Título: Odisseia Autor: Homero Ano de Edição:

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Título: Odisseia Autor: Homero Ano de Edição:
Título: Odisseia
Autor: Homero
Ano de Edição: -700
Páginas: 129
Sinopse:
É esta a gloriosa história de Ulisses, do homem de mil façanhas e ardis, do
herói que,- depois do cerco, tomada e incêndio de Tróia, cidade célebre da
Ásia Menor, - visitou as cidades mais diversas, conheceu gentes estranhas e
enfeitiçou a alma de povos distantes. Num frágil navio, errou sobre as
ondas incertas, cheio de angústia, transido de aflição, perseguido por
monstros cruéis, abandonado de socorros.
Curiosidades:
Esta é uma adaptação em prosa do poema de homero
Excerto:
«Farto e sonolento, o ciclope adormeceu. Nós nem podíamos dormir.
Esperámos o nascer do sol entre angústias insuportáveis. De manhã, o
monstro acordou e devorou mais dois dos nossos.»
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A Odisseia
1
Telémaco e os Pretendentes
2
Calipso 8
A Tempestade 13
Nausica
19
O Cavalo de Pau
32
Polifemo e Ninguém
41
Éolo e Circe
54
Ulisses no Inferno
66
As Sereias Sila e Caribdes
75
Os Rebanhos do Sol
85
Ulisses Despede-se de Córcira 90
Eumeu, o Feitor de Ulisses
96
Telémaco Reconhece Ulisses 103
Argus, o Cão Fiel
114
Derrota dos Pretendentes, Vitória de Ulisses
118
1
A história que vão ler a seguir passou-se há alguns milhares de anos. Século a século, os
homens têm-na ouvido e repetido sem nunca se enfadarem. Chegou até nós da Grécia antiga,
berço da nossa civilização. E se os heróis e a sua gente de quem nela se fala morreram nem se
sabe quando, ou, mesmo, se jamais existiram, - os lugares, as praias, as montanhas, os portos,
as ilhas e o mar de que se fala aqui, hoje os podemos ainda visitar e percorrer, embora quase
sempre outros nomes os indiquem à nossa atenção.
E a todos ficaram para sempre ligadas a lembrança e a saudade dos acontecimentos
prodigiosos conta dos na «Odisseia».
É esta a gloriosa história de Ulisses, do homem de mil façanhas e ardis, do herói que,- depois
do cerco, tomada e incêndio de Tróia, cidade célebre da Ásia Menor, - visitou as cidades mais
diversas, conheceu gentes estranhas e enfeitiçou a alma de povos distantes. Num frágil navio,
errou sobre as ondas incertas, cheio de angústia, transido de aflição, perseguido por monstros
cruéis, abandonado de socorros. Tudo venceu, afinal, mercê da inteligência, do trabalho, da
audácia e, sobretudo, da sua clara e serena razão. Companheiros que levou consigo na viagem
arriscada, morreram pelo caminho. Mas Ulisses resistiu aos piores perigos e aos maiores
sofrimentos E as suas aventuras foram tão surpreendentes, e a sua coragem tão excepcional se
mostrou, que o tornaram imortal na memória das gerações.
2
OS Gregos eram ricos e gostavam de ser ricos. Mais estimavam, porém, a beleza. E por isso
Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta, que era a mulher mais linda da Grécia, e cuja
formosura deslumbrava o Mundo inteiro, resguardavam-na como tesouro sem par.
3
Assim, ficaram indignados e furiosos no dia em que os Troianos, - povo do outro lado do mar
que banha as costas ocidentais da Grécia - ciosos de tal fortuna, roubaram Helena e, com ela,
ouro e prata aos montões. Logo resolveram os Gregos reconquistar o que lhes pertencia, tanto
mais que os seus reis e chefes tinham jurado ao pai de Helena nunca a deixarem sair de junto
do marido, nem da terra natal.
Prepararam barcos, armaram soldados, e navegaram em demanda de Tróia. Ali chegados,
puseram cerco à cidade.
Ulisses, rei de Ítaca, acompanhava-os.
Ítaca é uma ilha do Mar Jónio, cujo povo amava e prezava o seu rei. Não era Ulisses muito
amigo de batalhar. Diz-se que se fingira louco para não pegar em armas, e que, na hora em
que o chamaram para a guerra, como quem não entende o que lhe pedem, foi lavrar um
campo das suas herdades com a charrua afiada.
4
Mas os outros gregos puseram Telémaco, filho de Ulisses e ainda então pequenino, diante da
charrua. Ulisses, com receio de feri-lo não se atreveu a continuar. E os companheiros disseram
logo:
- Não é doido quem sabe poupar a vida aos filhos.
E obrigaram-no a partir...
Não se vá julgar que Ulisses fosse cobarde.
Era apenas um homem pacífico, sensato, só gostando de lutar em último caso. Não teve
remédio porém, senão ir combater no cerco a Tróia. E, durante o cerco, Ulisses praticou feitos
notáveis e aconselhava e animava constantemente os companheiros, inventando
estratagemas de subtil engenho, que deram todos óptimo resultado.
O cerco levou dez anos. Os Troianos ficaram vencidos. Tróia, queimada e assolada pelos
inimigos, arruinada para sempre. Helena, sempre formosa, à Grécia voltou com Menelau. E os
outros príncipes gregos voltaram também aos seus reinos.
5
Só Ulisses, ao regressar com eles, se perdeu da frota e andou longe de Ítaca dez anos seguidos
- tantos como os passados defronte de Tróia...
Enquanto não voltava, Penélope, sua esposa, e Telémaco, filho dedicado, esperavam-no cheios
de ansiedade, muitas vezes desesperando de tornar a vê-lo...
Ora Penélope, julgada viúva por muita gente, era pretendida por numerosos príncipes, que
desejavam casar com ela. Bem os tentava ela desiludir recusando-se ao casamento!...
Cansada da insistência dos pretendentes, chegou até a prometer-lhes que entre eles escolhe
ria esposo no dia em que terminasse um grande lençol de linho que estava tecendo, e que
destinava - dizia ela - a amortalhar, como lhe cumpria, o velho pai de Ulisses, Laertes, no dia
em que a morte o chamasse. Mas, de noite, desmanchava e inutilizava todo o trabalho feito
durante o dia. Raivosos, os pretendentes não arredavam pé do palácio.
6
E não só o enchiam com o ruído dos seus jogos e discussões - cada um julgando-se mais digno
do que os outros da mão de Penélope - como ainda comiam, bebiam e vestiam-se à custa dos
forçados hospedeiros, delapidando a fortuna de Telémaco, criança demais para podê-los
expulsar da sua casa.
O tempo arrastava-se tristemente para a mulher e para o filho de Ulisses. Mas Telémaco, ano
após ano, ia-se fazendo homem, e de fraco e Inocente que fora tornava-se um rapaz decidido e
forte, e sempre com a saudade do pai a torturar-lhe o coração. Um dia apareceu-lhe a deusa
Minerva - protectora de Ulisses - e incitou-o a que não continuasse ali sem tentar procurar o
pai. Que fosse perguntar por ele a Nestor, um dos antigos combatentes do cerco de Tróia,
dizia.
Mentor, velho companheiro e amigo de Ulisses, que habitava Ítaca, instigou-o também a que
partisse. Uma bela madrugada, lá vai Telémaco para a cidade de Pilos, cujo rei era o próprio
Nestor; e, depois de ter ouvido as informações que este lhe forneceu, seguiu, acompanhado
de um dos filhos de Nestor, Pisístrato, para o reino de Menelau.
7
Chamava-se essa terra Lacedemónia. Ali o esposo de Helena revelou -lhe que Ulisses habitava
a ilha governada pela ninfa Calipso. Quem lho dissera? Proteu, deus do mar, que vai a todas as
terras banhadas pelas ondas e a todas conhece. Telémaco imediatamente resolveu regressar
para junto da sua mãe, na pressa de lhe comunicar o que soubera. Nem mesmo aceitou o
convite de Menelau, que desejava tê-lo ainda alguns dias em Esparta. Demais a mais, Minerva
aparecera em sonhos a Telémaco, e avisava-o de que os pretendentes continuavam a
perturbar a paz do seu lar, e preparavam mesmo uma cilada, no intuito de matá-lo no caminho
do retorno.
Despediu-se de Menelau agradecendo a amorável recepção e a afectuosa hospitalidade que o
esposo de Helena lhe oferecera, e preparou-se para volver à Pátria. Não foi muito fácil o
regresso, nem isento de perigos. Mas, antes de contá-lo, vamos nós saber o que fazia e queria
Ulisses, o herói subtil, - o inventor famoso de mil habilidades e manhas...
8
CALIPSO era uma ninfa, mulher no aspecto, deusa na alma e na imortalidade. Ulisses, ao
regressar de Tróia com vários dos seus camaradas, todos embarcados num pequeno navio,
naufragaram em pleno mar. Uma tempestade terrível embravecia e enegrecia as ondas, e
lívidos relâmpagos se cruzavam no céu.
9
Incendiado por uma faísca, o barco afundou-se. Só Ulisses escapou da morte, e, durante nove
dias, errou ao sabor das vagas. Por fim, abraçado aos restos da quilha do navio, o mar atirou-o
às praias da ilha de Ogígia, onde morava Calipso, A ninfa recolheu Ulisses com verdadeiro
carinho. Achou-o logo tão digno do seu amor que se propôs casar com ele, prometendo-lhe
que o tornaria imortal e eternamente jovem. Mas Ulisses não queria ser imortal, nem
eternamente jovem... O que ele sonhava e ambicionava era voltar a governar o seu povo, era
ficar o resto da vida junto da mulher e do filho.
Apesar de ser muito bem tratado - a própria Calipso o servia às horas das refeições; de andar
vestido com tecidos ricos e macios, dos tecidos com que se vestiam os deuses; de não sofrer
nem frio, nem fome; de estar longe de temporais, de aventuras, de lutas e de necessidades; de
ter tudo quanto lhe apetecesse e lhe fosse preciso, - Ulisses aborrecia-se e lamentava-se
constantemente.
A saudade de Ítaca não o abandonava nunca. Para saudade tão grande, nem Calipso seria
capaz de encontrar consolação possível...
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Ao fim de sete anos, Minerva, do alto Olimpo, radiosa pátria dos deuses, compadeceu-se do
pobre Ulisses. Sempre o estimara e admirara pela sua inteligência e habilidade. E agora sentia
que já era tempo de não o fazer sofrer mais. Conseguiu então que Júpiter, seu pai, e pai de
todos os deuses, mandasse o mensageiro Mercúrio dizer a Calipso que desse a liberdade a
Ulisses e lhe fornecesse todos os meios indispensáveis à sua partida de Ogígia e à sua travessia
até à cidade de Ítaca.
Estava Calipso na sua habitação, que era uma gruta encantadora, trabalhando num lindo tear
de rico marfim com uma lançadeira de ouro. Madeiras olorosas ardiam alegremente à entrada
da gruta. Olmos, choupos e ciprestes, povoados de aves gorjeantes, sombreavam a gruta
agasalhadora, e vinhas cobertas de cachos vestiam as pedras. Quatro fontes prateadas
nasciam cada uma de seu lado, e cercavam com suas águas límpidos prados esmaltados de
toda a espécie de flores. Calipso ali vivia, contente, enquanto Ulisses chorava a desdita do seu
exílio, o olhar sempre atraído pelos horizontes do mar...
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Assim os encontrou Mercúrio. E dirigindo-se à ninfa, depois de ter recebido das mãos dela a
ambrósia e o néctar, comida e bebida dos deuses, logo lhe transmitiu as ordens de Júpiter, que
eram mandar embora Ulisses, dando-lhe embarcação e provisões para a viagem até ao seu
reino. Calipso, embora triste por ter de ficar sozinha, não ousou desobedecer. Mercúrio voou
para o Olimpo. E a ninfa logo chamou Ulisses e lhe comunicou a boa nova, acrescentando:
- «Não te queixes mais, príncipe desgraçado; abate algumas árvores da floresta, constrói uma
jangada que te leve sobre as vagas; oferecer-te-ei as provisões necessárias, e vestuário que te
defenda da violência do ar; farei com que um vento favorável te conduza em boa hora à tua
pátria, se os deuses te quiserem conceder um regresso feliz».
Ulisses quase nem acreditava em tal promessa! Mas quando verificou que era sincera e
verdadeira, riu e chorou de júbilo. e não hesitou mais.
A noite chegara, e teve de conter a sua impaciência até ao dia seguinte.
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Mas, assim que a manhã rompeu, Calipso entregou-lhe um belo machado de bronze, de finos
gumes; com sólido cabo de oliveira, e levou-o à extremidade da ilha onde as árvores eram mais
fortes e maiores. Com traves de olmo, de choupo e de pinheiro fez Ulisses a jangada. Sempre
que uma ferramenta lhe era necessária - agora uma serra, logo uma verruma - a ninfa aparecia
e dava-lha.
Pregos e cordas prenderam e ligaram bem as tábuas. Cercou-se de uma espécie de amurada,
carregou um lastro pesado no fundo. Ergueu mastros, prendeu as velas e o leme. No fim de
quatro dias a obra ficou pronta. No quinto dia, vestido das magníficas roupagens que a ninfa
lhe dera, provido de pão, de carne, de vinho e de água doce, Ulisses, confiadamente, abriu as
velas ao vento, e pôs-se ao leme, atento e lembrado dos conselhos de Calipso. Esta
recomendara-lhe, para quando a noite caísse, rumo sempre à esquerda da constelação da
Ursa-Maior. Luziam-lhe os olhos de contentamento e nem sequer - tão entusiasmado partia receava os perigos que certamente teria de vencer, lamentava o sossego que para sempre ia
deixar...
13
Dezassete dias vogou o nosso herói, sem que o tempo mudasse. Mar bonançoso, céu límpido.
No décimo oitavo dia, avistou as sombrias e maciças montanhas da terra dos Feácios,
passando pelas quais o seu caminho se tornaria mais curto. A bruma cercava aquelas paragens.
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E, obscurecida, entristecida pelos nevoeiros e as nuvens, essa terra pareceu-lhe hostil como
negro escudo de aço.
Ora Ulisses tinha um grande inimigo em Neptuno, deus do mar, que detestava todos quantos
se atreviam a devassar-lhe os domínios.
Exactamente neste momento, Neptuno voltava de uma viagem que fizera ao povo distante dos
Etiópicos. Mal viu a jangada de Ulisses cortando as águas e levada por um vento favorável,
ficou desesperado. Ajunta as nuvens, agita o mar com o seu tridente - que é o ceptro que
sempre o acompanha – e a terra e o mar envolve-os em espessas trevas. Não se via nada,
nada! Tudo profunda cerração! O vento sul, o vento leste, o violento Zéfiro e Bóreas, - Bóreas,
o tirano dos mares, - desencadeiam-se no ar e fazem de cada vaga uma montanha altíssima.
Ulisses sente-se já sem força e sem coragem perante a fúria do temporal.
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E pensa então que melhor teria sido morrer junto dos muros de Tróia, chorado pelos seus
amigos e companheiros de luta, do que morrer ali, ignorado de tudo e de todos, sofrendo a
triste sorte de não escapar aos elementos desenfreados, no mugido horroroso das ondas e do
vento…
Pensava isto, chorava a sua sorte e logo uma vaga mais terrível cai na ponta da jangada e fá-la
andar à roda, em turbilhão. Ulisses tem de largar das mãos o leme, o mastro quebra-se no
meio, a vela e a enxárcia vão pelo ar. O mar passa por cima do seu corpo. Vai ao fundo,
arrastado pelo peso das ricas vestes oferecidas por Calipso.
Depois de muitos esforços, consegue enfim voltar à superfície. Escorre catadupas de água,
mexe-se e respira com dificuldade. Não esquece, porém, a embarcação. Salta de novo para
cima das tábuas que, bem presas e seguras como estavam, apesar de tudo resistiam. Ao sabor
das correntes deixa-se ir vogando. Os ventos atiram-no de um lado para o outro. o mar não se
acalma.
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Mas Ulisses não abandona as tábuas, que flutuam. O pior, todavia, não passara ainda...
Uma onda maior levantou-se e caiu, redemoinhando, sobre a cabeça do pobre navegador.
Desfaz-se a jangada em pedaços, as traves que a compunham-vai cada uma para seu lado. Não
importa!
Ulisses despe os trajes encharcados, e agarra-se a uma das tábuas, cavalgando-a como a um
corcel domesticado. Estaria perdido, porém, seria vítima do mar, da tempestade, da falta de
alimentos e de água doce, se não pudesse breve apartar a uma praia calma.
No entanto a sua protectora, Minerva, não o olvidava nunca, e ao sabê-lo em tão angustioso
transe correu em seu auxílio. Deteve a fúria dos ventos. Só Bóreas, o vento norte, ficou em
liberdade, mas obediente e suave para aplacar a violência das ondas, e impelir Ulisses para a
terra dos Feácios. Ainda o herói andou dois dias e duas noites no mar, receando a morte,
fugindo à morte, vendo a morte a persegui-lo a cada instante.
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Na madrugada do terceiro dia, o vento caiu, a tempestade amainou, e Ulisses, do cume de
uma vaga, abraçado ao lenho que o não deixava ir ao fundo, viu terra próximo. Finalmente!...
Tal como a alegria dos filhos que, de súbito, olham o pai quase moribundo voltar à vida depois
de uma longa doença, assim foi a alegria do herói. Nadou então ardorosamente para chegar ao
litoral.
Mas, ai! a costa eriçava-se ali de rochedos ásperos, de escolhos pontiagudos e, contra eles, o
mar espirrava e ululava sinistramente. Inspirado por Minerva, lá escapou a ser despedaçado
contra os penedos rudes: - avançou as mãos, agarrou-se firmemente ao primeiro rochedo, e ali
tentou manter-se.
