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Pulsional 173.B.p65
pulsional > revista de psicanálise >
ano XVI, n. 173, setembro/2003
escutando com o terceiro ouvido
percebe que já não existe um abismo entre ele e seu paciente.
Lytton Strachey contou-me, certa vez,
como tinha abordado sua magnífica biografia da Rainha Victoria. Estudando a
infância da jovem Rainha, ele não tinha
gostado muito dela. Ele a via como uma
menina mimada, excessivamente segura
de si e demasiado equilibrada. De início,
tratou dela com certo distanciamento
irônico e com pouca simpatia. À medida
que estudava sua vida e começava a
compreender melhor a personalidade
dela e as condições que ajudaram a
moldá-la, sua simpatia ia aumentando.
>70
No final, quando fala dos últimos anos da
Rainha, sente-se um genuíno calor humano, apreço e admiração por uma personalidade marcante. Ele começou com
pouco afeto por seu sujeito e terminou
praticamente apaixonado pela velha senhora.
Ao ouvir esses jovens analistas outro dia,
quando falavam de seus primeiros pacientes, fiquei pensativo e disse para mim
mesmo: “Nenhum homem tem tanto
amor”. Mas confio neles. Vão viver e
aprender. Vão aprender, entre outras
coisas, que a compreensão simpática não
marca o início da análise, mas seu final.
C l í n i c a Dimensão
Dando continuidade às suas atividades de 2003,
a Clínica Dimensão convida para:
CICLO DE PALESTRAS EM PSICANÁLISE III
6 o Encontro, di
as 19 e 20 de setembro
dias
Tema: A VIDA NA BERLINDA.
POLÍTICAS DA SUBJETIVIDADE NO CONTEMPORÂNEO
Docente: Sueli Rolnik (SP)
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Filme: Fale com ela
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> panorama
Maria Cecilia Garcez
O divã no altar
O artigo pretende refletir sobre a relação da psicanálise com a religião, suscitada a partir
da experiência clínica de atendimento psicanalítico dentro de uma instituição religiosa.
Embora o discurso psicanalítico seja radicalmente antinômico ao discurso religioso, a
aproximação de ambos vem possibilitar uma série de questionamentos que visam ampliar
a discussão sempre atual sobre o lugar do analista.
> Palavras-chave: Psicanálise, religião, clínica psicanalítica, cultura, atualidade
questionamentos.
Certamente esta situação nos remete para
um “além” de uma proximidade física,
embora esta mesma proximidade seja um
convite a se pensar do lugar em que se
encontra o analista para diferenciá-lo do
lugar que opera a religião.
Uma vez que o sujeito é sempre o mesmo
sujeito, pois não há dois sujeitos, tanto
aquele que procura o padre como aquele que procura o analista é o sujeito que
sofre e que busca alguma saída para lidar
com a sua dor.
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ano XVI, n. 173, setembro/2003
O título deste artigo ”O divã no altar” surgiu causado pela surpresa, e achei por
bem aceitá-lo uma vez que reflete a própria experiência, ou seja, a situação muito pouco comum, para não dizer até polêmica, da psicanálise se realizar dentro
de uma igreja. Foi assim, às voltas com
estes dois significantes que representam
a psicanálise e a religião, onde encontramse na sacristia tanto os fiéis que aguardam
a chamada do padre para a confissão
como os que esperam pelo analista, que
me vi instigada a trazer à tona alguns
panorama p. 71-78
This article proposes a reflection on the relationship between psychoanalysis and
religion, stimulated by a clinical experience of psychoanalytic care in a religious
institution. Although psychoanalytic discourse is radically antonymic to religious
discourse, an approximation of the two makes it possible to broaden the ever pertinent
discussion on the analyst’s place today.
> Key words: Psychoanalysis, religion, psychoanalytic clinic, culture, current problems
>71
panorama
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A pergunta inicial poderia ser a de se pensar se há uma diferenciação da demanda
daquele sujeito que busca uma igreja
para aquele que procura um analista no
seu consultório particular. Sem dúvida,
um bom encaminhamento pode facilitar
a questão da construção de uma transferência, mas isto em nada garante que não
haja obstáculos tão difíceis de manejar
como o que ocorre na clínica atravessada pela instituição.
