baixo - UFMT

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baixo - UFMT
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO - UFMT
INSTITUTO DE LINGUAGENS - IL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA
CONTEMPORÂNEA - ECCO
MATRI ÁFRICA: AS ÁGUAS DO SAGRADO ÀS MARGENS DE
CUIABÁ.
ANTÔNIO LEÔNCIO DE BARROS LIMA
CUIABÁ
2010
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ANTÔNIO LEÔNCIO DE BARROS LIMA
MATRI ÁFRICA: ÀS ÁGUAS DO SAGRADO, ÀS MARGENS DE
CUIABÁ.
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação
em
Estudos
de
Cultura
Contemporânea do Instituto de Linguagens da
Universidade Federal de Mato Grosso para
obtenção do título de Mestre.
Orientador: Profa. Dra. Maria Thereza de
Oliveira Azevedo
Cuiabá-MT
2010
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Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.
L732m
Lima, Antônio Leôncio de Barros.
Matri África : às águas do sagrado, às margens de Cuiabá /
Antônio Leôncio de Barros Lima. – 2010.
81 f. : il., color. ; 30 cm.
Orientador: Maria Thereza de Oliveira.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato
Grosso, Instituto de Linguagens, Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Cultura Contemporânea, 2010.
Inclui bibliografia.
Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Nilce Vieira dos Santos. CRB-1: 2.270.
Permitida a reprodução parcial ou total desde que citada a fonte.
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In memória
Aos meus pais
Ezequiel Ferreira Lima
Eclair Eulália de Barros Lima
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Agradeço aos meus professore que em minha trajetória acadêmica
demonstraram grande competência e empenho.
Ao programa de Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura
Contemporânea do Instituto de Linguagens da Universidade Federal
de Mato Grosso.
Especialmente a profª. Dra. Maria Thereza Oliveira
Azevedo que colaborou de forma incansável e valorosa no
desenvolvimento da pesquisa e conclusão do trabalho.
A profª. Dra. Ludmila Brandão pelas contribuições,
fundamentais na conclusão final da Dissertação.
Ao prof. Dr. Eudes Fernandes leite pela delicadeza e
colaboração na apreciação do trabalho.
Aos colaboradores entrevistados: Edézio Lima Fernandes e
João Bosco da Silva, que com generosidade expuseram suas vidas
e experiências de fé.
Aos meus amigos incansáveis guerreiros que lutaram ao
meu lado
A minha família de santo e demais irmão de fé que
pulularam por toda a minha existência.
Especialmente a
Eliana, Eunice; in memória, Elizabeth, Eneida, Edilene,
Maria Tereza, Ezequiel Filho, Evanize e Ricardo, meus irmãos,
meu tesouro.
A minha gratidão e respeito
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Criança que lambisca – Pela fresta do guarda-comida
entreaberto sua mão avança como um amante pela
noite. Adaptando-se então a escuridão, tateia em busca
de açúcar ou amêndoas, uvas passas ou geléias. (...) o
tato
mantém
um
encontro
preliminar
com
as
guloseimas antes que a boca as saboreie.
Walter Benjamim
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Sumário
1. Introdução...................................................................................................12
2. Margens cuiabanas: subalternidades urbanas.........................................20
2.1. Primeiras paisagens ..................................................................................20
2. 2. Movimento das águas...............................................................................24
2.3. Em busca de outras águas..........................................................................28
2.4. Usos, re-usos e outras táticas.....................................................................31
3. Espelho d’água: o movimento que nunca cessa........................................38
3.1. O Jogo das metamorfoses...........................................................................38
3.2. Manto de arlequim......................................................................................41
3.3. Desvendando o mistério das águas............................................................43
3.4. Novas crenças; novas táticas......................................................................47
3.5. Cuiabá afro-religioso..................................................................................49
4. Sincretismo e africanização.........................................................................52
4.1. Das águas às margens.................................................................................52
4.2. Identidade e reafricanização.......................................................................56
5. Considerações finais......................................................................................61
6. Referências Bibliográficas.............................................................................63
7. Anexos.............................................................................................................66
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RESUMO
Este trabalho aborda os processos de hibridação religiosa experienciadas nos terreiros
de Umbanda e Candomblé, que ocorreram no universo urbano compreendido por grande
Cuiabá. Nas décadas de 1970 e 1980 do século passado a cidade foi palco de grande
fluxo migratório, demandando mudanças significativas no seu cotidiano e em suas
práticas culturais, principalmente às ligadas ao contexto religioso de matriz afrobrasileira. As tramas sociais e mediações entre individuo, povo de santo e comunidades
operadas no agenciamento de táticas foram analisadas por meio de paradigmas
indiciários (Ginzburg; 1989; 2002) das narrativas de alguns agentes, possibilitando
perceber os desdobramentos culturais do universo afro-brasileiro manifestos na Grande
Cuiabá.
PALAVRAS-CHAVE: Religião, afro-brasileira, Cuiabá
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Abstract
This study examines the processes of religious hybridization experienced in Umbanda and
Candomble, which occurred in the urban universe understood as large Cuiabá. In the 1970s and
1980s of the last century the city was the scenery of a large migratory flow, requiring significant
changes in the daily lives and in the cultural practices, especially those related to the religious
context of African-Brazilian matrix. The social plots and mediations between the individual,
people of saint and communities that operated in the assemblage of tactics were analyzed by the
evidence-paradigms (Ginzburg, 1989, 2002) in the narratives of some agents, enabling us to
perceive cultural consequences of the African-Brazilian religious universe manifested in the
Cuiabá.
Key word: religion, African Brazil, Cuiaba
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Lista de Figuras
Figura1- Peji do Barracão de Umbanda do Terreiro Ilê De Ifá, situado no bairro Jd.
Araçá / Antônio Leôncio.................................................................................................23
Figura 2 - Lavagem da escadaria da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito/ Antônio Leôncio.............................................................................................41
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Introdução
Oxossi (...) Ele, o primeiro a narrar uma história, porque,
como caçador e rastreador, é o único capaz de ler, nas pistas
mudas deixadas pela presa, uma série coerente de eventos.
(...) a partir do desafio da decifração de pistas e da leitura
dos sinais.
Paulo Botas
As tradições culturais religiosas de matriz africana outrora transplantadas para o
território brasileiro, ao longo de sua trajetória histórica, desde sua migração forçada até
os dias atuais SOUZA (2008), tem conquistado espaços significativos na sociedade
brasileira, por meio da ação de seus agentes que operam inúmeras estratégias, no intuito
de constituir e manter uma herança identitária que os aproximassem de suas
ancestralidades.
Foram muitas as tentativas de apagar a memória cultural desses povos. Evidente
que nenhuma delas tenha se revelado com efeito suficiente para debelar em considerável
contingente da população o sentimento de pertença à identidade afro-brasileira. Na
contemporaneidade elas percorrem os fluxos das cidades, construindo as teias de
representações identitárias que permeiam a nossa sociedade. Segundo WISSENBACH
(1998):
“Nos limiares do século XX, o fenômeno da mobilidade dos homens livres e
a intensidade do processo de miscigenação impõem, assim, outras demissões
para se interpretar os elementos constitutivos da privacidade desses grupos e
os parâmetros que presidiam a vida cotidiana de largas parcelas da população
brasileira. Mais do que formas de convívio intimo, dizem respeito a
estratégias de sobrevivência nas quais a relação com o meio, os laços
societários primários, os ritos do dia-a-dia e os da religiosidade popular
tiveram ser constantemente reelaborados, harmonizando-se às contingências
de mudanças no vaivém habitual”. (WISSENBACH, 1998, 59).
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A inserção de novos atores sociais nos rituais de raiz derivativa do legado de
matriz africana no Brasil tem ocorrido independentemente de características físicas que
possam ter esses agentes, ou dos estratos sociais onde se encontram inseridos, revelando
de certa forma uma nova concepção em relação as expressões religiosas afro-brasileiras,
e outras táticas no trato com o sagrado. Sendo estas as motivações que me levaram a
percorrer os terreiros de Candomblé e Umbanda, no intuito de registrar as manifestações
religiosas afro-brasileiras em Cuiabá, por meio das vozes dos agentes que se
movimentam pelos fluxos subalternalizados da cidade de Cuiabá.
Por estarem inseridos num movimento migratório, os participantes de religiões
de matrizes africanas vão compor nas ultimas décadas do século vinte este cenário
metamorfoseado, apresentando aparentemente um novo retrato social.
Nesta dissertação busco uma reflexão acerca do universo religioso de matriz
africana, contextualizando-o e trazendo algumas das expressões produzidas neste
universo. Trago também à tona os desdobramentos sociais que brotam a partir das
contingências históricas vivenciadas e as táticas aplicadas localmente por seus atores
nestas operações que transgridem um conjunto de imposições culturais que permeiam a
nossa sociedade.
Assim, aspectos relevantes relacionados à religiosidade de matriz africana aqui
serão contemplados, bem como as relações “sociais religiosas” estabelecidas a partir das
práticas operadas nas “Casas de Culto”. A contribuição ao legado das religiões de
matriz africana é apresentada neste trabalho através do acesso à memória e atuação dos
seus praticantes, e de suas referências culturais religiosas, sua águas1, elementos que
contribuíram para a constituição do panorama religioso de matriz africana praticado
atualmente em Cuiabá.
Mesmo não sendo possível precisar com exatidão o processo pelo qual se
dá a instalação dos primeiros terreiros de Umbanda e Quimbanda em Cuiabá, é possível
afirmar que por volta de 1950 tais expressões religiosas já gozavam de relativa
popularidade (guardadas as devidas restrições sociais a que essas práticas eram
submetidas) entre as classes populares.
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Água nas religiões de matriz Africana além de ter um amplo uso ritual, traz na expressão uma alusão à
ancestralidade daqueles que repassaram os saberes religiosos, família de santo. Sendo o fator que
congrega o homem à natureza, tornando a água como condutor dos fluxos de continuidade.
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Tal processo se efetiva paulatinamente em Cuiabá, a partir dos rituais de
Umbanda e Quimbanda, diferenciando-se em relação ao que se observa nas regiões
litorâneas, onde os Candomblés representam os espaços de perpetuação para
expressivas denominações de origem africana, que segundo BASTIDE (2001), mesmo
expostas a incontáveis conjuntos étnicos se mantiveram preservadas em “nações”
distintas.
“É possível distinguir essas “nações” umas das outras pela maneira de tocar o
tambor (seja com a mão, seja com varetas), pela música, pelo idioma dos
cânticos, pelas vestes litúrgicas, algumas vezes pelos nomes das divindades, e
enfim por certos traços do ritual. Todavia, a influência dos iorubás domina
sem contestação o conjunto das seitas africanas, impondo seus deuses, a
estrutura de suas cerimônias e sua metafísica aos daomeanos, aos bantos.
Porem evidentemente que os candomblés nagô, queto e ijexá são os mais
puros de todos”. (BASTIDE, 2001: 29).
Algumas dessas referências identitárias serão introduzidas no universo religioso
de matriz africana em Cuiabá e sua circunvizinhança, principalmente nas décadas de
1980 e 1990, concomitantes ao fluxo migratório que se intensifica neste período,
redundando em novas práticas religiosas ligadas a Umbanda e ao Candomblé,
contrapondo ao cenário preexistente núcleos religiosos de tradições até então inexistente
aos praticados, e que culmina no surgimento de um conjunto de valores simbólicos e
culturais, por vezes distintos aos praticados pelos atores locais. Conforme observa
Bourdieu (1989) “à procura identitária é posta em ação a partir de uma atuação no
campo social de forma, que, a partir do agenciamento do grupo cria-se uma imanência
de representações perante a sociedade”.
“(...) a procura dos critérios ‘objetivos’ de identidade ‹‹regional›› ou
‹‹étnica›› não deve fazer esquecer que, na prática social, estes critérios (por
exemplo, a língua o dialeto ou o sotaque) são objetos de representações
mentais, quer dizer, de atos de percepção e de apreciação, de conhecimento e
de reconhecimento em que os agentes investem os seus interesses e os seus
pressupostos, e de representações objetais, em coisas (emblemas, bandeiras,
insígnia, etc.) ou em atos, estratégias interessadas de manipulação simbólica
que tem em vista determinar a representação mental que os outros podem ter
dessa propriedade e de seus portadores.” (BOURDIEU, 1989: 112).
O universo religioso de matriz africana em Cuiabá vai se constituir a partir de
práticas locais, reconhecidas por umbanda, que abrigavam individualmente modos de
operarem diferenciados, produzindo mesclas que favorecem o incremento do exercício
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das práticas umbandistas na freguesia cuiabana, paralelamente ao conjunto de fatores e
eventos co-relacionados às táticas de consumo cultural, que para Certeau (1994) se
inserem no jogo das relações sociais.
“Muitas práticas cotidianas (falar, ler, circular, fazer compras ou preparar as
refeições etc) são do tipo tática. E também de modo mais geral, uma grande
parte das “maneiras de fazer”; vitórias do “fraco” sobre o mais “forte” (os
poderosos, a doença, a violência das coisas ou de uma ordem etc), pequenos
sucessos, artes de dar golpes, astúcias de “caçadores”, mobilidades da mãode-obra, simulações polimorfas, achados que provocam euforia tantos
poéticos quanto bélicos.” (CERTEAU, 1994: 47)
Outro fator relevante a corroborar neste processo foram os projetos de
colonização do centro-norte do país. Se as levas migratórias sulinas se davam de forma
articulada favorecendo sua permanência nas áreas ligadas à produção agrícola, por outro
lado, os migrantes vindos das regiões norte e nordeste em busca de melhores
perspectivas de trabalho estariam mais propensos em se estabelecer em núcleos urbanos,
ou por ele circularem – os chamados paus rodados ou andarilhos pé-inchado
(GUIMARÃES NETO, 2006). Isso, pela probabilidade de mais postos de serviços que
não careciam de qualificação ou investimento prévio, e se estabelece na periferia da
cidade, e retro alimenta os circuitos culturais dos fluxos subalternos ao longo de sua
trajetória histórica, ressaltado em WISSENBACH (1998).
(...) “implica avaliar a reorganização de suas vidas contornando os resquícios
do domínio escravista, os flagelos da fome e das secas, fugindo dos
alistamentos, e das conturbações políticas, buscando novos espaços sociais
que permitissem minimizar não só as mazelas do desenraizamento, como
também a condição de exclusão pretendida pelos projetos modernizantes das
elites brasileiras”. (WISSENBACH, 1998, 60).
Recorro às narrativas de alguns dos atores que tomam parte deste contexto, que
ao se sentirem envolvidos de forma bastante particular ao universo religioso de matriz
africana, tendem a buscar a partir de suas concepções identitárias um reconhecimento de
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suas práticas religiosas, com o intuito de traçar as trajetórias percorridas por esses
agentes que comporão na atualidade o povo de santo da capital de Mato Grosso.
Por vezes tais sujeitos no exercício de suas práticas religiosas se auto
identificaram como rezadores e benzedeiras, no intuito de angariaram de certa forma a
aceitação e a confiança da população que buscavam por seus favores mágicos, tornando
esses espaços de culto, inicialmente por meio da Umbanda e posteriormente através do
Candomblé, local a perpetuar o legado de matriz africana, que num fluxo contínuo se
comporá ao longo do tempo o cenário religioso afro-descendente em Cuiabá.
Busco neste trabalho apontar as astúcias empreendidas no processo de
continuidade do legado cultural afro-brasileiro, locupletado em Cuiabá. Na medida em
que esse jogo se desenrola na periferia da cidade, mobilizados por agentes subalternos,
ligados ao culto das religiosidades de referências afro-descendente, desloca-se a
fronteira para além dos limites das contingências econômicas para adentrar nos limites
subjetivos das práticas desejantes de seus atores.
Ao longo do processo de pesquisa, considerando a minha inserção ao universo
abordado; “percebeu-se que parece impossível em qualquer pesquisa seguir à risca, um
tal “método”. Onde estão as tentações do caminho? As tentativas frustradas? Os loops
angustiantes, os becos-sem-saída?” (BRANDÃO, 2008); sempre presentes quando se
pretende estruturas demasiadamente rigorosas.
Portanto a opção metodológica pela construção de um panorama, histórico e
social do contexto religioso matri-africano vivenciado em Cuiabá, proporcionou a esta
pesquisa um ponto de vista a privilegiar como diferencial, o contexto onde se encontram
inseridas na mesma cena, o olhar do pesquisado, e o do colaborador, indivíduos à que
busco fazer ouvir, na medida em que, seus participantes através de suas memórias tecem
a trama do passado, em trajetórias individuais, que se revelam no cenário das
religiosidades de matriz africana da cidade, que de acordo com REVEL (1998).
“A abordagem micro-histórica é profundamente diferente em suas intenções,
assim como em seus procedimentos. Ela afirma em principio que a escolha
de uma escala particular de observação produz efeitos de conhecimento e
pode ser posta a serviço de estratégias de conhecimentos. Variar a objetiva
não significa apenas aumentar ou (diminuir) o tamanho do objeto no visor,
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significa modificar sua forma e sua trama. (...) É o princípio da variação que
conta, não a escolha de uma escala em particular.” (REVEL, 1998; 20).