Eis que o refluxo das ondas o torna a levar para o largo. Teimoso, não desanima. Com sanguefrio extraordinário, resolveu nadar afastado da costa, sem se deixar levar, para junto dos
penhascos, até que o destino lhe mostrasse um sítio mais acolhedor para tomar pé.
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Efectivamente, encontrou, na embocadura de um rio que desaguava perto, praia serena e
macia, onde,- e já não era sem tempo! - descansa de tão perigosa e extenuante viagem. Beijou
a terra, comovido, e tratou de procurar abrigo para repouso maior.
Um bosque cerrado, que o rio banhava, ofereceu-lhe resguardo. As folhas fofas atapetavam
tão espessamente o solo, que Ulisses pôde arranjar com elas uma cama fofa. Deitou-se num
colchão de folhas, cobriu-se com um cobertor de folhas, sob as frondes de duas oliveiras, uma
selvagem, outra cultivada, que - estranho caso! - parecia nascer da mesma raiz. Tão
entrelaçados estavam os seus ramos, que nem sopro de vento, nem raio de sol, nem gota de
chuva ali tinham penetrado jamais. Satisfeito e seguro, Ulisses dormiu depois largas horas
tranquilas. Como homem que, em descampado distante de terras povoadas, aconchega nas
cinzas as brasas do lume que dificilmente conseguira acender, receando que ele se apague - o
pai de Telémaco escondeu-se e aconchegou-se debaixo das folhas, para se defender de
qualquer ameaça que porventura surgisse. E assim adormeceu na paz da natureza.
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ONDE teria aportado Ulisses? Que terra, que região seria essa, logo tão acessível, tão
carinhosa e amável- que lhe permitia imediato e seguro descanso e a delícia do sono reparador
de trabalhos e fadigas?
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Era a linda Ilha de Córcira, hospitaleira aos navegantes e governada por Alcino, rei generoso,
que habitava em palácio magnífico numa cidade toda cercada de altas muralhas. Alcino era
casado com a rainha Arete que lhe dera uma filha chamada Nausica, a mais bonita das
raparigas da região, semelhante às deusas pelo espírito radioso e pela graça e elegância
fascinantes.
Ora, enquanto Ulisses dormia na cama de folhas e musgos, Nausica repousava no aposento
sumptuoso que o pai lhe destinara, todo forrado de mármores claros como a sua alma de
menina. Repousava e sonhava. E, em sonhos, viu aparecer uma das suas aias que lhe dizia:
- «Nausica, porque és tão preguiçosa e negligente? Não tratas dos teus vestidos com cuidado.
No entanto o dia do teu casamento aproxima-se e terás que vestir o mais lindo, distribuir os
outros a quem te acompanhar a casa do teu esposo. Dessa maneira procedem as pessoas bem
educadas.
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Vai, pois, lavá-los e prepará-los com todo o cuidado assim que a aurora apareça. Eu te
acompanharei e ajudarei. Não tardará muito que te peçam em casamento. Os rapazes mais
subidos da ilha pretendem-te e querem-te. Roga a teu pai licença para ires lavar os teus
vestidos. Ele que te dê um carro e cavalos, para transportares a roupa toda. Tu própria guiarás
os corcéis dóceis. Os lavadouros são longe da cidade, e a pé não te ficaria bem fazer tão longa
caminhada».
Acordou então Nausica. Mas envergonhou-se de falar ao rei, seu pai, no casamento anunciado
em sonhos. Apenas, no desejo de obedecer à voz que lhe falara, foi ter com ele e disse-lhe:
- «Não desejarás tu, meu querido pai, que eu lave e prepare os trajes que precisam de ser
limpos, para que não vás a conselho e não discutas os negócios do Estado senão envolto em
vestes puras e sem nódoas? E os trajes dos teus cinco filhos, meus irmãos queridos?
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Gostam também de ter todos os dias fatos lavados de fresco, para assistir às danças e
divertimentos. Ora todas essas coisas ocupam e preocupam o meu espírito... Se me desses um
dos teus melhores carros iria já tratar de tudo».
Logo o rei Alcino disse que sim, e Nausica parte, no leve carro, cercado das companheiras e
aias mais estimadas, para os lavadouros que eram perto da foz do rio. A mãe, carinhosa,
mandou pôr no carro um cesto com saborosa merenda, um pequeno odre de vinho, e também
um grande frasco de essência, para que a princesa e as aias, depois do banho que certamente
tomariam, se pudessem logo perfumar.
Lavados os vestidos, estendidos à beira-mar, para que o sol os secasse mais depressa, Nausica
e as aias tomam banho, perfumam-se e entretêm-se a jogar a péla. Dormia Ulisses ali perto.
Nem sequer desconfiaram da sua presença... Chegou a hora, porém, de voltarem ao palácio.
Já as mulas estavam atreladas, e a roupa empilhada no carro.
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Uma última vez, Nausica atirou a péla, para dar a guardar a uma das companheiras. Errou o
alvo... A péla foi cair ao rio. Começam as meninas todas a gritar, em risonho alarido. E eis que
Ulisses acorda do seu sono profundo, e não percebendo a razão dos gritos e gargalhadas, quer
saber o que sucede, sai precipitadamente do seu esconderijo e corre para o lado onde estava
Nausica.
Que espanto e medo houve entre as jovens que brincavam, descuidadas! Ulisses, desgrenhado
e mal coberto por alguns ramos mais tenros de árvores, com o sal da espuma do mar ainda
pegado aos cabelos e às faces, parecia um monstro. Só Nausica não foge e não treme. As aias
deixam-na sozinha em frente do Herói, que, deslumbrado perante a encantadora princesa, a
ela se dirige de longe, prestando-lhe homenagem.
- «Princesa, exclamou Ulisses, vês diante de ti um humilde suplicante. És deusa ou mortal? se
és deusa, certamente o teu nome é Diana, filha resplandecente e majestosa do grande Júpiter.
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Se és mortal, felizes o teu pai e a tua mãe, felizes os teus irmãos! Que perene alegria para eles
será a alegria de contemplarem pessoa tão resplandecente! Mas ainda mais feliz do que todos,
há-de ser o esposo que te levar consigo. Nunca imaginei formosura maior! Lembras-me a linda
palmeira que vi um dia em Delos, erguida de repente do solo em sua leve e altiva esbeltez. Nas
minhas viagens através do mar, passei nessa ilha. Pois a surpresa e a admiração que me
causas, só então as senti. Não beijo respeitosamente os teus joelhos, porque tenho medo de
te ofender. Sou um homem acabrunhado de dor e tristeza. Vinte dias completos errei nas
ondas, Tem piedade de mim, ensina-me o caminho da cidade, dá-me qualquer trapo com que
me possa vestir. És a primeira pessoa que, desde que ontem aqui cheguei, se me depara. Sê
misericordiosa. Em paga dos benefícios que te peço, que o teu futuro marido seja digno de ti e
haja felicidade no teu lar. Pois a maior dádiva que os deuses podem fazer ao esposo e à esposa
é a união perfeita e o bom entendimento...».
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A bela Nausica respondeu:
- «Estrangeiro, os teus modos e o bom senso que revelam as tuas palavras, mostram que não
és de ruim nascimento. Júpiter distribui o bem aos maus e aos bons, conforme agrada à sua
providência. Deu-te o mal em partilha, tens de suportá-lo. Mas, na nossa ilha, não te faltarão
agasalhos e todos os socorros que um estrangeiro, vindo de tão longe, deve esperar daqueles
a cuja pátria chega. Dir-te-ei o nome da cidade e do povo que a habita. Estás na ilha dos
Feácios, e eu sou a filha do grande Alcino, que é o rei desse povo».
Assim falou Nausica. E vendo-se abandonada das aias e companheiras, que tinham fugido,
gritou-lhes:
- «Não vos assusteis. Ninguém ousaria abordar com más intenções esta ilha situada no fim do
mar, e cujo isolamento é a sua melhor defesa. Este homem, que vedes, persegue-o um destino
cruel, e foi a tempestade que o arremessou às nossas praias.
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Temos de cuidar dele com solicitude e carinho, pois todos os estrangeiros e todos os pobres
são enviados dos deuses; o pouco que se lhes dá, vale de muito, faz-lhes muito bem, e sabemno agradecer; dai-lhe de comer e banhai-o no rio, em sítio abrigado dos ventos».
As aias obedeceram às ordens da princesa, Conduzido ao banho, Ulisses foi lavado e vestido
depois com a roupa e a túnica que lhe emprestaram, e perfumado com o resto da essência que
sobejara. Nem parecia o mesmo. Limpo das crostas de sal que desfiguravam o seu rosto,
penteado de modo que o farto cabelo encaracolava e caía harmoniosamente sobre os ombros,
envolto nos trajes ricos dados por Nausica, a sua figura readquiriu a majestade natural.
A princesa e as companheiras admiravam essa transformação completa. Mas depressa se
lembraram de que Ulisses ainda não tinha comido. Trouxeram-lhe de comer. Quando o viu
satisfeito e repousado, Nausica saltou para o carro, tomou as rédeas na mão, e aconselhou
Ulisses a segui-la no meio das aias, que iam correndo a pé.
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Assim que chegassem ao palácio – advertiu também - Ulisses deveria dirigir-se à sala onde
estava Arete, mãe de Nausica, junto de Alcino, ambos sentados ao pé do lume da grande
lareira que iluminava e aquecia a casa. Ali, ajoelhado aos pés da rainha, pediria hospitalidade e
auxílio para tornar a ver os amigos, a família e Ítaca sempre lembrada.
Ulisses obedeceu a todas estas indicações. Tão depressa e tão ligeiro corria, que ninguém deu
por ele até alcançar o palácio.
Todo o soberbo edifício fulgurava: - os muros do pátio da entrada eram de bronze, cercados de
um friso azul-celeste; as portas eram de ouro maciço; as ombreiras, de prata; o soalho, de
bronze; de bronze também as cimalhas e de ouro puro as argolas dos fechos; ladeando e
guardando as portas, havia de cada lado dois grupos de cães, de ouro e de prata, mas vivos e
imortais, que ali estavam sempre vigilantes e nunca envelheciam. Ao longo das paredes, desde
o limiar até ao fundo, enfileiravam-se tronos cobertos de tapetes de maravilhoso tecido, obra
das mulheres da ilha.
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Quando Ulisses chegava, realizava-se no palácio um grande festim, como tantas vezes
acontecia. Erguidas sobre pedestais magníficos, estátuas de ouro representando vigorosos
adolescentes seguravam archotes acesos, que iluminavam toda a sala.
Cinquenta escravas, ricamente vestidas moíam o trigo louro, ou cruzavam fios preciosos nos
teares. Os Feácios eram em tudo um povo ilustre e sábio: - os homens, superiores a todos para
governar os barcos no meio do mar; as mulheres hábeis nos mais difíceis bordados e tecidos
luxuosos.
Árvores de fruto, carregadas de pomos vinhedos que frutificavam em todas as estações, horta
sempre verdejante, relva sempre fresca e lustrosa, rodeavam o belo edifício. Ulisses
contemplava embevecido aquela maravilha consolado das dolorosas provações que sofrera
em pleno mar. Mas bem depressa sacudiu o encanto que o tomara.
Entrou na sala do festim, aproximou-se de Alcino e de Arete, e ajoelhando aos pés desta,
suplicou-lhe socorro e auxílio para poder regressar à sua terra.
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A numerosa assembleia, que não tinha reparado na chegada do Herói, ficou estupefacta.
- Quem seria, donde viria aquele estrangeiro? - perguntavam todos.
Ulisses, humildemente, sentara-se na pedra da lareira. Olhavam-no com surpresa. Mas breve o
sentimento de hospitalidade foi maior do que o espanto. E o mais velho dos Feácios ali
reunidos, em nome de todos pediu ao rei que mandasse sentar Ulisses num dos tronos
atapetados, e lhe mandasse oferecer da melhor comida e do melhor vinho que eles
saboreavam.
Logo Alcino obedeceu a essa generosa súplica. Ulisses come e bebe quanto lhe ape tece. Toda
a gente o contempla com respeito, e Alcino julga até que ele seja um deus. Mas Ulisses narra o
que lhe sucedera e indica os socorros de que precisa. Prometem o rei e os príncipes auxiliá-lo o
melhor que soubessem e pudessem. E, terminado o banquete, os convivas separaram-se, e
Ulisses fica apenas na companhia do rei e da rainha de Córcira.
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Puderam então estes interrogá-lo à vontade, indagar tudo quanto dizia respeito ao estrangeiro
desconhecido, que tão súbita e imprevistamente surgira no meio da festa.
Conta Ulisses a sua história. A estada em Ogígia, a partida na frágil jangada, o temporal que o
assaltara, a luta com as ondas, o sono reparador na floresta espessa e acolhedora, o encontro
feliz com Nausica, a bondade que a princesa lhe manifestara, e a saudade imensa de Penélope,
de Telémaco, da boa terra de Ítaca, a sua Pátria, que o pungia constantemente.
Comoveram-se ao escutá-lo o rei e a rainha.
E prometeram a Ulisses barco, tripulação e mantimentos para que ele pudesse regressar,
tranquilo e confiado, ao país distante onde a esposa e o filho o esperam, ansiosamente...
A noite caía, nessa hora de esperança jubilosa, há muito não sentida pelo subtil Ulisses. Arete
mandou preparar um leito confortável, coberto de púrpura fina, onde o Herói repousasse das
suas fadigas e proezas.
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Pronto o leito, Ulisses despediu-se dos seus clementes hospedeiros. E todos três, até que a
aurora rompeu, descansaram em silêncio no palácio de mármore, de ouro e de bronze, que a
bondade graciosa de Nausica abrira ao náufrago errante, perdido longe de tudo quanto mais
desejava e amava...
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ROMPIA a manhã, e já A1cino e Ulisses se encontravam no porto de Córcira. Convocados a
conselho, os Feácios mais importantes ali se achavam também, para decidir do valor e da
natureza do auxílio que o rei queria prestar ao Herói.
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Foi rápida a consulta e mais rápida a decisão. Os actos de coragem de Ulisses narrados por
Alcino, concitaram logo todas as simpatias. Um navio novo, tripulado por cinquenta e dois
remadores, foi posto à sua disposição. E, terminados os preparativos da viagem, o rei convidou
o conselho e os tripulantes do navio a assistir a uma festa de despedida que resolvera oferecer
ao estrangeiro ilustre, a quem se deviam prestar homenagens e honras especiais. Ao mesmo
tempo, mandou chamar o músico Demódoco, célebre pela sua divina e inigualável arte de
poetar e cantar.
Demódoco era cego, mas a cegueira parecia que dava mais sentimento ao seu canto.
Trouxeram-no pela mão, sentaram-no num banco marchetado de prata, contra uma coluna
onde pendurou a lira. Comeu e bebeu primeiro. Pegou na lira em seguida e começou a cantar.
O que dizia e cantava ele? Coisas da guerra de Tróia, evocações daquela grande luta em que
Ulisses tomara tão grande parte.
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Coisas famosas, que o poeta cantava e os outros ouviam, sem desconfiarem sequer de que era
o próprio Ulisses o homem cuja presença festejavam! E toda a gente aplaudia, menos Ulisses
que chorava, recordando esse passado em que, embora combatendo e sofrendo, estava junto
dos outros gregos e julgava próxima a volta à sua terra.
A festa que Alcino organizara era variada e pitoresca. Acabado o canto de Demódoco, partiram
os convidados para o campo de jogos. O povo enchia a vasta arena. Mancebos robustos e ágeis
apresentaram-se então e, nas corridas a pé, na luta corpo a corpo, no lançamento do disco, e
nos saltos, mostraram a sua destreza, a sua força disciplinada e a sua resistência ao cansaço.
O próprio Ulisses foi convidado a tomar parte nos jogos, e logo lançou o disco tão longe que
nenhum dos outros jogadores, embora moços e não fatigados de viagens tormentosas, como
ele estava, nem sequer o igualaram!
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Mas Alcino, cuidadoso da saúde e sossego do hóspede, não consentiu que Ulisses se cansasse
mais, e mandou chamar outra vez o velho tangedor de lira, ao som da qual os jovens
corcirenses começaram a bailar com harmoniosa ligeireza...
Alcino, que se convencera definitivamente da nobre estirpe e da grande inteligência de Ulisses,
resolveu, entretanto, que não só ele mesmo, mas também os principais chefes do seu reino,
oferecessem valiosos presentes ao destemido e glorioso Herói.
Ordenou, pois, que os jogos cessassem, que a sua corte recolhesse ao palácio e que, ali, Ulisses
fosse banqueteado e recebesse as dádivas dos Feácios. Assim aconteceu. E, mais uma - vez,
Demódoco veio acompanhar e alegrar com os seus cânticos a cerimónia festiva. E - caso
extraordinário! - o poema que então cantou foi uma das mais espantosas proezas de Ulisses
durante a guerra, uma dessas proezas notáveis cuja fama chegara a toda a parte e que
Demódoco evocava nesse momento, não pressentindo que a ouvia o seu próprio autor!
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Era a história do cavalo de pau, que Ulisses imaginou mandar construir quando, com os seus
compatriotas, combatia no cerco de Tróia. O enorme corcel de madeira, pintado e oco,
exactamente igual, com as crinas e a cauda, a um cavalo verdadeiro, podia conter um certo
número de guerreiros, armados e prontos para a luta.
Ulisses escolheu alguns dos melhores capitães e, com eles entrou para dentro do cavalo
fingido, mandando fechar a abertura por onde passara, e ordenando que os outros gregos
impelissem para o interior de Tróia a pesada máquina.
Assim se fez. O cavalo, empurrado com toda a força, e rodando nas rodas que tinha nos pés,
foi colocado junto de uma das portas da espessa muralha que defendia Tróia. Ali esteve algum
tempo, até que os Troianos deram por ele. Bicho tão grande, e sempre imóvel, acabou por
interessá-los e preocupá-los...
