6. A formação do conceito de causalidade em David Hume

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6. A formação do conceito de causalidade em David Hume
V. 6, n. 1, 2012
A FORMAÇÃO DO CONCEITO DE CAUSALIDADE EM DAVID
HUME
Miguel Henrique Benetti Teixeira 1
Resumo
Esse estudo tem como objetivo reconstituir os passos do filósofo escocês David Hume
(1711 – 1776) na elaboração de sua ideia de causalidade, tendo como princípio a construção
da “ciência da natureza humana”. Para tanto, Hume se propõe a investigar as coisas que
compõem a mente humana, com base num empirismo tanto radical quanto original,
acreditando que todo o conhecimento se origina da experiência, questionando assim as
inferências causais e as conexões geradas através do nexo causal.
Palavras-chave: Ideias. Relações de fato. Causalidade. Filosofia Moderna.
Abstract
This study aims to trace the steps of the Scottish philosopher David Hume (1711 1776) in developing his idea of causality, based on the principle construction of the "science
of human nature." For this, Hume proposes to investigate the things that make up the human
mind, based on empiricism rather radical and original, believing that all knowledge comes
from experience, thus questioning the causal
inferences and
connections generated
through the causal relationship.
Keywords: Ideas. Relations in fact. Causality. Modern philosophy.
1 Aluno
de Filosofia do Centro
<[email protected]>.
Universitário
de
Araras
Dr.
Edmundo
UNAR (ISSN 1982-4920), Araras (SP), v. 6, n. 1, p. 73-80, 2012.
Ulson
–
UNAR.
TEIXEIRA, Miguel Henrique Benetti. A formação do conceito de causalidade em David Hume.
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Introdução
A filosofia de Hume foi, por muito tempo, vinculada ao ceticismo radical, e
erroneamente interpretada como ceticismo pirrônico. Seguindo seu espírito questionador,
Hume explica a crença causal como suposto de uma ciência da natureza humana desenvolvida
por ele, mostrando os limites que a razão não pode ultrapassar, por tratar apenas de
raciocínios dedutivos. Segundo Hume, o conhecimento adquirido mediante as inferências
causais apoiam-se em bases ilógicas, portanto inexplicáveis pela razão. Esse estudo tem como
objetivo expor a crítica que Hume faz ao sistema causal de explicação dos eventos e o
caminho que Hume percorreu para compor sua conclusão.
A nova ciência da natureza humana
Hume via no método experimental de raciocínio, os pressupostos necessários para
estabelecer uma ciência consistente a respeito da natureza humana. Desse modo, Hume, fiel
ao seu empirismo, acredita que todo o conhecimento é adquirido através dos sentidos. Com
ele, o empirismo cultivado pela tradição dos pensadores britânicos iniciado por Guilherme de
Ockham no século 14, atinge o seu auge, ao mostrar os limites inabaláveis que a natureza
impõe para o homem.
Os incríveis resultados alcançados pela ciência da natureza física de Newton pela
utilização do método experimental construiu uma visão confiável da natureza física,
estimulando Hume a construir também uma ciência, cujo foco não era mais o objeto, mas sim
o sujeito. Essa ciência humana com base no método experimental “[...] é a primeira ciência,
ou a ciência mestra. Todas as ciências, ou corpos de conhecimento admitidos, são obras do
entendimento humano” (QUINTON, 1999, p. 16).
Hume, por confiar na contribuição significativa desse método para todas as outras
ciências, comenta:
[...] não há nenhuma questão importante cuja resolução não esteja
compreendida na ciência do homem e nenhuma que possa ser decidida com
alguma certeza antes de nos tornarmos familiarizados com essa ciência. Ao
pretender, portanto, explicar os princípios da natureza humana está, com
efeito, propondo um sistema completo das ciências, construindo sobre uma
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fundação que é a única sobre a qual elas podem se erguer com alguma
segurança. (HUME apud QUINTON. 1999, p.18)
Hume se propõe a elaborar um sistema que servirá como base para todas as ciências de
sua época, Para que tal sistema funcione, Hume analisa a formação da mente humana e seus
respectivos objetos de estudo.