Por não sendo possível precisar com exatidão o momento em que surgem as
práticas rituais afro-descendente em Cuiabá, recorro aos relatos reunidos neste trabalho,
com o intento de estabelecer os limites aproximativos relativos às suas práticas
religiosas, e que emitem sinais onde podemos perceber através dos relatos orais o
desenrolar de seus intentos, que de acordo com Montenegro (1994) pode estabelecer os
vieses significativos na reconstituição dos sentidos que afetam esta população.
“A história oral se descobre um processo de socialização de uma visa de
passado, presente e futuro que as camadas populares desenvolvem de forma
consciente-inconsciente. Entretanto, a aquisição da capacidade de falar, de
comunicar idéias é elemento determinante dessa historicidade. Uma
historicidade de luta, de resistência, que evidentemente, tem marcas de
conformismo e repetição do status quo.” (MONTENEGRO: 1994, P.40)
Historicidade que se desenrola num ritmo compassado, marcado pelo som das
palmas e de batidas vigorosas de pés no chão rústico das casas cuiabanas, este espaço
que é ao mesmo tempo de moradia e ritual vêm compor também como estratégia de
dissimulação contra as forças repressoras e os estigmas sociais impelidos às heranças
africanas, aos seus participantes, indivíduos que guardam para si o desejo de
continuidade dos rituais vivenciados no culto aos Orixás. Percebe-se, então, que: “(...)
um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos, encerrado na esfera do vivido, ao
passo que o acontecimento lembrado é sem limites, por que é apenas uma chave para
tudo o que veio antes ou depois.” (BENJAMIN, 1994), registrado na memória dos
atores que se engendram nesta trama. E que segundo Jaques Le Goff (2003) permeiam
os sentidos da memória.
“A memória, como propriedade de conservar certas informações, e remetenos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o
homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou como ele
representa como passadas.” (Le Goff, Jaques. 2003: 419).
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Deste modo as redes de representações mobilizadas entre os fluxos globais
subalternos, do qual o universo afro-religioso vai sendo costurado, redimensionado,
concomitante ao contanto produzido com a inserção de valores simbólicos advindos do
processo migratório, ocorrido nas décadas finais do século XX2, potencializam e
retroalimentam as práticas desejantes, evocando novos valores na produção cultural
afro-descente local.
A escolha dos paradigmas indiciários estabelecidos por Carlo Ginzburg como
procedimento investigativo desta pesquisa, motivou a coleta de dados por meio das
narrativas de experiências vivenciadas no universo religioso de matriz africana em
Cuiabá. O terreiro tanto de Umbanda como de Candomblé como espaços sagrados,
possibilitam ao fiel o contato direto com os preceitos religiosos em seu cotidiano,
possibilitando perceber trajetórias individuais e coletivas por meio das pistas contidas
nos relatos de seus agentes, que segundo (GINZBURG; 1989) compõe as tramas a
serem decifradas.
Por milênios o Homem foi caçador, durante inúmeras perseguições, ele
aprendeu a reconstituir as formas e movimentos presas invisíveis pela
pegada na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pelos,
plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar, registrar,
interpretar e classificar as pistas infinitesimais, como fios de barba.
(GINZBURG, 1989; 151)
A operação de compor este cenário, as experiências singulares vivenciadas por
seus atores, as trajetórias que compõem as tramas das ações coletivas, conectando
pessoas aos movimentos de organização social se revela de acordo com a escala em que
são produzidas. A convicção da importância de um fenômeno é, de certa maneira,
proporcional às suas dimensões, (REVEL; 1998) e significados:
“(...) Ele pode – e terá sido esse o caminho com maior freqüência adotado –
ser pensado como uma tentativa de apreender conjuntos, de caracterizar
comportamentos globais e médios. Ele pode também – e é essa a
preocupação que compartilham essas novas abordagens – se atribuir como
tarefa explicar a lógica da significação dessas experiências em sua
singularidade. (...) mas com a convicção de que essas vidas minúsculas
também participam, à sua maneira, da “grande” história da qual elas dão
uma versão diferente, distinta, complexa.” (REVEL, 1989: 9)
2
Conforme as informações cruzadas entre as entrevistas realizadas para este trabalho permitiram
observar.
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Em um processo de deslocamentos migratórios que agenciam outras táticas de
sobrevivência introduzidas neste universo, novos agentes se inserem no contexto e que
atuam nesta trama, trataram de compor outra lógica identitária, ao introduzir novas
práticas ao cotidiano religioso cuiabano, reveladas pela memória de seus atores.
No primeiro capitulo busco o cenário afro-religioso em Cuiabá, caracterizado
pelas práticas da Umbanda cujos atores agenciam localmente, mudanças significativas,
operadas concomitantes ao processo migratório das décadas de 1970 e 1980.
No segundo capítulo abordo a inserção de novos valores simbólicos culturais,
dentre os quais os do candomblé, que paralelamente a sua inserção vai reacender
desejos individuais, produzindo metamorfoses e arremedos, nas trajetórias individuais e
coletivas que permeiam o universo religioso de matriz afro-brasileira em Cuiabá.
No terceiro capítulo, relaciono as reverberações do abalo sísmico agenciadas no
processo migratório aos acoplamentos culturais dos rituais de umbanda e candomblé,
legitimadas pelo discurso de reafricanização das religiões afro-brasileiras.
Por fim, as considerações finais onde busco apontar a compreensão acerca dos
eventos relacionados nesta pesquisa. Os saberes descortinados do passado tornam-se
matéria viva, água que preenche as lacunas das dobras reformulando os espaços e
territórios no campo religioso de matriz africana, produzindo deslocamentos que
efetivam novas praticas, demarcando novas fronteiras, no interior da própria cultura
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Capitulo 1
Margens cuiabanas: subalternidades urbanas
Resistir, diferentemente, não é permanecer nas
possibilidades dadas, não é render-se ao estado de
coisas já estabelecido. É criar possibilidades inéditas,
ações, fora das medidas, é inventar valores novos,
diferentes dos constituídos; é ir além desses valores
dados; é transvalorar, como nos ensina Nietzsche. É,
portanto, a afirmação vigorosa do novo, da imanência
da criação.
Cecília Coimbra
2.1. Primeiras paisagens
A Umbanda é uma religião de denominação afro-brasileira, mas tem sido
considerada muito mais brasileira que africana, pela forte presença sincrética dos seus
ritos. Fundada oficialmente na década 1920 na cidade do Rio de Janeiro, com a intenção
de institucionalizar o culto, que já era praticado em suas várias nuances (OLIVEIRA,
2007) teve rápida inserção nas cidades brasileiras, tornando-se bastante popular em
Cuiabá, como podemos perceber através deste trecho da entrevista realizada com o
Babalorixá Pai Bosco de Xangô3, onde ele descreve sua trajetória no universo religioso
Afro-brasileiro.
-Eu sou filho e neto de umbandistas e a partir de então todo o processo
ritualístico de umbanda eu acompanhei na infância, pré-adolescência,
adolescência, vida adulta, e com trinta anos de idade eu conheci o
candomblé. É legal que eu destaque que mesmo sendo filho e neto de
umbandistas eu não fiz nenhum ritual iniciático no culto umbanda, então eu
preferi apenas participar como filho de umbandista como neto de
umbandista: ir ao centro de Umbanda tomar passes, participar de festas,
3
Pai Bosco de Xangô ou João Bosco da Silva, Mestre em História pela UFMT, consultor de cultura afro
da Secretária de Educação do estado de Mato Grosso, tendo seu Terreiro de Candomblé de Nação Ketu
muito recentemente inaugurada, em 31/07/2010.
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mas em nenhum momento meus pais impuseram a minha participação como
iniciado no culto de Umbanda. Então eu conheço a religião de Umbanda
desde que eu me entendo por gente, que é uma religião de matriz africana
muito comum na cidade de Cuiabá.4
Nas décadas de 1970 e 1980, o fluxo migratório se intensifica em direção a
capital mato-grossense, se insere no cotidiano da cidade, que concomitantemente à sua
inserção no contexto social traz consigo uma gama de novos valores simbólicos a serem
agregados ao universo religioso “afro-cuiabano”, que até então era compreendido muito
mais por suas referências religiosas locais ligadas a prática dos ritos da Umbanda que
por fatores culturais externos.
Neste momento alguns personagens como Maria perna grossa, médium da
cidade, que ficou famosa como benzedeira, por seus feitos de cura, angariando larga
clientela, atendia em ambiência conjugada a sua casa particular, na Rua da Prainha5.
Outro personagem importante foi Dona Maria Amélia, que por essa época era chefe de
um terreiro de Umbanda na Rua Estevão de Mendonça, onde o espaço doméstico era
compartilhado com os compartimentos dedicados ao rito.
Essa interação Casa/Terreiro vem a ser uma prática recorrente no exercício
religioso popular afro-brasileiro; bastante explicito na construção imagética que
descreve o cotidiano de alguns centros de Umbanda e Quimbanda6. De acordo com
Paredes, moradia e local da prática religiosa se mesclam, “(...) o espaço denominado
centro ou terreiro, na Umbanda cuiabana, apresenta-se com pobreza e rusticidade sem
parelhas. Como regra, ele não é mais que uma partição da casa da casa do médiumchefe.” (PAREDES, 2008:21).
Considerando que a prática de Umbanda não carece necessariamente de espaços
devidamente determinados, como se pretende no Candomblé, ambientes variados se
tornam então os lugares possíveis, mesmo que para determinados rituais os espaços
estejam definidos previamente, ou então sejam ressignificados para a execução do rito.
4
5
Entrevista com pai Bosco. Entrevista realizada em 07/01/2010.
O conhecimento acerca destes personagens pode ser percebido ao longo da entrevista com o Babalorixá
Pai Edézio realizada em: 13/01/2010. Estas personagens fazem parte do universo religioso Afro-cuiabano,
porque quando o fluxo migratório chega encontra estas práticas efetivadas em seu meio.
6
Quimbanda é uma prática religiosa do universo Afro-brasileiro, que tem seus ritos direcionados a Exús e
Pomba-giras (PAREDES, 2008).
22
Por exemplo; um oratório pode ser metamorfoseado em peji (altar peculiar à Umbanda)
no momento necessário e logo após tornar a ser o móvel onde se reverencia os santos
católicos no âmbito doméstico. Wissenbach observa que essas ações dizem respeito a
estratégias de sobrevivência, ou seja, a de “superar dos limites dos valores burgueses”.
“Mais do que formas de convívio intimo, dizem respeito a estratégias de
sobrevivência nas quais a relação com o meio, os laços societários primários,
os ritos do dia-a-dia e a religiosidade popular tiveram que ser constantemente
reelaborados, harmonizando-se às contingências de mudanças no vaivém
habitual”. (WISSENBACH, 1998: 59).
Podemos identificar na década de 1980 nos terreiros de Umbanda e Candomblé
cuiabanos, que os mesmos puderam contar com algum relaxamento das forças
repressoras hegemônicas. Assim, esses espaços passaram a desfrutar de maior aceitação
pública, com um sensível aumento de participantes, adeptos e clientela com objetivos
variados Com a continuidade dos saberes religiosos neles praticados, aos poucos estes
espaços foram sendo tomados por indivíduos comprometidos tanto com os movimentos
sociais organizados como com os movimentos religiosos de matriz africana.
Considerando neste contingente os migrantes, que surgiam dia pós dia em busca de boas
oportunidades, isso significa também uma aproximação com novos valores culturais
extrínsecos aos existentes na cidade.
A questão da improvisação no culto na Umbanda, no que tange a
organização espacial, também é recorrente em Cuiabá, mesmo que para as Federações
de Umbanda alguns itens sejam colocados como obrigatórios, como: muro na frente do
terreiro ou entrada para o corpo mediúnico separada da entrada reservada a assistência,
etc. Entretanto, na maioria dos centros existentes em Cuiabá não há muro na frente ou
alguma referência que os identifique como tal. As regras do Conselho (CONDU Conselho Nacional Deliberativo da Umbanda e Cultos Afro-Brasileiros) são sujeitas às
condições econômicas dos donos de terreiro, às contingências e improvisos da vida
cotidiana (PAREDES, 2008).
23
Foto: Peji do Barracão de Umbanda do Terreiro Ilê De Ifá, situado no bairro Jd. Araçá.
24
2.2. Movimento das águas
Esta região passa a ser compreendida como receptáculo de pessoas, vindas das
mais diversas regiões do país e pertencentes às variadas camadas sociais cujas práticas
encontram identificação com as encontradas na região. Isso, entretanto, irá realçar o
contraste das diferenças nas suas práticas legitimadoras, que lidam com os novos signos
e modos de atuar no cotidiano social. Como nos sinaliza Bhaba:
“Essas contingências são frequentemente os fundamentos da necessidade
histórica de elaborar estratégias legitimadoras de emancipação, de encenar
outros antagonismos sociais. Reconstruir o discurso da diferença cultural
exige não apenas uma mudança de conteúdos e símbolos culturais; uma
substituição dentro da mesma moldura temporal de representação nunca é
adequada. Isso demanda uma revisão radical da temporalidade social na qual
histórias emergentes possam ser escritas, demanda também a rearticulação
do “signo” no qual se possa inscrever identidades culturais.” (BHABHA,
2007: 240)
Este sentimento religioso está encerrado em um modelo ideológico de
predominância cristã bastante marcada no imaginário cristão brasileiro, versadamente
inclinado à prática do bem, onde “está implícita uma visão moralizante da experiência
religiosa, tida como boa, pacífica, harmônica, geradora de ordem.” (CARVALHO,
1994: 87). Trazem em si elaborações, que este autor as identifica por táticas que
legitimam práticas subalternas, idealmente por serem emanadas das religiões de herança
africana ou afro-ameríndia, essas emanações são verificadas por Bastide:
“(...) Informações históricas bastante detalhadas são as da magia africana. Na
realidade ela impressionou os brancos. Por várias razões e primeiro de tudo
porque o colonizador português era supersticioso também, como seu
escravo, negro ou índio. O pequeno numero de “cirurgiões”, de médicos e de
boticários durante todo o período colonial, mesmo nas grandes cidades e nos
portos comerciantes do litoral, forçava os doentes infusões de ervas ou
emplastros que não chegava a curar, a consultarem “curandeiros”e
“algebristas”; como os africanos eram versados na arte da magia curativa,
impuseram-se a seus senhores brancos e mantiveram dessa maneira, alguns
25
de seus processos nativos, misturando-os, aliás, aos processos dos feiticeiros
brancos.” (BASTIDE, 1985: 188)
Estas práticas que reproduzidas cotidianamente moldam o universo religioso
popular, e mesmo sendo comum a convivência desses universos tão distintos, casa e
terreiro, algumas outras formas e dinâmicas de apresentação dos espaços nos terreiros
compõem esse cenário, destacando outros valores e envolvendo outras táticas, como no
caso do Centro Espírita Nossa Senhora da Conceição, na Rua São Cristóvão, bairro
Dom Aquino, onde os espaços são dispares, evidenciando outras formas de organização
tanto no que se refere às restrições sociais, quanto na utilização do espaço físico do
terreiro.
Voltada para uma disciplina mais rigorosa, o Centro Espírita Nossa Senhora da
Conceição, evidência em seu cotidiano uma aproximação maior dos rituais com os
preceitos kardecistas. Segundo Maria Lucia Montes (1998) ocorreu “no Brasil dos anos
30, um importante instrumento de reapropriação das religiões mediúnicas afrobrasileiras, inicialmente no Rio de Janeiro e logo em outros centros urbanos pelo
Kardecismo.” Onde no exercício das práticas cotidianas e dos fazeres religiosos, não é
permitido que ninguém habite o espaço do centro ou tenha algum cômodo adjacente
habitado por alguém.
A exigência de fardamento branco para todos os componentes da corrente, em
todas as linhas incluindo a dos exus, que, no entanto receberiam outras restrições, por
serem considerados espíritos de pouca luz, com tendência para práticas malignas, mas
que são mantidos e reverenciados, mesmo estando neste campo de restrições, por suas
habilidades de guardiães e mensageiros do mundo espiritual.
(...) “Uma moral que reivindica a herança das virtudes cristãs, em especial a
caridade, à pretensão de cientificidade da “evolução” até mesmo no plano
espiritual, a umbanda procurará “expurgar” as religiões afro brasileiras de
alguns de seus aspectos mais “bárbaros”, considerados próprios a uma
religiosidade inferior. Por exemplo, o sacrifício de animais, visto como
característico do “baixo espiritismo”, da macumba da quimbanda”
MONTES (1998: 95).
26
Dentre estas restrições estaria a que, só se abriria a linha de exu em momentos
de necessidade extrema, e que essa função seria delegada aos médiuns mais experientes
da casa, deixando evidente quando e onde determinadas entidades deveriam atuar,
sendo exu exclusivamente para as demandas onde estejam espíritos como caboclos e
preto-velhos, considerados espíritos de luz. A sessão transcorria segundo as normas da
casa, perceptíveis no relato de pai Bosco, quando ainda criança acompanhava seus pais.