Demais a mais, não se mexia, não relinchava, não respirava!... Que seria?
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Coisa má não era, com certeza, pois tinham-no espicaçado de longe, e o cavalo permanecia
imóvel. Resolveram trazê-lo para a cidade. Puxa de aqui, empurra dali, veio o monstro até ao
meio de vasta praça, e os Troianos, curiosos e indecisos, quedam-se a discutir, de volta dele, o
destino que melhor convinha dar-lhe.
Uns queriam cortá-lo em pedaços; outros, alvitram que se transportasse a misteriosa
avantesma para cima da muralha e de lá fosse precipitada para o fosso marginal; e ainda
outros diziam que não era bom tocar-lhe, que deveria ser inviolável, que merecia oferecer-se e
consagrar-se aos deuses, como dádiva capaz de apaziguá-los e de suscitar a sua protecção e
auxílio.
Foi esta a opinião que prevaleceu. Todos a aceitaram, e regressaram ao trabalho e à luta
deixando o cavalo sozinho no meio da praça. Assim que os chefes gregos, muito calados lá
dentro, perceberam que não havia ninguém perto, abriram o postigo por onde tinham
entrado, saíram um a um, do grande corcel de pau e espalharam-se pelos bairros e ruas de
Tróia.
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Foi uma coisa terrível! Incendiaram e saquearam as casas, mataram uma quantidade imensa
de troianos desprevenidos, assustando, afugentando, perseguindo a população inteira.
E - cantava Demódoco - foi então que Ulisses, igual na coragem e no ímpeto a Marte, deus da
Guerra, se dirigiu ao palácio do filho do rei dos Troianos, Deifobo, que obrigara Helena a casar
com ele. Apenas acompanhado de Menelau, sustentou então um longo e difícil combate
contra numerosos inimigos, conseguindo enfim vencer pela audácia, inteligência coragem que
nunca lhe faltavam, e que eram sempre em Ulisses incomparáveis e dominadoras...
Este, ao ouvir tão eloquente louvados os seus actos, não pôde reter as lágrimas. Alcino, que
estava sentado à sua ilharga viu-as correr silenciosamente, e compreendeu a angústia
profunda das recordações que elas despertavam. Mandou então calar o sublime Demódoco, e,
voltando-se primeiro para os Feácios e depois para Ulisses, disse-lhes:
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- «Príncipes e chefes do meu povo, mandei calar Demódoco, porque nem a todos quantos o
escutam o seu canto parece agradar. Desde que nos sentámos à mesa e que Demódoco
principiou a cantar, o estrangeiro que recebemos e albergámos com o nosso mais puro
carinho, não cessa de chorar e de gemer. A tristeza enluta o seu espírito. A hospitalidade
honesta e agradável exige, pois, que se evite esse motivo de mágoa.
«A festa que estamos realizando é só para distracção do nosso hóspede; para ele preparámos
um barco veloz, a ele oferecemos os nossos presentes - do fundo do coração. Um suplicante,
um hóspede deve ser considerado como amigo e irmão por todo e qualquer homem digno
sensato. Mas também, meu hóspede – continuou Alcino, dirigindo-se a Ulisses - não é justo
deixar de corresponder a esta lealdade e amizade. Diz-nos quem és, que nome tens, qual a tua
Pátria, que cidade habitas, para onde desejas ir - a fim de que os nossos barcos, dotados da
vontade e da consciência de quem neles viaja, te possam levar ao teu país.
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São navios mágicos: - não possuem nem leme, nem piloto, mas juízo como os seus tripulantes.
Andam muito depressa, sempre envoltos numa nuvem obscura que os não deixa ser vistos, e
nunca têm a recear naufrágios, escolhos, ventos ou ondas bravas... Conta-nos, pois, sem
disfarce, como perdeste o rumo no mar alto; que cidade e gentes viste; quais os homens que
te foram cruéis e selvagens, e quais te foram hospitaleiros. Conta ainda porque choras ao ouvir
falar das desgraças dos Gregos e do cerco de Tróia e se, diante dos muros dessa capital, te
morreu alguém muito querido. Sê franco, sê leal para connosco, e não ocultes nem uma
parcela da verdade, como nós não ocultamos o nosso desejo sincero de te auxiliar e
proteger...»
Ulisses não podia deixar de satisfazer o pedido de Alcino, que tão bem o acolhera. E, entre o
silêncio de todos os príncipes e chefes, preparou-se para contar a história da sua vida e
tribulações. E o Herói subtil, dominando a saudade que afogava de pranto os seus olhos,
principiou assim…
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…ASSIM começou Ulisses: «Sou Ulisses, filho de Laertes, Ulisses, conhecido dos homens pelas
suas astúcias e façanhas, e cuja glória voa até ao Céu. Minha terra é Ítaca, ilha do clima suave.
Nela morava em palácio erguido como ninho de águias, à sombra do Monte Neritos, todo
coberto de espessas florestas.
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«Rodeiam essa ilha outras ilhas também habitadas: - Doliquio, Samos e Zacinto. Ítaca é a mais
baixa e a última no mar, do lado do Poente. As outras ficam do lado da aurora, onde o Sol
nasce. A minha é de rocha dura, mas nela habitam moços belos e fortes, e nenhuma para mim
é tão doce e terna. Nem na gruta opulenta de Calipso me senti melhor e mais contente do que
em Ítaca, a maravilhosa. É a minha Pátria, o meu berço. Nada vale mais do que a nossa bem
amada Pátria, e a casa, o abrigo e o abraço da nossa família...
«Mas já que assim o queres, Alcino, vou-te contar o que me sucedeu desde que regressei de
Tróia, com os fiéis companheiros que, depois, os naufrágios e os desastres me roubaram. O
vento que então impelia as nossas velas levou-nos ao país dos Cícones, defronte da cidade de
Ismaria.
Ali aportei, saqueei a cidade e conquistei preciosas riquezas.
«Repartidos os despojos, quis que os meus companheiros tornassem a embarcar. Não
escutaram os meus prudentes conselhos; puseram-se a comer e a beber à tripa forra. No dia
seguinte os Cícones, que tinham chamado muitos guerreiros em seu socorro, atacaram-nos e
desbarataram-nos. Mais de seis homens por barco ali pereceram! Prestadas as homenagens
devidas aos
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mortos, recomeçámos a viagem. Mas um vento furioso do Norte cai do céu. Tudo escurece. As
velas rompem-se. Os navios são joguete do temporal. Fomos forçados a voltar a terra, onde,
dois dias inteiros, esperando vãmente que a procela acabasse, nada pudemos fazer senão ficar
estendidos na praia, aflitos e fatigados.
No terceiro dia, a tempestade amainou. Içámos as velas e partimos. O vento soprava de feição.
Íamos enfim voltar, pensava eu, à doce Pátria distante...
«As correntes impetuosas, a agitação do mar e o vento desvairado atacam outra vez os meus
barcos. Nove dias vogámos ao acaso. No décimo dia aproámos ao país dos Lotófagos.
Desembarcamos, vamos buscar água e preparamos uma refeição substancial, para matar a
fome. No justo desejo de reconhecer a terra, e saber se poderíamos descansar tranquilos,
enviei três homens de confiança explorar os arredores. Mas logo lhes aparecem alguns dos
indígenas, gente que se alimenta dos frutos deliciosos do loto, mágico fruto que, mal provado
imediatamente escraviza quem o come à terra onde surge e medra a estranha planta Os
Lotófagos dão-no a saborear aos meus três enviados. E estes, enfeitiçados pelo saboroso fruto,
nenhum pensou mais em voltar aos navios
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«Tive de arrastá-los e amarrá-los no fundo dos barcos, e não deixar que nenhum dos outros
marinheiros se ausentasse para o interior. Depressa dei as velas ao vento e partimos outra vez.
Íamos a caminho da Ciclópia, onde vivem e mandam os Ciclopes, monstros horríveis e ferozes
que vêem apenas por um grande olho redondo, aberto no meio da testa, e que se ocupam em
pastorear cabras.
«Entrámos facilmente e ancorámos no melhor porto dessa região, situada numa ilha pequena
que os Ciclopes não habitavam Muitas cabras andavam por ali e nenhum outro ser vivo
aparecia. Caçámos bastantes animais e, com o resto das provisões que levávamos,
restaurámos as forças. Breve o sono fechou as nossas pálpebras.
«Dormimos descansados porque presença alguma perigosa nos ameaçava Mas, quando a
aurora rosada despontou, organizei, com prudência e cautela, uma expedição à outra ilha
maior, onde viviam os Ciclopes. Comandei-a eu próprio e acompanhava-me um grupo
escolhido de marinheiros Ao abordarmos terra vimos logo em sítio próximo, sobre o primeiro
cabo que dominava o mar, uma alta caverna toda rodeada de eloendros. Era a habitação de
um ciclope gigantesco e, ao mesmo tempo, servia de
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curral a grande quantidade de cabras e carneiros. O monstro, que nesse largo recinto guardava
os seus rebanhos, não convivia com os camaradas. Apascentava sozinho as suas reses, que não
se misturavam com as dos outros ciclopes.
«Levava uma vida solitária e selvagem. Não tinha quase aparência humana: - parecia elevada
montanha, de cimeira estatura que se erguesse acima de todas as montanhas vizinhas. Metia
medo, assustava os mais corajosos...
«Ordenei aos meus companheiros que me esperassem, que não abandonassem o barco,
excepto a doze mais audaciosos com os quais parti em exploração. Levava comigo um odre de
bom vinho, que me tinha sido dado em Ismaria, por um sacerdote do templo de Apolo, cuja
vida poupáramos quando na nossa passagem por aquela ilha.
Vinho delicioso e límpido, bebida divina! Ao seu perfume e sabor ninguém resistia... Na
previsão de que seríamos obrigados a lutar contra um monstro bárbaro e cruel, incapaz de
razão e de bondade, transportámos também connosco certos alimentos reconfortantes. Todas
as cautelas eram poucas, e em breve vereis porquê...
«Chegámos rapidamente à caverna. Não estava lá o dono. Entrámos, e ficámos a admirar a
ordem em que
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tudo estava disposto, guardado c arrumado - desde os cestos de junco a transbordar de
queijos, até aos estábulos cheios de cordeirinhos e cabritinhos, muito limpos, arejados e
separados uns dos outros conforme as idades dos bichos. Havia grande quantidade de vasilhas
com leite coalhado, e outras já preparadas para receber o leite das ovelhas e cabras, que
seriam mungidas no regresso da pastagem. Assim que observámos e admirámos todas estas
coisas, os meus homens pediram-me para regressar a bordo sem demora, de modo a evitar
um encontro com o ciclope. Desprezei tal alvitre, embora fosse de atender... O meu desejo
era, precisamente, ver o monstro frente a frente, custasse o que custasse, embora estivesse
convencidíssimo de que a sua presença não seria nem muito agradável nem mesmo fácil de
suportar.
«Ficámos, pois. E para entreter o tempo fomos comendo dos belos queijos que estavam nos
cestos
«Nisto, surge o gigante. Vinha carregado com um molho de lenha seca para aquecer a ceia, Ao
entrar, atirou a lenha ao chão com tal ímpeto que logo ficámos a tremer de susto. Refugiámonos imediatamente no fundo do antro, escapando assim à sua vista. Depois de se ter libertado
do fardo que transportava, fez entrar as
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ovelhas e as cabras que o seguiam, e deixou à porta os carneiros. Pegou em seguida num
rochedo maior do que a mó de moinho colossal e fechou a caverna. Sentou-se, mungiu as
ovelhas e as cabras, levou cada uma para junto do seu cabritinho, pôs metade do leite a
coalhar, reservou a outra metade para beber à ceia. e acendeu o lume. Então, à luz da chama
que subia da lareira, deu connosco. Estávamos imóveis e silenciosos. Olhou-nos sobranceira
mente e interpelou-nos, furioso: «Estrangeiros, quem sois? Donde vindes nas ondas do mar?
Sois negociantes ou piratas?
«Apavorados com o seu tamanho prodigioso e a sua voz verdadeiramente terrível lá
explicámos, como pudemos, quem éramos e donde vínhamos. Pedíamos só - dissemos - a
hospitalidade piedosa que nunca se recusa aos viajantes de boas intenções e que os deuses
mandam não negar... Não o comoveram estas palavras humildes. Começou logo a clamar, em
altos berros, que não conhecia leis de hospitalidade, que os Ciclopes eram mais fortes do que
'os deuses, e que bem escusávamos de lhe rogar piedade, que esta só dependia das
disposições em que estivesse... E exigiu que o informássemos do sítio onde tinha ficado o
nosso navio...
«Não caí em revelar-lho. Se o monstro era
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manhoso, eu também o sou. E respondi-lhe que o navio se fizera em pedaços, impelido pelas
ondas contra os rochedos da costa; e que os seus fragmentos, dispersos cada um para seu
lado, vogavam ao sabor das ondas e do vento...
«Mal ouviu isto, mal soube que não alcançaria obter mais vítimas, não se conteve mais. Lançase sobre dois dos meus companheiros, agarra-os e esmaga-os violentamente contra as rochas
da caverna. Ficou o solo cheio de sangue. Corta-os depois em bocados, prepara-os para a ceia,
e devora-os com gula. Tão horrível espectáculo fez-nos até esquecer a prudência necessária: largámos a chorar e a soluçar, levantámos as mãos ao Céu, gritámos de aflição. Mas o monstro
nem nos olhava. Pensei em lutar com ele, em atravessá-lo com a minha espada. Bom foi que o
não fizesse, porque então nem um só escapava... Farto e sonolento, o ciclope adormeceu. Nós
nem podíamos dormir. Esperámos o nascer do sol entre angústias insuportáveis. De manhã, o
monstro acordou e devorou mais dois dos nossos. E, satisfeito, partiu para o campo com os
seus rebanhos, e tapou outra vez a entrada da caverna com o rochedo enorme da véspera...
«Fiquei, pois, fechado no antro, junto dos pobres companheiros que ainda me restavam, a
meditar na
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maneira de me vingar do ciclope e de fugirmos todos à sua maldade funesta. Muitas ideias me
passaram pela cabeça. Mas eis o partido que tomei.
«Havia na caverna um grande tronco de oliveira ainda verde. O ciclope tinha-a cortado para
servir de moca, em secando. Era formidável. Tão alta como grossa, parecia o mastro de um
barco de vinte remos! Cortei-lhe uma parte, disse aos meus companheiros que a fossem
afilando. Agucei-a depois na extremidade, e endureci a ponta no lume.
Escondi-a e tirei à sorte os nomes de quem deveria ajudar-me a cravá-la no olho único do
monstro. Caiu a sorte nos melhores, nos mais decididos e corajosos dos meus homens. Feito
isto, resolvemos esperar...
«A tarde chega. Volta o ciclope com os seus rebanhos. Abre e fecha a porta formada com o
penedo. Trata dos arranjos da ceia, e mais dois companheiros, dois amigos, vejo sumir nas
goelas do gigante. Comeu à farta. Quando o julguei satisfeito, aproximei-me e, pegando no
odre de vinho, disse-lhe:
- Ciclope, bebe este vinho, que já comeste carne humana demais. Trazia-o para outro fim,
bebe-o tu, que te há-de saber bem, e vai pensando no mal que fazes a esta ilha, onde
certamente nenhum homem se atreverá a vir sabendo a desumanidade da tua
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conduta…
«Nem respondeu. Emborcou a taça a transbordar de vinho que eu lhe apresentava.
Pediu mais. Bebeu segundo copo.
«Falou-me então quase afectuosamente, elogiou o vinho, perguntou o meu nome, e prometeu
dar-me um presente, como mandam e exigem as boas tradições da hospitalidade. Ofereci-lhe
outra dose de vinho. Quando, meio cambaleante, me abraçava quase, disse-lhe com extrema
doçura:
- Ciclope, perguntas-me o meu nome. É muito conhecido. Mas já que o ignoras, vou-to ensinar,
e terás depois de me entregar o presente prometido. Chamo-me NINGUÉM; meu pai e minha
mãe chamavam-me assim, e todos os meus companheiros me chamam NINGUÉM.
- Ah! sim, respondeu o ciclope. Pois já que te chamam NINGUÉM, NINGUÉM será o último de
vocês todos que eu devorarei. É esse o meu presente!
Ao acabar de dizer estas palavras, tombou para o lado, a cabeça dobrada sobre o ombro ébrio
de todo.
Um sono profundo o toma, e ressona estrondosamente. Não perco um minuto: - vou buscar a
estaca preparada, aqueço-a na cinza ardente, e estimulo a coragem dos meus companheiros.
Juntamos as nossas forças, e no
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olho cerrado do ciclope enterramos o madeiro pontiagudo. Faço-o andar à roda, como
penetrante verruma. E, antes mesmo que o ciclope acordasse, já o tínhamos cegado.
Mas desperta, por fim, e começa a bramir raivosamente, torcendo-se de dores. Afastámo-nos
para longe, não fosse ele deitar-nos a mão! O monstro gritava por socorro, chamava
aflitivamente os outros ciclopes. Vêm todos, acodem todos, e do lado de fora do antro,
fechado ainda, interrogam-no:
- Que te aconteceu, Polifemo? Porque nos acordas no meio da noite? Quem te fez mal?
Alguém atenta contra a tua vida?
O terrível Polifemo responde lá de dentro: -"Ai! meus amigos, é NINGUÉM que me mata, é
NINGUÉM!
- Então, dizem eles, se ninguém te faz mal, de que te queixas? O teu mal não tem remédio, e
não lhe sabemos a causa. Tem paciência e sofre com resignação...
E voltaram para as suas cavernas, enquanto eu ria ao pensar na bela ideia que tivera,
baptizando-me com o nome de NINGUÉM...
