Carta intestata Cityforum

Transcrição

Carta intestata Cityforum
Roma, 22 de janeiro de 2000
Discurse na ocasião
do cidadão honorário de Roma
a Chiara Lubich
Senhor prefeito, Presidente de cidade honrado do Conselho, conselheiros Honrados e vereadores,
Presidente Prodi, Eminências, Mensageiro Apostólico, Representante da Sugestão Pontifical para os
Leigo, ecclesiali de Autoridade, civil, acadêmico, Excelências, Autoridades civis e religiosas,
Senhoras e senhores, prezados amigos.
De hoje em diante sou cidadã romana. O fato é que me sinto pequena e insignificante
perante esta cidade, que não sei definir, tão especial é, riquíssima de história, de arte e de cultura, de
bênçãos, porque encerra – como um cofre precioso – o coração palpitante da vida cristã universal.
Sinto-me insignificante perante certas personalidades que receberam antes de mim
semelhante honra, embora eu saiba que foi sobretudo um dom de Deus, um carisma e com ele o
Movimento dos Focolares, de dimensões mundiais que dele nasceu, que terão atraído a atenção dos
administradores de Roma.
Contudo sei que Madre Teresa de Calcutá, uma grande amiga minha, homenageada e com
razão com a cidadania romana, está aqui a meu lado.
Roma é indefinível, porque real e misteriosa ao mesmo tempo; Roma, com a sua fisionomia
muito especial, recebe também a mim entre os seus cidadãos.
E é justo e inevitável, embora difícil, tentar dizer hoje alguma coisa acerca dela, ou seja,
relembrar pessoalmente e todos juntos alguns acontecimentos relacionados com ela e que também
nós pudemos testemunhar.
Evocarei alguns acontecimentos importantes, do pós-guerra até hoje, de ordem política e
civil, relativos à Igreja local e universal, mas também às perspectivas atuais que se abrem para o
mundo inteiro e que já são importantes para demonstrar a “vocação” única de universalidade e de
unidade desta cidade.
Lembro por exemplo o dia 25 de março de 1957, quando foi assinado em Roma o
Tratado que instituía a Comunidade Econômica Européia e foi estipulada uma convenção que
previa a instituição do Parlamento Europeu.
Da cooperação passava-se para a integração, que implicava uma unidade inicipiente não só
no campo econômico, mas também no campo político, cultural, etc. Uma semente que tornou
possível o desenvolvimento de uma rede de alianças e de trabalho em vista da casa comum: a
Europa unida, que para nós já é uma realidade.
Recordo o dia 25 de janeiro de 1959, quando João XXIII, na Basílica de São Paulo fora
dos Muros, anunciou o Concílio Vaticano II, retomando o hino: «Ó Roma feliz, que, consagrada
pelo glorioso sangue dos dois Apóstolos, resplandeces sempre com uma beleza incomparável». E,
depois de ter citado a carta do Apóstolo dos gentios aos romanos, prosseguiu: «Os romanos de
todos os tempos são honrados por um privilégio que, pelo fato de distingui-los dos outros povos, os
compromete ainda mais face ao mundo inteiro a colaborar na oração e na sincera profissão de fé».
Também me lembro do dia 10 de outubro de 1962, a véspera da abertura do Concílio,
quando o Arcebispo de Milão, Giovanni Battista Montini, deu uma conferência no Capitólio,
intitulada: “Roma e o Concílio”: «Passa-se entre Roma e o Concílio Ecumênico Vaticano II um
fenômeno de reconhecimento mútuo (...) – afirmou. É a aproximação de duas realidades, que têm
estranhos traços de respectiva correspondência, de semelhança e de distinção. (...) Nós mesmos
estamos vivendo essa realidade ao falarmos de Roma no monte famoso do Capitólio, que
simbolizou nos séculos passados a força e a glória de Roma». E acrescentou: «Não dizemos nada de
original ao recordarmos que sobrevive uma outra Roma, situada em outro plano, a Roma da fé
católica (...). É uma Roma que perdura por si mesma. A Roma eterna: não só a Roma dos
imperadores, mas também a dos Apóstolos».
