidencia uma certa dose de paternalismo imperialista e eurocêntrico. É claro que a
45
mesma regra é aplicável ao uso do preto, não da cor mas da expressão, se nele se
evidencia uma certa dose de saudosismo imperialista e eurocentrista. Já para não falar
da inversão dos termos da dicotomia, situando o paradigma do etnocentrismo nos
mesmos pressupostos mas de natureza afrocentrista, em tudo igual ao eurocêntrico,
como muitas diásporas têm preconizado. Embora questionável, pela retórica fácil que da
imagem facilmente podia emanar, Tiago não conseguia deixar de olhar para ela e
imaginar como seria o ser humano se fosse possível passar uma borracha por cima de
todos os discursos e deixar respirar, pura e simplesmente, aqueles dois sorrisos. Em
liberdade. Sem juízos de valor. Respeitando o silêncio. Que gritava naquela fotografia,
afinal tão vulgar. E, por conseguinte, sem qualquer razão de se distinguir de qualquer
uma outra que retratasse um casal de brancos ou de pretos. No Congo ou onde quer que
fosse.
(Web Forum: O amor não tem cor nem nacionalidade. A que se segue a concordância:
O que importa é que o amor é lindo, seja de que cor for. Resposta dissonante: Para os
homens maus importa a cor da pele sim, infelizmente! Nova discordância: Não, quando
se ama com o coração não se vê o rótulo; só o conteúdo. A que se segue um novo
comentário: O mundo seria outro se não fossem os rótulos culturais de que a sociedade
não consegue se livrar. Estes dois são humanos e nada mais importa. Assim é que
deveria ser. E ainda outro: Preto ou negro tanto faz. Hoje em dia aceitamos para dar
volta ao preconceito. Antigamente negro era usado para escravos mas hoje em dia
aceitamos sim, assim como aceitamos carapinha. No entender de muita gente
ignorante, tudo o que é preto dá azar, muita desgraça. O engraçado é que nós também
chamamos os europeus pessoas de cor. São coisas da vida. Somos pretos, negros,
carapinha ou escurinhos com muito orgulho. Finalmente, com um remate: A questão
apresentada da cor só é um problema para os complexados. Preto e negro são
sinónimos e nada mais. Para evitar constrangimento a cidadãos complexados dessa cor
ou raça chame-se-lhes africanos, euro-africanos, etc. Quando for necessário. Já é
tempo de cada um assumir com realidade o que realmente é. Com a intenção de
agradar a negros e mestiços até já falam em marrom. Mas só existe a raça humana.
Chega de distinções de branco, preto, amarelo e vermelho)
Pois é, o velho problema da cor. Afinal, quem teve a ideia de dar nome à cor?,
perguntaram-lhe uma vez, ainda Penha estava a pensar nas recomendações dos serviços
consulares portugueses que havia lido quando a empresa decidiu enviá-lo com Simão
Saraiva para Kinshasa. «Desaconselham-se as viagens não essenciais ao Congo,
nomeadamente todo o tipo de viagens turísticas. É totalmente desaconselhado viajar
para o leste e nordeste do País. Este desaconselhamento aplica-se a toda e qualquer
entrada através do Uganda, do Burundi e do Ruanda. Recomenda-se que o viajante não
se desloque ao Congo sem que antes celebre um seguro médico que envolva
designadamente a possibilidade de evacuação por ambulância aérea, dadas as
deficiências da rede saúde local.»
Contudo, tanto para este, o da cor, como para outros problemas, há algo que deve ser
dito. Provavelmente nem todos param para perceber que a realidade que pensamos
percepcionar, a realidade física e tridimensional, reduz-se ao despotismo da sintaxe, à
arbitrariedade das relações de concordância e dependência incondicionais; uma
realidade possível em que cremos como certa pelas informações que nos são dadas
pelos sentidos do corpo humano; uma realidade ancorada na disposição estrutural mais
ou menos ordenada e harmoniosa, e igualmente funcional, de unidades, números,
símbolos, como o sujeito e o predicado, na linguística, orações sintácticas, que tanto
servem para as frases da linguagem como para as frases musicais.
46
Este é o mundo cacofónico em que vivemos ou que, pelo menos, julgamos viver. Por
mais cantos e recantos que esquadrinhemos nas viagens que ao longo da vida vamos
fazendo, na redoma doméstica, local, próxima, com a qual temos a inclinação de nos
identificar mais facilmente, ou na aridez selvagem do globo terrestre, percorrendo um
conjunto indeterminado de pontos distantes na imensidão intercontinental, não há forma
de escapar. Nasce-se com a marca e com ela se coabita até ao fim: a marca que nos
caracteriza como seres de mumificação lenta.
É costume dizer-se que quem viaja muito e conhece vários países e diferentes formas de
organização e estruturação social e cultural, tende a ser mais feliz, de espírito aberto,
com manifestações regulares de uma energia contagiante, uma pessoa activa e
desprendida com um enorme amor pela diversidade global e, por conseguinte,
paradoxalmente, mais desapaixonada pelas tais pequenas tragédias da existência
humana. É claro que o índice de felicidade é altamente discutível, que numa escala de
um a cinco, por exemplo, o três de um pode ser igual ao quatro de outro, já que a
expectativa e a própria concretização da suposta felicidade varia no alcance que à
mesma cada um dá. Mas esse nem sequer é o essencial da questão. Com efeito, a
problemática deve ser equacionada de um outro modo, por sinal bastante simples: entre
as abóbodas celestes e as abóboras terrenas não há grande distância. A não ser que o
firmamento seja uma mera ilusão óptica, tal como a cor. É que a forma é a mesma, bem
como a função: alimentar quem tem fome.
Será fome de poesia? É que quando olhamos para o céu, o firmamento, e contamos as
estrelas e apreciamos a luz da Lua, algo de mágico nos acontece e somos capazes de
criar o mais lindo poema ou cântico. Quanto às abóboras terrenas, alimentam um outro
tipo de fome: a que dói nas entranhas de um corpo cansado de um dia exaustivo de
trabalho; a fome que não deixa as crianças dormir, coisa que não é nada poética, por
sinal. Por isso, devíamos perguntar: do que é que temos fome? Da poesia, que alimenta
a alma, ou de comida, que alimenta o corpo?
Fome de poesia?!
Se ao menos abrisses os braços, me desses a cheirar um pouco da tua bondade… Onde
param os teus oráculos?
Tiago Penha bem sabia que há muito que Maria Clara não fazia parte da equação. Dos
inumeráveis códigos de cor. Do admirável mundo dos dígitos binários. Das
combinações complexas de bits para processamento simultâneo, transformando-as em
sistemas.
Nem Maria nem Kinshasa. O projecto rendeu dinheiro – um dos mais rentáveis, aliás,
em território subsariano, até mais do que em Angola – mas querer voltar a fazer
negócios na cidade invisível seria como construir estâncias de golfe no meio dos
musseques de Luanda, como no Cazenga, ou das favelas do Rio de Janeiro, como na
Rocinha. Ou nas villas de emergencia de Buenos Aires, como em Lugano.
Curioso: Para quem havia viajado tanto como ele, onde parava a sua energia
contagiante? Ter-se-ia ele tornado uma pessoa activa e desprendida com um enorme
amor pela diversidade global e, por conseguinte, mais desapaixonada pelas pequenas
tragédias da existência humana? Tiago desconfiava que não. E essa suspeita adensavase à medida que ia envelhecendo. O que queria dizer que, afinal, havia razões para
começar a ceder ao sentimento de angústia.
47
VII.
Pelas contas do médico – ginecologista e obstetra – faltava pouco mais de um mês para
o parto quando deixou de ouvir, com surpresa e sobressalto, as batidas cardíacas fetais.
Submerso em líquido amniótico contaminado de sangue, o bebé havia deixado de
respirar. De se mexer. Um peso morto afogado no interior do ventre de Maria Clara.
Tiago quis saber o que se passava, perceber o que teria sucedido, tentar compreender o
terror, como se fosse possível minimizá-lo através da percepção de actos e
consequências. Mas o terror é apenas terror; não tem razões nem objectivos.
Podia ter sido um caso de polícia, mas os exames médicos apontaram noutra direcção e
o que urgia era salvar a única vida que restava: a da parturiente, que não chegou a sê-lo.
É certo que ficou muito por esclarecer, sobretudo para Penha, mas valeria a pena?
Meses antes, mal Maria soube estar grávida e pôde confirmá-lo, foram escolhidos de
imediato os nomes para o bebé, um para menina, outro para rapaz, por comum acordo,
rara e curiosa concordata numa relação que sempre fora e continuou a ser dissonante,
como se tem visto. Não é que se tratasse já propriamente de um bebé, mas aquele
embrião de milímetros era um esboço promissor do que poderia vir a ser. À medida que
se desenvolveu, o milagre da multiplicação, celular e molecular, tornou-se cada vez
mais sedutor. Até que chegou o dia em que souberam, Tiago e Maria, que seriam pais
de uma estrela, o correspondente hebraico de Ester, em rigor de Hadassah (que também
serva para murta, uma planta do tipo das mirtáceas), ao que parece de origem persa,
prima e filha adoptiva de Mordechai, lê-se na Torá, que chegou a rainha ao desposar o
rei Ahasuero.
Bons agouros para a viagem que haviam planeado fazer, nesse ano fatídico de dois mil e
um, a última a dois – que definitivamente foi mesmo a última, embora isso não estivesse
nos planos – tanto como despedida dessa condição, a da vida em par, quanto como
festejo do ímpar pelo anúncio da chegada do primogénito, fruto do que Deus uniu, o
homem e a mulher, acto de amor e a palavra do Senhor a ressoar, “Sede fecundos e
multiplicai-vos; espalhai-vos pela Terra e multiplicai-vos sobre ela.”
«Hendaye, Setembro um, dez e quinze
Querida Ester,
É para ti a primeira palavra. Já estamos em França. Atravessámos a fronteira de
Hendaye há quase uma hora. Para trás, já lá vão aqueles pensamentos iniciais aquando
do princípio da jornada, pensamentos de angústia que começaram logo a caminho de
Santa Apolónia. Pensei se a tua mãe estaria a sentir o mesmo. Quer dizer, não posso
falar por ela, mas decerto que a percepção de angústia era semelhante. Embarcámos sem
qualquer percalço. Teve piada saber que a tua mãe nunca havia estado em Santa
Apolónia. Sair de Lisboa no mítico Sud Express já nada tem de mítico. Nem mesmo
sendo da tão histórica quanto caduca CP, já vão longe as gloriosas “regenerações”
governativas de Fontes Pereira de Melo por volta dos anos mil oitocentos e cinquenta e
troca o passo. Agora é como qualquer partida, um comboio vulgar que inicia marcha
sem pompa e atravessa provavelmente a zona mais degradante e deprimente de Lisboa.
48
O comboio é igualmente deprimente. Estão longe os tempos em que Santa Apolónia era
notícia, em que os magotes de emigrantes, acotovelados, assustados, apareciam na
televisão, ainda a preto e branco, a oferecer ao País as suas emoções, as suas despedidas
embaraçadas. Em fuga consentida da Guerra de Ultramar ou de outros infortúnios do
Estado Novo. Hoje, ainda são muitos os emigrantes, os portugueses que vão e vêm de
França; a história ainda soa a “mala de cartão”, mas os tugas misturam-se com os
turistas, os miúdos do InterRail e os menos miúdos do InterRail, como nós. Tivemos
ontem o primeiro incidente, com três miúdas francesas. Foi coisa ligeira – um pequeno
episódio de má educação, insultos em francês à espera de que ninguém perceba, um
certo pedantismo – mas pôs-me a pensar no mosaico cultural com que nos confrontamos
sempre que viajamos. Em contrapartida, conhecemos um casal curioso, simpático, de
algures perto da Figueira da Foz. Ela simples, ele um tanto pintarolas, mas solícitos.
Conseguimos uma couchette e lá deixámos as parvas das francesas à vontade. Desde
Vilar Formoso até Hendaye estivemos metidos numa carruagem-cama. Senti-me estar
dentro de um galinheiro. Parecia ir a caminho de Auschwitz e até tive de pagar para isso
cento e noventa francos. Mas valeu a pena. Fiquei com a sensação de ter passado toda a
noite acordado, mas a tua mãe disse-me de manhã que estive a ressonar. Ainda bem.
Sinto-me amassado, mas saber que ressonei é revigorante q.b. Estamos agora no TGV.
É a primeira vez que andamos neste comboio ultra-sónico. Na verdade, não tem nada de
especial. É mais simpático que o de ontem e, pelo menos, não provoca a sensação de
que estamos a saltar, como aconteceu ontem no vagão-restaurante. A imagem é
romântica, mas a realidade é mais uma comédia… Estou cansado. Gostava de produzir
um discurso mais bonito, mas não sou capaz. O cansaço é terrível e absorve a lucidez.»
Foi esta a primeira entrada deixada por Tiago Penha no diário de bordo que havia
combinado escrever com Maria Clara, que ela faria o mesmo – outra rara e curiosa
concordata numa relação sempre desafinada – ao longo da viagem pela Europa,
programada para durar cerca de três semanas, de mochila às costas e os devidos
preparos com vista à predisposição física e mental para o improviso em face das
adversidades, que é disso que se faz a aventura, sempre construída à medida de cada
um, que nem para todos é igual. Um breve périplo por algumas das principais capitais
do velho continente, de norte a sul, mas confinado a latitudes geodésicas centrais com
um epicentro mais ou menos definido, não fosse dar-se o caso de serem desejadas, por
impulso do momento, certas e determinadas dispersões territoriais que só atrapalhariam
a harmonia do empreendimento. Tanto mais que estava em causa (havia sido essa a
justificação subscrita pelos dois para este movimento exploratório intra-continental) o
corte eufónico e parcimonioso do cordão umbilical – uma liberdade metafórica bem a
propósito aliás – que os unia à vida de outrora, a dois, à vida consumada até então, antes
dos prenúncios do advento da idade da razão (se é que Sartre não se enganou e ela nem
sequer existe, quer dizer, a razão).
(Web Forum: Eu diria que ela nunca chega completamente e de forma definitiva. Mas
há um momento em que passamos a poder optar por usá-la; em que deixamos de ser
reféns do puro desejo. A que se segue uma réplica: Pois é capaz... de ter razão... E uma
nova observação: No meu entendimento a razão existe; nas na verdade nunca chegamos
a ela. Resposta: Eu diria que chegar, chegamos. Ficar nela é que são outros
quinhentos. A razão total seria para os deuses – não os gregos, puro desejo e paixão –
se existissem. Mas é possível ponderar o desejo e o acto. Ou seja, usar um pouco de
razão. Por isso não saímos o tempo todo para roubar, matar, estuprar. Enfim, usamos a
razão para controlar e dirigir os nossos actos. E novo comentário: É isso que me
chateia, sabe? Pessoas que têm consciência da razão, mas não a seguem por pura
estupidez. Remate: Se a razão é a liberdade de pensamento, bom, até posso pensar,
49
ainda não fui privada disso, mas concretizar é impossível neste mundo de falsidade
moralista. Eu só queria ser livre)
«Hendaye, Setembro um, dez e quinze
Partimos ontem de Santa Apolónia mais ou menos às seis da tarde, com uns minutos de
atraso. É uma sensação estranha. Por um lado, com vontade de partir, por outro, com
grande angústia. O comboio era sujo (para vergonha de todos os portugueses) e, para
ajudar a festa, apanhámos na carruagem umas francesas parvas, pitinhas mas arrogantes.
Só faltou desatarmos à estalada. Felizmente que conseguimos uma couchette. Não
consegui pregar olho, mas foi como se me saísse a sorte grande, embora a carruagemcama também fosse um nojo. Ficámos nas camas de cima. Em baixo, havia três
emigrantes portugueses que dormiram toda a noite. Por volta das oito da manhã vieram
acordar-nos e regressou o pesadelo. Agora a ida à casa de banho. Porca, sem água,
enfim, condições próprias de outros tempos que não os de agora. Às nove e meia da
manhã mudámos para o TGV. Uau! Será que estou a sonhar ou dei um salto no tempo?
Et voilà! France. Foi como se de repente passássemos da terceira para a primeira classe.
Bancos confortáveis, bar agradável e ar condicionado. E pensei na Ester. Estamos
ansiosos para que o tempo passe. Como seria bom que ela já cá estivesse fora e pudesse
viver esta experiência ao nosso lado. De resto, até aqui, a viagem até tem sido
interessante. Apanhámos o regresso dos emigrantes portugueses a França, histórias
curiosas de outros tempos, já lá vão trinta anos, de como faziam para chegar a França
clandestinamente. São-me bastante familiares estas histórias mas gosto sempre de as
ouvir e, sobretudo, passar pelos locais em que decorreram. Imaginar que, enquanto
agora transpomos facilmente a fronteira entre Espanha e França, há trinta anos estes
homens faziam-no a salto. Provavelmente bem perto da zona que acabámos de
atravessar. Ouvimos as histórias sentados à mesa, durante um jantar que era suposto ser
“romântico” no vagão-restaurante do famigerado comboio português que nos trouxe até
aqui. Só para lá chegar foi uma aventura. Não sei quantas carruagens percorremos, mas
foram muitas. Durante o percurso, entre os vários módulos do comboio, parecia que se
abriam novos mundos. Cada um diferente, conforme fosse a carruagem. Emigrantes
portugueses aos magotes, mas também imensos africanos com quinhentos mil bebés a
chorar. E alguns franceses e ingleses de pé, descalços, a passear pelos corredores. Com
bagagens pelo meio e até uma bicicleta. E muitos a dormir no chão. Amontoados. Tudo
metido naqueles corredores estreitos de difícil circulação. Quando chegámos por fim ao
“famoso” restaurante, que está precisamente na última carruagem, na retaguarda, lá se
foi a imagem romântica de um jantar num comboio, como vemos nos filmes. Aquilo era
um número de malabaristas: os empregados a tentar manter as bandejas em equilíbrio,
sempre com bons reflexos, de tanto que a carruagem abanava. Na verdade, senti que
estava mais num barco à deriva no mar alto, no meio de uma tempestade, do que
propriamente num comboio. Com todas aquelas travessas a passar de um lado para o
outro, quase com a comida a cair em cima das pessoas, pratos a tremer sobre as mesas,
copos à beira de cair no chão. Tínhamos que comer com uma mão e segurar com a outra
tudo o que não se encontrava devidamente preso à estrutura do vagão. O casal ao nosso
lado olhava-nos e sorria, encolhendo os ombros. E depois desatou a desfiar as histórias
do passado. Naquele carrossel de solavancos e ruídos metálicos.»
Maria Clara e Tiago Penha tinham ainda pela frente quase oitocentos quilómetros (que
acabaram por percorrer em menos de cinco horas) para chegar a Paris, para eles o
verdadeiro ponto de partida desta viagem. Quer dizer, depois do transbordo da Gare
Montparnasse para a Gare du Nord, qual delas a pior. Tudo somado, foram milhares e
milhares de quilómetros e dezenas de horas dentro dos mais variados tipos de comboios,
uns modernos, outros nem por isso, alguns bastante rápidos, a maioria decrépita a
50
arrastar-se pelos carris em marcha lenta. Daí que Maria e Tiago aproveitassem o tempo
para se dedicar a mapas e guias de viagem – que além do período de três semanas e das
latitudes geodésicas fixadas para o périplo, nada mais haviam querido programar – e aos
diários de bordo. É interessante seguir os dois caderninhos de bolso com as páginas
presas por argolas, um de capa azul, a cor da monotonia e da falta de coragem, outro de
capa cor-de-rosa, a cor da maldição hebraica, uma vez que a maior parte das entradas
foi escrita ao mesmo tempo, reflectindo pensamentos diferenciados sobre experiências
comuns e, por conseguinte, o carácter e a variação de humor de dois olhares sobre a
mesma paisagem temporal.
«Berlim, Setembro quatro, vinte e uma e quarenta e cinco
Querida Ester,
Amanhã partimos para Praga. Completámos o nosso ciclo berlinense. Foram três dias
muito interessantes. É claro que chegámos cansados depois de dois dias de viagem,
depois de dois longos dias enclausurados em comboios. Aparentemente estive a
ressonar durante o troço entre Paris e Frankfurt. A tua mãe diz que não dormiu nada e
que os outros passageiros da couchette passaram a noite a bater-me na cama. Ao que
parece, ninguém conseguiu dormir. Pela minha parte, dormi como uma pedra. O truque
é simples: despir-me e vestir o pijama. É claro que pode ser estranho para muitos. De
pijama numa couchette partilhada com quatro pessoas que não se conhece de lado
algum? Até podiam ser cinco, se não contasse com a tua mãe. Essa pelo menos conheço.
Quer dizer, julgo que conheço. Mas adiante. Acordei em Frankfurt com um nevoeiro
denso e a estranha sensação de estar na Alemanha nazi. Tínhamos apenas quinze
minutos para fazer o transbordo para o comboio com destino a Berlim. Mas como bons
franceses que são, le train de nuit da SNCF chegou on time. E o primeiro alemão,
funcionário da DB Euregiobahn, a quem perguntei pela linha para Berlim pareceu-me
simpático. Acabámos por partir sem qualquer sobressalto. O comboio era espectacular.
Andei pela primeira vez na vida a duzentos e cinquenta e um quilómetros por hora.
Havia em cada carruagem um placar digital com a indicação da velocidade em tempo
real. É um tanto ao quanto estranho pensar nisso, mas nem nos apercebemos. Os
comboios na Alemanha – este era um do tipo intercidades – são fabulosos. Houve uma
ligeira confusão com os lugares, mas nada que nos inquietasse particularmente. Não é
todos os dias, pelo menos para nós, portugueses, que se está a bordo de um verdadeiro
TGV alemão. E de novo chegámos a horas, desta vez a Berlim. Afinal, a pontualidade
britânica não parece ser prática comum apenas em terras de Sua Majestade. Em França
e na Alemanha tout au point. Pelo que vi até agora, só mesmo em Portugal é que
deslizam carroças pelos caminhos-de-ferro. As mesmas que insistem em rodar por
Castela e pelo País Basco. Berlim é tal e qual como a imaginava, tal e qual como nos
filmes de Wim Wenders: fria, cinzenta, em largura e não em altura. Contudo, o cartãode-visita, ou de chegada, chame-se-lhe lá o que se quiser, foi mau. O primeiro alemão
ao qual pedi informações sobre a ligação a Praga, mal percebeu o meu inglês. Pareceume antipático. O segundo, junto de quem tentei fazer uma reserva para Praga, foi
definitivamente antipático. Disse uma zurrada qualquer em alemão do género
“desaparece daqui”. Fomos parar directamente à zona leste de Berlim. Mas até lá, desde
a estação, tivemos de andar a pé quilómetros a fio, porque tinha um objectivo:
Alexanderplatz. Gastei mais de meia hora no comboio, antes de chegar, com o mapa da
cidade: a decifrá-lo, a memorizá-lo. O nosso destino tinha de ser Alexanderplatz. Uma
mania por causa do livro do Döblin. Mas conseguimos chegar cerca de uma hora
depois. Pode parecer que não é muito tempo, mas com o peso brutal das mochilas às
costas não é assim tão fácil. Procurámos um hotel e acabámos no Ibis lá do sítio. Que
51
merda! Estou mesmo cansado. Desculpa, Ester, mas amanhã de manhã, quando estiver
no comboio a caminho de Praga, conto-te o resto.
PS. Voltei a ter uma discussão com a tua mãe. Bebi uísque e estou deprimido. A vida
nem sempre é o que queremos. Estou a ver ou ouvir, nem sei bem se é uma coisa ou
outra, um canal de televisão polaco. Pelo menos não me parece que haja sinais de
campos de concentração. É passado; já não interessa.»
Pouco antes, Maria Clara também havia começado a escrever, produzindo desta vez um
extenso texto sobre Berlim. Penha, por seu lado, só o retomou no dia de seguinte, de
manhã, no comboio a caminho de Praga, pela primeira vez em escrita isolada, isto é,
sozinho, que Maria parecia continuar ainda encrespada após a discussão da véspera.
Uma quezília, das muitas que sempre tiverem, à qual, aliás, não fez qualquer referência
na sua segunda e longa entrada no diário de bordo cor-de-rosa, a famigerada cor dos
corpos dos judeus amontoados nas câmaras de gás nazis.
«Berlim, Setembro quatro, onze
Chegámos anteontem a Berlim às onze e meia da manhã exaustos da viagem. Mais uma
noite sem dormir. Não sei o que se passa comigo. Dantes dormia em qualquer lado,
agora não consigo pregar olho. Ao entrar na cidade, não senti nada de especial (tal como
previa), ao contrário do que sinto quando chego a outros destinos como Paris, Madrid
ou Londres. Se calhar, é porque já vinha com a ideia preconcebida de que passaria bem
sem conhecer Berlim. No entanto, à medida que me fui ambientando acabei por me
apaixonar. E não foi preciso muito tempo para que esta cidade monstruosa, no sentido
de grandeza, com todo o peso da História que carrega, me conquistasse. São onze da
noite e amanhã partimos para Praga muito cedo. Mas confesso que adoraria ficar por
aqui durante mais alguns dias, sobretudo para tentar perceber melhor esta realidade que
não é assim tão óbvia quanto pode parecer à primeira vista. Dizem que a reunificação de
mil novecentos e oitenta e nove transformou a cidade numa única só, sem diferenças
entre Ocidente e Oriente. Mas não me parece. É verdade que vinha com a ideia
tradicional de que haveria contrastes evidentes entre a zona leste e a oeste. É certo que
nestes dozes anos grandes obras foram feitas. Exteriormente. Em Berlim leste, já se
vêem carros de modelos acabados de sair, os edifícios estão bem conservados. Porém,
não consegui perceber (não houve tempo!) alguns aspectos e vou-me embora com
muitas questões na cabeça. Como é que as pessoas se sentem com esta mudança,
especialmente as que viviam e vivem a leste do antigo muro? Estarão realmente
integradas no modelo cultural ocidental tão diferente daquele em que viveram durante
décadas? São simpáticas, ao contrário do que pensava dos alemães da antiga RDA,
embora não saiba se são-no mesmo assim no geral, na realidade. Fazem um enorme
esforço para nos compreender. Foi uma surpresa: é raro aquele que percebe ou fala
inglês. Fomos hoje a um restaurante cheios de ideias para comer um prato tipicamente
alemão, desta zona. Estávamos a pensas nas famosas salsichas. E pedimos, mas o que
apareceu foi um bife panado. Não deixou de ter piada, até porque a empregada
esforçou-se para nos agradar, apesar do problema de comunicação. Ementa em alemão e
nada de inglês, escrito ou falado. Ainda assim, o resultado final foi uma grande
desilusão. De resto, as pessoas têm um ar muito simples. Até se vestem um pouco fora
de moda. Fazem-me lembrar um povo dos anos oitenta. O metro, por exemplo, é
bastante curioso. Adorei os placards que aparecem em todo o lado sempre com
informações actualizadas quanto aos minutos previstos para a chegada do próximo
comboio. As carruagens são antigas, mas muito coloridas. E chamou-me
particularmente a atenção o facto de se ouvir música clássica em todas as estações.
Fomos dar um passeio de barco pelo rio Spree e foi aí que tive a real percepção da
grandeza da cidade. Percorremos o rio durante duas horas e apenas fizemos metade do
52
caminho que é navegável no interior de Berlim na zona norte. Mas deu para perceber
bem as diferenças entre a parte ocidental e a parte oriental. A influência do que
poderíamos chamar de um certo tipo de arquitectura nazi é bem evidente nos edifícios e
sobretudo nas pontes. De resto, prosseguem as obras por todo o lado. Muitas gruas,
muito entulho. O norte de Berlim, na área que percorremos, tem uma mistura de barroco
com o pós-industrial. É engraçado ver lado a lado um enorme monumento e um
arranha-céus todo espelhado por ali cima. Contudo, no meio disto tudo, o que mais me
impressionou foi o contraste entre o ritmo pacato da vida na zona leste e agitação na
parte oeste. Num lado, quase não se vê ninguém nas ruas. Não há sinais de stress,
aquele fervilhar habitual que encontramos nas grandes cidades e, claro está, também na
área oeste de Berlim com os seus McDonald’s e todas as outras cadeias de fast food e
franchises de tudo o que é possível vender. Ficámos hospedados num hotel
espectacular. Uma noite. Depois tivemos de mudar para o Ibis, porque estava completo
no dia seguinte e não tínhamos feito qualquer reserva. Nunca tinha entrado num hotel
que me impressionasse tanto. Fazia lembrar as casas imponentes dos anos vinte ou
trinta. Muito antigo, mas extremamente acolhedor e cheio de bom gosto. Senti-me
emocionada quando visitámos um antigo posto de controlo fronteiriço, o famoso
checkpoint Charlie. Ficámos parados a olhar durante uma eternidade e a imaginar tudo
o que aquilo representava. As barbaridades que ali foram cometidas. Depois, entrámos
em euforia e desatámos a querer registar o momento com dezenas de fotografias.
Parecíamos os turistas chineses que fotografam tudo o que mexe. Não sei quantos
filmes gastámos. Mas vai ser uma fortuna revelar e imprimir tantas imagens. Do muro
nem sombra. Aliás, vimos à venda em tudo o que é loja pedaços de pedra, supostos
pedaços de betão do muro de Berlim. Rimo-nos imenso. Como é que é possível, doze
anos depois, haver à venda tantos pedaços do muro? Será que daqui a vinte anos ainda
haverá pedras para vender? Parece a história da cruz de Cristo. Se se juntassem todos os
bocados de madeira espalhados pelo Mundo que alegadamente pertencem à cruz não sei
quantos metros de altura dariam. Mas decerto que teríamos uma cruz mais alta do que o
World Trade Center. No checkpoint Charlie há ainda uma placa a avisar: “você está a
sair do sector americano”. É estranho ler aquilo. Tão estranho como ver os novos
edifícios construídos precisamente na linha onde estava o antigo muro. E além das
pedras, há também à venda os mais diversos acessórios da Guerra Fria como chapéus de
oficiais alemães, julgo que da antiga RDA. Grande Berlim! Ficará para sempre na
minha memória como uma bela recordação. Quando regressar a Portugal, tenciono rever
com mais atenção as “Asas do Desejo” do Wenders. Agora, quando ouvir falar de
Berlim, sei que vou percepcionar as coisas de outra forma. Certamente que me vou
envolver. Tenho saudades de casa. Tenho vontade de chorar.»
53
VIII.
«Berlim, saída de Ostbahnhof a caminho de Praga, Setembro cinco, nove e quarenta e
cinco
Querida Ester,
Estamos a sair de Berlim. Finalmente um dia bom com sol. Os três dias em Berlim
foram cinzentos, chuvosos, péssimos para fotografar. Adorei Berlim. Há ainda uma
diferença abismal entre as duas partes da cidade. É claro que, após doze anos de
reunificação, a zona leste está aparentemente integrada. O parque automóvel é
ocidental, a vida comercial é a mesma. A diferença passa pelo movimento de pessoas.
Na zona oeste, em Zoo por exemplo, a vida é bem mais agitada e ocidentalizada, como
seria de esperar. Do ponto de vista arquitectónico, também se notam diferenças. A parte
leste tem um ar moscovita, apesar das enormes construções de tipo pós-moderno que
existem a norte. Em síntese, é uma bolsa sitiada de betão e metal a par de todo o
cinzentismo que a caracteriza. O curioso são as pessoas. De um modo geral, são
simpáticas e não soturnas, como imaginava. E é claro que mal nos percebem. Ontem à
noite, num restaurante na Alexanderplatz, pedimos umas salsichas alemãs e apareceramnos bifes panados. Valeu o vinho do Chile. Fabuloso. Uma nota: servem uísque
rigorosamente com doses de dois centilitros. Nem uma gota a mais. Fizemos uma
viagem de barco fantástica. Durante duas horas atravessámos o Spree, que permite ter
uma noção da dimensão da cidade, quer dizer, da parte norte e centro. Não fomos ao sul.
É gigantesca esta cidade. Ontem à noite discuti com a tua mãe. É estranho. A quase
quatro mil quilómetros de casa, o quotidiano, no que de mais negativo tem, assome com
uma indiferença desconcertante. Estamos a caminho de Praga. Não temos qualquer
referência da cidade. O comboio é rasca e está cheio de alemães. Começo a ficar farto
de andar de comboio. E de ver alemães.»
Foi este o sentimento que Tiago Penha levou para Staroměstské náměstí, por onde
vaguearam Kafka e o seu companheiro de longa data Josef K, em Praga, já lá vão quase
duas décadas (Tiago e não Kafka, como é bom de ver), encerrando de vez os
comentários sobre Berlim, Wim Wenders e os bifes panados no seu diário azul, a cor da
sabedoria e da lealdade, a cor da fé e da noite, que conservou durante muitos anos perto
de si (o diário, entenda-se) numa gaveta da secretária onde trabalhava na República, em
Lisboa, das raras vezes que lhe sucedia lá estar.
De resto, chegou a reler algumas vezes, ao calhas, de quando em quando, vários
excertos deste relato desembuchado à pressa com função multiusos, tanto pela opção do
registo em forma de diário, para a devida inscrição de todas as particularidades
(consideradas mais significativas) daquela singradura por terras da Europa central,
como pelo uso dado ao mesmo; um conjunto de folhas presas por argolas com espaço
suficiente, considerando a extensão temporal do périplo, para uma prosa epistolar
comprometida com duas variações do jornalismo literário: a biografia e a narrativa de
viagens.
54
Na prática, memórias e comunicação. Problemáticas pelas quais Tiago viria a interessarse mais tarde quando sentiu necessidade, por razões que serão apresentadas a seu tempo,
de se meter pelos caminhos sinuosos do webtracking e media metrics, verdadeiros
desafios, aliás, para um trovador de linhas de código, mais computacionais do que
propriamente líricas – é bom que se distinga, ou não fosse Penha programador, que
volte a constar na acta dos acontecimentos – quando trilhados, os caminhos, em
contexto de social media. E trilhados é a expressão certa, não por que possa sugerir a
debulha, mas tão simplesmente a bulha, o rebuliço das pegadas, rastos e vestígios, que
todo o contacto deixa uma marca, sempre pouco recomendáveis para todos aqueles que
se dedicam às artes do tracking e do hacking em domínios de bytes ligados em rede.
Roberto Cavalcanti, ou RC, como era conhecido, o amigo de Penha que brincava com
letras, em rigor pleonástico, um director editorial de uma editora, que aqui já se referiu e
nada tem a ver com Simão Saraiva (mas com as figuras de estilo que poderão ser, afinal,
as silhuetas dos corpos humanos que tão ardentemente se deseja ou abomina, como lhe
havia dito Tiago por graça), comentou numa outra ocasião, em jeito de réplica, que a
coisa escrita, uma vez lida, acende a inspiração de quem a lê, que é o mesmo que
afirmar que a coisa escrita, uma vez lida, instiga a possibilidade da apropriação para fins
diversos da mensagem veiculada. E acesa a inspiração, é difícil voltar atrás. Tal como
sucede com a ignorância, uma virtude que, para quem a abandona, não é possível
recuperar. Eis o drama da escrita, do que se comunica por palavras; tanto pode ser
objecto de inspiração como convite à usurpação, à fraude do gozo de uma coisa de
outrem. Ou convite ao gozo da fraude por que essa é a própria natureza incondicional da
escrita. Quando lida. Tanto mais que toda a escrita é uma forma de comunicação. Como
sublinha Peter Sloterdijk – e lá voltam os alemães, sempre estes bastards deutsch na
vanguarda do saber – a escrita que ambiciona ser lida é como o envio de cartas a
literatos desconhecidos. Na verdade, como chegou a explicar RC, se os gregos não
tivessem mandado tantas cartas para o futuro, os romanos nunca teriam existido. Quem
escreve, partilha sempre o que vê e aquilo com que se cruza. É certo que pode descrevêlo de formas diversas mas fá-lo tendencialmente reinventando a realidade. O que não
quer dizer que a nova realidade descrita seja menos real do que aquela que se quis
reproduzir ficticiamente. Com efeito, na maioria dos casos, a ficção é apenas uma nova
forma de construir a realidade, uma realidade moderna, porquanto é uma reconstrução
do futuro pelo simples efeito de ter sofrido a intervenção de um interlocutor a jusante.
(Web Forum: Toda a escrita ambiciona ser lida, como toda a palavra ambiciona ser
ouvida, como todo o olhar ambiciona ser correspondido. Saber-se sabido, conhecido,
está para a Humanidade como a Terra está para o sol, dependente. Alguém pergunta:
Bem dito. E quanto a ser moderno ou pós-moderno? Resposta: Essa é uma questão de
recepção, da recepção do lido. Aqui enveredamos pelos caminhos tortuosos da
subjectividade nascida da objectividade diária que acoberta, desvela, revela o que a ela
interessa. Comentário jocoso: Para mim, o que interessa é que escrevi um livro que
reconheço ser mau, mas se puser no cinema com o Al Pacino no papel principal ganha
um óscar de certeza. E uma observação lapidar para o remate final: Com isto tudo, o
que eu acho é que são cada vez mais os idiotas que querem escrever sem saber ler)
A frase ficou a ecoar-lhe no alçapão da mente: se os gregos não tivessem mandado
cartas para o futuro, os romanos nunca teriam existido. Não é que fosse muito
importante, quer dizer, desde que situada na justa proporção do fascínio que Penha
reservava ao tema, tanto mais que, nesta fase, era a ideia de velhice que tendia a ocupar
mais os seus pensamentos, e preocupações, o prazo da sua validade como ser humano,
cada vez mais reduzido, em contagem acelerada, a culpa é da reprodução sistemática
dos mesmos passos, cuja razão nunca percebemos, mas insistimos em fazê-lo, falsas
55
aparências, porque em tudo há lentidão, tanto antes como depois do zénite dos quarenta,
ao contrário do que se diz, são ilusões, quimeras, sentidos enganados, porque em boa
verdade a verdade é só uma: a morte rasteja em silêncio. A diferença reside na
valoração que se lhe dá. À morte e à marcha lenta. É que é sempre mesmo o compasso,
o compasso certo do seu desígnio, uma sinfonia de cadência regular que, afinal, apenas
se presta a dissonâncias pela forma desditosa com que a queremos ouvir. Porque
sabemos que é incontornável e logo se torna temível.
Tão temível quanto o esvaziamento do vigor no acto sexual que Tiago começou a sentir
à medida que foi envelhecendo. E esse era um mau presságio, já que validava
precisamente a convicção de que a morte rasteja em silêncio. É certo que Penha
mantinha o desejo, a vontade, mas a erecção deixara de perdurar o tempo que desejava.
E, às vezes, bastava qualquer contrariedade, por mínima que fosse, para brochar de
imediato. A actividade sexual começou a conhecer períodos de interrupção cada vez
maiores. É claro que a isto também não era alheia a recorrente recusa da mulher que
sempre se esquivou (quando privava com ela, o que era raro, extremamente raro,
perante tantas e prolongadas ausências no estrangeiro, onde aliás consumia as cada vez
menores chamas luxuriantes da libidinagem).
O que lhe parecia estranho é que, decorridos vários dias, com o desejo a aumentar,
aumentava igualmente aquilo que ele julgava ser o amor. Ficava com mais vontade em
mostrar-se carinhoso, em procurar o toque de Maria Clara, em tentar beijá-la, em fazer
afinal tudo aquilo que concorre para a dança de uma relação saudável a dois (que nunca
existiu e sempre foi recusada – um outro mau presságio: o crescendo de desespero e
angústia). Contudo, esgotada a cópula e chegada a ejaculação, quando finalmente
acontecia, com outras mulheres, desaparecia de imediato o hálito do amor. Tiago Penha
ficou intrigado. Se o sexo depende do amor, neste caso era o amor que dependia do
sexo, o que deitava por terra todos os lugares-comuns que foi ouvindo ao longo da vida.
Para uma puta, a questão deveria ser ainda mais complexa. Porque decerto que não
estaria espoliada da capacidade de amar, apesar de tanto sexo vendido, de tanto
abandono do corpo a troco de uns trocos para tão generosa oferta. Onde estaria a mente?
E que relação se estabeleceria entre esta e o corpo? As putas também amam?
(Web Forum: Por que razão uma prostituta não seria capaz de amar? Segue-se um
comentário na mesma linha: Claro que amam. Ser prostituta não é algo que se deseje
ser. Ninguém acorda a querer mudar para essa profissão. E a primeira opinião
discordante: Depende de cada caso. Conheci uma moça que era prostituta por opção.
Ainda que fosse muito bem empregada – era secretária executiva de um cargo de
segundo escalão no Estado – e tivesse um belo salário, era prostituta por gostar de ser
paga para fazer sexo. Quanto ao espaço para o amor, não é uma questão de se existe
isso num sector profissional específico. Conheço mulheres e homens que fazem a
apologia da relação casual, do sexo sem envolvimento emocional, da não-relação. O
amor interpessoal parece ter uma importância cada vez menor, quanto mais o discurso
migra para a necessidade do amor-próprio, do amar-se a si mesmo. Parece-me que
existe uma tendência para a construção de uma sociedade de auto-amantes, ou seja de
masturbadores. Após algum silêncio, alguém arrisca: Creio que se pode separar amor e
sexo e que uma prostituta domina essa arte, a de separá-los. Isso não quer dizer que
não almeje uni-los. O problema é que a maioria não sabe fazê-lo e não compreende
que, para isso, não é necessário ser prostituta. Réplica imediata: Todos nós nos
prostituímos quando não fazemos o que a nossa alma almeja mas apenas tentamos
sobreviver)
E o que dizer da paixão que sempre parecera ser, para Tiago, um outro patamar
intermédio das regras da atracção? Não tinha respostas; e o pior é que a sede sexual era
56
cada vez maior. Ou menor. Nisto andava confuso. Mentalmente. Porque na cama
começava a ser exasperante perante a capacidade (ou incapacidade) para se vir, fosse
com quem fosse, por mais engenhosos expedientes que lhe apresentavam para manter o
pénis erecto.
Decorria daqui uma outra questão: a da punheta. Não a do bacalhau cru, desfiado e
temperado com cebola, azeite e vinagre, mas a da estimulação do falo, com a mão ou
outra coisa qualquer, que naquele momento tudo era válido, para a tão desejada
conquista do ponto G, ou ponto de Gräfenberg (cunhado em homenagem ao
ginecologista Ernst Gräfenberg – porra, outro fucking German!), o auge do prazer
sexual, um belo e portentoso jacto de líquido seminal, cor de leite, esbranquiçado e
fecundante (para os que fecundam), pólen da vida, o milagre da germinação. É que
remetido para a lascívia mental, Penha percebeu que mais facilmente se vinha a
masturbar-se com os olhos postos num qualquer vídeo porno na web do que durante um
broche ou fosse lá o que fosse. De resto, preferia até que lhe batessem uma punheta. E
talvez até fizesse algum sentido. O cabrão de um outro médico germânico afirmava que
masturbar-se ou fazer sexo (não é clara aqui a distinção) pelo menos uma vez por
semana ajuda no desenvolvimento do ponto G e evita doenças de pele, além de
promover o combate contra os diabetes e certos males que atacam o coração.
(Web Forum: Depois de ler por aí que o ponto G da mulher está no ouvido, não duvido
de mais nada)
Tiago lembrava-se de um episódio recente em que, perante tanta dificuldade em vir-se,
a punheta que alguém se sentiu na obrigação de lhe bater foi tão prolongada e violenta
que acordou no dia seguinte aterrorizado a olhar para a estranha batata intumescente que
ocupava o lugar do pénis. Chegou mesmo a considerar a hipótese de procurar um
médico de tão feia que estava a coisa. Felizmente que o pinto lá acabou por voltar à
volumetria normal dois ou três dias depois. Dois ou três longos dias de observações
permanentes e atentas àquele tubérculo intrusivo que não parecia querer desaparecer.
Definitivamente o processo estava a ficar demasiado intricado na cabeça, a que pensa.
Numa palavra, acabou por render-se à evidência de que já preferia bater punhetas a
foder. Aliás, tinha mesmo que controlar-se para evitar a ejaculação precoce, o que
evidentemente lhe parecia um paradoxo abjecto. Caso contrário, vinha-se em poucos
minutos. Bastava uma olhadela para uma foda à cão, um cu de mulher, não daqueles
rabos escanzelados, sem curvas. Uma bela foda a pegar de quatro com uma bunda cheia,
arredondada, daquelas que se conseguem agarrar com a mão sem sentir os ossos das
ancas, mas sim carne, carne de mulher. Esta tornou-se, de resto, a sua posição preferida.
Tanto na net, quando batia punhetas – algo que misteriosamente até conseguia fazer
duas ou três vezes por dia, sempre a vir-se em minutos, se bem que à terceira já só lhe
saísse uma pequena aguadilha – ou na cama como uma mulher, não uma qualquer –
havia começado a ser mais selectivo, na verdade mais cuidadoso para evitar estar com
quem pudesse brochar para não passar por embaraços desnecessários, embora alegasse
que apenas queria mulheres que reunissem os requisitos básicos, ou seja, um belo cu
cheio de carne.
Ainda assim, exigia-se certas cautelas, ou não lhe fosse suceder o mesmo que a um
adolescente de dezasseis anos, do interior do estado de Goiás, antiga morada da
comunidade indígena guaiá, no centro sul do Brasil, que morreu após ter batido
quarenta e duas punhetas sem parar num espaço de vinte e quatro horas. Está tudo
documentado num jornal local: «O adolescente virou a noite toda fazendo sequências de
masturbação sem dar intervalo. Terminava uma e começa outra. No seu computador foi
encontrado cerca de dezassete milhões de vídeo eróticos e seiscentos milhões de fotos
de mulheres nuas ou fazendo sexo.»
57
(Web Forum: Ay Dios mio, que cosa mas extraña? Comentário no masculino: Que
saudades de quando era criança! Tanta proibição, que certos actos se tornavam
maravilhosos. A que se segue uma outra observação: Mas é óbvio. Todos começaram
assim, e os homens principalmente. Não há que ter vergonha de dizer que um dia
tivemos as nossas descobertas. É biológico)
Senti-las molhadas também ajudava. Desde que não exalassem odores desagradáveis.
Nada melhor do que uma pachacha bem oleada. Das muitas mulheres de passagem com
que Tiago Penha fez sexo, houve uma que o surpreendeu particularmente nessa matéria.
Nunca tinha estado com alguém que lubrificasse a vagina daquela forma. A princípio
excitou-o profundamente, mas depois a coisa complicou-se. O cheiro era demasiado
intenso e a sensação de que por ali escorregava tudo, não importava o tamanho, fê-lo
brochar. Ela bem se esforçou com a sua longa chupadela. Abocanhava-o diligentemente,
apertando bem o pénis entre os lábios que faziam subir e descer o prepúcio. Se lhe
tocasse na vulva, a boca tornava-se ainda mais competente. Tinha o pénis cheio de
saliva, de cuspo. Mesmo com os gemidos dela, cuja intensidade aumentava à medida
que lhe enfiava os dedos e, por fim, até o punho pela vagina adentro. Foi demais para
ele.
Foi gozação mesmo... Muita gozação! Em excesso, mata!
Mais valia bater uma punheta; ele próprio bater uma punheta. A mulher ainda se pôs de
gatas, esfregou-se toda nele, com uma saraivada de ais e come-me, fode-me, quero
chupar-te o pinto e beber toda essa porra que está para sair, ou esporra, porque porra
tanto pode ser esperma como irritação, sémen como desagrado, mas Penha acabou por
confrontar-se, humilhado, com a porra do pénis a murchar, o que quer dizer com a
esporra a mirrar de tanta cólera e acerbo que a rondava. Uma gaja esbraseada a seu lado
e ele só pensava em bater uma punheta para se vir e acabar de vez com aquela merda.
Dizem que, para que a vida sexual entre um casal funcione, a mulher deve ser uma puta
na cama; mas o certo é que com uma puta daquelas, pois na verdade ela estava a
comportar-se como tal sem o ser contudo, a porra do sexo não estava a funcionar. Bem
pelo contrário; a um dado momento, até se sentiu enojado. Mais: a puta ali era ele
próprio, a fazer o frete do exibicionismo machista da virilidade, quando o que desejava
era pôr-se a milhas dali.
Voltou a questionar-se: as putas também amam? Se assim é, a única puta que anda aqui
sou eu próprio que pago para oferecer o meu corpo. Mas pra quê? Se tudo é fingido, se a
função é fazer vir o cliente, por que razão o cliente insiste em querer fazer com que a
puta se venha, quando sabe que é tudo uma encenação, quando sabe que é ele próprio
quem não é capaz de se vir?
Foi assim que Tiago Penha se apercebeu, com uma enorme sensação de frustração, de
que tinha atingido uma idade em que a mais velha profissão do mundo já não lhe
bastava.
(Web Forum: Que emoção ler este fragmento… A vida e as suas transformações)
Um desconchavo, pela simples razão de que não valia a pena evocar o amor, ele que só
conseguia amar quando ambicionava concretizar o desejo de sexo. A vontade de se vir.
Era, aliás, mais do que uma vontade; era uma necessidade. Se não ejaculasse todos os
dias, fosse de que forma fosse, era acometido por ataques de perversão. Via sexo em
tudo, até nas menores, dessas quase a atingir a emancipação, ou talvez não, que hoje já
não se percebe a idade de tão cedo que elas se produzem e reproduzem, algo que, ainda
assim, Tiago sempre havia repudiado. Sexo sim, mas com mulheres crescidas e
devidamente vacinadas. O problema é que sentia a verga a agitar-se dentro das calças
mal via uma fêmea. Desde que fosse da classe dos mamíferos e humana, bem entendido.
O par de mamas que adivinhava por baixo de uma camisola, um fio dental a comer as
58
nádegas de um rabo mais visível por força de uma qualquer vestimenta transparente, o
cheiro do corpo de mulher, um sorriso, a pele, um olhar mais atrevido ou intenso, com
poder de sugestão, mesmo que não passasse de uma mera invenção dele.