Furioso, Polifemo arrastou-se até à entrada da caverna, empurrou o pedregulho que a tapava,
e sentou-se no limiar, abrindo os braços. Imaginava ele que eu era bastante imprudente para
fugir logo. Não, não era ocasião para tentar o destino!
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Por isso, inventei outro estratagema, que nos salvou.
Tinha o ciclope, nos seus grandes rebanhos, bodes de forte corpulência. Escolhi os mais
gordos, cuidadosamente, e atei-os três a três. Os do meio levavam cada um, agarrado à
espessa e comprida lã da barriga, um dos meus camaradas. O bode mais gordo reservei-o para
mim. Segurei-me também à sua lã, na mesma posição, e enchi-me de coragem.
Mas ficámos quietos até ao amanhecer... Rompeu o dia, e o ciclope chamou o rebanho para o
fazer sair. Os animais passavam ao alcance das suas mãos. Apalpava-os no dorso, acarinhavaos, e, por fim, deixava-os sair. Não desconfiou da nossa manha! Corriam os bodes, e lá iam
com eles os prisioneiros de Polifemo! O último a sair foi o meu. Polifemo, que o preferia a
todos, acariciou-o longa mente e queixou-se-lhe da minha vingança:
- Ah! soubesses tu, exclamava, onde pára o tal patife chamado NINGUÉM e decerto mo dirias.
Se lhe deito a mão, esborracho-o e engulo-o num abrir e fechar de olhos. Ao menos, castigaria
a Infâmia que ele praticou, cegando-me e zombando da minha credulidade.
Eu, muito calado, cosia-me com a barriga do carneiro, e agarrava-me aos pêlos da sua lã macia
e fofa com toda a força das minhas
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mãos... O bicho passou a porta, e assim que se apanhou livre, deitou a correr. Respirei.
Estávamos salvos!
Bastante longe da caverna larguei o meu improvisado veículo, e fui desatar os vimes que
prendiam os meus companheiros aos outros animais. Estugámos o passo até ao sítio onde
estava o nosso navio. Os amigos que tínhamos deixado, e que não contavam já tornar a vernos, soltaram gritos de regozijo, abraçaram-nos, festejaram-nos. Mas, quando souberam da
triste sorte daqueles que Polifemo devorara, então choraram angustiosamente...
Ai de nós! Nem tempo havia para o consolo das lágrimas... Convinha partir depressa, fugir
depressa de terra tão perigosa e nefasta. Dei ordem aos remadores. E dentro em breve, sem
que não tivéssemos uma última vez amaldiçoado o ciclope, que lá no alto ainda se lamentava
furioso, gritando: «NINGUÉM! NINGUÉM!», o nosso barco sulcava o mar que gemia sob o
compasso lento dos remos...
Uma pedra enorme, arremessada por Polifemo veio ainda cair perto do barco.
Quase naufragámos!... Foi essa a derradeira despedida do monstro, que não deixámos de
ouvir senão ao tocar na outra ilha, onde parte dos nossos companheiros nos aguardava.
Partimos juntos - o vento era favorável - para regiões talvez igualmente perigosas, mas que
sonhávamos então menos hostis...
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Navegamos tranquilamente e assim chegamos à ilha de Éolia, onde reina Eolo, rei dos ventos.
Eólia é uma ilha errante sobre o mar, cingida por espessas muralhas de bronze que rochas
negras e escarpadas rodeiam e como que apertam.
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O rei que nela reina é pai de doze filhos, seis rapazes e seis raparigas. Vivem todos num palácio
lindíssimo, em festas constantes, e alimentando-se de manjares preciosos. Perfumes
deleitosos pairam no ambiente confortável, que vibra a cada passo de cantos e risos. Aí fomos
recebidos e agasalhados faustosamente durante um mês. O rei, curioso da nossa vida e
aventuras, não se cansava de me fazer perguntas. Respondi a todas. E, acabado o mês, pedilhe que me indicasse qual era o melhor caminho para Ítaca, e que me não recusasse o auxílio
necessário para regressar à minha terra. Quanto lhe pedi, quanto me concedeu. E coroou a
oferta com um odre feito da pele de um dos seus maiores bois, onde encerrou o sopro
impetuoso de todos os ventos, que lhe obedeciam. Ele próprio atou esse odre ao meu navio
com forte cordão de ouro, fechando-o bem para que nem um bafejo saísse de lá de dentro.
Deixou só em liberdade o Zéfiro, brisa suave a quem ordenou que impelisse brandamente os
barcos. E assim aconteceu durante nove dias felizes. As ondas azuis corriam ao sopro calmo do
Zéfiro, e o barco nem hesitava no rumo que lhe traçáramos ao partir…
Mas uma noite, enquanto eu dormia; de que se hão-de lembrar os meus companheiros,
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espicaçados pela curiosidade de saber o que se continha no odre? De espreitar lá para
dentro!... Meu dito, meu feito. Abriram o saco, logo todos os ventos - do Norte e do Sul, do
Este e do Oeste - saíram de uma vez só, e, espalhando-se no ar, provocaram temível e ruidoso
temporal. Acordo ao som do barulho assustador, e vejo os meus companheiros a chorar,
arrependidos já do seu atrevimento. Quase desesperei, perante a violência da procela
imprudentemente desencadeada! Jogava o navio de um lado para outro, caíam sobre ele
montanhas de espuma que o precipitavam em abismos prestes a tragá-lo. Que fazer? Suportar
tudo sem me queixar, enquanto o temporal não amainasse. Atirados de novo para as praias de
Eólia, ali demos à costa, embora sem prejuízos nem desgraças.
O pior, no entanto, foi que o rei, que tão nosso amigo se mostrara, informado da
desobediência dos meus companheiros, nem nos quis ouvir quando voltámos a visitá-lo
Mandou-nos expulsar pela criadagem. Assim abandonados, receando ainda a loucura dos
ventos, deitámos uma vez mais a frota ao mar. A minha gente, chorosa e desanimada, nem
coragem tinha para pegar nos remos. E quem nos guiará nessa viagem ao acaso? A quantos
perigos
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estaríamos sujeitos?
Seis dias e seis noites na navegámos. Enfim' surge-nos à vista a ilha dos Lestrigões. Terra
estranha, onde o pastor que à tarde regressa com seu rebanho ao curral, outro pastor
encontra levando o gado a pastar; Pois noite e dia aquele povo pastoreia sempre. O porto da
ilha é bem conhecido dos marinheiros: - duas falésias altas o protegem do vento, e dois
compridos cabos, em frente da entrada, abrigam a água serena, que nunca se enfurece e agita.
A minha frota para lá se dirige: - nem uma espuma treme e enruga o mar profundo. Só eu fico
de fora com o meu negro navio. E nem um vestígio de vida ou de gente se avista a não ser um
fumo leve que sobe no ar.
Mando dois homens a indagar como seríamos recebidos. No caminho aparece-lhes uma
mulher gigantesca: - era a filha de um lestrigão, que os saúda e conduz a casa e os apresenta à
mãe que era mais alta do que montanha alta. Chamado por ela aparece o pai. Ai de nós! Era
também um devorador de homens como o ciclope. Esmaga e mata logo um dos meus
enviados. O outro foge Mas lá acorrem mais lestrigões. Juntam-se todos e do alto da falésia
arremessam blocos de pedra sobre os navios.
Um fragor e um tumulto de morte ergue-se de entre os
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marinheiros. A mim, valeu-me estar amarrado fora do porto: - as pedras não me atingiram.
Corto a amarra da embarcação com a espada e fujo - fujo velozmente para o mar alto...
Mais amigos perdidos, mais ameaças, mais ruínas! Chorámos os mortos, trememos dos
perigos. E vamos abordar a uma outra ilha perto - a ilha de Circe, a feiticeira.
Os dois primeiros dias passaram placidamente. Descansámos, comemos e dormimos. No
terceiro dia, porém, a fome incitou-me a procurar algum animal que nos fornecesse a
necessária refeição. Um grande veado saltou na minha frente. Consigo matá-lo, arrasto-o
custosamente - tão pesado era - até junto dos meus companheiros. Ainda nesse dia não
morremos à fome! Mas, saciados e tendo dormido uma noite calma, na manhã seguinte
dispus-me a conhecer em que direcção nos encontrávamos.
O sítio onde dormíramos era baixo e nem o norte, nem o oriente, nem o sul nem o ocidente
seria fácil determinar. Subo ao alto de um rochedo que se me afigurou melhor para vigia, e vi
outra ilha que o mar cercava até ao infinito - planície baixa coberta de bosques, de cuja
espessura saía um fumozinho ligeiro. Resolvo-me explorá-la, com os meus companheiros.
Murmuram todos, mas obedecem às minhas ordens.
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E separados em dois grupos, um comandado por mim, outro por Euríloco, chefe de grande
valor, tirámos à sorte qual deles devia partir, qual deles deveria ficar. A sorte cai no grupo de
Euríloco. Sem demora, o corajoso amigo partiu à frente dos seus homens. E tanto os que
partiam, como os que ficavam, choravam lágrimas amargas, de inquietação, de saudade e de
receio...
Corre o tempo. Esperávamos ansiosos. Nisto, vemos Euríloco só, que voltava da expedição tão
aflito que nem podia falar.
Rodeámo-lo, interrogámo-lo, tentámos consola-lo.
Parecia mudo e surdo: - não respondia. Por fim sossegou um pouco e disse-me:
- Nobre Ulisses, íamos pelo caminho que nos indicaras, quando nos aparecem uns lobos e
leões da selva que, em vez de nos atacarem, nos afagam e como que tentam falar. Eram,
certamente, homens transformados em animais pela terrível feiticeira, que depois me roubou
os nossos camaradas. Seguimos os amáveis bichos. Levam-nos eles à morada de Circe, que
estava cantando uma canção harmoniosa, enquanto tecia um estofo magnífico, só comparável
aos vestidos das deusas. Polito, que é aliás pessoa de bom-senso, entusiasma-se e propõe que
se chame a linda tecedeira. Assim fizemos. E ela veio logo, e logo abriu a porta
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resplandecente do palácio, e logo nos convidou a entrar. Todos lhe obedeceram. Só eu,
desconfiado, não entrei. Sentam-se os outros em cómodos assentos; e Circe prepara por suas
mãos c': oferta-lhes uma bebida saborosa e cristalina. Sorvem-na de um trago e súbita mente
se lhes apaga no espírito a memória da terra natal.
Com varinha mágica, Circe toca-os um por um e condu-los para os currais dos seus porcos. E
em porcos ei-los transformados imediatamente - cabeça e grunhidos, andar e atitude, tudo
igual aos dos porcos! Só a alma antiga os não abandonava, e por isso, na forma grotesca que
os reveste, choram o seu triste destino. Choram - e Circe, rindo, atira-lhes bolotas e glandes,
como se fossem porcos refocilando na pocilga!
E Euríloco soluçava, ao lembrar tal desgraça...
Peguei então no meu gládio e no meu arco e convidei Euríloco a vir libertar os companheiros.
O chefe corajoso, o meu amigo fiel, nem queria partir, nem deixar-me partir, receoso. Mas eu
não vacilava: - o meu dever impelia-me a salvar os homens que lançara em tão rude aventura.
E encaminhei-me resolutamente para o palácio encantado de Circe.
Quase ao chegar ali, um vulto me atalhou o passo, um vulto de moço esbelto e forte. Era
Mercúrio,
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o deus que protege os homens. E, depois de enumerar os perigos que eu ia correr, arrancou do
solo uma ervazinha de raiz negra, de flor branca de leite, que se chama a erva-da-vida, e,
dando-ma, explicou-me que essa planta humilde e modesta tinha o poder de evitar que a
minha sorte fosse igual à dos meus camaradas. Recomendou-me que, se acaso Circe me
propusesse casamento, não devia recusar. Seria perigosa a recusa... Apenas convinha exigir-lhe
o juramento de que não tinha contra mim maus desígnios, que não pretendia provocar a
minha perda…
Sumiu-se Mercúrio no céu, como nuvem. Encaminhei-me então para 'o palácio de Circe, e no
seu limiar, detenho-me e grito. A deusa ouve-me. Sai dos seus aposentos, abre-me a porta da
casa, e convida-me a acompanhá-la. Sigo-a docilmente, embora leve o coração cheio de
mágoa.
Logo me instala Circe numa cadeira alta sobre um estrado, toda enfeitada com luzentes pregos
de prata. Na taça de ouro, que oferece à minha mão, mistura no vinho oloroso a droga que faz
esquecer. Bebo de um trago a bebida traiçoeira. Nem me perturba a bebida. Toca-me com a
varinha mágica, ordena-me que me vá deitar ao pé dos meus companheiros, e eu sempre
impassível.
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Faço mesmo de conta que a não entendo; e tirando o gládio pontiagudo que trazia à cinta,
finjo que tento matá-la... Surpreendida, atónita com a minha coragem, Circe ajoelha de medo,
suplica-me que a não mate, e profere estas palavras afectuosas que saboreei gostosamente:
- Qual o teu nome, o teu povo, a tua idade, a tua família? Que milagre foi este de beber a
droga peçonhenta, e não mudar de forma? Nunca, nunca em tempo algum, os mortais
resistiram a tal bruxedo!.. Serás tu então Ulisses, o homem das mil astúcias?
Já me tinham predito que um dia aqui passarias, num barco pintado de preto, de regresso de
Tróia! Mas vamos, basta! Vem comigo preparar o festim das nossas núpcias. Serás meu
esposo, para que assim melhor possamos confiar um no outro...
Não me demorei a responder-lhe e disse: - «Circe, para que invocas a minha ternura? Tu que
neste palácio transformaste em porcos a gente que me seguia, e que, apanhando-me aqui, não
pensas senão em trair-me? Não! Só consentirei em ser teu esposo, se primeiro me jurares que
não maquinas qualquer cilada contra mim...
Jurou logo. Fiquei orgulhoso e contente.
Mas como aceitar festas e alegrias, enquanto os meus companheiros sofriam o destino
miserando que ela lhes dera?
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Exigi-lhe, pois, que os libertasse, que os restituísse à sua condição de homens, que os
trouxesse para junto de mim… Teve de cumprir as minhas ordens, e desencantou os
desgraçados, que em breve pude abraçar, com transportes veementes de alegria.
Pareciam até mais novos, mais belos, mais desempenados do que dantes. Os seus risos e
exclamações de júbilo ecoam pelo vasto palácio. A própria Circe se comove e pede-me então
que vá buscar os outros marinheiros para lhes dar a hospitalidade que eles mereciam.
Corri à praia, a buscar o resto da tripulação do meu barco, certo já de que a deusa cumpriria a
promessa feita e inteiramente abandonara os seus maus propósitos. Mas aí encontrei a maior
resistência: - ninguém me queria acompanhar ao palácio, tal o pavor que tinha inspirado a
narração verídica e horrorosa de Euríloco. Levei tempo a convencer os meus homens, conteilhes o que estava sucedendo àqueles que Circe transformara em porcos, garanti-lhes recepção
amorável e vida sossegada e farta. A não ser Euríloco, todos se deixaram persuadir por fim...
E este mesmo sempre se decidiu a seguir-nos, embora - e com razão - vigilante e medroso...
Mas Circe estava definitivamente vencida.
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Não usou de nenhum malefício contra nós. Albergou - nos generosamente, e durante um largo
ano vivemos vida calma e segura no seu rico palácio. Mas pensávamos constantemente na
Pátria e no lar distantes. E nem o descanso nos aproveitava tanto como seria para desejar!
Ainda nesse ponto, Circe se mostrou bem diversa do que fora ao princípio. Aconselhou - nos a
esquecer os males passados, e a restaurarmos as nossas forças - para o esforço, que sem
dúvida teríamos de realizar para chegar à Pátria. E todos os dias inventava distracções novas,
jogos, banquetes, divertimentos. O tempo corria célere, retomávamos saúde e coragem, e no
fim do ano, sentimo-nos dispostos aos mais difíceis e arriscados empreendimentos...
Supliquei-lhe, pois, que nos deixasse embarcar, e regressar a Ítaca. Não se opôs a deusa
generosa.
Mas exigiu-me urna promessa: - é que eu visitaria os Infernos, para ali ouvir, da boca do sábio
Tirésias, cego dos olhos, mas vidente do Futuro, a maneira mais fácil e rápida de alcançar o
berço natal. Como não prometer? Era um dever de gratidão - submeter-me ao pedido de Circe.
E, depois, não nos diria Tirésias precisamente o que eu desejava saber: o melhor caminho e o
melhor processo para terminar com o nosso longo exílio sobre o mar?
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Não sonhávamos, não ambicionávamos outra coisa…
Arrumadas as provisões, calafetados os barcos, cada um a seus postos, eu ao leme, os outros
aos remos, despedimo-nos de Circe que viera até à praia, e que, dadivosa e boa pela última
vez, metera dentro do navio um carneiro e uma ovelha negros, destinados a oferenda
congraçadora da simpatia e carinho dos deuses e dos habitantes dos Infernos...
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O vento enchia as velas do nosso barco e depressa nos conduziu à longínqua e última fronteira
do Oceano. É ali que habitam os Cimérios, numa terra sempre velada de nuvens e envolta em
profunda obscuridade. Nunca o Sol os ilumina.
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Uma noite eterna estende sobre esses desgraçados o sombrio véu das suas trevas. Guarda-os
Cerbero, cão de três fauces abrasadas de chamas, que repele e assusta os visitantes. Circe
ensinara-nos a palavra sortílega que o doma e escraviza. Por isso, não nos atacou, e pudemos
desembarcar, e oferecer aos deuses o carneiro e a ovelha negros, que sacrificámos em sua
honra. Ajoelhámos depois, e fizemos as nossas rezas. Mal as acabámos, de todos os lados se
erguem sombras e fantasmas que nos rodeiam. Eram os habitantes dos Infernos que nos
vinham receber. E entre eles, um antigo companheiro nosso, Elpenor, que tinha morrido no
Palácio de Circe, não porque a deusa lhe tivesse feito mal, mas porque, ébrio de vinho que
bebera em excesso, caíra do terraço onde adormecera... Chorámos ambos ao tornar-nos a ver,
e cheio de saudade lembrei o tempo venturoso em que o tinha junto de mim...