-Começava a sessão rezando Pai Nosso a Ave Maria, a prece de Caritas,
velas brancas, muitas flores brancas, não tinha atabaques, eram palmas,
muito compassadas, que era para a vizinhança não ouvir, então eram um
culto mais silencioso, portas fechadas, mesmo sendo um barracão enorme
bem estruturado, próximo ao centro da cidade, porem havia toda uma regra
porque era necessário fazer silencio, era necessário cultuar, receber seus
pretos velhos, caboclos, porque não havia outras entidades, somente preto
velho, caboclo e exu que eles chamavam de compadre. Havia a linha dos
compadres, dos pretos velhos e caboclos, e tinha uma hora para começar e
uma hora para terminar, se começava às 19:00 h ia no máximo até às 21:00 h
tudo tinha terminado, se você chegou às 19:00 h a porta esta aberta pra você
entrar, depois disso você não entrava mais e só ia sair as 21:00 h, não sai
antes disso uma vez que era necessário que saísse todos do barracão irem
embora para suas casas, fechar o barracão, porque ninguém mora nesse
barracão, e até hoje ninguém mora nesse centro de umbanda. Então havia
todo esse processo, a preocupação com a vizinhança, a preocupação com o
silencio, ninguém pode perceber que somos umbandistas.
7
A descrição realizada pelo Babalorixá demonstra que os terreiros produzem
formas modelares diferenciadas onde os fazeres religiosos se desenrolam, mas que
também legitimam e disciplinam o individuo participante e suas relações sociais. As
‘práticas modelares’ servem ao propósito de produção e reprodução das comunidades
religiosas. De certa forma este processo redundou como força imanente na
sobrevivência do legado afro-brasileiro em Cuiabá. No estudo de Paredes (2008) é
descrita uma prática recorrente nos terreiros que por ela foram pesquisados na década de
1980.
7
Entrevista com pai Bosco 07/01/2010.
27
“Sucede, assim, que as funções religiosas possam correr ao ritmo das batidas
de panelas e talheres que, tão próximos, são empunhados no avexo do preparo
da alimentação familiar. Pode a fundanga8 estourar entre os cantares de
alguém que se banhe. As criancinhas dormem ao som de atabaques. Pontos
são riscados, por vezes, entre alegres gritos de truco que, despreocupados,
alguns jogam à pequena distância”. (PAREDES, 2008: 21)
O Babalorixá Bosco de Xangô evidencia outras dinâmicas presentes no
cotidiano religioso umbandista em Cuiabá nas décadas de 1960 e 1970, desenvolvendo
em sua narrativa um retrato bastante distinto do ritual da Umbanda apresentado
atualmente, a partir da aproximação dos ritos do Candomblé.
-A minha mãe (biológica) se chama Adalgiza Lima da silva, ela não tem
uma casa de umbanda, ela freqüenta uma casa de umbanda, porque a casa
de umbanda que ela freqüenta é daquela de raiz antiga, que não tem pai de
santo, nem mãe de santo, tem presidente, vice-presidente, tem chefe de
terreiro. A casa que ela freqüenta se chama Centro Espírita Nossa Senhora
da Conceição, situado no bairro Dom Aquino, mais precisamente na Rua
São Cristóvão.
Assim podemos entender que os terreiros são organizados não só por fatores
contingenciais dos parcos recursos financeiros, como também por fatores relativos à
compreensibilidade que a própria comunidade religiosa tem das práticas rituais, bem
como, sua relação com período vivenciado.
Casas que atualmente buscam a reafricanização de seus cultos de Umbanda estão
na opinião de Pai Bosco, “bombando”, e completam, segundo ele, as casas que não
buscarão essa aproximação com os cultos mais africanizados. Estão em lento processo
de desintegração por não terem aderido às novidades, elementos tomados por
empréstimo do Candomblé, como o uso de adjá9, ekéde10 vestido com anáguas de
armações para aumentar a roda da saia, utilizando a nomenclatura do Candomblé para
8
Pólvora seca utilizada nos rituais afro brasileiro, principalmente na Umbanda e Quimbanda.
Objeto de uso litúrgico, em forma de sino cônico podendo conter duas ou três bocas, de acordo com o
sexo de que o manuseie, respectivamente, feminino, masculino, e só utilizada por aqueles que tenham
cargo na hierarquia da nação, como: ebomis, ekédes, ogãs, Mães e Pais de santo, etc.
10
Iniciada no ritual do Candomblé que não apresenta manifestação do Orixá ou santo; responsável por
cuidar do Orixá em todos os âmbitos, por isso ser um cargo muito respeitado no meio afro religioso.
9
28
designar a hierarquia da Umbanda, um equivoco segundo Pai Edézio, “antes pai de
santo não existia, aqui em Cuiabá, era padrinho madrinha de Umbanda, hoje em dia
todo mundo é pai e mãe de santo, mesmo sendo de Umbanda”.
2.3. Em busca de outras águas
Este processo em Cuiabá se distingue do restante do país, pois o que se percebe
é que, este cenário se compõe inicialmente do exercício das praticas Umbandistas,
sendo o Candomblé inserido efetivamente na década de 1980 nesta ambiência,
constituindo-se a partir de práticas subalternas11, onde o sagrado e o profano se mesclam
de acordo com a peculiaridade de cada manifestação. Isso demonstra que o catolicismo
barroco abria espaços para diversas manifestações populares, inserindo assim algumas
práticas de matriz africana, como observa Montes:
“O catolicismo barroco que serviu de matriz a formação das religiosidades
populares no Brasil, com seus atos festivos, sem nunca separar o público
com o privado, o sagrado do profano, não obstante a violência para qual
serviu de instrumento de legitimação, na ordem escravocrata, ou a
constante perseguição a que submeteu a feitiçaria dos negros, fora, apesar
de tudo, capaz de permitir a incorporação, em um inverso comum de
sentidos, de muitas crenças e práticas rituais outras, afro-ameríndias,
teimosamente sobreviventes nas formas de devoção desse catolicismo
negro que dá lugar a batuques e candomblés ou se expressa nas congadas e
moçambiques do Rosário e Benedito. Este seria o espaço em que,
penosamente, fragmentos de cosmologias africanas seriam preservados e
ressignificados, para mais tarde reorganizar-se, dando origem aos
candomblés e sua reinvenção na umbanda.” (MONTES, 1999: 139)
Em contrapartida a este movimento local das religiões afro-brasileiras, a partir
de 1980 intensifica-se uma busca por contatos com os pólos culturais considerados
irradiadores dos saberes e tradições de matrizes africanas, como: Bahia, São Paulo e Rio
de Janeiro, com o objetivo de se colocar em pé de igualdade diante dos novos valores
11
Subalternidade segundo SPIVAK (2010) é um desvio daquilo que é socialmente ideal, subalternos são
aqueles que se diferenciam da elite. No caso das religiões afro-brasileiras a subalternidade está presente
até a atualidade.
29
simbólicos, integrar-se a eles, necessariamente significa iniciar-se nas práticas desses
saberes, como ocorre com Pai Edézio.
-Nessa época eu era exator, e fui pra Salvador com uma amiga pra procurar o
terreiro dessa mãe de santo, que sonhava com ela, com o terreiro dela,
aponto de contar detalhes que as pessoas achavam que eu já tinha ido lá e
conhecia o lugar. Só que eu não conhecia nada, quando nós conseguimos
chegar lá, ficou a duvida, será que é essa a mulher? E era. 12
Os pontos de interstício gerados a partir desta busca pela
africanização das religiosidades praticadas em Cuiabá, trás à tona um novo panorama
em seu ambiente cultural, principalmente em relação aos novos saberes inseridos a
partir do contato com o Candomblé. Esses saberes do Candomblé subvertem o modo de
operação e, acima de tudo, os tipos de medo que tem um papel na vida dos agentes
praticantes das religiões afro, produzindo assim, mudanças significativas no cotidiano
dos centros de Umbanda, como afirma Pai Edézio, “então foi juntando os
conhecimentos do Candomblé e da Umbanda que ficou, tanto que posteriormente
surgiram grandes idéias, grandes lutas por causa disso”.
Esses saberes que são trocados nos fluxos subalternos em Cuiabá, agenciam
novos meios para o exercício religioso, legitimando a atuação dos grupos dentro do
campo social, remetendo a um novo arranjo, no consumo deste conjunto de saberes que
aqui é posto em prática. Conforme Bourdieu:
“As lutas a respeito da identidade étnica ou regional, quer dizer, a respeito
de propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas à origem através da
origem e dos sinais duradouros que lhes são correlativos, como o sotaque é
um caso particular de classificações, lutas pelo monopólio de fazer ver e
fazer , creditar, dar conhecer e de fazer conhecer, de impor a definição
legitima as divisões do mundo social e, por esse meio, de fazer e desfazer
os grupos. Com efeito, o que nela está em jogo é o poder de impor uma
visão do mundo social através de princípios de divisão que, quando se
impõem ao conjunto do grupo, realizam o sentido e o consenso sobre o
sentido e, em particular, sobre a identidade e a unidade do grupo, que fazem
a realidade da unidade e da identidade do grupo.” (BOURDIEU, 1989: 113)
12
Como demonstrou na entrevista o Babalorixá Edézio, em 13/01/2010.
30
Entre a parca literatura referente à religiosidade afro e a oralidade existente em
Cuiabá, os saberes vão sendo construídos paulatinamente sob a égide da persistência de
seus agentes, afetados pelo desejo de participação junto aos rituais de matriz africana:
como água13 que insiste em brotar por entre as pedras do serrado e escoa por dentre as
fendas, umedece o chão e faz brotar veredas em solo escasso. Como pai Edézio que, ao
relatar seus primeiros movimentos como neófito da Umbanda, menciona outras táticas
empreendidas na elaboração deste universo:
-Nessa época eu era muito novo, meu filho, tinha entre quinze e dezessete
anos e foi a vontade de conhecer é que me levava, e foi a vontade de
conhecer que me levou conhecer. Me davam livros pra eu lê e eu lia, ai
arrumaram uma casinha pra mim escondido dos meus pais, lá na onde hoje é
o São Gonçalo, que nesse tempo nem existia, e me levavam escondido de
carro, eu tinha que incorporar, mas meus país não podem saber, ta bom. Eu
aia pra lá incorporar com meu caboclo, incorporava com um, incorporava
com outro daí a pouco eu tava incorporando com tudo, e ali já era o meu
terreiro.
Em 73 ou 74 eu conheci um chefe de terreiro por nome Davi e ele era muito
parecido comigo e eu acabei chefiando o terreiro dele algumas vezes. O Davi
me deu um livro de pontos chamado “Três Mil e Setecentos Pontos” eu li e
fui aprendendo mais pontos, logo em seguida é que eu conheci meu padrinho
Delmindo, aí eu tive a orientação de alguém competente, alguém capacitado,
só que nessa época já tinha eras e paqueras que eu tava tocando terreiro,
atendendo gente e até desenvolvendo gente, médiuns 14.
Trata-se de um caso dentre inúmeras trajetórias individuais que compõem a
trama do cenário. Estes movimentam e acomodam os sentidos, que afetam o rumo das
águas, porém revelam um corte abrupto nas experiências religiosas vivenciadas,
relativas às relações parentais e a busca por beber em fontes de outras águas, mobilidade
comum aos terreiros de Umbanda, como bem demonstra Maggie:
“Essas pessoas, antes de abrir o terreiro, consultavam-se com a Mãe-de-santo,
Maria Aparecida. Havia, portanto, um grupo grande de médiuns que
freqüentava um mesmo terreiro, sendo que alguns já há muitos anos, mas não
tinham posição de destaque na hierarquia desse terreiro de origem; (...) na
medida que este era constituído de um grupo bem maior de médiuns.”
(MAGGIE, 1977; 26).
13
As águas no Candomblé têm uma conotação que remete às origens das tradições religiosas, ou a
ancestralidade parental.
14
Entrevista pai Edézio 13/01/2010.
31
Neste movimento de busca criam-se brechas, operam-se desvios consideráveis
no fluxo dos desejos individuais e coletivos, que ao agregar novos valores simbólicos e
culturais, materializam em suas praticas desejantes uma mescla, que reafirma e busca a
legitimação do antigo discurso de pureza cultural de matriz africana, “preservado” nos
terreiros de candomblé e sincretizado na umbanda. Isso reforça a idéia de aproximação
das fronteiras que delimitam cada ritual, como a Umbanda que apresenta uma hierarquia
como: As sete “linhas da Umbanda”: linha de Iemanjá, linha de Xangô, linha de Oxossi
ou de Caboclos, linha de Ogum, linha de preto-velhos, linha da crianças e linha de
Exu”. Maggie (1977: 23).
Eliminando de certa forma algumas das diferenciações que as separam e as
distinguem como religiões de matrizes africanas com características próprias, e não
como entidades satélite uma da outra, incorrem no risco de descaracterizar por demais
os rituais em sua forma e conteúdo, de maneira a não poder saber qual delas está se
praticando no momento. Não sendo este o caso dos estudos levantados não me
aprofundarei na discussão, porém, usarei como referência na delimitação dessa fronteira
no que se refere à tentativa de reafricanização dos rituais de ambas as denominações,
que neste caso não iria além da assimilação de algumas características que remetam ao
status de pureza dos valores considerados e consumidos por seus atores. Pai Bosco
observa que:
-É legal falar dessas abstrações religiosas, porque eu como professor, pai de
santo ou babalorixá como se diz, não concebo que eu vá a missa, ou eu sou
do culto de matriz africana ou eu sou católico, então não cabe na minha
cabeça o preto velho me mandar benzer a água com o padre católico. Então a
partir do momento que eu percebi que essa casa não me dava essa respaldo
que eu devo benzer a minha água com meu preto velho, que preciso ir a
igreja para isso, essa casa já não me interessa, por isso foi necessário buscar
outra casa, no meu caso buscar uma outra religião, já que o candomblé é de
matriz africana mas é outra religião, e que me atendesse as aspirações. Então
percebo que as casa que não africanizaram, buscaram um processo de
aproximação com um culto mais africanizado, a tendência dela é
desaparecer, ela não vai sobreviver no século XXI. 15
As práticas umbandistas em Cuiabá têm o seu funcionamento inicial operado de
maneira familiar ligada ao médium chefe, garantindo desta forma a unidade do culto e
da doutrina a ser seguida pela família religiosa, que pode ser composta pela família
consangüínea e pela família constituída a partir da prática do culto. Em se tratando de
Umbanda, tal prática é operada a partir participação do médium em iniciação ou
15
Entrevista pai Bosco 07/01/2010.
32
iniciado na casas, podendo o mesmo ser iniciado em um terreiro e posteriormente
prestar serviços mediúnicos em outra casa, que neste caso ao agregar-se a casa, assume
a sua filiação.
2.4. Usos, re-usos e outras táticas
Mesmo que a produção da religião esteja altamente relacionada aos espaços
físicos, estes são redimensionados de acordo com a proposta de uso, alguns centros de
Umbanda primam por uma organização espacial especifica. Como podemos observar na
descrição que o Babalorixá Pai Bosco faz do Centro Espírita Nossa Senhora da
Conceição, os participantes não moram no terreiro, pois o mesmo não é uma
propriedade familiar. O ‘centro’ só funciona em dias de trabalhos16. De qualquer forma
essa casa religiosa mantém com a comunidade uma relação de estreitamento,
principalmente nas festas que se relacionam aos santos católicos.
Na Umbanda tornou-se bastante comum a participação da comunidade
circunvizinha em datas comemorativas, mas é no cotidiano que esses laços se
estabelecem e se estreitam, como por exemplo, na hora de levar na benzedeira a criança
com vento-virado ou arca-caida. Podemos perceber estas imbricações também nas
Festas de São Cosme e São Damião. Nestes momentos a criançada se alvoroça nas
portas em busca de bolos, refrigerantes e outras guloseimas que se apresentam nas
comemorações que reverenciam os santos católicos São Cosme e São Damião,
sincretizados nas entidades infantis da Umbanda, razão do tipo de oferenda e poder de
mobilização exercido junto à criançada da rua e adjacências. Estratégias como as acima
citadas representam o sucesso das praticas e a sua inserção social.
“Assim , é preciso que o candomblé, dentro de um mercado religioso amplo,
como é o urbano, possa fornecer alternativas próprias a todas as instancias da
vida das pessoas, que devem ser ritualizadas ou interpretada religiosamente
considerando o mundo multidimensional no qual estas pessoas vivem.”
(SILVA, 1995: 139)
16
Qualquer atuação dos médiuns em estado de possessão, no terreiro ou fora dele. MAGGIE (1977).
33
Tendo em vista que o interesse religioso tem por princípio a necessidade de
legitimação das propriedades materiais ou simbólicas, associadas a um tipo determinado
de condições de existência e de posição na estrutura social, para as religiões de matriz
africana sua existência depende diretamente dessa posição. A mensagem religiosa mais
capaz de satisfazer o interesse religioso de um grupo determinado de leigos, e de
exercer sobre eles o efeito propriamente simbólico de mobilização resulta do poder de
materialização do relativo e de legitimação do arbitrário, é aquela que lhe fornece um
‘devir’, uma subalternidade de operação.
São essas pequenas práticas que aproximam o espaço religioso do terreiro à sua
circunvizinhança, e em alguns casos podem redundar num pacto silencioso entre as
partes e uma naturalização das ações cotidianas do terreiro ante a comunidade e
aproximam outros valores morais e religiosos, ressignificam laços identitários na
polifonia social de produção de sentido duradouro. Ela força um reconhecimento das
fronteiras culturais e políticas mais complexas que existem no vértice dessas esferas
políticas freqüentemente opostas (BHABHA, 2007: 242).
Por outro lado, essas fronteiras evocam uma rede de relações aproximativas, mas
se aproximam mais de um efeito bi-lateral. Assim o movimento remove os húmus da
memória num torvelinho17 de representações sociais subjetivas, sugerindo adaptações,
que nada mais são do que a procura que a água faz em seu curso, busca atalhos nas
brechas para acomodar o excesso e transbordar novamente oxigenando o que está por
baixo da pele.
