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pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 173, setembro/2003 escutando com o terceiro ouvido percebe que já não existe um abismo entre ele e seu paciente. Lytton Strachey contou-me, certa vez, como tinha abordado sua magnífica biografia da Rainha Victoria. Estudando a infância da jovem Rainha, ele não tinha gostado muito dela. Ele a via como uma menina mimada, excessivamente segura de si e demasiado equilibrada. De início, tratou dela com certo distanciamento irônico e com pouca simpatia. À medida que estudava sua vida e começava a compreender melhor a personalidade dela e as condições que ajudaram a moldá-la, sua simpatia ia aumentando. >70 No final, quando fala dos últimos anos da Rainha, sente-se um genuíno calor humano, apreço e admiração por uma personalidade marcante. Ele começou com pouco afeto por seu sujeito e terminou praticamente apaixonado pela velha senhora. Ao ouvir esses jovens analistas outro dia, quando falavam de seus primeiros pacientes, fiquei pensativo e disse para mim mesmo: “Nenhum homem tem tanto amor”. Mas confio neles. Vão viver e aprender. Vão aprender, entre outras coisas, que a compreensão simpática não marca o início da análise, mas seu final. C l í n i c a Dimensão Dando continuidade às suas atividades de 2003, a Clínica Dimensão convida para: CICLO DE PALESTRAS EM PSICANÁLISE III 6 o Encontro, di as 19 e 20 de setembro dias Tema: A VIDA NA BERLINDA. POLÍTICAS DA SUBJETIVIDADE NO CONTEMPORÂNEO Docente: Sueli Rolnik (SP) CINEMA & PSICANÁLISE III 6 o Encontro, di a 26 de setembro dia Tema: PORQUE(EM) OS HOMENS CHORAM? Filme: Fale com ela Rua 1121 Qd. 217 Lt. 10, n. 249 – Setor Marista 74175-120 Goiânia, GO Fones: (62) 242-1366 • 281-4135 e-mail: [email protected] / site: dimensao-psi.com.br > panorama Maria Cecilia Garcez O divã no altar O artigo pretende refletir sobre a relação da psicanálise com a religião, suscitada a partir da experiência clínica de atendimento psicanalítico dentro de uma instituição religiosa. Embora o discurso psicanalítico seja radicalmente antinômico ao discurso religioso, a aproximação de ambos vem possibilitar uma série de questionamentos que visam ampliar a discussão sempre atual sobre o lugar do analista. > Palavras-chave: Psicanálise, religião, clínica psicanalítica, cultura, atualidade questionamentos. Certamente esta situação nos remete para um “além” de uma proximidade física, embora esta mesma proximidade seja um convite a se pensar do lugar em que se encontra o analista para diferenciá-lo do lugar que opera a religião. Uma vez que o sujeito é sempre o mesmo sujeito, pois não há dois sujeitos, tanto aquele que procura o padre como aquele que procura o analista é o sujeito que sofre e que busca alguma saída para lidar com a sua dor. pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 173, setembro/2003 O título deste artigo ”O divã no altar” surgiu causado pela surpresa, e achei por bem aceitá-lo uma vez que reflete a própria experiência, ou seja, a situação muito pouco comum, para não dizer até polêmica, da psicanálise se realizar dentro de uma igreja. Foi assim, às voltas com estes dois significantes que representam a psicanálise e a religião, onde encontramse na sacristia tanto os fiéis que aguardam a chamada do padre para a confissão como os que esperam pelo analista, que me vi instigada a trazer à tona alguns panorama p. 71-78 This article proposes a reflection on the relationship between psychoanalysis and religion, stimulated by a clinical experience of psychoanalytic care in a religious institution. Although psychoanalytic discourse is radically antonymic to religious discourse, an approximation of the two makes it possible to broaden the ever pertinent discussion on the analyst’s place today. > Key words: Psychoanalysis, religion, psychoanalytic clinic, culture, current problems >71 panorama pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 173, setembro/2003 >72 A pergunta inicial poderia ser a de se pensar se há uma diferenciação da