Outras sombras vieram, outras sombras queridas, parentes, amigos, e até a sombra de minha
mãe, que deixara viva ao partir para Tróia, que julgava ainda viva, e que ali vinha encontrar,
morta e abandonada. Que tristeza, que dor me toma! Ficaria a chorar eternamente, se não
aparecesse Tirésias, e eu não fosse obrigado a cumprir o juramento que fizera a Circe.
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Mas que sofrimento, que dor incomparável eu sentia!
Tirésias, com o seu ceptro na mão, aproxima-se. Percebe logo quem eu sou, e logo também se
dirige a mim. Olha-me, e prova em silêncio a carne dos animais sacrificados... As sombras que
desejam conviver com os vivos, se desprezam os alimentos que os vivos comem, mudas
sombras ficam, sombras vagas que não falam nem se entendem com os vivos...
Tirésias cumpriu o fúnebre mandamento, ouviu-me depois, e proferiu o seu oráculo...
- «Ulisses, - começou Tirésias - procuras saber a maneira de voltar para a tua Pátria, e eu vou
dizer-ta. Mas será um regresso um pouco difícil e trabalhoso, porque ofendeste Polifemo, filho
de Neptuno, que é o deus do mar, e que revoltará o mar contra o teu navio. Apesar disso,
porém, acabarás por vencer todos os obstáculos e chegarás à tua amada Ítaca, se possuíres a
energia necessária de não consentir, nem a ti nem aos teus companheiros, o menor
desrespeito aos rebanhos consagrados ao Sol - ao Sol, o deus que vê tudo, e tudo contempla
no Mundo – rebanhos que em breve encontrarás na tua viagem.
Venera-os, não tentes matar nenhum deles para as tuas refeições, embora a fome tos faça
apetecer. Se lhes tocas - ai de til morrereis todos e o teu barco
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naufragará para sempre. Se, por favor especial do destino, escapares, só passados longos,
longuíssimos anos avistarás a tua terra. Chegarás então sozinho, em navio estrangeiro. No teu
palácio haverá grandes desordens, porque príncipes insolentes, nele instalados, lutarão para
obter a mão de tua esposa, perseguindo-a a cada passo com seus rogos atrevidos e com
presentes ostentosos.
Punirás a sua insolência, expulsá-los-ás à força de tua casa. E voltarás a ser feliz. Mas só então,
só então e nunca antes, Ulisses...»
Quando Tirésias acabou de falar, respondi-lhe:
- «Acredito no que me dizes. Aceito a sentença do destino. Mas explica-me, peço-te, por que
razão a sombra de minha mãe não me fala, não me vê, não se aproxima de mim? Dir-se-ia que
me ignora. Como se poderá conseguir que ela me reconheça?»
- «É fácil responder-te - disse Tirésias. - Só as sombras que provam os alimentos próprios dos
vivos recuperam o olhar e o sentido da sua vida terrena. De ti depende que tua mãe te
reconheça. Deixa-a restaurar-se com a carne palpitante dos animais sacrificados.»
Assim me falou a sombra de Tirésias e logo desapareceu. Mas eu fiquei imóvel, à espera que
minha mãe se alimentasse primeiro.
Logo que o fez, reconheceu-me e disse, gemendo, estas palavras que me reconfortaram:
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- «Meu filho, vives ainda! E, todavia, eis-te aqui neste lugar que a ciência dos vivos ignora!
Voltarás porventura de Tróia? Ainda não terás tornado a ver a tua mulher, o teu filho e o teu
palácio?»
- «Minha mãe – repliquei - a necessidade de consultar a sombra de Tirésias forçou-me a
empreender esta jornada terrível. Ainda não pude regressar à Grécia, reconquistar o meu
perdido lar... Acabrunhado de desgostos e saudades, vagueio de plaga em plaga. Mas diz-me,
suplico-te, como vieste cair nos laços da morte. Foi uma longa doença que te prostrou? Ou
morreste de repente? Dá-me novas de meu pai e de meu filho. Reinarão eles ainda nos meus
estados? Ou já alguém me roubou o que é meu? Diz-me também o que faz e o que pensa a
minha mulher. Está ainda na companhia de Telémaco?
Governa ainda a nossa casa? Ou casou com algum príncipe ambicioso?»
- «Tua mulher continua a viver no teu palácio, com dignidade e coragem admiráveis. Passa os
dias e as noites em pranto. Ninguém tomou conta dos teus estados. Telémaco possui em paz
os bens paternos, e vai aos banquetes públicos, que os príncipes e aqueles a quem os deuses
confiaram a justiça e a lei devem honrar com a sua presença.
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O povo inteiro convida-o para eles e acolhe-o com veneração. O teu pai mora no campo e
nunca vai à cidade. Vive singelamente, numa casa de aldeia sem adornos opulentos, nem
tapetes magníficos, nem roupas luxuosas, deitando-se no Inverno junto à lareira, entre os seus
criados; e, no Verão e no Outono, dorme no meio da sua vinha em leito de folhas, sempre
entregue aos cuidados e trabalhos da lavoura e à dor da tua ausência. E foi a mesma dor que
me precipitou na morte, que me arrancou à vida mais doce que o mel. Essa dor de não te ver,
de te julgar exposto aos piores perigos e de recordar saudosamente os teus carinhos e boas
qualidades...»
Então, comovido, choroso, angustiado, quis ao menos abraçar e beijar uma última vez a
sombra luminosa de minha mãe. Impossível! Esquivava-se, fugia, sumia-se entre os meus
braços e aparecia mais longe... Interpelei-a, roguei-lhe suplicante, que se quedasse um
momento ainda... Mas a sombra querida, tristíssima, afastando-se sempre, só murmurava que
nada já existia nela que os braços dos vivos pudessem abraçar: - era alma, era fantasma
imarcescível, mas irreal... E aconselhou-me a que voltasse depressa ao Mundo e à vida, e que
repetisse bem a Penélope, quando a visse de novo, tudo quanto me contara da sua fidelidade
e ternura...
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Logo me preparei para obedecer ao desejo de minha mãe. Outras sombras, no entanto,
rodeavam-me, sombras de heróis, de reis, de rainhas, de moços e de velhos.
Mas como nomeá-las todas? Como repetir o que lhes ouvi? Nem a longa noite bastaria para
isso! Agora só quero que os deuses, e vós, meus amigos, pensem em preparar a embarcação
ligeira que me levará à Pátria distante...
Ulisses acabara de falar, e ainda, emudecido e encantado, o auditório esperava que a sua
narrativa continuasse. A rainha Arete, o rei, o herói Equéneo, que era o mais velho dos Feácios,
louvaram a sua inteligência e eloquência singulares, resolveram dar-lhe presentes de valor; e,
por fim, Alcino suplicou insistentemente que lhe contasse mais alguma coisa das muitas que
vira no reino das sombras, e que assim levassem a noite inteira.
Ulisses não se fez rogado, e continuou a narração. Descreveu-lhe, por exemplo, o suplício do
célebre Tântalo, vítima de tormentos que ninguém imaginaria: - ardendo em sede, Tântalo
está no meio de um grande tanque, cuja água lhe sobe ao queixo, e de que ele não consegue
haurir nem uma gota; de cada vez que tenta fazê-lo, a água esvai-se, e a seus pés estende-se
unicamente a areia seca.
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.
Devorado também de fome, rodeiam-no árvores famosas, carregadas de frutos óptimos: pêras, romãs, laranjas, figos, azeitonas. Mas quando o desgraçado ergue o braço para os
apanhar, não sei que vento bravo sopra que eles sobem até às nuvens... E Tântalo, imortal no
seu incomportável sofrimento, morre, instante a instante, à fome e à sede...
O tormento de Sísifo também Ulisses o evocou - mostrando esse rei desumano, assassino de
homens, mulheres e crianças indefesas, a empurrar um grande e pesado rochedo que tenta
levar ao cume de um monte penhascoso, em cujas asperezas fere os pés e as mãos... Mal o
rochedo alcança o cume ambicionado, logo uma força oculta o repele, e o despenha até à
planície. Recomeça Sísifo a tarefa extenuante. O suor cai-lhe torrencialmente da cabeça e do
corpo. Ofegante, treme e suspira. Nuvens de pó envolvem-no todo, erguidas pelo rolar da
pedra gigantesca.
Ele não cessa, porém, de carregá-la pelo monte acima, cumprindo assim a pena que o destino
lhe impusera para redenção das suas crueldades.
Ulisses falou também de Hércules, temeroso gigante, e de tal modo pleno de força e ousadia
que, mesmo depois de morto e feito sombra, às outras sombras do Inferno metia medo...
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Mas de quem o Herói falou com maior largueza foi de Agamémnon, de Aquiles, de Pátroclo, de
Antíloco e de Ajax, seus companheiros e amigos do cerco de Tróia. De Aquiles, sobretudo,
desse chefe de inigualável valentia que nunca ninguém vencera, e que só uma seta perdida,
cravando-se no calcanhar - única parte do seu corpo vulnerável aos golpes - prostrara e
matara; de Aquiles que, nunca olvidado das vitórias e da glória que em vida obtivera, dizia
antes querer servir de criado na casa de um pobre camponês, do que ser rei e senhor no pálido
reino das sombras!
«Confortei-o e consolei-o - disse Ulisses contando-lhe que o filho, o destemido Neoptolemo,
era um digno sucessor do pai, tendo desbaratado e derrotado um sem-número de Troianos,
sempre de espada em punho e de alma disposta aos maiores sacrifícios pela causa dos
Gregos...
«Andei, - prosseguiu Ulisses - mais tempo ainda no convívio das sombras. Mas tantas me
perseguiram, tantas me interrogaram, chamando, gritando, chorando, que o medo tomou-me
e resolvi fugir-lhes. Por isso, regressei à luz e à alegria da vida, e ordenei aos meus marinheiros
que pegassem nos remos, e que remassem depressa. Logo que o navio sulcou as águas do
Oceano, o reino da Morte se escondeu no horizonte fugidio do mar...»
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Escutado atentamente pelos Feácios, que o rodeavam cheios de curiosidade, Ulisses começa a
contar-lhes agora as estranhas coisas que lhe aconteceram depois de partir do Inferno. Coisas
extraordinárias, sucessos nunca vistos!
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E sempre com voz harmoniosa e clara, disse: «Quando o nosso barco vogava já no mar alto
voltámos a avistar a ilha de Ea, - a Ilha de Circe - onde também habita a Aurora ligeira e
dançam e cantam, ligeiros, seus coros de dançarinas. Entrámos no porto, varámos o navio e,
tendo desembarcado, deitámo-nos na praia a espera do dia. De manhã, logo que no céu
despontou a luz da alvorada, enviei parte dos meus companheiros ao palácio de Circe - para
me trazerem o corpo de Elpenor, que morrera no dia da minha partida dali. Resolvemos
queimá-lo. Preparámos uma grande fogueira que ardeu, em labaredas altas, sobre uma ponta
de terra que avançava pelo mar dentro. Quando o corpo e as armas de Elpenor ficaram
inteiramente consumidos, recolhemos as cinzas e piedosamente as guardámos em humilde
túmulo, que levantámos e encimámos com uma coluna. Mal tínhamos cumprido este triste
dever, chegou Circe. Acompanhavam-na as aias amáveis, que nos, traziam pão, carne e vinho
generoso.
Saudou-nos a deusa com palavras afectuosas, exclamando:
- «Desgraçados, que mesmo vivos descestes ao império das sombras e, por isso, duas vezes
vítimas da morte - enquanto os outros homens só uma vez fazem essa tremenda viagem,
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- passai o dia tranquilamente, descansai e folgai sem receio; amanhã, ao romper de alva,
embarcareis de novo e continuareis a vossa travessia. Eu própria vos ensinarei o rumo que
deveis tomar, e dar-vos-ei todas as instruções necessárias, para que assim eviteis as desgraças
que vos ameaçam ainda na terra e no mar, e que doutro modo vos seriam fatais...»
Pouco se demorou a deusa entre nós. O sono chamava-nos. Repousámos a noite inteira. E, na
manhã seguinte, Circe voltou para junto de nós, e chamando-me de lado, segredou-me:
- «As primeiras dificuldades e perigos da tua viagem estão passados. Mas ouve agora bem o
que te vou revelar, e não o esqueças na hora da aflição.
No teu caminho encontrarás as sereias. As sereias, Ulisses, fascinam e encantam todos os
homens que as vêem de perto. Ai daqueles que têm a imprudência de escutar seus gorjeios
melodiosos! Sedu-los essa melodia embaladora - e as sereias guardam-nos então cativos, num
vasto prado, em que não há senão montões de ossos e cadáveres a secar ao sol ardente. Passa
junto das sereias sem parar, e, para melhor defender a tripulação do teu barco, tapa com cera
os ouvidos dos homens, para que nada escutem da música feiticeira! Tu - poderás ouvir, se
quiseres.
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Mas, antes, manda que te amarrem ao mastro do navio com boas e sólidas cordas, enrolandoas fortemente em torno dos pés e das mãos. E que os nós se não desfaçam! Assim, poderás
escutar as vozes aliciantes. Mas se elas te entusiasmarem a ponto de quereres que os teus
marinheiros te libertem e desfaçam os laços apertados que te prendem - eles que não te
obedeçam e que os apertem mais, e que mais os fortaleçam!...
Quando tiveres escapado a esse grande perigo, escolherás o rumo que melhor te convenha:por mim, não to sei dizer. Apenas posso indicar-te o que verás então à tua esquerda e à tua
direita: - dois penedos altíssimos contra os quais as ondam quebram mugindo horrivelmente.
Chamam-lhes os penedos vagabundos. As aves do céu não voam por cima leles, nem as
pombas do Olimpo, que levam a ambrósia a Júpiter, o transpõem impunemente: – os píncaros
desses rochedos despedaçam-lhes as asas... Se algum barco se aproxima, não há esperança de
salvá-lo: - naufraga logo. E os seus destroços, e os homens que o tripulam, tudo destruído e
arrastado pelas vagas, por vendavais tremendos e turbilhões de fogo... …Só o navio Argo
escapou ao -passar ali, vindo da Cólquida, onde conquistara o Velo de Ouro.
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Mas, esse, guardava-o a protecção celeste...
«Dos dois escolhos de que te falo - um ergue-se até ao firmamento; cercam-no nuvens
obscuras que nunca se dissipam; nunca ali reina o dia; e nenhum mortal o subiu ou desceu,
pois é feito de pedras unidas e lisas, como se fosse polida. No meio, abre-se uma caverna
negra e de altura descomunal. Navega o mais rapidamente possível! Mora na caverna a
maldosa Sila, que dá uivos como os animais ferozes, monstro horroroso cuja vista agonia.
Possui doze garras afiadas, seis pescoços de enorme comprimento; e, sobre cada um, cabeças
assustadoras, de goelas hiantes guarnecidas de três filas de dentes, que, mordendo, logo
matam. Metade do corpo está deitado na caverna; e atira para fora as seis cabeças pavorosas,
alongando os pescoços coleantes. Rondam as cabeças, continuamente, os recantos do
tenebroso antro, e pescam e comem delfins, cães marinhos, e até baleias! Nunca piloto algum
se gabou de passar ali sem perder um ou mais marinheiros: o monstro caça-os com avidez
repugnante...
«O outro penedo não está longe do primeiro. Mas é menos alto. No topo vê-se uma figueira
silvestre, cuja ramaria abarca largo espaço. Debaixo da figueira, é a morada de Caribdes, que
sorve e traga as ondas: - cada dia, engole - as três vezes e três vezes as vomita com barulho
horrendo. Cuidado!
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Evita o momento em que ela boceja ou escancara a boca! Serias fatalmente arrastado para
esse abismo sem fundo... Ainda o melhor será passar do lado de Sila, embora velozmente... É
preferível perderes seis dos teus companheiros - um por cada cabeça da fera - do que perdêlos todos e a ti mesmo...
- «Mas, Circe, observei eu então, não me poderei eu vingar de Sila, se ela devorar os meus seis
companheiros?»
- «O quê, Ulisses, - respondeu a deusa- no estado em que te encontras pensas ainda em
combater monstros? Não! Não!
Passa depressa no meio dos perigos ameaçadores que te espreitam. E mais te recomendo que
- chegando à ilha de Trinácria, onde farás escala na tua navegação - não toques, nem deixes
que toquem nas manadas de bois e nos rebanhos de carneiros que lá encontrarás. Esses bois e
carneiros pertencem ao Sol. Guardam-nos duas ninfas, ambas filhas do poderoso deus da luz.
Se queres alcançar a tua Pátria e rever os que te são queridos, não tentes cevar a tua fome na
carne desses animais sagrados. Respeita-os. Se o não fizeres não sei se algum dia te será dado
abraçar Penélope e Telémaco, sentar-te de novo à lareira da tua casa.»
Assim falou Circe, e o dia rompeu.
81
Era o momento de embarcar. Todos a postos, lançámos o navio na água sossegada, e remando
com força, de velas pandas ajudados pelo vento, eis-nos vogando. Depois das manobras
necessárias, resolvi contar aos meus companheiros as predições de Circe e os conselhos que
ela me tinha dado, fazendo-os prometer que nunca os esqueceriam. Só de Sila, temendo
amedrontá-los demais, não me atrevi a falar...
Ainda eu me não calara e já avistávamos a Ilha das Sereias. Caiu o vento. O mar acalmou. Nem
uma onda! Colhemos as velas, e trabalharam só os remos, sob os quais o mar quieto
embranquecia de espuma...