Eleito depois Papa, ao longo dos anos Paulo VI voltou a falar diversas vezes de Roma e
da “inesgotável meditação” que ela suscita. Definiu-a cidade “única no mundo”, “coração da
Igreja”, objeto de um “desígnio imenso, dinâmico e misterioso”. Roma tem uma “vocação
humana e cristã”, porque nela se unem e se integram duas cidades, a cidade terrena e a cidade
celeste, com as duas respectivas sociedades.
E em julho de 1978, menos de um mês antes de sua morte, Paulo VI sintetizou ainda o
seu conceito de Roma com estas palavras: «Roma é a unidade. (...) Roma fala ao mundo de
fraternidade, de concórdia e de paz. E nós vamos procurar ser coerentes aderindo da mesma
maneira à vida civil e espiritual de Roma, à sua função superior de ser promotora da sua
prerrogativa primordial, que é ser um símbolo vivo da unidade do gênero humano».
Não se pode esquecer que em 1989 Mikhail Gorbachev, num discurso no Capitólio
centralizado não só em aspectos políticos e sociais do momento, mas também em aspectos
humanísticos e espirituais, perante as máximas autoridades do Estado italiano, disse entre outras
coisas: «A solução (para os desequilíbrios do mundo de hoje e para certas ameaças do progresso
técnico e científico)… A solução está na espiritualização da vida, na revisão do comportamento
do homem em relação à natureza, aos homens, a si mesmo».
E chegamos a João Paulo II.
Ele, seu bispo, definiu a Igreja de Roma como: «o que tenho de mais meu e de mais
querido: a Roma apostólica, com os seus incomparáveis tesouros de caridade cristã, mas também
com os seus mil fermentos e os seus problemas».
Há dois anos, a 15 de janeiro de 1998, fez uma visita histórica ao Capitólio e foi a «ocasião
para um balanço retrospectivo e ao mesmo tempo um estímulo para elaborar um projeto comum
para o futuro», como disse.
O nosso Prefeito – e digo nosso, porque agora é também meu –, nas palavras de boas-vindas
dirigidas ao Santo Padre, recordou que no Capitólio – isso é simpático – estão guardados os
documentos do recenseamento que Tertuliano afirmou ser um «texto fidelíssimo da natividade de
Nosso Senhor» e que precisamente deste lugar partiram as disposições que levaram Maria e José a
viajar até Belém. E acrescentou, a propósito desta cidade, que «é muito difícil dividir em dois o
destino de Roma».
No seu discurso, João Paulo II, por sua vez, afirmou que no «lugar, que evocava
fortemente a história e a magnificência de Roma», tinham convergido «a Roma civil e a Roma
cristã, não contrapostas, não alternativas, mas reunidas, no respeito pelas diferentes
competências, pela paixão por esta cidade e pelo desejo de que ela fosse um exemplo para o mundo
inteiro». E concluiu assim: «Roma, cujo nome lido ao contrário é Amor, Amor. Como diz um
poeta polonês: "Se dizes Roma, responde-te Amor”».
É a este propósito que eu queria fazer uma minha pequena e breve consideração.
Também a mim, embora tenha conhecido apenas recentemente esta última frase do Papa,
Roma sempre recordou o que está escrito no seu nome e o que encerra intimamente: o amor, o amor
verdadeiro.
Eu, nós, membros do Movimento dos Focolares, desde 1949 estamos em Roma.
Um artigo que escrevi nesse ano para o jornal A estrada, dirigido pelo deputado Igino
Giordani, intitulado “Ressurreição de Roma”, dizia com clareza como eu via nessa altura esta
cidade. Começava mais ou menos assim: «Se vejo Roma assim como é, sinto o meu Ideal (que é
reacender o fogo do amor de Cristo no mundo) distante, assim como está distante o tempo em que
os grandes santos e os grandes mártires emitiam eterna luz, iluminando inclusive as paredes dos
monumentos que ainda se erguem, testemunhando o amor que unia os primeiros cristãos. Enquanto
agora, num estridente contraste, imperam o frio e o mundanismo».