Estaria a resvalar para um qualquer problema de natureza mental? Desvios sexuais
como manifestação de distúrbios psiquiátricos? Afinal, que raio de loucura poderia ter
ele, um homem com um largo e forte sentido de pragmatismo, que sempre se sentira
são, às vezes até demais, para quem não havia dúvidas de que tudo se reduzia à ideia de
preto no branco? Ou seria branco no preto? Um quadrado preto no chão coberto por um
tapete de mármore axadrezado com uma mancha escura e viscosa a deslizar
vagarosamente? E o corpo de Penha caído por terra? Após ter sentido uma dor profunda
e lancinante no maxilar inferior e uma pancada violenta no estômago, ao som do toque
de tambores, um frenesim melódico do tipo tribal, e gargalhadas dementes, tudo sob a
presença de uma essência odorífera genital complexa e intensa resultante de um cocktail
de esperma e líquidos vaginais? Com dezenas de homens e mulheres, amontoados
desordenadamente, a copular de modo desenfreado, uns em cima dos outros, selvagens,
uma orgia alucinante e infernal?
Curioso: tudo isto por causa de Berlim?
Diz-nos a História que, tal como o colono branco receava o negro, tentando pôr cobro
ao seu terror de insurreição com a imposição da humilhação – a escravatura – e a
diabolização da mesma, Maquiavel bem mostrou o caminho (com o beneplácito de
Napoleão, mais tarde), também Hitler adoptou uma estratégia semelhante, de que pode
ser exemplo uma afirmação doutrinária extraída do seu maldito «Mein Kampf»: «De um
corpo gangrenado, mesmo servido por um brilhante espírito, nada de grande é lícito
esperar».
Ao olhar para os israelitas quando assinalam o seu Holocaust Remembrance Day, em
memória dos seis milhões de judeus assassinados pelos nazis durante a Segunda Grande
Guerra, parecem ser mais que aceitáveis os equívocos que afirmações destas podem
gerar. Contudo, fica a dúvida: não será censurável a “censura” sobre um objecto
ideológico que conduzia, entre muitas outras coisas censuráveis, justamente à censura?
Expurgando a dimensão diabólica do nacional-socialismo alemão, o nazismo, não terá
sido Hitler bastante certeiro aqui?
Na literatura, «Lolita», de Vladimir Nabokov, tanto foi considerado como um dos
melhores romances do século vinte como um devaneio literário de um “pedófilo”. Com
«Partículas Elementares», Michel Houellebecq tanto foi acusado de defender a
integração dos muçulmanos “assimilados” na sociedade francesa, escreveram alguns
críticos mais moderados (provocando reacções violentas entre os sectores
conservadores), como por preconizar uma total desagregação da sociedade humana pela
via de uma segregação radical de natureza darwinista. Mas Houellebecq não ficou por
aqui. Com «Plataforma», choveram novas críticas por supostamente o autor francês
promover e exaltar o turismo sexual em países asiáticos como a Tailândia. Em ambos os
casos, apenas para citar dois, ninguém saiu a público para agitar a bandeira de persona
non grata, não obstante problemáticas como a pedofilia ou a segregação racial serem
profundamente sensíveis e susceptíveis de grandes ódios. Para aqueles que se sentiram
visados ou não, para aqueles que se sentiram ofendidos ou não, a tolerância perante
vozes dissonantes foi mais forte. Até porque Nabokov e Houellebecq pagaram, ou
pagam, o posicionamento do que quiseram afirmar. O mesmo já não se pode dizer de
Salman Rushdie. Khomeini decidiu “condená-lo” à morte porque não gostou do que leu
nos «Versículos Satânicos». A história é célebre e não vale a pena repeti-la. O mundo
islâmico foi convidado à intolerância.
59
No cinema, Stanley Kubrick foi criticado por promover a violência e traçar um quadro
pessimista sobre a dimensão animalesca dos seres humanos, enquanto uma condenação
e uma componente “incurável” da condição humana em «Laranja Mecânica». Já
Sylvester Stallone, com a saga «Rambo», optou por mostrar mercenários sanguinários
que lutam heróica e estoicamente para salvar cristãos às mãos dos infiéis (que por aí
andam nestes países subdesenvolvidos e “fanáticos”, fora do Mundo Ocidental, claro
está). Muitos mais poderiam ser os exemplos, mas que se cite apenas estes dois. Em
ambos os casos, ninguém saiu a público para agitar a bandeira de persona non grata,
não obstante problemáticas como a violência gratuita e a selvajaria contra seres
humanos, em nome de valores nem por todos partilhados, serem profundamente
sensíveis e susceptíveis de grandes ódios. Há quem goste, há quem não goste. Kubrick e
Stallone pagaram e pagam a factura. O mesmo já não se pode dizer de «O Código Da
Vinci», de Ron Howard, que antes de chegar a Cannes provocou tumultos e boicotes em
vários locais onde foi exibido, tal como havia sucedido dois anos antes, em dois mil e
quatro, com «A Paixão de Cristo», de Mel Gibson. O que provocou tanta polémica? Os
ataques ao cristianismo? Ou a intolerância a falar mais alto perante alguém que ousa em
desafinar? O cineasta soviético Andrey Tarkovsky terá sentido o mesmo ao ser
cilindrado pela crítica em mil novecentos e sessenta e dois no Festival de Cinema de
Veneza após a projecção de «A Infância de Ivan». De que tratava o filme? Dos traumas
nas crianças causados pela Segunda Grande Guerra. O problema é que o enredo centrase numa família soviética… Sartre teve de sair a terreiro para defender Tarkovsky. O
que também não foi uma grande ajuda, porque o célebre filósofo francês era um homem
de esquerda. E uma boa parte dos italianos, decerto verdadeiros e convictos filhos de
Mussolini, não perdoou. Mostrando o quão intolerante poderá ser a paixão por causas.
Perante tudo isto, por que razão, afinal, Lars von Trier foi considerado uma persona non
grata na edição de dois mil e onze do Festival de Cinema de Cannes? Falou-se em
boicotes, censura, proibição da exibição do seu novo filme, «Melancholia». Por quê?
Porque o realizador confessou que até compreende o ponto de vista dos alemães que
viveram a exaltação da grande Nação impulsionada por Hitler, após a humilhação
imposta pela Primeira Grande Guerra. E deixou escapar uma certa admiração pelo
nazismo. As afirmações são condenáveis pelo que do nacional-socialismo resultou.
Inaceitáveis para quem tem, como artista, responsabilidades acrescidas em razão da
maior capacidade em influenciar a opinião pública. Mas há uma lógica no argumento de
Lars von Trier, não obstante tratar-se de uma problemática profundamente sensível.
Contudo, a intolerância voltou a falar mais alto perante alguém que ousa em desafinar.
Não deveria Lars von Trier pagar a factura tal como Nabokov, Houellebecq, Kubrick ou
Stallone? Negar a liberdade de expressão é negar um dos valores fundamentais da
sociedade livre que o Mundo Ocidental acredita defender. Se age com as contradições
do fundamentalismo que tanto condena, quando o tema é tabu, em que difere daqueles
que tanto critica?
(Web Forum: Só existirá uma sociedade verdadeiramente livre quando cada ser
humano adquirir uma consciência planetária. Réplica: Ou um Governo planetário, o
que não passa de uma utopia. Aliás, mesmo que fosse possível, já se viu no resulta. Os
soviéticos bem tentaram… E um novo comentário: O problema está em validar e
aplicar para todos o que parece ser bom para alguns. Com mais uma réplica, desta vez
em castelhano: Hay dos entidades que, a estos efectos, se contraponen: el interes social
y la dignidad humana. El progreso del interes social, muchas veces y solo en teoria,
exige el sacrificio de los intereses individuales. Sobre este tema, Bertrand Russell
escribio un libro en el cual planteaba la posibilidad de una sociedad cientifica, un
Estado mundial tecnocrata, y justamente Russell invita a pensar en la injusticia que
60
seria asesinar a las personas debiles o enfermas por el mero hecho de serlo y con la
excusa del bien comum. Abre-se uma nova frente no debate: Platão e Aristóteles
admitiam que matar pessoas com deficiência e enfermas seria coerente com a visão de
equilíbrio demográfico, aristocrático e elitista, principalmente quando a pessoa com
deficiência fosse dependente economicamente. A que se segue uma citação do filósofo
grego: “Quanto aos corpos de constituição doentia, não lhes prolongava a vida e os
sofrimentos com tratamentos e purgações regradas, que poriam em condições de se
reproduzirem em outros seres fadados, certamente, a serem iguais aos seus
progenitores (...) Também que não deveria curar os que por frágeis de compleição, não
podem chegar ao limite natural da vida, porque isso nem é vantajoso a eles nem ao
Estado”, Platão, 429-347 a.C. Observações finais: Se mapearem a história com a visão
matemática perceberão que absolutamente nada mudou, ainda que a tecnologia seja
um estandarte contemporâneo. E a segunda: A exclusão também pode ser uma
solução... Tudo o que é diferente ou que receamos tem um destino: o dever de morrer)
Uma discussão controversa, só falta pôr Rochefoucauld a falar através de aforismos
como “nous avons tous assez de force pour supporter les maux d'autrui” ou “everything
is reducible to the motive of self-interest”, mas impõe-se trazer de volta o dilema da
censura. E Lars von Trier, o móbil de tanta discórdia. Afinal, anti-semita ou vítima das
contradições do mesmo fundamentalismo que o condena? É que, bem vistas coisas, o
cineasta dinamarquês não trouxe nada de novo. O mesmo Lars von Trier já havia
causado controvérsia em Cannes, dois anos antes, ao apresentar «Anticristo», filme que
acabaria por valer a Charlotte Gainsbourg a distinção como Melhor Actriz, apesar da
crítica contra a película ter sido violenta. Ainda assim, Cannes sempre mostrou ter uma
profunda admiração por este cineasta. Em mil novecentos e oitenta e quatro, Lars von
Trier ganhou o seu primeiro prémio no festival com «Forbrydelsens Element». O
mesmo aconteceu em mil novecentos e noventa um com «Europa»; em mil novecentos
e noventa e seis com «Ondas de Paixão»; em mil novecentos e noventa e oito com «Os
Idiotas»; em dois mil com «Dancer in the Dark»; em dois mil e três com «Dogville»;
em dois mil e cinco com «Manderlay»; em dois mil e nove com «Anticristo»; e em dois
mil e onze com «Melancholia». Todos os filmes, sem excepção, foram candidatos à
Palma de Ouro. Uma foi conquistada em dois mil com o musical «Dancer in the Dark».
O que mudou desde então? O discurso de Lars von Trier ou o nível de tolerância num
mundo assustado por poderes erráticos, que vê ameaças ao dobrar de cada esquina? Não
será isto que David Moody quis avisar no seu romance «Ódio»? Que vivemos no dilema
do medo, da necessidade de matar antes que nos matem?
Apesar da problemática estar a jusante na narrativa, o que quer dizer no futuro, numa
etapa temporal mais recente do que aquela em que Tiago Penha se localizava de
momento, era algo, porém, em que ele andava já a meditar. Especialmente depois do
incidente com a Polícia Militar em São Paulo. O fórum de discussão na web ainda não
existia para ele, mas era como se existisse, porquanto todas aquelas palavras bailavam
com frequência no seu pensamento. Como estava a acontecer naquele preciso instante.
Uma coincidência notável, com Tiago sentado à secretária de frente para o seu laptop.
Só nada escreveu porque ainda não havia chegado esse tempo, na narrativa, insiste-se.
Mas foi a cogitar sobre o dilema do medo e o ódio que abandonou a secretária para se
sentar no sofá, mesmo ao lado. Acendeu um cigarro e pôs-se a olhar pela janela, sem
ver, o manto de nuvens negras e encrespadas no céu, mordido por milhares de antenas
no topo dos arranha-céus que se acotovelam nos bairros contíguos à avenida Paulista e a
azáfama de helicópteros que passam o dia a sobrevoar a cidade.
Estava hospedado há já alguns meses naquele pequeno apartamento de duas divisões no
último piso do hotel, o décimo nono, em Bela Vista, que deveria ter uma área de trinta a
61
trinta e cinco metros quadrados: um quarto com cama de casal e uma janela a toda a
largura do mesmo, de vidros duplos; e uma pequena sala, que se podia tornar
independente se estivessem fechadas as portas de correr, equipada com um fogão
eléctrico, um forno de microondas, máquina de café de coador (como manda a tradição
brasileira) e armários de cozinha, com louças e talheres para duas pessoas, mais acesso à
Internet, ar condicionado, televisão por cabo e um segundo sofá individual giratório.
Além da secretária e do sofá de dois lugares, onde se encontrava agora afundado, existia
uma segunda janela, a tal que lhe fez perder o olhar, que ocupava igualmente toda a
largura da sala. O quarto possuía ainda uma outra porta lateral, que dava acesso a um
pequeno vestíbulo, com a parede totalmente espelhada, entre a sala e a casa de banho. A
decoração era simples, sóbria e moderna, onde predominavam tons beges. Com efeito,
todo o flat era muito confortável e tinha um certo ar de luxo, ou não fossem os
aposentos parte integrante de um hotel de quatro estrelas. Para Penha, já era quase como
a sua casa. De tal modo, que até sentia saudades sempre que se ausentava. Como havia
acontecido na semana anterior. Em Buenos Aires.
Tiago havia voltado ao Brasil naquela manhã, via Guarulhos. Simão Saraiva permanecia
em Ushuaia, La Ciudad del Fin del Mundo. Simão e muito provavelmente o revólver,
sempre por perto, bem aconchegado a ele.
62
IX.
Foi ela quem ligou. Para o novo telemóvel de Tiago Penha. Agora argentino, que
roaming era coisa que de ele fugia a sete pés, embora esteja ainda por demonstrar como
pode um homo sapiens correr de tal forma sendo bípede. Ela, a de olhos verdes, a filha
da Tierra del Fuego que havia estado em Recife, no Brasil, ainda com essa aventura em
terras de Vera Cruz por contar, algumas horas depois, no início da tarde. Esgotado o
descanso após o reboliço da madrugada anterior na boate sem nome, casa de putedo
situada algures em Buenos Aires, talvez em La Recoleta, os porteños dizem que é o
melhor da cidade, morada de chicas, tal como Penha havia pedido ao taxista à saída de
um restaurante em Palermo (por sinal bastante solícito, mas apenas quando percebeu
que o gringo não era brasileiro, mas português, da terra do fado, do sentimento e do
destino, e não da arena de meretrizes tresmalhadas, cabritas, que nem são pretas nem
índias, sem aquele savoir-faire, o charme sedutor e diabólico do velho continente), mas
não se lembrava, nem queria se lembrar, não umas chicas quaisquer, mas daquelas
cabras que chupan el pitos, de preferência putas tristes sem memória, embora possam
ser de extremos, putas de primeira muito baratas a cobrar cento e cinquenta pesos e
outras muito caras a pedir trezentos dólares, haviam trocado os números de telemóvel,
tinha cabelos loiros e parecia-lhe bonita, realmente bonita, sensual, alguém que Tiago
podia amar.
(Web Forum: Recomendo a Agustina, atende próximo da Galeria Pacífico, na rua 5 de
Mayo, quase esquina com a Cordoba, por cinquenta e cinco dólares, bandou bem no
oral e beija forte, ainda fez uma massagem nos pés no fim, sem frescura e sem neuras,
no Brasil uma puta dessas me cobraria algo em torno de cento e cinquenta a duzentos
reais. Segue-se outro depoimento: Tem a Sheila também, mas aí marquei tudo pelo
MSN, a foto não corresponde a ela, o que foi uma surpresa agradável, pois é muito
mais bonita do que na foto, ela não é tão branca como a modelo da foto, e os seios são
siliconados, diz ela que colocou há dois meses, novinhos em folha, é magrinha do tipo
mignon, tem uma bunda jeitosa nem grande nem pequena, muito simpática, começou
fazendo um senhor boquete, no começo parecia que não ia ser bom, foi devagarinho,
devagarinho, até que se mostrou uma boqueteira de primeira, pelo jeito gosta da coisa,
começou a gemer, e ficou toda molhadinha, tem uma ótima lubrificação natural,
colocou a camisinha e veio por cima, ficou um pouco e ela mesmo sugeriu a mudança
de posição, peguei de quatro, geme bastante, finalizei a primeira aí, um pouco de
conversa, e me mandou para o banho para o segundo round, mais um pouco daquele
boquete maravilhoso, camisinha e fomos para o papai-mamãe, no começo devagarinho,
aí peguei ela firme e levantei a bunda dela, começou a rebolar igual uma louca, tudo
indica que gozou, vai saber, né? Grande puta é sempre grande puta, profissional,
finalizei e relaxei total, ainda ficou mais um tempo jogando conversa fora, apesar de
marcarmos uma hora, ela não regula no tempo, pelo preço acho que compensa. E um
aviso com muitas palavras em caixa alta: Cuidado, Buenos Aires não é para
principiantes, fui lá na semana passada com um amigo, logo após nossa chegada ao
63
hotel saímos para andar e tomar uma cerveja, tinha um privê na mesma rua do hotel, e
um cara nos abordou, mostrou um folheto e insistiu para que entrássemos para
conhecer o local, dissemos que no momento não e fomos embora, na volta o mesmo
cara nos abordou novamente, e começou a insistir para que a gente entrasse para ver,
falámos que tínhamos que ir primeiro ao hotel, mas o cara insistiu tanto falando que
era sem compromisso, somente mesmo para conhecer que entrámos pela porta e
subimos uma escada até o local, chegando lá, já veio duas putas feias e nos puxou para
um salinha, nós falamos que não íamos fazer programa, só entrámos para conhecer o
local, para não desagradar as chicas, falámos para elas que iríamos ao hotel pegar
dinheiro e que voltaríamos, claro que não íamos voltar, naquele momento, chegou
bebidas pra nós e para as putas, falámos que não pedimos bebida alguma, e que
estávamos de saída, um cara nos abordou e disse que tínhamos que pagar a bebida e a
hora das garotas, o valor da bebida, coca-cola, quatrocentos e vinte pesos, equivalente
a duzentos e dez reais e mais o tempo da garota, somando seiscentos pesos equivalente
a trezentos reais cada um, ou seja seiscentos reais os dois, falámos que não fizemos
programa e nem pedimos bebida, mas não deixaram a gente sair se não pagasse o
valor, ficámos com medo do que poderia acontecer e decidimos pagar e sair fora, só
que não tínhamos tanto pesos, e o cara falou que aceitava real, quando fui fazer as
contas, pois o real vale o dobro do peso, ele falou que a cotação deles era um por um,
ou seja um peso por um real, daí começámos a discutir, pois ia levar toda grana da
nossa carteira, mas por estar num lugar distante, e sem saber o que podia acontecer ali
dentro, esvaziámos as carteiras e fomos embora, acredito que não só este privê, mas
vários aplicam este tipo de golpe em estrangeiros, então muito cuidado!)
— Hola, mi amor. Quieres ir a tomar una copa y hablar? — ouviu Tiago do outro lado
da linha, a voz ainda sonolenta mas com um toque de meiguice, a sério ou a fingir, que
dólares ou pesos argentinos também compram sonhos e fantasias.
— Que bom teres ligado. Tencionava fazê-lo também, mais tarde, quando acordasse.
— Estabas durmiendo? Perdóname. Yo no sabía — disse ela, agora com a voz um
pouco mais clara.
— Não faz mal. Já estava na hora de acordar mesmo. Mas olha, não vais trabalhar? Ou é
um encontro para fazer tempo?
— Que dices?
— Não vais trabalhar hoje? — repetiu Penha.
— Hoy no, yo quiero estar contigo.
— Como queres fazer? Vens aqui ter ou encontramo-nos nalgum lugar?
— Sabes dónde está la Plaza Cortázar? Es muy bonito. Muchos bares y restaurantes. Se
encuentra cerca de teu hotel.
— Sabes onde fica o meu hotel?!
— Sí, has me dijo. En Palermo Soho. No te acuerdas?
— Okay — sossegou Tiago, recordando-se dos prazeres do Cabernet Sauvignon e do
uísque. — Eu dou com o lugar. A que horas?
— Bueno, cuando quieras.
— Deixa-me ver que horas são — e esticou-se para a mesa-de-cabeceira para agarrar no
relógio de pulso. Passavam já das cinco da tarde. — Às sete? — propôs.
— Sí, puede ser. Voy a estar na esplanada de un bar. Se puede ver facilmente.
— Combinado.
Penha desligou o telefone e voltou a estender-se na cama, pondo-se a observar o quarto,
como se fosse a primeira vez. Simples, pequeno, um tanto ao quanto claustrofóbico.
Com a porta e uma janela viradas para um terraço, onde se podia fumar, que na
Argentina também a lei anti-tabaco estava a fazer as primeiras mossas, apesar do olhar
64
reprovador das recepcionistas (durante o dia eram sempre duas), não havia um único
cinzeiro cá fora, naquele rectângulo a espaço aberto, cercado por cubos de quartos,
todos iguais, um hotel em forma de soft loft de dois andares, colorido e sofisticado, caro
mas pouco acolhedor. Porém, estava bem situado. E bastante policiado. O hotel bem
como a malha de ruas dispostas em quadrados lá fora.
Estranho. Deveria ter sido ele a telefonar e não ela. Se para aí estivesse virado.
Supostamente, na noite anterior, tudo não havia passado da encenação do costume a
troco de pesos, reais ou dólares. Ou também ali a condição de gringo pesaria assim
tanto nas regras da atracção? Evidentemente que sim. E mais: agora falava apenas em
castelhano; o pouco do português do Brasil que metia na conversa de vez em quando
havia desaparecido por completo. Estaria ela fora de serviço ou haveria um novo
taxímetro à espera dele? Pelo menos assertividade não lhe faltara.
Depois de ter olhado para o mapa de Palermo e pedir informações na recepção do hotel,
a Plaza Cortázar parecia de facto não estar muito longe. Sempre a direito. Mas quando
deu por si, precisou de quase uma hora a pé para lá chegar. Em cada esquina, um polícia
ou mais, alguém lhe havia dito que muitas telenovelas argentinas são rodadas naquele
bairro, e nas ruas uma tranquilidade absoluta, mas também inquietante, cada vez mais
tensa à medida que a noite começava a assomar. A noite e o mundo da noite. Ou a noite
do mundo na qual aos poucos, em tempos idos, mergulhava uma carga insana sem rumo
de dementes, escorraçados dos muros das cidades, uma nau de leprosos – os incuráveis
e loucos do mundo medieval, que seriam substituídos pelas vítimas de doenças venéreas
no mundo clássico – à deriva pelo mar, a deambular sem norte. A “Narrenschiff” de
Brant ou a “Nau dos Loucos” de Bosch, transformadas agora nas cargas migratórias
céleres, com ida e volta, de outros depositários da cegueira, vítimas ou carrascos – já
nem vinha ao caso – da célebre política de aquartelamento social a baixo custo para
arrumar os desalinhados. Favelas, mosseques, ali chamavam-se villas de emergência ou
asentamientos, conglomerados de miséria, de pobreza mas também de avareza, tão
mesquinha quanto cega, a cegueira feita de escassos recursos, onde cada um tem de dar
um jeito, e que se lixem as ONGs, os direitos humanos e todos os projectos de
reabilitação, reinserção ou regeneração, porque o ódio é ancestral e a medida da
capacidade de mudança, afinal uma forma de vida para a qual não há fórmulas nem
modelos nem tipologias que se apliquem, que sejam eficazes, roubar ou matar pode ser
pecado, mas enche o estômago, mesmo que barriga cheia signifique cabeça vazia, tanto
mais que crime foi a aliança com Hitler, para acolher na rua Garibaldi, no bairro de San
Fernando, Ricardo Klement, nome falso de Adolf Eichmann – descobriu o Mossad – um
escândalo, guarida secreta ao burocrata nazi que desenhou a Endlösung der Judenfrage,
a solução final para o genocídio dos judeus, já para não falar das sucessivas ditaduras
militares e do general José Félix Uriburu, e dos generais Arturo Rawson, Pedro Pablo
Ramírez e Edelmiro Farrell, e dos generais Eduardo Lonardi e Pedro Eugenio
Aramburu, e de José María Guido, e dos generais Juan Carlos Onganía, Marcelo
Levingston e Alejandro Lanusse, e do general Jorge Rafael Videla, e do general
Reynaldo Benito Bignone. Não admira que a taxa de criminalidade seja tão elevada e
que inclua super-heróis, como os homens-aranha, os célebres assaltantes argentinos que
escalam torres de apartamentos para invadir os domicílios de gente pobre, mas não
tanto, caso não encontrem um gradeamento na janela de um vigésimo quinto ou
trigésimo andar.
Desnecessário será dizer que a história é a mesma em cidades como São Paulo ou Rio
de Janeiro. O que difere são as expressões que designam estas actividades, como os
tiroteios frequentes na “faixa de Gaza”, em rigor no bairro de Manguinhos, na zona
65
norte da capital carioca, ou os “arrastões” no túnel da Rocinha, na zona sul, a ligação
rodoviária mais rápida entre as áreas nobres do Leblon e Ipanema e a Barra da Tijuca.
Ao chegar por fim à Plaza Cortázar, Tiago Penha não precisou de muito tempo para
descobrir a filha da Tierra del Fuego sentada de perna traçada numa pequena esplanada
à porta de um bar, tal como ela havia descrito. Com botas de cabedal (talvez demasiado
quentes para aquela época do ano, início do Verão austral), collants, minissaia e um
blusão reduzido de pele com o fecho puxado até acima, deixando ver apenas as pontas
de uma camisa branca em baixo, que se agitavam suavemente ao sabor da brisa ligeira
que corria pela praça. A única cor de contraste naquele conjunto dominado
integralmente pelo preto. Uma decisão cromática para opor mistério à inocência, a
incerteza do infinito à pureza. É que o preto evoca uma força feminina passiva e
enigmática, associada ao constrangimento, à solidão, ao isolamento. Já o branco remete
para ideias aprazíveis como a virgindade, no sentido da genuinidade e diafaneidade, e
perfeição, apesar de envolver também a solitude, tal como o preto, e a frieza, o que
sugere tibieza e, por conseguinte, fraqueza.
Que impressão poderia querer ela dar Tiago não sabia, se é que tencionava dizer de
facto alguma coisa, com o que escolhera para vestir. De resto, Penha estava mais
interessado na linguagem corporal e nas mensagens que talvez conseguisse captar
através daqueles olhos verdes brilhantes e intensos, vistos agora, não propriamente à luz
do dia, que havia já anoitecido de novo, mas pelo menos afastado do elogio das
memórias tristes de um privê de diversão nocturna, reservado a adultos destemidos que
coram de vergonha quando se torna público que, para foder, precisam de pagar. É claro
que neste devir dos apetites do contacto humano – entre a sedução, a eventual paixão e
porventura amor, e a necessidade biológica primária da peleja de corpos contra corpos –
há sempre um preço a pagar. Que até pode ser bem mais ostensível e proibitivo se
ocorre haver emoções que se prestam a cobranças extra. E nem os argumentos do
consentimento ou do arrebatamento lírico servem para iludir o problema. Na verdade,
em matéria de suprimento de necessidades biológicas, a diferença é só uma: o papel que
os protagonistas decidem assumir; o de animal, puro e verdadeiro, igual a si próprio, ou
o do falso animal, que tenta arguir razões que lhe permitam aspirar à proximidade com
uma entidade superior, não terrena, e de certo modo etérea. Numa palavra, qual é o
preço do galanteio, da fineza, da amabilidade, do obséquio? É tudo uma questão de
aritmética: trezentos dólares num privé ou a soma das contas do restaurante, do bar ou
discoteca e do quarto de hotel?
(Web Forum: A economia dos afectos parece não dar conta de medir essa fome animal,
de bichos que devoram a própria natureza, comentário no feminino)
— Te gusta? — perguntou ela em jeito de saudação, quando Penha se sentou junto à
pequena mesa à porta do bar, redonda, tão acanhada e diminuta que parecia ter sido feita
propositadamente para os fulgores dos amantes, os dois quase colados um ao outro, com
as pernas a roçarem-se, quer dizer, a esfregarem-se e prestes a encaixarem-se como acto
sexual de exemplar harmonia anatómica.
Os rostos, esses, estavam a escassos centímetros um do outro; Tiago sentia-lhe o hálito,
mergulhava no brilho dos olhos dela e podia beijá-la sem praticamente se mexer na
cadeira.
— Sim — respondeu ele finalmente, sublinhando a aquiescência com a cabeça. —
Muito! — acrescentou, imprimindo na voz um tom que podia ser entendido em vários
sentidos.
Penha pediu uma cerveja e acendeu um cigarro, tabaco norte-americano, que os locais
são intragáveis, imitando-a, se bem que ela tivesse já o copo a meio e três garrafas
vazias em cima da mesa, além de um cinzeiro cheio de beatas, o que fazia pressupor que
66
teria chegado há já algum tempo. Pelo menos não eram garrafas de um litro, de Brahma
ou Bohemia, que tanto o haviam surpreendido em São Paulo na primeira vez em que
saiu para tomar um chope, qual chope qual carapuça, que aquilo era mais uma maratona
de fim de tarde com corridas de cinco em cinco minutos para mijar, não é que sentisse o
estômago pesado, que o calor convida a ingerir muitos líquidos e aquelas cervejas
cumprem bem a função, mas a bexiga tem limites, especialmente a lusitana, até porque
em terras de iberos, misturados com celtas, fenícios, gregos e cartagineses, o que conta é
a pança, já dizia Cervantes, porque dá nas vistas, e não a formusura das vísceras, que
não se vêem.
— Es esta plaza el corazón del barrio que hoy se conoce como Palermo Soho, así
llamado gracias a la gran cantidad de artesanos y artistas que se concentran en este
lugar, especialmente los findes de semana, cuando un número importante de artistas
plásticos exponen sus obras — começou a explicar ela, demasiado depressa para a
capacidade de Tiago em compreender castelhano. — La placita, como se la conoce en la
zona, es además un centro de actividades culturales, de tiendas comerciales y de
diseñadores argentinos que marcan las pautas de las nuevas tendências — prosseguiu a
mulher, aparentemente sem se dar conta do problema da língua.
Penha olhou em redor e foi meneando com a cabeça em sinal de concordância, embora
lhe estivesse a escapar a maior parte do discurso.
— Es un buen lugar para los turistas.
— Não sou turista.
— Aquí es y tienes que actuar como un, tonto. Además tienes una atractiva mezcla de
bohemia y modernidad, se puede comprar, pasear, recalar en las atractivas propuestas de
bares y restaurantes.
Ela falava com paixão, vivacidade – e também como uma guia turístico – à medida que
estreitava ainda mais o contacto físico com Tiago. Era realmente bonita, sensual,
alguém que ele podia amar, não se cansava Penha de repetir nos seus pensamentos. O
que a teria levado a trabalhar na noite? E por que razão não se calava com a porra da
praça?
— Fue durante muchos años La plaza Serrano. Popularmente aún así se la llama,
aunque a partir de mil novecientos noventa y cuatro, adoptó el nombre de Plaza
Cortázar, al cumplirse diez años del fallecimiento del escritor argentino.
Referia-se a Julio Cortázar, mas Tiago nunca havia lido nada dele. Nem estava para aí
virado.
— Porque quiseste sair comigo? — atalhou Penha, para acabar com a aula de turismo, e
ir directo ao assunto.
— Como he dicho: tomar una copa y hablar. No podemos ser amigos? También
podemos hacer sexo, si quieres.
Tiago percebeu um relâmpago de aço a passar pelo olhar dela. Arrependeu-se
imediatamente de a ter interrompido. Porém, o gelo acabou por ser apenas um
vislumbre fugaz.
— Me quieres?
— Se te desejo?
— Sí — respondeu ela, com um sorriso.
Penha sorriu também enquanto fez um breve compasso de espera para tentar decifrar as
condições atmosféricas do olhar daquela mulher, que exalava, toda ela, um enlevo
inquietante. Sensação misteriosa para Tiago, pois a filha de Ushuaia não passava de
uma rameira. As putas também amam? O que faria Simão Saraiva?
— Muito — acabou Penha por dizer, novamente, pela segunda vez.
67
Se o amigo sentisse estar a ser vigiado por um chulo decerto que não hesitaria. Mesmo
que fosse muçulmano. Na verdade, havia atirado a matar, a sangue-frio, numa praia
virada para o Mar Arábico. Foram mil rupias para o galheiro. Como sempre, Saraiva
tinha recorrido aos seus engenhosos expedientes para obter o que desejava. Uma arma
havia já conseguido, mas daquela vez deu-lhe também para os prazeres exóticos da
diferença. É que ir para a cama com uma muçulmana ou uma hindu no subcontinente
indiano não é coisa que se faça todos os dias. Quer dizer, para um ocidental, que sexo
não faltará entre aquele fervilhar de saris, burkas e kurta pajamas, pelo menos garantem
os demógrafos, apesar de, em rigor, a sexologia não ser a sua especialidade. A verdade é
que Simão Saraiva estava determinado. E excluídas as servas goesas do Vaticano, que
essas conhecia bem, não as goesas mas as servas, calhou-lhe uma fiel islâmica, ou
quase, como se verá, o que até não foi mau de todo, em tempos de violência religiosa
em nome da supremacia hindu, que a pacificidade do sincretismo indiano não passa de
uma mentira turística, basta lembrar cinco atentados à bomba contra igrejas no espaço
de pouco meses, crimes contra o Estado (e a memória lusitana – vá-se lá saber se, ao
invés da inspiração anticolonialista ou da libertação nacionalista, não foi mais uma
manobra de diversão para mostrar à China quem manda, a exemplo do que sucedeu em
mil novecentos e sessenta e um com a queda das Terras do Fim do Mundo), dois padres
assassinados e um missionário católico australiano queimado vivo com os filhos, de oito
e dez anos, dentro do carro.
O negócio foi tratado no Galgibaga Beach, o tal hotel de cinco estrelas de uma cadeia
britânica, com acesso a uma praia privativa e saída de piroga para atravessar o estuário
do rio Talpona, quase no extremo sul daquele Estado. Na cidade de Panjim, em Nova
Goa, seria tudo mais fácil, excluindo o bairro das Fontainhas, que aí ainda se fala
português, de tão ocidentalizados que estão os costumes, os bons e os maus, embora os
homens continuem a não falar directamente para as mulheres estrangeiras, não se sabe
se por hábito, sob o peso da tradição esclavagista e talvez da lógica das castas, ou se por
crença secular de que a condição feminina situa-se ao nível da dos animais, já dizia
Deus Nosso Senhor, o que é estranho, porque são terras de tantos credos, as mulheres
indianas nisso são diferentes, pelo menos as servas do Vaticano, as outras ainda se
tapam com burkas ou saris, sempre cabisbaixas, impossível de lhes sacar um sorriso ou
um simples contacto de olhares, como será na hora da procriar?, talvez a coisa só se
aplique mesmo aos peregrinos estrangeiros e aos outros, que antes da República da
Índia, em Goa, primeiro são todos goeses, e depois talvez indianos, e a culpa é desses
oportunistas que de toda a União migram para ali à caça de libras e dólares. É claro que
afirmar que seria mais fácil em Panjim é querer aligeirar as coisas. Pode ser a mais
velha profissão do mundo, o que quer dizer que, além de velha, pratica-se à escala
planetária, por mais sagrados e imaculados que sejam alguns recantos da imensidão do
globo terrestre, mas Nova Goa não é propriamente Bollywood, lá para os lados de
Bombaim, mais a norte, ou Nova Deli. Ainda assim, o Bangladesh parece ser um bom
emissor de menores para actividades promíscuas na capital, a que se junta a vaga
migratória de prostitutas de toda a República bem como outras gentes de má rês, os
goondhas, vindos principalmente de Maharastra e Kerala, em busca das promessas das
economias informais, que droga não falta, e a procura é muita, já lá vão décadas de
ocupação hippie, desde os anos de mil novecentos e setenta, com as comunidades
perdidas da hippie trail, instaladas originalmente nas praias de Anjuna, Vagator ou
Calancute, em ambiente tropical e paradisíaco, que acabaram por atrair os acidfreaks
europeus e as subculturas do psy trance em nome de uma espécie de Ibiza asiática,
numa palavra, a Goa trance ao som do trance psicadélico.
68
(Web Forum: É uma vergonha. A beleza fulgurante de outrora, do tempo dos
portugueses, desapareceu das ruas dando lugar aos “garddos” onde até vendem
abertamente “guttka”, drogas proibidas por Lei. Os condutores nas ruas atropelam,
matam e fogem. Se forem apanhados são postos em liberdade aguardando um
julgamento que nunca chega a ter lugar. Segue-se outro comentário de indignação: Goa
foi invadida por todo o tipo de doenças. Infestam as ruas de Panjim, Mapuça e Margão.
Há pedintes por todo o lado a dormir nos passeios. E quando chega a época dos
turistas, o que brilha é o rio Mandovi com os seus barcos de cruzeiro engalanados com
luzes de néon onde não faltam cantares e danças aldrabadas de Portugal ao sabor de
música ruidosa e desafinada. Enquanto as famílias de goeses ficam sem água e luz)
Tiago Penha nunca soube bem como chegaram a vias de facto. Quer dizer, no negócio
para a prestação de serviços a horas tardias, que calhava bem para arrancar uns sorrisos
trocistas dos vigilantes e seguranças do Galgibaga Beach. Tinham acabado de vir do
hotel Mandovi, em Panjim, de uma reunião com executivos de uma empresa de
informática do Estado vizinho de Karnataka, num tuk-tuk vermelho, como eram
conhecidos os riquexós motorizados, um verdadeiro exército, com táxis à mistura, a
circular pela capital de Nova Goa, depois do preço devidamente regateado, se querem
cem oferece-se dez e a coisa fecha-se pelas quinze rupias, conduzido por um hindu
barbudo de tez escura, torrada, como grãos de café, decerto de uma casta inferior, com
os olhos vidrados, que àquela hora já deveria ter fumado mais de um quilo de erva,
sempre com um sorriso estampado na cara e a cabeça a abanar em jeito de não, mas que
quer dizer sim, um verdadeiro “nim”, e os portugueses é que trocam tudo, já não bastava
aquele odor intenso e agonizante a rosas a pairar por todo o lado, desde que Penha e
Saraiva haviam desembarcado no aeroporto de Dabolim, também chamado Vasco-daGama que passara a ser cognome e omisso, um fragância que aparentemente se deve à
forte presença de pau de sândalo, uma árvore da família das santaláceas, em rigor o
santalum album, alguém lhes explicou, embora estivesse por explicar como é o que o
raio do cheiro dos arbustos se entranhava na comida, no hotel até as pizzas sabiam a
rosas, e já não bastava aquele calor sufocante que arrastava consigo enxames de
mosquitos e o suor a escorrer pelo corpo durante todo o dia. Todo o dia e toda a noite. O
suor e a massa gordurosa de repelentes de insectos, nada devia ficar a descoberto, senão
ainda se era vítima de uma qualquer estranha e indesejável reacção encefálica, com o
crânio a inchar em forma de capuz caído sobre a testa, tipo «O Homem Elefante» de
Lynch, sucedera a um turista belga, que havia decidido andar a correr pela praia, sem
chapéu ou boné, atrás das vacas sagradas, uma garreada asiática que lhe valeu uma
corrida de táxi de trezentos quilómetros vindo algures do Norte para lhe trazer uma
lamela de comprimidos, que no hotel não havia e o médico britânico de serviço
desesperava com tão esparsos meios, com tantas diarreias e gente a ser encaminhada
para o hospital Bandare, à beira da desidratação ou de estômago vazio, porque era
normal recusar comer, tudo sabia a rosas, já se disse, e picante, chamas diabólicas de
especiarias várias, nada de servia implorar “less spicy, please, very light, everything
light, no spices, please!”
Quando chegaram ao Galgibaga Beach, Simão Saraiva dirigiu-se para um indiano
baixinho, com uma camisa de seda multicolorida e cigarro na boca, que aparentemente
o aguardava à entrada do hotel, muros brancos em arco com um enorme portão de ferro
e câmaras de vigilância. Tanto o amigo como Tiago estavam já um pouco bebidos, pelo
que Penha não prestou muita atenção à conversa. Falavam em sussurro, mas dava para
perceber que se tratava de números. Não de bytes mas de rupias. O regateio durou
algum tempo, mas os dois homens lá acabaram por chegar a acordo, como sempre
sucede na Índia, manda a boa tradição mercantil, que negócio sem regateio não é
69
negócio. O indiano seguiu com eles para o interior do Galgibaga Beach. Atravessaram
vários jardins e os blocos de pequenas residências que se estendiam até ao edifício
principal, onde se encontravam os serviços do hotel, área que mais parecia uma duty
free shop, tal era a panóplia de restaurantes e lojas misturadas com salas de lazer e
descanso.
— Vamos para a praia. Queres vir? — indagou Saraiva ao aproximarem-se de um outro
portão, que dava acesso ao areal privativo do Galgibaga, com uma placa ao lado, na
parede, onde se podia ler qualquer coisa como isto: «If you cannot resist to eat on the
illegal beach restaurants, the hotel informs that has at your service a doctor 24 hours a
day.»
— Para a praia? — repetiu Penha, com ar hesitante.
— Little private party — intrometeu-se na conversa o indiano, com um sorriso e um
tom de voz cheios de malícia.
— Quanto? — quis saber Tiago.
— Mil.
— Mil dólares?!
— Não, mil rupias — sossegou Simão.
— Quantas?
— Uma. Para os dois, se quiseres — informou Saraiva. — Aqui segundo o nosso
amigo, é muçulmana. Não te agrada a ideia? Ou preferias uma gaja com uma pintinha
vermelha na testa?
— No hindu. Devil in the body and your soul lost forever — voltou a falar o indiano.
— Devil and soul, sim senhora, ó café torrado! E o Alá também vem? — provocou
Penha, agastado com a ideia mas prestes a resignar-se.
— Ya harmuk Allah! Please don’t play with God. Not cafe. Love is sacred. You pay
and love. Beautiful women in the world. Amtullah!
— That's okay, my friend. Let's have some fun! — tentou pacificar Simão, pondo-se a
caminho.
O homem e Tiago entreolharam-se e fizeram o mesmo: o primeiro com um sorriso, o
típico sorriso dos indianos, supostamente comprazido mas que nada diz; o segundo com
um encolher de ombros, bem mais expressivo.
O tempo passou depressa, mas a conversa nunca esmoreceu. Em Buenos Aires, terra de
filet mignons e do generoso fado do Cabernet Sauvignon. Ao lado de La Tierra del
Fuego, em forma de olhos verdes e cabelos loiros. Mas sem nome. Por mais que se
esforçasse, Tiago Penha nunca voltou a conseguir lembrar-se, razão pela qual, aliás,
acabou por perdê-la irremediavelmente, no tempo e no espaço, sobretudo depois de ter
perdido o papel no qual anotara o número do telemóvel dela, ao regressar a São Paulo
onde pensou e tentou falar com a sensual e inesquecível filha de Ushuaia. Se ao menos
tivesse os olhos azuis, a cor da fé e da noite… Foi uma perda frustrante, irritante, algo
que, porém, lhe colocava um problema: por que razão passava a vida a tentar contactar
pessoas que se haviam perdido no passado?
Entre muitas palavras perdidas, decerto tanto para um como para o outro, no fluxo e
refluxo do português e do castelhano, Penha ficou a saber que ela havia sido mãe muito
cedo, aos dezasseis anos, acabara por casar com o pai da criança, mas em Ushuaia o
caso nunca tinha sido aceite muito bem. De resto, o matrimónio durou pouco. Aos
dezoito, ficou sozinha com a filha. O marido, cuja idade Tiago não chegou a perceber
bem, fartou-se de repente da Tierra del Fuego e largou tudo. A Patagónia, a Argentina,
e mudou-se para o Brasil. Quanto a ela, sufocada pelo opróbrio da situação, cada vez
mais denso, que a tradição e os bons costumes da Ciudad del Fin del Mundo – donde
ironicamente Penha tinha acabado de chegar, aquelas estranhas coincidências que não
70
parecem fazer parte deste mundo – não coabitavam bem com condutas blasfemas desta
natureza, acabou por decidir fazer o mesmo. Ao que parece, tinha um familiar ou uma
amiga ou amigo, outra parte que Tiago não conseguiu entender ao certo, em Recife e foi
para lá que também seguiu viagem. Todavia, a adaptação não foi fácil. A começar pelo
problema da aclimatação, que Penha conhecia bem e havia já experienciado. É que
viajar para a asfixia tropical do Estado de Pernambuco, no nordeste brasileiro, depois de
vinte anos nos confins da Argentina em clima oceânico sub-polar, não é uma tarefa
fácil. Houve também o problema da língua, dos costumes, da desigualdade – só não se
refere assimetria que o substantivo já ilustra bem os luxos linguísticos a que muitos se
dão para falar em pobreza e miséria – e até da localização exacta do destino migratório,
que afinal não era Recife, mas Olinda, um pouco mais a Norte, mais parece Portugal do
que Brasil, sempre cheia de luz, chamas luminosas que se vislumbram a milhares de pés
de altura, lá de cima, quando os Airbus da TAP, da Iberia, da Air France, da British
Airways ou da Lufthansa abandonam terras de Vera Cruz e decidem cruzar o Atlântico
quase na horizontal, sobre o Equador, para se encostarem à costa ocidental de África, ali
para os lados de Cabo Verde, pouco mais de três horas a ligar dois mundos outrora tão
distantes.
A partir daí a história tornou-se confusa. Quer dizer, oralmente, pois castelhano com
álcool nunca havia sido uma arte bem dominada por Penha, sobretudo se o interlocutor
arrastasse as palavras, como era o caso, discurso que voltou a incluir recursos
semânticos da gíria brasileira (dialectos de rua que misturam de forma complexa o argot
português, francês, norte-americano e até o castelhano). Ainda assim, era bom de ver
que nada havia de particularmente singular no passado daquela mulher, cuja história de
vida não passava de um relato semelhante a tantos que Tiago já ouvira, com mais ou
menos variações, mas idênticos no essencial, que a filha da putice arrasta sempre atrás
de si uma tragédia comum, pelo que não era difícil adivinhar o jeito que ela havia dado,
a mulher, para se virar e com o qual aparentava não se dar mal, ou não tivesse ela
levado consigo a prática e os saberes do amor tresmalhado no seu regresso à Argentina.
— Por que é que voltaste? — quis saber Penha.
Estavam de mãos dadas por baixo da mesa, a esquerda dele e a direita dela, já se tinham
beijado, trocado carícias e afagos, como se se amassem, um caso de amor recriado à
pressa porque convinha naquele momento, para dar cor às emoções, provavelmente o
azul, o corante da fé e da noite, e também dos olhos dele, que os dela eram verdes,
ambos aninhados no conforto da clausura uterina daquele confessionário sem credos,
alheios à azáfama festiva da Plaza Cortázar, cada vez mais ruidosa à medida que a noite
avançava e o torpor alcoólico ampliava a possibilidade de ser feliz, de poder imaginar
«there's no heaven, no hell below us, no possessions, no need for greed or hunger, all
the people, sharing all the world.»
Está tudo bem assim e não podia estar melhor.
— Porque has voltado? — repetiu Tiago, também ele a submergir na comoção dos
sentidos, talvez porque o momento a isso o convidava, talvez porque o álcool nisso o
ajudava, a tentar derrubar os fundamentos estuporados da Torre de Babel, a esperança
de chegar ao céu pelo seu próprio pé na remota eventualidade dessa ser a verdade,
«above us only sky», a Pirgos tēs Babél do Antigo Testamento, paradoxalmente uma
virtude teológica transformada em pecado capital, o da soberba, tão grandioso e
reprovável que Tomás de Aquino até quis reservar-lhe uma atenção especial embora a
Igreja tenha dito que não, peremptoriamente, que o génesis do pecado é na qualidade de
sete e nada mais.
Ela baixou a cabeça e ficou em silêncio. Sem responder. Por momentos, Penha teve a
impressão de lhe ver os olhos lacrimejados. Mas se calhar foi mesmo só uma impressão.
71
Porque apesar da arritmia do tempo, própria de condições de excepção – quando se
desenrolam emoções de forma desordenada, quando o estado de consciência se modifica
à força de substâncias orgânicas intrusivas, quando é o mundo exterior que tenta bater o
compasso – depressa ela voltou a levantar a cabeça, após um breve encolher de ombros,
de novo com um sorriso na cara, velado, tímido, encimado por um olhar brilhante. Um
olhar luminoso, não de lágrimas mas de cumplicidade afectiva, coisa estranha, sendo ela
puta e ele um putanheiro, amarem-se de uma noite para a outra, logo a seguir à devassa
mútua da intimidade a troco de dinheiro, bem fungível, que se gasta com o uso, e depois
acaba e nada resta.
Estranho, mas possível. Porque acabaram a noite no quarto de Tiago. Desta vez a fazer
amor. Com vontade. Com desejo. Sem pedir nada em troca senão prazer em abandono
total. Com os corpos despedaçados em suor. A cama revolta e molhada. Com cabelos
loiros e pêlos pretos espalhados pelos lençóis. Com gemidos abafados pela tesão
estonteante de uma cópula desaforada e pungente. Da cama saltaram para o chão e
continuaram, sem pressas mas com pressa em desafiar os limites da capacidade
sensorial.
Até que ela se pôs de cócoras, com os joelhos enterrados na alcatifa povoada por uma
comunidade imensa de ácaros, e olhou Penha nos olhos de forma intensa, impondo um
breve compasso de espera.
— Me pone en el culito — sussurrou, em jeito de prece.
Tiago não percebeu. Sentia os pêlos brancos da barba cheios de saliva. Dele e dela.
Tinha a verga dura embebida num líquido viscoso. E hesitou. Sem saber ao certo o que
lhe estava a ser pedido.
— Quiero que me has folle mi culo. Quiero sentirte dentro de mí — insistiu ela. — Me
gusta así. Por atrás.
Parecia estar a suplicar. Com o corpo rendido a latejos violentos.
(Web Forum: É por essa e outras que você merece estar nessa vidinha de merda, o que
os outros fazem contra você acho pouco. Filha da puta! Tem que se foder mesmo.
Otária!)
E Tiago Penha deu consigo a pensar mais uma vez no mesmo: ela era realmente bonita,
sensual, alguém que podia amar.
Curioso: não havia chegado a ir a Puerto Madero. Nem à La Boca.