Neste intercâmbio de sentidos, as relações que se estabeleceram entre as
religiões de matrizes africanas, o cotidiano e o saber acadêmico alimentam o torvelinho
na busca de entender o contexto no qual as experiências se apresentam inseridas no diaa-dia do praticante, e, que se acha envolvido em uma teia de representações que se torna
impossível desvencilhar-se do cotidiano das ações políticas e histórias que se
desenrolam no espaço-tempo das contingências individuais e coletivas. Percebamos
como a trajetória do Babalorixá Pai Bosco é um entremeio de encontros e desencontros.
17
Redemoinho, movimento das águas.
34
-Fui batizado na igreja Católica, (risadas) fiz crisma, fui membro de grupo
de jovens, participava da igreja católica fui catequista, tudo isso foi da igreja
católica, porque eu quando estava na adolescência tive uma crise de
identidade com questão de ser praticante da religião afro-brasileira, porém
ter que esconder isso, então foi o momento que eu deixei a religião, deixei a
umbanda, eu larguei a umbanda e fui ser católico mesmo, católico praticante,
tudo como manda o figurino, ia a missa de manhã e a noite, dava aula de
catequese, eu fui batizado, fui crismado, tudo dentro dos conformes, a
família toda se identificava como católica. Houve um momento da minha
vida mais precisamente entre os quinze, dezesseis anos até os vinte quatro,
vinte e cinco anos eu me identificava como católico, quando eu entrei pra
Universidade, pro curso de Historia, eu passei supostamente a ser ateu,
supostamente, coloco supostamente porque na hora do vamos ver você pede
pros santos, toma seu banho de ervas, você reza, então você não é. Mais ai ta
no auge do marxismo, anos oitenta, o curso de historia me deu toda essa
bagagem de marxismo, ai então eu me declarava ateu, porem é como eu
disse na hora do vamos ver eu me apegos a todos os santos, todos os pretovelhos, e faz tudo o ritual como manda o figurino. 18
Roger Bastide caracteriza os cultos afro-brasileiros como em estado latente, ou
um tipo de mini-África, “Vê-se então que o Candomblé é uma pequena África em
miniatura, em que os templos se tornaram casinholas dispersas entre moitas, quando as
divindades pertencem ao ar livre, ou em cômodos distintos da casa principal”,
BASTIDE (2001: 76), que traz em seu processo ritualístico a reivificação dos mitos,
manifestos nas celebrações religiosas do candomblé, em um espaço social sagrado,
denominado terreiro, onde a memória africana, revivendo seus mitos, conserva a
memória dos ancestrais africanos, mantidas nos terreiros cuiabanos, que ao vivenciar a
cosmologia dos deuses africanos se integra ao mundo afro-brasileiro, capaz de
reproduzir por meio do transe, danças gestos e atributos dos Orixás.
O jogo da multiplicidade religiosa, inserido nos discursos dos sujeitos históricos
envolve debates que privilegiam as relações contextualizadas na perspectiva de
valorizar a multiplicidade das denominações culturais religiosas de matriz africana e seu
patrimônio cultural em Cuiabá.
“A cultura se adianta para criar uma textualidade simbólica, para dar ao
cotidiano alienante uma aura de individualidade, uma promessa de prazer.
A transmissão de cultura de sobrevivência não ocorre no organizado musée
imginaire das culturas nacionais com seus apelos pela continuidade de um
18
Entrevista pai Bosco 07/01/2010.
35
“passado” autentico e um “presente” vivo - seja essa escala de valor
preservada nas tradições “nacionais” organicistas do romantismo ou dentro
das proporções mais universais do classicismo.” (BHABHA, Homi K.;
2007; 240/241).
Entretanto estas práticas por vezes se estabelecem em uma ordem que as
mantém a parte do controle das instituições (Igrejas, Estado), promovendo um
fechamento em torno da religião, como forma de burlar os mecanismos controladores,
como sinal de contestação à dominação oficial, mas também se legitima como guardiãs
de saberes, metamorfoseando-se, de material construtivo para a condição de construtor
cultural.
Freqüentemente mascarada numa simbiose, a constituição das religiões de
matrizes africanas dá-se pela tensão entre forças sociais. Onde de um lado temos as
instituições e classes dominantes da sociedade, que se legitimam e identificam-se como
dominadores das estruturas sociais, enquanto do outro lado temos categorias sociais
subjugadas e estigmatizadas, mas também possuidoras de uma cultura de resistência.
Observando as práticas religiosas afro-descendentes em Cuiabá e sua trajetória,
seu estabelecimento no espaço urbano, a sobrevivência às múltiplas formas de
preconceito e as perseguições articuladas pelo Estado, percebemos que o Candomblé e a
Umbanda estabeleceram-se, munidos de suas práticas, rituais e tradições, em especial no
que concerne a sua sobrevivência, dinamismo, e diversidade; sedimentando bases
sólidas, que contemporaneamente constituem-se no substrato onde se manifestam as
identidades culturais.
Se na contemporaneidade temos uma reformulação de sentidos dos valores
culturais afro-brasileiros em Cuiabá; é o registro das ações desse agente histórico que
teve a capacidade de negociar na adversidade, subverter a ordem das coisas, criando
táticas para reagir às circunstâncias desfavoráveis, o que constitui uma herança cultural
não do escravizado, e sim a do detentor de uma cultura singular relevante na construção
da identidade brasileira.
Esta operação demandou de seus componentes além de astúcia, uma gama de
esforços concentrados em manterem-se sempre atentos e em dia com a lei e com o rol
de documentação exigida para manter os centros espíritas aparentemente fora do risco
de uma invasão policial no meio da sessão, ou fora dela; mas que de qualquer forma
36
produzia estragos e revolta entre os membros e simpatizantes dos terreiros de Umbanda
e Candomblé em Cuiabá. Isto se encontra marcado nas memórias de seus atores. Como
nos relata pai Edézio evidenciando o quanto a religião resulta em refrigério na
adversidade.
Mais eu não posso dizer que foi só coisa boa, também tive meus percalços,
meu terreiro foi cercado por policia, a policia pôs metralhadora em meu
peito Eu tive questões pesadas, mais eu tive tantas coisas gostosas, é o que
eu falo: é que meus guias não faltaram comigo, porque o guia cobra da
pessoa de acordo com a consciência de cada um, como que eles iam cobrar
de mim se tudo que eu fazia, eu fazia incorporado deles. 19
A dinâmica de reciprocidade existente nas religiões de matriz africana, onde o
dar e receber, a troca e a certificação do reembolso das relações solidárias estão
marcadamente presentes no universo das representações dos meios populares do
universo religioso cuiabano com uma forte vocação ao misticismo judaico-cristão. Que
mesmo depois de inúmeras Reformas Religiosas não foi possível impedir seus
seguidores de buscar nas praticas mágicas resolução de problemas em inúmeras escalas
da existência humana. Como observa Thomas (1991):
“Essa crença de que os acontecimentos terrenos podiam ser influenciados
pela intervenção do sobrenatural não era em si mesma mágica. Pois a
diferença essencial entre as preces de um religioso e os encantamentos de
um mago era a de que apenas estes pretendiam funcionar automaticamente;
uma prece não tinha certeza de êxito e não seria atendida se Deus não
quisesse concedê-la. Um encantamento, por outro lado, não deveria falhar
nunca, a menos que se omitisse algum detalhe na observância ritual ou se
algum mago rival estivesse fazendo uma contra magia mais forte. Uma
prece, em outras palavras, era uma forma de súplica: um encantamento era
um meio mecânico de manipulação. (THOMAS, 1991: 47).
Onde as religiões de matriz africana representam espaço privilegiado, para o
contado do individuo com o universo religioso, compondo um conjunto de valores que
se agregam na medida em que a procura intensifica ou escasseia, de acordo com a
necessidade individual, e do sucesso dos trabalhos mágicos efetivados, convertidos em
acontecimento de resultados positivos, que por certo daria a magia como realizada.
Ainda Thomas:
19
Entrevista pai Edézio 13/01/2010.
37
A magia postulava forças ocultas da natureza que o mago aprendia a
controlar, ao passo que a religião pressupunha a direção do mundo a cargo
de um agente consciente, que só poderia ser desviado de seus propósitos
pela prece e pela suplica. Essa distinção foi corrente entre os antropólogos
do século XIX, mas veio a ser rejeitada pelos seus sucessores modernos,
sob a alegação de que não levava em conta o papel que o apelo aos espíritos
pode desempenhar num ritual mágico e que a magia ocupou em algumas
formas de religião primitiva. Mas ela é útil na medida que põe em relevo o
caráter não-coercitivo das preces cristãs. A doutrina da igreja geralmente
era equivocada a esse respeito: as preces podiam obter resultados práticos,
mas não eram garantidas.” (THOMAS, 1991: 47).
Essas práticas, porém não se restringem apenas aos estratos sociais das camadas
mais baixas, e de certa forma às religiões de matrizes africanas principalmente o
Candomblé, vem se tornando cada vez mais presentes nas classes médias e altas. No
contexto vivenciado na grande Cuiabá, esta aproximação das religiões afro-brasileiras
com indivíduos de classes mais abastados, se faz perceptível concomitantemente ao
surgimento das casas de culto de Candomblé, enquanto os centros de Umbanda irão se
adaptando gradativamente às novidades que se apresentam; quer por contingência, ou
por assimilação.
38
Espelho D’água: o movimento que nunca cessa
A tela (...) A fixidez opaca que ela faz reinar num
lado torna para sempre instável o jogo das
metamorfoses que, no centro, se estabelece entre o
espectador e o modelo. Porque só vemos esse
reverso, não sabemos quem somos nem o que
fazemos. Somos vistos ou vemos? O pintor fixa
atualmente um lugar que, de instante a instante, não
cessa de mudar de conteúdo, de forma, de rosto, de
identidade.
Michel Foucault
3.1. O Jogo das Metamorfoses
O cenário a seguir revela-se a partir dos fluxos culturais engendrados em Cuiabá,
por conta do inchamento populacional das três ultimas décadas do século passado,
ocorridas no ambiente citadino, que introduziu novos saberes no campo religioso afro-
39
brasileiro . Principalmente via movimentos sociais de base que na década de 1980 tem
presença concomitante com a religiosidade popular das periferias cuiabanas.
Os movimentos sociais, que operam agenciamentos a partir de setores da Igreja
Católica, produzem, assim, um espaço de apropriação cultural20. Na medida em que
esses movimentos lançam mão de estratégias para sedução de fiéis e formação de seus
quadros de atuação, aproximam-se da identidade étnica de matriz africana. Tais
estratagemas nem sempre se mostram eficazes aos seus propósitos, entretanto
constroem outras conexões possíveis, no campo das representações: ou como
representamos e somos representados. Onde “A identidade torna-se uma celebração
móvel formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.” (HALL, 1984).
Ainda há a existência destes movimentos que continuam operando na
subalternidade das periferias, só que esta estratégia empreendida hoje pelo movimento
missionário foi reavaliada, e direcionada para movimentos onde as respostas se
mostraram mais eficientes, como a RCC - Renovação Carismática Católica. Onde se
tem uma maior penetração de seus propósitos religiosos sobre as massas, do que se
trabalhasse diretamente com as bases.
Neste momento, os movimentos eclesiais e outros movimentos populares
inseridos no cerne da Igreja Católica, passam a discutir as relações de pertencimento, de
significação e de ressignificação dos valores afro-brasileiros, vivenciados nas praticas
cotidianas desses atores, seja por meio do uso de roupas/cabelo que remete a uma
identidade étnica, seja na busca de saberes que dêem sustentação e a essa identidade
étnica, neste caso, os saberes da Umbanda e do Candomblé.
A confrontação desses valores foi assimilada conforme um abalo sísmico
(BRANDÃO, 1997: P.294), ou seja, a tensão gerada mediante essas duas potências
desejantes somatizam, assim, movimentos de mestiçagem, no universo religioso de
Cuiabá. Isso revela que, “em suma, toda época refere o passado ao interior da própria
cultura e, portanto, reformula-o num sistema do saber em que cada conhecimento
convive contemporaneamente com todos os outros.” (CALABRESE, 1987:193).
20
Um relato que remete aos fluxos dos acontecimentos experiênciados neste processo pode ser observado
na entrevista com o Babalorixá Bosco de Xangô
40
Surgem em Cuiabá grupos que passam a discutir a identidade afro-brasileira,
como o GRUCON (Grupo de União e Consciência Negra). Fundado na década de 1980,
este movimento traz novos elementos culturais que passam a refletir um ideal
identitário afro. E de alguma maneira isso agencia entre seus militantes uma reflexão
alusiva às práticas identitárias individuais e coletivas, que a partir da inserção de novos
valores simbólicos, são apropriados por seus integrantes na construção de uma nova
identidade que os represente adequadamente enquanto afro-descendentes.
O movimento social GRUCON surge dentro da igreja do Rosário e num dado
momento em que as comunidades eclesiais de base estão no seu auge, as redes que
constituíam a sua militância se localizam tanto no grupo de jovens católicos quanto nas
comunidades eclesiais de base. Como revela Pai Bosco, sobre a sua inserção no
movimento negro; “o dado mais interessante é que o ‘Consciência Negra’, nesse
momento, era tipicamente cristão”. Dentro do jogo das estratégias, mais que organizar
as missas afro na igreja do Rosário, em conjunto com a pastoral do negro, esses
movimentos cumpriam, por outro viés, a ligação de seus membros com o Candomblé e
a Umbanda, refletindo os valores culturais de matriz africana.
41
Foto: Lavagem da escadaria da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.
Assim a Pastoral do Negro tinha sua militância e o ‘Consciência Negra’ também
efetivava suas redes sobre a cidade. Conforme podemos perceber na afirmativa do Babalorixá
Bosco de Xangô: “Eu diria que foi a Consciência Negra que me aproximou da africanidade,
mas também foi a Consciência negra que não me aproximou da africanidade”.
-Porque primeiro, por ser um movimento tipicamente católico, porém a
partir do momento que começa a minha militância no Consciência Negra.
Eu começo a ler sobre as africanidades no Brasil, as africanidades no Mato
Grosso e é a partir dessas leituras que eu conheço o candomblé. Conheço
primeiro o candomblé, intelectuais que pensavam o candomblé, que mesmo
inserido na religião mas pensava o candomblé para além do espaço do
terreiro. Ai essa reaproximação do culto vai fazer também eu questionar a
casa de Umbanda a qual eu freqüentava na infância e adolescência, então eu
começo a questionar até que ponto é valido eu freqüentar um culto de
umbanda que me manda ir para a Igreja Católica.21
21
Idem.
42
3.2. Manto de Arlequim
Ao questionar os valores simbólicos individuais dos agentes, a partir do que ele
representa como herança cultural, os movimentos sociais atuaram no meio de onde
foram re-produzidas novas relações com o legado afro-brasileiro, fortalecendo o anseio
de alguns de seus militantes em reconhecer-se no outro que se apresentava, afetando-se
dele, das representações marcadamente africanizadas: tranças, roupas, colares, nomes
africanizados (Caiodê, Kiuamê), mas principalmente a religião que reverenciava deuses
africanos e suas tradições.
No entanto, essas representações são reverberações das expressões de
religiosidades de matriz africana sendo manifestadas nos movimentos eclesiais de base,
às margens da alteridade da Igreja, mas que reúne elementos muito próximos das
relações sociais vivenciadas no Candomblé e na Umbanda. Segundo Braga :
O Candomblé não representa tão somente um complexo sistema de crença
alimentador do comportamento religioso de seus membros. Ele constitui, na
essência, uma comunidade detentora de uma diversidade herança cultural
africana que pela sua dinâmica interna é geradora permanente de valores
éticos e comportamentais que enriquecem, particularizam e imprimem sua
marca no patrimônio cultural do país. (...) Neste sentido, o Candomblé deve
ser entendido como um conjunto mais amplo que envolve, para além dos
compromissos religiosos, uma filosofia de vida, uma maneira especial de
interação do homem consigo mesmo e com os elementos essenciais da
natureza, esta ultima, na concepção dos afro-brasileiros, uma expressão de
sacralidade que envolve e toma conta de todas as coisa. (BRAGA: 2000,
P.64)
Como num espelho D’água que captura a imagem do novo apropriando-se dela,
refletindo como própria a imagem que se constrói do encontro da imagem que se reflete
43
com a sua profundidade, revelando a mescla disforme que se compõem22, que insiste em
produzir sentidos opacos que não passa de uma miragem vista de longe no sonho de
inversão, comentado em Souza (2004):
“Segundo Fanon, Bhabha aponta três aspectos fundamentais do processo de
construção de identidade em contextos coloniais: em primeiro lugar, existir
significa ser interpelado com relação a uma alteridade, ou seja, é preciso
existir para um outro. Como tal, a construção da identidade do sujeito
implica um desejo lançado para fora, em direção a um outro externo; desse
modo, a base para a construção da identidade é constituída pela relação
desse desejo para com o lugar do outro. Isso significa que Fanon (1986)
chama de “sonho de inversão” sonho no qual o colonizado sonha em um dia
ocupar o lugar do colonizador. Por sua vez, o colonizador sonha,
atemorizado e de forma paranóica, com a ameaça de perder seu lugar de
privilégio para o colonizado. Assim, o desejo colonial enquanto construção
da identidade do sujeito é sempre articulado em relação do lugar do Outro.”