Se concebermos que a psicanálise trata
de uma “clínica do particular” não há
como definirmos uma clientela sem correr o risco de cometermos generalizações
preconceituosas que fogem totalmente
da concepção de que “cada um é um” e é
sempre da ordem do particular que a escuta do analista se dirige. Assim, poderíamos pensar que, se há a presença de um
analista que escuta e opera no seu lugar
e se há um sujeito que lhe endereça seu
sintoma, a possibilidade de que ali ocorra uma análise já está estabelecida. Não
seria a oferta que cria a demanda, como
nos aponta Lacan, uma vez que a procura é sempre da ordem do equívoco?
A questão seria saber se esse sujeito está
em busca de um saber Divino que o alivie
de seu sofrimento, sem que com isto tenha que se implicar com seu sintoma, ou
se à medida que dirige sua palavra ao analista, e não mais ao padre, não estaria dizendo que do seu sintoma algo lhe escapa produzindo um conflito do qual não
encontra saída.
Pelo que podemos observar na própria
experiência, há algo que já falhou e que
a religião não dá mais conta. Neste sentido a posição do sujeito que se apresenta
ao analista já é marcada por um reconhe-
cimento dessa falha, desse furo que o
próprio sintoma vem apontar.
Freud, em “O futuro de uma ilusão”, deixa claro que a saída do sujeito pela religião é da ordem de uma negação. Reconhece que as idéias religiosas possuem
um incomparável poder de influência na
humanidade uma vez que oferece proteção contra o desamparo e promete felicidade. No entanto, ao contrário do que se
pensa, nos diz que a atitude do sujeito
que busca a religião, não é de submissão,
muito menos de reconhecimento de sua
insignificância diante do universo, mas
justamente o contrário: o que acontece é
uma não aceitação desse fato e por isto
busca um “remédio” para o seu desamparo (Freud, 1927, p. 46).
Neste célebre escrito de 1927, Freud faz
uma crítica radical frente à religião e seus
efeitos de inibição e atrofia intelectual, na
qual revela sua posição francamente otimista em relação ao “saber científico”.
Cinco anos mais tarde apresenta, numa de
suas últimas conferências, um estudo no
qual aponta que por trás de todo saber há
uma “concepção de mundo” coerente,
uma Weltanschauung, que tem por fim
solucionar “todos” os problemas da existência humana, oferecendo respostas a
“todas” as perguntas. Assim, a posse de
uma determinada Weltanschauung representa a existência de um saber do que
se quer alcançar, propiciando desta forma uma uniformidade para a explicação
do Universo.
A importância desta conferência para a
nossa discussão é a possibilidade de se
pensar de que lugar a psicanálise opera e
diferenciá-la da Weltanschauung religiosa. Freud defende categoricamente a
panorama
que ficaria assim denegada. O sujeito ficaria então capturado por um saber totalizante, preso numa posição de submissão
a um Outro a quem se oferece como objeto de sacrifício e ao qual acredita ter
que seduzir para se desculpabilizar (Lacan, 1965-1966, p. 886).
Para a psicanálise, a dimensão da verdade como causa é colocada como ponto
central de onde parte o princípio de que
há uma separação, um corte radical entre
o sujeito e o saber, à medida que “sou
onde não penso e penso onde não sou”.
Isto não implica que mesmo sendo o sujeito determinado pelos significantes que
o representam não seja responsável por
isso que o causa. Responsabilidade implica em se permitir aceitar aquilo que lhe
causa, em não resistir ao seu desejo e
que possa abandonar a ilusão de um
todo que irá lhe completar. Lacan afirma
que a verdade se refere ao objeto “a”, e é
desse lugar, de semblante do objeto “a”,
que o analista poderá operar interrogando o que há de verdade no saber. É como
causa de desejo que o analista terá uma
função. E, por operar desse lugar, será
necessário que suporte ser testemunha de
uma perda à medida que sabe da impossibilidade desta falta ser tamponada por
qualquer objeto.