demanda daquele sujeito que busca uma igreja para aquele que procura um analista no seu consultório particular. Sem dúvida, um bom encaminhamento pode facilitar a questão da construção de uma transferência, mas isto em nada garante que não haja obstáculos tão difíceis de manejar como o que ocorre na clínica atravessada pela instituição. Se concebermos que a psicanálise trata de uma “clínica do particular” não há como definirmos uma clientela sem correr o risco de cometermos generalizações preconceituosas que fogem totalmente da concepção de que “cada um é um” e é sempre da ordem do particular que a escuta do analista se dirige. Assim, poderíamos pensar que, se há a presença de um analista que escuta e opera no seu lugar e se há um sujeito que lhe endereça seu sintoma, a possibilidade de que ali ocorra uma análise já está estabelecida. Não seria a oferta que cria a demanda, como nos aponta Lacan, uma vez que a procura é sempre da ordem do equívoco? A questão seria saber se esse sujeito está em busca de um saber Divino que o alivie de seu sofrimento, sem que com isto tenha que se implicar com seu sintoma, ou se à medida que dirige sua palavra ao analista, e não mais ao padre, não estaria dizendo que do seu sintoma algo lhe escapa produzindo um conflito do qual não encontra saída. Pelo que podemos observar na própria experiência, há algo que já falhou e que a religião não dá mais conta. Neste sentido a posição do sujeito que se apresenta ao analista já é marcada por um reconhe- cimento dessa falha, desse furo que o próprio sintoma vem apontar. Freud, em “O futuro de uma ilusão”, deixa claro que a saída do sujeito pela religião é da ordem de uma negação. Reconhece que as idéias religiosas possuem um incomparável poder de influência na humanidade uma vez que oferece proteção contra o desamparo e promete felicidade. No entanto, ao contrário do que se pensa, nos diz que a atitude do sujeito que busca a religião, não é de submissão, muito menos de reconhecimento de sua insignificância diante do universo, mas justamente o contrário: o que acontece é uma não aceitação desse fato e por isto busca um “remédio” para o seu desamparo (Freud, 1927, p. 46). Neste célebre escrito de 1927, Freud faz uma crítica radical frente à religião e seus efeitos de inibição e atrofia intelectual, na qual revela sua posição francamente otimista em relação ao “saber científico”. Cinco anos mais tarde apresenta, numa de suas últimas conferências, um estudo no qual aponta que por trás de todo saber há uma “concepção de mundo” coerente, uma Weltanschauung, que tem por fim solucionar “todos” os problemas da existência humana, oferecendo respostas a “todas” as perguntas. Assim, a posse de uma determinada Weltanschauung representa a existência de um saber do que se quer alcançar, propiciando desta forma uma uniformidade para a explicação do Universo. A importância desta conferência para a nossa discussão é a possibilidade de se pensar de que lugar a psicanálise opera e diferenciá-la da Weltanschauung religiosa. Freud defende categoricamente a panorama que ficaria assim denegada. O sujeito ficaria então capturado por um saber totalizante, preso numa posição de submissão a um Outro a quem se oferece como objeto de sacrifício e ao qual acredita ter que seduzir para se desculpabilizar (Lacan, 1965-1966, p. 886). Para a psicanálise, a dimensão da verdade como causa é colocada como ponto central de onde parte o princípio de que há uma separação, um corte radical entre o sujeito e o saber, à medida que “sou onde não penso e penso onde não sou”. Isto não implica que mesmo sendo o sujeito determinado pelos significantes que o representam não seja responsável por isso que o causa. Responsabilidade implica em se permitir aceitar aquilo que lhe causa, em não resistir ao seu desejo e que possa abandonar a ilusão de um todo que irá lhe completar. Lacan afirma que a verdade se refere ao objeto “a”, e é desse lugar, de semblante do objeto “a”, que o analista poderá operar interrogando o que há de verdade no saber. É como causa de desejo