Prudentemente amasso logo nas mãos um grande pedaço de cera, amoleço-o, e tapo com ele
os ouvidos dos meus homens que, logo em seguida, me encostam ao mastro do navio e
amarram-me de pés e mãos. Tornam a sentar-se, pegam nos remos, e lá vamos...
«Quando o nosso barco estava quase perto da praia, as sereias enxergaram-nos. Célere, o
navio galopava sobre a crista das ondas. Mas as sereias começaram imediatamente a cantar:
- «Não fujas, Ulisses, generoso Ulisses, Ulisses famoso, honra da Grécia! Pára defronte da
praia, para ouvir a nossa voz. Nunca ninguém passou neste lugar sem que admirasse a suave
harmonia do nosso canto!
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Quem aqui chega, só continua o seu caminho depois de ter tido esse gozo inefável e depois de
ter aprendido connosco uma infinidade de coisas lindas!
Todos os trabalhos de gregos e troianos, no cerco de Tróia, saberemos evocar. E mais ainda: todas as maravilhas que na Terra existem, pois nada, nada do que embeleza e encanta o vasto
universo nos é desconhecido...»
Cantavam assim. E as suas vozes enfeitiçantes criavam o desejo ansioso de escutá-las sempre,
sempre... Olhei a minha gente e franzi os sobrolhos indicando dessa maneira que me
libertassem das cordas que me prendiam. Nesse instante, o que eu ambicionava era ficar ali,
era não fugir ao mágico enleio daquela melodia incomparável… Mas os meus marinheiros, que
nada ouviam, continuaram a remar, e cada vez com mais força. Dois levantaram-se até dos
seus bancos e vieram atar-me com mais cordas. E só depois de não avistarmos já a ilha
embruxada e as sereias tentadoras - é que os meus homens desapertaram os nós que me
prendiam ao mastro. Tirei-lhes a cera dos ouvidos. Içámos outra vez as velas. Mas que perigo
tínhamos vencido, como eu agradecia a Circe, no íntimo do meu coração, os conselhos que me
dera!
83
!
Não durou muito a minha alegria! Apenas o perfil daquela ilha desaparecera no horizonte,
ergueu-se um fumo terrível, as vagas começaram a embravecer, e ouvi rugidos formidáveis! Os
tripulantes do meu barco deixaram cair os remos las mãos. De todos os lados crescia a fúria
dos rugidos... O navio parara; ninguém ousava remar... Tive de animar, um por um os meus
companheiros, e de lhes lembrar que a minha astúcia e coragem nos livrara de violências
maiores, como por exemplo das crueldades do ciclope, e de tantas mais... Ordenei-lhes
terminantemente que se afastassem do sítio perigoso. Obedeceram, felizmente. Mas nem
então lhes falei de Sila. Aliás, o monstro não saiu do antro. Estava oculto no fundo da caverna e embora eu, esquecido dos conselhos de Circe, me tivesse armado para o combater, desta
feita não o vimos...
Passámos o estreito entre Sila e Caribdes. Caribdes engolia vertiginosamente as ondas, e
vomitava-as com o mesmo arreganho. O estrondo apavorava. E o mar ora subia até ao cimo
dos rochedos, ora se via a areia negra dos abismos. Estávamos lívidos, tremíamos todos, e não
despregávamos os olhos da goela voraz de Caribdes...
84
«Foi nesse instante que Sila avançou para nós - e em cada uma das suas bocarras ávidas
sumiu-se um dos meus companheiros. Devorou-os logo, enquanto eu, sem poder valer-lhes
assistia ao espectáculo trágico. De tudo quanto me aconteceu nas minhas tormentosas
navegações, nada me foi mais doloroso, e nada me será mais inapagável da memória
confrangida... Recuperámos depois a paz do mar sereno. Não perdemos a esperança, não nos
fugiu a coragem... Mas não recuperámos a doce presença dos leais companheiros, devorados
pela ferocidade do monstro mais nojento que jamais nasceu no Mundo...
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Não inteiramente refeitos do pânico, dos esforços e dos trabalhos que tinham sido necessários
para escapar de aventuras tão graves, chegámos logo à ilha do Sol, terra louçã onde pastam,
nos prados sempre verdes, os bois possantes e os gordos carneiros pertencentes a esse deus.
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Ainda o navio não tocara terra, e já ouvíamos mugir e balar os animais nos redis. Lembrei-me
então das recomendações de Tirésias e das ordens de Circe: - evitar a todo o custo a ilha
radiosa e alegre, que para nós, no entanto, seria perigosa. Resolvi, pois, falar aos meus
companheiros, embora sentisse o coração opresso de mágoa.
- «Amigos, - disse-lhes - escutai minhas palavras de prudência, e que as fadigas da viagem não
vos tornem revoltados. Tirésias e Circe recomendaram-me que não abordássemos a ilha do Sol
e profetizaram-me, caso o fizéssemos desgraças sem par. Por isso, amigos, afastai o barco da
costa o mais que for possível...
Ficaram absolutamente abatidos de ânimo ao ouvir as minhas palavras. E Euríloco precipitouse para me responder:
- «Ulisses - exclamou - és o mais duro e impudente dos homens. Nada te cansa, nada te
aborrece. O teu corpo é de ferro.
Estamos a cair de sono e de cansaço. Não podemos mais! E é este momento que resolves
escolher para nos proibir de descer em tão acolhedora ilha, onde fácil nos será preparar a ceia!
Quererás atirar-nos outra vez para o mar alto, para a bruma do largo, perdição dos navegantes
na noite que está a chegar? É durante a noite que o vento se desencadeia e
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sopra com mais força. Se houver uma tempestade, que abrigo nos ofereces? Não! Não! A hora
não é para navegar! A sombra cai. Desçamos na praia, preparemos a ceia, e amanhã, cedo,
voltaremos ao mar…
Todos aplaudiram Euríloco, já se vê. Todos!... Como resistir-lhes? Não o tentei sequer. Mas
supliquei-lhes que, se encontrassem os bois e os carneiros que habitavam a ilha, não
matassem nenhum. Obriguei-os a jurar solenemente que assim procederiam. E, depois do
juramento, fiquei mais tranquilo.
Entrámos então no porto remansoso. Ceámos e adormecemos.
No meio da noite uma tremenda borrasca surpreendeu-nos. E tal foi ela, que durou um mês!
Ora, enquanto as provisões de carne e de pão, que trazíamos connosco, não se esgotaram,
Euríloco e os outros marinheiros cumpriram a sua promessa. Aliás, fi-la confirmar de novo, e
novamente a selaram com entusiasmo. Acreditei que seria mantida. Mas, - ai de mim! quando a fome começou, adeus juramentos, adeus promessas! Um dia em que me afastara
para o interior da ilha e ali adormecera, - Euríloco, ao ver-se livre da minha presença,
convenceu e levou os tripulantes do meu barco a matar alguns dos bois que pastavam perto.
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Esquartejaram-nos, assaram-nos e comeram-nos! Volto da minha breve excursão e sinto no ar
o fumo do cozinhado sacrílego. Estremeço, tremo de pavor e cólera. Que horríveis castigos nos
destinaria o Sol ao saber que tinham sido mortos aqueles belos e fortes animais, que, tanto
gostava de acarinhar e envolver na sua claridade benfazeja e que a ninguém faziam mal?
Nem me atrevia a pensar nisso...
Sete dias se banquetearam os meus bravos camaradas. No fim dos sete dias a tempestade
amainou. Partimos. Mas, assim que perdemos de vista a ilha famosa, a tempestade recomeçou
mais brava do que nunca. O navio despedaçou-se. Todos os meus companheiros
desapareceram nas ondas. Escapei não sei como, agarrado aos destroços da embarcação,
impelido de novo para os abismos ameaçadores de Sila e Caribdes. Caribdes ia-me engolindo
ao engolir o mar. Agarrei-me a uma figueira brava, bem presa ao solo negro da rocha, e que
estendia os ramos em todas as direcções, sombreando as ondas. Ali me aguentei, o corpo
suspenso sobre a voragem, e as mãos a escorrer sangue! Situação angustiosa... Enfim, vi passar
em baixo, levado no fluxo e refluxo das vagas, o mastro do meu navio. Deixei-me cair. Pude
abraçar-me a ele. Nove dias voguei ao acaso, sem comer nem dormir,
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batido do vento, encharcado pela chuva, sofrendo angústias sem par. Na noite do décimo dia
abordei a Ogígia, a ilha de Calipso, que me recebeu com bondade extrema e extremo carinho,
como já te contei. E agora eis-me aqui, no afago e no consolo excepcionais da tua
hospitalidade magnânima. Não te ofendas, porém, se te confessar, rei generoso, que o meu
pensamento voa a cada instante para Ítaca, de ti pretendo eu o auxílio indispensável à
reconquista do meu povo e do meu lar...
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Ulisses bem tratado, verdadeiramente amimado pelos Feácios, sentia-se realmente satisfeito
junto de Alcino. Mas a sua ideia fixa era - e como não o seria? - regressar a Ítaca. Penélope,
Telémaco, a paisagem da sua terra, o povo que o amava, o ar que respirava em criança - em
que poderia ele pensar, senão nessas coisas tão queridas?
91
Alcino também não pensava em demorá-lo mais. O tempo de lhe agradecer outra vez a
distracção e o encanto das suas narrativas e histórias, de juntar os presentes destinados a
hóspedes de tal inteligência e distinção - e logo o conduziu ao porto, de Córcira, lhe ofereceu
um navio seguro e rápido e tudo mandou preparar para a partida na manhã seguinte.
A noite pareceu interminável a Ulisses, tal a pressa de recomeçar a viagem. Ainda estava longe
a alvorada, e já Ulisses se dirigia para o barco, e se deitava sobre as lãs espessas e as sedas
finas que os Feácios lhe tinham dado. Adormeceu profundamente. Mas os marinheiros que o
rei pusera ao seu serviço, estavam a postos e vigiavam. Luzia a estrela de alva, quando
principiaram a remar. Desfraldaram a vela. O vento soprava forte. Mais veloz de que o voo do
milhafre, do que os fogosos cavalos dos carros na corrida - o navio de Ulisses cortava as ondas,
a proa afiada, a popa alta, deixando atrás de si longos sulcos de espuma alvíssima... Sol nado,
Ítaca ficou à vista. Ulisses dormia ainda, porém, um sono reparador.
Ora, em Ítaca, há um porto que se chama Forcis - nome de um velho deus do mar, Está situado
entre rochedos que formam enseada, e é, portanto, muito abrigado.
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Foi nesse porto que os marinheiros de Ulisses ancoraram; e, como o Herói continuasse a
dormir, ergueram-no nos braços, e depuseram-no na praia, deixando a seu lado os ricos
presentes dados pelos Feácios. Cumprida a sua missão, voltaram para bordo, e trataram de
remar sem descanso, para que breve Alcino recebesse boas notícias da chegada de Ulisses.
O pior é que Neptuno, deus do mar, detestava quantos pretendiam conhecer os caminhos das
ondas, e vencer os perigos e dificuldades das navegações.
Os Feácios, que tinham a fama, e a fama justa, de serem os melhores pilotos do Mundo, não
podiam escapar à sua cólera sobretudo agora, por terem conduzido à pátria desejada o sábio
Ulisses, que Neptuno não estimava muito. Boa ocasião para satisfazer o seu ódio!
Por isso não perdeu tempo. Vendo o barquinho leve atravessar o mar com rapidez e
segurança, o que há-de fazer? Toca-lhe com a forte mão espalmada, e imediatamente a
madeira se transforma em pedra, em rochedo em forma de navio, mas enraizado no fundo da
água como qualquer outro penedo. Felizmente, aconteceu isto mesmo junto da ilha de
Córcira. Os marinheiros foram todos para terra. Mas o barco onde Ulisses conseguira enfim
alcançar as praias de Ítaca - esse nunca mais serviu senão para sofrer o furioso embate das
ondas que espumavam contra a sua maciça bruteza...
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E Ulisses - já terá acordado do seu sono?
Acordara, na verdade, mas não reconhecera a terra natal.
Minerva, que o protegia, envolveu-o em espessa nuvem, para que o Herói, antes de sentir-se
deslumbrado pelos encantos da terra da sua infância, pudesse ouvir e atender os conselhos da
deusa. Assim era necessário. A vingança a tirar dos pretendentes, que continuavam a roubá-lo
no seu palácio e queriam desposar sua mulher, exigia ninguém dever, - ninguém!... reconhecer Ulisses...
Realmente, acordando, este julgou-se num país ignorado, e mais uma vez chorou a desdita de
não encontrar a sua Pátria. Mas logo Minerva, primeiro sob a aparência de jovem e formoso
pastor, depois na beleza e majestade de sua figura imortal, trouxe descanso e consolação à sua
alma atribulada. Ainda sob a forma de pastor, disse, respondendo a uma pergunta de Ulisses,
que lhe pedia informação sobre o lugar onde se encontrava:
- «É preciso que sejas muito ignorante para fazer tal pergunta. O país que te acolhe é célebre
em toda a parte, desde os climas que vêem o romper do Sol até àqueles que vêem o seu
ocaso.
E áspero e rude: não muito bom para a pastagem dos cavalos.
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Mas não estéril e seco. Dá trigo e vinho em abundância; as chuvas não faltam na estação
própria, nem o orvalho matinal que refresca as plantas. As cabras e os bois têm aqui prados
excelentes. Bosques e florestas de várias essências sombreiam-nos. Nascentes límpidas regamnos. Enfim, estrangeiro, o seu nome é Ítaca - e as plagas de Tróia não ignoram o seu nome.»
Ulisses, ouvindo estas palavras, sentiu uma alegria inexprimível. Rompeu-se a nuvem que o
envolvia e logo reconheceu a sua doce Pátria. Curvou-se para o solo - e beijou-o. E,
reerguendo-se, agradeceu aos deuses a felicidade que lhe consentiam.
Foi então que Minerva, já na glória do seu aspecto verdadeiro, narrou a história comovente
das aventuras de Telémaco. Deixámo-lo nós em Esparta junto de Helena e de Menelau, onde
fora tentar saber notícias de Ulisses. Minerva enumerou esse e outros casos; e, censurando e
condenando ambições infames dos pretendentes, anunciou que iria prevenir Telémaco do
regresso do pai.
Prometeu protegê-los a ambos. Aconselhou Ulisses a visitar Eumeu, seu fiel intendente,
guardador dos seus rebanhos e herdades que nunca o olvidara e lealmente o servira, para
colher
95
informações minuciosas de tudo quanto se passara na sua
segurança, não lhe apareceria Ulisses tal como era - homem
brilhantes, de cabelos fartos, de estatura desempenada.
transitoriamente em velho curvado e débil, coberto de sujos
dolente.
ausência. Mas, para maior
na força da vida, de olhos
Minerva o transformaria
andrajos, de voz trémula e
Se bem o disse, melhor o fez. Ulisses ficou irreconhecível. Convertera-se em mendigo,
amparado a rude cajado, mal embrulhado numa velha pele de corça... Separaram-se logo a
deusa e o Herói. E Minerva, a deusa dos olhos límpidos, partiu para Esparta, à busca do
aflitíssimo Telémaco.
96
POR caminhos ásperos, através de bosques cerrados e montes íngremes, seguiu Ulisses para
casa do seu antigo feitor. Bateu à porta. Mas logo, vigilantes e alvoroçados, os cães de guarda
se atiraram a ele, furiosamente. O bom do Eumeu, homem hospitaleiro e protector da
pobreza, veio a correr atrás dos cães e conseguiu amansá-los.
97
E assim Ulisses, disfarçado em mendigo, ia sendo atacado e mordido por cães que defendiam,
afinal, uma parte das herdades que lhe pertenciam desde menino!
Eumeu trouxe-o para a sua vivenda, e logo, espalhando no chão grande quantidade de folhas
secas e pondo sobre elas macia pele de cabra montês ofereceu-lhe aquela espécie de leito
para repouso. Ulisses sentou-se, contente, e depois de trocar com Eumeu as saudações
habituais entre pessoas desconhecidas e de agradecer o carinhoso acolhimento que tivera,
aceitou a refeição que o porqueiro lhe oferecia: - carne, pão e vinho com mel. Comeu e bebeu,
sem nunca se dar a conhecer. E Eumeu, enquanto o via comer e procurava servi-lo o melhor
possível, contava-lhe o acontecimento mais importante e mais perturbador da vida das gentes
de Ítaca, nos, últimos tempos: - a invasão do palácio de Penélope pelos pretendentes à mão da
rainha, e os gastos e depredações que os príncipes faziam.
E murmurava:
- «Come, hóspede amigo, esta refeição frugal que é a mesma que os pastores comem, pois os
cevados mais gordos e mais saborosos, reservados estão para os pretendentes, esses homens
sem vergonha nem respeito por ninguém.
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Os piores ladrões, os mais cruéis piratas, é na hora da luta que saqueiam e destroem a ferro e
fogo os países estranhos. À boa paz, não se atreveriam, receosos de castigo e de futuros
remorsos. Talvez tivessem sabido já da morte de Ulisses, e se julguem, por isso, em terreno
conquistado. O certo é que não saem do palácio, e que deitam a mão a tudo. Não se passa dia
ou noite que não comam os melhores animais e não esvaziem taças do melhor vinho. A
riqueza do meu amo, antes da sua partida para Tróia, era sólida e vasta. Está agora reduzida a
pouco menos do que nada! Basta dizer-te, amigo, que os pastores são obrigados a levar a
esses ladrões cada manhã a rês mais opípara!
Dos onze enormes rebanhos de cabras que pastavam na ilha, e que eram todos de Ulisses,
pouco resta... Corta-me o coração tal desperdício, em proveito de pessoas que exploram a
fraqueza de Penélope e a pouca idade do seu filho Telémaco!...