E ali eu exprimia o forte desejo de ajudar os seus responsáveis, juntamente com outros
grupos e Movimentos suscitados por Deus, a levar o fogo do amor divino às suas casas, pelas
suas ruas, aos lugares de estudo e de trabalho, ao Parlamento, a toda a parte.
Creio que a minha era – como se diz hoje – uma espécie de “vocação na minha vocação”
mais vasta: ajudar a Igreja a realizar no nosso planeta a unidade, o “que todos sejam um” de Jesus.
De fato eu, naqueles anos, teria desejado que muitas das nossas forças fossem usadas para
espalhar por Roma o fogo do amor. Mas o plano divino sobre nós era outro.
O projeto de uma Obra de Deus está no Céu, como a partitura de uma música que depois é
executada na terra. E Deus quis, em todos estes anos, que nos difundíssemos por todo o planeta e
tecêssemos uma rede de amor entre pessoas de muitas nações, de raças diferentes, de todas as
línguas, de todas as denominações cristãs, que têm em comum conosco o batismo, e não só, e de
várias religiões, contando muito com a famosa “Regra de ouro”, semente do Verbo, referida não só
no Evangelho mas também nos livros sagrados das religiões mais importantes do mundo e que diz
assim: «Faça aos outros o que gostaria que os outros lhe fizessem» ou «não faça aos outros o que
não gostaria que os outros lhe fizessem». Ambas são sinônimo de: ama, ama o próximo.
E Deus nos impelia a tecer uma rede de amor também com pessoas de qualquer
convicção, mesmo sem um ponto de referência religioso, homens e mulheres de boa vontade, que
procuram salvar os valores humanos nas suas vidas e trabalham para que sejam praticados na
sociedade.
Assim vimos nascer, se desenvolver e difundir “um povo” (como o Santo Padre gosta de
ver e de definir o nosso Movimento, comparando-o com algumas nações que têm mais ou menos o
mesmo número de pessoas)… Vimos nascer, se desenvolver e difundir um “povo” em todas as
nações, silencioso mas decidido a viver a sério o Evangelho e a inundar com a sua luz e com a
sua força todos os âmbitos da vida humana: político, econômico, cultural, artístico, educacional, da
medicina, do direito e outros.
Tudo isso para contribuir a edificar no mundo, com a fraternidade universal, uma
civilização nova: a civilização do amor.
Mas Roma, logicamente, não parou.
Com os anos pude ver esta cidade ressurgir e reluzir pouco a pouco com o seu
esplendor, graças aos esforços feitos em todos os ambientes, em cada bairro, sob todos os aspectos,
por autoridades civis respeitáveis e competentes, e graças ao esforço de muitas autoridades
religiosas, santas e zelantes em animar cada vez mais intensamente as respectivas comunidades; e
de muitos romanos, que também se tornaram protagonistas da própria renovação. De forma que já
não se reconhece mais a Roma de antes, sobretudo hoje, também graças às obras públicas de
restauração e etc. para a alegria dos numerosos peregrinos do mundo que a visitam e a
visitarão neste ano jubilar.
Claro, como em todas as coisas da terra, as sombras não podem faltar e se pode sempre
melhorar para responder a novas situações, a novos problemas que a própria evolução da
convivência cria, a fim de fazer brilhar ainda mais a fisionomia inconfundível da cidade.
Por isso eu gostaria de que, ao acontecimento de hoje, que diz respeito ao Movimento
dos Focolares e à minha pessoa, correspondesse um empenho da nossa parte: dedicar-nos de
hoje em diante a esta cidade, mais e melhor.
Eu gostaria de potencializar nela o que o nosso carisma pode oferecer: o amor, a unidade, a
unidade entre todos, em todo o lado.
Gostaria de que, através do exemplo e da palavra, muitos aprendessem o que é “saber
amar” porque, como diz um filósofo: «Amar é um bem. Saber amar é tudo».
Sim, “saber amar”, porque o amor cristão é uma arte e é preciso conhecer essa arte.