que o analista terá uma função. E, por operar desse lugar, será necessário que suporte ser testemunha de uma perda à medida que sabe da impossibilidade desta falta ser tamponada por qualquer objeto. Um profundo mal-estar na nossa atualidade faz surgir, na virada do século, uma exacerbação da religiosidade como um sintoma social. Os efeitos são verificados por todos nós: religiões se multiplicando, guerras religiosas levando a catástrofes e atos bárbaros que alertam ao mundo sobre os possíveis caminhos do fanatismo religioso. A psicanálise produz um saber sobre os mecanismos da cultura e sua pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 173, setembro/2003 Weltanschauung científica como sendo superior a todas as outras que não visam o conhecimento sustentado pela elaboração intelectual, mas sim por derivados do que ele chama “revelação”, “intuição” e “adivinhação” (Freud, 1933, p. 194). A psicanálise é então situada como um saber que aceita o saber científico, uma vez que se originou daí, mas que não possui uma Weltanschauung própria, não é capaz de abranger tudo, é muito incompleta, não pretende ser auto-suficiente e muito menos construir sistemas. Podemos notar a relevância, dada por Freud, ao reconhecimento de um saber que não pretende dar conta de tudo, que se situa justamente no lugar da incompletude, da falta. Lacan parte daí para produzir seu escrito “Ciência e verdade” e leva adiante a discussão sobre as diferentes posições que o sujeito ocupa diante da verdade na ciência, na psicanálise, na magia e na religião. O texto gira em torno da verdade como causa e dá a este conceito um estatuto de fundamental importância à medida que é a causa que tanto irá separar como propiciará a articulação dos saberes em questão. A questão que cabe priorizar aqui é sobre a diferenciação do lugar que o analista opera e da radical diferença do lugar da religião. Lacan situa a verdade que a religião comporta como sendo aquela que garante a existência de um Outro, de um Deus, que é capaz de responder pela causa do sujeito, ou seja, o religioso entrega a Deus a questão da causa cortando assim qualquer possibilidade de ter acesso a sua verdade. Remetendo a Deus a causa de seu desejo, o sujeito impossibilita qualquer relação com a verdade >73 presentificação na cultura se faz mais do que nunca necessária. Lacan nos propõe que a verdade da psicanálise, que é a verdade como causa, seja buscada em outros saberes. E por que não pensarmos na religião? pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 173, setembro/2003 panorama Freud e o discurso religioso >74 Considerada por Freud como o mais importante inventário psíquico de uma civilização, não há como negar a força desta herança transmitida pelo discurso da religião judaico-cristã até os dias de hoje. Observamos em vários momentos da obra de Freud seu grande interesse e respeito pela força da religião chegando a compará-la com uma neurose obsessiva universal capaz de poupar muitas pessoas de desenvolverem uma neurose pessoal. Além da indiscutível semelhança dos sintomas obsessivos com os rituais religiosos, não estaria Freud nos apontando para uma questão estrutural essencial, ou seja, o sujeito tendo que se haver com seu desejo? Em “Totem e tabu” Freud cria um mito sobre a origem. Baseado na idéia de que Deus está morto, Freud estabelece um momento mítico para a instauração da lei. O “mito cristão” seria, segundo Freud, uma ratificação do mito do pai da horda primeva onde os filhos criam um Deus no lugar do Pai. Atribui à religião cristã o reconhecimento do sentimento de culpa e considera este um passo importante na economia psíquica, uma vez que algo de novo se inscreve. Cristo, o filho do Pai, sacrifica sua própria vida e redime a todos os seus irmãos do pecado original, que só pode ter sido o assassinato cometido contra Deus-Pai. O cristianismo seria assim, segundo Freud, a forma sem disfarce do reconhecimento do filho do seu ato culposo, o que é demonstrado pela renúncia à sua própria vida. Mas o ato do filho também representa, ao mesmo