72
X.
Foi durante o jantar, pouco antes do início do espectáculo, com orquestra, bailarinos e
cantores ao vivo, ao som de tango, música para a dança da carne e do desejo, na
«Esquina Carlos Gardel», o antigo «Chanta Cuatro», precisamente onde a travessa
Carlos Gardel desemboca na rua Manuel de Anchorena, no bairro do Abasto, que Tiago
Penha se pôs a pensar em Maria Clara. Uma reflexão intrusiva que o incomodou.
Porque poderia ter uma origem ígnea e isso não seria coisa boa. Mas acabou por
perceber a ligação e sossegou-se. Quer dizer, tentou, pois sossego com a cabeça em
Maria Clara e no Reduta Jazz Club, em Praga (uma mera associação de ideias induzida
decerto pelos dois espaços de música ao vivo em ambiente de meia-luz), não era de todo
a palavra mais adequada. Memórias de uma viagem a dois, nesse ano fatídico de dois
mil e um, um breve périplo por algumas das principais capitais do velho continente que
ficou devidamente registado em dois diários de bordo, um azul, o dele, o outro cor-derosa, o dela; a distinção entre a eternidade, ou o desejo de se eternizar, o dele; e o
altruísmo, o dela. O altruísmo e a verdade, que as cores contam muito e nunca são
escolhidas ao acaso.
Mas ali, em Buenos Aires, ainda com o sabor na boca da ninfa de Ushuaia, talvez fosse
preferível cogitar sobre o Quito e a beldade equatoriana do bar de copas madrileno,
uma Claire Danes em versão morena, com quem teve uma relação assustadoramente tão
semelhante à vivida com a mulher de olhos verdes da Tierra del Fuego. O único
problema é que esse encontro estava agendado para mais tarde, e lá volta a narrativa a
tentar fazer umas ultrapassagens para trocar os passos do tempo, como a querer afirmar
que o destino não é o futuro programado mas tão-somente o que se pretendeu inventar.
Na incerteza de se concretizar. O destino. Quer dizer, o destino que agora se conhece,
porque se a existência fosse providencial o livre arbítrio seria uma mentira suprema, e
talvez até não o seja, não o livre arbítrio mas a vida ao ritmo da providência, tantas são
as coincidências improváveis que vamos registando no diário do fervilhar humano, esse
devir delirante que escapa a todas as regras da razão criada à imagem do Homem, isto é,
a possibilidade do ser racional intuir a causa e o efeito, identificar e operacionalizar
conceitos em abstracto, reformulando-os, por coerência ou contradição por via de um
conjunto de premissas e suposições, numa palavra, através da inteligência, o
denominador comum da natureza humana que define o Homem como tal.
Desde que não se troque os encantos do misterioso feminino vindos da linha do equador
(latitude zero, o que não é rigorosamente certo, nunca é demais repetir) pelas tentações
tão publicitadas do bar de copas “Déjate besar”, em Salamanca, o lugar perfeito para
quem procura one-night stands, garantem os frequentadores, os poucos que assumem lá
ter ido, embora sejam mais homens que mulheres, e o ambiente bastante snobe, o que
levanta a suspeita de que o convite ao beso pode não ser necessariamente heterossexual.
E se a referência soa a descabida, que se recorde os tempos em que Penha se
embriagava com bagaço e cerveja, tão esparsos eram na época os seus recursos, aos
vinte anos com cem escudos a bebedeira era garantida, o truque consistia no célebre
73
“submarino”, não o amarelo, a cor do açafrão e da memória e das ideias claras, mas a do
copo de bagaço enfiado dentro da imperial, uma mistela intragável mas explosiva, entre
a fermentação e a destilação, que não conduzia a ideias claras, mas apenas à neblina
mental, que um amigo sentado à sua frente já ia na terceira rodada e começou a vomitar
enquanto falava, sem se aperceber, directamente para o interior do copo de imperial, o
mesmo que a seguir levou à boca, com bagaço e os restos do vomitado, como se nada
fosse, perante o olhar impassível de Tiago, na verdade ambos com os olhares vidrados e
tão bêbedos que mal conseguiam beber o que já haviam regurgitado. Nessa noite, Penha
chegou a casa descalço, vá-se lá saber onde havia perdido os sapatos, pelo caminho com
certeza, a princípio impedido de entrar pelos pais, que era uma vergonha, um rapaz tão
novo e já metido nestas coisas, ficou retido nas escadas onde adormeceu e desatou a
ressonar, na rua estava frio e o barulho acordou os vizinhos, o que finalmente lhe
conferiu a tão desejada permissão para pernoitar em aposentos paternos, mas não sem
antes confundir o bidé com a sanita, na casa de banho, deixando no primeiro uma bela
cagadela amarelada, a cor da inteligência e da gema do ovo, até que se deitou de uma
vez por todas na cama do seu quarto. De uma vez por todas, porque nas horas seguintes
não voltou a ter forças para se levantar, acabando por vomitar mais uma vez, não na
sanita, que não teve tempo nem coragem para lá chegar, faltavam-lhe as forças, já se
disse, mas no chão, ali mesmo ao lado da cama, em cima de um tapete que a mãe havia
comprado numa feira de ciganos sem possibilidade de devolução por defeito de fabrico,
uma chatice já que na manhã seguinte o padrão do mesmo que tanto a encantara havia
mudado para um outro que desconhecia, um tanto ao quanto estranho, além de que o
cheiro também não era igual. Decerto que havia sido enganada mais uma vez pelos
sacanas dos ciganos, era preferível ter ido à loja da esquina, onde conhecia a
proprietária, uma velha rabugenta que não percebia que negócio sem regateio não é
negócio.
Eis, pois, como a vida apresenta tantas contrariedades, que é preciso estar atento e não
trocar os “bês” pelos “vês”. Não obstante a regra não ser aplicável ao castelhano, tanto
quanto se sabe, pois são muitas as variações e igualmente complexo o seu argot, pelo
que Tiago Penha talvez pudesse pôr-se a pensar em Praga, sentado sozinho numa mesa
de recanto naquele enorme salão, no piso térreo da «Esquina Carlos Gardel», que passar
por Buenos Aires e não assistir a um espectáculo de tango seria tão pecaminoso como
curtir a noite no Bairro Alto, em Lisboa, sem pedir um “pontapé na cona” no Arroz
Doce, com a tia Alice aos gritos por detrás do balcão: “Saem três na cona!”
Na ementa gourmet, em español, english e português, Penha escolheu como entrada uns
rolls de mozzarella de búfala fiada com presunto cru, tomates frescos e alinho de
manjericão, seguindo depois para um ravioli de lombo e espinafre, molho de tomates
assados e presunto torrado, e um bife de chorizo com batata puré dourada (erro de
tradução evidentemente, que até à data Tiago só havia conhecido puré de batata e não
batata puré, embora pudesse dar-se o caso de em solo argentino o batatal produzir logo
o puré em vez da batata, que assim poupar-se-ia tempo na descasca e na liquidificação,
fosse ela manual ou eléctrica), e ainda atacou uma mousse de chocolate sobre biscoito
bretom e calda de pistaches. Tudo acompanhado por um tinto San Felipe, um
chardonnay amadurecido e envelhecido a cerca de cem quilómetros a norte da capital
chilena, terras de mamadas e picos chupados, de mujer ke le gusta lamer una y otra vez
el miembro inferior masculino, sin importarle de kien es, expressões que ficaram
célebres depois do caso «Wena Naty», de que aqui já se falou.
Para digestivo, pediu um uísque de malte que ali lhe iria custar os olhos da cara –
embora considerasse que, ainda assim, os seus olhos valiam mais – nada de especial,
apenas um Cardhu, doze anos, escocês, sempre era melhor que o bourbon do Tennessee
74
que havia sido obrigado a beber aquando da passagem pela estância de esqui Les Deux
Alpes, lá para os lados de Lyon, do outro lado do Atlântico, estranho como a
disponibilidade de uísques também pode trocar a lógica das coordenadas geográficas,
incluindo a terceira, fundamental mas tão frequentemente esquecida, a altitude.
Apetecia-lhe fumar um cigarro. E aquele salão histórico estava mesmo a pedi-lo, o
mítico «Chanta Cuatro», hotel e restaurante, que abriu portas em mil oitocentos e
noventa três, mais de um século ao serviço de estômagos cheios e cabeças vazias, mas a
lei anti-tabaco estava ainda na fase dura da imposição dolosa, e dolorosa, e mais não se
deve dizer, que na Argentina, com tantos generais, todo o cuidado é pouco.
(Web Forum: En Argentina el Gobierno se encarga de armar un aparato bien represivo
de la libertad de expresion, podes estar seguro de eso. Y en los ultimos tiempos ha dado
pasos decisivos con ese objetivo. A que se segue de imediato uma discordância no
feminino: Creo que estas hablando muy mal del Gobierno Argentino que dio mas
libertad de expresión en los últimos ciento cincuenta años. Me parece que deberías
retroceder todo ese tiempo para despedir semejante retórica. O visado prepara-se para
responder, ou talvez não, já que se intromete uma outra interlocutora para elogiar, não o
Governo, mas as pizzas da Argentina, o que merece o aplauso da primeira: Cuando
vuelvas a Buenos Aires prometo que te llevo a pasear por alguna pizzería bien rica,
mais la de minha mae es muito boa tamben. E finalmente a réplica do primeiro
comentador, também uma aprovação, resta saber se com convicção ou com ironia:
Tenes razon. Las pizzas argentinas son muy buenas. As observações sobre o Gobierno é
que não voltam ao fórum)
Tiago Penha arranjou coragem para se levantar e enfiou-se à pressa nos servicios de
mijas masculinas, numa galeria fora do salão de jantar e do espectáculo (não confundir
com a pequena cidade a sudoeste de Málaga, na Costa do Sol, na sierra de Mijas, onde
naturalmente tudo envolve o substantivo mictório, incluindo a designação de pueblo das
mijas, embora se desconheça se em Mijas é elevado o índice de problemas da próstata),
para dar umas longas, demoradas e saborosas baforadas de nicotina.
Quando regressou à solidão da sua mesa de recanto, tendo de atravessar mais de metade
do salão, o lugar que lhe coubera estava bem perto do palco, do lado de esquerdo, a
meia-luz havia sido trocada por um manto de penumbra, que o espectáculo de tango
estava prestes a começar. Tango clássico, com uns toques de Piazzolla, para estabelecer
uma ponte de cumplicidade entre a sonoridade de Gardel e de Astor, muitos “cortes”,
“quebradas” e “paradas”, um escândalo para a época, com os pares a dançar colados, os
dois bailarinos a esfregarem-se ritmicamente um no outro, a melodia da carne e da
paixão, já lá ia a primeira vaga de miscigenação musical, uma mistura explosiva de
habanera, milonga e de temas populares levados em tempos idos pelos emigrantes
europeus.
À medida que o som começou a ribombar no salão, de forma cada vez mais forte e
intensa, e a agitação foi enchendo o palco, Tiago deixou-se envolver, como se também
ele fosse um dos protagonistas, como se fizesse parte daquele banquete, agora de sexo e
música, que entesa o corpo e enleva a alma. Cores não faltavam, muitas, tantas que se
tornavam indecifráveis; na verdade, mais parecia uma orgia de corantes e luzes
reflectidas sobre corpos em movimento, com cadências ora ritmadas ora desiguais, tão
paradoxal como a dança do amor, por detrás de uma cortina transparente, que mais não
é do que a interpretação do que cada um vê, ou quer ver.
Mas faltava o cheiro intenso a tabaco e álcool, pessoas nuas a dançar entre o público,
homens e mulheres, em transe, em êxtase, faltava aquela fêmea nauseabunda carregada
de batom, às gargalhadas, com um ar alucinado, a falar em borbulhas encarniçadas e na
peste vermelha. Malditas bolhas assanhadas! Só faltou referir-se às duas estranhas bolas
75
de fogo azul. E o som dos tambores. E o rum e os charutos. E a cachaça de alambique.
Havana ou Vitória? E a tequila pura. E a becherovka checa.
No Reduta Jazz Club, em Praga, podia-se fumar à vontade. Pelo menos naquela época,
mesmo depois da passagem de Bill Clinton e da sua jam session com o saxofone novo
em folha oferecido por Václav Havel, em mil novecentos e noventa e quatro. Um antigo
reduto comunista para admiradores secretos da dixieland de New Orleans.
Quando saiu da «Esquina Carlos Gardel», na Anchorena, no final do espectáculo,
misturado com casais e vários grupos de outras pessoas que também lá tinham estado, a
rirem-se, felizes, bem-dispostos, a recordar com vozes animadas os momentos mais
extasiantes que haviam experienciado durante aquelas últimas três ou quatro horas,
Tiago Penha sentiu-se de repente sozinho, severamente sozinho, numa cidade que afinal
lhe era desconhecida, passava pouco da uma da manhã, e com vontade, muita vontade
de contar, de partilhar com alguém as emoções que acabara de viver, porque também ele
havia ficado encantado com aquela noite de tango. Francamente maravilhado e rendido.
Mas hesitou. Voltara a rever a imagem de Maria Clara, em rigor, a imagem que
conservava dela, porque em boa verdade desconhecia qual seria a imagem real que ela
teria agora, naquele momento, depois dele estar mais uma vez ausente no estrangeiro há
várias semanas, mais uma viagem para aprofundar a distância e o agastamento corrosivo
em que assentava aquela relação, algo que, aliás, nem era bem assim. Bem pelo
contrário. Falar em relação ou ter a presunção de afirmar que a mesma assentava em
qualquer coisa não passava de uma efabulação, de uma fantasia caprichosa que talvez
pudesse ser conveniente para ambos nalguns momentos de menor resistência pessoal à
intempérie da desilusão. À intempérie do próprio nada. O nada a que possa dar a devida
forma de algo escrito. Ou pensado. Ou sentido. Que também assim se narram histórias.
Da possibilidade de um nada. É claro que, apesar de tudo, Penha podia ligar-lhe, ou pelo
menos tentar. Mas havia a questão do fuso horário. Não sabia ao certo quantos horas de
diferença seriam. Mas para ser quase uma da manhã ali, era de madrugada em Portugal
continental. E acordá-la a meio da noite não seria propriamente uma boa ideia. É que,
bem vistas as coisas, nada havia para dizer. Nem mesmo a possibilidade de um nada.
Podia tentar a ninfa de Ushuaia (a mulher que fugira para Olinda, no nordeste brasileiro,
onde aprendera que ter olhos verdes, um culito rico y apretadito listo para ser follado e
disponibilidade para chupar picos dá para encher a barriga e para outras extravagâncias
consumistas, que em terra de pobres e miseráveis tudo o que não é pão é estroinice).
Tiago ainda não havia perdido o número do telemóvel dela. Mas para quê? Para fingir
que tencionava saborear aquele corpo, que decerto àquela hora estaria noutras mãos a
render pesos ou dólares? Para voltar a sentir o sabor acre de quem mais nada sabe fazer
do que desfiar as memórias tristes de viver a vida em privês de diversão nocturna,
reservados a adultos sem graça, que é o mesmo que dizer gente desgraçada, infeliz,
desprezível? Ela era realmente bonita, sensual, alguém que ele podia amar. Mas também
era uma puta. E mesmo que as putas possam amar nunca deixarão de ser putas, pois
sexo é sexo e há mais putas que putedo, já aqui se disse e que ninguém ouse em
discordar, pois são igualmente putas aquelas que fingem não querer ser pagas em
numerário mas que fodem os homens e as mulheres e a vida a toda gente, grandes
cabras filhas de uma grandessíssima puta.
Ficou claro: Penha estava farto da escala na «capital mais europeia da América Latina».
De resto, tinha trabalho e muito, e esse estava em São Paulo à sua espera, pelo que
estava na hora de regressar a casa, perdão, à casa que Tiago havia inventado como tal na
capital paulista, porque ter de ficar preso a uma cidade durante tanto tempo sem sentir
um lar por perto é coisa que ninguém merece. Foi com este estado de espírito amargo
que Penha começou a andar em direcção ao mercado de Abasto onde se pôs a olhar para
76
a enorme estátua em bronze de “Carlitos”, também conhecido como “El Zorzal”, entre
outros cognomes, nascido na cidade francesa de Toulouse (embora os uruguaios digam
que foi em Tacuarembó, no norte do País, já bem perto da fronteira com o Brasil) e
vítima mortal, aos quarenta e quatro anos, de um acidente de aviação em Medellín, na
Colômbia, na década de trinta do século passado. Definitivamente, o sorteio da certeza
da morte não tinha sido muito favorável àquele homem. Se bem que nisto da lotaria da
vida nunca se sabe quem fica com a melhor parte. Aqueles que ficam, para viver, ou
aqueles que vão, para morrer, falta Sócrates, o ateu, que aparentemente acreditava no
Senhor, como relata o seu discípulo Platão, para o recordar, quando se rendeu, e de vez,
às carícias mitigativas no coração da cicutoxina, uma toxina mortífera que fez jus à sua
natureza letal.
No meio de tantos pensamentos que começavam a assumir um carácter febril, pois
sentia-se sozinho, severamente sozinho, sem ninguém com quem poder partilhar as
emoções que acabara de viver, Tiago Penha ocupou-se ainda de um outro assunto,
conhecidas que estavam e visitadas duas das grandes cidades da América do Sul. É que
uma coisa parecia certa (ou melhor dito, incerta) agora que Tiago parecia estar decidido
a partir, enquanto muitos outros ficariam. Com villas de emergencia, homens-aranha,
histórias rocambolescas de generais, ditaduras e repressões, com Gardel e Piazzolla,
com Puerto Madero e La Boca, com pizzas e bifes de chorizo, permanecia a dúvida:
Buenos Aires teria razão para invocar o estatuto da capital mais europeia da América
Latina? Quer dizer, com traços europeus até poderia ser, tal como, aliás, ensina a
História ibérica sobre a ocupação colonial de toda a América do Sul e até de alguns
territórios da América central. Mas capital? Como capital, São Paulo parecia mais
interessante e provavelmente até seria mais justo, já que, em matéria de
cosmopolitismo, o centro urbano da sede financeira brasileira não parecia ficar atrás.
Talvez a coisa se pudesse resolver: cidade europeia para os Argentinos e capital para os
brasileiros. Que tal?
(Web Forum: Acredito que Buenos Aires é uma apenas caricatura do que eles pensam
que é a Europa, comentário em brasileiro a que se segue uma réplica vinda igualmente
de terras de Vera Cruz, curiosamente do Rio de Janeiro, esgotada pelo menos aqui a
eterna contenda bairrista entre cariocas e paulistas: A Argentina está em decadência há
oitenta anos. Carlos Gardel já dizia em uma música sua da “vergonha da Argentina ter
sido e agora já não ser mais”. Junta-se às duas observações um remate, um quase, em
português, que o assunto parece ser melindroso, ou não fossem tantos os silêncios
perante um tema aparentemente bastante controverso: Muito já se disse da arrogância
argentina em dizer que Buenos Aires é uma cidade com características europeias. Mas
eu, que conheço muitas capitais e cidades importantes da América latina, assim como
da Europa, posso afirmar que essa pretensão argentina não está longe da verdade.
Claro que temos que considerar que Buenos Aires não tem tantos anos quanto, por
exemplo, Madrid, em minha opinião, o modelo que idealizo. A arquitectura portenha,
por conseguinte, não tem lugares tão preciosos como, por exemplo, a Plaza Mayor. As
características europeias dadas a esta cidade são forjadas pela forte presença
migratória de espanhóis e italianos neste País e, claro, em Buenos Aires. Sobrenomes
como Lopez, Martinez, Garcia, Morelli, Boto, Pizzuto, chegam a ser comuns e, claro,
destas raízes nascem as semelhanças. Mas caminhe pela Avenida de Mayo, da Praça de
Mayo até a Praça do Congresso, e verá com muita facilidade a sua semelhança com a
Gran Via, uma das mais conhecidas avenidas de Madrid. E para não ser injusto,
conheço uma única cidade que pode, na América latina, ter essa mesma característica:
Montevideu. Porém, essa cidade já não pertence a esta discussão. Mas pode pertencer,
como espelha um comentário final no feminino, vindo desta vez de São Paulo: Na
77
minha visão solitária, sempre achei que o País mais europeu da América Latina é o
charmoso Uruguai. Seu elevado índice de desenvolvimento humano nos ensina que “as
veias abertas da América Latina” podem ser fechadas. É lá que quero dançar o tango
que aprendi na Argentina)
Sempre curiosas, as afirmações, pena é que não tenha havido uma voz argentina para as
rebater. Estas declarações merecem, porém, uma breve nota apenas para recordar que
quando o comentador português se refere à Gran Via, fá-lo em relação à famosa avenida
nevrálgica da capital espanhola, como parece ser evidente. É que tanto Barcelona como
Zaragoza também têm uma Gran Via. Não se sabe se por acaso, uma daquelas
coincidências providenciais – embora neste mundo nunca o pareçam ser, tão grande é o
descrédito atribuído à providência – ou se em resultado de mais uma acha atirada para a
fogueira das vaidades e contrariedades que anima e desanima a longa contenda entre
catalães e castelhanos, aqui com aragoneses à mistura (que, por sinal, além do aragonês
também falam catalão). E mais não se diz, deixem lá os galegos sossegados, porque já
se viu que nesta manta de retalhos que é o Reino de Espanha o silêncio imposto pela
política da canhoneira sempre imperou, e assim se deu novos mundos ao velho mundo,
salvo junto dos bascos, mas essas são gentes de outra extirpe.
Tiago Penha continuava junto à estátua de bronze de Carlos Gardel no mercado de
Abasto, agora menos concorrido à medida que a noite avançava. Mas mais uma vez
voltou a pensar em Praga. Em Praga e em Maria Clara.
Não deixava de ser intrigante: tinha-lhe sucedido o mesmo recentemente, numa das suas
últimas e breves passagens, que andavam cada vez mais espaçadas no tempo, pela
metrópole lusitana.
Estava no seu escritório na República, no centro de Lisboa. Deveriam ser umas nove da
noite, mas ainda fazia um calor dos diabos. De todos esses seres maléficos esconjurados
que a fé, ou a falta dela, vê de tantas formas diferentes, dando-lhes nomes diversos
conforme as necessidades desse admirável novo cosmos da geopolítica da economia. E
das vontades ideológicas tão prosaicas quanto intransigentes. Era sério o assunto, mas
não era para ali chamado, pelo menos naquele momento. Penha acendeu um cigarro e
deteve-se a olhar para as ondas de fumo que subiam à sua frente, iluminadas por um
pequeno candeeiro de estanho que conservava em cima da secretária, entalado entre
dois monitores ligados às respectivas máquinas de processamento de bytes e
contrabytes. Mais megas e contramegas, e os gigas, esse propalado prefixo que
multiplica uma unidade por dez elevado a nove, já para não falar em teras. É um lugarcomum, mas um cigarro dá sempre jeito. Sobretudo para fazer o compasso narrativo de
quem quer, mas não sabe ainda se lhe apetece contar. Narrar. Confessar. Admitir. Os
factos. O facto. Fumá-lo é, porém, outra história, porque ainda não se sabe quem fica
com a melhor parte: quem fuma ou quem declina o prazer cancerígeno em nome de
outros prazeres distantes, regra geral, prometidos, mesmo que à beira da esquina haja
um carro pronto a atropelar quem ousa em aproximar-se.
(Web Forum: Existo... logo escolho!)
Da janela de correr, quase fechada, não circulava praticamente ar algum, pelo que as
cortinas permaneciam penduradas, qual muralha entre o mundo de Tiago, ali dentro, e o
mundo dos outros, lá fora, sem se mexerem. Estavam impregnadas do cheiro da
nicotina. E de um tom amarelado disforme que decerto não correspondia ao desiderato
estético do fabricante, nem o colorante, que tonalidades de açafrão mais parecem
remédio do que cor. Por sinal, um medicamento emenagogo, para restabelecer a flora
menstrual, feito a partir dos estigmas desta planta bulbosa da família das iridáceas.
Além disso, a calha por onde supostamente as fitas deveriam deslizar de modo gracioso
e funcional começava a ficar enferrujada.
78
Penha passara o dia a trabalhar. Justamente em cima daquele teclado infestado de cinzas
que se infiltravam por todos os orifícios nos quais lhes era permitido o acesso. Um
spray resolveria aquilo, mas como o resto da secretária também estava cheia de cinzas, e
algumas beatas que o cinzeiro tinha resolvido lançar fora para cima do tampo, o melhor
era não ligar. Sob o halo de luz do candeeiro havia fios de cabelo espalhados, que o
tempo não perdoa, até para o couro cabeludo, e duas chávenas de café sujas, uma delas
virada de lado, com manchas nos rebordos e despojos de açúcar desfeito no fundo.
Tiago tinha ainda sobre o tampo da secretária uma pequena caneca com água. E
mosquitos a sobrevoá-la.
Havia acabado de enviar um último e-mail e continuava indeciso. Devia pegar no
telemóvel e ligar-lhe para acabar de vez com toda aquela charada comunicacional
assente nos SMS e mensagens electrónicas enviadas de um lado e a esbarrarem com o
silêncio total, absurdo e manifestamente total, do outro. Manifestamente porque não
seria de esperar. Quer dizer, Penha não esperava; não contava com o que lhe parecia ser
um evidente e derradeiro desinteresse que, aí chegado, não conseguia qualificar. É claro
que, em relação ao outro lado, apenas podia tentar adivinhar, mas estava quase em crer
que a sua destemida e patética manifestação de disponibilidade para o diálogo não era
igualmente esperada. Evidentemente que não e Tiago bem sabia porquê, embora não
fizesse a mínima ideia de como havia sido encarada. Até porque já lá ia muito tempo.
Apagou o cigarro por fim. Mais uma beata à beira de um ataque de nervos, pois isto de
conviver com fios de cabelo perdidos e possíveis ataques de pequenos e improváveis
seres esvoaçantes não agoirava nada de bom. Mesmo para uma beata. Não das que se
ajoelham à frente de uma qualquer relíquia sagrada, que de sacra pouco tem a não ser o
revestimento de ouro, quando o existe – Penha receava que pudesse ser essa a
motivação sublimada de tanta devoção, a expectativa secreta de uma troca de favores
espirituais pela concessão divina de benesses materiais, que roubar aos ricos não é
pecado, já dizia o sétimo mandamento (ou quase, depende da interpretação) – mas a
porra da ponta de um cigarro. A tal beata que acabou por resvalar do cinzeiro, cheio em
abundância de restos mortais similares, e aterrar no tampo da secretária.
Tiago desistiu. Ainda deitou um olhar de soslaio para o telemóvel, também ele a laborar
na chafurdice da secretária, mas deixou-o estar. Sossegado. Amanhã seria outro dia.
Igual àquele. Igual a todos os dias. Igual a todos aqueles anos de serena passividade
perante o sucesso – ou deveria dizer insucesso? – de uma carreira sem paragens. Sem
destino. E, por conseguinte, sem sentido. Tratava-se de uma morte lenta sem dor.
Apenas com o sofrimento do tumor da inércia, uma indolência perfeitamente estéril. E o
pior é que todo o processo era racional. O que agravava ainda mais as coisas. A inércia
multiplicada por dez elevado a nove dá um resultado verdadeiramente giga insensato.
Tiago nunca havia sido muito adepto de advérbios de modo, tal como tinha pavor do
uso do gerúndio (que transforma a ortografia num triste desacordo), mas às vezes dava
jeito: sublinha, amplifica, subleva, e imprime dramaticidade narrativa e ritmo oratório –
o que é sempre bom, especialmente para as cada vez mais numerosas tertúlias sociais de
reconhecimento da arte de bem prosar. Mas o abuso da técnica, a tentadora utilização
em excesso dos advérbios de modo, conduz a fastidiosas excentricidades sintácticas que
nada abonam a favor do prazer da leitura. Porque se escrever pouco tem de aprazível,
excepto para aqueles que rabiscam pobres exercícios de criação literária, quem lê deve
poder fazê-lo com deleite, gozo, sentir-se enlevado, deliciado, extasiado, à beira do
orgasmo. O que conduz a um problema: o leitor goza, o autor abre as pernas. Foi
precisamente o que Penha acabara de fazer se os seus pensamentos estivessem a ser
transpostos para o papel. Estaria no parágrafo anterior. E ninguém lhe pagaria um tostão
79
para isso. Outro problema: é que, além de abrir as pernas, até dá a sensação de que o
autor gosta.
Tiago estava com vontade de beber mais um café. Mas não. Já eram horas de seguir em
frente, trilhando o seu tão bem conhecido percurso de serena passividade e inércia. O
dia tinha corrido mal. Havia produzido pouco, passível de se traduzir numa
compensação pecuniária proporcional, e a merda do impulso tresloucado – reconhecia –
em ligar-lhe, em falar-lhe, não lhe havia dado tréguas durante todo o tempo, várias
horas, mais de dez (mas não elevado a nove), em que manteve o cu sentado numa
cadeira esponjosa, cheia de pó e nódoas, sabe-se lá donde tinham vindo. Levantou-se,
afinal sem desligar os benditos processadores da infinitude, ou da infinidade, cada um
que escolha, de dados integrais de computação, átomos sem fim de representação de
símbolos, letras e números, apagou a luz do escritório e desceu as escadas aos saltos,
para desentorpecer as pernas, até chegar à rua, ao mundo dos outros, agora lá fora. O
bafo de calor, que havia pressentido já no interior da sua sala de trabalho, atacou-o com
redobrada violência. Não era muito tarde, mas a avenida estava praticamente deserta.
Na estrada, contavam-se pelos dedos os carros que passavam. Na calçada, apenas meia
dúzia de pessoas, fumadores, a encher os pulmões de chumbo e de dezenas de outras
substâncias cancerígenas à porta de um café. Penha pensou duas vezes no rumo a seguir
até que se lembrou de que tinha trazido o carro. O novo, porque o outro havia ficado
estampado contra a berma metálica de uma auto-estrada. Tinha sido um momento
aflitivo, mas também decisivo. Era como o desejo de lhe ligar. Não conseguia esquecer.
Aqueles baixios vaginais que tantas memórias lhe traziam. Talvez pudesse remexer no
passado e recompô-lo porventura, embora soubesse que era mentira; não era isso que
queria.
«Praha, a caminho de Wien, com vinte minutos de atraso, Setembro sete, quinze e
quarenta e cinco, hora local
Querida Ester,
Estamos finalmente a sair de Praga. Escrevo finalmente porque foi atribulada esta
passagem pela capital checa e tanto eu como a tua mãe já estávamos ansiosos por sair
desta cidade que tanto seduziu Václav Havel. A experiência salda-se sobretudo pela
surpresa, negativa, positiva, mas tocante, não permitindo qualquer tentação de
indiferença. Talvez arrisque a dizer que o sentimento de desagrado é o mais forte. Agora
mesmo, depois de todos os contratempos e sobressaltos que vivemos em Praga, os quais
aqui vão ficar registados enquanto rumamos para terras austríacas, fui testemunha e
actor de um acontecimento insólito. Na verdade, dois, se bem que o primeiro seja
apenas ilustrativo dos ataques de nervos que os checos provocam. Na estação ferroviária
de Holešovice, a mesma que serviu para chegarmos de Berlim e partir agora para Viena,
não me deixaram ir à casa de banho porque não tinha comigo umas famigeradas vinte
korunas checas. O dinheiro checo que nos resta está na mochila da tua mãe e, no
momento em que me senti apertado, ela não estava por perto; tinha ficado na plataforma
dois, onde supostamente chegaria o comboio que teríamos de apanhar. E eu fui para a
área dos toilets, do outro lado das plataformas, voltando a percorrer, agora em caminho
inverso, os túneis subterrâneos de comunicação entre os caminhos-de-ferro e o edifício
propriamente dito da estação (na prática, um armazém envidraçado, impessoal, sem
qualquer afirmação identitária). À porta das casas de banho, uma velha antipática e
imunda a controlar os acessos. Implorei-lhe que me deixasse entrar, mas ela, no seu
intransigente e desagradável checo, reduziu-se a um lacónico nein! (imaginei eu, porque
nein é alemão e a velha deve ter falado em checo com um ne!), a que acrescentou um
trejeito de enfado perante a minha insistência quase como a dizer qualquer coisa do tipo
“desaparece daqui, seu capitalista maldito!” Porra: é que estava mesmo à rasca para
80
mijar. Mesmo à rasquinha. E quando assim é, ainda custa mais: a bexiga parece que vai
rebentar. Tentei encostar-me a um canto qualquer, mais escuro ou recatado da nádraží,
mas ali, com tanta gente a cirandar, era impossível satisfazer ao ar livre qualquer
necessidade fisiológica. De resto, lá resisti à tentação, e digo tentação porque era o que
me apetecia fazer de tão irritado que me sentia, de mijar à porta da esquadra da polícia,
mesmo ao lado da estação ferroviária, que era provavelmente, de todos os lugares
impossíveis, o menos impossível. Mas tive de me resignar e lá regressei à plataforma,
voltando a descer e a subir o túnel, devagarinho, para ver se a bexiga aguentava tanta
pressão. Mas estava furibundo, cheio de pensamentos xenófobos. Tudo por causa da
merda de vinte coroas checas?! Ela não percebeu que eu era estrangeiro e estava de
partida? Que não tinha trocos, aliás, em respeito pela regra de nunca levar divisas locais
de um País estrangeiro? Ou fez questão de tentar a derradeira caça ao dinheiro de mais
um perfect stranger? É curioso como, perante uma pequena contrariedade do género
desta, assome de repente um sentimento tão perturbante e estranho para mim. O da
xenofobia. Tenho de meditar sobre o assunto. Para agravar as coisas, o comboio que
vinha de Berlim (exactamente o mesmo que tínhamos apanhado dois dias antes, quer
dizer, igual) chegou com um atraso de vinte minutos. Só mesmo aqui. Parece que
voltámos ao terceiro-mundismo de que tanto me queixo em relação a Portugal. É que
estava mesmo desesperado para urinar, mas só me restava esperar pelo maldito
comboio, que raramente ultrapassa a velocidade de cem quilómetros por hora e parece
estar sempre a parar. E agora entramos finalmente no episódio insólito. Uma coisa
absolutamente anormal. Escusado será dizer que, mal entrei no comboio, corri para a
casa de banho. Parecia uma torneira. Depois, a sentir-me bastante melhor, já aliviado
daquele peso, dou de caras com algo que, no princípio, deixou-me perplexo: um
passaporte. Perdido. Em cima do lavatório, molhado. Verifiquei-o, um pouco a medo, e
percebi tratar-se de um documento de um septuagenário austríaco. Confesso que a
primeira tentação que tive foi largá-lo, deixá-lo ali, porque podia dar problemas. Mas
depois, movido por uma leve ponta de civismo e, talvez, por uma certa vontade
exibicionista em poder, afinal, tornar-me um herói naquele dia, ou pelo menos
protagonista de uma história invulgar, acabei por levar o passaporte comigo. Quando
me sentei na carruagem, eu a tua mãe examinámos o documento mais em pormenor.
Austríaco, nascido em mil novecentos e vinte e oito, com uma passagem por um País
árabe qualquer, os carimbos não eram muito legíveis mas dava para perceber pelos
arabescos, óculos com aros de massa, cabelos grisalhos e um semblante austero, como
imagino que têm todos os austríacos. Ainda pensei em conservar o passaporte em meu
poder e entregá-lo ao revisor quando passasse. Mas o meu espírito aventureiro não me
deu tréguas. Tinha de procurar o indivíduo e porventura, caso o encontrasse, devolverlhe o documento. E não é que o encontrei mesmo! Tinha tentado decorar-lhe as feições
para não me enganar no destinatário e depositário do meu acto cívico, mas quase que
não foi preciso. Três ou quatro compartimentos à frente, lá estava ele. Ele e a mulher,
aparentemente nervosos e irrequietos, a revolver as malas. Quando cheguei, com o
passaporte na mão, não precisei de dizer nada. Ele olhou para mim, com um olhar
aliviado mas também desconfiado (talvez por pensar, suponho, que pudesse ser eu o
autor da nefasta “brincadeira”). E desatou a falar muito depressa naquela língua cheia de
sons agrestes. Não percebi nada, claro. Pus na cara o ar mais inocente do mundo e
expliquei-lhe em inglês (no meu péssimo inglês, diga-se) o que tinha acontecido. Pelos
gestos dele e o olhar da mulher, pareceu-me que ele não parava de dizer que tinha sido
roubado. Pediu-me que lhe mostrasse o local onde eu havia encontrado o passaporte e lá
o fiz, sempre com o seu “interesting”. Explicou-me então que lhe tinham roubado a
carteira antes da paragem em Praga – pelos vistos, vinha de Berlim – e que, quem quer
81
fosse, devia ter largado o documento na casa de banho do comboio. Pediu-me para que
eu fosse testemunha, no caso de fazer queixa à polícia. Disponibilizei-me, claro está.
Depois, levou-me com ele à procura do revisor e, quando o encontrámos, voltou a
contar a história toda. Pelo que consegui perceber, foi-lhe dito que o carteirista
provavelmente ter-se-ia apeado em Praga. E agora só a polícia checa é que poderia
tratar do assunto. Não valia a pena, como é evidente. Mas lá tentei deixar com o homem
o meu nome e o contacto. Ele recusou. Estava resignado; sabia que não havia nada a
fazer. Pelo menos tinha recuperado o passaporte. Agradeceu-me por fim, sem grande
entusiasmo mas de forma correcta, com um aperto de mão e despediu-se. Começo a
pensar que os austríacos devem ser todos assim, comedidos na manifestação das suas
emoções. Agora, de volta à minha cadeira, ou banco, sei lá como é que esta coisa se
chama, ponho-me a pensar no que terá perdido aquele homem. A esta hora, o cartão ou
os cartões de crédito, não faço ideia, devem estar em plena actividade. Terá sido um
checo? Talvez, é provável que sim. Acredito nisso porque corresponde exactamente à
imagem com que fiquei dos checos, uma imagem bastante negativa. É um País
desconcertante, quer dizer, a cidade de Praga. Mas também o País. Em primeiro lugar,
pressinto que há um fosso enorme entre os que vivem em Praga (a única cidade checa
que parece ser merecedora desse nome) e os outros. Depois de termos atravessado a
fronteira alemã, observei o ar desgraçado dos jovens checos, adolescentes, que
entretanto foram entrando no comboio. Com roupas completamente fora de moda,
antigas, do tempo das avozinhas. Estou a lembrar-me daquele rapaz, que parecia ser um
estudante universitário, pela idade que aparentava ter, com um caderno rasca e um lápis
quase no fim, todo gasto, como instrumentos de estudo. Aliás, quando chegámos a
Holešovice, o nosso “apeadeiro” em Praga, senti um baque. Uma estação decadente,
suja, confusa, a começar pelo facto de que mais parecia um armazém, tipo entreposto de
mercadorias. Talvez com o seu quê de pitoresco por fazer lembrar, no meu imaginário,
o universo do Leste europeu da Guerra Fria, das terras sob a ocupação soviética. À saída
do comboio, havia um autêntico formigueiro de pessoas a oferecer milagrosas
accommodations de última hora. Para quem não tinha qualquer reserva. Tive receio de
que, no meio daquela balbúrdia, alguém me roubasse ou à tua mãe. O enxame de novos
“empresários” por conta própria, à boa maneira (imagino eu!) dos antigos anos do
charme venenoso soviético, continuou pela estação fora. Troquei marcos alemães por
coroas checas e tentei orientar-me por entre toda aquela desorientação. Aproveitei para
fazer logo a reserva do comboio para Viena e metemo-nos no metro. Outro baque: um
mergulho em catacumbas soviéticas, como se estivéssemos a fazer uma visita a
prisioneiros políticos enfiados em buracos imundos no subsolo. O som da língua checa,
o ar soturno das carruagens de metro, das estações, das pessoas, tudo me fazia lembrar a
cidade de Moscovo que imagino, aquela imagem com que se fica dos filmes da Guerra
Fria. Ao chegarmos a Můstek, à superfície, caminhámos em direcção à Praça Venceslau
(que fica, aliás, a cinco minutos a pé da Old Town Square, uma das ex-líbris de Praga) e
nova impressão de desalento. Ou seja, só por ali, dá para perceber rapidamente que,
sendo a cidade uma autêntica feira de vaidades arquitectónicas, é também uma enorme e
aterradora montra do capitalismo desenfreado. Sem exagerar, são milhares os turistas
que andam acotovelados na Praça Venceslau, a célebre Václavske náměstí (palco da
“Revolução de Veludo”, já lá vão quase onze anos), que mais parece a Quinta Avenida
de Nova Iorque. É um paradoxo assombroso para quem chega desprevenido, como era o
nosso caso. Numa palavra, a cidade é de facto maravilhosa, linda, mas depois do
deslumbramento inicial o que resta é a sensação de que se está num centro comercial
gigantesco. Marcos alemães, coroas checas, eurocheques, dólares americanos (“Money
is money”, disse-me uma empregada de uma loja), tudo se vende e compra em Praga.
82
Os sinais de uma possível memória colectiva da ocupação soviética, que poderiam
constituir – para nós, ocidentais, no verdadeiro sentido da palavra, do extremo ocidental
da Europa – o principal atractivo turístico, para quem se interessa por essas coisas, claro
está, depressa se desvanecem e se convertem tão-somente num supermercado à escala
da cidade, um só e sempre o mesmo supermercado do tamanho da capital checa.
Desvirtua tudo o que de bom a cidade poderia oferecer. Para mim, claro. Ainda por
cima, e de uma forma geral, os checos são abrutalhados; só pensam no lucro fácil e
estão sempre prontos para enganar os turistas e os viajantes. Até compreendo, ou tento
compreender, esta corrida alucinada, esta sede descomedida de padrões capitalistas na
forma de estar e negociar, depois de tantas décadas de privações e opressão. Mas
precisava de entrar na cabeça dos checos para perceber esta súbita vocação comunista
pelo capitalismo imperialista. O problema é que a minha cabeça é outra e tudo isto
parece extravagante e completamente descontrolado. A História repete-se. Ou, no
limite, algumas histórias da História. Só muda a paisagem; porque a lógica e os efeitos
deste frenesim em nada diferem da corrida ao ouro e às terras selvagens do Oeste norteamericano no século dezanove. Resta saber quem faz aqui o papel dos nativos
americanos que foram atacados e expulsos dos seus territórios tradicionais.»
Curioso: palavras escritas quatro dias antes do onze de Setembro.
83
XI.
Tiago Penha nunca foi muito dado à História. Era curioso, astuto, interessava-se por
procurar ter uma visão mais ou menos global do mundo em que vivia, mas sofria
inevitavelmente de profundos hiatos de conhecimento, tanto mais que, por razões
profissionais, havia sido obrigado a absorver o intricado universo dos bytes e
contrabytes, e nem esse dominava com a segurança que desejava. Nada de
extraordinário para um homem que tanto se consumia a trabalhar como a tentar
reordenar a desordem da sua vida, a suposta vida dupla de que acreditou ser
protagonista até um determinado momento, o avanço da idade e, por conseguinte, a
mumificação lenta trocaram-lhe as voltas, e por culpa dele, e da sua pressa exagerada
em assumir a desproporção, entre o que era e o que fingia ser, como desculpa, uma
forma cínica de garantir a falsa coerência, porque tudo o que era como ser humano
fundava-se numa venerável catadupa de aparências. E de ilusões. Para os outros e para
ele próprio. Pela incapacidade em aceitar, pela teimosia em recusar. O mais estranho é
que acabou por render-se e de forma prematura. Como se houvesse decidido de repente
atirar a toalha para o chão e dizer que este jogo não lhe interessava mais. Estou velho,
mas ainda não estava, e estou farto, o que também não era verdade. É certo que pode
parecer confuso e contraditório; porém, é disto mesmo que se fazem os paradoxos. Se
servidos por um carácter normativo de uma extrema racionalidade. Que era o caso de
Tiago. Uma racionalidade fria e dura como o aço. Feita de carbono e ferro, bem
entendido. Não obstante a impudência e todo o cinismo que se captavam no exterior
dele próprio, pelos seus actos. Na verdade, e dito de forma simples, quase numa palavra,
tudo o que Penha fazia era simplesmente esconder-se, a todo o custo, sem vontade de
aceitar o ónus da infelicidade que havia resultado das pequenas e efémeras felicidades
que passara a vida a perseguir. Tão-somente para esquecer o supremo infortúnio, o
crime original e a matriz punitiva que daí decorreu para o resto da sua vida.
Se não tivesse traído Maria Clara, se não tivesse perdido a filha – que nunca o chegou a
ser na realidade, pois não passou de um peso morto afogado no interior do ventre da
mãe, submerso em líquido amniótico contaminado de sangue – se não tivesse insistido
na vocação de experienciar uma estranha forma de masoquismo, mantendo uma relação
condenada, se não amasse esse próprio relacionamento envenenado, é bom que se
sublinhe, ao mesmo tempo que amava o veneno de relações proibidas, se não tivesse
passado a vida a fugir, e a fingir, amarrado à monotonia da diversidade que tanto
rejeitava como pela qual se deixava seduzir, se não tivesse confiado o seu destino aos
maus costumes, para foder as mágoas que o fodiam em busca de orgasmos que nunca
haviam sido orgasmos a sério mas apenas pequenos frémitos de prazer fugidio, se não
tivesse escorregado na convicção de que a desilusão é eterna e insolúvel, talvez não se
entregasse, quando chegou o momento, ao pretexto de estar velho e agastado, quando
tudo o que fazia, sublinha-se mais uma vez, dizia o contrário. Quer dizer, não
propriamente o contrário, mas uma inflexão; a debandada, desta vez total. A demissão
de existir. O que também era mentira. Porque continuou a foder as mágoas que o
84
fodiam, porque continuou a confiar nos maus costumes, porque continuou a amar a
relação moribunda que sempre havia mantido com Maria Clara.
Entre a história do Mundo e as histórias dos homens, esta era a história ininterrupta e,
afinal, tão tristemente linear de Tiago Penha. A história que devia ter registado também
naquele caderninho de bolso com as páginas presas por argolas, de capa azul, a cor do
céu e do espírito, o diário de bordo que havia combinado escrever a duas mãos com
Maria Clara naquela viagem pela Europa, nesse ano fatídico de dois mil e um,
despedida da vida em par para preparar a vida ímpar com o anúncio da chegada do
primogénito, Ester, a estrela hebraica.
Contudo, tanto Tiago quanto Maria estavam longe de supor o que se seguiria. Não é que
não fosse difícil de adivinhar, mas o desejo da bem-aventurança tem sempre um encanto
hipnótico de natureza alienante. E aquele não era o momento para crises de fé. O que até
pode ser lamentável, porque ao invés do relato por vezes tão extenso e fastidioso que só
aos dois parece interessar, pelo menos nalguns trechos desta longa sinfonia em
duplicado, uma azul, outra cor-de-rosa, a cor das emoções e dos sentimentos, talvez
tivéssemos agora mais chaves para abrir novas portas destas duas vidas, caído o pano
sobre o palco, após uma dança clitórica tão diligentemente conduzida, com a morte
imediata de um e a morte a prazo de outro.
É que, ao contrário do que sucedeu com a ligação Lisboa-Paris-Frankfurt-Berlim,
objecto de uma descrição relativamente equilibrada na justa proporção do interesse que
podem suscitar os factos narrados, Praga rendeu uma verdadeira praga de palavras. Com
um substantivo comum, repetido exaustivamente: desilusão. É certo que talvez a pena
estivesse já a deslizar melhor, que isto de escrever arranca aos solavancos mas quando
motor o pega não pára. Talvez o milagre da multiplicação dos fenómenos observados, e
vividos, estivesse a motivar comoções e reflexões cada vez mais longas, com a fluidez
perturbada pelo cansaço, gerando mais duplicações e passos em volta. Ainda assim,
provavelmente extirpando o que para alguns poderá ser enfadonho, as entradas nos
diários de bordo não deixam de ser esclarecedoras. Além do relato supracitado, Penha
deixou ainda várias notas à margem sobre a capital checa. Quanto a Maria Clara, as
impressões de Praga foram lançadas no seu caderno cor-de-rosa a uma velocidade
estonteante, com muitas rasuras e partes quase ilegíveis, tudo de uma assentada, escritas
à mesma hora que Tiago, no comboio a caminho de Viena. Possivelmente com o feto
aos saltos no seu ventre, a Ester uterina em explosão celular. Uma Ester livre, pelo
menos tanto quanto se sabe, de ter também no seu próprio ventre um outro feto. A
bizarria pode não fazer qualquer sentido, mas não é o que dizem na República Socialista
do Vietname, em Hanói, onde no sagrado ano de dois mil e cinco, quatro anos depois da
viagem de Penha e Maria, um bebé de sete meses teve de ser submetido a uma operação
de três horas para que lhe fosse removido da barriga um feto de quase meio quilo. Era o
irmão gémeo do bebé vietnamita que, ao que parece, havia confundido tudo no útero da
mãe. Definitivamente foi um período fervilhante em matéria de excentricidades. Nesse
mesmo ano, afinal tão sagrado quanto profano, a cineasta indiana Deepa Mehta decidiu
contar a história de Chuyia, uma menina que aos oitos anos não só já havia casado como
também enviuvado, sem nunca ter conhecido o marido.