Um grande psicólogo do nosso tempo afirmou que «A nossa civilização muito raramente
procura aprender a arte de amar e, apesar da desesperada busca de amor, considera mais importante
todo o resto, como o sucesso, o prestígio, o dinheiro, o poder. Empregamos quase todas as nossas
energias para alcançar estes objetivos e quase nenhuma para conhecer a arte de amar».
A verdadeira arte de amar emerge totalmente do Evangelho de Cristo.
É o primeiro passo imprescindível, que podemos dar, para desencadearmos aquela revolução
pacífica, mas tão incisiva e radical que muda tudo; é o segredo daquela revolução de amor que fez
com que os primeiros cristãos invadissem o mundo conhecido naquele tempo.
É uma arte exigente, com fortes requisitos. Ao relembrá-la hoje, gostaria de oferecê-la à
atenção de todos como um pequeno presente, como uma pequena flor, para que, se desejarem,
possamos nos ajudar a difundi-la por toda a parte em Roma; para que Roma seja para o mundo
aquele braseiro de fogo e de luz que tem mesmo que ser, se deve cooperar para reconduzir o mundo
à unidade.
É uma arte que exige que se ultrapasse o horizonte restrito do amor simplesmente
natural, dirigido em geral quase exclusivamente à família e aos amigos.
Este amor deve ser endereçado a todos: ao simpático e ao antipático, ao bonito e ao feio, ao
meu compatriota e ao estrangeiro, da minha religião ou de outra, da minha ou de outra cultura,
amigo, adversário ou inimigo. Temos que amar a todos como faz o Pai Celeste, que manda o sol e a
chuva sobre os bons e sobre os maus. Assim.
É um amor que nos faz ser os primeiros a amar – e isto é forte –, sempre, sem
esperarmos que nos amem, como fez Jesus Cristo, que, quando nós ainda éramos maus e portanto
indignos de seu amor, deu a vida por nós.
E é um amor que considera o outro como a si mesmo, que vê no outro um outro si
mesmo. Gandhi dizia: «Tu e eu somos uma coisa só. Não posso te machucar sem me ferir».
Este amor não é feito apenas de palavras ou de sentimentos: é concreto.
Exige que nos façamos um com os outros, que “vivamos” de certa maneira “os outros”,
participando dos seus sofrimentos, das suas alegrias, das suas necessidades, para compreendêlos e ajudá-los eficazmente.
Esta arte quer que amemos Jesus na pessoa amada. Ainda que o nosso amor seja dirigido
a uma pessoa específica, o que é certo é que Ele, Cristo, considera feito a Si tudo o que de bom ou
de mau fizermos às pessoas. Ele o disse e repetiu ao falar da cena grandiosa do juízo final: «A Mim
o fizestes» (cf Mt 25, 40).
Por fim, esta arte de amar, vivida por diversas pessoas, conduz ao amor recíproco: na
família, no trabalho, nos grupos, na sociedade; amor recíproco, pérola do Evangelho, “mandamento
novo” de Cristo, que constrói a unidade.
Excelências, senhoras, senhores e amigos, se ainda não for assim, que Deus inflame a todos
com o verdadeiro amor! É a coisa mais valiosa! Sem o amor, tudo perde o sentido, até saber a
língua dos anjos – como diz São Paulo -, até dar tudo aos pobres, até dar o próprio corpo às chamas.
O amor é a vida do mundo.
Temos o ardente desejo de que, quem olhar para Roma, possa dizer dos seus cidadãos
o que se afirmava dos primeiros cristãos: «Vede como se amam e estão prontos a morrer uns
pelos outros!», porque é com palavras como estas, vividas, que a nossa cidade poderá receber a
coroa digna da sua altíssima vocação.
É graças a esse amor extremo e radical que ela poderá ser uma testemunha luminosa
do Único que pode realizá-la plenamente no plano espiritual e, porque Homem além de Deus,
também – através dos seus filhos – no plano humano e social.
Obrigada, senhor prefeito.
Agradeço às autoridades civis e religiosas, agradeço a todos os que estão aqui por este dia e
pelo dom que ofereceram hoje a mim e a nós.
Que o Senhor nos faça dignos de corresponder.
Chiara Lubich

Documentos relacionados