tempo, a realização de seus desejos contra o pai e paga o preço por isto. Diz-nos Freud, quanto ao filho: “Ele próprio tornava-se Deus, ao lado, ou, mais corretamente, em lugar do pai. Uma religião filial deslocava a religião paterna” (Freud, 1913, p. 183). Freud é explícito no seu combate à religião quanto ao seu poder de ilusão, comparando-a a um narcótico, idéia compatível com o paradigma marxista de que ”a religião é o ópio do povo”. É inegável seu respeito pelo seu valor cultural e quanto a isto basta-nos “Totem e tabu” e também “Moisés e o monoteísmo”, onde retoma a hipótese do parricídio. Mas quanto à religião como uma das possibilidades de saída para suportar o sofrimento, encontramos em Freud a marca de um reconhecimento dos limites de sua nova ciência. Lembremos uma expressão de Goethe, poeta predileto de Freud, citada em “Malestar na civilização”: “Aquele que tem ciência e arte, tem também religião: o que não tem nenhuma delas, que tenha religião!” (Freud, 1930, p. 93). Comentando as palavras do poeta, Freud realça que a religião tem uma função capital à medida que “a vida, tal como a encontramos é árdua demais... não podemos dispensar as medidas paliativas” (Ibid., p. 93). Mas considera uma especificidade exclusiva do sistema sagrado que a religião se proponha a resolver a questão do sentido da vida. Embora ainda extremamente crítico quanto ao poder de alienação da religião, Lacan, assim como Freud, adota uma posição crítica contra o discurso religioso. Entende-o como sustentado por uma hierarquia social possuidora de uma tradição milenar de relação com a verdade que vai contra a própria causa psicanalítica. Não podemos esquecer que Lacan lutou muito para que a psicanálise não se tornasse uma espécie de religião e foi um grande combatente do modelo proposto pela Sociedade Internacional Psicanalítica. Diz-nos em “Ciência e verdade”, num tom de preocupação: “Quanto à religião, ela deve, antes, servir-nos de modelo a não seguir...” (Lacan, 1965-1966, p. 891). Lacan se mostra um grande combatente especificamente do modelo proposto pela Igreja Católica. Faz uma afirmação curiosa ao dizer que a religião cristã é a panorama Lacan e o discurso religioso única verdadeira (Lacan, 1974, p. 14). De onde viria a força do cristianismo que mesmo com a crescente expansão atual das igrejas neopentecostais ainda nos dá provas de sua indestrutibilidade? Lacan enfatiza que a religião católica atingiu um desenvolvimento da verdade que outras não alcançaram na medida em denuncia questões fundamentais da verdade do sujeito. Encontramos na construção freudiana sobre a questão da existência de Deus, uma indicação da fundação do Nome-dopai que a aproxima de um ideal conquistado pela humanidade. Lacan interpreta que, neste ponto, Freud recua, pois não vai além do paradoxo da morte de Deus salvando a imagem do pai. Lacan reabre a questão ao dizer que Deus não é todo articulável ao Nome-do-pai. A eficácia da religião, sustenta Lacan, estaria justamente no fato de existir uma relação íntima de Deus com o real, ou seja, com aquilo que ex-siste ao simbólico e ao imaginário. É por este viés que Lacan se refere à crença em Deus como a prova da existência, no inconsciente, do pai primitivo. A religião cristã, sendo a única verdadeira, na opinião de Lacan, se associa diretamente a Deus, e afirma em R.S.I.: “Ela diz que ele ex-siste, que ele é a ex-sistência por excelência, ou seja, ele é o recalcamento em pessoa...” (Lacan, 1974, p. 12). Para Lacan, o real é radicalmente indomesticável e só se demonstra pelos seus efeitos. Está sempre além do previsível, do pensável, e seu mistério nunca é desvendado. As religiões seriam tentativas de modelar o real, de dar-lhe um sentido, oferecendo explicação para tudo aquilo que nos transcende e que nos joga para pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 173, setembro/2003 Freud parece estar nesse momento, em 1938, quase uma década após ter escrito “O futuro de uma ilusão”, mais tolerante no que se refere às tentativas do homem de buscar uma saída para