«Praga, Setembro sete, quinze e trinta
Acabámos de partir de Praga para Viena. Desilusão, desilusão, desilusão. Não de Praga,
mas dos checos. Quando chegámos, logo na estação ferroviária, uma avalanche de
pessoas com ar duvidoso cercou-nos e não nos largou mais com milhares de ofertas de
locais para a nossa estada. Dizíamos que não, mas insistiam. Pareciam cola. A estação,
essa, era simplesmente horrível. Suja, feia. Estas pessoas que nos cercaram
enquadravam-se perfeitamente no cenário. Enfim, parecia que tinha entrado noutra
85
dimensão. Parecia-me mais um País subdesenvolvido, de Terceiro Mundo, algures dos
confins do hemisfério sul. Sinceramente não estava à espera de uma recepção destas. No
entanto, ainda havia mais. Quando saímos da estação de metro, no centro da cidade, e
demos de cara finalmente com Praga propriamente dita, ficámos sem reacção,
boquiabertos. Será que nos tínhamos enganado na cidade? Estávamos a falar de Praga,
aquela que vemos nos folhetos turísticos? Devia ser engano de certeza. Aliás, não
consigo encontrar uma outra palavra que se aplique: engano. Fiquei sem conseguir
respirar. Mas é preciso explicar melhor: na verdade, até demos de caras com uma cidade
monumental, lindíssima. Mas inundada de pessoas, de turistas. E quando digo inundada
significa literalmente inundada de pessoas. A tal ponto que quase não conseguimos
andar no meio da multidão, todos aos encontrões, uma confusão total. E acabou por ser
uma grande desilusão à medida que fomos andando para o centro. A cidade está
transformada num grande centro comercial para turistas. Lojas de marca, lojas de
recuerdos de Praga, há de tudo à venda. E cuidado: todos os checos a tentar enganar ou
a iludir os estrangeiros com as ofertas mais mirabolantes. Mesmo que nos afastemos do
centro, não se consegue andar sem ser interceptado constantemente por um checo a
oferecer locais para dormir, moeda local a taxas de câmbio mais baixas, etc. Praga é
uma aventura. Começou logo no hotel. Enquanto estava a discutir o preço da diária com
o Tiago, porque me pareceu muito cara, o recepcionista vira-se de repente para nós e,
com sotaque brasileiro, pergunta-nos em português se somos de Portugal.
Aparentemente, tudo mudou ali. Arranjou-nos logo um quarto com um preço mais
baixo e prometeu-nos que no dia seguinte arranjaria um outro com vista para a praça,
para a Old Town Square onde ficámos. Uau! Fantástico! Afinal, nem tudo é mau nesta
cidade, pensei eu. Engano. Foi sol de pouca dura. Mas foi mais tarde, no final da noite.
Primeiro, fomos jantar. Curiosos os restaurantes, todos em caves, subcaves, às vezes
três ou quatro pisos abaixo do solo, mesmo lá em baixo, a uma profundidade medonha.
Asfixiante. A explicação que nos deram é que a cidade está cheia de túneis subterrâneos
e caves profundas que serviam de abrigo e esconderijos por altura da invasão dos
comunistas russos. Após a comidinha, decidimos ir a um bar de jazz. É o mais antigo e
o mais famoso de Praga, onde o Clinton tocou quando visitou a cidade. No regresso ao
hotel, já sem o brasileiro, agora com uma recepcionista provavelmente checa, com um
inglês medonho, ficámos a saber que havia um pequeno problema. É que o hotel tinha
um acordo com uma agência de viagens, a qual já tinha feito uma reserva antes de
chegarmos, pelo que estava completamente cheio. Ou seja, afinal não tínhamos quarto.
Nem para as traseiras nem virado para a praça. O hotel estava esgotado. Mas que não
nos preocupássemos. Já tinham arranjado uma solução. Havia um outro hotel com
quartos disponíveis e tinham tomado a liberdade de nos reservarem um. Liberdade? Que
hotel? Onde? Não adiantava muito. E lá fomos nós de mochilas às costas, já era de
madrugada, a caminho do tal hotel, seguindo as instruções que a recepcionista nos deu.
Pelo nosso pé, claro, que não havia ninguém para nos acompanhar. Nova surpresa. O
hotel ficava perdido num beco no meio daquelas ruelas estreitas e sujas, longe de tudo, e
acolhedor não era propriamente a expressão aplicável para o caracterizar. Conseguia ser
bem pior que o primeiro. Ao qual fomos, aliás, pelo aspecto não deveria ser muito caro,
precisamente para não gastarmos muito dinheiro na diária. Mas agora este nem sequer
era um hotel. Era uma residencial, tipo pensão, mas mesmo daquelas rascas. Na manhã
seguinte, precisámos de trocar mais dinheiro e dirigimo-nos a um banco na esperança de
não cairmos no engodo das compras de coroas na rua. Mas mais um problema:
exigiram-nos os passaportes. Não os temos connosco. Estão guardados no hotel. Azar. E
cometemos o nosso primeiro erro. Fomos a uma loja de câmbios. Usámos novamente
marcos alemães para comprar coroas e ficámos com a sensação de que as contas não
86
batiam certo. Mas com tantas moedas diferentes, sempre a fazer o câmbio mental para o
escudo, hesitámos. Saímos da loja e cá fora, com mais calma, voltámos a fazer as
contas. Pelas taxas de câmbio que tínhamos visto, tanto no banco como na loja,
deveríamos ter recebido cerca de onze mil coroas. Mas a rapariga que estava lá no
balcão deu-nos apenas nove mil e oitocentas coroas. Insisti com o Tiago, voltámos ao
banco para conferir mais uma vez as taxas e confirmou-se: as nossas contas estavam
certas. O que quer dizer que estávamos a ser roubados em mil e duzentas coroas. Mais
uma voltinha, de novo agora até à loja de câmbios. E a rapariga explicou-nos que estava
tudo escrito na placa afixada à porta. Em letras pequenas, cá em baixo. Ou seja, punham
ao bolso mais ou menos três coroas por cada marco. Fiquei furiosa. Mas tive de engolir.
Afinal, a burrice tinha sido nossa. E eles aproveitaram-se. Claro. Temos de estar muito
atentos com esta gente. Pouco educada, aliás. Foi um pormenor que me saltou à vista.
Os checos são, na sua maioria, extremamente mal-educados e muito brutos. Mesmo
assim, o dia acabou por não correr muito mal. Andámos quilómetros. De manhã
passámos pelo mercado de Praga, já sem surpreender: degradante, do pior que se possa
imaginar. Bancas pouco convidativas a condizer com as pessoas que lá estavam a
vender. Comprámos apenas dois CDs que nem sequer conseguimos ouvir porque no
mercado não há como. Pareceu-me música tradicional checa. Resta saber se os CDs têm
mesmo alguma coisa gravada. Mais uma desilusão. E é este o maior mercado da cidade!
Uma nota: invadido por dezenas de sem-abrigo. À tarde, decidimos visitar o famoso
castelo de Praga, construído no século dezoito, o mais antigo da cidade e um dos
principais pontos de atracção turística. Tive de parar para pensar se ainda estava na
capital checa. Que contraste! Aqui estava uma realidade completamente diferente.
Monumentos lindíssimos. O castelo, a catedral de Týn (vi no guia do Lonely Planet, que
o nome é mais complicado: Church of Our Lady before Týn, na versão inglesa), a ponte
de Carlos ou Charles (tem de ser em inglês, que em checo não lá vamos), magnífica,
sem dúvida a mais bela das muitas que cruzam o rio Vltava. Deste ponto de vista, é
realmente fantástico. Quase ficava sem palavras a observar este ou aquele detalhe. Seja
qual for o monumento, há sempre pormenores arquitectónicos espantosos. O problema,
claro, são os turistas, mas quanto a isso não há nada a fazer. Sempre multidões, grandes
grupos em correria pelas grandes atracções da cidade. A começar pelo célebre Orloj, o
precioso relógio astronómico medieval, na torre gótica da Old Town Hall. É de fazer
parar a respiração. Século quinze. Não deixa de ser curioso. A ideia com que fiquei é
que Praga só parece ser uma excepção em relação ao resto do País precisamente pelo
património histórico, pelos monumentos. É o seu sinal distintivo. Pelo menos pelo que
pude perceber ao percorrer uma parte do território checo a partir de Berlim. Não parece
haver mais nada. A República Checa é Praga e ponto final parágrafo. Olhei para as
pessoas que entravam no comboio: com um ar cabisbaixo, humilde, subserviente, com
roupas velhas e usadas, já fora de moda. E em Praga toda a gente altamente produzida.
Especialmente as mulheres, bastante provocadoras, com os últimos gritos da moda.
Onde é que já vi coisas parecidas? Em países que enriquecem depressa? À custa do
turismo, abrindo ainda mais o fosso entre pobres e ricos, aqui neste caso, separados
entre a capital e o resto do País? Em Praga, percebe-se perfeitamente que só lhes
interessa o dinheiro e não olham a meios para conseguirem obtê-lo. O dia acabou com
um episódio curioso: quando regressávamos de metro ao hotel, à saída, fomos barrados
literalmente por um cordão humano. Ainda pensámos que devia ser mais um grupo
tresloucado de homens a querer vender qualquer coisa. Tentámos evitá-los, mas eles
insistiram e não nos deixaram passar. Depois, pelo ar carrancudo deles, desconfiei de
que devia tratar-se de outra coisa qualquer. Um deles mostrou-nos um crachá, que não
deu bem para perceber do quê, mas aparentemente eram revisores, inspectores, ou algo
87
do género ao serviço do metro (embora tudo aquilo tivesse realmente um ar muito
duvidoso), a controlar os bilhetes. Segundo erro: não tínhamos bilhetes. Quer dizer, o
passe de um dia que tínhamos comprado havia expirado há três horas. Resultado:
oitocentas coroas de multa. O curioso é que, além da intransigência total, tipo tolerância
zero, percebia-se que se tinham espalhado pela galeria do metro de forma estratégica, ou
seja, apenas para barrar quem tinha ar de ser turista. Azar o nosso. Pelos vistos
encaixámos no perfil. Mas era evidente o intuito. Ao olharmos à nossa volta, de facto só
tinham mandado parar turistas, pessoal com mochilas, sacos de compras, etc. Ainda
restam dúvidas? Tínhamos de sair de Praga o mais rapidamente possível. Metem-me
nojo estes checos. Respirei de alívio há bocado quando me sentei neste comboio a
caminho de Viena. Mas mesmo assim ainda tinha de haver mais uma: a história do
passaporte que o Tiago encontrou. Um austríaco vítima de um carteirista alegadamente
checo que vinha de Berlim. Sem palavras. Sinto-me irritada. E ao mesmo tempo
começo a ficar aliviada por sentir finalmente que vou livrar-me destes checos
repugnantes.»
Palavras duras de Maria Clara, tão duras quanto a contundência que presidia ao
sentimento que levava de Praga. A mulher tímida e insegura que Tiago Penha tinha
conhecido começava a dar os primeiros sinais do seu crescendo de raiva permanente,
ainda que prematuros, pois aparentemente nada havia que os justificassem, que o tempo
para lhe dilatar as veias do opróbrio ainda estava para vir. Se Penha houvesse tido a
oportunidade de ler esta entrada no diário de bordo da companheira decerto que se
interrogaria. É certo que ele próprio também não havia ficado com boa impressão dos
checos e revia-se em parte nalgumas observações de Maria Clara, mas a desproporção e
os excessos do desagrado dela teriam outros motivos que talvez só pudessem
encontrados por quem soubesse ler nas entrelinhas. É que muito do que viveram ao
longo destes dias de viagem não foi dito nem nunca ficou escrito. E o mais estranho é
que grande parte das omissões está relacionada precisamente com Praga, o que faz
sugerir não só uma intenção deliberada nesse sentido como a possibilidade de ter
ocorrido algum episódio particularmente marcante que tenha induzido tantas lacunas
descritivas. Como a passagem pela antiga prisão de Karlovo náměstí, no centro da
cidade, bem perto da Praça Venceslau, que Václav Havel bem conheceu, ou pelo
angustiante centro prisional de Pancrác, que aparece em vários folhetos turísticos como
um destino a não perder sob o slogan “visite Praga, uma cidade de sonho”. Ou pelo
número vinte e dois da Rua do Ouro, onde viveu Kafka, no castelo de Praga – a que
Maria se refere, acrescentando apenas o encanto que sentiu perante a catedral de Týn,
mas omitindo misteriosamente a sedução medieval daquela rua de casas coloridas, que
tanto faz lembrar o centro histórico de Rouen, na Normandia, onde queimaram Jeanne
d'Arc, a bruxa e guerreira de Orléans – ou pelo hospital Bohnice, com vista para o rio
Vltava, um centro psiquiátrico que foi palco de grandes atrocidades em nome de uma
“cura” para os loucos.
É de facto muito estranho, deve-se insistir, porque provavelmente foram estas as
experiências mais significativas vividas pelos dois em Praga e que deveriam dar azo a
muitos comentários nos cadernos de bolso com as páginas presas por argolas. Estranho
porque nem Maria Clara nem Tiago Penha fazem qualquer alusão às mesmas. Se Penha
não tivesse falado sobre o assunto mais tarde com Simão Saraiva, nunca se chegaria a
saber que a passagem por Praga não se havia resumido praticamente à Old Town Square
e à Praça Venceslau, no centro da cidade. Afinal, conheceram mais do que dizem ou
escreveram. O que poderá indiciar, repete-se aqui pois nunca é demais, que
experienciaram algo que não quiseram que se soubesse. Mesmo tratando-se de diários
88
que supostamente seriam apenas para leitura exclusiva dos respectivos autores. O que
torna tudo bastante enigmático.
Qual terá sido a verdadeira razão para tamanha ferocidade contra os checos que Maria
Clara manifesta no seu diário? Não terão sido decerto as abordagens constantes nas ruas
de Praga com convites para espaços de diversão nocturna com sexo ao vivo, para casas
de swinging ou outras actividades inovadores de sexo a três, a quatro ou a cinco, em pé
ou deitados, em caves ou em pontes ou em torres, que nisso os checos são bastante
engenhosos e inventivos, desde que haja coroas, marcos ou dólares, e agora também
euros, em quantidade suficiente. Aparentemente, nem Maria nem Tiago estavam para aí
virados. Ou ter-se-á sentido por perto o doce veneno do escorpião, esse temível
aracnídeo que nem no Zodíaco escapa de ter fama de má rês? O mesmo invertebrado
artrópode que atacaria mais tarde o relacionamento deles, aliás, em boa verdade pouco
tempo depois? É que o escorpião tem um móbil gravitacional que é tão-só o prazer e a
posse na sua relação com o outro; o sexo e a paixão possessiva, o amor e o ódio.
Sempre pronto a atacar.
Quando descobriu as aventuras de Penha pelos baixios vaginais de outra mulher, estava
Maria Clara ainda grávida de Ester, a estrela hebraica, antes desta se afogar no líquido
amniótico da mãe, fingiu a audácia altruísta do indulto, a falsa roupagem do perdão,
quando na verdade havia ditado a sentença, a tal espécie de sopro na nuca que aqui já
foi referida, uma leve aragem cuja intensidade foi aumentando; a brisa amena inicial
deu lugar à ventania e a ventania deu lugar à tempestade ciclónica, a um bafo
insuportável de enxofre vulcânico. Na prática, um atalho de Maria Clara para o acesso
rápido à diabolização do objecto do pecado com vista ao exorcismo do mesmo. À
medida que foi cedendo à demência. Porque não era possível recuperar o irrecuperável.
E assim sendo, mais vale ser louco e feliz, do que são e infeliz. Tanto mais que não é
fácil discernir a linha que separa a sanidade da insanidade, ao contrário do que sucede
com a felicidade, seja ela feita de pequenas felicidades, porventura as mais reais, ou a
plena bem-aventurança que definitivamente não faz parte do mundo dos sãos, como é
bom de ver.
Terá sido culpa de Bohnice, morada de doidos, malucos e loucos? Oitenta e oito
edifícios e pavilhões, dispostos radialmente a partir de um parque ajardinado em estilo
inglês com uma igreja com características típicas da art nouveau?
(Web Forum: Não compreendo quem fala mal de Praga. É uma cidade linda! A que se
segue outro comentário, também no feminino: Europa do Leste é linda sim! E ainda
outro, em brasileiro, de alguém que reside em Itália: Estive em Praga e fiquei fascinada
com a História, o povo, a gastronomia exótica, o idioma complicado. Mas entendem
inglês, além de que amam o italiano. Sucede uma observação em português, desta vez
no masculino: Também conheço bem Praga e o hospital de Bohnice. Apesar de um
certo ambiente de abandono – ou talvez por causa disso – uma visita àquele hospital é
uma óptima forma de passar uma tarde solarenga. As portas estão abertas, e o
visitante, depois de passar pelo edifício da recepção – não há necessidade de se
identificar ou de interagir com alguém – estará perante a igreja e um amplo espaço
verde onde berços de flores lhe sorriem. Depois, é explorar. Os edifícios, ou pelo menos
a maioria deles, são palacetes da antiga nobreza, trinta e seis deles pavilhões para
albergar doentes. E uma nova réplica, de alguém que igualmente parece conhecer bem
Bohnice: Concordo totalmente. O silêncio, a calma e a serenidade dominam todo
aquele espaço. É o local ideal para procurar algum isolamento, para ler, escrever ou
criar, de uma forma geral. Todo o hospital respira uma majestosidade centenária, só
estragada de vez em quando com alguns eventos bizarros como por exemplo o festival
de rock de Bohnice, que se realiza todos os anos, geralmente em Maio, e que já é um
89
clássico de Praga. Mas depois, além de tudo isto, há imensos cafés e esplanadas. O
único senão é que, a partir de uma determinada hora, julgo que às sete da tarde, deixa
de ser permitida a venda de bebidas alcoólicas nestes estabelecimentos)
Fica claro. Ou nem por isso, pois jamais se saberá o que se passou em Praga, se é que
tudo isto não passa de mera especulação. Tiago Penha deixou ainda umas breves notas
sobre a cidade, escritas pouco depois da primeira entrada.
«Praha, a caminho de Wien, Setembro sete, notas à margem
Os checos praticamente só bebem água gaseificada. Os restaurantes estão localizados
em subcaves; parecem abrigos contra uma guerra nuclear. As carruagens de metro
circulam numa profundidade ainda maior, por inspiração decerto de Jules Verne. E têm
por hábito fazer travagens bruscas e imobilizarem-se por completo no meio da escuridão
dos túneis. Sem qualquer explicação aparente. As escadas rolantes movem-se a uma
velocidade muito superior à que costuma ser normal. Não sei se é por uma questão de
libertar rapidamente os passageiros mais dados à claustrofobia ou pela tensão
fervilhante que agita a cidade: lançar depressa os turistas na rua para que gastem muito
dinheiro. Putas ao pontapé e à descarada por tudo o que é sítio, incluindo os locais
“sagrados” do turismo checo. Ou talvez mesmo por isso. Tanto de dia como de noite. É
um País curioso esta República Checa. Devia ter estrangulado a funcionária do Bureau
de Change que nos roubou quase dez contos numa transacção de apenas setecentos
marcos. O melhor é recostar-me na cadeira e apreciar a paisagem e a sensação agradável
de estar prestes a abandonar a terra de Kafka. Com esta breve experiência, penso que
agora percebo melhor por que razão um funcionário de uma companhia de seguros
especializada em acidentes de trabalho escreveu livros como O Processo ou A
Metamorfose, em alemão, claro.»
Kundera fez o mesmo, mas em francês. Dizem os especialistas que a língua checa não
se presta muito à criação literária, pelo que, apesar de dominar o idioma, Franz Kafka
sempre escreveu em germânico e mesmo assim foi o cabo dos trabalhos para ser
traduzido, ou não fosse ele dado a frases tão extensas que chegavam a ocupar duas e três
páginas; uma única frase, em alemão, imagine-se. Em tempos do império AustroHúngaro, onde tanto se falava checo como eslovaco, polaco, ucraniano, esloveno,
sérvio, croata, bósnio, italiano, romano e até árabe e yiddish, além do alemão e do
húngaro, as línguas “oficiais” do Estado, não laico, mas católico. Que o Vaticano
sempre deu o seu beneplácito, dir-se-ia régio, a desejos expansionistas conducentes a
governações de modelo imperialista. Desde que se mantivessem, claro está, sob os bons
ofícios do bom serviço a Nosso Senhor. Pela fé e a conversão dos infiéis. Rezar e
conquistar, pregar e ocupar. “Deus eterno, Criador de todas as coisas, lembrai-Vos que
as almas dos infiéis são obras de vossas mãos, e que são feitas à vossa imagem e
semelhança”, orava São Francisco Xavier, o Apóstolo do Oriente e das preces pela
indulgência, entre Cruzadas e outras benfeitorias cristãs, como mandavam os bons
costumes dos missionários de São Paulo. À cautela, Kafka bem poderia ter tentado
também o prussiano, que sempre cairia nas boas graças dos soviéticos, apesar de ainda
tardar a invasão da Checoslováquia, muito depois do incidente de Sarajevo e da nova
vaga da ocupação nazi. Tudo coisas que não viu, nem sentiu, a não ser a derrocada do
ancien régime Austro-Húngaro, que lhe passou ao lado. O mesmo não puderam dizer as
irmãs, e respectivas famílias, deportadas para o ghetto polaco de Łódź, onde foram
mortas. A mais nova, Ottla Kafka, andou a saltitar entre outros campos de concentração:
primeiro no de Theresienstadt, ainda no norte de território checo, depois em Auschwitz,
o célebre campo de extermínio em massa de judeus e cidadãos afins. Também foi morta.
Por estas e por outras, considerando o carácter intempestivo que dele se tem vindo a
conhecer, Simão Saraiva costumava dizer que judeus e árabes é tudo a mesma praga.
90
— Não vês aquela merda da Palestina? É como o ovo e a galinha. O que é que nasceu
primeiro? E o mais irónico é que os judeus não aprenderam a lição. Diz-me lá se eles
não estão a fazer aos palestinianos o mesmo que lhes foi feito pelos nazis? Acossados
pela Europa, os tipos entram por ali dentro com a cavalaria americana a reclamar as
terras santas e põem os outros desgraçados em ghettos. Tal e qual como faziam os
cabrões dos alemães — afirmou Saraiva uma vez, quando começaram a trabalhar em
Madrid, estava ele e Penha numa casa de putas em Recoletos, que são agora chamadas
de bar de copas para despedidas de solteros (um eufemismo bem ataviado, digno do
sentido de humor que grassa por Zarzuela, embora estas atracções turísticas não devem
ter atraído e traído El Rey, nascido Infante Juan, em Roma, não sendo ele solteiro nem
muito dado, dizem as más línguas, a copas, sobretudo quando andam perdidas num
baralho ainda com muitas cartas por dar).
Estranho: Recoletos, tal como La Recoleta, em Buenos Aires, que os porteños
classificam como o melhor da cidade, enquanto morada de senhoras distintas e discretas
mães de crianças, disponíveis para amar e dar a conhecer o seu culito a troco de un
poquito de cariño y mucha plata.
(“Entregas el culo por plata?”, poderia ter perguntado, se soubesse hablar español. Ao
que ela talvez respondesse: “Sí, estoy buscando un hombre para que me rompa el culito.
La verdad es que busco alguien mayor que me encanta para que me desvirgue el culo.”
Não, não tinha sido assim. Ele lembrava-se bem; ela disse outra coisa: “Me gusta así.
Por atrás.”)
— Acho que a ideia da ONU era a divisão do território em dois Estados: um árabe e um
judeu. Mas ao que parece os árabes nunca viram a coisa com bons olhos — articulou
Tiago a custo, subitamente com os pensamentos baralhados, mal sentiu a intromissão da
ninfa de olhos de verdes da Tierra del Fuego.
Por que razão voltara a pensar nela? Com efeito, se medisse bem o pulso da noite, talvez
tudo se encaixasse. Recoletos e La Recoleta, Ciudad del Fin del Mundo e Simão
Saraiva, e a filha de Ushuaia, que fugira para Recife, aliás Olinda, a ressuscitar nas
memórias de Buenos Aires. Tudo com a ajuda preciosa de um destilado de cevada
escocês, cujo nome desconhecia, fora Simão quem escolhera, e da atmosfera hormonal a
atiçar os esteróides, esses louváveis controladores do tráfego químico, glândulas
endócrinas que passam a vida num vaivém de mensagens, para que não se descoordene
a actividade das diferentes células dos organismos multicelulares, enfim, coisas dos
sistemas hormonais, mistérios científicos da tal química do amor que, se evocada sem
alguns fulgores poéticos, torna-se bestialmente fastidiosa, além de que requer alguns
cuidados, não vá dar-se o caso de se confundir sexo com amor, objectividade com
subjectividade, que nestes delírios da intimidade e do carinho basta recordar o que
sucede com os chimpanzés pigmeus, que afinal fazem sexo por prazer e não apenas com
fins reprodutivos, ou mesmo com os golfinhos e pinguins, sendo certo que estes
merecem cuidados ainda mais redobrados, já que a afeição entre eles é tão forte que
acabam por não ser totalmente heterossexuais. Os golfinhos e os pinguins, entenda-se.
Trata-se, aliás, de um sério revés para todos aqueles que apregoam a homofobia
científica – que nada tem a ver com o socialismo científico, deixem lá Engels
permanecer imaculado, mesmo sendo alemão, e lá voltam os germânicos – pois se é
doença, não a homofobia mas a homossexualidade (pelo menos aqui), está na hora de a
estender também a estas espécies animais, ou não se entregassem elas a práticas de
sodomia e incesto, com variantes homossexuais e bissexuais, já para não referir os
equívocos da identidade transgénica. É que entre gays, lésbicas e trans, o reino animal a
tudo se presta, e bem ilustra como muitas mentes continuam atrofiadas, à mercê do
preconceito transgressivo, nem mesmo Darwin resolveu o problema, tanto mais que
91
apesar de não ser professo do cristianismo era, porém, um moralista tão ortodoxo que
até dava dó, também ele incapaz de compreender que a objectividade do sexo e a
subjectividade do amor, ou da paixão, nunca é demais sublinhar, sempre foram
conceitos de animais racionais e não daquelas espécies que ele quis catalogar, e
tipificar. Mas os golfinhos e os pinguins aí continuam, que é o mesmo que dizer que se
conservam no mesmo estado ou persistem numa qualidade sem mudança, no seu mundo
de afectos, para alguns abjectos, com uma vida sexual solidária assente na tolerância e
na amizade em estado puro, sem pruridos, manifeste-se ela de forma homossexual,
bissexual, transexual ou meramente heterossexual, mesmo com actividades de sodomia
e incesto à mistura, é tudo uma questão de amizade, neste caso particularmente aquática,
que aliás condiciona os prazeres do sexo solitário, a submersão em água e a própria
constituição anatómica destes seres, para sorte dos hermafroditas, como os caracóis, que
nisto não precisam de dar explicações a quem quer que seja.
— A ONU? O que é que é essa merda? Quem são os gajos que financiam aquilo? Não
são os americanos? — indagou Simão Saraiva de forma retórica, num tom que
misturava com requinte a vociferação com a bonacheirice.
Penha sentiu-se perdido, sem conseguir retomar o fio da meada.
— Sentes-te bem? Estás apático. Bem, pelo menos não está pálido — prosseguiu o
amigo, com um sorriso rasgado no limite de dar a impressão de uma gargalhada.
— Deve ser do uísque. Estava com a cabeça a viajar — desculpou-se Penha,
atabalhoado.
— Desde que deixes aqui o corpo ou pelo menos a carteira com o guito, podes levar a
cabeça para onde quiseres — observou Simão, desta vez a rir-se mas sem esconder a
inclinação para a zombaria, ao mesmo tempo que esvaziava o copo com uísque. —
Viajar? De viagens está o mundo cheio. Não é o que tu dizes? Come-se que nem um
alarve, bebe-se que nem um cacho e depois ficamos com a cabeça vazia. Sabes o que
mais? Deixa mas é lá estar a cabecita sossegada que aqui tens muitos buracos para a
enfiar. Só não fiques é com o cu espetado no ar — e voltou a rir-se, cada vez de modo
mais estridente, com a gargalhada a prolongar-se durante uma eternidade.
A música da casa de copas, canções ciganas de puro sangue da Andaluzia tocadas no
coração de Castela, abafava, contudo, uma parte considerável dos ruídos produzidos por
Saraiva. De vez em quando alguns clientes deitavam-lhe um olhar pouco amistoso, tal
como um segurança que se encontrava em pé, tipo estátua, encostado ao extremo do
balcão do bar, junto à porta de saída. Um longo balcão do lado esquerdo, na vertical, de
frente para os canapés estofados dispostos pela sala rectangular até lá ao fundo, que não
se conseguia divisar bem a partir dali, nos quais Tiago e Simão se sentaram quase à
entrada. Deveriam ser uns “privados”, claro está. Sala a meia-luz em tons de vermelho
com uma mescla mais ou menos organizada de sofás individuais e sofás de três e quatro
lugares. Algumas das mulheres que cirandavam pela casa, sem clientes, também
deitavam olhares para Saraiva, tal como para Penha, provavelmente indecisas.
Contemplações de avaliação, umas mais veladas que outras, algumas definitivamente
sobranceiras, se bem que parecia a Tiago que, no seu caso, as vistas que nele recaíam
tinham um toque mais ligeiro, o que queria dizer que, naquele espaço, ele poderia ainda
fazer parte do rol de alvos a atingir. Em troca de uma bebida (sempre a custar os olhos
da cara, embora ele continuasse seguro de que os seus valiam mais) e conversa de
chacha. Ainda por cima em língua oficial espanhola, é bom sublinhar. Valeria a pena? A
questão colocava-se de ambos os lados. Com efeito, Penha e Simão pareciam já ter a
sua conta, especialmente Simão, e a continuarem assim decerto que acabariam no olho
da rua, que ali, mesmo para uma casa de maus costumes, imperavam os bons costumes,
92
e que se lixe a contradição pois negócio é negócio e não se pode espantar a clientela, a
que está disposta a gastar dinheiro e a dar de comer a muita gente.
— Mas olha lá: tenho ou não tenho razão? — voltou Saraiva à carga.
— O quê?
— A ONU, foda-se!
Uma morena metida numas leggings de licra preta transparentes, sem mais nada por
baixo, e um decote vertiginoso num trapito a fingir que era um top de alças, bastante
alta e bem torneada – e tonificada, diga-se – depositou mais dois copos com uísque na
mesinha com um tampo de vidro que se interpunha entre eles e sorriu antes de se
afastar.
— Era esse o pressuposto. Sei lá, uma resolução qualquer — acabou Tiago por dizer. —
Mas deu merda. Os árabes não foram na conversa.
— Pudera, com os judeus a querer logo a independência de Israel — Simão deu um
longo trago do poderoso destilado de cevada escocês. — E depois foi o que se viu. Toca
a fugir. Uns para um lado, os outros para o outro. E os ingleses puseram o rabinho de
fora. Com os americanos a mandar a cavalaria, pois dava um jeito do caraças ter um
aliado na região. Um aliado? Uns paus-mandados!
— É complicado. E já é ancestral. O ódio passou de geração em geração.
A conversa parecia ter readquirido fluidez, apesar do turbilhão de pensamentos que
agitava os ânimos e desânimos de Penha.
— Só te digo uma coisa, Tiago: é tudo uma grande treta. Se aquilo era dos árabes, azar
dos judeus. Os gajos que fossem para a América. Não se têm lá dado bem? — e
emborcou o resto do uísque no copo, apenas com o segundo gole, acenando em direcção
a uma das chicas com um sinal a pedir mais uma rodada, que já lhe havia perdido a
conta. — O que fode tudo é a merda que os árabes também andam a fazer por todo o
lado. É como te digo: é tudo uma grande treta — repetiu Simão, aparentemente em jeito
de conclusão, recostando-se por fim no sofá, dando ares de pretender ficar calado
durante alguns momentos.
Penha examinou com atenção o companheiro, que estava visivelmente embriagado.
Tinha os olhos turvos, se adormecesse de repente não surpreenderia Tiago, e suava
abundantemente. Pela testa e pelo peito. Mesmo com a camisa desabotoada quase até
meio, notava-se uma mancha feia de se ver que alastrava pelo tecido fino de algodão.
Todo empapado até à zona da barriga.
(Web Forum: O silêncio é uma seca, mas falar demais provoca inundações; resta saber
se é melhor morrer desidratado ou afogado. Réplica no feminino: Desidrato-me
regularmente, mas fico seca pra afogar certas bestialidades que não respeitam nem as
carnes descascadas ao sol)
Tiago Penha e Simão Saraiva haviam desembarcado em Barajas na madrugada anterior.
Durante o dia, passaram por uma longa e penosa reunião com os administradores de
uma cadeia de supermercados, num hotel algures perto da Plaza de España. Tinham ali
trabalho para algumas semanas. Sistemas hackeados, utilização de cartões de crédito
clonados e o histórico contabilístico à vida. Nem os sistemas de backups haviam
escapado, embora todo o contacto deixe uma marca e há sempre resíduos por onde
agarrar.
(Web Forum: Viver é deixar marcas... Com outra réplica no feminino: E se não marca é
porque não chegou realmente a haver contacto. E ainda outra: Marcado feito gado no
pasto...)
Mas que raio de segurança foram os gajos arranjar, matutava Tiago sempre que lhe
vinha à cabeça o imbróglio que tinham de resolver. Uma verdadeira dor de cabeça é o
que era, com a agravante de meter a polícia pelo meio, o que era uma chatice. Ter de
93
trabalhar com bófias que se armam em especialistas de informática era sempre uma
experiência de merda. A dupla tinha vivido uma situação semelhante em São
Petersburgo, terras de Dostoyevsky e do seu amigo Rodion Raskolnikov, com os
sacanas dos russos a querer meter o nariz em tudo. Os sacanas da FSB (em rigor da
Federal Security Service, para que não se confunda com um front-side bus ou com uma
Federation of Small Businesses ou um Florence Savings Bank) e também da Interpol,
que andavam igualmente interessados no assunto. Resultado: um problema que podia
ter sido resolvido com a restauração do sistema, mas desta feita trancado a sete chaves,
transformou-se num quebra-cabeças com tantas reservas e “segredos de Estado” que
Penha e Saraiva acabaram por ficar retidos na cidade durante quase dois meses.
Benditos rublos russos, benditas águas-furtadas naquela rua estreita e sinuosa perto da
Gorokhovaya. Com aquela loira hirsuta com cara de bolacha mas exímia nas artes da
felação. Que calaram o torpor de tanto tempo mal perdido.
De regresso ao hotel, e após o jantar, os dois decidiram sair para a noite madrilena.
Ainda equacionaram a possibilidade de contratar os serviços de duas escorts escolhidas
à la carte, mas acabaram por partir à aventura, que companhia não lhes seria difícil de
desencantar. Bastava ter euros à altura. Pesetas já não serviam.
— Não vês agora o que os gajos estão a fazer na Dinamarca?
Tiago sobressaltou-se; Simão recomeçara a falar subitamente, após aquele breve
interregno durante o qual parecia ter quase adormecido.
— Os judeus?
— Não, caralho! Os árabes. Ainda bem que já demos de frosques de Copenhaga —
comentou Saraiva, voltando a acenar para pedir mais álcool.
— Não peças para mim — advertiu Penha, que tinha dois copos à sua frente ainda para
beber, um deles a meio. — Mas diz lá. Afinal, o que é que se passa na Dinamarca?
— Cento e cinquenta assaltos a residências nos últimos quatro meses. São putos de um
ghetto islâmico em Odense. Roubam, vandalizam e é tudo escolhido a dedo. Parece que
escolhem as casas pelos nomes das caixas de correio. Se não és árabe, estás fodido.
Levas com um grupo de alógenos muçulmanos. Diz o Jihad Watch, é um blog
americano contra a islamofobia, com bastante influência, aliás, que, no Islão, os
muçulmanos têm o direito a roubar os não muçulmanos. Mas a história já vem de trás,
desde que o Maomé concedeu o direito ao saque para atrair combatentes pela causa
islâmica. Os dinamarqueses andam-lhes com um pó. Aquilo ainda vai dar merda.
— Odense é aquela cidade lá para o Norte? — quis confirmar Tiago.
— Sim, a terceira maior da Dinamarca — e fez um breve compasso de espera para
mudar de tom. — Terra do Lego e dos vikings! Terra desses nobres e intrépidos
guerreiros do Atlântico Norte! — exclamou repentinamente com um brado
despropositado, parecia um trovão, com a agravante de acentuar o descomedimento, que
palavra mais feia, com uma batida ruidosa do punho contra o tampo da mesa, dando por
terminada a encenação com um sorriso patético.
O olhar do segurança voltou a cair em Simão, desta vez grave, quase como a querer
dizer que não tardaria a tomar medidas.
Definitivamente estava bêbedo, não o segurança mas Saraiva; e de certa forma
irreconhecível. Aquele não era o Simão com quem Penha privara ao longo de tantos
anos. É verdade que desde Ushuaia, naquele arquipélago perdido nos confins do
Mundo, no extremo sul da Argentina, as coisas não voltaram a ser como dantes, algo
que aliás Tiago nunca havia percebido bem, tanta era a cumplicidade que os unia, tantos
os momentos, bons e maus, que tinham partilhado. Voltaram a ver-se apenas dois meses
depois – embora não fosse a primeira vez que Saraiva desaparecia sem dar notícias ou
explicar tantas demoras e eclipses abruptos – num escritório acanhado e sem graça, mas
94
com uma renda exorbitante, e mesmo assim em duplicado com os custos do
condomínio, no bairro do Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro, estivera Penha sozinho
em São Paulo a braços com trabalho até à exaustão, tirando a breve passagem por
Buenos Aires, de Londres haviam ligado, queriam saber onde parava Saraiva, e Tiago
sem nada saber, com certeza que a brincar aos cowboys na Tierra del Fuego, a meter
férias sem aviso prévio, mas lá voltou por boas instâncias do headoffice em terras de
Sua Majestade, senão era despedimento certo, tanto mais que Penha não conseguia dar
conta do recado. Ainda assim, Simão hospedou-se em Copacabana, de frente para o
calçadão, perto de uma esplanada sempre em agitação numa roda-viva de negociatas
entre gringos e mulheres de extirpe duvidosa vindas dos morros, de todos os morros no
Brasil, que em terras de Vera Cruz é coisa que não falta, excepto o pão na mesa e uma
classe média, e assim se fez o turismo carioca da cidade maravilhosa, morada das casas
do homem branco, falta os índios tupi recordar, o equívoco do elogio da ocupação
colonial, de bunda cheia em biquíni reduzido sob o olhar circunspecto do Cristo
Redentor, enquanto Tiago, ao invés de por ali também ficar, podendo degustar o
bondinho do Pão de Açúcar e as vistas calientes dos areais, preferiu permanecer no seu
flat em Bela Vista, cercado do betão paulista, também ele num carrossel sem governo
em ponte aérea diária entre Congonhas e Santos Dumont, a bordo dos prestáveis e
irrequietos Boeings da Gol.
Aos poucos, lá acabaram por retomar algumas afinidades no trato, apesar do eixo de
rotação ter continuado longe do costumeiro centro gravitacional que havia animado o
companheirismo entre os dois. De um modo geral, dir-se-ia que decidiram reinventar a
convivência, por ser necessário, fingindo reviver os velhos tempos, por que assim
convinha, mas no fundo, no íntimo desassossegado de cada um deles, havia intempéries
por apaziguar, com Goa a ditar o compasso da cumplicidade e o caso da arma na
Patagónia, na verdade nem sabiam se era um caso, a ditar o compasso da distância.
Estranho desenlace para um incidente cujo alcance nunca conseguiram compreender.
Mas era o compromisso possível. Traído apenas pelo novo expediente de Simão, que
começou a abusar do álcool. E disso Penha apercebeu-se logo na capital carioca. A
princípio, ainda acreditou que podia ser só um hábito adquirido nas terras geladas da
Ciudad del Fin del Mundo, mas quando regressaram a São Paulo, quer dizer Simão, que
Tiago andava já num vaivém entre as duas cidades, tornou-se evidente que existia um
novo problema. Que se adensou. Voltaram a Lisboa, finalmente, após a longa
temporada sul-americana, embarcaram juntos mais uma vez para Paris, Rue de Rome,
na área de Saint Lazare, a poucos quarteirões a nordeste dos Champs-Élysées, um
paraíso para quem se interessa por instrumentos musicais clássicos, na prática, um
museu à venda, porta sim porta sim, sem turistas, rua aparentemente desconhecida,
irresistível para um demorado e tranquilo window shopping spree, mas sem o shopping,
como é evidente, retornaram à capital portuguesa e fizeram-se à estrada de novo, agora
com destino a Madrid. Em nenhum momento, Penha conseguiu rever o companheiro
totalmente sóbrio. Mas calou-se e nada disse. À espera de ver no que daria, embora
tivesse a certeza de que não seria boa coisa, pois a emborcar álcool desalmadamente de
manhã à noite é sinal de desarranjo, e sério, porquanto ninguém bebe assim a não ser
que já não acredite em consertos e remendos, quando a vida não está a ser fácil e o
melhor é devolver os pergaminhos da santidade à falta de sanidade, quando é grande e
sedutoramente irrecusável a vontade de conduzir em contramão. Mesmo sob o risco de,
mais tarde ou mais cedo, sentir a força do impacto e o airbag a explodir na cara, que a
colisão de um carro desgovernado é coisa dura e violenta, Tiago sabia-o bem.
— Lo siento, pero tu amigo no puede quedarse aqui.
95
Penha virou-se na direcção da voz e deu de caras com um homem de bigode, com ar
sério, de colete vermelho e laço preto, ligeiramente inclinado como se estivesse a
segredar. O que de facto estava a fazer, embora não passasse de uma atitude diplomática
para que o outro o escutasse e decidisse por bem abandonar o local sem grandes
alaridos.
— O quê?! Não posso ficar aqui?! — protestou Simão, incrédulo, zangado e bêbedo.
— Lo siento mucho — insistiu o empregado de balcão, sem olhar para Saraiva. —
Usted puede quedar aqui, pero tu amigo esta muy borracho.
Simão sentiu-se embaraçado, sem saber o que fazer. Ou dizer. O homem tinha razão. E,
com efeito, também ele estava a começar a fartar-se das fanfarronices de Simão. Pelo
menos naquela noite. Apetecia-lhe recostar-se no sofá a beber tranquilamente o seu
uísque, que já ia em dois copos por deitar abaixo. Beber, fumar e olhar, através dos
óculos embaciados. Aquela penumbra turva, aquele engenhoso composto químico
hormonal prestes a explodir ou a implodir, ou nem uma coisa nem outra, depende de
como se olha e vê.
— C’um caralho! Nem numa casa de putas um gajo pode beber à vontade —
resmungou Saraiva. — Uma casa de putedo, ouviste? — acrescentou, dirigindo-se ao
empregado com um dedo levantado no ar.
O segurança aproximou-se da mesa, Tiago lembrou-se de Goa e das armas, essa
misteriosa fixação do amigo e sentiu-se inquieto, preocupado.
— Que se foda! Esta merda também não vale um caralho. Só dá é sono — rosnou
Simão.
— Bar de copas — rectificou o empregado, desnecessariamente, embora mais parecesse
um pretexto para encarar de frente, por fim, a raiva e o entorpecimento de Saraiva.
A discussão continuou entre lo siento mucho, casa de putas, muy borracho, bar de
copas, vámonos, para a puta que te pariu, ahora, e outras coisas do género, incluindo
cabras e muchas madres, todas putas, como é bom de ver, com Saraiva a evocar o
conhecimento dos sete mares e precisar de ir a Madrid para assim ser tratado, equívoco
medieval tanto árabe como europeu, que afinal eram nove e não sete, os mares – mas
ainda assim, deu nome à cidade mais remota do Mundo, dizem, Edinburgh of the Seven
Seas, no extremo noroeste da ilha Tristão da Cunha, no Atlântico Sul, anglicana e
católica, sob a dependência da Coroa britânica, apesar de ter sido descoberta por um
ilustre explorador quatrocentista de nacionalidade portuguesa – pelo meio ainda houve
uns caralhos e uns carajos, embora não pareça que alguém quisesse evocar a banda de
hard rock argentina (que subiu ao palco pela primeira vez em dois mil e um, exacto,
nesse fatídico ano de dois mil e um, no Whisky a GoGo, em Buenos Aires, para
apresentar ‘La guerra y la paz’, um Tolstoy metálico em versão castelhana, se parece
confuso que se consultem os anais da História mas sem Nin, que aqui nada há de
erótico, e lá voltaram as estepes russas em que Simão pensava de vez em quando sem
saber porquê). Pela sala foi notório o burburinho geral, clientes e funcionárias,
empregados e seguranças, a trocar olhares com os mais variados desígnios semânticos,
mas Saraiva lá acabou por aceder, por sorte não estava armado, mas ali era melhor não
desafiar a sorte, que nunca se sabe, a diatribe não cessou, mas contrariamente ao que se
poderia esperar foram todos muito pacientes, coisa louvável em contexto de maus
costumes e muita impaciência, que o tempo corre e é preciso fazer negócio, e levantouse e puxou as calças para cima e encaminhou-se para a saída, sob o peso de um corpo
trôpego e a escolta do staff local, após mais uma troca azeda de palavras com Tiago, já
que definitivamente as coisas não eram como dantes.
— Não vens? — perguntou Simão a Penha ao decidir por fim aceitar o convite para
abandonar o local, sob o argumento de estar muy borracho, expressão que lhe fazia
96
lembrar borracha e esse sinónimo execrável de crimes contra a Humanidade,
ironicamente em terras ibéricas, precisamente donde partiram as primeiras expedições
para a extracção de látex que a tantas barbaridades conduziu em terras de África e
América do Sul, vencidos estes sete mares, que não eram sete mas nove, do mundo
medieval.
— Vou ficar mais um bocado — devolveu Tiago, de forma seca, apressando-se, porém,
a acrescentar uma justificação. — Só até acabar estas bebidas — e apontou para os dois
copos com uísque. — Não te preocupes com a conta. Pago eu.
— Tu é que sabes, hombre — declarou Saraiva, aparentemente desinteressado, com um
encolher de ombros resignado, mas com as pupilas dilatadas, por causa da meia-luz da
sala e do sentimento de irritação, que tem sempre um brilho especial, para quem o
consegue decifrar, como era o caso de Penha. — Mas é como te digo: é tudo a mesma
merda.
— O quê?
— Judeus e árabes. Tenho ou não tenho razão? — e começou a dirigir-se para a porta de
saída. — Viva Recoletos!
A sala voltou a sossegar-se. Tiago acendeu mais um cigarro e deu um novo gole de
uísque, recostando-se por fim nas costas almofadadas do sofá. Suspirou fundo. E pôs-se
a pensar por que razão não quisera ir com Simão. Noutros tempos, a camaradagem
falaria mais alto. Sem qualquer vacilação. O som das canções ciganas da Andaluzia
continuava a ecoar, mas agora parecia que de forma menos intensa, praticamente em
surdina.
— No te preocupes. Mañana no recuerda nada.
Voltara a ser um sussurro em castelhano, mas no feminino. Penha soergueu os olhos na
direcção da voz, mais uma vez, e viu. Claire Danes. Em versão morena. Com uma
expressão no rosto ferozmente encantadora. Tão cândida quanto provocadora. De pé, à
sua frente, com um sorriso, à espera do convite para se sentar no lugar que Simão
Saraiva havia deixado desocupado.
97
XII.
Da besta nasce o abutre, que não deixa de ser besta, mas passa a viver sob a forma de
uma ave de rapina, de grande envergadura, obtendo com isso uma identidade. Ora, se é
na identidade que reside a circunstância de um ser ser aquele que diz ser ou aquele que
outrem presume que ele seja, o abutre humaniza-se e, nesse sentido, perde a sua
dimensão de besta.
Contudo, se por definição a besta corresponde a uma forma de existência sob a sua
característica mais desfavorável, de constrangimento, de apetites depravados, de
violência e estupidez, apenas para enumerar algumas das suas dimensões, o abutre
continua a ser, paradoxalmente, uma nova forma de existência corpórea semelhante à da
besta. A distinção reduz-se apenas à identidade que humaniza o primeiro.
É uma hipótese, mas se assim for, a identidade é a forma bestial de humanizar a
estupidez. O que não deixa de ser irónico, porque o confronto de identidades passará a
assentar assim no engenhoso processo natural da humanização da bestialidade. Ou seja,
da brutalidade. O que provavelmente explicará, se um ser é aquele que diz ser ou que
outrem presume que ele seja, a desumanidade da luta pela identidade. Na prática, o
elogio supremo da crueldade.
Neste quadro, talvez seja de concluir que o milagre do nascimento nada tem de
próspero, porque traduz tão-somente essas luta violenta entre as forças que querem
afirmar a identidade a todo o custo e as forças da humanização da bestialidade, que se
escondem no paradigma da crueldade.
Foi com estes pensamentos intricados e complexos sobre a natureza do mal, como
condição inalienável da existência humana, que Tiago Penha apanhou o voo de regresso
à Europa no aeroporto de Dabolim, ou Vasco-da-Gama, pouco importa, na Índia,
deixando para trás os odores enjoativos do pau de sândalo, o sabor a rosas que impregna
tudo o que se come e o suor e a massa gordurosa dos repelentes de insectos, cruciais
para afastar o risco de contrair uma qualquer doença tropical, como a malária ou o
paludismo, duas formas de designar a mesma enfermidade crónica transmitida pela
picada de algumas espécies de mosquitos, uma chatice porque havia sido
desaconselhado a tomar resoquina, que dá cabo do estômago e era desnecessário, desde
que não saísse do Estado de Goa, mentira porque os jornais locais davam conta de
vários surtos epidémicos da doença em território goês.
A “little private party” prometida pelo indiano baixote na praia privativa do Galgibaga
Beach não correra como o previsto. Das “beautiful women in the world” nem uma
apareceu e Simão, bem bebido e, por conseguinte, bastante irritado, quis as mil rupias
de volta, mas o muçulmano insistia.
— You pay and love — não parava de repetir, a tentar levar a conversa para um
monólogo surdo e imperceptível, quando era evidente que não havia forma de escapar.
É certo que o indiano poderia ter sido enganado e estar com problemas em resolver o
assunto, já que de proxenetismo não parecia perceber muito, mas a recusa em devolver
98
o dinheiro a Saraiva era completamente incompreensível, tanto mais que altruísmo e
negócios do sexo não parecem ser coisas que combinem bem.