(SOUZA: 2004, P, 120).
Inspirado na tradição teatral, o autor Michel Serres ao abordar a mestiçagem,
remete a uma cultura construída por todo um conjunto diversificado de saberes que se
estruturam em forma de mosaico, idêntico ao “manto de Arlequim”, que é composto de
arremedos. Na composição de Serres (1993) o manto representa uma performance da
diversidade, onde nenhum se assemelha ao outro. Onde o mestiço é detentor de um
conhecimento também mestiço.
Revolvendo as dobras da memória, seus agentes traduzem neste movimento a
tentativa de construção de uma nova identidade, que deve ser vista como processo em
permanente movimento de deslocamento como travessia; como uma formação
descontinua que se constrói através de sucessivos processos de territorialização e desterritorialização (DELEUZE & GUATTARI; 1997), a partir do conjunto de
representações memoráveis que o individuo ou grupo tem de si, Montenegro (2007):
“À que estas marcas surgiam de conteúdos e formas os mais variados é que
fomos construindo o quadro histórico. Foi a partir desses depoimentos que
22
As celebrações afros realizadas na Paróquia de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, em comemoração ao
Dia Nacional da Consciência Negra, nos anos de 1997 a 1999, com a participação efetiva de alguns terreiros de
Umbanda e Candomblé, a convite da Pastoral do Negro que promovia o rito.
44
pudemos compreender, um pouco mais, quais histórias a população tem, de
forma consciente, preservadas em sua memória. Por outro lado, é nessa
senda que se descortina as diversas histórias, apesar do esforço constante de
alguns grupos em apresentarem sua versão como verdadeira única e
totalizante. A trilha aqui proposta foi construída no intento de resgatar os
registros das memórias e a forma como estas atuam na compreensão do
passado, do presente e do futuro”. (MONTENEGRO, 2007: 15)
3.3. Desvendando o Mistério das Águas
Entretanto o universo religioso de matriz africana em Cuiabá mobiliza-se em
escoar por outras fendas, em busca de águas que lhes devolvam a memória perdida nos
desencontros do passado; os ritos da Umbanda sincretizados demais passam para o
segundo plano na prática dos terreiros de Cuiabá, em que os médiuns chefes desses
terreiros, efetivaram laços de sua casa de Umbanda com terreiros de Candomblés de
outras regiões do país o que nos recorda Pai Edézio:
-Em oitenta e um eu abri aqui meu terreiro de Umbanda, em oitenta e três eu
abri meu terreiro de candomblé. Em 1983 eu recebi meu Deká23, a feitura do
meu primeiro barco foi minha obrigação de Deká, eu abri meu terreiro com
três anos e meio de santo, eu recebi meu Deká em 27 de agosto de oitenta e
três.
Neste trabalho, o “terreiro” é visto a partir da perspectiva do espaço de culto
como um território nômade, lugar de passagem, de desencontros, deste
modo,
o
“terreiro" também possibilita perceber com que facilidade as representações são
recebidas no imaginário cultural popular.
23
Ritual de entrega de Deká consiste em tornar público a elevação do status do Yao, para o de Tatá de
Inquise, como é conhecido na nação de Angola o Pai-de-santo.
45
As imagens e representações que podem ser percebidas no contexto das
religiosidades de matriz africana, advêm deste campo fértil que é o terreiro, que esse
espaço de culto representa para o desenvolvimento de várias crenças.
O “terreiro" constitui um universo mítico de diversas referências culturais,
ligadas muito mais ao momento de vida ao qual cada ator social esteja inserido, que a
um complexo universo ritualístico extremamente elaborado.
O terreiro como espaço de culto opera culturalmente por suas contingências
simbólicas, atualizando as tradições religiosas por meio de práticas que remetem as suas
ascendências, “as águas”.
A cultura afro-religiosa inserida nesta movimentação tem uma ligação direta
com os saberes tradicionais contidos nos terreiros de Candomblé e Umbanda por ser
este o espaço de desencadeamento das práticas tidas como afro-descendentes, e, de
suma importância na categorização dessa identidade intrínseca na representação urbana.
Ou seja, tais práticas estão ligadas a um discurso de pertencimento, e o que legitima as
ações e as referenciam são as mobilizações das práticas engendradas a partir do desejo
das pessoas. Mesmo assim, ela continua sendo uma prática subalterna no contexto do
discurso hegemônico, como nos sinaliza Bhabha.
A Cultura social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação
complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos
culturais que emergem em momentos de transformações históricas. O
“direito” de se expressar a partir da periferia do poder e do privilégio
autorizado não depende da persistência da tradição; ele é alimentado pelo
poder da tradição de se reinscrever através das condições de contingência e
contraditoriedade que presidem sobre as dos que estão “na maioria”.
(BHABHA, 2007,21).
Esse outro fluxo traz à tona desejos adormecidos, que só são despertados porque
esse movimento social que permeia a cidade permitiu esse desvio, essa ação. Ele é uma
emanação do abalo sísmico, elaborada a partir do encontro de novas fontes de saberes.
As ondas culturais que emanam dos terreiros reconhecidamente tradicionais reverberam
aqui em Cuiabá, como um torvelinho de sentidos que são produzidos, perceptíveis neste
relato de Pai Edézio:
46
-Bom até então eu não sabia quantos Iaôs podiam ser iniciados, porque foi
assim quando eu que foi pra Bahia, fiz o santo, aquilo se transformou num
chamariz, que a Bahia era o centro da macumba, e a coisa já estava assim
mais ligth, já podia apresentar, apesar das perseguições, tinha policiais que
vinham em meu terreiro assistia os trabalhos, tinha público, até o
governador veio no meu terreiro em público, então já não era aquela coisa
escondida, já não tinha mais necessidade de disfarçar a situação, tanto é que
este governador veio aqui.
Atraindo a atenção dos espectadores, desenvolventes, afilhados e curiosos que
diante de um quadro, aonde o cenário vai se modificando, na medida em que dele se
aproxima o campo de visão, convertem a novidade em popularidade do Pai-de-santo,
junto ao universo religioso de Cuiabá, apontado por Pai Edézio:
-Então no meu primeiro barco foi assim, eu tinha trinta e três desenvolventes
em minha casa, e os trinta e três queriam raspar porque o pai-de-santo era
raspado, eu não vou dizer que eles não sentiram a mesma coisa que eu senti
quando eu fui pra Salvador, então eu falei pra minha mãe (nessa época eu
falava com minha mãe quase todos os dias), por telefone, desde oitenta e
dois a gente se falava todos os dias, quando eu não telefonava ficava até
zangada. Ai eu falei minha mãe, eu estou com esses trinta e três filhos pra
recolher pra raspa como é que eu faço? Qualquer coisa eles vão em Salvador
e raspa. E ela me disse, não meu filho você marca um dia, vamos marca uma
época e eu vou raspa eles aí. Pra mim que era leigo, mais como eu tinha
visto o pai do Jorge fazer isso com Jorge ainda de quelê, eu falei ta bom eu
já tenho mais de três anos de santo acho que não vai ter problema dela vim
raspa os filho, ela veio final de julho, e todo mundo era pobre, humilde gente
simples, como eu disse das pessoas que me acolheram, que me acolheram e
me deram o aprendizado que eu tenho hoje. Eu paguei as passagens dela dos
ogans, dos irmãos de santo que vinha ajudar, que na realidade eu nada sabia,
eu paguei eles, que realidade eu não sabia como ajuda, eu passei pouco
tempo em Salvador, então não tinha como eu saber.24
Podemos encontrar centros que estão literalmente ligados por ascendência e
referências cosmológicas a terreiros tradicionais25. Mesmo que essa ascendência seja
discutível em alguns casos, é inegável a sua formulação e o modo como opera dentro do
24
Entrevista Pai Edézio 13/01/2010.
Essa informação se refere ao terreiro ILÊ DE’IFÁ do Babalorixá Pai Edézio, e que tem sua ascendência
religiosa ligada ao TUMBAJUNSSARA de Salvador, Bahia.
25
47
ritual e fora dele, como também encontraremos terreiros de Umbanda que atuam como
referências dessas práticas, ora articuladoras de atividades ligadas ao calendário
litúrgico do terreiro, ora como base para reflexões teológicas ligadas ao rito.
Os modelos operantes nos rituais de candomblé seguem características
singulares que os distinguem em nações e linhagens familiares ou famílias-de-santo.
Este formato também foi reproduzido em Cuiabá, muito embora tenha se desenvolvido
sob forma de agregação, que em alguns casos vinha tratar-se de declarações
fraudulentas, gerando situações bizarras, como no caso em que um impostor se dizendo
pai-de-santo manteve um quadro com consultas espirituais em um programa diário de
TV em uma emissora local.
Estando o culto religioso do candomblé delimitado por singularidades referentes
às suas práticas e ideologias identificadas em “nações” e que em função dessas variantes
culturais de matriz africana que as constituem, por aproximação lingüística, étnica e
religiosa, propiciam identificar tais nuanças em suas constituições e legitimações
ritualísticas de ascendência das águas.
A busca de uma representação identitária cultural, que referende o terreiro e suas
práticas rituais, se torna fundamental para a manutenção e composição de suas formas
operativas. Para Certeau (1994), a busca por uma identidade cultural própria está
grandemente fundamentada em valores políticos e de independência econômica de seus
participantes.
Mais do que um conjunto de “valores” que devem ser defendido ou idéias que
devem ser promovidas, a cultura tem hoje a conotação de um trabalho que
deve ser realizado em toda a extensão da vida social. Por esse motivo, impõese uma operação preliminar que vise determinar, no fluxo fecundo da cultura,
um funcionamento social, uma topografia da questão ou tópicas, um campo
de possibilidades estratégicas e das implicações política. (CERTEAU:, 1994)
Na tentativa de reconstituição deste cenário recorro à memória do mestre
Olavo26 de capoeira, quando nesta ocasião narra a vinda 27de Mãe Bebé (Salvador BA) à
26
Mestre de capoeira angola, que em 2008 completou 40 anos dedicados à capoeira. Em sua narrativa,
mestre Olavo compõe um mundo permeado de significações rituais que lhe são familiares. Oriundo da
48
Cuiabá, para a abertura do terreiro “Ilê D’ifá” no qual Pai Edézio é Babalorixá28 em
1983.
O que ele relata é a sua inserção ou aproximação dos rituais de religiosidade
afro-cuiabano, a efetivação de sua relação com Pai Edézio, que a algum tempo se
dedicava a umbanda, e promovia a vinda de sua Mãe-de-santo, desde 1980, é para
efetivar o seu intercambio com universo do candomblé.
Olavo, que ao se disponibilizar a preparar o conjunto de atabaques que seriam
usados nas festividades, demonstra sua familiaridade com o instrumento, que é o
mesmo usado na capoeira e no candomblé, ocupa o cargo de Ogan, lugar ainda vago no
terreiro, para a ocasião.
Entretanto ao narrar a vinda de Mãe Bébé, (Albertina de Souza Dantas, mãe-desanto residente em Salvador, em visita a Cuiabá), mestre Olavo, busca dar ênfase à
singularização do acontecimento muito mais pela cobertura dada pela Rede de TV
Centro América, que pelas práticas rituais do candomblé de angola ou a proximidade
deste com a capoeira.
3.4. Novas Crenças; Novas Táticas
O campo religioso tradicional brasileiro é freqüentemente caracterizado como
espaço de trânsito, sem monopólio cultural ou étnico, nem racialização de grupos,
aberto a devoção e a adesão de vários credos religiosos, cortando a sociedade de ponta a
ponta, independentemente da origem social dos sujeitos que os praticam. Os grupos
religiosos no Brasil não se fechariam, comumente, em regime de separação, mais sim
estabelecendo redes de cooperação, como a que se mobiliza na intenção de prepara o
terreiro para a vinda de Mãe de santo de Pai Edézio a Cuiabá.
zona leste de São Paulo, desde a infância manteve algum contato com ritos afros pela proximidade que a
capoeira de angola mantém com o candomblé, principalmente o da nação da qual herda o nome.
27
Referência a Albertina de Souza Dantas, Mãe-de-santo do Terreiro “Tumbajunssara” em Salvador-BA,
casa descendente do “Bate Folha” primeiro terreiro de culto da nação Angola.
28
Na nação Angola o cargo de Babalorixá tem a nomenclatura de Tata, e no caso feminino Ialorixá, a
nomenclatura que se aplica a Nengua.
49
-O que aconteceu, ela veio, mais Cassendê veio antes, Cassendê é meu irmão
de santo, ele veio de São Paulo, Cassendê é paulista, e quando eu raspei meu
santo ele já era pai-de-santo, e ficou muito meu amigo, ele tinha terreiro em
Campo Grande, aí ele me disse, -Olha Edézio sua mãe-de-santo vai vim com
seu santo de lá. E minha mãe-de-santo veio e trouxe o meu santo e -falou ta
aqui, e eu não sabia nem como arrumava, porque eu ia dava obrigação
voltava, eu achei que ela ia fazer como o pai do meu amigo, mais ela foi
muito mais humana comigo e muito mais sábia porque, ela veio esperou eu
arrumar tudo, viu o que eu tinha de espaço né, como que podia, e ela foi me
dizendo, faça assim e do jeito que ela me mandou fazer eu fiz.
E quando tava tudo pronto ela veio e me disse, meu filho não pode raspa
trinta e três, mais minha mãe a senhora disse que podia e eles estão aí, tem
mais gente querendo conhecer a senhora. Porque quando ficaram sabendo
que ela viria a noticia correu, e eu que não gostava da coisa, mandei anunciar
no rádio, o radialista morava aqui perto na cidade alta, ele me cobrou o terço
(possivelmente o triplo), mais foi o terço que valeu, olha toda hora falava
que Mãe Bebé estava vindo a Cuiabá a mãe-de-santo de Edézio, encheu de
gente querendo conhecer minha mãe.
O candomblé é umas das religiões de origem africana das mais populares
praticadas no Brasil, entretanto é comum encontrarmos pessoas que quase ou nada
sabem a esse respeito, mesmo existindo uma vasta literatura que apresenta a religião dos
Orixás, estudos escritos a respeito de suas tradições, mesmo se tratando de uma religião
ágrafa, onde as tradições são transmitidas oralmente. Neste sentido, a transmissão oral
do conhecimento é o pólo mantenedor das tradições, apresentando-se em alguns casos
como elemento agregador, sendo fundamental a participação dos fieis, nos rituais
praticados nos terreiros, a fim de que se possa adquirir conhecimento e Axé. Segundo
Berkenbrock (1998)
No processo de troca de Axé, a comunidade do terreiro tem um papel
importante somente na e através da comunidade, uma pessoa tem acesso às
atividades rituais no Candomblé. O terreiro é o lugar que concentra o Axé
e a partir dele o axé é irradiado. Da mesma forma que o contato com os
Orixás só é possível via comunidade. O terreiro não é fonte do axé, mas
sim o lugar onde ele está “plantado”, onde ele está concentrado e a partir
50
do qual ele é partilhado. O Axé é o maior tesouro e o sentido último de
uma casa de culto. (BERKENBROCK, 1998: 260).
Portanto, o terreiro de candomblé opera neste sentido como espaço sagrado,
fundamental para a conservação dos elementos culturais. Sendo a oralidade sua única
ferramenta de propagação de informações, saberes. Neste sentido, a transmissão oral do
conhecimento não solidifica os saberes, mas sim os torna flexíveis, promovendo uma
série de mutações culturais.
Onde o sincretismo presente na Umbanda e Candomblé são aspectos
relevantes na composição e transformação dessas experiências religiosas, mesmo
estando submetido a uma tradição dominante, o que neste caso a memória coletiva afrodescendente, que pode ser preservado em um determinado grupo social e perdido por
outros. Ou seja, a memória coletiva só pode ser preservada segundo Ortiz (1994),
enquanto prática vivenciada no cotidiano dos atores sociais.
Ainda segundo Ortiz, no caso dos fenômenos folclóricos, a argumentação é
análoga a explicitada no parágrafo anterior, com a ressalva que não apresentam uma
única origem, e caracteriza-se pela pluralidade das manifestações folclóricas. A
memória coletiva se estabelece em grupos que a suportam e as alimentam
sucessivamente através das repetições dos atores sociais a um único enredo construindo
a memória coletiva, observada nos cultos afro-brasileiros.
3.5. Cuiabá Afro-religioso
O terreiro como espaço sagrado, possibilita ao fiel o contato direto com os
Orixás, onde os mesmos se manifestam através de seus iniciados (Yao). Na África, o
número de Orixás cultuados é superior aos cultuados no Brasil, que se reduzem a
dezesseis, que devido à dinâmica da oralidade, apresentam diferenciações de acordo
com a nação – nação no Candomblé é a denominação de origem em África do culto
praticado, ou a forma como se apresenta - com sutis diferenciações, mas facilmente
51
perceptíveis, aos seus adeptos. Tais diferenciações poder der-se tanto na nomenclatura
do Orixá, como em ritmo da musica no momento da evocação do mesmo.
Pois podemos encontrar em Cuiabá, algumas das denominações mencionadas,
como é o caso da Umbanda tradicional de Pai Ayrton e Pai Joãozinho do Alá, ou
mesmo nos candomblés de Ketu (tradição Yorubá - Nago) e de Angola (tradição Banto),
onde encontramos representantes com casas abertas e em plena função de seus afazeres
rituais, a manutenção de suas tradições. Compondo assim, em seu espaço de rito, um
lugar social onde os atores sociais se articulam e se misturam ao seu entorno, nas
periferias cuiabanas.