Ulisses enquanto bebia e comia, ouvia calado estas justas recriminações. Mas só o
pensamento de sempre o ocupava e preocupava: - arranjar modo de se vingar dos
pretendentes e de retomar o lugar e a fortuna que lhe pertenciam... Abriu apenas a boca para
perguntar mais pormenores a respeito das circunstâncias que tinham permitido os abusos dos
pretendentes.
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Eumeu disse-lhe então que de tudo fora culpada a terrível guerra de Tróia. E lamentava-se da
partida de Ulisses, e da impossibilidade, em que realmente acreditava, do seu regresso.
- «Ulisses não volta mais, - exclamava. - E eu que tanto lhe queria, que por ele faria de bom
grado os maiores sacrifícios, eu, seu feitor e seu amigo, não sei senão chorar tão grande
ausência e prantear a falta da sua autoridade que nos governava com justiça.»
- «Amigo, - respondeu então o paciente Ulisses, - não desanimes tão depressa. Ulisses talvez
ainda apareça. Afirmo-te mais: - Ulisses voltará este ano, e vingará os ultrajes feitos a sua
esposa, ao seu filho e ao seu nome...
Eumeu, surpreendido, olhava o hóspede com ar de dúvida. Ulisses, porém, inventou logo uma
história muito complicada de navegação e naufrágios, em que descrevia a sua passagem em
certa ilha, cujo rei, Acasto, lhe dera novas do célebre Herói de Tróia. Até acrescentou que
Ulisses entregara vários tesouros a guardar a esse rei, enquanto, esperando que lhe
preparassem navio para o retorno, fora consultar o oráculo de Dodona sobre o seu futuro.
Estava, portanto, mais rico do que nunca...
Eumeu hesitava em acreditar em tão venturosa notícia.
100
Mas Ulisses, jurou-lhe que era verdadeira - e por fim, queria apostar a própria vida se ela não
se confirmasse...
- «Se o teu rei voltar breve aos seus estados, disse-lhe, dar-me-ás fatos novos e um barco para
eu ir passear onde quiser; se não voltar aceitarei que me mandes expulsar pelos teus servos, e
precipitar do alto dos mais altos rochedos desta terra, para que toda a gente saiba o castigo
que merecem os mentirosos...
Enquanto conversavam, a tarde ia descendo. Os pastores voltaram do campo com os seus
rebanhos. Comeram a ceia, e trataram de se acomodar para dormir. A noite foi fria e chuvosa.
Ulisses, mal coberto com os seus andrajos e que desejava experimentar a generosidade de
Eumeu, aproveitou um momento em que o temporal, rugindo, acordara os pastores para lhes
contar o seguinte apólogo:
- «Eumeu, e vós, pastores, perdoai que eu me elogie um pouco a mim próprio...
O vinho que bebi será a minha desculpa: - excitou-me demais. Mas está-me a lembrar um
episódio da guerra, quando eu estava às ordens de Ulisses e de Menelau. Os dois famosos
chefes tinham resolvido organizar uma emboscada contra os Troianos.
101
Fomos para junto das muralhas da cidade e escondemo-nos, com as nossas armas nas silvas e
nos canaviais de um pântano que ficava perto. Noite funda. De repente, levantou-se um vento
norte que regelava, caiu neve em abundância, e cobriram-se de gelo os nossos escudos. Todos,
excepto eu, possuíam boas túnicas e bons mantos, e, os ombros protegidos pelos broquéis,
dormiam tranquilamente. Mas eu fizera a imprudência de deixar o manto na tenda. Já próximo
da madrugada, quando os astros começam a inclinar-se para o seu ocaso, toquei com o
cotovelo em Ulisses, que dormia a meu lado, e murmurei: «Magnânimo Ulisses, não esperes
que eu viva muito tempo; estou transido de frio, pois não possuo manto; imprudentemente
deixei-o no acampamento, e não sei como resistir ao mau tempo...
Ulisses, acordando, logo arranjou modo de me proteger. Como é homem de infinitas argúcias,
segredou - me ao ouvido: «Silêncio, que mais ninguém te escute!...» E erguendo a voz: «Meus
amigos, - disse para os nossos companheiros - tive um sonho e no sonho, um aviso de
prudência. Estamos muito afastados dos nossos barcos, e somos poucos. Que um de vocês vá,
rápido, pedir a Agamémnon, nosso chefe, para nos enviar reforços.»
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Toas, soldado destemido, levantou-se logo, desembaraçou-se do seu manto, e partiu, rápido.
Desse modo obtive roupa em que me embrulhasse, comodamente, e pude então dormir
tranquilamente até ao romper do dia. Prouvesse aos deuses que eu fosse ainda como então
era, e que um dos pastores aqui presentes me desse um bom manto, preito de amizade e
respeito a um homem honesto...
Mas todos me desprezam por causa destes velhos farrapos…»
Eumeu percebeu o apólogo. Mandou que dessem a Ulisses um manto forrado de lã de
carneiro, embora tão bom agasalho não abundasse. Deitaram-se todos outra vez, dormiram
sossegadamente, enquanto Eumeu - era a sua hora de vela - se cobria também de quentes
abafes, mas para ficar de sentinela à porta da choupana, armado de arco e de setas, pronto a
defender a casa e os rebanhos, dos ladrões e dos cães selvagens...
103
Minerva, a deusa protectora de Ulisses, quando encaminhara este para casa de Eumeu, partira
em seguida à busca de Telémaco.
Acompanhado do filho de Nestor, o bravo Pisístrato, dormia Telémaco no palácio de Menelau.
104
Minerva acordou-o e incitou-o a que não se demorasse longe da sua Pátria, onde os
pretendentes continuavam a abusar da hospitalidade forçada de Penélope. Avisou-o também
que os pretendentes lhe preparavam uma cilada, para o matarem no caminho do regresso. O
que havia a fazer? Não desembarcar no porto principal de Ítaca, mas antes perto da casa de
Eumeu, onde deveria descansar e mandar notícias a Penélope pelo feitor. Depois - estaria
seguro...
Telémaco, mal a deusa desapareceu, acordou Pisístrato, e rogou-lhe que preparasse tudo para
a viagem. Foram ao palácio de Menelau, e o rei ordenou que oferecessem a Telémaco o
melhor barco e os melhores remadores, e presentes valiosos. Telémaco ardia na pressa de
partir!... Aparelha o barco, desfralda as velas, e, com o auxílio dos remos, navega celeremente
no rumo de Ítaca. Minerva vigiava o caminho, e evitou que o navio tocasse no porto onde os
pretendentes esperavam, para o matar, o leal filho de Ulisses.
Ulisses, no entanto, conversava com Eumeu. E mais uma vez tentava experimentar a sua
amizade, dizendo-lhe que não queria continuar a pesar-lhe, e que partiria breve, a pedir
esmola a gente menos pobre. Eumeu pedia-lhe que ficasse, e anunciou-lhe
105
numerosas dificuldades e perigos, se porventura não aceitasse mais tempo a sua hospitalidade
sincera. Pelo menos, desejava que Ulisses esperasse a chegada de Telémaco, que logo lhe
daria vestuário e dinheiro suficientes para ele nunca mais ser obrigado a mendigar.
Contou-lhe então a sua história, no intuito de o entreter. Disse-lhe que era filho de um rei
poderoso, e que fora roubado em pequeno pelos Fenícios, tendo sido vendido, como escravo,
a Laertes. O pai de Ulisses, homem bom, conquistara rapidamente o seu afecto, assim como o
filho, logo seu amigo e companheiro de jogos infantis. Ulisses gabou-lhe a memória, e os
sentimentos de gratidão que manifestava.
E mais um dia se passou assim em conversas e recordações. Na manhã seguinte, Ulisses notou
que os fortes cães de guarda se agitavam, mas sem ladrar, como sentindo próximo alguém da
sua estima. Era Telémaco, finalmente, que vinha a entrar na herdade.
Deu imediatamente com os olhos em Ulisses, mas não o reconheceu. Saudaram-se como se
estranhos fossem. E, depois das saudações, Telémaco deixou-se abraçar por Eumeu, e
abraçou-o também contra o coração. O velho porqueiro rejubilava! Cheio
106
de ansiedade e de inquietação, Telémaco interrogou-o sobre Penélope e os pretendentes.
Eumeu informou-o de tudo o que se passava. Nada mudara desde a sua partida, tudo
continuava na mesma desgraçada situação...
Descansou Telémaco um pouco, jantaram os três, e, depois, o jovem príncipe pediu a Eumeu
que fosse avisar a mãe da sua próxima chegada ao palácio. Recomendou que o fizesse com a
maior discrição, de maneira que os pretendentes não desconfiassem de coisa nenhuma.
Eumeu pegou no seu bordão, deixando sós o pai e o filho, aquele sabendo quem era este, este
julgando que estava em presença de um autêntico pobre de pedir...
Inspirado por Minerva - a deusa apareceu-lhe, indicando que se desse a conhecer a Telémaco Ulisses saiu um momento da sala onde estavam ambos. E, quando voltou, nem parecia
mesmo: - readquirira o porte desempenado, aspecto varonil, e a beleza de sempre. Telémaco,
maravilhado, exclamou:
- «Estrangeiro, estás bem diferente do que eras há pouco. Serás porventura um deus, um dos
eternos senhores dos campos do céu?»
- «Não sou um deus, não sou um imortal, - replicou Ulisses. - Sou apenas o teu pai, cuja
ausência tantas lágrimas e
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suspiros te custou, e a tantas injúrias e insolências dos pretendentes te expôs…»
E, dizendo isto, abraça e beija ternamente o filho, enquanto incontidas lágrimas de alegria lhe
deslizavam lentamente pelas faces... Mas Telémaco duvidava...
Um mendigo transformado no homem vigoroso e sadio que tinha na frente - só obra divina
com certeza! Não, não podia ser Ulisses quem ali estava! Por muito habilidoso que fosse seu
pai nunca seria capaz de tão súbitas e perfeitas metamorfoses!...
- «Meu querido Telémaco, - disse Ulisses - não te recuses a acreditar a verdade. Sou Ulisses. O
milagre a que assistes devemo-lo a Minerva, que nunca nos abandonou. Para minha
segurança, tornou-me igual a um mendigo; e agora, para que me reconheças, restituiu-me as
feições que sempre conheceste. Abraça-me. Sou teu pai.»
Telémaco não hesitou mais. Lançou-se-lhe ao pescoço. Longo tempo estiveram os, dois
abraçados, rindo e chorando sem poder falar.
Enfim, Telémaco, dominando-se, quis saber tudo quanto sucedera a Ulisses. Foi urna narração
longa... Calipso, Polifemo, Sila e Caribdes, e todos os monstros que Ulisses vira, e os temporais
que vencera, e as desgraças a que tinha escapado, e as navegações e perigos que arrostara e a
persistência na
108
luta contra as forças adversas, e a esperança teimosa na vitória final, - tudo Telémaco ouvia,
orgulhoso e palpitante. E ninguém estranhará o seu orgulho -- o orgulho de ser filho de tal pai,
de um Herói cuja glória o Universo conhecia, e cujas proezas insignes voavam de boca em
boca.
Quando Ulisses, porém, terminada a heróica narrativa, lhe perguntou os nomes dos
pretendentes, e quantos eram e quais as suas armas; quando, informado de tudo, lhe afirmou
que ambos, sozinhos, eram capazes de expulsar e castigar os infames ladrões da fortuna e do
sossego alheios - Telémaco, prudentemente, quis dissuadi-lo de tal intento.
- «Pois quê - replicava - dois homens, embora valentes, teriam força para combater as dezenas
de criados e soldados, além dos turbulentos chefes, que se tinham instalado no palácio?
Impossível! Inacreditável...
Cento e trinta pessoas logo Telémaco enumerou, cento e trinta pessoas bem apetrechadas
para a defesa, dispostos a defender-se de todas as maneiras, e que se julgavam em terreno
conquistado na casa de Ulisses! Gente sem vergonha que a todo o momento reclamava,
gritando, a presença de Penélope, e atroava os ecos do palácio com o tilintar das armas nos
exercícios guerreiros, os jogos ruidosos
109
e os banquetes constantes. «Para a dominar e afugentar, - insistia o sisudo Telémaco - que
fariam dois homens, embora destemidos? E quem os acompanharia e auxiliaria?»
Ulisses nem pestanejou. E logo respondeu, sereno, que um auxílio de incomparável eficácia e
valor não faltaria, pelo menos: - o auxílio. de Minerva, deusa que nunca os abandonara.
Se em Telémaco não degenerara o sangue paterno - confiasse em Minerva e nele, Ulisses.
Veria como, de um momento para o outro todas as dificuldades seriam vencidas...
Telémaco, tão desejoso como o pai de libertar o palácio dos seus desonestos ocupantes, não
hesitou mais, não receou mais. Então, Ulisses comunicou-lhe os seus projectos de combate.
Ordenou-lhe que, no dia seguinte, ao romper da manhã, Telémaco voltasse ao palácio,
conversasse serenamente com os pretendentes, e a ninguém falasse na presença do rei.
Ulisses segui-lo-ia pouco depois, e apareceria sob o aspecto do velho mendigo, andrajoso e
trémulo. Se algum dos pretendentes insultasse o mendigo - Telémaco nada diria. Mesmo que
lhe batessem, que o pusessem fora de casa arrastando-o pelos pés - silêncio, silêncio e calma!
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«Contenta-te, meu Telémaco - prosseguiu Ulisses - em repreendê-los brandamente. Claro que
nada ouvirão!
Não importa! Mantém-te indiferente. Mas - atenção!... Assim que eu te fizer sinal, pega nas
armas que estão no primeiro pavimento e transporta-as para o andar de cima. Se indagarem
porque as mudas de lugar, explica-lhes que não as queres tão perto do lume da lareira, para
que o fumo não continue a empanar-lhes o brilho que tinham dantes, quando Ulisses partira a
combater em Tróia. E até podes acrescentar que os deuses te inspiraram esse pensamento
ainda com outro fim:-com o fim de evitar que este ou aquele pretendente, desvairado por
algum excesso de bebida, se sirva das armas para ferir os restantes, provocando depois
represálias e motins. Deixarás cá em baixo só duas espadas, dois arcos e dois escudos: - serão
para nós na ocasião propícia. E, depois, espera-me... Mas que nem sequer se pressinta que
estamos na disposição de lutar, e que eu me encontro ali! E, discreto e cauto, vai observando e
vigiando os nossos antigos servidores para saber até que ponto se conservam fiéis ao seu
antigo rei...»
Assim o caso ficou resolvido entre os dois.
Entretanto Eumeu chegara já ao palácio - onde também chegou na mesma ocasião um dos
tripulantes do navio em que viajara Telémaco e cada
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qual anunciou a Penélope a próxima vinda do filho.
Ficaram os pretendentes verdadeiramente consternados...
Apesar da pouca idade de Telémaco - sempre o temiam. E, por isso, como patifes que eram,
trataram de se reunir para combinar o modo mais fácil de se desembaraçarem dele. Houve
quem propusesse o seu assassinato. Mas Penélope soube da proposta, desceu dos seus
aposentos e conseguiu persuadi-los da infâmia, que representava para eles, guerreiros e
soldados, tão baixo processo de inutilizar um inimigo... Prometeram os traidores não matar
Telémaco. Mas quem adivinhará o que lhes vai na mente, quem poderá exterminar de vez os
feios propósitos que albergam almas tão ruins?
Cumprida a sua missão, Eumeu voltou à choupana, e lá encontrou Ulisses e Telémaco, que
preparavam a ceia: - um gordo leitãozinho bem assado no espeto. Já então Ulisses readquirira,
por influência de Minerva, que viera tocar-lhe com a sua varinha de ouro, a aparência de
mendigo. Eumeu, por isso, continuou a ignorar que estava falando ao seu antigo amo...
Contou Eumeu o que se passara no palácio, e acrescentou que vira, pelo caminho, no porto da
cidade, muitos homens saindo de um barco, e que logo se lembrara que fossem os
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pretendentes, de regresso da emboscada que não surtira efeito. Não eram os pretendentes, nós o sabemos: - eram os companheiros de Ulisses, os Feácios que o tinham conduzido a Ítaca.
Telémaco, ciente do que sucedera ao pai, calou, porém, o seu amorável segredo. Sorriu
disfarçadamente para Ulisses, de maneira a não ser surpreendido por Eumeu. E, como a ceia
estava pronta, cearam tranquilamente, deitaram-se e dormiram toda a noite. De madrugada,
Telémaco levantou-se, calçou as suas belas sandálias, tomou na mão uma lança forte,
despediu-se de Eumeu e partiu.
Penélope - ele o sabia -- não se consolava nunca da ausência do filho. Chorava amargamente a
solidão em que ficava, ao tê-lo distante, e sentia-se desamparada perante as exigências e os
motejos dos pretendentes. Cumpria-lhe não a deixar isolada e abandonada junto de tão baixa
e vil multidão. A caminho do palácio, seus pés adejavam, leves e céleres como a ansiedade que
o impelia...
Pouco depois, Ulisses e Eumeu ergueram-se também e seguiram o mesmo rumo. Eumeu
desejaria conservar mais tempo junto de si hóspede de tanto saber e juízo. Mas Ulisses não
continha a sua impaciência e não aceitara o convite do afável ancião.
113
.
Apoiado a um bordão rústico, de bornal às costas, quase empurrara Eumeu para fora da
choupana. Eumeu não resistira a esse desejo impetuoso, tanto mais que Telémaco prometera
albergar melhor o suposto mendigo, e mandara que o feitor o guiasse - se Ulisses assim o
pedisse - até ao palácio real. Pai e filho, cada um por seu lado, iam meditando na luta a travar
contra os pretendentes. Estes, a essa hora, dormiam a sono solto - fiados na sua audácia
atrevida, convencidos de que nunca mais acabaria aquele regabofe ignominioso de viver à
custa de outrem...
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OS homens nem sempre gostam dos animais que os defendem e acompanham fielmente.