Um profundo mal-estar na nossa atualidade faz surgir, na virada do século, uma
exacerbação da religiosidade como um
sintoma social. Os efeitos são verificados
por todos nós: religiões se multiplicando,
guerras religiosas levando a catástrofes e
atos bárbaros que alertam ao mundo sobre os possíveis caminhos do fanatismo
religioso. A psicanálise produz um saber
sobre os mecanismos da cultura e sua
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Weltanschauung científica como sendo
superior a todas as outras que não visam
o conhecimento sustentado pela elaboração intelectual, mas sim por derivados do
que ele chama “revelação”, “intuição” e
“adivinhação” (Freud, 1933, p. 194).
A psicanálise é então situada como um
saber que aceita o saber científico, uma
vez que se originou daí, mas que não possui uma Weltanschauung própria, não é
capaz de abranger tudo, é muito incompleta, não pretende ser auto-suficiente e
muito menos construir sistemas. Podemos
notar a relevância, dada por Freud, ao reconhecimento de um saber que não pretende dar conta de tudo, que se situa justamente no lugar da incompletude, da falta.
Lacan parte daí para produzir seu escrito “Ciência e verdade” e leva adiante a discussão sobre as diferentes posições que
o sujeito ocupa diante da verdade na ciência, na psicanálise, na magia e na religião.
O texto gira em torno da verdade como
causa e dá a este conceito um estatuto de
fundamental importância à medida que é
a causa que tanto irá separar como propiciará a articulação dos saberes em
questão.
A questão que cabe priorizar aqui é sobre a diferenciação do lugar que o analista opera e da radical diferença do lugar
da religião. Lacan situa a verdade que a
religião comporta como sendo aquela
que garante a existência de um Outro, de
um Deus, que é capaz de responder pela
causa do sujeito, ou seja, o religioso entrega a Deus a questão da causa cortando assim qualquer possibilidade de ter
acesso a sua verdade. Remetendo a Deus
a causa de seu desejo, o sujeito impossibilita qualquer relação com a verdade
>73
presentificação na cultura se faz mais do
que nunca necessária. Lacan nos propõe
que a verdade da psicanálise, que é a verdade como causa, seja buscada em outros saberes. E por que não pensarmos na
religião?
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Freud e o discurso religioso
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Considerada por Freud como o mais importante inventário psíquico de uma civilização, não há como negar a força desta
herança transmitida pelo discurso da religião judaico-cristã até os dias de hoje.
Observamos em vários momentos da
obra de Freud seu grande interesse e respeito pela força da religião chegando a
compará-la com uma neurose obsessiva
universal capaz de poupar muitas pessoas
de desenvolverem uma neurose pessoal.
Além da indiscutível semelhança dos sintomas obsessivos com os rituais religiosos, não estaria Freud nos apontando
para uma questão estrutural essencial, ou
seja, o sujeito tendo que se haver com
seu desejo?
Em “Totem e tabu” Freud cria um mito sobre a origem. Baseado na idéia de que
Deus está morto, Freud estabelece um
momento mítico para a instauração da
lei. O “mito cristão” seria, segundo Freud,
uma ratificação do mito do pai da horda
primeva onde os filhos criam um Deus no
lugar do Pai. Atribui à religião cristã o reconhecimento do sentimento de culpa e
considera este um passo importante na
economia psíquica, uma vez que algo de
novo se inscreve. Cristo, o filho do Pai,
sacrifica sua própria vida e redime a todos os seus irmãos do pecado original,
que só pode ter sido o assassinato cometido contra Deus-Pai. O cristianismo seria
assim, segundo Freud, a forma sem disfarce do reconhecimento do filho do seu
ato culposo, o que é demonstrado pela
renúncia à sua própria vida. Mas o ato do
filho também representa, ao mesmo tempo, a realização de seus desejos contra o
pai e paga o preço por isto. Diz-nos
Freud, quanto ao filho: “Ele próprio tornava-se Deus, ao lado, ou, mais corretamente, em lugar do pai. Uma religião filial deslocava a religião paterna” (Freud,
1913, p. 183).