É, pois de fundamental importância que se perceba a relevância das relações
sociais estabelecidas a partir destas praticas religiosas, em um quadro cujas
representações servem como mediadoras de ações complementares na sobreposição de
culturas, como podemos observar na mobilidade dos freqüentadores desses espaços de
culto.
Resultado de uma sociedade reconhecidamente desigual econômica, social,
mas principalmente permeada por diferenças étnicas, que potencializam quando se trata
de questões relativas a tradições religiosas diversas das tradições Judaico-cristãs, ou
seja, a discriminação imposta está longe de ser superada em nossa sociedade, mas nem
de longe alijada de suas tradições pela alteridade cultural.
Constituindo um espaço de mobilidade de pessoas, com diferentes motivações,
mas que as imobilizam no conjunto de possibilidades de inserção nestes circuitos,
mesmo que em visita esporádica ou prática recorrente, o ator que ocupa
temporariamente esses espaços de culto está compondo um cenário que transcende os
aspectos religiosos. Os terreiros de Umbanda e de Candomblé aqui estabelecidos
agregam também outras implicações no cotidiano de seus integrantes, onde os laços de
solidariedade estão entre os mais indicados.
Observa-se
o
tratamento
dispensado
aos
“visitantes”
dos
terreiros
principalmente na relação existente entre os ogãs-de-couro, os pais-de-santo, filhos-desanto, neófitos e mesmo integrantes de outros terreiros em visitação, quando cada um
toma parte nos afazeres a que está habilitado a fazer.
52
...é como eu falo: você não precisa ser da casa pra trabalhar lá, se você sabe
fazer é só pegar e fazer; tem o tempo e o convento. Se você é do santo faz
os serviços mais pro lado de dentro; é “o convento” (referindo às práticas
internas do rito, quase sempre secretas e reveladas apenas aos iniciados,
prioritariamente das mesmas águas). Se você não é, faz o serviço do lado
de fora, é do “tempo”; serviço é o que não falta no terreiro, você sabe!29
Neste momento, Entre as décadas de 1970-1990, pode-se detectar um refluxo
das frentes migratórias, localizando-se agora nas periferias das cidades que se
encontram na intersecção desses deslocamentos. A cidade de Cuiabá projeta
sobremaneira sua face modernizadora, seja por meio do novo recorte arquitetônico que
adquire uma nova composição, ou por meio de um novo arranjo urbanístico, de acordo
com “a necessidade de juntar os cacos que o movimento de ocupação separou faz vir a
tona a invenção de um outro corte da cidade.” Suzana Guimarães (2002).
Enquanto na periferia esse movimento de adensamento urbano arrefece o
processo de invasões e favelamento dessas áreas, revelando a ausência de políticas
publicas que atendam satisfatoriamente a população que passa a estabelecer-se
aleatóriamente.
Entretanto novas formas de viver surgem com a chegada dos migrantes, trocas
culturais se estabelecem associadas a novas práticas simbólicas, e a cidade vai se
transformando não só no plano físico, mas também socioculturalmente. Uma identidade
nunca é dada, recebida ou atingida; o que existe é o processo interminável e
indefinitivamente fantasmático da identificação (DERRIDA; 1986). Inventando e
reinventando os seus cotidianos nos desdobramentos das teias sociais as quais
pertençam.
Em se tratando das expressões religiosas de matriz africana em Cuiabá, este
movimento migratório do qual a cidade foi palco nas ultimas décadas do século
passado, carreou em seu fluxo um reordenamento social e religioso, estabelecendo
novas práticas, que culminou revigorando os seus laços de seus atores com antigas
crenças, que remodeladas, se encaixa novamente ao dominó do jogo cotidiano, das
29
Entrevista Mestre Olavo /01/2010.
53
Capitulo 3
Africanização x sincretismo
Em todo lugar onde se encontra os Sinais
Naturais da Criação; as árvores, os rios e suas
nascentes os lagos e a fauna em plena
liberdade, ai estarão em harmonia as
representações das Divindades Africanobrasileiro. Para nós sacerdotes tudo tem uma
razão de ser.
Everaldo Duarte
Ogã de Bogum
4.1. Das águas às margens
Logo após a sua iniciação Pai Edézio passa a se dedicar exclusivamente à
prática do Candomblé, comentada no capitulo anterior. No sentido de minimizar a falta
de conhecimento dos fundamentos contidos no Candomblé, em função do contato
mínimo que teve com suas tradições, outras táticas foram elaboradas, como solicitar
orientações por telefone à Mãe de santo para a realização das obrigações de seus filhos,
em suas casas; ou manter um pequeno grupo de Ebomis1 vindo de suas águas, para que
as tradições/saberes fossem a ele repassadas, e aqui então fossem reproduzidos.
Na ausência de oportunidades para manter o contato com suas águas, origem de
suas tradições, Pai Edézio convida alguns irmãos de santo para passar temporadas em
seu terreiro, que por serem mais velhos no santo, estes poderiam lhe transmitir os
fundamentos/conhecimentos do Candomblé, que na ausência destes saberes culminaria
54
por inibir a continuidade dinâmica do Axé e suas tradições. Pai Edézio atuando como a
criança desordeira que Walter Benjamin elabora, passa a constituir seu próprio cabedal.
Toda pedra que ela encontra, toda flor colhida e toda borboleta apanhada é
para ela já o começo de uma coleção e tudo aquilo que possui representalhe uma única coleção. Na criança essa paixão revela seu verdadeiro rosto,
o severo olhar do índio que nos antiquários, pesquisadores e bibliônamanos
continua a arder. (...) mal entra ela na vida e já é caçador.
(BEMJAMIN,1984; 79)
Outro fator a inibir em parte as práticas ligadas ao Candomblé, no que se refere
ao contexto cuiabano, seria a dificuldade de se conseguir o material necessário para a
realização da maioria dos rituais de Candomblé, como: obí e orobô1, camarão seco,
tempero base para inúmeras comidas do Orixá, dificilmente encontrados no mercado
local, esse material precisa ser encomendado com antecedência, acionando as redes
pessoais de afinidades ou pagar mais caro pelo produto a ser encomendado nas poucas
lojas especializadas em produtos religiosos na cidade.
Enfrentando as adversidades com astúcia de caçador, Pai Édezio efetiva o seu
processo de aprendizado – apesar do curto período transcorrido entre iniciação e as
visitas rápidas ao terreiro que foi iniciado em Salvador, não tenha tornado possívelbuscando uma forma de amenizar este problema surgido em sua trajetória religiosa. Pai
Edézio “Eu paguei as passagens da minha mãe, dos ogãs, dos irmãos de santo que vinha
ajudar, na realidade eu nada sabia, ai eu paguei eles, (...), eu passei pouco tempo em
Salvador, então não tinha como eu saber”.
Neste movimento das águas, os saberes vão sendo paulatinamente inseridos ao
cenário afro religioso em Cuiabá, se misturando aos saberes que permeavam
anteriormente este universo. Vão se compondo em uma lenta africanização dos rituais
em seus terreiros, onde seus atores naquele momento se tornavam reféns de um saber
que estava longe de seus domínios, afinal o que se percebe em sua trajetória religiosa é
uma absoluta ligação com as práticas umbandistas.
Em 1974/1 eu entrei pra faculdade de Engenharia Civil ai teve o básico, aí
depois do básico eu conheci meu padrinho num laboratório de Química da
faculdade de tecnologia, ele trabalhava lá como serviços gerais, aí chegou
lá ele disse assim –eu conheço o senhor- eu fique meio assim, aí ele disse –
55
o senhor vai ao terreiro do meu sobrinho- aí que eu fiquei mais nervoso,
meu Deus do céu o que esse homem ta falando, e ele começou a contar as
histórias do terreiro, eu já aliviei, já fique amigo, aí realmente foi o grande
divisor de águas pra mim, porque ele foi a pessoa que me orientou, que teve
essa cabeça, lembra das coisa que eu tava te contando lá atrás, dessa
chácara na Várzea Grande, o parque do lago não existia nem no projeto.
Ele teve lá, ele que me orientou como fazer a casa Exu que eu não sabia, ale
me ensinou tudo aquele negócio de magia, no que ele foi me ensinando ele
me disse – meu filho você tem que aprender pra você trabalhar
desincorporado-, e ele foi me explicando as coisas de feitiço. Eu acho que
a minha mediunidade é contada pra min dessa época pra cá, porque eu
passei a ter uma compreensão correta do que era. Porque toda a
compreensão que eu tinha era quando o espírito falava – fala pro meu
cavalinho isso, e isso, isso, isso, e isso, eu fazia, e quando eu via que tudo ia
dá errado, eu agia como eles mandavam, umas pessoas sabiam dá recado,
outras não sabiam. Ele não, meu padrinho foi o divisor das águas pra mim,
ele me explicava tudo detalhado, ele que me firmou, o meu batizado foi ele
que fez, cruzamento, me firmou na linha de São Cipriano, me firmou tudo,
então eu tenho uma adoração por ele, meu padrinho Delmindo já foi,
(desencarnou).
Aconselhado por sua Mãe de santo, Pai Edézio busca manter, a partir de sua
iniciação, relações apenas com o Candomblé, “bom, quando eu fui pra Salvador e fiz
meu santo, passei pro Candomblé ficou o conflito, porque minha mãe é só Angola,
então eu não vou tocar Umbanda vou ficar só no Candomblé, fique só ali atendendo as
pessoas, no máximo nos búzios”. Não sendo possível manter essa situação consigo e
nem junto aos freqüentadores de seu terreiro, ele comenta:
Então o que acontece eu passei a gostar do Candomblé e não queria mais
saber de incorporar de preto velho de caboclo, até que aconteceram alguns
detalhes, e ai eu falei não eu tenho que agregar valores e não desagregar, e
ai eu passei ter o meu espaço de Umbanda, onde eu tina feito quarto eu fiz
meu Terreiro de Umbanda, e onde era o barracão de Candomblé ficou só
pro Candomblé, aí eu conciliei, todo sábado eu tocava Umbanda e no
Candomblé realizava assim as obrigações e aí todo mundo queria vê, por
que Candomblé era uma novidade em Cuiabá, então o povo ficou tão
incutido com o trabalho no Candomblé que todos os dias tinha matança,
tinha sacudimento1, tinha um não sei que pra fazer e não sobrava tempo pra
Umbanda.
A proximidade com Candomblé, de fato, não afastou a Umbanda de sua
trajetória, sincrética, com caboclos, pretos velhos e Exus. Por sua própria vontade e de
comum acordo com seus filhos iniciados no Candomblé ou na Umbanda, passou a
56
trafegar nos dois espaços em um mesmo terreiro, com um barracão para os trabalhos de
Umbanda e atendimento da clientela, ficando o barracão de Candomblé dedicado às
práticas de seus ritos e festejos específicos.
Sem sobrepor uma pela outra, Pai Edézio articula uma tática reconcialiadora, ao
invés de afastar as duas denominações de matriz africana, mesmo porque, os laços
espirituais/afetivos estabelecidos por eles e seus filhos, até então, se mantinham
indissociáveis tanto no que se refere a sua aproximação do Candomblé, quanto a manter
o estreitamento com a Umbanda, que passa a partir de então a contar com sutis
inserções em seus rituais, produzindo um circuito virtuoso entre ambas as
denominações.
Na prática dos ritos do Candomblé e da Umbanda em seu terreiro “Ilê De Ifá”,
manteve um barracão para cada uma das denominações religiosas, efetivando o duplo
pertencimento de sua casa e da maioria de seus filhos, formulando efetivamente uma
prática que seria reproduzida por alguns outros terreiros, repudiados por outros, porém
com isso passa a atrair maior numero de clientela, más também a difundir os
fundamentos do Candomblé entre os praticantes da Umbanda de outros terreiros que
eventualmente visitassem a sua casa.
Aí eu vi que eu tava desprezando a minha raiz principal, eu tava
desagregando valores e estava ofendendo aquilo que me fez ser o pai-desanto que eu estava sendo, eu tava minorando tudo, tudo vaidade, não só
minha, mas de outras pessoas, o que aconteceu, essas pessoas que rasparam
o santo comigo que já tinham seus laços de Umbanda tanto quanto eu, nós
só estávamos esperando uma brecha pra poder incorporar de caboclo.
57
4.2. Identidade e reafricanização
A africanização dos ritos de Umbanda, bem como a reafricanização do
Candomblé, foi um movimento perceptível em Cuiabá, também mobilizado por alguns
de seus agentes, a partir dos conflitos internos individuais, que buscavam produzir uma
identidade coletiva que os remetesse a uma raiz africanizada dos rituais e não os
identificasse como atores inseridos em um universo de dupla militância religiosa, ou
seja, ser umbandista significava também ter que freqüentar os ritos católicos, afirma pai
Bosco:
-Então havia e há uma fronteira bem definida na cabeça da minha mãe
(biológica), no domingo eu sou católica, vou a missa, comungo,
confesso, se é mês de dezembro participo de natal em família, tudo
como manda o figurino, na quaresma faço culto da quaresma com a
comunidade, tudo como manda o figurino, porem as quintas-feiras ai eu
sou umbandista, vou faço meu culto, se tem que fazer defumação em
casa, faço defumação em casa, se tem que mandar um filho tomar banho
de erva, manda o filho tomar banho de erva, porque tal entidade
mandou, até hoje ela faz isso e a gente obedece.
Essa situação ambígua em relação às práticas religiosas produz conflito em
alguns de seus membros, que rompem com esse modelo de atuação de sua religiosidade,
no momento em que não conseguem admitir para si essa dupla militância, e tentam
reconhecer-se unicamente a partir das religiões de matriz africana. Acreditam que não
devem se eclipsar por outra denominação, que não aquela que se identifique como
religião, com hierarquias e fundamentos próprios, com função social específica,
imprescindível na opinião de Pai Bosco.
58
-Ela esta muito presente no meio de nos (risos), pra usar bem um termo
católico, a partir do momento que as pessoas não conseguem ver com
discernimento que realmente as religiões de matrizes africanas são
religiões, e não seitas, elas são religiões, com hierarquia com fundamentos,
com preceitos, e a partir do momento que alguns ainda acham que tem que
ir a procissão para me redimir dos meus pecados porque eu incorporo com
meu exu, então talvez ele não tenha a dimensão do que seja as religiões de
matriz africana, ele precisa compreender e compreender a função social que
ele tem na sociedade.
Essa compreensibilidade sincrética a que remete o Babalorixá, não se encontra
apenas na Umbanda, permeia todas as denominações afro brasileiras, estando o
Candomblé também inserido no contexto sincrético junto ao catolicismo brasileiro,
onde romper com este paradigma de acordo com Josildeth Gomes Consorte, estaria
“colocando em cheque a tradicional associação de crenças e práticas católicas com
crenças e práticas do candomblé, (...) redefinia, profundamente, a dupla pertença,
esvaziando-a do sentido que sempre tivera”. Consorte considerando ainda que:
“Por outro lado, sendo o sincretismo um movimento que se dá a partir do
candomblé, é dele que parte, até certo ponto, a iniciativa de definir o que e
o como síncretizar, a partir da face que o catolicismo lhe mostra. Deste
modo, podemos supor que nem todas as crenças e práticas nele
compreendidas tenham se destinado a cumprir o papel de iludir o senhor
branco em relação ao catolicismo do negro escravo, como se costuma
raciocinar, sobretudo diante da associação de santos e orixás, sua face mais
popular. Associações menos visíveis, de conhecimento exclusivo dos
iniciados e que escapam a esta interpretação, podem ter sido também
construídas”. (CONSORTE,1998 pag 4)
O movimento anti-síncretico das religiões de matrizes africanas consideradas
“puras”, detentoras das tradições trazidas pessoalmente por africanas e africanos, foram
corrompidas, pelas condições sociais desiguais impostas a essas pessoas, que segundo
Ivone Gebara (2000: 408) “o sincretismo passou a ser uma “desqualificação” afirmada
pelos representantes da “religião pura”; (...) uma estratégia cultural de sobrevivência e
de resistência de populações inteiras dominadas pela religião ensinadas pelos brancos”,
59
“Desde 1983, um movimento particularmente liderado por Mãe Stella,
reivindicava a total separação com a igreja católica. Reivindica a autonomia
dos orixás e não a sua mistura com os santos da igreja católica. Discussões
calorosas não faltaram sobretudo alegando o caratê sincrético do povo
brasileiro particularmente o da Bahia. Não quero nas analises que polarizam
uma ou outra posição, mas apenas levantar alguns pontos que me parecem
importantes”. (GEBARA, 2000: 408).
Esse posicionamento que se opunha ao sistema sincretico operado nos terreiros
de Candomblés da Bahia, sob a égide dos santos católicos, outrora necessário as
tradições afro-brasileira, de acordo com Consorte (---) incorreria, em “esforço ingente
de afirmação pública da autonomia do candomblé enquanto religião de pleno direito,
vazado em termos de recusa dos qualificativos de seita ou de prática animista primitiva
atribuídos ao candomblé pelos que o estudaram no século passado”.
Romper com os laços sincréticos do Candomblé, para o movimento de
rearticulação da religiosidade de matriz africana, significa romper com a lógica religiosa
do dominador, com os elementos acoplados ao rito dos Orixás, como táticas
empreendidas outrora, no sentido de dar continuidade ao legado cultural, hoje
incongruente e desnecessário as comunidades religiosas afro-descendentes, em
documento exposto no Museu “Ohun Lailai” do terreiro Opô Afonjá em Salvador.