Fazem mal! Há muitos animais que têm mais coração e maior bondade do que certos
homens... Ides ver o que sucedeu com Árgus, o velho cão de Ulisses, guarda constante, desde
cachorrinho, do palácio do Herói, e que, decrépito agora, quase a agonizar, ainda ali se
mantinha de sentinela, em frente do seu pobre canil...
115
Telémaco entrara em casa, abraçara sua mãe e sem lhe revelar a próxima chegada de Ulisses,
dera-lhe a entender que este não morrera e que por intermédio de Menelau e de Helena,
soubera que o subtil Herói de Tróia vivia provavelmente, na ilha de Calipso.
Logo Penélope se reanimou e ganhou novo alento para resistir às violências dos pretendentes.
Nada lhes disse, porém, e deixou-os - já o Sol estava alto - nos seus jogos e conversas ao ar
livre, que lhes aguçavam o apetite para a hora da primeira refeição...
Ulisses e Eumeu vinham a caminho. Defronte do palácio, pararam um instante e resolveram
que Eumeu entrasse primeiro e voltasse a buscar Ulisses. O leal feitor avisaria Telémaco de
que estava perto o mendigo seu protegido, pois Eumeu continuava a não suspeitar do disfarce
do companheiro.
Assim fizeram. Ulisses ficou só...
Olhou em volta. Fitou depois o pórtico do palácio. Eram os seus campos, era a morada feliz
onde passara dias venturosos. Que saudade! Mas - nada de tristezas! O seu dever era
conquistar a paz, a riqueza, os bens perdidos...
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Comoveu-se; porém, ao lobrigar - levantando-se custosamente sobre as patas que tremiam - o
velho Árgus, amigo de sempre! Deixara-o com melancolia imensa quando partira para Tróia.
Em criança, compartilhara o cão de todos os folguedos do dono. Corriam juntos, juntos
caçavam lebres, cabras selvagens, e os esquivos veados. Ulisses dava-lhe de comer na mão. E
ai de quem tocasse no menino! Logo mordia o malvado, logo ladrava para afastar a gente de
má catadura. Também, estimavam-no a valer. De pêlo nédio e lavado, jamais lhe faltava a
comida - e até acepipes da própria mesa de Ulisses. Pertencia à família. E hoje, - pensava
Ulisses - como tratariam o velho Árgus?
A grande aflição que reinava na alma de Penélope e de Telémaco não os deixava, - bem se via cuidar do mísero animal. Trôpego; lazarento, magro, sujo, o cão envelhecera depressa.
Deitara-se fora do canil, em cima do estrume, devorado de pulgas, quase cego. Mas, ao ouvir a
voz de Ulisses, mexeu a cauda, encolheu as orelhas, quis erguer-se. Coitadito! Não teve forças
para correr, latindo e saltando, ao encontro do dono. Quem sabe se então lhe lembrariam as
brincadeiras doutros tempos, as impetuosas caçadas aos bichos bravos, a força com que
dominava os ladrões perigosos, o entusiasmo que o
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levava, ofegante, a subir montanhas num abrir e fechar de olhos, a saltar valados, a atravessar
bosques na peugada de algum roedor! Ulisses contemplou o cão prostrado, e teve vontade de
chorar. Ao menos, para consolação derradeira, iria abraçá-lo e afagá-lo ternamente...
Acercou-se dele. Estendeu a mão para acariciá-lo! Ai de mim! Já não pôde tocar-lhe vivo! Ao
senti-lo ao lado, o bom Árgus, tentando ainda mover a cauda e segurar-se nas pernas débeis,
caiu para sempre, sem um suspiro. Estava morto. A alegria de tornar a ver o dono - matara-o!
Sofrera, resistindo, a dor de vinte anos de ausência. Mas não resistira ao júbilo inesperado da
presença de Ulisses. Reconhecera-o logo, logo tentara festejar o seu regresso - e eis que a vida
lhe fugia. Eumeu, e mais era homem, e amigo de Ulisses, Telémaco, e mais era filho afectuoso
e dedicado, - não tinham sabido adivinhar, perante o mendigo andrajoso, a verdade que, meio
tonto e meio cego, o fiel Árgus imediatamente pressentira! Ulisses pranteou a sua morte como
se fosse a do seu melhor camarada. E mais tempo a lamentaria, decerto, se não se avizinhasse
o momento - o momento feliz! - do combate, da vitória e da justiça!
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Não podia Ulisses entregar-se à tristeza que o pungia. Os pretendentes continuavam a habitar
o seu palácio, a gastar os seus bens e a esperar - esperança vã! - que Penélope se decidisse a
casar com algum deles. Era forçoso expulsá-los, desbaratá-los, vencê-los.
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Por isso, lançando um último olhar de saudade ao corpo inteiriçado do mísero Árgus, que
ainda parecia fitá-lo submissamente - entrou em casa, antes mesmo que Eumeu o viesse
chamar. Transpôs o pórtico do vasto edifício e dirigiu-se à sala onde já estava Telémaco, junto
dos hóspedes que a desgraça lhe trouxera... Mas Ulisses não passou do limiar, como se
realmente fosse um pobre pedinte, Sentou-se e nada disse.
Telémaco, mal o viu, chamou Eumeu e mandou oferecer ao falso mendigo pão e carne - do
melhor pão e da melhor carne que ali havia. Comeu Ulisses lentamente, depois de agradecer a
Telémaco a generosa esmola. E humilde, tímido, calado, foi em seguida estender a mão à
caridade de todos os pretendentes. Queria saber, o astucioso, quais deles eram os bons e os
maus, quais seriam capazes de negar a um pobre o conforto das suas dádivas e das suas
palavras de piedade...
Não tardou que se revelasse, tal como era, o empedernido coração daquela gente. Melanto,
um dos príncipes indignos, apenas Ulisses começou o peditório, exigiu que lhe dissessem o
nome e as intenções desse estrangeiro que ninguém conhecia. E Antino - outro pretendente vai mais longe: - insulta Eumeu, pelo atrevimento de deixar penetrar no palácio
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um qualquer vagabundo, perturbador da animação e dos festins e da alegria de cada um...
No entretanto, Ulisses ia recolhendo as esmolas, que, mesmo cheios de rancor, os
pretendentes não se atreviam a negar-lhe. Eumeu, zangado com as violências de Antino,
gritava e protestava, censurando a arrogância e a falta de bondade do crudelíssimo príncipe.
Telémaco, porém, ordenou-lhe que se calasse. E tentava ele mesmo convencer Antino da
baixeza que estava cometendo - quando este, furioso, atirou com o banco em que ficara
sentado à cabeça de Ulisses... Por pouco, meus amigos, que o não mata!...
Telémaco fervia de cólera... Mas, a um olhar de Ulisses, refreou o gesto raivoso que o ia
precipitando contra o brutal criminoso Antino. Ulisses, imperturbável, sereno sempre, que fez
então? Contentou-se em avisar o petulante, com mansas palavras de censura, de que não é
honesto perseguir os pobres, de que os ricos de hoje são os pobres de amanhã, e que só valem
as riquezas da alma, que são eternas e não perecíveis como as outras...
Ora, as discussões, o barulho, a irritação tinham tomado toda a gente, enchiam a sala de largo
burburinho. Ouviu Penélope o barulho e desceu dos seus aposentos. Informou-se do que
sucedera.
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Um hóspede atacado e ferido na própria casa onde ela habitava! Jamais se vira tão
imperdoável atentado às leis sagradas da hospitalidade! E, carinhosa e terna como sempre,
mandou chamar o ofendido Ulisses, para o compensar da violência sofrida, não só por meio de
palavras suaves, mas também de presentes generosos...
Receando que Penélope o reconhecesse, não quis Ulisses obedecer ao caridoso convite.
Pretextou que temia a perseguição dos pretendentes, se acaso parecesse fugir. Mais tarde
obedeceria às ordens da rainha.
Murmurou essa desculpa ao servo que o viera buscar e, em seguida, não respondeu mais às
injúrias dos pretendentes.
Tanta dignidade afirmava no porte humilde, que estes emudeceram também. Nem Antino
falava. Silêncio completo. Eis senão quando Telémaco espirrou. Todo o palácio como que
tremeu, abalado. As aias e os servos fitaram-se, receosos. No tear de Penélope quebraram-se
alguns fios da teia interminável, que interminavelmente ela recomeçava...
- «Bom presságio! exclamou Penélope ao saber do caso. Assim a mão de Telémaco seja forte e
exterminadora contra a avidez e a cobiça dos pretendentes, na hora em que enfim lhe for
dado expulsá-los de aqui...
122
...
O espirro de Telémaco fora um desabafo r incontido de fúria e desespero. Era cedo ainda,
porém, para dar largas à cólera que o oprimia. Instante a instante, seu pai dava-lhe o exemplo
da serenidade e do sangue-frio, da coragem que não desvaira e da fé que não tem medo do
futuro...
Caiu a noite. Chegou à porta do palácio um jovem mendigo - verdadeiro, esse - que ao ver
Ulisses, julgou estar na presença de um concorrente, e quis bater-lhe. Mas o Herói invencível,
arregaçando a túnica, mostrando os músculos vigorosos, fê-lo morder o pó. Todos aplaudiram
a proeza magnífica - e os pretendentes começaram a olhar com respeito aquele estrangeiro de
tão modesta aparência, mas que não receava bater-se contra um homem em plena mocidade.
Não desistiram, porém, de vexá-lo e agredi-lo por palavras. Ulisses respondia apenas: «Se
Ulisses algum dia volta, veremos quem é capaz de resistir à sua justa cólera!...
Os doestos, os insultos calavam-se então por momentos. Mas logo recrudesciam,
continuavam, interrompidos só pela glutonice dos pretendentes, que não se cansavam de
comer e beber iguarias famosas e vinhos de dulcíssimo sabor.
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Nessa noite, depois da ceia, os príncipes maldosos foram-se deitar. Aproveitando o sono de
tão importunos hóspedes, Ulisses e Telémaco transportaram todas as armas que havia no
palácio para quarto distante da sala comum. Cada um reservou para si um arco de boa
madeira. Separaram-se depois: Telémaco para repousar. Ulisses para subir aos aposentos de
Penélope, como prometera.
Estava Penélope no meio das suas aias trabalhando e conversando. Assim que Ulisses - sempre
em figura de mendigo - entrou e a saudou, ordenou ela que trouxessem um banco revestido
de fina pele de ovelha, e fê-lo sentar.
E, sem imaginar sequer que estava na presença do marido, tão lembrado e tão chorado, logo
do marido ao próprio Ulisses pediu notícias. E Ulisses respondeu, mentindo:
- «Rainha, é muito difícil recordar-me dele, pois o não vejo há quase vinte anos. Veio então à
minha terra, que se chama Creta, e nunca mais apareceu. No entanto, tentarei evocá-lo tal
como o contemplei... Trajava um manto de rica púrpura, preso por duplo fecho de ouro, e
bordado na frente; em baixo via-se pintado um cão de caça, segurando nos dentes a presa que
ia devorar. Essa pintura era tão ao vivo, tão natural, que não se olhava sem deslumbrada
admiração.
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O cão e a presa - uma corça pequenina - eram ambos de ouro. O cão lutava com a corça para a
devorar, e nada faltava à perfeição da cena. Debaixo desse manto, Ulisses trazia uma túnica de
tecido muito fino, que brilhava como o Sol e cujos enfeites excediam os melhores. As principais
princesas da cidade ficaram encantadas com a sua beleza.
Seria traje tão luxuoso o traje habitual de Ulisses, ou alguém lho dera? Não sei... Sei que se
ajustava perfeitamente à sua estatura e majestade. Não me esqueci, quando ele partiu de
Creta, de prestar a Ulisses as homenagens devidas aos heróis mais ilustres. Mas nunca mais
tornei a encontrá-lo...
Ouvindo e não conhecendo a voz do marido, Penélope chorou ainda mais. É que o traje que
ele descrevia tão bem - e como não o descreveria bem, se o tinha vestido longo tempo? - era
aquele que Ulisses levava no momento de partir de Ítaca para Tróia. A rainha recordava-se do
manto, das pinturas, da túnica, e, sobretudo, do belo fecho de ouro, que por suas mãos tinha
colocado no peito do marido... Por isso as lágrimas eram tão abundantes nos seus lindos olhos,
cujo esplendor nem o pranto amortecia...
Ulisses aconselhou-a a que não chorasse mais.
- «Breve terás aqui o esposo querido» - afirmava, jurando que lho dissera certo rei de país
onde passara.
125
.
Confiada, crente na sinceridade do pretenso estrangeiro, Penélope secou o pranto e chamou a
velha Euricleia para acompanhar Ulisses a outro aposento, em que pudesse dormir
descansado.
Era costume das criadas de então lavar os pés dos viajantes, cansados do caminho. Euricleia,
mal instalou Ulisses no quarto que lhe destinara, preparou a água tépida para tal fim. Mas
quando se apressava a cumprir a sua obrigação de serva dedicada, eis que descobre, num dos
joelhos do forasteiro, cicatriz profunda que bem conhecia. Adolescente, o Herói tinha-a feito
ao defrontar-se com um javali: - uma das presas da fera penetrara até ao osso!
- «És Ulisses, és Ulisses!» - exclamou.
E, comovida, abraçava-o, beijava-o, apertava-o contra o coração. Ulisses não pôde negar a
verdade... A noite passou-a em longas confidências à sua velha e boa ama. Contou-lhe as suas
aventuras e viagens.
Mas obrigou Euricleia a prometer que de tudo guardaria - e da sua presença no palácio - o
mais completo e absoluto segredo...
No dia seguinte, recomeçando Antino a insultar Ulisses - Ulisses, sem outra resposta, retesou o
arco e trespassou-o com a flecha afiada. E logo perdeu o aspecto de mendigo.
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Minerva restituíra-lhe, rapidamente, do alto céu donde contemplava e animava o seu
protegido em hora tão difícil, a sua figura verdadeira, a figura radiosa de vencedor de Tróia...
Com o filho ao lado, Ulisses foi afugentando e matando todos os usurpadores e delapidadores
da fortuna que lhe pertencia. Eumeu ajudava-os nessa obra de equidade, e não de vingança.
As setas soltavam-se dos arcos e voavam. Voavam e silvavam pelo ar, e nunca se desviavam do
alvo. Um a um, morreram ou fugiram todos os pretendentes, recebendo assim o castigo
merecido. Só foram poupados, entre os estranhos que o palácio albergava, o poeta Fémio e o
herói Medão.
O poeta - porque deliciava homens e deuses com a harmonia e a graça dos seus cantos. O
herói - porque praticara em tempos acções admiráveis, que o tinham tornado digno de
respeito. E ambos, afinal, porque nunca tinham auxiliado os pretendentes nas suas violências,
brutalidades e rapinas.
Penélope assistira à luta com o coração apertado. Ulisses não lhe deixara ainda adivinhar
quem era. Mas qual o guerreiro capaz de se bater por ela com tanto denodo e agilidade, tanta
decisão e intrepidez no pensamento e no gesto? Só Ulisses, seu esposo bem-amado...
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Findo o combate, deu-se Ulisses a conhecer. Subiu outra vez aos aposentos de Penélope, e
disse enfim o seu nome. Mas Penélope já estava quase certa da verdade...
É que Euricleia. - a ama carinhosa que em seus braços, agora fatigados, criara e embalara
Ulisses pequenino - assistira à dura refrega, e vira a derrota dos pretendentes.
Admirando, com seus límpidos olhos que tantas coisas raras tinham visto, os golpes certeiros
do Herói, nem por instantes duvidou de que estava contemplando o invencível guerreiro de
Tróia.
Quem, melhor do que ela, sabia dos seus feitos e da têmpera rija da sua alma? Quem, melhor
do que ela, teria gravados na memória os traços da sua fisionomia?
Imediatamente, correra a avisar a esposa triste, sempre chorosa no aposento onde trabalhava.
Penélope, embora temendo ainda qualquer engano, sentia no entanto- e o próprio coração lho
dizia - que Euricleia não se tinha iludido. Acções de tal grandeza - só Ulisses as praticaria! Amor
que tão bem a defendesse e amparasse - só o amor de Ulisses!
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Junto da teia jamais acabada de tecer - da teia que os dedos ágeis da rainha ora teciam, ora
desteciam, para frustrar a ambição daqueles que perfidamente cobiçavam sua mão e sua
fortuna - junto dessa prova suprema da sua fidelidade e paixão, abriu os braços ao esposo
justiceiro, ao esposo que vibrava de pura alegria, de afecto insofrido, e do orgulho do triunfo
gloriosamente alcançado...
Ulisses cingiu-a longamente, peito a peito. Abraçou depois Telémaco, Eumeu e todos aqueles
que o tinham sabido esperar sem o trair. De quantos viviam no palácio, ao tempo da sua
partida para Tróia, só Árgus, o cão dedicado, morrera. Era o único amigo que faltava!...
Do palácio inteiro acorria gente, surgiam os criados, os guardas, as aias da rainha. E o ar
ressoava da vasta aclamação, que se erguia de dezenas de bocas delirantes...
Rápida, a notícia chegou ao povo da cidade. Andava ele desavindo, separado em dois grupos
rivais que se odiavam e hostilizavam. Mas o imprevisto acontecimento que a todos
surpreendeu e exaltou, apaziguou de súbito as antigas discórdias. Logo se estabeleceu a paz,
como na época venturosa em que Ulisses ali reinava, antes da sua ausência demorada.
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E Ulisses, enfim ditoso e sossegado, governou Ítaca anos e anos seguidos, enchendo-a de
prosperidade e de glória. Envelheceu contente junto de Penélope, a esposa incomparável, e de
Telémaco, ousado e sábio como o pai, - como Ulisses, o Herói de mil façanhas e ardis, o
homem mais audacioso, mais persistente e hábil que a voz da fama alguma vez louvou!
FIM