suportar o seu mal-estar e seu extremo desamparo. Diznos, em “Mal-estar na civilização”: “Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo” (Freud, 1930, p. 103 ). Isto não o impede de ser categórico quanto à sua posição contrária ao discurso religioso, situando este em oposição radical ao discurso analítico. A religião possui o poder de limitar as possibilidades de escolha do sujeito, impondo a todos um único caminho, prometendo felicidade e proteção contra o sofrimento e exigindo do sujeito uma submissão incondicional. >75 panorama pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 173, setembro/2003 >76 o impossível, para o impensável, como o umbigo do sonho. O motivo que Lacan nos oferece para justificar a grande influência do discurso religioso relacionava-se menos a seu caráter ilusório, como combateu Freud, e mais ao que denominava uma tendência irresistível para o sentido. Faz sua previsão: “Saibam que o sentido religioso vai ter um boom do qual vocês não têm a menor idéia. Porque a religião é a moradia original do sentido. Isto é uma evidência que se impõe” ( Lacan, 1982, p. 54). A partir do momento em que a interpretação opera também através do sentido, propõe uma saída para esta armadilha pela valorização do significante como mola-mestra. Lembrando aos analistas que a verdade nunca é dita “toda”, pois é impossível dizer tudo, Lacan inclui, no campo discursivo, o real e afirma que a religião o exclui e se agarra a um sentido determinado. Daí as guerras religiosas onde um sentido pretende se impor ao outro e não há outra saída senão a morte. No início dos anos 1960, Lacan realiza seu seminário “A ética da psicanálise” retomando os três modos de organização já introduzidos e comentados por Freud: a arte, a religião e a ciência, que os articulara aos mecanismos da histeria, da neurose obsessiva e da paranóia. Lacan toma estas diferentes possibilidades por referência àquilo que não pode ser representado. Este vazio, que está sempre no centro, nada mais é que essa Coisa em torno da qual estes modos de organização se articulam. Lacan nos dá sua fórmula ao dizer que toda arte se organiza em torno do vazio e há uma Verdrangung, um recalque da Coisa. Quanto à ciência, a presen- ça da Coisa é rejeitada, no sentido próprio da Verwerfung e isto se dá na medida em que, no discurso da ciência, visase o ideal do saber absoluto, o que só pode resultar num fracasso. E quanto à religião? Lacan nos diz: “... talvez haja uma Verschiebung”, ou seja, um deslocamento, e sua posição é categórica: “... a religião consiste em todos os modos de evitar esse vazio“ (Lacan, 1959-60, p. 164). Em 1962, no Seminário da Angústia, Lacan irá apontar para uma das funções do Ideal do Eu que pode vir a tomar a forma do todo-poderoso para justamente recobrir a angústia e nos diz: “Tal é a dimensão verdadeira do ateísmo, aquele que teria conseguido eliminar o fantasma do todo-poderoso” (Lacan, 1962-1963, p. 351). O ateísmo, longe de apenas negar a existência de Deus, negaria também a existência de uma presença que estaria “no fundo do mundo”. O ateísmo e o final de análise são apontados neste momento como uma questão em aberto, mas indicam uma direção no próprio levantamento desta problemática. Lacan aposta que uma análise provoca uma mudança da relação do sujeito com seu fantasma. Algo se decanta numa análise e conseqüentemente o efeito desta trajetória afeta a posição do sujeito quanto à existência de um Deus que lhe dê alguma garantia. Comenta: “... a existência do ateu, no verdadeiro sentido, só pode ser concebida, de fato, no limite de uma ascese, que parece bem que só pode ser uma ascese psicanalítica...” (Ibid., p. 352). O ateu não estaria do lado da impotência, o que seria o pólo oposto do “todo-poderoso”, mas sim do lado da impossibilidade. No seminário seguinte, “Os quatro concei- Poderíamos pensar que Lacan trata a questão da existência de Deus não pelo viés de seu “ser”, mas sim como algo que está no cerne de sua doutrina, ou seja, o real. Ao introduzir a fórmula do ateísmo, Lacan introduz