“A associação dos santos católicos com os orixás africanos, as missas mandadas
rezar pelos terreiros no dia dos santos católicos festejados pelo candomblé, a
lavagem das escadarias da Igreja do Bonfim na quinta-feira a ela destinada, a
romaria das iaôs às igrejas consagradas a este fim, ao término da sua iniciação,
as missas de 7o., 30o. dia, de ano, de sete anos, etc., por alma das iyalorixás
falecidas, mandadas dizer também nas igrejas a este fim apropriadas. Rejeitadas
pelo documento enquanto frutos do candomblé, as práticas que davam corpo ao
sincretismo ali descritas como resíduos da escravidão. Consideradas necessárias
à sobrevivência do candomblé durante a mesma, hoje se colocavam como uma
incoerência”.(CONSORTE, 1998 pag 1 )
Este sentimento anti-sincrético reverbera em Cuiabá entre os movimentos sociais
e eclesiais de base (GRUCON, PN), provocando conflitos pessoais, singulares em
60
alguns de seus membros, que se desligam desses movimentos, sendo Pai Bosco e em
seguida sua Irmã (biológica), os agentes a se inserirem no Candomblé.
-O meu encontro com o candomblé foi aqui em Cuiabá, em 1998. Conheci
a minha yalorixá aqui. Fui para jogar os búzios. Eu estava com crises
existenciais e fui saber o que o além me recomendava, o que Ifá me
recomendava. O objetivo era eu resolver o meu problema, eu estava
passando por crises fenomenais, fantásticas, vamos colocar assim. Fui
colocar os búzios nesse aspecto. Eu já conhecia uma pessoa que depois
viria a ser meu irmão de santo e fui jogar búzios com essa senhora. Nessa
época ela tinha 79 anos de idade, uma senhora de Iemanjá, Mãe Julia de
Iemanjá1. Ela tinha uma casa improvisada no bairro Tijucal, pois estava de
passagem em Cuiabá. Ela me explicou tudo direitinho, que Xangô estava
pedindo que eu iniciasse e já estava passando da hora de iniciar no
candomblé e que todos esses meus problemas existenciais, as minhas crises
eram em detrimento da minha não iniciação e eu precisava iniciar, fosse no
culto de umbanda, ou no de candomblé, em algum lugar eu precisava fazer
essa iniciação.
Com esse encontro Pai Bosco se insere no Candomblé de nação Keto, em
pequenas obrigações, dessa forma Mãe Julia, de Salvador, temporariamente na cidade,
efetiva a inserção do futuro Babalorixá, mas com certo cuidado, permitindo assim que o
neófito refletisse sobre esses conflitos, o que resolve, em parte, com sua inserção no
Candomblé e o leva à busca pela africanidade. Essa reafricanização que os ritos de
Umbanda e Candomblé em Cuiabá suscitam. Isso reflete na percepção de Pai Bosco.
-A eu percebo uma mudança muito grande porque a partir do momento que,
esse terreiro, ou essa casa de culto umbandista está em lento processo de
extinção, já que não faz novos filhos, novos herdeiros, porque os herdeiros
legítimos dessas casas de rituais mais antigos buscaram outras casas de ritos
mais africanizados, como foi o meu caso, o caso da minha irmã. Buscaram
o culto de candomblé, uma vez que essa casa não atendia mais as nossas
aspirações como religiosos.
Os terreiros de Umbanda ao inserirem os elementos do Candomblé em seus
rituais, principalmente em função de seus agentes estarem procurando essas casas em
busca desses elementos, que se encontram no ritual de Umbanda, ou no culto do
61
Candomblé, vão de encontro à realização dos desejos que se tem em relação com aos
terreiros africanizados, partindo de uma idéia pré concebida de africanidade, como a
invenção da tradição concebida por Hobsbawm, discutida em Hall (2002).
“tradições que parecem ou alegam ser antigas são muitas vezes de origem
bastante recente e algumas vezes inventadas... Tradição inventada significa
um conjunto de práticas..., de natureza ritual ou simbólica, que buscam
inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, a
qual, automaticamente, implica a continuidade de um passado histórico
adequado”. (HALL, 2002: 54)
Representadas adequadamente como heranças de tempos remotos em suas
existências, muito antes de serem cambiadas para Cuiabá, como podemos observar na
mecânica em relação à introdução de atabaque no cenário religioso cuiabano, registrado
por Paredes “Consta que o atabaque entrou nos terreiros cuiabanos há cerca de quatro
décadas, através de um médium que se iniciou no Rio de Janeiro”. PAREDES (2008:
38), considerando que para sua efetivação como pratica recorrente requeira certa
destreza no manuseio do instrumento, antes de tudo em relações profícuas com a
religião dos Orixás vivenciadas no seio das culturas.
“(...) a questão da identificação nunca é a afirmação de uma identidade prédada, nunca uma profecia auto cumpridora – é sempre a produção de uma
imagem de identidade e a transformação do sujeito ao assumir aquela
imagem. A demanda da identificação – isto é, ser para o outro – implica a
representação do sujeito na ordem diferenciadora da alteridade.”
(BHABHA, 1998: 77).
Assim, no cotidiano das práticas efetivadas no universo religioso de matriz
africana em Cuiabá, nas representações culturais dos sujeitos que transitam neste
universo místico, agenciando desdobramentos no intuito de apartar os laços sincréticos
dos ritos afro-brasileiros, esses atores estabelecem neste palco, adaptações que apostam
na conexão conciliatória dos rituais para a sobrevivência dos ritos de matriz africana.
No entanto, salvo as simplificações ritualísticas que essa aproximação possa
ocasionar, principalmente em relação as adaptação feitas e que podem ser percebidas
nos relatos supracitados, a reflexão que nos suscitam parte do princípio da
62
individualização de cada uma das denominações, que buscam ao longo de suas
trajetórias históricas demarcarem as fronteiras de seus rituais a fim de promover o
reconhecimento e legitimação de suas tradições, mas que nem sempre encontram
ressonância entre seus praticantes.
Principalmente se considerarmos o fato de seus atores estarem inseridos em
denominações religiosas distintas, e levando-se em conta que a identidade religiosa
revele peculiaridades nem sempre tão sutis, que no caso da Umbanda e do Candomblé,
compartilham de certa maneira alguns princípios fundadores, como nos aponta
Reginaldo Prandi.
Desde o início as religiões afro-brasileiras se fizeram sincréticas,
estabelecendo paralelismo entre divindades africanas e santos católicos,
adotando o calendário de festas do catolicismo, valorizando a freqüência
aos ritos e sacramentos da igreja. Assim aconteceu com o Candomblé da
Bahia, o Xangô de Pernambuco, o Tambor-de-mina do Maranhão, o
Batuque do Rio Grande do Sul, e outras denominações. (PRANDI, 2003;
16).
Em função das questões cotidianas surgidas no universo religioso cuiabano no
período abarcado nesta pesquisa, as contingências deste momento histórico, em que os
antagonismos culturais se fazem visíveis por conta da rápida inserção de elementos
externos aos aqui praticados, a população local não se sentia preparada culturalmente
para vivenciá-los. Estes elementos externos colocam os ritos locais em xeque e
potencializam de certa forma a assimilação dos fundamentos surgidos no fluxo das
águas que invadem as margens cuiabanas.
63
5. Considerações finais
.
O “abalo sísmico” produzido pelo movimento migratório no cenário urbano de
Cuiabá, a partir dos fluxos culturais engendrados pela inserção novas identidades de
referência afro-brasileira, que se mesclam aos movimentos subalternos afro-religiosos
da cidade, afetam e são afetados por seus atores.
Esses agentes, com suas narrativas, compuseram um cenário que revela o
registro das práticas subalternas, experiências que se movimentam em fluxo contínuo,
em uma sociedade urbana que se modifica para abrigar seus desejos e realizações, no
jogo das metamorfoses sociais.
Por meio destas narrativas emergiu para o primeiro plano as metamorfoses
operadas no campo religioso de matriz africana em Cuiabá, as táticas empreendidas por
seus atores, as apropriações culturais agenciadas em seu meio pelos participantes da
gira, os acoplamentos evidenciados nos relatos de Pai Edézio.
Trajetórias vividas com a intensidade dos grandes acontecimentos, narradas com
a paixão dos contadores de história, das histórias vivenciadas por si, nas suas tramas
sociais a que se engendram. Assim, foi possível perceber os desdobramentos culturais
das multiplicidades do universo afro-brasileiro manifestos na Grande Cuiabá. As tramas
sociais e mediações que indivíduos, povo de santo e comunidades operam no dia-a-dia
da cidade, redimensionam as representações individuais e coletivas da sociedade,
64
Ao recorrer à memória desse atores sociais, observando as representações dadas
aos fragmentos do passado religioso que se encontravam inseridos nas práticas da
Umbanda e Quimbanda, percebe-se uma flexibilização neste palco místico que se
reelabora continuamente, em fluxos líquidos, em movimentos sazonais de cheias e
vazantes, deslocando estruturas, remodelando a paisagem, inserindo novas personagens
na riqueza de suas narrativas.
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Entrevista 07-01-2010.
João Bosco da Silva, Babalorixá da Nação Ketu, Professor da Rede Pública Estadual, Mestre em
História pela UFMT em 2006.
AL - Como foram seus primeiros contatos com as religiosidades de matrizes africanas?
BX – Bom, meu primeiro contato com as religiões de matriz africana se deu quando
nasci. Sou filho e neto de umbandistas e sempre acompanhei todo o processo ritualístico
de umbanda: na infância, pré-adolescência, adolescência, vida adulta e, com trinta anos
de idade, conheci o candomblé. É legal que eu destaque que, mesmo sendo filho e neto
de umbandistas, eu não fiz nenhum ritual iniciático no culto da umbanda, então preferi
apenas participar como filho e neto de umbandista. Apenas ia ao centro de umbanda
tomar passes, participar de festas, mas em nenhum momento meus pais imporam para
que eu participasse como iniciado no culto de umbanda. Conheço a religião de umbanda
desde que me entendo por gente, que é uma religião de matriz africana muito comum na
cidade de Cuiabá.
AL - Como é o nome dos seus pais?
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BX - Meu pai não era médium girante como a gente chama dentro do culto de umbanda.
Meu pai era um cambono e a minha mãe é médium girante ainda hoje. Meu pai se
chamava Irenio Duarte da Silva e ,desde que me entendo por gente, foi cambono da
minha mãe. Ele faleceu com 96 anos de idade, então tinha mais de 60 anos que
freqüentava e participava do culto de umbanda e a minha mãe também. Hoje, ela tem 76
anos de idade e ainda freqüenta o culto de umbanda. A minha mãe se chama Adalgiza
Lima da silva, ela não tem uma casa de umbanda, freqüenta uma por ser uma casa de
umbanda daquelas de raiz antiga, que não tem pai nem mãe de santo, tem presidente,
vice-presidente, chefe de terreiro. A casa que ela freqüenta se chama Centro Espírita
Nossa Senhora da Conceição, situado no bairro Dom Aquino, precisamente na Rua São
Cristóvão.
AL - Como você percebe a transição da umbanda de raiz antiga com os ritos de
umbanda mais africanizados?
BX - Eu percebo uma mudança muito grande. A partir do momento que esse terreiro ou
essa casa de culto umbandista está em lento processo de extinção, já não faz novos
filhos, novos herdeiros, porque os herdeiros legítimos dessas casas de rituais mais
antigos buscaram outras casas de ritos mais africanizados. Foi o meu caso e o da minha
irmã. Buscamos o culto de candomblé, uma vez que essa casa não atendia mais as nossa
aspirações como religiosos. É legal falar dessas abstrações religiosas porque eu, como
professor, pai de santo ou babalorixá como se diz, não concebo que eu vá à missa. Ou
sou do culto de matriz africana ou sou católico. Então não cabe na minha cabeça o preto
velho me mandar benzer a água com o padre católico. A partir do momento que eu
percebi que essa casa não me dava esse respaldo de que eu devo benzer a minha água
com meu preto velho, que preciso ir à igreja para isso, essa casa já não me interessa. Por
isso foi necessário buscar outra casa, no meu caso buscar uma outra religião, já que o
candomblé é de matriz africana mas é outra religião, e que me atendesse as aspirações.
Então, percebo que as casas que não africanizaram, buscaram um processo de
aproximação com um culto mais africanizado e a tendência dela é desaparecer. Ela não
vai sobreviver no século XXI.
AL - Então como ficam as casas que não buscaram essa aproximação?
BX - Eu vou falar como os adolescentes falam. Essas casas que buscaram a
africanização uma aproximação com o rito africanizado estão “bombando” e as casas
que não buscaram essa aproximação com o uso de atabaques, com um ritual mais
africanizado, a tendência é desaparecer. Como eu disse anteriormente, esse processo de
extinção é natural através de um processo que está acontecendo de reafricanização dos
cultos de matriz africana, entre os quais a umbanda.
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AL -Como eram os ritos antes desse processo de reafricanização?
BX - De uma forma geral o que me lembro dessa casa, o Centro Espírita Nossa Senhora
da Conceição, que foi o primeiro contato que tive na infância até eu conhecer o
candomblé com 30 anos de idade, eu freqüentava apenas este centro, que é uma mistura
muito grande de culto católico popular com o espiritismo kardecista. Então não se tem
outra cor se não as roupas brancas, inclusive na roda de Exu se usa branco e nem todos
incorporam com Exu, nem todos incorporam de Pomba-Gira. Haviam sim alguns
médiuns que se diziam mais preparados que incorporavam com seus exus, com suas
Pomba-Gira. Começavam a sessão rezando Pai Nosso e Ave Maria, a prece de Caritas,
velas brancas, muitas flores brancas. Não haviam atabaques, eram palmas, muito
compassadas para a vizinhança não ouvir.Era um culto mais silencioso, portas fechadas,
mesmo sendo um barracão enorme bem estruturado, próximo ao centro da cidade.
Porém havia toda uma regra pois era necessário fazer silencio, cultuar, receber seus
pretos velhos, caboclos, pois não haviam outras entidades, somente preto velho, caboclo
e exu, que chamavam de compadres. Havia a linha dos compadres, dos pretos velhos e
caboclos e tinha horário para começar e para terminar. Começava às 19h e ia, no
máximo, até às 21h tudo tinha terminado. Se você chegasse às 19h a porta estaria aberta
para você entrar, depois disso você não entrava mais e só sairia as 21 h. Após esse
horário as pessoas saiam, iam para suas casas e o barracão era fechado porque ninguém
morava nesse barracão e até hoje ninguém mora nesse centro de umbanda. Então havia
todo esse processo, a preocupação com a vizinhança, a preocupação com o silêncio.
Ninguém pode perceber que somos umbandistas.
AL - Você percebe alguma celeuma na relação entre terreiro e comunidade
circunvizinha?
BX – Não. Eu não percebo, mas hoje em dia pessoas do culto afro-brasileiro fazem
questão de dizer que são de culto afro. Eu sou candomblista e naquele momento era
necessário você se esconder. Até hoje a minha mãe, se você for entrevistá-la, ela vai
dizer que é católica, que vai à missa todos os domingos, que é legionária de Maria, mas
todas as quintas-feiras está lá praticando ...(atende o telefone)
AL - E como no caso da sua mãe, ela articula essa duplicidade religiosa ou dupla
militância?
BX – Então, havia e há uma fronteira bem definida na cabeça da minha mãe. No
domingo eu sou católico, vou à missa, comungo, confesso, se é mês de dezembro
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participo do Natal em família, tudo como manda o figurino. Na quaresma faço culto da
quaresma com a comunidade, porém as quintas-feiras eu sou umbandista. Vou, faço
meu culto, se tem que fazer defumação em casa, faço, se tem que mandar um filho
tomar banho de erva, manda o filho tomar banho de erva porque tal entidade mandou.
Até hoje ela faz isso e a gente obedece.
AL - Você foi batizado na igreja católica?
BX - Fui batizado na igreja Católica, (risadas), fiz crisma, fui membro de grupo de
jovem, participava da igreja católica e fui catequista. Tudo isso foi na igreja católica,
porque quando eu estava na adolescência tive uma crise de identidade com a questão de
ser praticante da religião afro-brasileira, por ter que esconder isso, foi então o momento
que deixei a religião, deixei a umbanda, larguei a umbanda e fui ser católico mesmo,
católico praticante, tudo como manda o figurino. Ia à missa de manhã e a noite, dava
aula de catequese, fui batizado, fui crismado, tudo dentro dos conformes. A família toda
se identificava como católica. Houve um momento da minha vida, precisamente entre
os quinze e dezesseis anos até os vinte quatro, vinte e cinco anos em que eu me
identificava como católico. Quando entrei na Universidade, para o curso de História, eu
passei supostamente a ser ateu, supostamente. Coloco supostamente porque na hora do
vamos ver, você pede para os santos, toma seu banho de ervas, você reza, então você
não é. Mas estávamos no auge do marxismo, anos oitenta.O curso de História me deu
toda essa bagagem de marxismo. Assim eu me declarava ateu, porém foi como eu disse:
na hora do vamos ver eu me apego a todos os santos, todos os pretos velhos e faço todo
o ritual como manda o figurino.