Freud é explícito no seu combate à religião quanto ao seu poder de ilusão, comparando-a a um narcótico, idéia compatível com o paradigma marxista de que ”a
religião é o ópio do povo”. É inegável seu
respeito pelo seu valor cultural e quanto
a isto basta-nos “Totem e tabu” e também
“Moisés e o monoteísmo”, onde retoma a
hipótese do parricídio. Mas quanto à religião como uma das possibilidades de saída para suportar o sofrimento, encontramos em Freud a marca de um reconhecimento dos limites de sua nova ciência.
Lembremos uma expressão de Goethe,
poeta predileto de Freud, citada em “Malestar na civilização”: “Aquele que tem
ciência e arte, tem também religião: o
que não tem nenhuma delas, que tenha
religião!” (Freud, 1930, p. 93). Comentando as palavras do poeta, Freud realça que
a religião tem uma função capital à medida que “a vida, tal como a encontramos é
árdua demais... não podemos dispensar
as medidas paliativas” (Ibid., p. 93). Mas
considera uma especificidade exclusiva
do sistema sagrado que a religião se proponha a resolver a questão do sentido da
vida. Embora ainda extremamente crítico
quanto ao poder de alienação da religião,
Lacan, assim como Freud, adota uma posição crítica contra o discurso religioso.
Entende-o como sustentado por uma hierarquia social possuidora de uma tradição milenar de relação com a verdade
que vai contra a própria causa psicanalítica. Não podemos esquecer que Lacan
lutou muito para que a psicanálise não se
tornasse uma espécie de religião e foi um
grande combatente do modelo proposto
pela Sociedade Internacional Psicanalítica. Diz-nos em “Ciência e verdade”, num
tom de preocupação: “Quanto à religião,
ela deve, antes, servir-nos de modelo a
não seguir...” (Lacan, 1965-1966, p. 891).
Lacan se mostra um grande combatente
especificamente do modelo proposto
pela Igreja Católica. Faz uma afirmação
curiosa ao dizer que a religião cristã é a
panorama
Lacan e o discurso religioso
única verdadeira (Lacan, 1974, p. 14). De
onde viria a força do cristianismo que
mesmo com a crescente expansão atual
das igrejas neopentecostais ainda nos dá
provas de sua indestrutibilidade? Lacan
enfatiza que a religião católica atingiu um
desenvolvimento da verdade que outras
não alcançaram na medida em denuncia
questões fundamentais da verdade do
sujeito.
Encontramos na construção freudiana
sobre a questão da existência de Deus,
uma indicação da fundação do Nome-dopai que a aproxima de um ideal conquistado pela humanidade. Lacan interpreta
que, neste ponto, Freud recua, pois não
vai além do paradoxo da morte de Deus
salvando a imagem do pai. Lacan reabre
a questão ao dizer que Deus não é todo
articulável ao Nome-do-pai. A eficácia da
religião, sustenta Lacan, estaria justamente no fato de existir uma relação íntima de
Deus com o real, ou seja, com aquilo que
ex-siste ao simbólico e ao imaginário. É
por este viés que Lacan se refere à crença em Deus como a prova da existência,
no inconsciente, do pai primitivo. A religião cristã, sendo a única verdadeira, na
opinião de Lacan, se associa diretamente
a Deus, e afirma em R.S.I.: “Ela diz que ele
ex-siste, que ele é a ex-sistência por excelência, ou seja, ele é o recalcamento em
pessoa...” (Lacan, 1974, p. 12).
Para Lacan, o real é radicalmente indomesticável e só se demonstra pelos seus
efeitos. Está sempre além do previsível,
do pensável, e seu mistério nunca é desvendado. As religiões seriam tentativas de
modelar o real, de dar-lhe um sentido,
oferecendo explicação para tudo aquilo
que nos transcende e que nos joga para
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Freud parece estar nesse momento, em
1938, quase uma década após ter escrito
“O futuro de uma ilusão”, mais tolerante
no que se refere às tentativas do homem
de buscar uma saída para suportar o seu
mal-estar e seu extremo desamparo. Diznos, em “Mal-estar na civilização”: “Não
existe uma regra de ouro que se aplique
a todos: todo homem tem de descobrir
por si mesmo de que modo específico ele
pode ser salvo” (Freud, 1930, p. 103 ). Isto
não o impede de ser categórico quanto à
sua posição contrária ao discurso religioso, situando este em oposição radical ao
discurso analítico. A religião possui o poder de limitar as possibilidades de escolha
do sujeito, impondo a todos um único
caminho, prometendo felicidade e proteção contra o sofrimento e exigindo do
sujeito uma submissão incondicional.