(Web Forum: Discordo, ambos têm a mesma meta. A que se segue outro comentário
igualmente no feminino: Também acho! E por fim uma observação que, numa primeira
leitura, parece não vir a propósito, mas até vem, bem vistas as coisas: A ausência de
base política explica o tamanho fracasso literário e artístico, complementados por
programas escolares em níveis avançados que não evoluem. Na melhor das hipóteses,
restam apenas circuitos marginais e/ou alternativos, ou a necessidade de enfrentar a
ideia de que o nosso tempo já passou, o meu no caso)
Escusado será dizer que a negociata entre os dois resvalou para o campo das ameaças
verbais, numa troca de ofensas em jeito de batalha linguística, entre o árabe e o inglês,
que depois passaram às físicas, com a ousadia do goês em puxar de uma faca, mal sabia
ele que o seu oponente estava munido de uma arma de fogo, coisa estranha para
estrangeiro e de passagem – qual era Tiago Penha não sabia, pois nada percebia sobre o
assunto, só soubera que na Argentina se tratava de um revólver de calibre 357 Magnum
porque Saraiva lho dissera, tão grande parecia ser o orgulho deste pela posse, mesmo
que temporária, daquele modelo – e depois a vias de facto. Lá por ser lingrinhas,
evidenciar que mal percebia a conversa, não parar de abanar a cabeça em jeito de não,
mas que é um sim, o tal “nim” indiano, e dar ares de que mil rupias fariam por ele tão
grande diferença, enquanto para Simão não passavam de trocos, não queria dizer que
pudesse escapar incólume. Não é que não tivesse um semblante que até podia suscitar
algum impulso de comiseração, o que decerto lhe seria mais favorável, mas querer fazer
passar Saraiva por idiota e, ainda por cima, sob a ameaça de uma arma branca, mais não
era do que estar a pedi-las. Com o azar de não haver testemunhas, a não ser a presença
de Penha, que dos seguranças do Galgibaga Beach nem um sinal. Àquela hora estariam
a dormitar num canto qualquer, tantos deveriam ser os canabinóides que lhes haviam
subido à cabeça, a fazer jus à ladainha que se ouvia em qualquer rua de Goa, hash,
marijuana, change money. De resto, com mais de cem quilómetros de costa marítima,
só naquele Estado indiano, por que raio haveria alguém de querer ir para aquela
pequena praia solitária à noite? Sem luz, que tanto jeito dá para excitar o frenesim
festeiro, sem vacas – sagradas, entenda-se – sem turistas, que esses andavam por outros
espaços mais agitados, provavelmente ao som do trance psicadélico com epicentro mais
a Norte, sem bares ou restaurantes clandestinos, os tais barracões de madeira que alguns
profissionais de restauração mais expeditos erguiam de manhã para serem destruídos ao
final do dia pela polícia, ao pontapé e à paulada com a ajuda de alguns bulldozers, claro
está (a incidência do incidente situava-se na média de quatro vezes por cada mês, como
havia testemunhado Tiago durante a estada na Índia), e afinal sem putas, nem
muçulmanas, nem hindus, nem católicas, que atractivo poderia haver?
O que Penha não contava era com o desfecho. No desequilíbrio entre uma faca e uma
pistola, entre o prometido e o não cumprido, entre o enriquecimento ilegítimo e a
possibilidade iminente da punição desse crime, o natural seria que o indiano desistisse;
o natural seria que devolvesse o dinheiro e desatasse a fugir dali a sete pés, embora
esteja ainda por demonstrar, nunca é demais recordar, como pode um homo sapiens
correr de tal forma sendo bípede.
— Devil in the body and your soul lost forever.
Foram as últimas palavras do proxeneta, repetindo a frase que já havia pronunciado a
propósito das suas incompatibilidades com hindus, antes de ser baleado três vezes.
Definitivamente como alcoviteiro não parecia ser grande coisa.
A trinta e seis mil pés de altitude, quase no limite superior da troposfera, e em
velocidade cruzeiro, a caminho de Londres, com a aeronave a ser sacudida por uma
99
enorme turbulência devido a uma tempestade de areia no deserto saudita, Tiago
lembrou-se das noites na costa ocidental indiana em que o mar parecia ser sopa. Água
morna e praticamente sem ondulação. Noites serenas de frente para um mar
adormecido, ou talvez morto. Penha permanecia sentado e com o cinto de segurança
apertado, por indicação das hospedeiras – naquela época ainda não se falava em
assistentes de bordo, nem sequer havia comissários a não ser os pilotos, homens que a
pouco e pouco foram ocupando uma profissão até então exclusivamente feminina,
substituindo os odores subtis do estrogénio pelos da testosterona – e da explosão de
luzes na sinalética que encima os passageiros, sempre confusa e exagerada, quem sabe
se não é para criar a ilusão de uma viagem espacial, enquanto Simão insistia em
transgredir, ao andar no corredor para trás e para a frente na parte traseira, a zona
reservada para fumadores, já lá vão os tempos em que esse luxo era permitido.
— C’um caralho! É sempre a mesma merda. Que grandes filhos da puta estes árabes!
Até nos céus nos fazem a vida negra — resmungava ele, de cigarro na boca e em
calções, com uma voz interior aos berros, a massacrar-lhe os nervos: Ya harmuk Allah!
Ya harmuk Allah! Ya harmuk Allah!
Uma prece inusitada, porquanto fora tudo muito simples e prático. Com efeito, não
havia tempo, nem lucidez, nem ferramentas para activar um plano Hollywoodesco com
laivos mais macabros como o esquartejamento do cadáver. Saraiva limitou-se a arrastar
o corpo até à beira-mar, enfiou-se a custo nos baixios do Índico e largou o indiano. A
princípio, o sacana não parecia querer seguir viagem. Poucas ondas, pouco vento. Mas
lá acabou por entrar na noite. E desapareceu.
Supostamente devia ter aparecido algures, talvez mais a sul, alguns dias depois. Mas o
cadáver do muçulmano, atingido à queima-roupa com dois tiros no peito e outro no
pescoço, nunca deu à costa, ou pelo menos nunca disso houve notícia. Soprava a
monção de Nordeste, que talvez tenha ajudado, como chegou a ajudar em tempos idos
as naus e caravelas lusitanas a caminho do cabo da Boa Esperança nas arriscadas
viagens de regresso a Lisboa.
Longas travessias que demoravam uma eternidade, animadas pela vontade do regresso a
casa, para a maioria supõe-se, que talvez para alguns não houvesse retorno, nem
vontade, precisamente o mesmo dilema que Tiago Penha teve de enfrentar, quando a
mãe adoeceu e ele começou a sentir-se velho, ou a envelhecer, o que vai dar no mesmo,
a rastejar pela vida, cheio de ideias e poucas certezas, dominado pela angústia. Quando
decidiu voltar a casa, em definitivo, pondo um ponto final nas extravagâncias de uma
existência nómada, sempre em movimento pelos sete mares, que são nove. Cansado de
observar tantas tragédias, pequenas e grandes, ditadas pelos desígnios da besta e do
abutre. Porque se esta é a história da crueldade e do mal, a história de forças em conflito
– a desumanidade da luta pela identidade – tanto cogitou ele sobre o assunto durante o
voo entre Goa e Londres, ponto de escala para o regresso a Portugal com uma breve
passagem pelo headoffice da companhia, que às vezes era necessário prestar contas,
deixando para trás o cadáver de um muçulmano perdido no Índico, talvez seja de
concluir que a história do abutre é afinal a história que perpassa por todas as páginas
dessa mescla de livros sacralizados que o mundo cristão chama de Bíblia, se bem que
no Brasil o substantivo pode denominar um indivíduo protestante, o que torna tudo
ainda mais obscuro, até porque também evoca a ideia de colecção, colecção de livros ou
mesmo de cromos, para fazer da Bíblia uma caderneta, ainda falta alguém aparecer com
a ideia, a «Última Ceia» à da Vinci partida em quadradinhos, troco-te o do Santo Graal
pelo do Judas, o Iscariotes, que desses já tens muitos repetidos. Se lhe juntarmos o
xamanismo cósmico, o misticismo cabalístico ou o desafio retórico da cientologia, que
defende ser possível despertar no homem uma consciência imortal e poderes
100
semelhantes aos dos deuses da mitologia grega, só para citar três exemplos do vasto e
complexo sistema de crenças, rituais e simbologias exotéricas que povoam o ocidente
cristianizado, decerto que acabaremos por subscrever o que Maquiavel tão lucidamente
escreveu no século dezasseis, com o mundo mergulhado no obscurantismo medieval, o
tal mundo dos sete mares, que são nove, nunca é demais insistir: «Mais vale ser temido
do que amado; é mais prudente ser cruel do que compassivo».
Esta é uma das verdades possíveis, terrivelmente odiosa para aqueles que se desdobram
em mensagens de paz, acções de solidariedade e de beneficência, ao mesmo tempo que
enchem os centros comerciais e lojas de artigos de luxo prontos a gastar o que têm e o
que não têm. Uma das verdades possíveis, que se repita, porque na verdade a verdade é
um problema.
É que, tal como sucedeu com Tiago Penha e com quase a maioria dos seres humanos,
chega um momento na vida em que a dúvida que mais incomoda é saber o que é a
verdade. De tudo o que vivemos e recordamos ter vivido, pelo que contamos ou
pensamos, que nem tudo se conta, há sempre uma área cinzenta, uma espécie de sótão,
pequeno ou talvez grande, que tendemos a fechar para nele deixar tudo aquilo que não
queremos ver mas de que não conseguimos abrir mão, deitar fora, esquecer, destruir.
São lacunas que acabamos por tentar preencher com supostas vivências, que não
correspondem necessariamente à verdade ou, no limite, nem sequer são nossas. São de
outros, histórias que ouvimos, conhecimento de terceiros, que à força de ser repetido, se
transforma numa memória. E numa verdade. Um verdade em perspectiva, pois é
mentira. Pura mentira reinventada à nossa medida como uma verdade absoluta. E se
concluirmos que isto é possível de acontecer com alguém, teremos forçosamente de
acreditar que acontece igualmente com muitos outros. O que significa que nem a própria
verdade de outrem, apropriada como uma verdade nossa, se funda necessariamente na
verdade. Ela própria pode ser uma mentira, transformando-se assim numa dupla
mentira. Quem conta um conto acrescenta um ponto. E de ponto em ponto preenchemos
os vazios que quisemos deixar em aberto com mentiras. E de ponto em ponto
edificamos o Mundo alicerçado numa mentira colectiva. Colectiva, por se estender a
muitos, mas não comum, por que cada um intervém nela com uma reinvenção
individual.
Também chega um momento na vida em que a dúvida que mais incomoda é saber o que
é mais importante. O que projectamos para o futuro, que alimenta uma labuta com
objectivo na esperança de atingir uma recompensa subjectiva, na medida em que não
sabemos se seremos bem-sucedidos? Ou o que temos mesmo ao nosso lado, ou à frente,
que não valorizamos, porque damos como certo, quando é certo que o certo facilmente
se torna incerto, o certo que não apreciamos, porque acreditamos que há ainda muito
tempo? E se o tempo nos escapa? E se o tempo nos troca os passos? É que o tempo é tão
incerto que fundar certezas nele não passa de uma mera questão de fé. A fé que se esvai
com facilidade se um contratempo dita a incerteza e a tristeza de não ter agarrado na
certeza no tempo certo. De não ter vivido o que certamente poder-se-ia ter vivido, pois
estava ali, mesmo ao lado ou à frente, à nossa espera, a pedir o nosso tempo, a nossa
atenção, o nosso interesse.
Infelizmente também chega um momento na vida em que a dúvida que mais incomoda é
saber se soubemos aproveitar e viver, na justa proporção daquilo que nos possa parecer
razoável no dia em que nos sentirmos velhos, os ciclos naturais da existência, já para
não falar nos imponderáveis do acaso, que rasgam, devassam, aniquilam esses mesmos
ciclos, encurtando-lhes a duração, moldando-lhes a sua própria natureza, o que resulta
igualmente numa sequência de ciclos, mas atípica, por ser inesperada. Na verdade, nem
será muito atípica, porque o inesperado assome tantas vezes que o que parece anormal
101
acaba por adquirir, também ele, um carácter de tipicidade, que só aparenta ser disforme
pela forma atípica como percepcionamos o que chamamos de atípico.
É destas dúvidas que nasce a dor e a revolta contra com o que designamos por fado,
destino ou má-sorte. Como a fé, artifícios simplistas e folclóricos para a conquista da
sensação de conforto, ou para nos escondermos, ou para explicar o acaso e o infortúnio,
quando é certo que não se tratou, nem tratava, de nada disso. Apenas passámos ao lado,
apenas falhámos o alvo, pecados que são duros de assumir, pelo que inventamos
desculpas, máscaras, razões alheias, para afirmar como dogma a impossibilidade de
controlar o destino, quando na verdade o destino não existe; mas tão-somente a
derrapagem, a colisão, o acidente, o trauma, o drama que é dispor de livre arbítrio sem
saber o que fazer com ele.
Chega um momento na vida em que tudo isto se torna um fardo tão difícil de carregar
que preferimos morrer, mais uma vez com uma desculpa: a de que estamos velhos
demais, cansados demais para continuar a viver, quando na verdade o que desejávamos
era a vida eterna, poder voltar atrás, talvez na esperança de encontrar alguém que
pudesse ajudar-nos a interpretar uma outra sinfonia da existência, voltar atrás para
aplacar a fúria odiosa da dor dos “E Se’s”, das más escolhas nas encruzilhadas, más
porque nos penitenciamos por elas, desvios por outros trilhos com a inequívoca
impossibilidade de corrigir a trajectória. Dá-me agora o teu amor que depois pode ser
tarde. Goza o que tens que depois pode ser tarde. Vive o que a vida te deu que depois
pode ser tarde. E tantas outras coisas. E se? E se? E se? E tantos outros “E Se’s”. Um
turbilhão de “E Se’s” tão tempestuoso como o desgosto, o sofrimento, a dor profunda
que lhe é inerente, a procelosa agonia de saber, ou suspeitar, de que tudo o que fizemos
não terá passado de uma longa e endiabrada derrapagem pela vida.
É certo que se trata de um discurso pessimista e apagado. Na iminência da derrota,
submerso tanto na resignação como no rancor, um ódio secreto e inconfessável que
decerto serve para que alguns possam dizer, com um sorriso entredentes, que as coisas
não são bem assim, para que afirmem que tudo isto é tão-somente mera poesia, palavras
sem nexo de gente fraca, daqueles que não conseguem vencer o sabor da desdita ou a
ele se entregam. Porque é mais fácil. Mas se por acaso for o caso, não o das palavras
sem nexo, mas o da agonia da derrapagem, como seria possível verbalizá-la sem poesia?
Não é na exaltação dos sentimentos que descobrimos a possibilidade de pensar?
Ya harmuk Allah! Ya harmuk Allah! Ya harmuk Allah!
As últimas palavras do indiano, na sua derradeira prece ao ser assassinado à queimaroupa numa praia deserta e escura, por causa de mil rupias e de uma puta muçulmana
que nunca deu sinais de vida, ecoaram durante anos no íntimo de Simão Saraiva e Tiago
Penha. Porém, sem grande exaltação poética. Durante muitos anos, na prática para
sempre, o que não deixa de ser uma ironia para dois europeus desmundializados.
Condenados a ouvir repetidamente uma oração em árabe desfiada sem fim. Pela voz de
um indiano baixinho de tez castanho-escura, a cor da Terra, a cor da consciência e da
responsabilidade, a mesma cor com que Penha e Saraiva desembarcaram no aeroporto
da Portela, morenaços a caminho do negro, como só é possível ficar sob o sol intenso e
fervoroso da Índia.
Um regresso a casa com o peso de muitos pecados, como prenúncio do estado de
espírito que Tiago levaria consigo, anos mais tarde, no retorno definitivo a Lisboa,
quando a mãe adoeceu e ele começou a sentir-se velho. Se bem que já em dois mil e um,
no fatídico ano da viagem com Maria Clara, em Viena, ao entrar na recta final do breve
périplo a dois por algumas das principais capitais do velho continente, de norte a sul,
confinado a latitudes geodésicas centrais com um epicentro mais ou menos definido, é
bom recordar – antes do início da roda-viva que experienciaria durante mais de duas
102
décadas, entre o ir e vir, entre o ficar e o querer voltar, ou simplesmente partir, a
percorrer a aridez selvagem do globo terrestre, na imensidão intercontinental, entre
locais inóspitos e sumptuosos, cosmopolitas e desterrados, em terras que ele não
desejava conhecer e outras que sempre havia sonhado sopesar – Tiago Penha deu sinais,
dir-se-ia hoje à distância, premonitórios de que a ânsia de se perder na cidade dos sete
mares não estaria ausente de uma sensação de angústia e, como veio a revelar-se, de
carácter contínuo. Afinal, a que casa queria ele voltar? E assim começava o primeiro
paradoxo: o da mumificação lenta.
«Viena, Setembro nove
Querida Ester,
É curioso. Estou em Viena há dois dias, a poucas horas de seguir viagem para Veneza, e
ainda me ocorre a imagem do recepcionista brasileiro daquele hotel checo. Talvez tenha
saudades de ouvir falar português, talvez comece por ser assaltado pela vulgaridade do
saudosismo lusitano. É estranho para quem sonha dar a volta ao mundo, para quem
passa a vida a querer viajar e a imaginar longas e extensas incursões pelos países mais
remotos. Mas é o que sinto e, para já, não há nada a fazer: tenho saudades de casa, do
meu universo de referências, que por estas terras não as há ou não consigo encontrá-las.
Provavelmente quando voltar, depressa terei vontade de voltar a seguir viagem e lá
continuarei a idealizar novas expedições, a viver na permanente nostalgia da partida e
da descoberta. Mas neste momento a angústia é o sentimento que predomina. É tempo
de te falar de Viena. Mas antes ainda mais umas palavras sobre Praga, ainda sobre
aquele comboio que nos fez sair da terra de Kafka e nos trouxe ao feudo austríaco
dependente da indústria de Mozart, ignorando por completo a memória de Hitler. Até
me parece aceitável, mas não sei se é melhor assim; sublinho apenas o facto. É claro
que, em vez de toda esta feira de vaidades à volta de Mozart, preferia respirar a lição da
História, de aprender o que devíamos saber sobre as origens do pesadelo nazi. Mas
falemos do comboio, porque nele parece que não havia mais nada de estranho para
acontecer. Puro engano. Depois da história do passaporte e do velho austríaco que vinha
de Berlim desesperado a remexer na bagagem, assistimos a outro caso insólito: a uma
detenção policial em plena viagem com o comboio a rolar rápido em direcção a Viena.
Da parte das autoridades checas, o controle de passaportes decorreu como uma operação
rotineira, diria mesmo fastidiosa para os agentes dos serviços de fronteiras, que
pareciam estar a fazer um frete. Mas quando os oficiais austríacos entraram em cena, o
caso mudou de figura. Um indivíduo que não teria mais que uns trinta anos, sentado à
nossa frente, dois bancos depois, foi logo marcado. Primeiro os agentes austríacos
pareceram não ter ficado convencidos com o passaporte dele. Não faço ideia se a
validade havia expirado ou se se tratava de um documento falso. O que sei é que
desataram a fazer-lhe perguntas em inglês. Vai para Viena? Fazer o quê? Esteve na
Coreia?! E mais um sem-número de questões, todas elas formuladas em tom de
interrogatório policial mesmo à séria. Resultado: o homem puxou de um segundo
passaporte. E aí o caldo entornou-se. Foi detido imediatamente. Algemaram-no à frente
de toda a gente e levaram-no logo para outra carruagem. O tipo e a bagagem – um saco
desportivo – enquanto um dos oficiais ficou no local a passar a pente fino toda a zona
onde o indivíduo havia estado. Mais um episódio a bordo de um comboio checo, quer
dizer, alemão, que liga Hamburgo a Viena, via Berlim e Praga. Por aqui, em terras de
Freud, o que não corresponde bem à verdade, porque apesar dele ter tido nacionalidade
austríaca nasceu em território checo durante o famigerado império Austro-Húngaro,
tudo calmo e tranquilo. Primeira impressão: os austríacos não parecem ser tão maus
quanto pensava. São altivos, um pouco austeros, mas correctos e, de quando em quando,
até são capazes de mostrar uns laivos de simpatia. Imagina um polícia a sair de uma
103
esquadra vienense, todo sorridente, para nos indicar o caminho, bastante intricado por
sinal, para o hotel onde queríamos ficar hospedados! É um hotel no coração da cidade
aconselhado pelo guia do Lonely Planet. De resto, come-se bem, a cidade não é muito
grande, pelo que é possível deslocarmo-nos com facilidade por todo o lado e, em cada
esquina, respira-se cultura. Mas é tudo muito caro e o clima extremamente instável. Está
descansada que não vou pôr-me a falar do tempo! Ontem à noite, jantámos por mil
xelins (qualquer coisa como quinze contos). Foi o jantar mais caro da nossa vida, pelo
menos até agora, e também um dos mais inquietantes. Eu e a tua mãe voltámos a tocar
naquele assunto e voltámos a acabar onde sempre acabamos: no ponto de partida. Amoa verdadeiramente, mas é tão difícil conservar esta relação. Ela mostra-se cada vez mais
irrascível e intransigente. As coisas podiam ser tão diferentes. É profundamente difícil
conviver com toda esta turbulência. Melhores dias virão? Provavelmente não. A dúvida
reside na minha capacidade em lidar com a questão. Os dados estão lançados há muito
tempo e ela continua a cobrar implacavelmente. Estamos de partida. Sinto-me ansioso
por entrar no comboio com destino a Veneza. Sinto-me ansioso por poder virar mais
uma página desta viagem.»
Ansioso por partir, ansioso por regressar a casa; enlevado pelo desejo desmedido de
conhecer os quatros cantos do mundo, aquele que os portugueses uniram e desuniram,
derrotado pelas saudades dos quatro cantos do seu pequeno mundo. Portugal? Essa
pátria que desconhecia, terra onde nasceu sem saber se pertencia a algo ou alguém? A
Nação tão grande e tão pequena, tão imperialista como provinciana, ancorada na
vulgaridade do saudosismo?
Demoraria tempo para Tiago Penha perceber que era filho de uma Nação sem Estado e
de um Estado sem Nação, filho de um empreendimento marítimo colonial tão corajoso
quanto patético no limite da sua implosão. Tal e qual como haveria de conduzir a sua
própria vida. Com efeito, a sua história pessoal confundir-se-ia com a história do seu
próprio País, quer dizer, com o território com fronteiras geográficas delimitadas no qual
aconteceu nascer. Não basta dizer que a Nação é uma realidade sociológica, subjectiva,
anterior ao Estado, podendo existir sem ele, como sucede quando várias Nações formam
um só Estado; não basta dizer que o Estado é uma realidade jurídica, objectiva, na
medida em que traduz a organização política de uma Nação, ou parte dela, uma vez que
uma Nação pode formar vários Estados. Em boa verdade, a realidade formal é uma
coisa, a realidade material é outra. E o poder dos factos – que tende a ser normativo, ou
seja, a consagrar o material em formal, a transformar o que se faz na prática naquilo que
deve ser feito em nome da Lei – diz-nos que Portugal não é uma coisa nem outra. Tanto
para os que se expatriaram como para os que tentaram se repatriar, permanecendo
apátridas, na Nação que julgavam ser a sua, no Estado que os reclamou como seus ao
mesmo tempo que os abandonou à sua sorte. E quem disto tiver dúvidas que aprenda a
olhar e a ver. Não a realidade formal, mas a material: a definição do ser e dos seus
sentidos, o ser português. Porque é nele, no ser, e nos seus sentidos, que se funda a
imagem que uma sociedade faz de si mesma: um grupo de pessoas a quem
compreendemos e por quem somos compreendidos.
Não admira, pois, que já em dois mil e um, com pouco mais de vinte anos, Tiago Penha
tenha pressentido o segundo paradoxo da existência que tanto viria a massacrá-lo no
futuro: a desumanidade da luta pela identidade. Curiosamente na véspera de dar início,
por fim, à sua longa travessia pela aridez selvagem do globo terrestre, que durou mais
duas décadas, por supostas razões profissionais, que até existiam mas também lhe
convinham, razão pela qual nunca alegou quaisquer constrangimentos de natureza
familiar, já que a sorte estava ditada e não havia solução à vista, não se sabe se por falta
de coragem ou por mero expediente de protelar o inadiável na indecisão do amor, é
104
sempre bom lembrar, afinal a mesma que tinha levado Maria Clara a não mandá-lo de
imediato à merda, para que a vergonha não fosse maior, que o tempo tudo sossega.
Mas esta entrada no seu diário de bordo merece uma outra observação, porquanto
enferma de uma singularidade, que aqui já se assinalou, aliás, a propósito das palavras
anteriores relativas a Praga: a omissão, a esquivança, a manifestação de um novo e
estranho estado de espírito. Estranho pela dissonância e pela ruptura abrupta com o
entusiasmo e a riqueza de pormenores com que descreveu a primeira metade desta
viagem pelo velho continente, com Maria Clara, o que volta a reforçar a suspeita de que,
desde a capital checa, algo particularmente marcante aconteceu, algo que terá sido
experienciado pelos dois. Se em Praga as experiências mais significativas vividas pela
dupla foram suprimidas de ambos os cadernos de bolso com as páginas presas por
argolas, um de capa azul, outro de cor-de-rosa – para opor a cor da fé e da noite à cor
dos corpos dos judeus amontoados nas câmaras de gás nazis, afinal as cores nem sempre
dizem a verdade – indiciando que Tiago e Maria viveram em terras checas qualquer
coisa que não quiseram que se soubesse, mesmo tratando-se de diários que
supostamente seriam apenas para leitura exclusiva dos respectivos autores, o caso de
Viena ainda é mais paradigmático pela flagrante e inesperada economia de palavras.
Com efeito, Penha quase nada diz sobre a capital austríaca, mas lança mais uma dúvida
ao referir-se a um “assunto” – que assunto seria? – que, aparentemente, azedou o
memorável jantar de mil xelins. Algo que Maria nem sequer refere, limitando-se
também ela a uma breve e desapaixonada narrativa.
«Viena, Setembro nove, quinze e quarenta e cinco
Chegámos a Viena ontem. Cidade-monumento, capital da música. A primeira impressão
é que está realmente muito frio. E o mau tempo acabou por influenciar o nosso percurso
pela cidade. Ontem de manhã apanhámos imensa chuva. Contudo, não foi suficiente
para nos fazer parar. Fomos visitar um mercado tradicional vienense onde pudemos
apreciar, de um lado, a imensidão de ofertas de alimentos deliciosos, alguns já
confeccionados e, do outro, uma espécie de feira da ladra, na qual pouca coisa se
aproveitava. As poucas peças de que gostámos eram extremamente caras. Sim, em
Viena é tudo muito caro. Uma refeição para os dois ronda no mínimo os dez contos.
Salva o facto de ser tudo muito bem servido. Os vienenses, esses, são indivíduos
curiosos. Distintos, bem-educados, a espelhar o bom nível de vida que têm. São no
entanto um pouco altivos. Andam sempre muito direitos, tipo militares, com a cabeça
ligeiramente inclinada para trás. Ainda assim, não me parecem rudes nem arrogantes.
Diria que são apenas muito sérios, sisudos, mas educados e até acessíveis. Ao entrar em
Viena sente-se nitidamente a influência barroca na arquitectura da maioria dos edifícios,
como se estivéssemos ainda nos tempos de Mozart. Talvez seja essa a magia de Viena;
faz-nos sonhar com esse período louco e áureo da música erudita. De resto, há inúmeros
edifícios históricos transformados em casas-museu. Devem ter o seu encanto com
certeza, mas confesso que estou a começar a ficar cansada de visitar tantos
monumentos. Já não tenho a disponibilidade que tive no início para poder apreciá-los.
De qualquer modo, tentámos pelo menos registá-los ao máximo. O Tiago fartou-se de
fotografar. Ao contrário de Praga, o ambiente aqui parece-me mais homogéneo, à
excepção de algumas estações de metro onde se vê pessoas com um ar mais duvidoso,
sobretudo drogados e adolescentes de raça turca (julgo) com muito mau aspecto. Mas no
geral parece-me uma cidade segura. Ainda assim, tenho de admitir: Viena não me
provocou grandes emoções, nem grandes surpresas. É exactamente como a imaginava.
Uma cidade-monumento, bonita, organizada, onde se prega o culto da música clássica.
É uma cidade agradável, tirando o frio horrível que se faz sentir, o qual, como disse,
acabou por condicionar o nosso estado de espírito ao ponto de, no segundo dia, já não
105
nos apetecer ver mais nada e ansiarmos que chegasse a hora da partida. Não se pode
estar na rua com tanto frio, vento e chuva. Neste momento, enfiámo-nos numa gelataria
onde estamos a deliciar-nos com um batido de chocolate quente. São fantásticos. Aliás,
os vienenses são peritos nos doces. Há tartes e bolos de todos os sabores e feitios que
enchem o olho. E a vista não se desilude com o sabor. Excelentes. Ontem tentámos
encontrar um amigo nosso na Embaixada portuguesa. Quer dizer, um conhecido, que
passava a vida a dizer: “Se vierem cá, não se esqueçam. Liguem-me, a sério, para
conversarmos e poder mostrar-vos a cidade.” Palavras de circunstância, como de
costume e que, aliás, pudemos constatar. Porque na verdade ainda tentámos chegar à
fala com ele. Depois de termos ligado várias vezes para um telefone que ninguém se
dignou a atender, o que parece incrível, um número geral de uma Embaixada (bela vida
a de diplomata!), não desistimos e fomos até lá, já agora para ver o que se passa numa
Embaixada portuguesa e perceber se realmente alguém trabalha nesta representação
diplomática. Uma experiência interessante. A Embaixada fica num segundo andar de
um edifício que aloja várias empresas de serviços. Curioso. Tocámos à campainha e
apareceu-nos um homem, com um ar bastante assustado, que só abriu a porta porque
insistimos. Explicou-nos de forma atabalhoada que estava ali por acaso, que não era
habitual. O que se passava é que tinha deixado algum trabalho pendente. E como estava
sozinho, estava com receio de abrir a porta. Estranho. Em Viena? Estamos a falar de
uma Embaixada. Não é suposto estar disponível para os cidadãos do seu País se for
necessário? Deixámos uma nota escrita para o nosso amigo, quer dizer, conhecido, a
informá-lo de que estávamos em Viena, caso quisesse encontrar-se connosco, e
seguimos a nossa visita pelas ruas da cidade. Escusado será dizer que ele não deu sinais
de vida. A Ester continua a estar muito presente por onde quer que passo. Fomos ver um
enorme parque infantil. Cheio de carrosséis e insufláveis mesmo no centro de Viena. E
tentei imaginá-la ali, a brincar. Iria adorar. Ela e eu. Uma outra curiosidade de Viena é o
funcionamento do comércio. Chegámos no sábado e as lojas estiveram abertas até às
cinco da tarde. No domingo, a surpresa foi igual. Mas ao contrário: tudo fechado, à
excepção do centro da cidade onde havia alguns restaurantes e cafés abertos. O que me
leva a concluir que os vienenses não parecem estar particularmente preocupados com o
turismo ou condicionados pelo mesmo. Pura e simplesmente, levam a sua vida a um
ritmo normal.»
E mais não escreveu, ansiosa por seguir viagem para Veneza, a cidade do amor onde
viveria dois dias depois o terror, mal ela sabia, o terror de assistir em directo ao colapso
das torres gémeas do World Trade Center, em Nova Iorque, ataques suicidas como
nunca dantes vistos no mundo moderno, quer dizer, no novo século e no novo milénio,
pelo aparato mediático e a morte ao vivo em terras do Tio Sam, no epicentro do sonho
americano, acção cobarde, torpe e obscena que estava mesmo a pedir uma “Guerra ao
Terror”, como se até então o Mundo já não a conhecesse tão bem, e a diabolização de
Osama bin Laden e da Al-Qaeda, tarefa ingrata para a Administração Bush, que se viu
obrigada a punir as ovelhas tresmalhadas da família saudita, gente de bem e de dinheiro,
embora tudo acabasse por ficar bastante nublado e turvo, atiçados o ódio e opróbrio,
com Saddam Hussein e os talibãs a entrarem na equação, a NATO bem o avisou, era
tempo de travar a ameaça islâmica.
Quem sabe se aquele indivíduo que foi detido pelas autoridades austríacas no comboio
entre Praga e Viena não estaria envolvido? Ou aqueles drogados turcos e islâmicos – é
bom sublinhar – que se arrastavam por algumas estações de metro no centro de Viena,
raça que não é carne nem é peixe, com a identidade perdida algures nas profundezas da
fissura que tanto une como separa a Ásia e a Europa? Com um mundo assustado por
tantos poderes erráticos, cada vez mais intolerante perante as ameaças que espreitam a
106
cada esquina, o medo transformou-se num dilema e o ódio numa forma de vida: a
certeza de que é mais ajuizado matar primeiro antes que nos matem.
Seriam estas algumas das impressões com que Tiago Penha e Maria Clara se
confrontariam em Veneza, deixando para trás os silêncios de Viena, como se a cidade
da música assim o exigisse, em sinal de respeito. Pelos imortais que venceram barreiras
geográficas, culturais, sociais e até económicas, ao democratizarem o acesso à
arquitectura estética dos sons, à harmonia do ruído, à poesia da cadência melódica. Se
bem que se deva dizer que, embora Viena talvez assim o exija, os silêncios da dupla
nada tiveram a ver, porém, com esses predicados históricos da cidade-monumento,
expressão que Maria repetiu várias vezes no relato registado no seu diário.
Mais uma vez, se Penha não tivesse falado sobre o assunto mais tarde com Simão
Saraiva, muitas coisas ficariam por contar e, mesmo assim, decerto que algumas
ficaram. O que volta a ser um enigma, pois há fotografias e em número considerável
que atestam que esta aparente passagem amorfa por Viena não se limitou ao centro da
cidade com incursões por um mercado tradicional, o Naschmarkt (cujo nome nunca é
referido nos seus pequenos cadernos de bolso com as folhas presas por argolas), e um
parque infantil, ou à deslocação à Embaixada portuguesa feita de metro a partir do hotel
onde se instalaram, seguindo à risca as recomendações do guia do Lonely Planet. Com
efeito, foi durante o famigerado jantar de mil xelins, por exemplo – que terá azedado
por terem tocado no tal “assunto” (que se mantém desconhecido) – que reviram com
grande surpresa o casal que Tiago havia fotografado em Berlim durante um passeio
turístico de barco pelo rio Spree. Qual seria a probabilidade estatística daquele
acontecimento tão improvável? No mesmo local, à mesma hora, quase uma semana
depois, a cerca de setecentos quilómetros de distância entre um ponto e outro. Que razão
terá levado ambos a não fazer qualquer referência ao episódio? E a não chamar as coisas
pelo nome? Estiveram no Naschmarkt, já se disse, o maior e mais popular mercado ao
ar livre de Viena, com uma atmosfera única feita de cinco séculos de história, e onde
Penha ia sendo agredido por um vendedor que não gostou nada de ser fotografado.
Passaram horas numa das várias pontes sobre o Danúbio a observar o rio, bastante
lamacento e avermelhado, a cor da raiva e da impaciência, e a imaginar a violência da
batalha de Aspern-Essling, no primeiro decénio do século dezanove, que representou a
primeira derrota do exército napoleónico em dez anos às mãos das tropas comandadas
pelo arquiduque Carlos da Áustria-Teschen. Vaguearam pela movimentada rua de
Kohlmarkt, destino obrigatório para quem quer fazer compras ou sentar-se numa
esplanada a apreciar o famoso café vienense (resta saber a que se deve a fama, de tão
mau que é), com vista para a cúpula dourada do palácio Hofburg, o que melhor
representa a diversidade arquitectónica de Viena com a combinação de elementos
renascentistas e barrocos, na zona histórica do Ring, por onde circulam os tradicionais
coches vienenses cheios de ornamentos. Deixaram-se encantar pela catedral gótica de
St. Stephen's, sobretudo pelos seus telhados multicoloridos, passearam pelos jardins do
Belvedere e pelo Stadtpark, viram ciganos e freiras a andar de metro, violinistas a tocar
nas ruas e homens-estátua no meio das praças a sinalizar o tráfego de transeuntes, que
para isso, mas só para isso, se podem mexer. Uma paisagem linda e maravilhosa,
monumental em todos os sentidos, com um sem-fim de notas de rodapé para aprender, a
história, claro está, mas que assim ficou, que Penha e Clara já não estavam para aí
virados, tanto mais que em Viena as memórias parecem ser demasiado selectivas, feitas
à medida da Áustria, que decerto prefere evocar a sua condição de berço de alguns dos
mais famosos compositores eruditos do mundo para esquecer e, porventura, tentar
apagar as humilhações sofridas no século vinte: a derrota na Primeira Grande Guerra,
com a derrocada do império Austro-Húngaro, a anexação nazi, na Segunda Grande
107
Guerra, e as reincidências conservadoras e, em muitos casos, ditatoriais, mesmo em
sede de República Federal Parlamentar, que não mostrou ser suficiente para aplacar os
sucessivos escândalos de corrupção e as constantes crises governamentais. De resto, a
dependência de Berlim, num País em que noventa por cento da população fala alemão, o
alemão austríaco, que para isso há uma distintivo gramatical, não deixando de ser o
linguarejar germânico o idioma oficial, torna tudo claro, mesmo onde também se fala
croata, húngaro e esloveno e vários outros dialectos, ainda assim inteligíveis para a
maioria dos austríacos, à excepção do Vorarlberg, semelhante ao alemão suíço que dá
nome ao Estado no extremo mais ocidental da Áustria, uma região montanhosa e
particularmente pantanosa conhecida como o “Tirol brasileiro”, tantos são os santa
catarinenses descendentes de austríacos que decidiram regressar às terras dos antigos
bávaros e eslavos. As voltas que o mundo dá: faz lembrar Freud, que nasceu checo, mas
foi reclamado como austríaco, como Hitler, que nasceu austríaco e supostamente judeu,
mas quis ser alemão e anti-semita.
Afinal, quase não precisavam de ter ido a Viena. Está tudo escrito e à distância de um
clique. Na Internet. É certo que em dois mil e um, as comunicações em rede não eram o
que são hoje, como hoje também não são o que dizem ser, bandas largas em velocidade
cruzeiro com débitos estonteantes, sem que a maioria consiga explicar que download e
upload são coisas bem diferentes, que para isso existem acessos dedicados e simétricos,
já para não falar dos vícios de forma e de prática das taxas de contenção associadas a
tortuosos backbones de localização duvidosa tendencialmente omitida. Mas havia
livros, revistas, guias e um número infindável de outras publicações onde facilmente
poderiam ter encontrado toda a informação que quisessem, a que não relataram, por ser
tão fastidiosa quanta a apatia com que se arrastaram pela cidade, ansiosos por partir e
poder virar assim mais uma página da viagem. Mas a ansiedade nem sempre é amiga da
pontualidade e Penha e Clara acabaram por perder o comboio no qual tinham planeado
embarcar. O próximo, um nocturno, só sairia seis horas mais tarde e demoraria um
tempo sem fim a chegar a Veneza. Mas nada havia a fazer. Cansados, e exasperados, de
mochilas às costas, que condicionou, e em muito, a mais leve vontade de se fazerem de
novo a Viena, pelo menos pelas cercanias, para matar o tempo e a cólera, não a bactéria
que se aloja nos intestinos e provoca diarreias, intensas e ardentes, mas a sensação
irritante da contrariedade, inoportuna e sem anúncio prévio, o que a situava no polo
oposto da urgência imposta pela ansiedade. Descrição rebuscada e enfadonha, que
ilustra bem o aborrecimento de ter que gastar um quarto de um dia, uma eternidade para
uma viagem tão longa em tão curto espaço de tempo, seis horas preciosas, com uma
preguiça indesejada e uma certa impaciência pelos corredores e pelas salas da estação
ferroviária de Wien Westbahnhof, espaços arejados e modernos, os mesmos que tinham
servido, dias antes, para a convicção do adeus definitivo a Praga.
Sentada no chão, encostada a uma parede atapetada de azulejos brancos, a cor da paz e
do conforto, bem como da solidão e do frio, Maria Clara tentou ler, mas pôs-se a pensar
em quão farta estava de procurar sentidos para aquela relação tão degastada, com um
bebé a caminho, Ester, a estrela dos hebreus, não sabia se por descuido ou por um
desejo secreto e inconsciente do degelo. Para arrefecer as feridas. E penitenciou-se. Má
sorte a da criança, que ao mundo virá para tentar calar os gritos dos pais, com todos os
brados que os pulmões lhe permitam soltar, queixumes de inquietação e indignação, que
a culpa não é dela nem nunca será, à falta de um plano traçado, quiseram concebê-la no
abismo do prazer e agora não sabem o que fazer, desistir ou remediar, fugir ou
remendar, quando não há retalhos que possam cobrir essa dívida tão avultada da devassa
do misterioso encanto feminino, uma vez derrotado o imaginário dos príncipes e
princesas, que é disso que o amor se faz, o primeiro, pela sede romanesca das histórias
108
de príncipes e fadas, da graciosa harmonia desses distantes reinos e principados, páginas
ternas e acolhedoras golpeadas por um arpão que não se sabe de onde veio, mas dói e
faz sangue, e não se cura, mesmo com um coágulo de fibrina.
Sentado do mesmo modo no chão com a mochila à sua direita, que é com a mão
esquerda que o Diabo come, do outro lado da sala de espera, Tiago Penha também
tentou ler, mas pôs-se a pensar na forma como Maria Clara se lhe entregara no hotel em
Viena, esbaforidamente, após o memorável jantar de mil xelins, não obstante o azedume
com que haviam regressado ao quarto, coisa que já não vivia há muito, longe iam os
tempos em que se amavam por tudo e por nada. Com paixão. E muitas discussões de
permeio ao mesmo ritmo. Sem nunca perceberem a razão. Com o tempo, entre o amor e
o ódio, entre a guerra e a paz, acabaram por se habituar. Sem igualmente conseguirem
perceber por que razão teriam de se acostumar a tanto desassossego emotivo, abolida
que estava a época em que se escolhiam os companheiros até que a morte os separasse,
em que se dizia às mulheres que com o tempo aprenderiam a amar, enquanto os homens
se perdiam por outros amores em prostíbulos vários, traindo e sendo traídos, na roleta
russa das más inclinações.
Meditabundos, enquanto sentiam as batidas abafadas do extenso compasso de espera
pelo comboio com destino a Veneza, os dois fitavam o vazio com os respectivos livros
abertos em cima das pernas. A sala estava praticamente vazia. Havia mais dois casais
com ar de turistas, talvez também viajantes com problemas de pontualidade, que nisso a
fleuma austríaca parecia não perdoar, e um homem a um canto com cerca de quarenta
anos, com um semblante taciturno – seria turco? – a ler um jornal. Eram horas de jantar,
mas aparentemente nem Tiago nem Maria tinham fome. Apenas sede de partir.
E assim permaneceram. Durante a longa espera, os seus olhos nunca se cruzaram. A não
ser quando chegou a hora. De arrumar as coisas, de se levantarem e encaminharem-se
para a plataforma indicada no placar electrónico das partidas. Um olhar que se
encavalitou um no outro, dir-se-ia por acaso, mas deu-se o caso de ser prolongado,
manifestamente expressivo, embora ambos não soubessem ao certo o que expressava,
tal foi o silêncio absoluto que se lhe juntou. Uma espécie de silêncio dos amantes.
Como se as palavras não tivessem lugar naquele inesperado abraço de almas.
109
XIII.
Desde que havia sido obrigado em criança a saltitar entre os mais diversos credos
religiosos, na forma de seitas e outros obscurantismos apocalípticos, pela indecisão da
mãe na busca incessante da verdade, a única, pois para ela era inconcebível que
houvesse mais do que uma, senão de nada valia escolher, a verdade órfã e soberana que
daria o direito a entrar no Reino dos Céus, mas terreno, que céu é coisa que não existe,
inversamente ao que o Vaticano anda por aí a apregoar, não obstante os seus
representantes conhecerem bem a estratosfera, que o diga o Papa quando se eleva aos
altos do Mundo para sobrevoar o planeta, e a troposfera, e a mesosfera, e a termosfera, e
a exosfera, e o espaço sideral, que já nada tem a ver com estas atmosferas, Tiago Penha
deixou de se interessar, criando até uma certa antipatia, por questões celestiais,
esotéricas e outras de natureza semelhante, apelos e exaltações do além, que estão mais
para lá do que para cá, portanto lá longe na parte de lá, que é como quem diz além, no
além, e, por conseguinte, a resvalar para fora dos limites da vida de cá, o que obriga à
cegueira da fé, quando não é possível explicar o inexplicável, que nestes mundos do
além muitos são os dogmas que não se entendem a não ser à força da crendice ou da
crença, depende de quem olha, contrariamente a Maria Clara que, aos poucos e poucos,
foi preenchendo o vazio deixado pela ausência do marido – e ainda bem que assim era,
não fosse ele forjar outra ameaça intempestiva, uma nova e oprobriosa tempestade de
maus costumes que nisso era exímio, na vergonha e na infâmia – com a presença de
Nosso Senhor, encontros secretos num crescendo de sedução, talvez da paixão se
passasse ao amor, e Cristo a quisesse desposar, mesmo já sendo casada, o que não
decerto não seria pecado, pois a Santíssima Trindade se encarregaria de resolver o
problema, até porque são três, a conta que Deus fez, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, é
sempre melhor três a pensar do que apenas um a ruminar, e Jesus também nunca foi
muito dado a grandes monogamias, para isso os desígnios divinos são insondáveis, e o
mistério da doutrina cristã assim o exige. É claro que isto de contrair matrimónio com a
Trindade pode dar azo a grandes confusões, mesmo sendo santa, a Trindade, bem
entendido, pois a suspeita da poliandria associada à forte probabilidade de ocorrerem
actividades de cunho orgíaco parece ser uma evidência, que é o mesmo que imputar ao
Pai, ao Filho e ao Espírito Santo sérios indícios de práticas condenáveis, e disso se
queixam as freiras, ou pelo menos algumas, casadas com os três ao mesmo tempo,
embora a título de alegações iniciais, em sede de audiência de discussão e julgamento,
se para tal a Santíssima Trindade se dignasse a prescindir da sua tão elevada imunidade,
se possa arguir que o fundamento é platónico, meramente espiritual, uma relação a dois
ou a quatro, ainda está por decidir, que nesta cama só entram espíritos, não importa
quantos, porque o propósito é apenas um: livrar a carne das tentações e do mal, dos
interesses materiais e dos mundanos; ou seja, da matéria e das coisas deste mundo; ou
seja, aceitar o que vem do além, o que até pode ser um caso de possessão e aqui há um
problema, pois para haver posse tem de haver espírito mas também carne, e desejo, de
possuir, claro está, o que nos leva ao princípio dos princípios, “Sede fecundos e
110
multiplicai-vos!”, coisa estranha para uma Trindade que impõe a castidade e a carne
imaculada. É o santo mistério do três em um, ainda que não multiplicado por dez
elevado a nove, que a miríade de dúvidas já é suficientemente grande, pena é que não
haja determinação em reexaminar as setes virtudes e os setes pecados sob a frieza
racional desses processadores orgânicos que Tiago Penha tão bem conhecia,
processadores da infinitude, ou da infinidade, insiste-se na opção, de dados integrais de
computação, átomos sem fim de representação de símbolos, letras e números. E assim
anda o mundo, o de cá, que no do além a história é outra: cego para ver, desperto para
olhar sem ser capaz de perceber.
(Web Forum: Pois é, ter a percepção das coisas já é outra história. Primeiro passo de
um diálogo a dois, primeiro ela, depois ele: De um modo geral, em algum tempo,
alguém certamente viveu, vive ou viverá uma condição semelhante a esta. Depende do
contexto. Olhamos sem ver e não nos apercebemos. Mas do quê? Pergunto-me qual
será a resposta mais adequada. E ela: Mas isso é comum, só percebemos algumas
situações depois do tempo passar, quando dizemos “como foi possível não ver isto a
acontecer?” ou “como pude ser tão ingénua ao não ver isto?”, são os contextos do diaa-dia. E ele: A vida é tão simples, nós é que a complicamos. E ela: Complicar faz parte
do viver esta vida. E ele: Até pode ser uma das verdades, mas qual será a melhor? E
ela: Discordo. Como posso saber que estou a dificultar algo que ainda estou a viver?
Somente quem está de fora é que consegue ver e saber que, por vezes, os problemas são
tão simples de resolver. Depende da situação, mas na maioria dos casos somos
incapazes de, por nós próprios, conseguir distinguir o simples do complicado. E mais
não se disse, pois nada mais havia a dizer)
Foi sempre este o problema de Tiago; não havia nada a dizer: Tiago, o adúltero, Tiago,
o cabrão, Tiago, o depravado, um professo da ignomínia, da infâmia e da torpeza, que
andou a esquadrinhar o interior da vagina de uma colega de trabalho quando Maria
estava grávida dele, nunca é demais recordar. Antes de abortar. Antes de tomar a
dolorosa decisão de matar a vida dentro do seu útero. Para sempre. Renegando as Leis
de Mendel e a possibilidade de cumprir a palavra do Senhor.
Não se sabe ao certo como se processou esta transição entre a ferocidade querelosa em
que Maria Clara mergulhou, depois de ter decidido matar a filha, e o desaprumo mental
que depois aceitou, ao aceitar Cristo e tornar-se discípula deste, fazendo uso de toxinas
letais, como a cicutina, que lhe proporcionaria uma mise-en-scène clitórica tão
degradante para a vítima, Tiago Penha, como para ela própria, que a condenaria ao
desterro eterno num frenocómio, não pela prática de homicídio, que desse crime foi
absolvida por ser inimputável, mas pela razão da inimputabilidade, de que apenas podia
resultar o internamento compulsivo em regime fechado para tratamento psiquiátrico.
Assim o determina a Lei da Saúde Mental, de mil novecentos e noventa e oito, ao
abrigo da Constituição da República Portuguesa, de mil novecentos e setenta e seis, e do
princípio nela consagrada, pela redacção de dois mil e cinco, da salvaguarda de outros
direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Um internamento sob tutela
judicial num velho edifício datado do princípio do século vinte e remodelado na década
de quarenta, para dar lugar ao novo manicómio de Lisboa, bem diferente do hospital
Bohnice – o tal paraíso na terra de oitenta e oito edifícios e pavilhões, dispostos
radialmente a partir de um parque ajardinado em estilo inglês com uma igreja com
características típicas da art nouveau, com vista para o rio Vltava – em Praga, mas no
resto em tudo semelhante, que a “cura” dos loucos sempre se prestou a grandes
equívocos, basta lembrar Jeanne d'Arc, queimada até à morte atada a um poste em
Vieux-Marché, hoje centro histórico de Rouen, na Normandia, onde se ergue uma
majestosa catedral com vitrais multicoloridos e um sem-fim de postais e livros à venda
111
sobre as aventuras e desventuras da donzela de Orléans; bruxa e guerreira, que chegou a
liderar um exército de quatro mil homens aos dezanove anos. E a ouvir vozes desde os
treze.