também a categoria da ex-sistência apontando assim para um gozo Outro que nada podemos falar, pois dele nada sabemos. Lacan retornará à questão do ateu dez anos depois, em algumas passagens do seu seminário “Mais, ainda”. Lança uma hipótese interessante panorama Pois não é que, no sonho, se sustente que o filho vive ainda. Mas o filho morto pegando seu pai pelo braço, visão atroz, designa um mais-além que se faz ouvir no sonho. O desejo aí se presentifica pela perda imajada ao ponto mais cruel, do objeto. (Ibid., p. 60) para localizar a complexidade de se falar do lugar de Deus: “É isto que faz com que, em suma, não possam existir verdadeiros ateus, senão os teólogos, quer dizer, aqueles que, de Deus, eles falam” (Lacan, 19721973, p. 62). Considera, assim, um paradoxo falar de Deus, pois ele não é falável, e os que falam dele são os que não acreditam na sua ex-sistência. Mas qual o futuro da psicanálise uma vez que a religião dá sinais de ser indestrutível? Lacan afirma em “A terceira” e também em 1974, em entrevista à imprensa italiana: “Se a religião triunfar, o que é mais provável... será o sinal de que a psicanálise fracassou. O mais normal é que a psicanálise fracasse...” E acrescenta: “... a psicanálise não triunfará: sobreviverá ou não” (Lacan, 1974, p. 13). Parece nos dizer que a psicanálise está do lado do fracasso, da impossibilidade, dos restos, daquilo que não anda, ou seja, do sintoma. Afinal, não é o erro, o ato-falho, o esquecimento, a fala que fala sem saber do que está falando, que o psicanalista escuta? Sim, parece que Lacan nos aponta para um real que fracassa, e é através do sucesso deste fracasso que é possível a irrupção de um desejo. Ao teorizar os três registros, Lacan dará ao real o estatuto de impossível, ou seja, daquilo que não está acessível à palavra. Estaria, então, se referindo a um fracasso de ordem lógica. Lacan pretendia, com a psicanálise, chegar a uma demonstração do real, por meio da impossibilidade lógica. Acreditava que se nada mais for impossível ao homem no plano da realidade, se ele se achar tão poderoso quanto Deus, haverá sempre um real impossível, o real da não-relação sexual. Se a psica- pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 173, setembro/2003 tos fundamentais da psicanálise”, Lacan surge com a verdadeira fórmula do ateísmo ao afirmar: “Deus é inconsciente” (Lacan, 1964, p. 60). A fórmula nos é apresentada no contexto onde retorna a Freud para dele discordar no que se refere à preservação do pai. Afinal, lembra Lacan, quem paga é o filho e isto está claro no conhecido sonho analisado por Freud onde o pai acorda ao sonhar que o filho lhe dizia: “Pai, não vês que estou queimando?” Estas palavras do filho dirigidas ao pai poderiam ser relacionadas com as de Cristo na cruz quando este diz: “Senhor, por que me abandonaste?” O sonho, assim como o mito-cristão, realizam um encontro com o real e Lacan nos diria que são chamadas para o real, para uma realidade faltosa que causou a morte da criança. Diz-nos Lacan, destacando a mensagem do sonho como o ponto crucial da questão: >77 pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 173, setembro/2003 panorama nálise não conseguir demonstrar a existência do real, desse fracasso lógico, ela então poderá desaparecer. Nós, analistas, que abrimos e sustentamos um espaço para a psicanálise dentro de uma instituição religiosa, talvez tenhamos que estar mais atentos ao que Freud e Lacan nos ensinaram: a que possamos resistir à solicitação aos outros modos de se relacionar com a verdade, pois não é disto que se trata a psicanálise. >78 Referências COUTINHO, M.A. Nota sobre a questão do sentido na psicanálise, na religião e na neurose obsessiva. In: CAMARU DE ARAÚJO, M. e BRAGA MAIA, C.B. (orgs.). Neurose obsessiva. Rio de Janeiro: Letter, 1992, p. 165-75. DYSKANT, M.C. Entrevista coletiva com Dr. Lacan, em 29 de outubro de 1974, Centre Culturel Français. Dizer. Rio de Janeiro: Escola Lacaniana de Psicanálise, n. 12, p. 7-26. FREUD, S. 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