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o impossível, para o impensável, como o
umbigo do sonho.
O motivo que Lacan nos oferece para justificar a grande influência do discurso religioso relacionava-se menos a seu caráter ilusório, como combateu Freud, e
mais ao que denominava uma tendência
irresistível para o sentido. Faz sua previsão: “Saibam que o sentido religioso vai
ter um boom do qual vocês não têm a
menor idéia. Porque a religião é a moradia original do sentido. Isto é uma evidência que se impõe” ( Lacan, 1982, p. 54).
A partir do momento em que a interpretação opera também através do sentido,
propõe uma saída para esta armadilha
pela valorização do significante como
mola-mestra. Lembrando aos analistas
que a verdade nunca é dita “toda”, pois é
impossível dizer tudo, Lacan inclui, no
campo discursivo, o real e afirma que a
religião o exclui e se agarra a um sentido
determinado. Daí as guerras religiosas
onde um sentido pretende se impor ao
outro e não há outra saída senão a morte.
No início dos anos 1960, Lacan realiza seu
seminário “A ética da psicanálise” retomando os três modos de organização já
introduzidos e comentados por Freud: a
arte, a religião e a ciência, que os articulara aos mecanismos da histeria, da neurose obsessiva e da paranóia. Lacan toma
estas diferentes possibilidades por referência àquilo que não pode ser representado. Este vazio, que está sempre no centro, nada mais é que essa Coisa em torno
da qual estes modos de organização se
articulam. Lacan nos dá sua fórmula ao
dizer que toda arte se organiza em torno
do vazio e há uma Verdrangung, um recalque da Coisa. Quanto à ciência, a presen-
ça da Coisa é rejeitada, no sentido próprio da Verwerfung e isto se dá na medida em que, no discurso da ciência, visase o ideal do saber absoluto, o que só
pode resultar num fracasso. E quanto à
religião? Lacan nos diz: “... talvez haja
uma Verschiebung”, ou seja, um deslocamento, e sua posição é categórica: “... a
religião consiste em todos os modos de
evitar esse vazio“ (Lacan, 1959-60, p. 164).
Em 1962, no Seminário da Angústia, Lacan
irá apontar para uma das funções do
Ideal do Eu que pode vir a tomar a forma
do todo-poderoso para justamente recobrir a angústia e nos diz: “Tal é a dimensão verdadeira do ateísmo, aquele que
teria conseguido eliminar o fantasma do
todo-poderoso” (Lacan, 1962-1963, p. 351). O
ateísmo, longe de apenas negar a existência de Deus, negaria também a existência
de uma presença que estaria “no fundo
do mundo”. O ateísmo e o final de análise são apontados neste momento como
uma questão em aberto, mas indicam
uma direção no próprio levantamento
desta problemática. Lacan aposta que
uma análise provoca uma mudança da
relação do sujeito com seu fantasma.
Algo se decanta numa análise e conseqüentemente o efeito desta trajetória afeta a posição do sujeito quanto à existência de um Deus que lhe dê alguma garantia. Comenta: “... a existência do ateu, no
verdadeiro sentido, só pode ser concebida, de fato, no limite de uma ascese, que
parece bem que só pode ser uma ascese
psicanalítica...” (Ibid., p. 352). O ateu não
estaria do lado da impotência, o que seria o pólo oposto do “todo-poderoso”,
mas sim do lado da impossibilidade.