Dizem os manuais de diagnóstico diferencial que os comportamentos agressivos são
normais e comuns, quando se trata de violência associada a uma descarga emocional e à
activação do sistema nervoso simpático, que se manifesta fisicamente com a dilatação
das pupilas, o aumento das batidas cardíacas e do ritmo respiratório e a segregação de
adrenalina. Contudo, no caso de um sociopata, a violência tem uma natureza diferente.
É semelhante à agressão predatória, sem emoções, ou seja, a sangue-frio. Neste
particular, é comum distinguir o paranóide psicótico, que pode ser esquizofrénico, e o
assassino psicopata, que apresenta uma personalidade manifestamente anti-social. É
impulsivo, instável, não se sente culpado, age pela repetição e com rituais obsessivos.
Apesar do tema ser controverso, porquanto a máscara da sanidade presta-se a muitas
indecisões – desde o diagnóstico à aplicação de psicoterapias e soluções
quimioterápicas – dir-se-ia que estas são, de um modo geral, algumas das condições
psiquiátricas que caracterizam e fundamentam as perturbações sociopáticas ou
psicopáticas de personalidade de tipo paranóide ou dissocial, formas de personalidades
extremas cujo mapa sintomatológico, estando no limite, ajuda a localizar a génese de
determinados distúrbios sociopáticos ainda em estado embrionário ou estacionário. Daí
que seja prática comum partir da indagação das sobrecargas emocionais e, porventura,
da susceptibilidade genética a vulnerabilidades patológicas. A neurose de angústia, por
exemplo, pode derivar de uma privação sexual imposta. A neurose cardíaca, outro
exemplo, por sinal bastante comum, pode confundir-se com a primeira e evoluir para
rituais obsessivos, o que pressupõe uma conduta fóbica e, claro está, a existência de um
objecto fóbico bem como de um contrafóbico.
Se Tiago Penha não houvesse estado tão ausente, tão ocupado a conduzir a sua vida de
forma desregrada, filiado na libertinagem, por predisposição genética, justificação um,
por considerar que não havia outra opção, justificação dois, e por que lhe apetecia,
verdade primeira, já não lhe bastava ter as mãos sujas, por que razão haveria de se
penitenciar para o resto da vida, ou a tal ser obrigado, verdade segunda, talvez tivesse
percebido que, quando Maria Clara começou a acusar, e a tentar ocultar, alguns dos
tradicionais transtornos psicossomáticos associados a ataques de pânico e ansiedade,
que no caso dela assomaram sob a forma de episódios irregulares de taquicardia e
sudorese, que tão depressa apareciam como desapareciam – é natural, desde que a
incidência não suba vertiginosamente, como sucedeu – mais não estava do que a
observar as primeiras manifestações clínicas da síndrome serotoninérgica.
Se Tiago Penha não houvesse estado tão preocupado em tudo fazer para conseguir
vencer a matriz punitiva da sua coabitação contratual com a mulher, entregando-se à
solidão de uma forma de vida sempre concorrida, que para isso podia contar com Simão
Saraiva – os dois sempre prontos para se perderem entre multidões de autóctones na
imensa multidão que é a raça humana espalhada pelo planeta, enquanto remendavam os
algoritmos de um mundo cada vez mais ligado em rede, e mais excedentário na
produção de velharias e desperdícios, a ciência da computação assim o dita, para o bem
crescente de quem a domina e com ela ganha dinheiro, porque modernizar é também
envelhecer, inovar para caducar, que seria de nós sem novas necessidades,
especialmente as descartáveis, pois sem sucedâneos não haveria progresso, nem miséria,
nem riqueza, para o tempo parado já basta o Butão, ou a Terra do Dragão, esse estranho
reino feudal encravado nos Himalaias entre a China e a Índia, ou as tribos perdidas na
floresta amazónica ou nas regiões montanhosas da Papua Nova Guiné, o Círculo do
Fogo do Pacífico – talvez tivesse percebido que, quando Maria Clara começou a flutuar,
112
e depois a submergir, e depois a afundar-se nos mares profundos dos psicotrópicos,
ainda que com prescrição médica, bem entendido, mais não estava do que a observar o
colapso do sistema nervoso dela, a derrocada das torres bioquímicas e fisiológicas
cerebrais que sustentavam o seu equilíbrio psíquico, a mesma derrocada que, com
terror, ele havia assistido em directo em Veneza, em dois mil e um, o colapso das torres
gémeas do World Trade Center. E já agora que comam merda aqueles que se apressam a
pensar em demagogias e eventualmente a ver aqui uma comparação grotesca, fácil e
sem sentido, e que tomem no cu aqueles que pensam mas que não sabem pensar, porque
não conhecem a dor, nem o sabor, Veneza também é um Carnaval, mas estas são outras
máscaras, quando a sanidade se confunde com a insanidade, mesmo que não se saiba o
que as separa, tal como sucede na cidade do amor, com os seus mil e um canais e
pequenos mares de água turva, às vezes nem mexe, para que cheire e dê a cheirar, o
odor fétido da morte lenta, a fragrância da loucura, se é coisa do Diabo ainda está por
descobrir, mas que é aroma de merda lá isso é.
(Web Forum: Envelhecer fisicamente é um processo natural da vida. Mas é melancólico
quando as ideias envelhecem junto. A que se segue uma réplica: Por mais que a ciência
avance, com os seus danos colaterais, estamos sempre condenados ao envelhecimento.
Mas a matéria não vive de tempo nem envelhece. E talvez seja nesse estado que o
homem vai aprender um dia a viver em comunhão)
Os psicofármacos têm destas coisas: aliviam, mas não curam; adiam, mas não destroem.
Meros paliativos para mitigar as dores, os males da cabeça, embustes, mentiras
ardilosas, velhacas, que é como quem diz “devil in the body and your soul lost forever”,
sejam antipsicóticos ou ansiolíticos, sejam antidepressores ou antidepressivos, quem
quiser que escolha, antiepilépticos, barbitúricos, sedativos e benzodiazepinas, inibidores
selectivos da recaptação da serotonina e da noradrenalina, tão longa é a denominação
que até tem uma sigla, ISRSN, para que não haja confusões de tantos que são os
compósitos químicos, da clozapina à cloropromazina, e depois a flufenazina, e depois a
pimozida, e depois o sertindol, e a tioridazina, e a carbamazepina, e o cotrimozaxol, e
depois o cloranfenicol, mas há também sulfonamidas e citostáticos, e a fluoxetina, e a
fluvoxamina, e depois a paroxetina e a sertralina, o zopiclone e o zolpidem, e ainda a
buspirona, e depois a valeriana, que mais parece o hash, marijuana, change money, da
Índia do pau de sândalo e do calor sufocante, da Índia dos mosquitos e da agonia do
cheiro a rosas.
Da Índia de Simão Saraiva e de um cadáver a boiar no Índico, desenlace lutuoso mas
possível a qualquer momento entre aqueles que vivem da alcovitaria, ou da putice, e lá
volta o pudor a baralhar a verdade sintáctica, que em Madrid aconteceu o mesmo,
embora o companheiro de Penha estivesse diferente, dera-lhe para beber todos os dias,
de manhã à noite, beber até cair, ou ser corrido de um bar de copas, quer dizer, de uma
casa de putas, e lá regressa a linguística a querer impor regras e preconceitos, desafios
de boca e de língua, que até apetece meter pelo meio umas cunilínguas, embora não
tenha sido o caso, já que a jovem equatoriana não deixou, pelo menos ali, até porque,
bem vistas as coisas, não era paga para ser chupada mas para chupar. Se para aí
estivesse virada. E esse foi o traço distintivo que seduziu Tiago de imediato. Em
Recoletos, a reeditar La Recoleta dos porteños e a loira de olhos verdes cujo nome se
lhe havia esfumado, se é que chegou mesmo a sabê-lo alguma vez, porque se houvesse
sido o caso afinal não era um problema de memória mas simplesmente de falta de
atenção, isto é, de curiosidade, ou da falta dela. Coisa estranha perante uma mulher
realmente bonita, uma mulher que ele podia amar, ao som de tango, música para a dança
da carne e do desejo, na «Esquina Carlos Gardel». Perdeu-lhe o nome e o contacto
113
telefónico, mal regressou a São Paulo, já se sabe. E o irónico é que em Madrid, nunca é
demais repetir, sucedeu o mesmo.
— Achas?
— Sí, por supuesto — respondeu a Claire Danes em versão morena, que continuava de
pé à frente de Tiago Penha, com um sorriso suave no rosto, aparentemente à espera do
convite da parte dele para se sentar no lugar que Simão Saraiva havia deixado
desocupado depois do lo siento mucho, putedo que não vale um corno, muy borracho,
vámonos, para a puta que te pariu, ahora, e outras palavras afins, com cabras e muchas
madres à mistura, todas putas, claro está, todas filhas de uma grandessíssima puta.
Tiago apagou o cigarro no cinzeiro, deu mais um trago no uísque e fez por fim um sinal
com a cabeça para que se sentasse, caso assim ela o entendesse, quando estava já tudo
mais do que bem entendido. De resto, aquela mulher de olhar angelical, tão cândido
quanto provocador, tinha razão; provavelmente Saraiva não se lembraria de nada do dia
seguinte. Caso não acordasse ao relento, deitado no chão empedrado num recanto de
uma ruela qualquer perto da Puerta de Alcalá, suja e malcheirosa, como a maioria das
artérias do centro histórico de Madrid, por não ter conseguido dar com o hotel, o que
não seria a primeira vez, aliás, desde que havia mudado de hábitos, desde que começou
a mostrar ter um novo amor, o do abuso de álcool, no Rio de Janeiro, recém-chegado
possivelmente da Patagónia ou de outra região na Argentina, por onde andou de
paradeiro incerto durante cerca de dois meses.
— En una casa de copas, es la regla de oro: no beber mucho — disse ela, num tom
brando, quase neutro.
— Para não foder o dinheiro e acabar sem foder, certo?
— Antes o despues, la plata siempre se gasta — afirmou a morena sem acusar o toque.
— Pero el problema es saber lo que quieres. Si quieres las cosas bien hechas —
prosseguiu, ao deixar-se cair no sofá almofadado, dando a ver a Penha as pernas e nada
mais, porque em vez de usar uma minissaia, por exemplo, através da qual pudesse
sugerir o que tinha ou não vestido por baixo, optara por uns calções curtos de ganga
desbotada. Uns calções e um top transparente, esse sim, não a insinuar mas a exibir, e
com ostentação, a ausência do sutiã: mamilos espetados e os peitos em toda a sua
volumetria expostos por debaixo do tecido de algodão, se bem que fossem relativamente
pequenos. Em boa verdade, na justa proporção do corpo que Tiago lhe adivinhava,
longe de possuir as curvas sumptuosas do genótipo latino. Faltava ali carne, algo a que
se agarrar. Ao invés, o que nela abundava era uma constelação de ossos revestidos por
membranas e tecidos musculados que, por muita harmonia estética que pudesse ter aos
olhos de quem dita as regras da perfeição e do belo, com as suas várias geometrias
femininas, graciosas, encantadoras e porventura sedutoras, definitivamente não fazia o
género de Penha.
— E para que isso aconteça é preciso o quê?
— Mira, si te agrado y estás borracho no es difícil hacer dinero contigo. Es sólo un
trabajo de paciencia. Es lo que tu quieres de mi? — quis saber ela, mantendo o mesmo
tom de voz enquanto puxava de um cigarro.
Tiago debruçou-se sobre a mesinha com o tampo de vidro que se interpunha entre eles e
estendeu-lhe a mão com um isqueiro aceso. Uma pequena chama bruxuleante que a
morena aproveitou para atear fogo à nicotina e aspirar uma bola de fumo, fazendo com
que a ponta do cigarro se iluminasse com o clarão momentâneo de um vermelho
incandescente, um pontículo de luz que se inflamou por escassos momentos, como se
estivesse a afirmar a sua vivacidade entre os fios de vapor da combustão cancerígena, a
glorificar a sua singularidade activa no meio do mesmo tom, se bem que não tão fogoso,
como é bom de perceber, que se espalhava pela sala a meia-luz.
114
Foi a vez dela de se recostar no sofá e cruzar as pernas, sem nunca tirar os olhos de
Penha. Com uma expressão no rosto ferozmente encantadora. Tão cândida quanto
provocadora.
— Sei lá o que quero de ti! Ainda mal começámos a falar. Para já é isso: conversar.
Tiago voltou a pôr o isqueiro em cima da mesinha e pensou que provavelmente teria já
bebido demais: primeiro havia ficado incomodado com a ausência de geometrias
femininas acentuadamente curvilíneas na mulher que se sentara à sua frente, embora
algo lhe dissesse que, naquele caso, não deveria ser o mais importante, preocupação
invulgar porque as formas nunca tinham sido impeditivas do que quer que fosse; depois,
houvera aquela sensação esquisita de um silêncio súbito, uma espécie de apagão
repentino, uma ensurdecência total, enquanto a morena mais não fazia do que acender
um cigarro, um gesto tão maquinal e espontâneo que, paradoxalmente e com grande
estranheza, lhe parecera uma representação em câmara lenta, cinema mudo mas a cores,
a mostrar uma cena comum com toques de poesia, gestos poéticos e eufemísticos, como
se fosse possível ver na incandescência da ponta de um cilindro de papel e tabaco um
lampejo de excitação, de calor, reverberações de ardor, de impulsividade e
arrebatamento, tudo sob o predomínio visual do vermelho, a cor do poder e da paixão, a
cor do desejo e da vida em brasa.
— Hablar aquí cuesta dinero. Puedes gastar la plata en otras cosas.
A morena alta e robusta de serviço às mesas, a das leggings de licra preta transparentes,
sem mais nada por baixo, voltou a aparecer para recolher os copos vazios e apontou
para o único que ainda tinha algum uísque, como que a perguntar a Penha se queria um
reforço, talvez pudesse ajudar. Como resistir ao mundo portentoso das sevícias
hormonais metido numa só mulher? Tiago sabia que deveria já ter bebido demais, mas
se ainda pensava nisso era porque não havia perdido a conta, pelo que podia dar mais
algumas voltas, poucas é claro, no admirável carrossel dos destilados de cevadas. E foi
o que fez. Pedindo mais um uísque. Mas que estava baralhado, lá isso estava. Havia
descartado a possibilidade de contratar os serviços de duas escorts escolhidas à la carte
para partir à aventura pela noite madrilena com Simão Saraiva, enfiaram-se naquela
casa de putas para beber uns copos, descontrair, relaxar, talvez foder alguma, se
calhasse, que nestas coisas dos prazeres extraviados nunca se sabe, a merda é que o
companheiro andava a encharcar-se em álcool e acabou por ser posto na rua, de forma
polida é certo, em jeito de convite, mas expulso, o que até não havia sido tão
despropositado quanto isso pois era o que ele estava a pedir, e Penha bem que precisava
de uns momentos a sós, sem grandes conversas ou fanfarronices, a sós como quem diz,
talvez assomasse algo apetecível que pudesse comprar, mas calhara-lhe uma morena
que definitivamente não fazia o seu género e agora estava a discutir. A discutir o quê? E
para quê? E porquê? Havia aquela expressão no rosto. Demolidora. Abrasadora.
Ferozmente sedutora. Mas a roupa, a roupa também não ajudava muito. A mulher não
percebia que aqueles calções não se prestavam à exaltação de atributos que ela podia
fingir ter, eventualmente escondidos? Não bastava andar por ali de mamilos espetados
sem sutiã com um top transparente. Até porque as mamas não eram grande coisa.
Pequenas. Sem carne. E nisso Tiago era irredutível. Sempre havia insistido. Regra de
ouro: algo que se possa agarrar. Qual é o prazer de afagar ossos? Mas mais: acrescia a
obrigação de ter de entabular conversa em castelhano, quer dizer, ela, que ele falava
português e mais nada. O portunhol é para idiotas, para essa escumalha toda que anda
por aí sem perceber que os espanhóis passaram a vida a tentar tramar-nos. É que
Olivença não é um assunto arrumado. É verdade que não foram só os espanhóis. Os
muçulmanos também andaram lá a afocinhar. Mas os nuestros hermanos são outra
história.
115
(Web Forum: Em algumas situações o portunhol é inevitável. A que se segue um
comentário da Galiza no feminino: Pois gracias pela parte que toca a mim. Não sei se
rio ou choro. Mas creio que não há motivos para choros, pois com meu bom portunhol
estou indo muito bem, obrigada. E outro da Catalunha, no masculino: Conhecendo
melhor o castellano, como o conheço hoje e bem, es impossível falar perfeito. Quem
entende o que é um perfeito castellano se ele dentro de um mesmo País muda? E
sabemos que as diferenças são ainda maiores de País para País. No meu caso, onde
vivo, todos falam o castellano mas preferem a língua madre que es o catalan e ambos
os idiomas têm muito do português. Do outro lado do Atlântico, soa uma voz
discordante em versão carioca: Não falo bem Inglês e “arranho” o "português cá do
Brasil” com todas as variáveis. No entanto, discordo da ideia. Nada do que pode ser
usado para comunicar pode constituir-se em idiotice! A compreensão do ser humano na
sua totalidade é o objectivo da humanidade, e a comunicação, ainda que precária, faz
parte da cadeia evolutiva de todos nós. Estamos juntos no mesmo barco e, portanto,
sujeitos às instabilidades convencionais. E outra réplica, agora em português: Bom. É
óbvio que os espanhóis foram sempre ao longo da História uns vizinhos pouco
amigáveis embora aparentemente tudo se passasse de forma polida. Os portugueses são
um pouco melhor em quase tudo, penso eu. Até na simpatia com que acolhemos as
pessoas de outros países. Vamos a Espanha, pedimos uma simples cerveja e o senhor
que nos atende faz uma cara de quem não está a entender ou traz-nos algo para beber
completamente diferente. Também são péssimos a falar inglês. Pelo menos nisso os
portugueses aparentam estar em melhor forma. Claro que os espanhóis nos tiraram o
que era nosso, aqui e ali, nesta ou naquela circunstância. Mas o essencial da questão
não está no que eles nos tiram, mas sim na nossa passividade. Fomos nós próprios que
deixámos. A opinião é subscrita por outro comentador lusitano: O nosso Governo, como
sempre, nunca teve tomates para exigir o que nos pertence, de que é um bom exemplo
Olivença. Como não tem tomates para defender Portugal e a sua cultura no exterior.
Actualmente a situação ainda se tornou mais grave, uma vez que o nosso País é um
caixote do lixo perfeito para os países considerados mais desenvolvidos. Nesta
perspectiva, Olivença até é um pequeno problema comparado com a roubalheira a que
os portugueses estão sujeitos por parte de todos os países que querem fazer do nosso
território uma autêntica casa de banho! E nós indecisos, alienados, cegos, escravos,
ineptos, nem o cheiro imundo nos incomoda. Não sei onde anda o espírito de justiça,
guerreiro e aventureiro dos portugueses! O que gera um comentário dissonante: Tenho
viajado por Espanha e, de um modo geral, gosto e aprecio a forma como os espanhóis
têm mantido a sua “integridade” cultural face à integração europeia. De nós já não
podemos elogiar isso, porque temos a tendência de imitar, muitas vezes mal, como que
cultivando um sentimento de “inferioridade”, um complexo que tentamos ultrapassar
com certos laivos de “saloiice”, que não caem bem. É pena! O remate volta ao Brasil:
Não percebem que tudo isto é apenas uma falácia provocatória para captar
argumentos inteligentes?)
Discussão interessante que Tiago Penha deveria acompanhar. É que, como se não
bastasse a conversa cruzada entre castelhano e português, havia ainda o registo
cauteloso, como ele estava a pressentir. Que esta senhora era uma puta fina. Um
desconchavo era o que era, um perfeito e completo disparate; um desatino, um absurdo,
uma tolice, uma imprudência, só despropósitos para quem estava a pagar a conta e não
sabia como exigir os direitos que o desembolso em numerário lhe conferia. Que raio!
Não diz a tradição das boas práticas comerciais que o cliente tem sempre razão? Não era
ele quem teria de pagar a conta? Na verdade, aquilo não era bem o que lhe apetecia
116
naquele momento. Contudo, Tiago não podia esconder que havia ali qualquer coisa
profundamente tentadora que não conseguia definir. Talvez fosse do uísque.
— Estou a ver. Diz-me então: quanto custas? — disparou ele, mal a empregada se
afastou, fitando com intensidade, e alguma agressividade, os olhos da Claire Danes em
versão morena.
A sensação de silêncio havia desaparecido por completo. Voltara-se a ouvir o
burburinho dos convivas, eles e elas, e os acordes das canções ciganas da Andaluzia.
— No es la pregunta correcta. Lo que deberías querer saber es si me gustas —
respondeu ela com um sorriso, mantendo a voz macia, tão suave que começava a irritálo.
— Mas não é este o teu trabalho? Não sou só um cliente que tem de pagar se quiser
determinados serviços?
— De esa manera, tenemos el primer gran problema: no le quieres saber — sentenciou
ela, apagando o cigarro num cinzeiro atolado de beatas ao mesmo tempo que Penha
acendia outro e emborcava o resto do uísque num só gole, à espera que a distinta
senhora das leggings de licra preta transparentes, sem cuecas e com os pêlos púbicos
quase à mostra, amassados pelo tecido, lhe trouxesse mais uma dose.
— Espera lá que estou a ficar confuso. Sou eu que tenho que te agradar?! De saber…
De saber o quê? Se gostas de mim? Porra, não estamos numa casa de putas?!
Os ruídos de Tiago, ligeiramente exacerbado, chamaram a atenção do segurança, que
lhe deitou um olhar de poucos amigos, tal como havia sucedido com Simão Saraiva.
— Una casa de copas — insistiu ela, quase a sussurrar.
Penha percebeu que tinha de se aquietar e baixou o volume da voz, mas sem deixar de
manifestar a sua impaciência.
— E vocês a darem-lhe com a casa de copas. Isso é o quê? Sexo de extrema-direita?
Sexo nacionalista espanhol?
— Lo siento. Soy del Ecuador, de Quito — e riu-se. — España es un accidente de la
vida.
Tiago recostou-se no canapé e suspirou fundo. Rendido ao encanto daquele riso. E
sorriu. E riu-se também.
— Que quieres saber? — voltou ela a murmurar, com uma inesperada inflexão no
discurso.
Mantinha o sorriso e uma expressão no rosto ferozmente encantadora. Mas havia agora
cumplicidade, que se confundia com proximidade, como se de repente os dois
houvessem passado a falar a mesma língua, sem barreiras geográficas ou sociais, como
se fossem amantes e não seres desconhecidos que haviam acabado de se cruzar, ele a
chegar, ela a partir, por acidente, como se tudo aquilo não tivesse passado afinal de um
pequeno teste prévio, preliminares de amores tresmalhados, antes da dança da paixão, o
sexo selvagem em estado puro, tão intenso quanto breve, apenas de passagem a troco de
uns trocos, de preferência em euros. Multiplicados por dez elevado a nove. Se se desse o
caso das putas amarem.
Tudo e nada, terá pensado Penha na resposta que não deu ao acabaram a noite no hotel
onde ele estava hospedado, perto da Puerta de Alcalá. A foder, claro está. Num quarto
quente e abafado com uma ventoinha no tecto e o zumbido permanente das pás a varrer
o ar. Mas também com troca de afectos. Até porque o sexo não era grande coisa, não é
que a equatoriana não se esforçasse ou não tivesse a mestria determinada em forçar o
prazer, as artes de causar o deleite aprendidas à força pela força de tantos e repetidos
encontros com desconhecidos, mas faltava-lhe no corpo o que tinha no rosto, a brisa
intensa de sedução, o êxtase e o deslumbramento, na ausência de curvas e de carne a
117
que Tiago se pudesse agarrar, que o amor é coisa da alma, mas na hora dos instintos
primários é o animal que se revela, e esse só com selvajaria se sacia.
(Web Forum: Talvez seja assim para aqueles que não conhecem o amor de verdade…
Com uma réplica dissonante no feminino: “Sem o corpo a alma não goza”. Penso que
quem o escreveu foi a Adélia Prado. E mais um comentário, igualmente no feminino:
“A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota”,
palavras de Jean-Paul Sartre. O que gera uma observação lacónica: Já vi discussões
melhores. E o remate: É justo ficarmos escravos de instintos primitivos, levados pelo
impulso do desejo? Em determinados momentos, será preciso ligar o botão do
autocontrole, porque às vezes, por uma série de motivos, o corpo diz sim, mas a mente
diz não. É um confronto de gigantes)
Com efeito, que estranho negócio aquele, jogo mais que improvável, porque a beldade
de Quito, latitude zero (o que em rigor não é verdade, nunca é demais relembrar), podia
ser fascinante a muitos títulos mas definitivamente não fazia o género de Penha. Mesmo
se olhada sob o fetiche da possibilidade imaginária de se trocar beijos, afagos e outras
intimidades com uma estrela de Hollywood. Todavia, a tentação da imaculabilidade não
era suficiente para aplacar os apetites do corpo de um apaixonado pela generosidade
sumptuosa do genótipo latino ou, no limite, por mais contraditório que possa parecer,
pela frieza misteriosa do paraíso ariano, já se sabe, na verdade ele até preferia as
nórdicas, uma paisagem abrasadora pintada de azul, branco e dourado, o que tende a ser
uma nova contradição, pois frio e brasas, por muito mistério que queiram ter, não
parecem ser sinónimos, mas nestas coisas do devir carnal há sempre causas ocultas,
dogmas que aparentam ser inexplicáveis, segredos que a razão humana não pode
compreender, sobretudo quando não há razões mas tão-somente crenças, o que significa
que tudo acaba por ser uma questão de fé, ou de fidelidade, já não basta a batalha
titânica entre as forças do espírito e as forças da arimética, a alma e o corpo em perfeito
desatino, ou o desvario da falta de tino, que é o mesmo que dizer a mente e os seus
delírios. E lá volta o paradigma da insanidade quando não há sanidade que baste, e a
fatuidade, e os fogos-fátuos, e Clark Kent e Krypton, e já agora os Simpsons, desde que
se mantenha a versão original, que isto das dobragens é tão fatal como a fatalidade do
destino, presumindo que seja coisa que exista. O destino, bem entendido.
Tiago Penha e a equatoriana do bar de copas de Recoletos voltaram a ver-se na noite
seguinte. E na outra. E ainda em mais uma. Quatro noites em que privaram activamente
em todos os sentidos. Na cama e fora dela. Encontros à margem do bar de copas para
despedidas de solteros, com passeios a dois ao final da tarde pelo Real Jardín Botánico,
entre o museu do Prado e Atocha, ou pela praça de Cibeles, sempre animada por turistas
em busca da mãe da vida e da fertilidade, a deusa Cibele esculpida em forma de
fontanário, ou pelas calles agitadas que desembocam na praça da Puerta del Sol, o
coração nevrálgico de todos os verdadeiros madrilenos; com jantares íntimos e
dispendiosos, ao som de flamenco, outra música misteriosa da paixão e da sedução, na
praça Tirso de Molina ou na praça da Chueca, morada de extravagâncias da comunidade
gay de Madrid; com passagens pelas catedrais do house e do techno, nas mesmas
cercanias entre Atocha e del Sol, a contragosto de Penha, que aquilo era demais para
ele, sobretudo os olhares mortíferos que a equatoriana deitava para tudo o que era
espécie humana, homens ou mulheres (se essas dessem sinais nesse sentido), parecia ter
as sondas de prospecção sempre a laborar, sempre pronta para foder o próximo,
frenética e incansável, ao mesmo tempo que o mimava até à exaustão; e com os
regressos de táxi à Puerta de Alcalá, àquele quarto quente e abafado para cópulas
calmas e demoradas, finalmente em aterragem, ou em despenhamento, vá-se lá saber.
Intimidades que Tiago Penha afinal já não desejava. Bastava-lhe falar, bastava-lhe fingir
118
que amava aquela mulher que nem sequer era o seu género. Mas ela insistia, doce, em
castelhano, não se sabe se por desejo ou por obrigação, talvez por não ter vida senão
aquela. A que fora obrigada a aprender para sobreviver. Longe de Quito, longe das
ruínas escondidas da cidade dos Incas e das memórias contraditórias de Atahualpa, o
último Sapa Inca que o Equador conheceu. Com efeito, mais parecia o início de uma
relação, quando na verdade tanto era falsa como verdadeira esta estranha forma de
amar, se é que o amor pode entrar numa equação em que o sexo não é grande coisa, já
se sabe, tanto mais que o animal revelou-se mas não estimulou o objecto desejado; era
apenas para falar, insiste-se, mas o tempo paga-se, e escasseava, claro que havia um
prazo, que as despesas eram muitas e havia que ganhar a vida. Ela. E ele.
— Aparte de todo me siento derrotada, frustrada, enganada — disse-lhe ela uma vez,
nua, encharcada em suor, deitada ao seu lado, a olhar para a ventoinha no tecto que
muito barulho fazia mas pouco ventilava. — Como quito esta tristeza que me esta
matando?
Tiago encolheu os ombros. Talvez em sinal de impotência ou simplesmente de mera
indiferença, porque conhecia bem aquela história.
A morena do bar de copas, cujo nome Penha nunca chegou a decorar, ou se calhar a
saber, havia deixado a latitude zero e o vale das terras altas com o novio em busca de
melhores dias. Mas na metrópole, na capital do antigo império espanhol, a história – a
que Tiago sabia bem – transformou-se rapidamente na do costume. Tal como o Estado
pluricontinental se fragmentou em repúblicas independentes e num reino com
comunidades autónomas acossadas pelo terror de movimentos separatistas, também a
vida da jovem equatoriana se reduziu a pedaços, e depressa, mal chegou a terras de
Espanha. O novio, pouco experimentado em novos mundos, deixou-se encantar pelos
resquícios da movida madrilena e mergulhou na noche que nunca duerme rendido aos
prazeres da MDMA, DOB, speed e de toda a amálgama das club drugs. Aos prazeres e
aos vícios, que logo deram lugar à dependência de ter de fazer dinheiro à pressa.
Repentinamente. “Madrid me mata”.
E ela?
— No tenía dinero para regresar a casa — comentou por fim, justificando-se, como se
lhe houvesse sido pedido, o que não foi o caso (apenas ficara suspenso no ar a jusante,
interrogação natural após o breve relato sobre o percurso madrileno do novio). — No
pudo hacer nada más que hacerme daño — acrescentou ainda, mas sem mostrar
qualquer emoção na voz.
(Web Forum: Vende-se o que se tem para comprar o que se não tem. Qual é o
problema? O comentário gera uma réplica no feminino: Tenho dó dessa lógica de maisvalias aplicada ao próprio corpo e ao gozo do cliente. E um novo comentário a
subscrever a primeira observação: Faz ela muito bem. Que sobreviva por muito tempo,
independentemente do que faz para o conseguir)
Ela levantou-se e dirigiu-se para a casa de banho.
Aparentemente, além de defender que não se deve beber mucho en una casa de copas, a
beldade do Quito tinha aprendido uma outra regla de oro: nunca acordar no leito de
clientes. Na verdade, nas quatro noites que durou aquele jogo improvável de troca de
afectos a troco de uns trocos multiplicados por dez elevado a nove, mesmo naquelas que
estavam prestes a desvanecer-se para ceder o lugar à aurora, fez sempre questão de se ir
embora assim que sentia, por razões que Penha nunca conseguiu perceber, que o
encontro havia terminado.
Tiago recostou-se na cama. Ouviu o som do autoclismo, viu-a sair dos servicios
privativos do seu quarto, abalroado continuamente pelo zunido penoso da ventoinha que
nada servia para apaziguar o calor que ali se fazia sentir, e pôs-se a observar com
119
atenção a geometria harmoniosa do corpo dela enquanto a equatoriana se vestia
vagarosamente. Feminina, graciosa, provavelmente bela, embora ele só conseguisse ver
uma constelação de ossos revestidos por membranas e tecidos musculados.
Evidentemente que era sensual, evidentemente que era tentadora, apetecível, jovem,
talvez com metade da idade dele, com uma pele luzidia e sedosa, peitos pequenos mas
proporcionais para a sua estatura média, barriga lisa, um pequeno tufo de pêlos púbicos
escuros recortados na vertical a encimar uma região que um ginecologista decerto diria
ser perfeita, ancas e pernas magras e ausência de qualquer sinal de celulite. Bem vistas
as coisas, um corpo sem defeitos com os bons ofícios de um rosto angelical, afinal um
compósito orgânico multicelular tão cândido quanto provocador com o traço da
imaculabilidade, coisa estranha para quem passava a vida a emprestar-se aos outros.
Quando a beldade do Quito ficou pronta para sair, Tiago Penha deu consigo a pensar
pela enésima vez: de facto, ela era ferozmente encantadora, alguém que podia amar.
Mas faltava ali carne, algo a que se agarrar. Definitivamente não fazia o seu género.
(Web Forum: Isto é tudo tão relativo. Cada sociedade tem a sua forma de se comportar.
Talvez o que é gordo para mim, é magro para uma outra pessoa. Comentário primeiro
de uma conversa cruzada e extensa no feminino, entre Portugal e Brasil, sobre a eterna
questão das mulheres, as curvas, o peso, a boa forma e a gordura: Os valores estão a ser
invertidos. Nem sempre magreza é sinal de beleza. A que se segue uma observação
lacónica: O que há é muita gordura de espírito! E outra: E distorção corporal. E mais
comentários: Apesar do corpo poder ser gordo, a mulher ou um homem não são apenas
um corpo. O corpo é um mero acessório e um acessório não nos define. Réplica: Então
fica bem gordinha e vai pedir um emprego a uma empresa. Depois, se possível, gostava
de saber o resultado. E outra: Infelizmente é a realidade. O mundo define-nos pela
nossa aparência. Segue-se uma nova observação: Se não fosse assim, pessoas tão
maravilhosas mas com uma má constituição física não despertariam desconfiança e
outras coisas. Está longe o dia em que as pessoas poderão andar com bem entendem
sem serem julgadas por isso. Detesto que isso aconteça, mas é o que vejo por aí. E mais
outra: Conheço mulheres que param de comer e não é por culpa delas; é o mundo que o
exige das mulheres. O mundo exige anorexia. Com uma tese: Não percebo esta
discussão. O mais importante é ser linda. É isso que conta. E outra: Mas a idade não
perdoa e mesmo as que não são gordas acabarão por sê-lo inevitavelmente. E novo
comentário: Bem, eu preciso de fechar os olhos para certas comidas e abrir para
outras. O curioso é muitas pessoas dizem que fazemos isso para agradar os homens. É
mentira. Fazemos isso por que nos faz sentir bem; sentimo-nos felizes por dentro e por
fora. Ser magra não é só estético, é também complicação. E mais um: Toda a mulher
quando se olha no espelho sempre acha que está com uns quilinhos a mais do que
realmente tem, ainda que a balança mostre o contrário. Mulher gosta de complicar.
Com um remate em tom de desafio: O motivo certamente é o mesmo que leva os
escritores a terem sempre protagonistas altas, loiras, cintura de sessenta centímetros.
Mas pergunto-me: uma heroína baixinha com sentido de humor, sensibilidade e
sensualidade, com oitenta quilos de peso, inteligente e arguta, venderia menos livros?)
120
XIV.
A procura de sentidos para convicções tão voláteis e duvidosas como sensualidade ou
beleza não era propriamente um assunto pelo qual Tiago Penha se interessasse, depois
de tantas vidas experimentadas na imensidão do globo terrestre. E de amores marginais,
ou legítimos, que o fracasso foi sempre o mesmo. Por que razão havia de pensar em
objectos de arrebatamento e êxtase se estava a ficar velho? Por que razão havia de
reinventar escalas de prazer e satisfação, ou porventura de alegria e felicidade, se estava
a ficar cansado? Cansado e farto da sanidade em domínios tão insanos. Não é que não
houvesse deixado de ser um viciado em sexo, como tantas vezes admitiu para justificar
a possibilidade de entender que o sentido da vida não passa do mero suprimento de
necessidades, da satisfação das necessidades primárias biológicas, mas aperceber-se de
que havia atingido uma idade em que a mais velha profissão do mundo já não lhe
bastava, que as outras para isso nunca serviram, era um mau presságio, sobretudo
porque preferia bater punhetas a foder, tão frágil se havia tornado o seu vigor sexual,
uma enorme sensação de frustração, pela simples razão de que não valia a pena evocar o
amor, ele que só conseguia amar quando ambicionava concretizar o desejo de sexo ao
mesmo tempo que se sentia a derrapar para o desfiladeiro do desaprumo mental, tal era
a obsessão pelos apetites da carne. Com efeito, estava cada vez mais convicto de que a
morte rasteja em silêncio, pelo que matar-se era a única opção – matar o corpo, os
pensamentos, a depressão, a raiva – na ausência de presenças fungíveis, das que se
gastam com o tempo mas que podem ser substituídas, no vazio que enchia a sua vida,
uma cratera de desgraças e calamidades, ruínas e má sorte, assim a olhava, embora
percebesse que talvez estivesse a dramatizar, fazendo jus à sua natureza lírica, própria
de a quem acontecera nascer com o genótipo do fado lusitano, e que gosta de comover,
embora percebesse que também havia ali qualquer coisa de anormal, irregular, a afastarse das normas, que é o mesmo que dizer a caminho da alucinação do espírito, quando o
corpo não tem juízo e se deixa alienar e corromper, e tudo o resto se subverte.
Com a morte da mãe e o regresso a casa, em definitivo, a lucidez de Penha – ele que era
um artista dos bytes, é bom sublinhar, um mestre da lógica, tanto tecnicista como
empírica, depositário do ethos industrial do Ocidente moderno – começou a tornar-se
precária, e a degradar-se, com as gradações do misterioso espectro luminoso que varre o
universo a perderem-se num mundo crescente de sombras, da intensidade do brilho ao
prisma da opacidade. Se a vida tingia-se de vermelho e amarelo quando Tiago
embarcava a caminho de um qualquer outro lugar fora de Portugal, enchendo-se de
calor e descontracção, de energia e optimismo, de paixão e orgulho, em Lisboa, perto da
Cidade Universitária, sentado na cadeira de verga almofadada num dos cantos da sua
sala quadrilátera com amplas janelas envidraçadas num dos lados, acorrentado à
coabitação com Maria Clara, só divisava, e a custo, roxo e cinzento, as cores da tristeza
e da angústia, do medo e da depressão, do frio e da ansiedade, como se as folhas de
papel da história da sua existência tivessem sido rasgadas, queimadas, reduzidas a
121
cinzas. Repentinamente. Na curva descendente do lado de lá do zénite dos quarenta, um
corpo pesado e balofo em queda livre, desamparado, à espera do fim.
Tiago sabia que tinha de travar essa cobardia da entrega do destino à providência, em
que nem sequer acreditava, quer dizer, nos sábios desígnios de uma ordem
preestabelecida, quando o que imperava era a desordem e a inexistência de algoritmos
que a consertassem; sabia que tinha de conquistar tempo, e a coragem necessária para o
desafiar; sabia que tinha de combater a opacidade que se instalara na sua vida e reviver
as cores que tanto a animaram ao longo dos anos, nem que fosse apenas e só mais uma
vez. A última, a derradeira, para saber quem fica com a melhor parte: os que vão ou os
que permanecem.
Roberto Cavalcanti, o seu amigo que brincava com letras bem lho tinha dito uma vez,
numa carta que lhe escreveu de um hospital em São Paulo, pouco antes de morrer,
vítima de leucemia, quando Penha estava ausente algures numa terra distante da
imensidão do globo terrestre: é urgente reconciliar-nos connosco próprios, de tão breve
que é a vida.
«A vida é um hiato; um espaço entre o primeiro choro e o último suspiro. Entre ambos,
há uma prisão. Uma prisão chamada sociedade, cercada pelos muros altos das mentiras,
das ilusões, das farsas e da escravidão. Se fossemos seres minimamente conscientes,
faríamos de tudo para romper com todas as paredes, muralhas, trancas e portas que nos
aprisionam, tanto por dentro, nas nossas mentes, almas e corações, como por fora, nos
nossos corpos, dominados pelo consumo, pela subserviência ao desejo de ter tudo de
que pensamos precisar, sem realmente precisarmos. Somos fantasmas, sombras pálidas
e difusas de algo maior que nunca saberemos o que é. Somos fantasmas que habitam
carcaças disfuncionais que depressa deixam de existir. Deveria ser pois essa a nossa
maior meta, destruir este mundo desumano que parece ser humano.»
Daí que Tiago decidiu pôr-se a remexer no passado, a tentar contactar as figuras
femininas que se haviam perdido noutros tempos. Era uma ideia disparatada. Mas por
que não, se nada de melhor lhe ocorria? É certo que da estranha empreitada, regra geral,
nada resultava. Mas servia para Penha tentar apaziguar o desânimo, revirar o tempo
perdido em busca de sentidos, que tempo, afinal, parecia ser coisa que não conseguia
preencher, e com a morte a rastejar em silêncio, a morte lenta de que não é possível
escapar, talvez conseguisse perceber, por fim, o que movera a percorrer a trajectória que
o conduzira até ali, aparentemente ponto de chegada da longa travessia pela cidade dos
sete mares, que são nove. Contudo, depressa descobriu, sem ter pensado nisso, que não
se tratava de uma tarefa fácil. Talvez muitas dessas mulheres já tivessem morrido.
Vítimas de uma qualquer bactéria. Ou se calhar simplesmente desejassem que ele não
ousasse em voltar a invadir as vidas delas, entrelaçadas com outros cordéis, pois os nós
do passado assim devem ficar. Querer desatar memórias e tentar trazê-las de volta, para
um presente entrelaçado com outros nós, mais não é do que querer fintar o tempo; o
desespero ufano de desejar a reedição das regras de um jogo que ficou suspenso algures
num outro espaço, no passado. Ainda assim, Tiago insistia. E percebe-se porquê. Não é
que desejasse voltar atrás, como é bom de ver; ao invés, o que procurava era meter tudo
no mesmo saco temporal. Toda a vida num só momento: o presente. Para que o naipe de
opções fosse enorme. Um extenso baralho de jogadas possíveis. Para controlar a
existência, o sentido da sua própria existência.
E foi o que fez, ou tentou fazer, com a japonesa que tinha conhecido em São Paulo, da
qual mal falou nas conversas sobre o assunto com Simão Saraiva, uma invulgar
economia de revelações que surpreendeu o amigo, mas tudo ficou por aí; com a loira de
Buenos Aires e a morena de Madrid, essas sim, exaustivamente descritas; e até com a
famigerada colega de trabalho, outro hiato – que se manteve eterno – no enredo
122
demencial das suas aventuras à margem da falácia conjugal, provavelmente porque foi
essa, quer dizer, essa mulher quem fizera desabar a sua união com Maria Clara, logo no
início. Um mês depois de formalizado o contrato, após quase quinze anos de
relacionamento. Aliás, na véspera do casamento, Tiago Penha havia chegado a fazer
uma nova despedida de solteira. Secreta. A sós, sem amigos. Para acabar a madrugada
enfiado num carro com uma mulher com a qual apenas trocou beijos e carícias. O sexo
não tinha espaço naquela hora. O que seria feito delas? Teriam casado? Mudado de
lugar? De vida? Teriam filhos? Ainda estariam vivas? Seriam parecidas com a imagem
com que ele ficara delas, lá atrás, em tempos idos?
Começou por recuperar contactos telefónicos, poucos, que a maioria havia perdido, bem
como os respectivos nomes, mas não houve respostas. Números alterados, números
silenciados, números e mais números, sem que do outro lado da linha houvesse uma voz
que fosse para ouvir ou responder. Zero. Resultado nulo. Um nítido nulo em que não
valia a pena insistir. Seguiu-se a Internet, através da qual supostamente tudo seria mais
fácil. Mas o rasto desses anos não passava pela rede. Se tivesse nascido duas décadas
depois, aí sim, seria capaz de bloquear alguns vestígios. Mas assim tinha de se limitar à
escassez de informação; eventuais mudanças de apelido, fraca adesão às redes sociais e,
mesmo nesses casos, surgia sempre o fantasma do anonimato, a velha mania daqueles,
ou daquelas, que se escondem atrás de personagens fictícias, de se se passarem por
quem não são. A coisa transformou-se num quebra-cabeças e Penha acabou por chegar à
conclusão de que definitivamente não teria sucesso. Todas as tentativas de desatar os
nós do passado revelaram-se infrutíferas, que a árvore do conhecimento não é para
todos e o fruto do pecado confunde-se facilmente. Como os cogumelos. Onde pára o
veneno?
A japonesa tinha um apelido aparentemente singular. Mas depressa descobriu que,
afinal, assim não era. Experimentou várias redes sociais e a listagem de utilizadores
com aquele nome era infindável. Como aplicar um sistema eficaz de webtracking?
Tinha o mesmo problema sempre que lhe pediam soluções de ROI metrics. Não é que,
neste particular, fosse assim tão complicado. Mas no social media, se o output que se
ambiciona encontrar situa-se fora desta tipologia, tudo se complica. Uma coisa é
analisar a popularidade de um produto, traçar perfis de consumidores; outra coisa é
inverter o processo para procurar pessoas concretas, com nome, com rosto, com traços
que havia decorado no passado. O processo de registo de incidências não lhe parecia
aplicável, já que as mesmas estavam inacessíveis ou, quando surgiam, eram tão esparsas
que pouco significado tinham. Tiago dava voltas à cabeça: repensava nas técnicas e
ferramentas para o social media analysis e nada funcionava; não eram conteúdos, eram
os autores dos conteúdos. Procurar autores/pessoas de A a Z, sem ter a alavanca dos
conteúdos que produziam, inquinava tudo o que já conseguira fazer até então em
projectos com características semelhantes e, inclusivamente, com uma complexidade
bastante superior. Zero. Resultado nulo. Novo nítido nulo. Tão nítido que exasperou
Penha. Tantos e tão intricados algoritmos, dezenas e dezenas de linhas de código, a
cruzar linguagens, aplicações, scripts e tudo descobria menos o que queria. Como era
possível que toda uma existência só vivesse na memória sem que dela houvesse
qualquer rasto tangível?
Não deixava de ser irónico, uma charada tragicómica; de tudo o que queria recordar
havia apenas aqueles dois diários, dois cadernos de bolso com as páginas presas por
argolas, um de capa azul, a cor da fé e da noite, outro de cor-de-rosa, a cor dos corpos
dos judeus amontoados nas câmaras de gás nazis. Registos da famigerada viagem pela
Europa com Maria Clara em dois mil e um, no fatídico ano de dois mil e um, nunca é
demais recordar, de mochila às costas, a última a dois com Ester à beira de se afogar no
123
interior do ventre da mãe e o princípio do fim a ser escrito, o que não é verdade, o fim
havia já sido ditado meses antes quando Tiago decidiu ocupar-se dos baixios vaginais
de uma colega, com a mulher grávida, embora o contrato marital não tenha sido
revogado, que vergonha, mas a sentença fora proferida, não obstante a eternidade que
levaria a ser cumprida, ou aplicada, em forma de homicídio na mesma morada genital
com a ajuda de uma dose letal de cicutoxina.
“Very romantic!”
Tiago Penha lembrava-se bem da frase, murmurada por um norte-americano de cabelo
grisalho, com um sorriso na cara, ao passar por ele numa outra gôndola em Veneza. Já
lá iam quantos anos? Na verdade, por mais tempo que se passasse, aquela era uma
recordação impossível de arrumar numa qualquer gaveta onde se amontoam os despojos
das pelejas que se travam ao longo da vida.
Foi ao início da tarde, um dia depois dele e Maria Clara terem chegado de comboio à
cidade do amor, vindos de Viena.
“Very romantic!”, não parava de dizer o súbdito de Mr. Bush, enlevado por aquele
momento único, que tragicamente se tornaria ainda mais singular.
O turista norte-americano terá repetido as palavras duas ou três vezes quando Tiago
começou a ouvir o gondoleiro, em pé, por detrás do homem, aos gritos para os
camaradas de profissão que se cruzavam com ele: “Centocinquantamila morti in
America!”. “Cosa?”, quis saber o gondoleiro de Penha. E o outro insistiu: “È una
tragedia. Centocinquantamila morti!”. Só podiam estar a brincar! Acabara de gastar
vinte contos no célebre passeio romântico em Veneza, que em boa verdade nem meia
hora dura e anda por ali às voltinhas, e cai o World Trade Center?! “Puttana di vita!”.
Tinha de ser uma piada de mau gosto, que nisso os gondoleiros eram exímios. Mas não
era. O anúncio circulava de boca em boca. “Centocinquantamila morti in America!”,
gritava um para o outro que depressa reencaminhava a mensagem para o seguinte.
Naquele momento, ainda não se percebia ao certo se realmente algo de grave havia
acontecido, mas sentia-se um certo rebuliço um pouco por todo o lado. E um clima de
tensão a adensar-se à medida que o curso normal das romarias turísticas se subvertia,
com muitos a abandonar as gôndolas à pressa, e outros a correr pelas ruas sinuosas à
beira dos canais. Os vaporettos começaram a acostar rapidamente; o mesmo sucedia
com todas as outras espécies de embarcações. “Centocinquantamila morti!”
O telemóvel de Penha começou a tocar. E foi aí que pressentiu, ou teve mesmo a
certeza, de que estava a experienciar um momento trágico. Distante, é certo, mas
também ali a sacudir a cidade, que não parece insular, embora tenha, só no centro
histórico (uma pequena área que nem chega a oito quilómetros quadrados), cento e
dezassete ilhas, cento e cinquenta canais e quatrocentas e nove pontes. Era uma
chamada de Lisboa. Para confirmar a notícia. Sinistra, severamente sinistra, para quem
ainda mal estava a descobrir os encantos de Veneza. As torres gémeas do World Trade
Center, em Nova Iorque, haviam acabado de desabar. Tiago desligou o telefone e pôs-se
a observar Maria Clara, sentado na gôndola no canal grande com o sol a bater-lhe de
frente nos olhos.