Impressões e ideias
A mente humana é formada por percepções. As percepções são “tudo aquilo que se
apresenta à mente humana e constitui seu conteúdo” (REALE, 1999, p. 135). Elas são
classificadas em duas classes: as impressões e as ideias. As diferenças entre essas duas classes
consistem entre os mais variados graus de força e vivacidade, o que separa essas duas classes
são os graus de intensidade e não a sua natureza que é a mesma.
As impressões são as que concentram os graus mais fortes de vivacidade, sendo tanto
as externas como as cores e sons, considerados como impressões de sensações e as impressões
internas como o amor, ódio, desejo que são classificadas como impressões de reflexões. As
impressões têm como principio o sentir, pois elas se apresentam imediatamente aos sentidos.
As ideias são formadas por impressões e possuem um grau de vivacidade menor em
relação às impressões. As ideias simples são facilmente identificadas com as suas impressões
originárias, mas essas ideias apresentam-se em outras formas, como por exemplo: as ideias de
imaginação que não tem nenhuma vivacidade, as ideias de memória que são mais vivas e
possuem forma e uma ordem, as ideias de expectativas que possuem o mesmo grau de
vivacidade das ideias de memória, mas são responsáveis em formar as nossas crenças causais.
Existe outro tipo de ideias que Hume irá chamar de ideias complexas, por ser uma
fusão de vários tipos de ideias. Por exemplo, um centauro seria a fusão de um homem com
um cavalo; porém, na realidade, essa ideia não se apresenta como impressão para o homem, é
ele que funde as ideias derivadas das impressões para criar ideias inéditas. Mas para Hume
isso acaba se tornando um problema, pois se torna difícil fundamentar essa ideia.
Ao estipular o princípio da ciência da natureza humana, Hume diz que todas as ideias
são derivadas das impressões. Nesse sentido, as ideias são dependentes das impressões
originárias. Para ele, as ideias são “[...] as faculdades de combinar, de transpor, aumentar ou
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de diminuir as matérias que nos foram fornecidos pelo sentido” (HUME, 1999, p. 36). As
ideias são subordinadas em relação às impressões e não devem ceder esses limites dados pela
natureza da mente humana.
Hume ao analisar as ideias complexas, percebe a existência de princípios associativos
que unem as ideias, dando origem às múltiplas ideias complexas que impossibilitam as suas
validações. Hume irá chamar esse princípio de principio associativo ou princípio de
associação.
O princípio de associação é o responsável pelas uniões de ideias formando assim as
ideias complexas. Essas uniões seguem tendências no espírito, pois essa conexão cria uma
unidade de ação. Assim “a natureza parece indicar para cada um as ideias simples mais
adequadas a serem reunidas em ideias complexas” (REALE, 1999, p. 136); esse processo de
seleção ocorre naturalmente e tem por base três propriedades associativas: a semelhança, a
contiguidade, e causa e efeito.
O principio da semelhança ou analogia tem o objetivo de unir as ideias por meio de
características comuns; o principio de contiguidade liga uma ideia a outra pela proximidade
no espaço e no tempo; e o principio da causa-efeito une as ideias através de sucessões
repetidas criando assim uma conexão entre as ideias. Esse último princípio é o que mais que
infere nas questões de fato e na vida humana, sendo acompanhado pela crença, que é na
verdade o que leva as pessoas a afirmarem coisas sem um cuidadoso exame da natureza do
objeto.
Esse princípio associativo parte da impressão de um objeto ainda presente ao espírito,
conferindo-lhe nova vivacidade. Essa transmissão de vivacidade torna possível a proximidade
entre a impressão da causa e a ideia do efeito, criando assim a crença causal em relação aos
objetos. A crença cria assim “uma concepção mais vivaz, vivida, forte, firme e estável de um
objeto” (HUME apud MONTEIRO, 2003, p. 17).