No seminário seguinte, “Os quatro concei-
Poderíamos pensar que Lacan trata a
questão da existência de Deus não pelo
viés de seu “ser”, mas sim como algo que
está no cerne de sua doutrina, ou seja, o
real. Ao introduzir a fórmula do ateísmo,
Lacan introduz também a categoria da
ex-sistência apontando assim para um
gozo Outro que nada podemos falar, pois
dele nada sabemos. Lacan retornará à
questão do ateu dez anos depois, em algumas passagens do seu seminário “Mais,
ainda”. Lança uma hipótese interessante
panorama
Pois não é que, no sonho, se sustente que o
filho vive ainda. Mas o filho morto pegando
seu pai pelo braço, visão atroz, designa um
mais-além que se faz ouvir no sonho. O desejo aí se presentifica pela perda imajada ao ponto mais cruel, do objeto. (Ibid., p. 60)
para localizar a complexidade de se falar
do lugar de Deus: “É isto que faz com que,
em suma, não possam existir verdadeiros
ateus, senão os teólogos, quer dizer, aqueles que, de Deus, eles falam” (Lacan, 19721973, p. 62). Considera, assim, um paradoxo falar de Deus, pois ele não é falável, e
os que falam dele são os que não acreditam na sua ex-sistência.
Mas qual o futuro da psicanálise uma vez
que a religião dá sinais de ser indestrutível? Lacan afirma em “A terceira” e também em 1974, em entrevista à imprensa
italiana: “Se a religião triunfar, o que é
mais provável... será o sinal de que a psicanálise fracassou. O mais normal é que
a psicanálise fracasse...” E acrescenta: “...
a psicanálise não triunfará: sobreviverá
ou não” (Lacan, 1974, p. 13). Parece nos
dizer que a psicanálise está do lado do
fracasso, da impossibilidade, dos restos,
daquilo que não anda, ou seja, do sintoma. Afinal, não é o erro, o ato-falho, o esquecimento, a fala que fala sem saber do
que está falando, que o psicanalista escuta? Sim, parece que Lacan nos aponta
para um real que fracassa, e é através do
sucesso deste fracasso que é possível a irrupção de um desejo.
Ao teorizar os três registros, Lacan dará
ao real o estatuto de impossível, ou seja,
daquilo que não está acessível à palavra.
Estaria, então, se referindo a um fracasso
de ordem lógica. Lacan pretendia, com a
psicanálise, chegar a uma demonstração
do real, por meio da impossibilidade lógica. Acreditava que se nada mais for impossível ao homem no plano da realidade, se ele se achar tão poderoso quanto
Deus, haverá sempre um real impossível,
o real da não-relação sexual. Se a psica-
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tos fundamentais da psicanálise”, Lacan
surge com a verdadeira fórmula do ateísmo ao afirmar: “Deus é inconsciente” (Lacan, 1964, p. 60). A fórmula nos é apresentada no contexto onde retorna a
Freud para dele discordar no que se refere à preservação do pai. Afinal, lembra
Lacan, quem paga é o filho e isto está claro no conhecido sonho analisado por
Freud onde o pai acorda ao sonhar que
o filho lhe dizia: “Pai, não vês que estou
queimando?” Estas palavras do filho dirigidas ao pai poderiam ser relacionadas
com as de Cristo na cruz quando este diz:
“Senhor, por que me abandonaste?” O
sonho, assim como o mito-cristão, realizam um encontro com o real e Lacan nos
diria que são chamadas para o real, para
uma realidade faltosa que causou a morte da criança. Diz-nos Lacan, destacando
a mensagem do sonho como o ponto
crucial da questão:
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panorama
nálise não conseguir demonstrar a existência do real, desse fracasso lógico, ela
então poderá desaparecer.
Nós, analistas, que abrimos e sustentamos
um espaço para a psicanálise dentro de
uma instituição religiosa, talvez tenhamos
que estar mais atentos ao que Freud e Lacan nos ensinaram: a que possamos resistir à solicitação aos outros modos de se
relacionar com a verdade, pois não é disto que se trata a psicanálise.
>78
Referências
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na psicanálise, na religião e na neurose
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Hélio. A-DEUS – Psicanálise e religião:
João Carlos Moura (org.). Petrópolis:
Vozes, 1988.
Artigo recebido em maio/2003
Aprovado para publicação em junho/2003
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