«Veneza, a caminho de Florença, Setembro doze, dez e cinco
Querida Ester,
Tragédia em Nova Iorque. É mais uma coincidência notável desta viagem. A sensação
de catástrofe ficará para sempre na memória. Sempre que alguém se recordar do dia em
que o World Trade Center veio abaixo, lembrar-me-ei que nesse momento estava ao
lado da mulher que amo, ou penso que amo, não sei, numa gôndola em Veneza. Passei o
resto do dia colado à CNN. E mesmo agora, a caminho de Florença e com o USA Today
nas mãos, estou ansioso por chegar a um hotel e ligar de novo a CNN para ver o
124
desenvolvimento da história. Mas esta passagem pela cidade do amor começou antes. A
ligação entre Viena e Veneza foi um pouco morosa, como era suposto ser. De qualquer
modo, consegui arranjar uma couchette. Bom negócio paralelo este a bordo dos
comboios internacionais. Ajudou a passar a noite, tanto mais que acabámos por ficar
sozinhos (numa cabine para quatro), depois da tentativa de um “penetra” austríaco em
ficar por lá. Perguntou-me se as camas de baixo estavam livres. Achei estranho, mas
disse que sim. E a verdade é que, pouco depois, apareceu o supervisor da carruagemcama e mandou embora o austríaco, que não tinha título de viagem para estar ali. De
manhã, a meia hora de Veneza, começámos muito mal o dia, eu e a tua mãe. As coisas
do costume, mas suficientes para azedar aquele momento por que tanto ansiávamos.
Quer dizer, pensava eu, porque o impacto da chegada a Veneza foi simplesmente
arrebatador. Ainda não se viu nada e já sentimos toda aquela beleza mágica que gera um
inevitável e irresistível efeito anestésico. Chegámos cedo à estação ferroviária de Santa
Lucia. Estava frio, como as manhãs entre mim e a tua mãe, mas bem longe do ar
cortante e gélido de Viena. E afinal até foi fácil encontrar um hotel.
Surpreendentemente fácil. Seguimos as indicações do nosso precioso Lonely Planet,
mas estávamos apreensivos e mesmo na disposição de seguir para Pádua em caso de
insucesso. Contudo, bastaram duas tentativas: hotel Spagna, três estrelas, diária de
duzentas mil liras, quarto simpático e espaçoso. Parecia bom demais. Tanto o quarto
como a sorte que tivemos em arranjá-lo. Veneza é na realidade mágica, muito mais do
que imaginava e sem nada daqueles disparates que alguns dizem; uma cidade
malcheirosa, confusa, etc. É mentira. É claro que temos de estar preparados para nos
perdermos nas ruelas, mas creio que isso faz parte do processo natural da descoberta de
Veneza. De resto, não é assim tão difícil orientar-nos. Basta apanhar os vaporettos,
especialmente os da Linha Um que atravessam o Grande Canal. A chegada à Praça de
São Marcos, Piazza San Marco, como eles lhe chamam, é outro baque. Linda de morrer,
monumental, gigantesca. Provavelmente é difícil de descrever tudo o que se sente ali.
Não consegui parar de disparar a minha máquina fotográfica. Subimos à torre
panorâmica, o campanário da Basílica de São Marcos, e mais um impulso desenfreado
para fotografar tudo o que via. Passámos pelas ilhas do Lido na região do Véneto, no
sudeste (as praias são privativas), Murano (a sede do vidro) – que na verdade é um
arquipélago de sete ilhas, duas artificiais, na Lagoa de Veneza – e Burano (outra jóia de
beleza que voltou a extasiar-nos), também um pequeno arquipélago na Lagoa, de quatro
ilhotas com pequenos canais a interligá-las, uma vila pitoresca de pescadores com todas
as casas pintadas de cores diferentes. Maravilhosa e bem mais calma que Veneza. A sete
quilómetros. Come-se mal nesta cidade. Pouco, caro e mal servidos. O passeio de
gôndola foi o que se viu. Mas também teve aspectos positivos. O preço é proibitivo,
vinte contos, tanta quanta a diária do hotel, a viagem é curta, não passou dos vinte
minutos, provavelmente terá tido a ver com o que sucedeu, mas é uma experiência
única. Faz-nos sentir dentro do rio ou do mar, nem sei bem que água é aquela, vemos a
cidade de baixo e parece que estamos noutra época. O clima entre mim e a tua mãe não
anda nada bom, já se sabe, mas creio que por momentos houve um clique, algo de
especial espoletado por todo aquele ambiente. E até tivemos sorte: só nós os dois numa
gôndola para cinco. Estamos na etapa final desta viagem. Já sucederam imensas coisas.
Muitas histórias, muitos episódios. Tem sido enriquecedora a todos os níveis, mesmo do
ponto de vista emocional, já que serve para testar o que sentimos e do que sentimos
falta. Próxima paragem: Florença. Se não houver mais contratempos como este dos
Estados Unidos.»
E não houve, quer dizer, mais contratempos desta natureza, mas este foi o suficiente
para ensombrar aquele que era suposto ser o momento áureo da viagem. Uma
125
coincidência notável, se olhada no tempo, em perspectiva: um ataque terrorista feroz no
preciso momento em que Tiago e Maria passeavam de gôndola por Veneza. Em boa
verdade, só alguns dias depois é que ambos perceberam com clareza que recordariam
para sempre que a possibilidade de elevar um gesto comum e por tantos experienciado à
epifania do romantismo – de materializar o sonho do amor dos cartões-postais numa
experiência pessoal, a dois; de aplacar, mesmo que por momentos, o tumulto de uma
relação condenada – havia ficado indelevelmente marcada pelos ecos de uma tragédia
com a ameaça de efeitos à escala global. Se fosse uma metáfora, dir-se-ia que foi
precisamente na cidade do amor que Penha e Clara assistiram, sem saber, à derrocada
precoce das torres que já mal sustentavam o peso da paixão e do ódio que ditava o rumo
da sua estranha forma de coabitação conjugal, quando até, com alguma ironia, mais não
estavam do que a despedir-se da vida em par no prenúncio da alegria do ímpar com a
chegada do primogénito, Ester, a estrela hebraica, fruto do que Deus uniu, o homem e a
mulher, acto de amor e a palavra do Senhor a ressoar, “Sede fecundos e multiplicai-vos;
espalhai-vos pela Terra e multiplicai-vos sobre ela.”
Com efeito, avizinhava-se uma grande guerra, mas não propriamente aquela de que
Maria Clara dá conta no seu diário ao referir-se ao incidente em território norteamericano enquanto ela e Tiago deambulavam pelo mapa labiríntico das ruas e canais
de Veneza.
«Veneza, Setembro doze, dez e quarenta e cinco
Estamos no comboio com destino a Florença. Sinto que estamos na etapa final desta
pequena aventura. Estivemos três dias em Veneza e, para mim, não foi suficiente.
Tenho a sensação de que ficou muita coisa para ver, pelo que parto com a promessa, ou
pelo menos a vontade, de cá voltar. Veneza, grande Veneza, terra dos meus sonhos que
não me desiludiu. Pelo contrário, superou até todas as expectativas. Ampliou todas as
minhas emoções. Atravessámos becos sem fim, com ar medieval, com construções que
datam de há muitos séculos e que, aparentemente, permanecem intocáveis, sem
alterações. A sensação de estar em Veneza parece ser semelhante a uma viagem no
tempo, como se recuássemos para outras eras do passado. Fez-me sonhar com a época
medieval. Os canais são lindíssimos e o ambiente – salvo mais uma vez os milhares de
turistas a cirandar com frenesim, acotovelados e sempre apressados – é propício ao
encanto, à nostalgia. No primeiro dia percorremos algumas das ruas menos centrais, que
são um autêntico labirinto, e pudemos apreciar os traços arquitectónicos das casas, a
maioria em muito mau estado, mas mesmo assim deslumbrantes, cercadas por aqueles
milhares de canais. E pontes. Imensas pontes, quase todas iguais. Como as ruas. Sem
referências, sem traços distintivos, facilmente se se perde nelas. Mas é tudo
simplesmente encantador. Depois, começámos a aproximar-nos das áreas mais centrais
e desembocámos na Praça de São Marcos. De facto, é uma praça magnífica cheia de
grandes monumentos em estilo gótico veneziano. Pena é a enorme confusão causada
pela impaciência doentia dos turistas. De qualquer forma, a beleza da praça acaba por se
sobrepor ao desconforto de sentir que andamos a atropelarmo-nos uns aos outros. Fiquei
tão extasiada que até tive receio de pisar os milhares de pombos que por ali param.
Aliás, essa é também uma das atracções curiosas da Praça de São Marcos, uma imagem
de postal. Um bando gigantesco de pombos misturado com a multidão de pessoas, que
se divertem imenso com as aves. A alimentá-las. Há dezenas de bancas com comida
para pombos à venda. E, claro está, todo o resto do comércio habitual que se instala em
locais de grande afluência turística como este. Lojas e mais lojas, onde se pode comprar
de tudo, incluindo as peças de vidro caríssimas das ilhas de Murano. Vale a pena
sentarmo-nos numa das esplanadas da praça. Um café custa uma fortuna, mas sempre há
música ao vivo. Um violonista, por exemplo, a querer dar aquele toque de requinte e
126
romantismo, o que não deixou de ser curioso para nós, acabados de chegar de Viena, a
capital mundial da música erudita onde não faltam violonistas e sinfonias urbanas para
exaltar a quinta-essência da arte da sedução. Veneza é uma cidade pequena, mas muito
rica em termos de património histórico e artístico. Não tivemos tempo para explorar as
fabulosas igrejas onde existem pinturas de época. Entrámos numa, a de São Roque, no
Campo San Rocco, e foi extraordinário. Fantástico é também o trânsito fluvial, algo que
talvez só seja possível ver em Veneza. Não estou certa. Mas é extremamente
interessante para quem, como nós, está habituado a que se faça tudo por terra. Ali, para
circularmos de um lado para o outro, temos de andar nos famosos vaporettos,
normalmente a abarrotar de pessoas. Há também bombeiros, carteiros, táxis,
ambulâncias, tudo em forma de pequenas embarcações a deslocarem-se pelos canais. É
engraçado. Até na água, os condutores (se é assim que se chamam) circulam à boa
maneira italiana, como se vê nos filmes, de forma caótica e confusa, sempre a barafustar
uns com os outros. E o mais impressionante é que no meio da desordem não há
acidentes. Toda a gente acaba sempre por arranjar um caminho para passar ou um canto
para acostar os barcos. Afinal, tudo decorre na normalidade, embora seja uma
normalidade muito peculiar. Ao que parece, os italianos são mesmo assim. Na verdade,
são acessíveis, simpáticos, apesar de normalmente nos confundirem com os espanhóis.
E, ao contrário do que pensava, temos alguma dificuldade em entendê-los. Já para não
falar nas liras que, para nós, foram uma grande dor de cabeça. Se não estivermos
atentos, facilmente nos enganamos com todos aqueles zeros. Todas as contas são feitas
em milhares, o que é estranho para aqueles que estão habituados à numeração decimal.
A decepção foi na comida. É extremamente cara. E os pratos são normalmente mal
servidos. Demos um passeio por algumas ilhas nas redondezas, como Murano e Burano,
a terra dos bordados em linho. Perdi-me totalmente. Apetecia-me comprar tudo, porque
são lindíssimos. E tivemos, claro está, que desmistificar o célebre passeio de gôndola.
Dez mil liras por pessoa, com gondoleiros que ignoram por completo os turistas.
Contudo, esta viagem foi muito particular e inimaginável. Aí a meio do passeio, um
gondoleiro passou pelo nosso a dizer que tinham morrido cento e cinquenta mil pessoas
na América. E o nosso começou a fazer o mesmo. Não parava de repetir a informação
sempre que se cruzava com outros colegas. No início, não percebemos bem o que se
estava a passar. Aquilo não fazia qualquer sentido. Mas pouco tempo depois, quase que
por coincidência, ligaram para o telemóvel do Tiago. Era um colega dele, em Lisboa, a
confirmar a notícia. Segundo este primeiro relato, fundamentalistas árabes tinham feito
um atentado suicida contra as torres do World Trade Center, em Nova Iorque, e o
Pentágono, na Virgínia. O caos e o terror dominavam os Estados Unidos. Quatro aviões
com cerca de novecentas pessoas a bordo, no total, tinham sido usados como bombas
contra os edifícios. Supunha-se que milhares de pessoas estavam mortas. E agora
sabemos que já se fala na iminência de uma grande guerra. Ameaça dos americanos que
querem punir os responsáveis por este trágico acontecimento. A ver vamos o que vai
suceder. Mesmo aqui em Itália há alguma tensão devido às bases militares americanas
instaladas no País. Pelo menos é o que escrevem os jornais italianos. Falam em estado
de alerta e em Itália como um alvo possível de novos ataques. Por agora, estamos de
partida para Florença. E já com saudades de Veneza. Cidade belíssima. Adeus Veneza.
Até à próxima. Prometo que voltarei um dia.»
A promessa não foi cumprida nem o será, sabe-se agora, mas chegaram a Florença são e
salvos. Chegaram e saíram, com rumores de guerra, embora não se percebesse onde,
para isso servem os tablóides sensacionalistas, a instigar o ódio e a confusão, de
Florença, e de Pisa, a caminho de Génova, já no percurso de regresso a casa, com breves
passagens por San Remo, na Riviera italiana, e pelo faustoso principado do Mónaco, na
127
Riviera francesa, e uma longa escala na estação ferroviária de Irún, no País Basco, uma
pequena cidade fronteiriça com França, para novo embarque no mítico Sud Express, que
já nada tem de mítico, como os dois se aperceberam no início da viagem, de volta ao
ponto de partida, Santa Apolónia, em Lisboa, desfecho do breve périplo por algumas
das principais capitais do velho continente e do troço final a bordo de um comboio
decrépito e vagaroso, cheio de emigrantes e turistas de pé-descalço, malas e mais malas,
com gaiolas e galinhas, bicicletas, triciclos e garrafões de vinho, que naquela época
ainda era assim, no início do novo século, no princípio do novo milénio, tal e qual como
nos tempos da história da “mala de cartão” e da fuga consentida da Guerra de Ultramar
ou de outros infortúnios do Estado Novo.
As últimas palavras registadas por Penha e Clara nos seus respectivos diários de bordo,
escritas em Irún, são evasivas, muito vagas em relação ao que observaram e
experienciaram na etapa final da viagem, provavelmente devido ao desgaste e à canseira
de tão longa romaria em tão curto espaço de tempo por tantas cidades-monumento, por
tantas vistas, correrias e outras moléstias da perseguição tresloucada das pegadas da
História, onde as havia, não fosse dar-se o caso de se esfumarem mesmo antes de lá
chegarem, sempre pejadas de turistas e outros viajantes, atrofiadas pelo frenesim dos
mapas, dos guias, das máquinas fotográficas, das bagagens, das economias paralelas,
vendedores de rua e ruas de vendedores, das feiras da ladra às lojas de luxo, e às de
câmbio, lojas e bancas, e bancos, e bancadas, o hash, marijuana, change money, a
modos que traduzido em todas as línguas do Mundo, a Pirgos tēs Babél do Antigo
Testamento – muito antes de Penha descobrir do que se tratava, que Goa só se cruzaria
com ele mais tarde – línguas e dialectos, linguarejares e todas as outras formas de dizer,
ou de calar, que o silêncio também fala quando só ocorrem palavras amargas, como era
o caso, entre o interlúdio da busca e o prelúdio da marcha à ré, à vida já encontrada, a
vida real, à espera de ser retomada. “Temos de repensar esta relação”, disse Maria a
Tiago à saída de Florença naquele comboio acanhado e apinhado de gente que os levou
até à cidade de Pisa. «Decerto que ela o pensará algumas vezes, mas não acredito que o
tenha dito com o alcance que parece estar encerrado nesta afirmação lacónica e
dolorosa. De qualquer modo disse-o, e fiquei com uma sensação desagradável; é
evidente a inquietação que a violenta», escreveu Penha. «Tenho vontade de abraçá-la e
dizer que a amo. Tenho um desejo enorme de que ela faça o mesmo de forma
espontânea. Mas sei que nada disso vai acontecer», acrescentou, acabando assim, com
um pessimismo extremo, o relato inscrito no seu caderno de bolso com as páginas
presas por argolas, de capa azul, a cor da noite e da fé, o que deve ser mentira, porque
não é possível acreditar em algo que não se sente. Nem se vê. «Querida Ester, não sei o
que se passa comigo, mas sinto um vulcão de emoções dentro de mim. Só espero que
isto não nos venha a afectar», escreveu Maria Clara, por seu lado, dirigindo-se pela
primeira e única vez à filha que carregava no útero, sem explicitar, porém, a que “nós”
estava a referir-se. Foi a última frase que deixou no seu caderno de bolso, de capa corde-rosa, a cor do amor e da entrega total. O que também deve ser mentira, porque não é
possível amar com tanta entrega, que a posse corrompe. O que, aliás, nem sequer era o
seu caso, perante tantas incertezas e prognósticos reservados.
(Web Forum: No amor não há razão para tanta desconfiança. Ou haverá? Ao primeiro
comentário no feminino segue-se outro, no mesmo tom. Também não entendo. Que
espécie de amor é este?)
Dúvidas. E mais dúvidas. Questões sem resposta. Algumas retóricas, outras nem por
isso, bem que podia haver alguém que acendesse a luz do quarto em que aqueles dois
seres pareciam estar, na infinidade, a tactear-se um ou outro. Às escuras.
O que terá acontecido em Praga? E em Viena?
128
Tiago nunca contou o que quer que fosse a Simão Saraiva, quando lhe sucedia evocar
aquela viagem singular, mas o hiato era evidente, o hiato da vida, faltava Roberto
Cavalcanti recordar, o amigo de Penha que brincava com letras e que com elas morreu,
vítima de uma leucemia galopante. As pessoas são assim; inventam escuridões para
obscurecer e desculpar o que lhes desagrada naquilo que se vê e não se pode esconder.
Talvez por isso Tiago tenha criado aquele site, aquele fórum na web, farto dos nítidos
nulos, dos insucessos do webtracking, agastado por não conseguir remexer no passado,
por ser incapaz de chegar à fala com as mulheres que se haviam perdido noutros
tempos, por falhar nas tentativas desesperadas de desatar memórias. Disfarçado de
espaço de discussão, estupidamente para não encontrar mas para ser encontrado,
pensava ele, depressa se transformou num avatar de confissões, primeiro a uma voz,
depois a muitas, que a popularidade do sítio cresceu inesperadamente, afinal não era só
ele que precisava de preencher o tempo, quando a morte rasteja em silêncio, e as
verdades que se desabafam são universais, pelo que a todos tocam, ou a quase todos,
mesmo os que não comentam mas só observam, e lêem, e pensam, era mesmo isto que
eu queria dizer, era mesmo isto que eu estava a sentir, mas discordo, os amigos são
falsos e a Internet só serve para ampliar o jogo do quarto escuro, não há ninguém que
acenda a luz, porque convém, como as cortinas e os compartimentos que separam os
penitentes em confissão e os sacerdotes de Deus, a santidade do sacramento assim o
dita, o sacramento da reconciliação para tudo o que é irreconciliável. Tiago Penha bem
o sabia, há mais de duas décadas que pagava a mesma dívida pelo pecado de se perder
pelos baixios vaginais de uma colega quando a mulher estava prenhe, resultando no
desfecho que se conhece. “Glória ao pai, ao filho e ao Espírito Santo... Oh Maria sem
pecado (entra o órgão e o coro)... Pai Nosso que estás nos Céus... Seja feita a Tua
vontade...” E todos repetem a ladainha.
(Web Forum: Valeu a pena?, pergunta alguém a propósito da revelação feita no fórum.
Talvez tenha chegado a hora de começar tactear pelo menos as paredes escuras do
quarto, sugere outra voz a que se segue um comentário para insistir no princípio da
discussão: Com esta capacidade de memorização, não seria aconselhável decorar
também os duzentos e noventa e seis artigos da Constituição portuguesa? Ou os oito
mil e oitocentos e dezasseis versos dos «Lusíadas»? Pertinente, mas a acabar com um
remate estranho, no feminino, vindo do coração da Amazónia, em Manaus, a truncar
toda a história, embora pareça ser, afinal, a citação de um texto de um terceiro.
Assinado Ana Carolina: E juntos fugiram durante uma estação do ano. Ele a ensinou a
respirar as horas sem ter que pensar nas consequências. Ela apresentou a ele alguns
sentimentos medidos. Os prazos não foram subestimados e as horas desaceleraram.
Seus passos se desajustaram. O desejo consumiu algumas palavras e confundiu os
sentimentos novatos. Ele apaixonou-se. Ela morreu de amor)
Por que razão o fizera num momento que não podia ser mais inoportuno? Penha tentou
encontrar respostas durante anos. Que era um putanheiro (um homem de respeito que
por acaso frequenta prostíbulos e consome prostitutas, na verdade, um homem moderno
sempre disponível para una agradable velada de vanguardia putanheirista), sempre o
soubera. Que julgava ser protagonista de uma vida dupla, porque o desejava, como se
assim fosse possível aplacar as contrariedades da natureza humana, sempre o afirmara.
Que não conseguia lidar com a mudança súbita na sua forma de viver, de repente casado
e à espera de ser pai, confinado a quatro paredes e a uma só mulher, ao prazer
monogâmico para toda a eternidade, a dele, sem poder desunir o que a Igreja havia
unido, até que a morte os separasse, quando o que queria era navegar pelos sete mares,
que são nove, da cidade dos homens, sempre o alegara. Mas seria mesmo essa a
verdade? É certo que, à força de o repetir, Tiago chegou a estar persuadido de que assim
129
era. Contudo, justificar o opróbrio da mulher que amava, ou julgava amar, e a morte da
possibilidade de ser pai pela incerteza de ter ser o que talvez não quisesse ser não
parecia ser muito convincente. Mesmo para ele próprio, que acreditava estar
convencido. Sobretudo porque traíra, não por amor, mas tão-somente pela oportunidade,
afinal mais uma, de sexo de passagem com alguém que nem sequer fazia o seu género,
como aliás passou a ser a matiz da trajectória sexual com que conviveu desde então.
Morena, baixa, cabelo preto e curto, voz rouca e um tanto ao quanto rude, olhos
castanhos, tão brilhantes quanto aflitivos, de quando em quando distantes, tantas e
sucessivas eram as inflexões de humor, fisicamente desproporcionada, sem peitos mas
cheia de carnes no baixo-ventre, assim não, que é muita coisa para agarrar, vê-la nua
que pavor, embora chupasse e lubrificasse bem, por vezes até em demasia para os
fulgores de que ele era capaz, apesar de ser inteligente, carinhosa e apaixonada, uma
mulher com quem se podia conversar, justiça lhe seja feita, o problema era a
taquicardia, e a sudorese, nas mãos e no resto do corpo dela, sacudido por nervos à flor
da pele e um pendor natural para a impaciência, como também o problema era a
escuridão, quer dizer, não a que se vê pois não é coisa que se veja mas a que se revela,
que tudo acontecia às escondidas, verdade seja dita, sair à rua de mãos dadas era penoso
e humilhante, exaltando nele um desdém que nunca havia conhecido. Acontece, quando
não se ama e o objecto do desamor não faz o género nem se presta à cobiça alheia. É
que tanto os homens como as mulheres gostam de possuir o que os outros invejam,
mesmo sendo um pecado capital, ou vários, que para aqui também devem ser chamadas
outras transgressões, veniais ou mortais – matéria confusa e muito dada à discórdia –
como a soberba, a luxúria ou a ganância. Definitivamente o amor está talhado para o
pecado, não obstante Nosso Senhor ter exigido a fecundidade e a multiplicação,
sacralizando com desígnios contraditórios a comédia das paixões e dos apetites pela
carne.
(Web Forum: O Ego não é completamente consciente… Ao comentário no masculino,
segue-se uma observação no feminino: O ser humano na sua multiplicidade vai muito
mais além dessa ideia do bem e do mal plantada pela religião. Esse maniqueísmo faz
com que alguns fiquem inertes, sem capacidade de reacção diante sentimentos
mesquinhos, próprios da condição humana, impedindo um mínimo que seja de
evolução)
Estranho fado este, quando com Maria Clara era tudo tão diferente. Filha acidental, por
expatriação geográfica, da frieza misteriosa do paraíso ariano, que a tantos equívocos se
presta – ou não fosse o arianismo uma grande dor de cabeça para explicar, desde a
doutrina cristológica de Alexandria, no Egipto, que nega a unidade e
consubstancialidade da Santíssima Trindade ao pilar ideológico nazi que afirma a
superioridade racial germânica, quando a língua original do povo ariano é proto-indoiraniana e o grupo étnico é de origem indo-europeia, designadamente o subgrupo
indiano que se estabeleceu no planalto iraniano – olhos azuis-claros, celestes (bem mais
intensos que os de Penha, que esses permaneciam escondidos por detrás das lentes dos
óculos e das sombras de um longo tufo de barba branca), expressivos e ternos, se se
dava o caso da ternura ocupar o lugar do ódio e da acidez, pestanas compridas,
sobrancelhas muito finas e aloiradas, nariz pequeno e curvo, e avermelhado, no meio de
toda aquela brancura caucasiana particularmente encantadora, e uma boca luxuriante,
grande, contornada por lábios carnudos, um rosto perfeito emoldurado por cabelos
loiros compridos perpassados por reflexos de vários tons, todas as cores do Mundo
numa só pessoa, e não apenas a paisagem abrasadora, pintada de azul, branco e dourado,
a morada de tentações supremas em terras da Escandinávia. Mas havia também as
formas curvilíneas e generosas do genótipo latino; nos seios fartos e empertigados, nas
130
pernas longas e tonificadas, no rabo arredondado e firme. Uma mulher de sonho,
dependurada numa mensagem perigosa aos olhos de quem julga com perversidade,
eterno alvo de cobiça e inveja, um mapa vibrante e complexo de sensualidade.
Com efeito, Maria Clara era realmente bonita, a mulher que Tiago Penha amava, que ele
talvez sempre tenha amado, mesmo sem saber se paixão é amor, mesmo quando lhe
acontecia perder-se pelos sons de outras músicas na sua busca incessante de novas
danças da carne e do desejo, que o mal estava feito e não havia volta a dar, havia
acabado de casar, com pompa e altar, que vergonha, que desgraça, andar a foder fora do
leito conjugal com a mulher grávida, sem saber porquê, de um dia para o outro casado e
à espera de ser pai, enclausurado numa outra forma de vida que não era a dele, sendo
um putanheiro, sem conseguir dizer não a qualquer oportunidade de sexo de passagem,
mesmo com alguém que não fizesse o seu género, quando o que queria, ou acreditava
que queria, era apenas conhecer os setes mares, que são nove.
“Crees que vives mejor que yo?”, perguntou-lhe o sociólogo de Matanzas, o amigo
caribenho que, na despedida do mundo fora de Cuba, no aeroporto de Barajas, em
Madrid, parecia ser um homem abatido ao mesmo tempo que dançava e cantava, cheio
de sorrisos e com lágrimas escondidas: «La Vida Es Un Carnaval».
131
XV.
A primeira sensação que teve foi de terror, um pavor imenso que se lhe abraçou ao
corpo mal acordou, por não conseguir mexer-se, levantar-se da cama, estava coberto de
ligaduras, e havia aquela pressão esponjosa sobre o peito, cheio de eléctrodos e
ventosas, e as picadas na pele, um formigueiro que lhe subia pelo braço, devia ser por
causa daquele tubo de plástico transparente e fino agarrado à mão direita por um
adesivo, que escondia uma agulha encravada nas veias. Seguiu-se o pânico, e o
desespero, e a angústia, ao perceber a existência de uma máquina ao lado dele com
várias luzes a piscar, um engenho mecânico e electrónico que Tiago Penha divisava a
custo por entre aquela névoa inexplicável que se interpunha entre os olhos e o que
queria ver, de tão pesadas que estavam as pálpebras, a quererem fechar-se, e a boca que
nada dizia, tentava falar mas era incapaz de articular som algum, queria gritar mas nada
saía dos pulmões, queria chamar aquela pessoa de bata branca que julgava ter avistado
ao fundo da sala, mas a imagem era confusa, tanto lhe parecia tridimensional, com
contornos definidos e profundidade de campo, como bidimensional, uma silhueta difusa
recortada pela luz intermitente dos trovões, que soavam lá fora, algures, feixes
luminosos brancos – a cor da paz e do conforto, o que era mentira porque nada disso era
possível sentir ali – que atravessavam as persianas corridas de uma janela. Assustou-se.
Respirou fundo. Tentou sossegar-se. Mas o peito continuava aos saltos, sentia
claramente as batidas cardíacas em compasso acelerado, ainda que ritmado, a martelar
os músculos, os tendões e todos os tecidos nervosos do seu corpo em desassossego, só
lhe faltavam as borbulhas encarniçadas, aquela misteriosa erupção cutânea que tanto o
atormentara, embora naquele momento não conseguisse precisar quando, nem como,
nem onde, e luzes vermelhas projectadas no chão axadrezado, e o som de tambores,
com uma multidão de gente nua a dançar.
— Tens sede? — perguntou alguém, ao mesmo tempo que ouviu algo a roçagar.
Tiago virou a cara para o outro lado. E viu. Duas bolas de fogo azul em movimento
circular junto ao tecto, e depois fora dele, a cerca de cinquenta ou cem metros de altura,
não dava para perceber, que de repente já não havia tecto, mas apenas céu, e chuva, que
se precipitava abundantemente sobre a cama à qual Penha estava agarrado, e o som de
carros a passar, parecia ter voado para uma auto-estrada. Sentia-se encharcado de água.
A chuva glacial e gélida deveria ter-lhe enregelado os ossos. Mas não, era estranho mas
não tinha frio. Pelo contrário, estava quente. E nu. Subitamente. Completamente
despido, sem nada a tapá-lo. Continuava deitado; porém, debaixo dele deixara de haver
um colchão para dar lugar a algo irregular, mole, talvez um pufo. E a sala também não
era a mesma; era maior, com algumas pessoas nuas a dançar, homens e mulheres, de
modo lento e arrastado, em transe, enquanto se ouvia o som de tambores com toques em
compasso lento, sempre iguais, guiados por um metrónomo invisível, bem diferentes da
intensidade das batidas cardíacas que havia sentido instantes antes, bem diferentes da
espécie de ansiedade cacofónica que o tinha acometido. Com efeito, aquelas pancadas
tinham qualquer coisa de melódico, um sentido de harmonia, como se se tratasse de
132
música, música para a carne e para a paixão, de efeito hipnótico, sons tribais para
ritualizar instintos primários, os mais selvagens e, por conseguinte, os mais genuínos da
natureza humana, uma festa psicadélica, em transe, para exaltar os fulgores do sexo em
estado puro e animal. As picadas na pele tinham desaparecido igualmente. Tal como a
agulha enfiada nas veias da mão direita, presa por um adesivo, e o tubo de plástico
transparente e fino, e os eléctrodos e as ventosas agarradas ao peito. Tiago voltou a
sentir as pálpebras pesadas, duras como aço, e os olhos prestes a fecharem-se. E deixouse arrastar para a escuridão do mundo, sem cores, apenas sons, e os batuques em surdina
que começaram a afastar-se. A fazerem-se ouvir cada vez mais distantes. Lentamente.
Até à inconsciência. E ao vazio. Silêncio. Ausência. O nada.
— Há séculos que andamos a vigiar o teu planeta. A Lei Cósmica impede-nos de fazer
qualquer revelação sobre o assunto mas a Terra está em perigo e temos de agir de
imediato.
Sentiu um puxão. De algo que o agarrou. Com força. Para o arrancar ao nada. E acordou
mais uma vez. Ou pareceu-lhe ter acordado. Com o som da voz. E as batidas dos
tambores, que voltaram a ressoar, primeiro distantes, depois a aproximarem-se, do
refluxo ao fluxo. Penha tentou abrir os olhos, mas as pálpebras permaneciam pesadas.
Estivera inconsciente? Se sim, sabia que agora não estava a sair de um sono vulgar.
Qualquer coisa dramática acontecera. Ficou imóvel à espera de arranjar coragem para se
mexer. Não se atrevia a fazer qualquer esforço para saber da sua sorte. E, contudo,
ansiava por saber. Só que o temor era enorme. Titubeava, quase sentia o corpo a tremer
de indecisão. Mas tinha de o fazer. Tinha de abrir os olhos. E foi o que fez, após uma
longa hesitação, aos poucos, calmamente. Com esforço. De tão pesadas que
continuavam as malditas pálpebras, como se estivessem coladas.
A névoa havia regressado. Entre os olhos e o que queria ver. Pelo que não percebeu
donde veio. A pancada. Ficou com a impressão de que fora um soco. Violento, rápido,
inesperado. Tinha sido atingido por qualquer coisa. Não fazia sentido. Mas sentiu a dor
profunda e lancinante no maxilar inferior. E o sabor a sangue que quase o asfixiou por
momentos, de tão célere que havia sido expelido pelos lábios rasgados para o interior da
garganta. Uma explosão feroz de brutalidade que o atordoou ainda mais. Seguiu-se
outra pancada. Veloz. Intensa. Dolorosa. E a sensação de começar a cair, tão estranha
para quem julgava estar deitado, um corpo pesado em queda livre. E a cabeça a bater no
chão. Num tapete duro e axadrezado de mármore. Com um baque surdo. Talvez
houvesse mais sangue. Uma mancha líquida e espessa debaixo da nuca. Que começou a
deslizar de mosaico para mosaico, de quadrado para quadrado, ora branco, ora preto, um
fio vermelho-púrpura irregular a alastrar pelo pavimento. Vagarosamente.
— O teu corpo está cheio de borbulhas encarniçadas. Deve ser a peste vermelha.
E ouviram-se gargalhadas sonoras e dementes, que se sobrepuseram ao som dos
tambores. Uma risada enlouquecida a sair da boca de uma mulher, com os lábios
carregados de batom vermelho, esborratados, e um grande plano da laringe a vibrar, um
órgão fibromuscular de uma fealdade angustiante.
Tiago pensou que estava de novo a caminho da inconsciência, do vazio, da ausência,
mas sabia que não levaria consigo aquelas bolhas assanhadas na pele. Era impossível.
Tinha a certeza de que havia combatido e vencido o ataque de borbulhagem. Fora uma
reacção alérgica. Quando a mãe morreu e ele decidiu regressar a casa em definitivo. Lá
atrás, no passado. Já lá ia algum tempo e o tempo não saltita, tem uma ordem, mesmo
na desordem, tem um sequência, o antes, o agora e o depois, e aquele era o presente,
nem passado nem futuro, mas o agora, a presença, mesmo a resvalar para a ausência,
sem cartas escritas para os que virão, códigos em série, ininterruptos e eternos, de
instantes limitados, circunscritos, concretos, precisos, sem viagens temporais, que essas
133
resultam num nítido nulo, já se sabe, porque é falsa a possibilidade de recuperar o que já
foi como determinar o que será, por mais desígnios que inventem e reinventem,
providenciais ou não, à falta de fé e de crenças, são meros códigos binários, a dicotomia
multiplicada por dez elevado a nove, entre o bem e o mal, a ordem e a desordem, ou a
anarquia, eminente ou iminente.
Como a iminência da morte, depois de ter sentido a força do impacto e o airbag a
explodir-lhe na cara, é que a escrita que ambiciona ser lida é como o envio de cartas a
literatos desconhecidos, é como a porra de um acidente de carro, que tanto pode ser
esperma como irritação, quer dizer a porra, ou a esporra, o sémen ou o desagrado, tanto
mais que se os gregos não tivessem mandado cartas para o futuro os romanos nunca
teriam existido, por isso o suicídio era a única opção, música vadia para gentes de más
inclinações, a ironia perfeita e definitiva da imperfeição da existência, com a viatura a
curvar, sem movimentos repentinos, sem puxões, a desviar-se, a atravessar-se na
estrada, decerto que em aquaplaning, a deslizar sobre uma camada fina de água no
asfalto, de água e de óleo derramado, era evidente, tão cristalino como o vidro, ou a
camada vítrea sobre o piso molhado deixada pelos farrapos de chuva que caíam, e a
troada metálica da colisão frontal contra um separador lateral na auto-estrada, um
embate brutal e impetuoso pela força do peso bruto de um carro desgovernado.
Maria Clara, que seguia ao lado dele na viatura, nada sofreu a não ser um enorme susto.
O mesmo não se pode dizer de Tiago Penha que ainda foi parar ao hospital – não o de
Santa Maria ou o Pulido Valente, em Lisboa, a que tantas cogitações haviam dado azo
aquando do ataque de borbulhas e do internamento da mãe em Torres Vedras, meses
antes – mas ao dos Covões, na margem esquerda do Mondego, em Coimbra, com uma
fractura no ombro do lado esquerdo, na omoplata, e duas costelas partidas, não é demais
recordar. Quatro dias de internamento, com muitos sedativos à mistura, a que se
seguiram várias e demoradas sessões de fisioterapia.
Quanto ao automóvel, sobrou uma teia incongruente de pedaços de chapa e estilhaços
de vidro, um mistifório de ferro com geometrias complexas. O painel da frente da
viatura ficou completamente esmagado. Bem como todo o lado esquerdo. A jante
dianteira do mesmo lado dobrou-se e retorceu o pneu sobre ele próprio, acabando na
forma de um oito. Com efeito, grande parte do carro não passava de um monte de chapa
deformada e amolgada. Pela estrada, espalhava-se também uma amálgama de destroços,
que pareciam ter vindo do nada, que se misturava com mais cacos de vidro e manchas
de óleo. Estranhas cascatas de vidro despedaçado e escória metalizada. No ar,
remoinhavam gases vários e farrapos de fumo. Com o despiste, a viatura apontou de
início para o separador central, dando a impressão de que iria colidir de frente com
aquela barreira de cimento, o que sugeria a forte a possibilidade de saltar para as faixas
de rodagem em sentido contrário, sabe-se lá com que voltas sobre si própria. Mas
acabou por endireitar-se ao roçar pela superfície dura do separador, levantando atrás de
si uma coluna de lama. Ouviu-se um barulho metálico infernal, o ruído da chapa a ser
rasgada contra a barreira de cimento e o das fagulhas a desprenderem-se. Depois, voltou
a atravessar-se na estrada apontando desta vez para a muralha metálica lateral da autoestrada contra a qual acabou mesmo por chocar.
Quem olhasse de longe, a observar o acidente, uma derrapagem tão disparatada quanto
inesperada, aparatosa e definitivamente violenta, não poderia deixar de imaginar o pior
quando o carro bateu, vergando até meio o separador lateral, com o motor a saltar e a
partir-se em três, a conta que Deus fez, e a abundante amálgama de destroços a elevarse no ar como uma explosão: eventualmente a caixa torácica do condutor empalada na
coluna de direcção e um pulmão perfurado pela maçaneta da porta, ou as fracturas
134
expostas dos fémures esmagados contra a alavanca das mudanças, ou a cara desfigurada
e coberta de cacos de vidro laminado. Mas não foi o que aconteceu.
“Olhei para o céu e vi aquela cor púrpura brilhante, de trovoada, um céu carregado de
electricidade estática”, contou Tiago Penha ao perito da seguradora, quatro dias depois
do acidente, no átrio do hospital, pronto finalmente para regressar a casa após a estranha
viagem pelo poço da morte à força de um arsenal de sedativos, hipnóticos, analgésicos,
anti-inflamatórios e sabe-se lá mais o quê. “Estava a chover, coisa pouca, uma chuva
miudinha. Liguei os médios e as escovas de limpeza do pára-brisas. Não ia depressa e
sentia-me tranquilo, descontraído. Aliás, estava à conversa com a Maria. Íamos para o
norte, já não sei porquê, talvez para o Porto ou Braga. Até que, sem mais nem menos, a
viatura atravessou-se na estrada. É bizarro. Porque não senti nenhum puxão, apenas um
deslize suave. Só que já era tarde demais. Da sensação de deslize passei à sensação da
impotência. Sabia que ia chocar contra qualquer coisa. Agora o quê, não sabia. E isso
foi o mais angustiante. É difícil rememorar as coisas. Houve momentos em que o
cérebro estava ligado, e lembro-me, e outros em que só existem brancas totais. Depois,
de repente, tive o pressentimento de que ia morrer. Não sabia ao certo de quê, mas
estava à espera a qualquer instante de um impacto tremendo. A pancada poderia ser
fatal, ou não. Não sei. Foi tudo muito rápido e ao mesmo tempo vagaroso. Até deu para
imaginar corpos despedaçados cobertos de sangue. Mortos, claro está. Cadáveres. A
colisão poderia ter sido fatal. Mas o mais aterrador de tudo foram aqueles ruídos
metálicos. Um terror absoluto.”
Enquanto o perito fazia algumas perguntas, num tom monocórdico e desinteressado, e
preenchia umas folhas de papel amarelo, a cor do luxo e da energia, tal como a do
açafrão e da gema do ovo, e do enxofre, os dois sentados no átrio daquela unidade de
cuidados de saúde, no meio da azáfama de batas brancas e macas a circular, Tiago deu
consigo a lembrar-se, ou a tentar lembrar-se, ou talvez a ser assaltado por memórias
intrusivas, dos momentos que se seguiram ao acidente, com dificuldade, pela
intermitência das imagens, sem saber ao certo o tempo de permeio ou mesmo a
sequência dos mesmos. Houve um baque, provavelmente do seu corpo a ser atirado para
o interior de uma ambulância, o barulho das sirenes, uma porta de correr a fechar-se, os
ruídos dos amortecedores da viatura, aos solavancos, com as lanternas vermelhas no
tejadilho a girar, e uma voz histérica, com gritos e um choro convulsivo, e gemidos de
dor, quase de certeza a de Maria Clara.
“Senti uma descarga muito forte de adrenalina”, retomou Penha, perante o representante
da seguradora, que se manteve calado e silencioso. “Acho que, apesar de ter sido tudo
muito rápido, tive tempo para preparar os meus músculos e os tecidos nervosos para o
impacto. Sabia que vinha aí uma tragédia, mas tive também a impressão, embora possa
parecer estranho, de que o corpo se tinha enrolado, como se estivesse a voltar ao
claustro maternal, como se fosse possível que a minha massa muscular, toda a estrutura
óssea e as substâncias gordurosas, pudessem adquirir uma posição fetal. Quer dizer,
como se eu pudesse encolher de repente para conseguir caber na barriga da minha mãe.
Só pode ter sido óleo derramado na estrada. Não há outra explicação”, conclui Tiago,
por fim, a pensar de novo no suicídio como a única opção perante a evidência de que
não é um acto de coragem nem de cobardia, mas tão-somente a derradeira ironia da
imperfeição do acto de existir. Uma certeza assustadora e inquietante, porquanto o ser
torna-se insustentável e assim mais vale não ser.
Com Maria Clara, as coisas seguiram o seu rumo normal de anormalidade, apesar de no
íntimo de Penha ter havido qualquer coisa que mudou. Como se visse no acidente um
prenúncio de algo que, ainda assim, ele não conseguia identificar. Um catalisador da tal
pulsão suicida? Um aviso para a medida da sentença? Eram questões que não podia
135
colocar pois estava longe de supor o que iria suceder. Incapaz de prever, impedido de
reagir. E, no entanto, a decisão estava em marcha. Com a coabitação forçada, e agora
mais estreita, ou sob pressão, desde que ele havia voltado de vez, jogos cruéis de
silêncio e apatia, que as discussões estavam roucas, especialmente para Maria, pelo
desgaste de tantas trocas de palavras azedas, pelo receio do medo sem objectivo, era
evidente que havia novas regras, uma queda livre e desamparada para abraçar o
desaprumo mental em prejuízo da ferocidade querelosa, fingida que estava a audácia
altruísta do perdão na impossibilidade de recuperar o irrecuperável. Viviam-se os
tempos do fim, com Clara à beira de se afundar nos mares profundos dos psicotrópicos,
ao mesmo tempo que Tiago investia cada vez, o tempo, o gosto, a vocação e o
desespero, no avatar de confissões que havia criado, não obstante sentir-se cansado às
vezes. Não é que se queixasse da miséria da vida, como é bom de ver, mas tão-somente
da miséria da sua própria vida. Esgotada por fim a oportunidade de prosseguir a sua
circum-navegação, que a idade pesava e sentia-se velho.
Penha cumpriu à risca todas as recomendações médicas, fisioterapia e uso de fármacos
vários, para recuperar em conformidade, e depressa, mesmo sabendo que, afinal, não
valia a pena procurar sentidos para as coisas porque o único sentido que nelas reside é a
possibilidade de as sentir, de as viver. Não vá dar-se o caso da morte desatar a correr em
vez de rastejar.
E, aparentemente, terá sido por isso mesmo – pelo menos foi o que Tiago pensou – que
Simão Saraiva deu sinais de vida de repente, após longos meses de silêncio durante os
quais nada soube dele. É certo que Penha há muito que estava habituado às estranhas e
inesperadas ausências de Saraiva, que dava em desaparecer com alguma frequência sem
deixar rasto por períodos que chegavam a atingir um ou dois meses, já se sabe.
Incontactável, perdido algures nalgum recanto da imensidão terrestre. Mas desde que
Tiago havia decidido sair da poderosa multinacional sediada em Atlanta, nos Estados
Unidos, ao serviço da qual estivera durante quase duas décadas, Simão nunca procurou
chegar à fala com ele ou, no mínimo, enviar-lhe uma simples mensagem electrónica. Os
laços haviam começado a quebrar-se naquele arquipélago remoto, perdido nos confins
do Mundo, no extremo sul da Argentina, a que se seguiu a turbulência no Rio de Janeiro
e, por fim, o despenhamento em Madrid. Contudo, podia ter havido qualquer tentativa
de desagravo, por mais que ténue ou frágil que fosse, tantos tinham sido os anos em que
os dois trabalharam e viveram lado a lado, sempre em correria pelos quatro cantos do
mundo, o que, em rigor, só seria verdade se ele, o planeta, fosse quadrado ou
rectangular – o que não parece ser o caso, tão forte foi o costume das práticas do
adultério aristotélico que acabou por se transformar numa norma válida, a do adultério e
da abolição geocêntrica na forma quadrilátera, entenda-se, tanto mais que uma terra
plana seria literalmente chata, sem desavenças gravitacionais e cisões eclesiásticas –
mas que caminharam incessantemente pelos sete mares, que são nove, lá isso ninguém
lhes pode negar.
Vindo do nada, o telefonema de Saraiva mais pareceu um já não desejado regresso
d’além-mar de El-Rei D. Sebastião, embora naquele dia não houvesse nevoeiro nem a
Nação precisasse de ser salva – que a crise dinástica há muito que havia sido
remendada, ainda que de modo brumaceiro, como seria de esperar – tal foi a surpresa
com que Penha ouviu as palavras lacónicas do antigo companheiro, com aquele tom de
voz que lhe era familiar, a célebre mescla requintada, e mais que improvável, de
vociferação com bonacheirice, se bem que não tenha sido tão audível e impulsiva como
sucedia dantes, que a vertigem do álcool deveria andar a fazer das suas. Na verdade,
houve momentos até, no pouco que durou aquele contacto telefónico, em que Tiago teve
a sensação de que Saraiva se limitou a ser uma caricatura de si próprio, ou seja,
136
imitando-se, ou reinventando-se, porventura numa tentativa de recuperar o que havia
perdido para fingir que ainda era o que tinha deixado de ser. E tanto assim parecia que
Penha notou, com um certo desapontamento, que Simão omitiu qualquer referência ao
acidente, embora soubesse com certeza, porque todos sabiam, não se dignando a fazer
qualquer pergunta sobre o seu estado de saúde ou como estava a decorrer a recuperação,
o que, bem vistas as coisas, até poderia ser, paradoxalmente, um indicador de que
Saraiva talvez continuasse igual a si próprio, pelo menos em parte, nalgumas dimensões
da sua massa crítica existencial.
— Mais uma volta, mais uma viagem — e riu-se, sem graça, por falta de razões, pelo
menos na aparência. — Lanzarote. Estou à tua espera.
— Estás a falar de quê, Simão? Não estou a perceber — hesitou Tiago.
— Oh minha ratazana velha! Não te faças de parvo. Mete-te num avião e vem cá ter
comigo.
— Mas vou aí fazer o quê?
— Porra! Acabei de dizer: ter comigo. Ou já estás mumificado?
Nem a conversa nem o desafio faziam qualquer sentido, mas Penha não declinou de
imediato; ao invés, continuou à espera de que Saraiva concretizasse. Tiago conhecia-o
demasiado bem, ou julgava conhecê-lo, para concluir que Simão jamais faria aquele
telefonema se não houvesse algo sério, pelo menos na cabeça dele, para justificar aquela
deslocação. Mesmo que não verbalizado, que Saraiva sempre havia preferido o
implícito ao explícito. Mas Lanzarote? Que raio estaria ele a fazer nas Canárias? E
lembrou-se de súbito. Das Montañas del Fuego. E de “El Diablo”. Não da churrasqueira
vulcânica, que também há lá, no Parque Nacional de Timanfaya, mas da estranha
escultura de César Manrique.
— Espero-te amanhã para almoçarmos juntos — desligou Simão, sem mais nem menos.
A primeira impressão foi de perplexidade. Mas depressa as sinapses aceleraram a fundo
com a sua teia gigantesca e complexa de envio e recepção de impulsos químicos e
eléctricos. Acontece o mesmo com os criminosos, os bad boys que a sociedade decidiu
tipificar como tal: dopamina e testosterona. Quanto mais melhor. E que Malinowski vá
à bardamerda.