A causalidade deriva da conjunção constante de objetos, e a disposição humana deixase afetar pela repetição de ideias, na mesma medida que os princípios de associação de ideias.
Isso leva à interferência dos princípios associativos da mente na vida prática do individuo,
fazendo-o associar também relações de fato, de modo a criar conexões inexistentes, dando
assim saltos lógicos que a experiência não permite.
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Relações de ideias e relações de fato
Antes de adentrarmos na critica que Hume faz ao conceito de causalidade, é preciso
ter em mente os objetos da investigação humana e como eles se relacionam. Hume faz a
distinção em dois gêneros: as relações de ideias e as relações de fato.
As relações de ideias são todas as proposições que operam com conteúdos ideais, sem
levar em consideração se existem ou não, como por exemplo, a geometria, a álgebra, a
aritmética, que operam de maneira perfeita, baseadas no principio da não contradição. As
relações de fato operam a partir de fatos ou fenômenos reais, sendo suscetíveis à contradição,
e suas inferências não são dadas a priori e necessitam da experiência para validar suas
conclusões.
O problema que Hume encontra é o seguinte: como estabelecer uma conexão
necessária entre os fatos? Para isso seria necessário encontrar uma relação intrínseca entre os
fatos ou uma ligação inexorável. Já que a razão nada pode afirmar a priori porque os seus
raciocínios só são validos dedutivamente, então outro problema se impõe: qual é a evidência
acerca dos objetos que me permite afirmar o que ocorrerá com ele antes da experiência? O
que incomoda Hume é que com ou sem tal evidencia, os homens não deixam de fazer
inferências causais que transcendem a realidade empírica.
O filosofo via que todos os nossos raciocínios sobre questões de fato fundavam-se na
relação de causa e efeito. Devido a essa relação, o homem se lança além de seu momento
atual, de sua memória, e dos seus sentidos, mas isso resulta em juízos equivocados sobre a
experiência, que tornam o homem um escravo do hábito.
Crítica à causalidade
A crítica que Hume faz aos princípios associativos, principalmente o princípio de
causalidade, tem como base o questionamento de uma conexão necessária funcionando nas
relações de fato. Para Hume, o raciocínio a respeito da realidade empírica, da realidade fatual
só funciona através de dedução. A mente humana não se limita aos fatos, mas cede a uma
tendência de ultrapassar a experiência sensível. A racionalidade acaba sendo nesse ponto
insensível a repetições, que constitui as inferências causais. “Assim, se quisermos nos
convencer quanto à natureza dessa experiência que nos dá garantias sobre questões de fato,
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devemos investigar como chegamos ao conhecimento de causas e efeitos” (HUME apud
QUINTON, 1999, p. 25)
A investigação sobre a natureza da causalidade é muito importante para compreender a
mente humana e seu modo de interpretar o mundo. Como vimos anteriormente sobre as
relações de ideias e as relações de fato, para Hume, inexiste o principio de não contradição
nas relações de fato. Tal princípio só existe nas relações de ideias (na geometria e na
aritmética) e é responsável pela conexão necessária entre os elementos abstratos. Mas, na
realidade empírica, o resultado é outro, como diz Wittgenstein (apud MONTEIRO, 2003,
p.132): “fora da lógica, tudo é acaso”. Hume, a título de exemplo, afirma que o movimento da
bola preta não pode ser deduzido do fato de a bola branca ter batido nela; em outras palavras,
não podemos dizer que o evento B (movimento da bola preta) foi causado pelo evento A
(toque da bola branca), pois nós não observamos a conexão causal entre os dois eventos, só
observamos uma sequência de eventos isolados. Hume conclui que os objetos existentes na
realidade empírica são distintos entre si, desacreditando em qualquer ligação que possa existir
entre os objetos.