Curioso: após as exéquias no dia do funeral da mãe, já lá ia algum tempo, ao chegar a
casa, no coração de Lisboa, perto da Cidade Universitária, e tropeçar num novelo de
malas depositado no vestíbulo, nem Maria Clara chegou a ir embora, como anunciou,
nem Tiago Penha, como prometeu e tencionava cumprir. Por estranho que pareça, e
apesar do azedume do colóquio conjugal, acabaram na cama. Literalmente. A tentar
foder. Com a bagagem à porta. Coisa estranha para quem os dedos brochavam, para
quem se recusava a ser tocada, que os fulgores a que costumava dar-se no acto do amor
faziam parte do passado. De um passado bastante distante. E nada mais. Não fizeram
amor porque continuavam sem conseguir localizar a paixão, e lá saíram da cama pouco
depois, maquinalmente, indiferentes à desilusão de uma união para sempre desunida,
embora houvesse algures, sabe-se agora, um novo segredo a rastejar em silêncio;
também não se reconciliaram, que esse era um desiderato irrecuperável, mas voltaram a
forçar a coabitação pela enésima vez, para que a vergonha não fosse maior, jamais se
saberá se por falta de coragem ou por mero expediente de protelar o inadiável na
indecisão do amor, nunca é demais sublinhar, que essa sempre foi a matriz punitiva da
relação, tanto mais que, em silêncio, para Maria – que Tiago nada podia saber, sob pena
de não ser possível fazer com que ele passasse de carrasco a vítima – havia uma outra
variável, nunca é demais recordar, que tinha já adquirido forma e força, a possibilidade
do castigo na forma de um clítoris venenoso, um crime vaginal que reporia a ordem
moral, se se concretizasse de forma tão selvática quanto a selvajaria que se havia
137
incrustado naquele solstício matrimonial desde a traição primeira, a conhecida, a
decisiva, a que precipitara o princípio do fim de Ester, a vida por nascer, que assim
ficou, sem nascer, uma estrela que nunca brilhou, mesmo sendo hebraica; o mesmo
terrorismo, disfarçado de danos colaterais de quem se propôs a atravessar os sete mares,
que são nove, que acabaria por provocar mais tarde, quase três décadas depois do
famigerado passeio de gôndola pelo Grande Canal de Veneza e os centocinquantamila
morti in America, a derrocada das torres bioquímicas e fisiológicas cerebrais que
sustentavam o equilíbrio psíquico de Clara.
Não admira pois que Maria, “chumbada” por força de um arsenal de psicotrópicos, que
o floating já não oferecia qualquer solução de regeneração das suas condições
psiquiátricas, mal tenha reagido ao anúncio de mais uma ausência de Penha no
estrangeiro, se bem que desta vez fosse particularmente curta, ele que estava reformado
e havia voltado a casa de vez. Habitavam os dois num só apartamento, continuavam
casados, mas na verdade apenas partilhavam, e mal, o mesmo espaço físico. Tudo o
resto era vivido paredes-meias, no fluxo e refluxo dos humores diários. Tiago sentia-se
velho e cansado sem saber porquê, e ansiava por encontrar novos sentidos, embora
soubesse que só devia aceitar o que a vida lhe oferecia, na impossibilidade de desatar
memórias e perante a evidência de que o sentido da existência era esse mesmo; Maria
sentia-se amorfa e insípida, mas mantinha-se na vigília, tão desperta quanto possível, à
espera de uma oportunidade para fazer cumprir a sentença, como havia tentado sem
sucesso há alguns meses no dia em que o corpo da mãe de Penha foi devolvido à terra,
para que a palavra do Senhor também assim se cumprisse, “do pó nascemos e ao pó
voltaremos”, mãe e filho de uma só vez.
A reserva do voo foi feita pela Internet nesse mesmo dia, o do telefonema inesperado de
Simão Saraiva, e na manhã seguinte Penha embarcou para as Canárias. Apanhou um
avião para Madrid bem cedo, ainda era de noite, e após uma hora de espera em Barajas,
viu-se a entrar pela cauda de um DC-10 da Ibéria, uma porta entalada entre a
imponência de dois reactores gigantes. A aeronave não inspirava grande confiança, tão
funesto era o historial de acidentes daquele modelo desenvolvido pela McDonnell
Douglas, mas que se lixasse, que Tiago havia vivido já o tempo suficiente para ser
capaz de desconfiar do medo. Ao aproximar-se do aeroporto de Arrecife, sobrevoou a
superfície lunar de Timanfaya, no sudoeste da ilha, negra e vermelha, um mar vulcânico
de dunas e penedos, areia e rochas, como se a Lua estivesse ali e não no espaço, fora da
órbita terrestre. Seguiu-se a aterragem, que mais pareceu uma amaragem, tão estreito é o
namoro entre os mares do Atlântico e as pistas de cimento de San Bartolomé.
À saída do aeroporto, lá estava um indivíduo, encostado a um Volkswagen Polo verdeescuro, atento à movimentação nas portas do terminal das chegadas, cidadão português,
oitenta metros de altura e setenta e quatro quilos de peso, cabelo castanho-escuro,
comprido e ondulado à solta sobre a cabeça, olhos igualmente castanhos e pele clara,
caucasiano, em boa forma física, ligeiramente musculado, com calças de ganga, uma tshirt branca e ténis cinzentos de fivela. Apesar do céu encrespado varrido por uma
enorme mancha de nuvens cumuliformes, o que fazia prever a iminência de chuva forte,
sentia-se um calor abafado e seco, longe da “Primavera eterna” que os folhetos
turísticos anunciam, devido à proximidade do continente africano, a cerca de cem
quilómetros, pode ler-se em qualquer um, e ao efeito do choque entre as altas
temperaturas sarianas e a corrente do Golfo do México.
— Passaste aqui a noite?
Saraiva sorriu e avançou na direcção de Tiago, que trazia consigo, como bagagem,
apenas um pequeno saco desportivo, tal como o desconhecido que havia sido detido
pela polícia austríaca há mais de vinte anos na viagem de comboio entre Praga e Viena.
138
— Conheço-te bem. Não conseguirias resistir. E depois foi só fazer contas — explicou
Saraiva, visivelmente satisfeito com a chegada do companheiro. — Vindo de Lisboa, e
de um dia para o outro, só chegarias aqui neste avião — e abraçou-o, para alguma
surpresa de Penha.
Enfiaram-se no carro e seguiram para nordeste para a Costa Teguise. Simão estava
sóbrio, ou parecia estar. Do mal o menos, pensou Tiago.
— Já cá tinhas estado? — indagou Saraiva com a mão direita no volante, enquanto
segurava um cigarro com a esquerda.
Penha também se pôs a fumar, depois de ter baixado até meio o vidro da porta da
viatura, do seu lado.
— Não. Mas é-me familiar.
— A quem não é? — observou Simão. — Mas o tipo já está morto. E nós ainda cá
estamos. Resta saber por quanto tempo e quem é que ficou melhor — acrescentou, de
forma obscura. — Deixemos o Saramago, que afinal sempre voltou para Portugal, senão
até nisto os espanhóis levavam vantagem, e passemos a coisas práticas. Marcaste o voo
de regresso?
— E eu a pensar que estavas a referir-te ao César Manrique.
— Porra, não me fales nesse gajo. Está por todo o lado. Se há deuses na Terra ele é um
deles. Pelo menos aqui.
— Vítima mortal de um acidente de viação — recordou Tiago, sem produzir qualquer
efeito em Saraiva. — Regresso amanhã, mais ou menos a esta hora — acrescentou.
— Óptimo. É o suficiente.
— Pelo que vejo, continuas a falar por enigmas — notou Penha.
— E tu continuas a ser um mau observador. Mesmo vendo. Olha para esta paisagem
fantástica! Aprecia esta visão — e apontou para o mar de enxofre que deslizava pelas
montanhas a caminho dos respectivos sopés arrastando-se depois até à pequena autoestrada da cidade de Arrecife.
— Mau observador e mau ouvinte — replicou Tiago.
— Só espero que desta vez não tenhamos um diálogo de surdos — afirmou Saraiva num
tom vago, embora fosse clara e de certa forma extemporânea a evocação do incidente de
Ushuaia, na Ciudad del Fin del Mundo, a memória daquela noite funesta em que os
dois, já bem bebidos, abraçados por um vale de gelo a deambular sobre um lago
congelado, desataram a discutir por causa de uma arma de fogo, um revólver de calibre
357 Magnum.
Não deixava de ser curioso: La Tierra del Fuego e Montañas del Fuego. A primeira
perdida nos confins da Argentina em clima oceânico sub-polar, as segundas situadas
numa área quase diametralmente oposta, numa ilha subtropical colada à costa ocidental
africana. Tiago começou a cogitar se não haveria ali qualquer associação ou
representação simbólica cujo alcance lhe estava a escapar, algo que talvez andasse a
bruxulear na mente de Simão, talvez a busca de sentidos para certos sentimentos ou
emoções, ou pensamentos intrusivos e por conseguinte inquietantes, a procura de uma
lógica algorítmica que validasse as intimidades da vida e determinados actos com os
quais nem sempre é possível conviver bem, vencida que estava a travessia dos sete
mares, que são nove, e iniciada a contagem regressiva da existência. Em boa verdade, se
calhar era precisamente aí que residia a explicação para aquele reencontro em Lanzarote
após tanto tempo de silêncio.
Aproximaram-se por fim de um enorme edifício branco, com centenas de janelas e
varandas viradas para o mar dispostas em forma de arquibancada, o majestoso hotel
Grand Teguise Playa, onde Saraiva estava hospedado. Majestoso, pelas suas dimensões
faraónicas, tanto em altura como em largura, uma barreira artificial gigante construída
139
pela mão do homem para apartar aquilo que a Mãe Natureza havia unido; de um lado o
paraíso azul das piscinas e do oceano, do outro, nas traseiras, o deserto vulcânico de
rochas negras.
Penha conseguiu uma suíte no quarto andar, o mesmo piso onde se alojara Simão. O
companheiro quis saber se ele tinha fome, talvez quisesse almoçar, mas Tiago disse que
não, que já o tinha feito a bordo do DC-10 da Ibéria, pelo que não perderam mais
tempo. Entraram no elevador panorâmico, que dava a ver durante a subida o enorme
átrio do hotel, cheio de plantas exóticas e cascatas de água, e seguiram para o quarto de
Saraiva.
— Vê isto! — pediu Simão, entregando a Tiago um envelope com uma folha de papel
A4 dobrada lá dentro.
Encontravam-se os dois sentados no sofá da suíte, um canapé largo e confortável. Penha
tinha ainda consigo o saco desportivo que trouxera de Lisboa. Saraiva ligou o laptop
que havia posto em cima das pernas e aguardou.
Tiago Penha sentiu um arrepio e não foi necessário ler muito. Na verdade, não passou
do primeiro parágrafo. Processado por computador, com uma fonte e corpo comuns (aos
quais, no momento, como seria de esperar, não prestou a mínima atenção), o texto era
sinistro.
«Podia ter segurado a cabeça com as mãos, mas decidi remover-lhe o cérebro como
faziam os antigos sacerdotes egípcios: enfiar um gancho no nariz do cadáver e forçá-lo
até rasgar o osso etmóide, que destrói a cavidade craniana e a nasal. Depois, é só retirar
aquela massa esponjosa aos bocados. Parece o miolo de uma noz.»
Simão explicou que havia encontrado a carta à entrada do quarto. Supostamente havia
sido metido debaixo da porta por um funcionário do hotel. Já tinha ido à recepção para
tentar descobrir quem tinha deixado a mensagem. Se não tinha remetente, alguém a
entregara por mão própria. Mas ninguém conseguiu responder-lhe.
— E tu? O que achas que é isto? — indagou Tiago.
Simão Saraiva acendeu mais um cigarro e recostou-se no sofá enquanto dava uns bafos
longos e demorados. Pensativo, com um ar grave, deitou uma olhadela pela janela, para
o azul do mar e a linha do horizonte que se estendiam lá longe, e tardou em falar,
prolongando o silêncio até à eternidade possível, tal como lhes havia acontecido, há
vários anos, naquela noite de temperaturas agrestes em Ushuaia. Levantou-se e
encaminhou-se para o mini-bar donde retirou uma garrafinha de uísque.
— Queres?
Penha fez um gesto com a mão a dizer que não. Saraiva vazou o uísque num copo e deu
um trago.
— Há coisas que posso contar, há outras que não — retomou finalmente, mas mais uma
vez de forma obscura e enigmática.
Tiago estava confuso, perplexo, sem conseguir perceber o que quer que fosse. Se não
tivesse pela frente Simão Saraiva, diria que tudo aquilo era absolutamente inverosímil.
E uma perda de tempo. E de dinheiro. Deslocar-se a Lanzarote para ver uma folha de
papel com um texto bizarro e ambíguo só podia ser uma brincadeira de mau gosto. Mas
conhecendo, ou julgando conhecer, o carácter do companheiro, Penha sabia que estava
apenas no preâmbulo de um drama, no qual teria de desempenhar um papel que
desconhecia por enquanto.
— Na História não faltam relatos de guerreiros que punham a sua espada ao serviço de
quem pagasse mais — prosseguiu Simão, exalando ondas de fumo à medida que
fumava. — Dir-se-ia que eram homens sem honra, exércitos de mercenários sedentos de
sangue e fortuna. Mas o que é a honra? Uma distinção honorífica? A expectativa de
granjear o respeito e porventura o temor pela dignidade dos seus actos? Ou
140
simplesmente o sentimento de dever? O problema é quando olhamos à nossa volta. O
que vemos? Os carros de luxo do jovem Teodoro Obiang empilhados na garagem do
seu hotel particular na Avenue Foch, enquanto a Guiné Equatorial continua mergulhada
na miséria, na ignorância e no silêncio forçado? O Robert Mugabe a festejar o seu
aniversário com cinco mil garrafas de uísque e cem quilos de camarão, enquanto o
Zimbabué vive com mais de um milhão de portadores do vírus da Sida?
— Aonde queres chegar? O que é que queres contar? — atalhou Tiago.
— Estou a falar da honra. Ou da falta dela. Mesmo quando é necessário que assim seja.
— E de ditadores. Depois de teres falado em mercenários — Penha apagou o cigarro no
cinzeiro e levantou-se. — É uma ligação evidente, embora pareça ser um bocado
demagógico e um lugar-comum desatares para aí a evocar os suspeitos do costume.
Porra, toda a gente sabe o que se passa em África.
— Sabe ou pensa que sabe? Olha. Mas será que vê?
— Continuas na demagogia. Esse é um discurso estafado. Há séculos que andamos
nisto. A cor, as ideias e o abuso das ideias.
— São chavões, mas a verdade é que continuam a cegar.
— E continuarão. Tencionas mudar o Mundo? — desafiou Penha, que andava a circular
pela pequena sala da suíte com vista para o azul cristalino das piscinas e do oceano, a
cor do espírito e do pensamento.
— Há uma coisa que sempre apreciei em ti. Fazes poucas perguntas. És mais do género
intuitivo, uma pessoa que não precisa de muitas explicações para perceber o que se
passa. Contudo, nunca quiseste saber. O que te leva a ser um mau observador. E a
ignorar coisas que são fundamentais.
— Saber o quê?
— Tralhámos juntos durante quantos anos?
— Uma eternidade.
— O suficiente para poder dizer que, no fundo, és um snobe. A tua percepção é
selectiva; fazes tábua rasa de tudo o que não te interessa — sentenciou Saraiva,
enquanto foi buscar mais uma garrafinha de uísque ao mini-bar.
Voltou ao sofá, repetiu o gesto de vazar o destilado de cevada no copo e emborcou-o
todo de uma só vez. Depois, sacou de uma pequena pen preta do bolso esquerdo das
calças e ligou-a ao laptop.
— Talvez tenhas razão. Pouco me importa.
— Precisamente. Por que razão é que achas que nunca foste recrutado? — inquiriu
Simão, com um ar estranhamente ausente, mais atento à cópia vários ficheiros da hard
drive do computador para a pen.
— Recrutado?!
— Foda-se! O que pensas que andámos a fazer todos estes anos? — ripostou Saraiva,
indignado, levantando a cabeça de repente para fitar Penha nos olhos com intensidade e
alguma ferocidade. — Julgas que os russos ou os indianos, e toda a cambada de gente
que conhecemos, precisavam de nós para alguma coisa? Pensa! Pelo menos uma vez na
vida pensa no que não te interessa. O Congo, caralho! Cabe na cabeça de alguém que
Kinshasa precise de engenheiros informáticos?
— Fiz apenas o meu trabalho.
— Pois foi. E fizeste-o bem — disse Simão, baixando o tom de voz ao mesmo tempo
que tirava a diminuta flash drive da porta USB do laptop.
— Portanto estás a dizer que a empresa é uma fachada.
— Não estou a dizer a nada. Só a pedir-te que penses.
— Precisas de mim para quê? — perguntou Tiago, a dar ares de alguma irritação e
enfado com toda aquela charada.
141
— O meu prazo de validade expirou.
Penha riu-se e acendeu mais um cigarro. A névoa de fumo adensava-se, tal como o
cheiro forte do tabaco.
— O meu também. Há muito tempo — comentou Tiago, que também voltou a sentar-se
no sofá. — Porém, ainda aqui estou.
Simão Saraiva estendeu-lhe a pen.
— É um cheque endossado. Faz com ele o que entenderes melhor.
Penha ficou a olhar durante alguns instantes para aquele pequeno dispositivo preto,
pensativo.
— É valioso?
— Depende do uso que lhe deres — respondeu Saraiva.
Tiago Penha acabou por agarrar na pen e enfiá-la por sua vez no bolso das calças.
— E a que se deve esta dádiva? — quis saber Penha.
— Às putas que comemos juntos. E a todos os outros desgraçados pelos quais nos
apaixonámos. É sempre bom lembrar como o Mundo é uma bosta.
142
XVI.
Quando Tiago Penha voltou a sobrevoar o Parque Nacional de Timanfaya e aquela
estranha paisagem lunar negra e vermelha com cerca de trezentos vulcões, de novo a
bordo de um DC-10 da Ibéria com destino a Madrid en route para Lisboa, lembrou-se
da dramática descrição deixada pelo padre Don Andrés Lorenzo Curbelo, que assistiu
em meados do século dezoito ao terror das erupções e do mar de lava que jorrou do
interior do planeta durante dois mil e cinquenta e três dias seguidos, sem parar, seis anos
de violentos confrontos entre a terra e o mar, um dos acontecimentos mais
impressionantes de toda a história do vulcanismo mundial. “Una enorme montaña se
elevó del seno de la tierra y del ápice se escapaban llamas que continuaron ardiendo
durante diez y nueve días (...) Una inmensa cantidad de peces cubría las playas. Del mar
erigían columnas de humo y llamas. Tronaba horriblemente”, pode ler-se nos diários do
sacerdote. Palavras tão pungentes quanto o doloroso estado de espírito que Tiago levava
consigo, à medida que se afastava de Lanzarote. Com o pensamento a rodopiar
vertiginosamente, de tanta confusão que se acotovelava lá dentro. Balbúrdia, reboliço,
revelações e contradições, coisas que não lhe pareciam possíveis, outras em que não
queria acreditar, embora talvez se houvesse feito luz sobre muitas dúvidas com que
conviveu ao longo dos anos, ou porventura não, nada parecia claro ou distinto, nem
sequer a catadupa de palavras que se atropelavam na cabeça, que ele articulava
mentalmente na vã tentativa de ordenar o que estava em desordem, de aplacar o tumulto
e o motim sináptico que se desenrolava ferozmente.
Apertava com força a pen que conservava no bolso das calças sem fazer a mínima ideia
da informação que transportava e lhe fora confiada por Simão Saraiva. Que o
companheiro, ou em rigor, o ex-companheiro era um indivíduo peculiar e imprevisível
já o sabia, sempre o soubera, mas não esperava que lhe reservasse agora mais uma razão
ou motivo de sobressalto, ele que estava cansado e velho, ele que queria simplesmente
resguardar-se no pundonor da sua errância. Porque era secreta, pessoal e
intransmissível. Ou pelo menos tentava que assim o fosse, que nesta coisa das errâncias
nunca se sabe, o destino é por mais que incerto, caso se assuma o princípio de que há
desígnios, como é evidente, algo que também não o convencia e tornava tudo ainda
mais estranho, instável, vacilante, ininteligível. Não é que temesse qualquer desaprumo
mental, a instâncias da loucura, que permanece sempre à espreita e de porta aberta,
como se sabe. Até porque, por enquanto, o mundo das efabulações era mais um feudo
de Maria Clara, imune que estava ele, por ora, insiste-se, a esses esbraseamentos do
espírito, pobres almas em delírio, que profunda injustiça, para que servirá Deus se nada
faz quando a barriga está cheia e a cabeça vazia, incapaz de suster as ventanias do
demónio, esse sim que bem que sabe separar o trigo do joio e escorraçar das cidades
todos aqueles que caem em desgraça, oferecendo-lhes a vida eterna em troca da descida
aos infernos, se é que não houve um engano e o paraíso caiu dos céus, com a terra do
pecado a elevar-se até aos cumes dos montes, esses enormes caldeirões de bronze com
água a ferver, que alguns identificam como vulcões, chamuscados por labaredas de
143
fogo, para atiçar as dores das mulheres, dependuradas pelos seios, e as mágoas dos
homens, com os ventres pútridos e os lábios iguais aos dos camelos, obrigados a
alimentar-se de restos de carne putrefactos, uma infâmia ingloriosa para quem se propõe
a vaguear pelo mar de efebos e pelos santuários de ninfas, que dizem haver lá em cima,
junto a Nosso Senhor, não se sabe se Deus, Cristo ou o Espírito Santo, ninfas com
grandes olhos, semelhantes a pérolas verdadeiras, eternamente jovens e virgens,
divindades femininas graciosas e formosas, daquelas que não mirram com a idade e se
tornam feias e desprezíveis.
É tudo uma questão de militância, pouco importa se a fé reside nos deuses ou nos
homens, desde que se combata e defenda, com convicção e firmeza, mesmo que nada
pareça o que é, ou se caia na tentação de ousar em questionar o inquestionável, porque
militar é agir, servir e pelejar, com honra e sentido de dever.
(Web Forum: Sentido de dever é lutar contra a humilhação. O grito de revolta no
feminino dá lugar a um outro, agora no masculino e em brasileiro: Precisamos de uma
nova contra-revolução, contra a esquerdopatia corrupta, incompentente, mitómana,
tirânica, despudorada e alienadora. A seita satânica socialista está a cubanizar, a
chavinizar, a saquear, a tiranizar, a fragilizar, a corromper e a destruir o País. É
tempo de acordar! Precisamos urgentemente de apear esta quadrilha do poder. E a
nossa força é o voto. A que se segue uma discordância igualmente no masculino:
Chavinizar?! Mas por que razão é que passam a vida a falar no Hugo Chávez? Já se
esqueceram de que ele é um dos poucos chefes de Estado com coragem para se opor
fortemente à política imperialista dos Estados Unidos? Rompeu relações com o Estado
criminoso de Israel, defende a soberania e a independência do Irão, da Síria, de Cuba e
de outros países ameaçados pelo Império. Com o seu exemplo, conseguiu dar o mote e
influenciar a eleição de outros presidentes de esquerda na América Latina, ao mesmo
tempo que criou um bloco económico e político solidário que reúne países mergulhados
na miséria como a Bolívia, a Nicarágua, Cuba ou o Equador. Réplica em português:
Com tantos elogios a Chávez, não tarda nada em afirmar que o Irão é o exemplo
perfeito da democracia representativa. A que se junta um novo comentário do segundo
interveniente: Ser pobre num mundo capitalista ainda nos dá alguma dignidade. Ser
pobre num mundo socialista transforma o resto de dignidade que sobra em humilhação.
Enquanto os pobres saqueiam, invadem e levam cacetada, os poderosos assistem dos
seus casarões. O socialismo é a maior mentira que já existiu depois do cristianismo.
Aliás, são bem parecidos. Os argumentos induzem uma réplica do participante anterior:
Sou comunista com muito orgulho e não consigo aceitar tanta pobreza de espírito.
Desde quando é que ser pobre num mundo capitalista ainda nos dá alguma dignidade?
Veja-se o que Hugo Chávez fez na Venezuela. Isso é que é dignidade. Expropriou mais
de quatrocentas empresas, reduzindo a jornada de trabalho para quarenta horas
semanais, levou os serviços de assistência médica às favelas, com a colaboração de
médicos cubanos, controla os preços dos produtos e o abastecimento nos
supermercados, beneficiando a população. E tudo isto depois de ter derrotado uma
tentativa de golpe de Estado conseguindo manter o regime democrático no País. Nova
indignação com sinal contrário: São umas belas pérolas essas. Com palavras
carregadas de tantos chavões, mais parece que está a reescrever o manifesto do
Partido Comunista. Uma coisa é defender ideias políticas, outra é deixar-se cegar pelo
partidarismo das ideias. Sucede-se a réplica: Isso é a conversa mole da Imprensa
burguesa. E uma contra-réplica: E o homem a dar-lhe com o Chávez! Porque é que não
fala do Brasil, já que admira tanto o modelo venezuelano? Resposta de uma voz
brasileira: Nem precisa muito. Basta falar de São Paulo. A polícia fala que tem total
controle. Mas ter controle não é ter bola de cristal. Não tem como prever quando e
144
onde um vagabundo vai atacar na covardia um policial em seu dia de folga, ou vai
queimar um ônibus. Bandido não bate de frente com a polícia, só age na covardia. Em
São Paulo quem manda é a ROTA, não bandido. Quando a ROTA sai nas ruas,
vagabundo treme. Esse povinho da periferia anda ouvindo muito funk. Tem a cabeça
cheia de cocó e sai por ai falando asneira. São Paulo nunca perdeu para o crime. E a
discussão acaba por degenerar numa troca de insultos, rematada com uma observação
de desagravo: Chutei o balde hoje, literalmente... Até rachou no meio. Tive que
comprar outro no mercado antes que a patroa visse, mas foi legal viu. Recomendo!)
Que tanto que apetecia a Tiago Penha fumar um cigarro. Regra geral, aguentava-se bem,
mesmos nos voos de longo curso. Mas daquela vez estava a ser complicado. Sentia-se
ansioso, invulgarmente impaciente, com o corpo massacrado pelo medo. Não é que
receasse o que a pen pudesse conter, tanto mais que não sabia ainda se lhe iria dar uso
ou sequer consultar os dados que nela estavam guardados. O problema residia mais no
regresso e na súbita ausência de coordenadas para o efeito. Provavelmente aquela teria
sido a última vez que havia de ver Simão Saraiva. O seu prazo de validade havia
expirado, pelo que tudo fazia sentido e nada fazia sentido.
No dia anterior, após o breve mas decisivo colóquio no quarto de Saraiva, Tiago seguiu
para a sua suíte onde tomou um duche e tentou não pensar em nada. Mas era difícil.
Muito difícil. E ele sabia bem porquê. Contudo, nada disse. Como sempre havia feito ao
longo da vida. Nem mesmo quando ele e Simão desceram para jantar, decorrido já o
tempo necessário para digerir todas aquelas informações inesperadas. Passaram o resto
da noite num dos bares do hotel a emborcar uísque. A fazer tempo, que Penha estava
prestes a partir e, entre eles, parecia ter deixado de haver vontade ou razão para partilhar
más inclinações e desejos selvagens. Foi uma espécie de despedida, talvez definitiva,
com a conversa anódina a correr solta, falar por falar, porque o que havia para dizer já
tinha sido dito. Houve instantes em que Simão Saraiva parecia ser um homem abatido,
mas eram fugazes e praticamente imperceptíveis. Talvez só Tiago os conseguisse
identificar, ou pensar que identificava. É que durante toda a noite, mesmo quando o
álcool subiu até à vertigem, o companheiro mostrou-se igual a si próprio, sem se dar por
vencido, revelando a sua habitual mescla requintada de vociferação com bonacheirice.
Apenas faltou dançar e cantar, cheio de sorrisos e com lágrimas escondidas, como
sucedera com o amigo caribenho de Tiago Penha, momentos antes de embarcar em
Madrid para o regresso pouco desejado a Cuba: «La Vida Es Un Carnaval».
Com efeito, Penha compreendia agora melhor o incidente de Goa. E o de Ushuaia. E
provavelmente outros aos quais não prestou a devida atenção. Bem como as súbitas e
prolongadas ausências do colega de trabalho. E a extravagância dos seus excessos
etílicos. O que não compreendia era aquela tentativa de justificação, sem que Penha lha
tenha pedido. Nem aquela partição envenenada de dados. Porque nunca fez questão de
questionar o inquestionável. Porque nunca quis saber, era verdade, de tão ocupado que
andava com a sua solidão egoísta no meio de toda aquela multidão de povos que
aprendeu a reconhecer, sem conhecer, com a mãe a morrer e Maria Clara a arrastar-se
pela vida, sobraçada pela contumácia com que Tiago se entregava aos prazeres de
amores tresmalhados.
O avião começou a oscilar e a retorcer-se entre turbilhões de massas de ar. Por cima da
cabeça de Tiago, no tecto da aeronave, iluminaram-se os símbolos que codificam a
ordem para apertar os cintos, uma explosão súbita de dezenas de luzinhas, acompanhada
por aquele som electrónico enervante igual ao que precede a abertura automática das
portas metálicas de alguns elevadores. E ouviu-se a voz do comandante a explicar o que
era evidente: haviam entrado numa zona de turbulência.
E os ecos de outras vozes, distantes, do Web Forum.
145
(Quem mais sofre com assalto é o povo da periferia. Trabalhador classe C e D é
roubado todo dia, perde celular, carteira, leva tapaço na cara e chute no rabo de
brinde. Vai na delegacia, o delegado ri, da cara dele e nem quer registrar ocorrência,
estamos sem escrivão, essa é a desculpa. Morre gente todo dia. Estudante, trabalhador,
dona de casa. Mas não repercurte na mídia)
As luzes apagaram-se de repente, embora a fuselagem se mantivesse iluminada pelos
clarões azuis dos relâmpagos que cintilavam à volta do aparelho no meio do mar
encrespado de nuvens negras.
(O que me deixa puto é o absurdo que acontece em certas regiões. Corrupção
generalizada e explícita, terras sem lei, xerifes “nomeados”, enriquecimento ilícito dos
governantes. O povo elege bandidos, troca voto por comida e acaba na miséria. Daí o
que acontece? Vem para as cidades. E encontra emprego, e descobre o que é um
semáforo, um metro, um hospital ou uma escola pública. Mas depressa está já a
reclamar das longas filas de espera em tudo o que precisa de fazer e culpa o Governo)
Apesar do baque de susto, porque é invulgar, o apagão não durou muito tempo. As luzes
no interior do avião voltaram a acender-se no preciso momento em que Penha foi
sacudido por uma sensação de mergulho que o colou ao assento. Penha e os outros
passageiros. Fizeram soar-se alguns gritinhos e o ambiente a bordo tornou-se tenso.
(Um professor de economia disse que raramente chumbava um aluno, mas revelou que
já tinha uma vez reprovado uma turma inteira, por esta insistir que o socialismo
funciona: “Ninguém seria pobre e ninguém seria rico, tudo seria igualitário e justo”,
alegavam os alunos. O professor desafiou-os então para viverem uma experiência
socialista, mas ao invés de usarem dinheiro teriam de usar as notas das frequências. As
mesmas seriam atribuídas com base na média obtida pela turma, de forma a que fossem
justas e igualitárias. Resultado: a média dos primeiros exames situou-se em seis
valores. Quem estudou com dedicação ficou indignado, pois considerou ser merecedor
de mais, mas aqueles que não se esforçaram ficaram muito felizes com a nota. Aquando
do segundo exame, os preguiçosos estudaram ainda menos, pois contavam com as
notas dos outros. Contudo, aqueles que haviam estudado bastante para o primeiro
exame decidiram aproveitar-se também desta vez da média das notas. O resultado
baixou para cinco valores. É claro que ninguém gostou, sobretudo porque, no terceiro
exame, a média geral ainda baixou mais, para dois valores. Começaram as desavenças
entre os alunos à procura de culpados. A exigência de notas igualitárias e justas
transformou-se num motor de inimizade e de sensação de injustiça. Feitas as contas,
todos deixaram de estudar, pois não queriam beneficiar terceiros, pelo que a turma
inteira acabou por chumbar. A experiência socialista havia falhado, explicou o
professor, porque fundava-se no menor esforço possível dos participantes. É o que
acontece na sociedade. Quando metade de uma determinada população descobre de
que não precisa de trabalhar, pois a outra metade irá sustentá-la, e quando esta, a que
trabalha, percebe que afinal não vale a pena trabalhar pois está sustentar quem não
trabalha, chegamos ao fracasso de uma Nação)
De súbito, a aeronave entrou numa zona de ventos verticais e caiu como uma pedra
durante alguns segundos intermináveis até embater contra uma corrente de vento
ascendente. Foi como se tivesse colidido contra uma parede de tijolo. Pregado à cadeira,
Tiago virou a cara na direcção da janela embaciada e olhou para a asa. Estava a dobrarse lentamente para cima num ângulo assustador.
(Repara bem nesta cena. Há luzes a brilhar, multicolores, as batidas compassadas da
música de dança, que não sei bem se gosto ou não. Tenho alguns preconceitos nessa
matéria. Ideias estúpidas, se calhar susceptíveis de alguma irracionalidade. Mas tudo
bem. Agora repara! Lembro-me que estava a fumar. Claro! Ondas de fumo a enrolar146
me, assim como um santo círculo de protecção contra olhares alheios e investidas
indefinidas. Estou recostado no sofá, com um copo com uísque à minha frente, um
cinzeiro já cheio de beatas, e gozo. Cuidado com a expressão se se trata do Brasil, que
é o caso. Estamos a falar de privilégios, do estatuto de excepção e intocável de gringo.
Quer dizer, intocável como quem diz, pois não corresponde à realidade objectiva. É
excessivo e nalguns casos até pernicioso. Um bocado perigoso, percebes? Porque faznos perder a percepção do alcance desse poder. É que na verdade esta coisa de gringo
até é pejorativa. Significa alvo a abater; gajo de quem se pode tirar vantagem. Fica
esperto!, avisaram-me. É melhor vestir outra pele. A de gringo transformada na
bonomia respeitável da identidade lusitana. Que nestas terras conta muito. Para quem
sabe, como é óbvio. Estrangeiro traduz sempre a ideia de grana e estar a fim de
transar, de fazer programa, acima do pricing normalmente praticado. Sim, é evidente
que é preciso ficar esperto. Trezentos reais?! Hã, oi, está falando de quê? Pirou de vez,
cara? Que trezentos c’um caralho. Fodeu, né? Oi, menina, cento e cinquenta e já é um
valor legal. Cento e cinquenta? Cara, só saio por duzentos! E se fosse ali na casa ao
lado só me pegava por duzentos e cinquenta mesmo. Como é? Vai dar uma de esperto?
Que nada, apenas estou fixando o valor. Ai é, cara, é mesmo isso. Duzentos e você vai
ficar maluco! Duzentos?! Já falei para você: ali ao lado, você só pega menina por
trezentos, no mínimo. Mau! Primeiro eram duzentos, agora são trezentos e não topas os
cento e cinquenta? Você é português mesmo? Teu sotaque parece de argentino... Ou a
música está muito alta ou não entendes um caralho da língua portuguesa! Foda-se, isto
parece-te castelhano? E acendo mais um cigarro. Quantos já fumei? Quero lá saber.
Agora repara bem nesta cena. O cinzeiro está cheio de beatas, estou sem tesão, mas
curto aquela coisa do regateio. É como aquele baque marado de entrar numa casa de
alterne – alto! – aqui é boate. Exactamente. Que coisa é essa de – como você disse? –
alterne? Esquece miúda. Miúda?! Chamo o garçon. Estás a ver? Diz lá se não é gira
esta mistura de francês, inglês, português e dialectos indígenas? E aí, como é? Agito o
copo para o empregado. Já lhe tinha posto uma nota de vinte reais na mão mal entrei,
que me deu direito a sentar e a mandar sair uns paulistas sem grana daquele lugar, que
aqui sítio é coisa do campo, cena rural, mais a outra nota que deixei cair por milagre
no breve aperto de mão que troquei com o porteiro. E aí? Tudo em cima? Você já sabe
como é. Fica tranquilo. Por aqui, o povo todo já o conhece. Bacana! – disse eu, a
tentar converter na hora os vinte reais para euros para perceber a merda do dinheiro
que estou a gastar. O garçon traz novamente a garrafa do meu uísque e enche-me o
copo. Topas? Garrafa do meu uísque. Ah, pois é. Não é como essas merdas das casas
de putas em que te estampas em minutos. Aqui é coisa fina. E nada desses preços
absurdos. Gastas algum dinheiro, mas – foda-se, meu! – tá-se como um lorde. O garçon
troca o cinzeiro e inclina-se na minha direcção para segredar qualquer coisa ao
ouvido. Para segredar? Para gritar, com aquela música toda a bombar. Você é que
manda, patrão! Se a menina não agrada é só dizer. Tem aqui muita mulherada. Você
fala para mim: é aquela que eu quero e eu mando vir a menina até aqui, valeu? Fica
tranquilo, aqui você está em casa. Que coisa deliciosa. Nunca me senti em casa em
lugar algum. Ou devo dizer sítio? Aqui não, já te expliquei, aqui tem mesmo que ser
lugar. Oi! Sabes uma coisa? Não vai rolar, entendes?, grito eu no meio de todo aquele
mar de som e luzes, com bola de cristal e tudo, para a garota. Convém referir que à
minha frente existe uma espécie de passarela com mais de vinte mulheres praticamente
nuas a dançar, a maioria com os olhos postos em mim: olha aí, gringo com bala! A
mulher, moça, ou sei lá como as chamam, cuja cara ou qualquer outro pormenor não
consegui reter, acaba por se afastar. Finalmente! Dá um espaço, né! Agora posso
apreciar melhor a montra de sexo que dança à minha frente. Quer dizer, algumas até
147
dançam; as outras arrastam-se. Pedradas. Com uma moca tão grande que se lhes desse
um sopro espalhavam-se ao comprido na carpete. Trambolhão directo da passarela
para o chão. Dá para acreditar? Tanta mulherada praticamente nua à tua frente,
pronta para se vender por – quanto mesmo? – duzentos ou cento e cinquenta reais?
Divide por três e faz as contas em euros, mais coisa menos coisa. Sim, cinquenta euros
e estás a comer a gaja que quiseres. Gostas de mamalhudas? Peludas? Mulatas? Pena
que não haja asiáticas. Porque só te posso dizer, meu irmão: na cama, são foda. Come
uma japonesa e vem depois falar comigo. Se ainda não fodeste uma japonesa, meu,
esquece que eu existo. E repara que não é coisa de estereótipo. É sexo! Sexo, entendes?
De resto, se vens para aqui à procura de uma ficante esquece. Eu tive uma ficante, mas
a miúda era marada dos cornos p’ra cacete. É outra história. Fica para mais tarde. É
do caralho! A mulherada toda come-te com os olhos à medida que se pavoneia, com as
mamas de fora, algumas quase com a pachacha à mostra, em cima daquela porra, tipo
passarela improvisada. Uma mama para aqui, um fio dental para acolá, outra gaja de
tanga com os pintelhos de fora, outra com o rego do cu a bambolear-se à tua frente.
Junta-lhe a mordomia de gringo mas não gringo – topas? – por força dos reais que
foste espalhando entre a porta e o sofá onde estás sentado, o uísque, os cigarros – se
curtes fumar – e diz-me se o cocktail não é explosivo. Foda-se! Esta merda acorda a
pichota até de um cadáver. E repara que aqui não é esquema. As miúdas fodem mesmo.
Se quiseres, vais logo para a cabina. E aí espetas-te com os cento e cinquenta reais. A
merda é que fodes sentado ou de pé, por detrás de uma cortina, com o som todo a
bombar. Agora, se quiseres sacar a menina para o teu hotel, a conversa é outra. E aí
tens de ficar esperto, senão esfolam-te vivo. Olha só o que me aconteceu. Parado feito
estúpido na maior avenida de São Paulo com um puta aos gritos, a ameaçar-me de
morte a reclamar pelos seus devidos honorários. Aí fodi-me, porque estava sem grana
em moeda local. E o porco do chulo, proxeneta ou cafetão – que se foda! – do outro
lado do passeio, com um ar ameaçador, pronto para a mocada, que é o mesmo que
dizer facada, tiro ou sei lá. Aqueles caralhos são doidos. Matam tudo o que mexe por
uma merda qualquer. E aí tenho os gajos da Polícia Federal a pedirem-me a
identificação e a perguntar à puta qual era o problema. Afinal, qual era a natureza da
dívida? É claro que aí estás safo. Como é que a gaja vai explicar o assunto? Mas és um
grande otário se pensas que, com a Polícia Federal, estás em boas mãos. Só te digo
uma coisa: aqui, a tua vida vale um caralho! Okay, outra história. Já agora, e só em
jeito de aparte, nessa noite da cena da Polícia Federal, fiz o número de levar duas
gajas para o hotel. Que coisa mais marada! E sabes que mais? A miúda que foi a
reboque foi uma puta de uma foda. Que coisa mais quente! Feia p’ra cacete, com
ganchos no cabelo, sopinha de massa, sem mamas, mas a foder, meu irmão, vou-te
contar. Foi uma puta de uma surpresa. A preta que levei, e que pensei que seria a foda
da noite, montou-se em cima de mim e pôs-se com a merda de uns “ais, ais”, como se
estivesse numa audição para um filme porno de série E ou F – que inventei agora, só
para perceberes a merda que era. Mas quanto à outra, nem te vou falar. Agora é a
minha vez!, disse ela, saltando para cima de mim na cama, eu já brocheta – consulta o
dicionário da putice, versão brasileiro-português, e que vão todos para a puta que os
pariu aqueles que inventaram a porra do acordo ortográfico. Mas aquela pachachinha
ardente! Nem quero lembrar-me; ressuscita o maior brocheta do mundo. Com ganchos
ou sem ganchos no cabelo. Está tudo bem?, pergunta-me o garçon. Beleza!, disse eu,
ainda sem ter encontrado uma gaja daquelas tipo Boeing no meio daquela mulherada
toda. Continuei a emborcar uísque. Daqui a pouco, o brocheta não levanta nem um
pintelho, tenha a gaja ganchos ou não no cabelo e seja a foda do século. Continuei a
fumar cigarros, uns atrás dos outros, e a tentar apreciar, assim já com a vista meio
148
nublada, aquele monte de pêlos púbicos que dançava à minha frente. Escusado será
dizer que não me apetece descrever o ambiente que me envolvia, o aspecto do resto dos
clientes, o tipo de música que rolava, as cores dos projectores que iluminavam a sala,
enfim toda a merda que faria disto um romance. Agora repara! Fumo o meu cigarro,
que é foda, porque estou a fumar tabaco nacional brasileiro, que para aqui só vêm
cigarros americanos e poucos, vou beberricando o meu uísque de malte, que aqui dá
para ter esse luxo, e à minha frente, em troca de meia dúzia de euros, tenho quilos de
gajas que posso escolher para foder à vontade. Mas toma atenção: é importante o tipo,
a localização e o número de estrelas do hotel onde estás hospedado. No meu caso, as
gajas ficavam húmidas só de subir a escadaria do meu hotel de cinco estrelas na zona
mais cara da cidade. Bom, se não ficavam molhadas, ficavam pelo menos a escorrer
pelos dólares que poderiam sacar de alguém hospedado num lugar daqueles. Não é que
seja muito importante, mas não imaginas o número de gajas que ficaram o resto da
noite no quarto que eu ocupava e me davam o número do telemóvel, ou celular – em
brasileirês – para eventual futura prestação de serviços. Meu, até tive de comprar a
merda de um telemóvel brasileiro só para registar a catrefada de contactos pessoais
que as putas me davam e receber tantas chamadas das gajas. Ah, pois! Nada de
roaming. Senão é a doer. Estás marado ou quê?)
Estás marado ou quê?, repetiu a voz, mas Penha sabia que não era bem uma voz, mas
apenas o som desordenado da sua mente a fazer eco de memórias, de frases que tinha
lido, comentários que havia seguido, com paixão, com irritação, furibundo, extasiado,
enlevado, naquele site, naquele fórum na web que havia criado, farto dos nítidos nulos e
dos insucessos do webtracking, um espaço de discussão que depressa se transformou
num avatar de confissões, primeiro a uma voz, depois a muitas, que a popularidade do
sítio cresceu inesperadamente e atraiu multidões de penitentes em confissão, a busca do
sacramento da reconciliação para tudo o que é irreconciliável, a tão desejada subida aos
céus, até com relâmpagos e faíscas ou a possibilidade do paraíso já se ter despenhado,
talvez em Fátima, algures entre Valinhos, Aljustrel e a Cova da Iria, tantos nomes e
sempre a mesma peregrinação, para visitar as casas dos pastorinhos, e a Via-Sacra, e o
Calvário, e os locais das aparições, não de alienígenas ou de outras entidades biológicas
extraterrestres, mas de Nossa Senhora, o Anjo da Paz, Quereis oferecer-vos a Deus?,
grita-se no santuário, ao lado de um pedaço de betão do muro de Berlim, ali chegado
pelos bons ofícios de um emigrante português na Alemanha como “grata recordação da
promessa feita por Deus para derrubar o comunismo”, obra do demo e de Karl Marx,
que tanto se queria vingar daquele que governa lá em cima, mas acabou lá em baixo,
enterrado, numa catedral subterrânea, como as grutas de Mira de Aire, afinal ali tão
perto, do santuário e da subida aos céus, a viagem ao centro da terra, no País a que
Tiago estava prestes a regressar, a sua pátria e gloriosa nação, nação valente e imortal,
entre as brumas da memória, sobre a terra e sobre o mar, tudo à roda num remoinho,
com a poeira levantada pelo vento, e o som do pandemónio de trovões, e o bater do
granizo nas superfícies de metal do avião.
Houve momentos em que o aparelho parecia abrandar e ficar parado no ar. Mas Penha
acabou por desistir de tentar distinguir as subidas das descidas. Doíam-lhe os ouvidos
por causa das mudanças repentinas da pressão. E o corpo. E a alma. E o espírito. E tudo
o que fazia dele um ser vivo e racional. Porque a tempestade, a verdadeira tempestade,
não residia naquele cenário grotesco de faíscas arrancadas das profundezas das nuvens.
Mas na longa e desprezível farsa que havia sido a sua existência. Ainda se lembrava
bem, embora nunca o tenha revelado a alguém, daquele homem fardado de polícia que o
mandou encostar-se à parede, de costas voltadas para ele, e lhe agarrou a nuca com
149
força para lhe pressionar a cara contra a argamassa irregular no sopé do enorme edifício
de escritórios que Tiago sabia que se erguia acima dele.
— Fica quieto e cala a boca! — rosnou-lhe o militar, enquanto um outro, prostrado mais
atrás, na berma do passeio da avenida, mantinha o dedo de uma mão no gatilho de uma
metralhadora HK MP5 K apontada à cabeça dele e a outra sobre uma pistola, uma
Glock 18 também de nove milímetros, enfiada no coldre preso ao cinto. – Mãos na
cabeça! – voltou a ordenar o primeiro com um tom de voz ríspido, ao mesmo tempo que
tentava sacar de um par de algemas.
À volta dos dois agentes da Polícia Militar, havia-se juntado uma pequena multidão de
transeuntes, acotovelada, com olhares tão curiosos quanto assustados, enquanto assistia
com uma distância cautelosa, ditada pelo medo e uma cultura de violência, à detenção
daquele desconhecido em plena rua à luz do dia, no centro nevrálgico de São Paulo.
Uma ordem de prisão aparatosa porque parecia ser desproporcional, entre a atitude
submissa e passiva do visado e o alarde do uso de armas de fogo para o efeito. Acrescia
o SUV preto da PM, com vidros fumados e à prova de bala, imobilizado com o motor a
trabalhar a poucos metros do local, em cima da calçada. Lá dentro, viam-se vários
outros agentes, aparentemente em grande agitação.
Na estrada, com três faixas de circulação para cada um dos dois lados, o trânsito estava
completamente parado. Uma fila enorme de viaturas paralisadas no asfalto, em ambos
os sentidos, embrulhada num cogumelo ascendente de fumo e gases de combustível e
reflexos desiguais, de intensidade e direcção, da luz solar.
Um mupi digital com informações sobre a temperatura e a hora, plantado no piso
calcetado ao lado do segundo agente da PM, indicava de forma intercalada 13:34 e
42°C.
Penha meditava à velocidade da luz sobre o que havia de fazer. Mas não precisou de
muito tempo.
Ouviu-se o silvo de um projéctil e o homem fardado de polícia, que se preparava para o
algemar, tombou de joelhos e acabou por ficar estendido por terra. Havia sido atingido
na cabeça por uma bala. Uma mancha escura e viscosa começou a deslizar
vagarosamente pelas pedras da calçada e pelos pedaços de massa encefálica que, com o
impacto, se encontravam espalhados no passeio junto à parede do edifício, também
manchada com espirros de sangue. Seguiu-se o som de uma rajada de metralhadora. E
gritos. E troca de tiros.
Tiago atirou-se para o chão e sentiu uma dor forte nos cotovelos e antebraços pela
forma pesada com que se deixara cair. Uma nova rajada da HK MP5 K. Disparos vindos
do SUV. Alguns bursts. E a pequena multidão de pessoas a correr desordenadamente,
atropelando-se, tropeçando sobre corpos já sem vida. Na estrada, soavam baques
metálicos; viaturas a chocar umas contra as outras, o ronco dos motores em aceleração
máxima misturado com a chiadeira de pneus a escorregar sob o asfalto, incapazes de se
moverem. E mais uma turba de gente a saltar dos carros, em fuga, igualmente em
gritaria.
Até que lentamente as coisas começaram a sossegar. A bordo do DC-10 da Ibéria. À
medida que se fazia à pista de Barajas, em Madrid, deixando para trás, lá em cima nos
céus, o manto encrespado de nuvens. Agora só faltava o voo para Lisboa e o penoso
recontro com Maria Clara. A pen que Simão Saraiva lhe havia confiado permanecia
guardada no bolso das calças.
© Victor Eustáquio, Lisboa, Fevereiro de 2013
150