Hume não pretende alterar ou acrescentar à palavra razão qualquer característica nova,
a fim de resolver o seu problema com a crença causal. No seguinte trecho, João Paulo
Monteiro explica essa ideia de Hume:
Hume não chegou propriamente a redefinir essa faculdade, nem
tentou produzir um novo conceito de razão. Limitou-se a destronar a razão
clássica, privando-a de sua posição soberana em filosofia, o que não foi
pequena proeza – mas nunca sugeriu qualquer mudança profunda no
conceito desse mesmo poder dedutivo (MONTEIRO, 2003, p. 43).
Sendo assim, Hume tira a razão clássica de seu lugar onde foi colocada, pois para ele,
a razão não podia fundamentar as inferências causais ou indutivas, sendo preciso existir outro
elemento para nos conduzir às inferências causais. Porém, qual é esse elemento no qual as
inferências causais se fundamentam?
[...] só a experiência, portanto, permite-nos inferir a existência de um
objeto a partir da existência de outro, a natureza da experiência é esta:
lembramo-nos de ter observado frequentes exemplos da existência de uma
espécie de objetos, e lembramo-nos também de que os indivíduos de outra
espécie de objetos sempre os acompanharam e sempre existiram seguindo
uma ordem regular de contiguidade e sucessão com relação a eles. (HUME
apud QUINTON, 1999, p. 28).
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Só raciocinamos a priori quando já estamos familiarizados com o objeto de estudo, e
através da experiência formulamos conceitos que determinarão os resultados antes que os
sucessivos eventos ocorram. Segundo Monteiro (2003), a possibilidade de inferir
indutivamente a partir de experiências singulares, desde que afastando o que é estranho e
supérfluo, e acrescentando um principio geral (tal como o principio newtoniano que diz que
das causas similares esperamos efeitos similares), criamos uma conexão causal entre os
objetos.
Hume via ainda um problema em relação à experiência, o de que a justificação era
simples e primária para inferir algo indutivamente. Para Hume era preciso existir outra
faculdade que fundamente a experiência. Essa faculdade se chama costume ou hábito, e se
origina das várias repetições de um ato sem ser impelida por algum raciocínio ou processo do
entendimento. O hábito é a faculdade mais sensível a repetições, e, portanto a mais adequada
para formular princípios indutivos. Algo se torna hábito, a partir do momento que as
repetições de um objeto ou de eventos semelhantes operam sem nenhum critério racional. O
hábito serve de fundamento para a experiência e, por extensão, oferece uma base para a ação
humana.
Conclusão
Ao longo do texto vimos que o propósito de Hume em criar uma “nova ciência da
natureza humana” era de avançar o progresso de sua época, desenvolvendo uma ciência onde
o foco de estudos não era mais o objeto e sim o sujeito. Esse estudo abrange os componentes
que formam a mente humana e seus objetos do conhecimento. Com sua crítica em relação à
causalidade, Hume tira o lugar de prestigio que a razão clássica ocupava, principalmente no
iluminismo ao introduzir o hábito como guia para a ação humana. Sem este guia o ser humano
permaneceria numa profunda inércia, ignorando as faculdades naturais para a produção de um
efeito, seria o fim de todo agir humano. As contribuições que a filosofia humeana deu ao
longo da história da filosofia foram gigantescas, como por exemplo: a formulação do sistema
transcendental de Kant, tanto no seu método de analise do sujeito, como na divisão da razão
pura e razão prática. Até em nossos dias vemos a influência da filosofia humeana na crítica da
ciência feita pelo filósofo Popper com a sua teoria da falseabilidade.
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Referências
HUME, David. Investigações acerca do entendimento humano. São Paulo: Abril Cultural,
1999. (Os pensadores).
MONTEIRO, João Paulo. Novos estudos humeanos. São Paulo: Discurso Editorial, 2003.
QUINTON, Anthony. Hume. São Paulo: UNESP, 1999.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: vol.4: de Spinoza a Kant. São
Paulo: Paulus, 1999.
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