AL - A sua participação no movimento negro tem a ver com a sua reaproximação com
as religiosidades afro-brasileiras?
BX – Bom, o movimento negro, o Grupo de União e Consciência Negra (referência ao
GRUCON) criado nos anos oitenta na cidade de Cuiabá, surgiu dentro da Igreja do
Rosário, em um dado momento em que as comunidades eclesiais de base estavam no
seu auge e, nesse momento, eu militava tanto no grupo de jovem católico quanto nas
comunidades eclesiais de base. Assim eu conheci o movimento negro. É interessante
dizer que o Consciência Negra, naquele momento, era tipicamente cristão, tipicamente
católico, mas ajudava a organizar as missas afro na Igreja do Rosário junto com a
pastoral do negro que tem uma militância muito grande e muito fervorosa aqui em
Cuiabá, principalmente nos bairros mais periféricos. A pastoral do negro tinha sua
militância e a consciência negra também. Eu diria que foi o Consciência Negra que me
aproximou da africanidade, mas também foi a consciência negra que não me aproximou
da africanidade. Primeiro porque, apesar de ser um movimento tipicamente católico, a
partir desse momento iniciou a minha militância no Consciência Negra. Momento em
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que começo a ler sobre as africanidades no Brasil, as africanidades no Mato Grosso e
foi a partir dessas leituras que eu conheci o candomblé, conheci primeiro para campo no
candomblé, intelectuais que pensavam o candomblé, que mesmo inseridos na religião
pensavam o candomblé. (toca novamente o telefone). Essa reaproximação do culto vai
fazer também eu questionar a casa de umbanda a qual eu freqüentava na infância e
adolescência. Então eu começo a questionar até que ponto é válido eu freqüentar um
culto de umbanda que me manda ir para a igreja católica.
AL - Então você descobriu a razão da crise da identidade neste momento?
BX – Exatamente. A razão da crise de identidade da adolescência iniciou na juventude.
Está exatamente naquele momento em que ou eu me identificava como católico ou me
identificava como praticante de culto afro. Na minha cabeça, desde aquele momento até
hoje não dá para ficar nessa fronteira entre uma coisa e outra, pois ou eu sou católico ou
sou candomblista.
AL - Essa dupla militância está mais presente nos praticantes dos cultos afros que não
tiveram acesso a uma cultura letrada?
BX - Eu diria que está. A questão da cultura letrada não influencia muito, o que
influencia dentro deste processo é o grau de compreensibilidade das religiões de
matrizes africanas, mais precisamente naquele que não tem acesso mesmo a uma cultura
letrada. Então por ele não conhecer lei nenhuma, por não conhecer seus direitos, por ser
muito tímido, por não saber se defender, ele prefere dizer que é católico, porque ele
tem muito medo de ser discriminado, tem muito medo de não ser aceito pela sociedade,
muito medo do que o outro vai pensar, como o outro vai agir. Então é um escudo e não
se deve apontar o dedo a ele. É o escudo que minha mãe criou para se defender, um
período vivenciado. Hoje ele diz, -“Vocês batem no peito e dizem que são do
candomblé e da umbanda, mas imagina no anos 30 e 40 que a polícia entrava dentro dos
terreiros e quebrava tudo, levava todas as nossas imagens para a delegacia de polícia,
nos levavam presos. Hoje vocês batem no peito e me criticam quando eu digo que sou
católica, mas voltem nos anos 30 e 40.”
AL - Então trata-se de uma estratégia que continua sendo operada hoje?
BX - Ela está muito presente no meio de nós (risos). Para usar bem um termo católico, a
partir do momento que as pessoas não conseguem ver com discernimento que realmente
as religiões de matrizes africanas são religiões e não seitas, elas são religiões, com
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hierarquia, com fundamentos, com preceitos, e a partir do momento que alguns ainda
acham que tem que ir à procissão para me redimir dos meus pecados porque eu
incorporo com meu exu, então talvez ele não tenha a dimensão do que sejam as
religiões de matriz africana. Ele precisa compreender a função social que ele tem na
sociedade.
AL - Essa compreensão você passa a ter nesse seu reencontro com a religiosidade de
matriz africana. Resolvido o conflito você abria mão da dupla militância religiosa?
BX – Exato. A partir do momento que eu conheçi através de leituras, de conversas com
Iaôs, com Ebomis, com praticantes de religiões de matriz africana, eu começo a me
identificar com o candomblé e não com aquele modelo de umbanda, porque o único
modelo de umbanda que eu conhecia era aquele. Eu não tinha outra referência, então
repudiava aquela umbanda.
AL - O seu encontro com o candomblé foi aqui em Cuiabá?
BX – Foi. O meu encontro com o candomblé foi aqui em Cuiabá. Conheci a minha
yalorixá aqui. Fui para jogar os búzios. Eu estava com crises existenciais e fui saber o
que o além me recomendava, o que Ifá me recomendava. O objetivo era eu resolver o
meu problema, eu estava passando por crises fenomenais, fantásticas, vamos colocar
assim. Fui colocar os búzios nesse aspecto. Eu já conhecia uma pessoa que depois viria
a ser meu irmão de santo e fui jogar búzios com essa senhora. Nessa época ela tinha 79
anos de idade, uma senhora de Iemanjá, Mãe Julia de Iemanjá. Ela tinha uma casa
improvisada no bairro Tijucal pois estava de passagem em Cuiabá.
AL - O terreiro dela era onde?
BX - O terreiro efetivo dela ficava em Campo Grande, Mato Grosso do Sul.
Precisamente no bairro Buriti. Então eu fui colocar os búzios e ela colocou os búzios
para mim e o meu primeiro choque foi quando ela me falou que eu era de Xangô e eu
afirmava, categoricamente, que eu era de Oxossi, por todas as leituras, por todos os
livro, por todas as pessoas que conversavam comigo que achavam que eu era de Oxossi.
Pelo meu estereótipo eu era de Oxossi: pequenininho, magrelo, olhos esbugalhados. Eu
achava então que era de Oxossi e quando ela me disse que eu era de Xangô, eu tive um
espasmo de revolta e eu pedi que ela fechasse os búzios e colocasse novamente porque
havia algo errado pois eu era de Oxossi e não de Xangô. Ela abriu os búzios novamente
e disse que eu não era de Oxossi e sim de Xangô e mais uma vez eu disse que ela estava
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errada. Ela jogou mais uma vez e disse, - “Meu filho, se você é ou não de Xangô os
búzios estão dizendo que você é de Xangô. E tem mais: Xangô está pedindo a sua
cabeça.” Aí sim eu levantei assustadíssimo. Primeiro Xangô está pedindo a minha
cabeça e eu já havia visto minha cabeça em uma bandeja. Até ela explicar que dar a
cabeça não era dar a cabeça numa bandeja, porque nas leituras que a gente tinha não era
essa concepção do que é pedir a cabeça, não nesses termos. Ela me explicou tudo
direitinho, que Xangô estava pedindo que eu iniciasse e já estava passando da hora de
iniciar no candomblé e que todos esses meus problemas existenciais, as minhas crises
eram em detrimento da minha não iniciação e eu precisava iniciar, fosse no culto de
umbanda, no de candomblé, em algum lugar eu precisava fazer essa iniciação.
Entrevista 13-01-2010.
Edézio Lima Fernandes; Babalorixá da Nação Angola, Fiscal Fazendário, Bacharel em Direito
pela ‘Faculdade Afirmativo’ em 2010.
AL - Pai Edézio como foi os seus primeiros contatos com as religiões de matrizes
africanas a Umbanda, a Quimbanda e o Candomblé, como foi e quando foi ?
PE - Os meus primeiros contatos eu era muito criança quase não tenho memória assim
muito concretas dele, que a primeira vez que eu incorporei, eu tinha seis anos de
idade dizem, eu fui saber dessa incorporação minha eu tinha dezessete anos que já era
chefe de terreiro quando eu soube dessa incorporação minha,eu tinha seis anos de
idade morava em Poxoréu ainda, e meu caboclo Tupinambá pegou eu dormindo e me
deixou dormindo também, e fez o que ele tinha que fazer, e depois uns dezessete
anos eu soube disso, quando mais tarde ainda criança eu vim a Maria perna grossa, eu
tinha sérias dores de cabeça não sabia que minha mãe queria que eu largasse de ser
médium, porque eu não sabia o que era ser médium, porque antigamente era uma
descriminação total ninguém podia saber, ser médium era um crime, ara um pecado
era uma doença. Então ela veio comigo,ma trouxe na Maria perna grossa que morava
aqui em Cuiabá, e era muito famosa.
AL - Era benzedeira?
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PE - Era benzedeira. Então a Maria perna grossa eu ainda era criança mais me lembro
detalhes dessa conversa, minha mãe segurada em minha mão, eu era um guri muito
capeta e fui lá nas flores da mulher tirei todas as flores da mulher, despenquie a flor
da mulher toda, minha mãe foi lá me puxou pela mão,me pôs assim, mas eu tava
incutido com a mulher que incorporou, ela começou a rezar e incorporou e falou pra
minha mãe que eu era médium de nascença, eu não compreendi isso, mais minha mãe
insistiu com ela que eu seria padre, e aquela idéia de ser padre ficou em minha cabeça
muito tempo, eu até tentei ser mas não deu certo. Entendeu.
E aos quatorze anos eu voltei, voltei na Maria perna grossa, e ai ela tinha me dito
naquele dia, que quando ela estivesse se indo eu estava assumindo minha missão e
que ela seguraria até aquela época, e realmente eu cheguei lê ela estava numa cama,
não sei se ela falou, hoje eu sei que ela falou pela vidência dela.
Eu sentei lá fora e fiquei quieto, tinha aquele mundaréu de gente, vei uma dona e me
chamou; - olha Maria ta chamando o sinhor. Eu entrei e ela falou senta ai meu filho –
sua mãe saiu daqui correndo com você. Quer dizer que ela lembrou daquele detalhe
me revivo e eu disse que quando eu estivesse terminando você estava nascendo.
Agora é época de você se firmar e entrar pra religião, isto é exercer a religião, só que
sua linha é outra, é médium, não é de mesa.
Eu tinha um amigo que me disse vou te leva no meu terreiro, e eu fui no terreiro dele,
isso era dezembro de 69, 70, por aí, não lembro, eu tava loco pra conhecer. Uma vez
lá em Poxoréu eu fui escondido mais meu pai descobriu e eu não cheguei nem na
porta do terreiro.
O contato mesmo com a Umbanda foi na casa de Maria Amélia, fica ali próximo ao
Chopão na Estevão de Mendonça, foi quando eu incorporei e ali as pessoas viram o
meu caboclo, viram meus espíritos e incutiram que eu tinha um conhecimento,
quando na realidade eu nem sabia quem ara meu caboclo, eu fui sabe quem era meu
caboclo depois desse dia, porque eu não sabia o ponto dele eu não sabia nada,era
primeira vez que eu incorporava.
E deu certo?
Então como aquilo era uma coisa ultra escondido pra mim ara bom porque as pessoas
me procuravam, eu ai mesmo, era seo Tupinanbá então ai. A vontade de conhecer é
que me levava, e foi a vontade de conhecer que eu fui conhecer. Me davam livros pra
eu lê e eu lia, ai arrumaram uma casinha pra mim escondido dos meus pais, lá naonde
hoje é o São Gonçalo, que nesse tempo nem existia, e me levavam escondido de
carro, eu tinha que incorporar mas meus país não podem saber, ta bom. Eu aia pra lá
incorporar com meu caboclo, incorporava com um, incorporava com outro daí a
pouco eu tava incorporando com tudo, e ali já era o meu terreiro.
AL - E o primeiro terreiro que o senhor abriu onde foi? Foi nessa localidade?
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PE - Foi ai, mas logo mudou pro parque do lago, que era só chácara, e aí tinha uma
chacrinha que tinha um moço lá que praticamente doou a chácara e a chácara passou a
ser o terreiro onde eu atendia, ali eu atendia gente picada de cobra; ali eu atendia
gente que queria saber de homem, acodia quem queria saber de mulher, saber não sei
do que, e a vaidade do ser humano, a vaidade do guri, se não tem assim uma pessoa
pra orientar, ela estravassa, e foi o que aconteceu comigo. Hoje muitas coisas que fiz
naquela época talvez não faria hoje. Eles viram (ref.mundo espiritual; suas entidade),
uma coisa puxava a outra, e isso me fez desenvolver, eles me ensinaram muito, mas
também perdi muito, porque não tinha uma pessoa pra orientar.
Em 73 ou 74 eu conheci um chefe de terreiro por nome Davi e ele era muito parecido
comigo e eu acabei chefiando o terreiro dele algumas vezes. O Davi me deu um livro
de pontos chamado “Três Mil e Setecentos Pontos” eu li e fui aprendendo mais
pontos, logo em seguida é que eu conheci meu padrinho Delmindo, aí eu tive a
orientação de alguém competente, alguém capacitado, só que nessa época já tinha eras
e paqueras que eu tava tocando terreiro, atendendo gente e até desenvolvendo gente.
AL - Então aconteceu como uma entrega?
PE - Aconteceu, eu não sei como aconteceu eu sei que foi um dom natural assim, e os
terreiros tinham um respeito por mim não por mim, mas pelas minhas entidades e
como eram pessoas simples o que transpassava? Transpassava que eu tinha o
conhecimento, porque minhas entidades tinhas conhecimento. Mas o conhecimento
da entidade além de ser muito subjetivo é sobrenatural, então como que eu ia explicar
para aquelas pessoas isso, se nem eu também sabia explicar, porque naquela época eu
também era criança, criança em todos os aspectos, criança no mundo religioso,
criança na idade, criança em tudo, sentia como fala, engajado com a causa, sentia o
ego exagerado, porque todo mundo queria me paparicar e paparicando conseguiam
tudo também.
Mais eu não posso dizer que foi só coisa boa, também tive meus percausos, meu
terreiro foi cercado por policia, a policia pôs metralhadora em meu peito, eu tive
questões pesadas, mais eu tive tantas coisas gostosas, é o que eu falo, é que meus
guias não faltaram comigo, porque o guia cobra da pessoa de acordo com a
consciência de cada um, como que eles iam cobrar de mim se tudo que eu fazia, eu
fazia incorporado deles.
AL – Como foi o aprendizado na Umbanda, foi só a partir da incorporação?
PE -Não, em 74/1 eu entrei pra faculdade de Engenharia Civil ai teve o básico, aí
depois do básico eu conheci meu padrinho num laboratório de Química da faculdade,
lá de tecnologia, ele trabalhava lá como serviços gerais, aí chegou lá ele disse assim –
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eu conheço o senhor- eu fique meio assim, aí ele disse – o senhor vai no terreiro do
meu sobrinho- aí que eu fiquei mais nervoso, meu Deus do céu o que esse homem ta
falando, e ele começou a contar as histórias do terreiro, eu já aliviei, já fique amigo, aí
realmente foi o grande divisor de águas pra mim,porque ele foi a pessoa que me
orientou, que teve essa cabeça, lembra das coisa que eu tava te contando lá atrás,
dessa chácara na Várzea Grande, o parque do lago não existia nem no projeto.
Ele teve lá, ele que me orientou como fazer a casa Exu que eu não sabia, ale me
ensinou tudo aquele negócio de magia, no que ele foi me ensinando ele me disse –
meu filho você tem que aprender pra você trabalhar desincorporado-, e ele foi me
explicando as coisas de feitiço. Eu acho que a minha mediunidade é contada pra min
dessa época pra cá, porque eu passei a ter uma compreensão correta do que era.
Porque toda a compreensão que eu tinha era quando o espírito falava – fala pro meu
cavalinho isso, e isso, isso, isso, e isso, eu fazia, e quando eu via que tudo ia dá
errado, eu agia como eles mandavam, umas pessoas sabiam dá recado, outras não
sabiam. Ele não, meu padrinho foi o divisor das águas pra mim, ele me explicava tudo
detalhado, ele que me firmou, o meu batizado foi ele que fez, cruzamento, me
firmou na linha de São Cipriano, me firmou tudo, então eu tenho uma adoração por
ele, meu padrinho Delmindo já foi, (desencarnou).
E ele foi umas das pessoas que me falou desses antigos feiticeiros que morou em
Cuiabá bem antes da Umbanda ser o que era, como Mestre Gaita, que foi quem fez o
Cine Teatro, este Mestre Gaita foi quem desenvolveu ele, nesse caso em São
Cipriano.
AL - Depois desse terreiro nessa chácara o Sr. veio pra cá no Jd. Araçá?
PE - Não, tive um terreiro na Várzea Grande ali perto do aeroporto, era só uma
vilinha assim, depois eu tive aqui na Cohab Velha, tinha uma chacrinha, arrumaram
uma outra casinha ali pra mim, e ali eu fui ficando até não ter mais como esconder
dos meus pais, que foi na década de oitenta, que ai eu já tinha raspado meu santo, e
eles já tinham visto minha cabeça raspada e ai já não tinha mais o que esconder, aí eu
mudei meu terreiro e montei ele aqui.
Eu montei meu terreiro aqui em 81
AL - Bom, a gente sabe da repressão social, a repressão da polícia, mais tinha também
a repressão doméstica que vinha de casa?
PE - Ah, era da mãe, do pai dos irmãos, era a cultura, e depois minha mãe ficou que
tudo pra ela era meus guias. Ela foi me ver incorporado em oitenta e sete aqui em
minha casa.
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Em oitenta e um eu abri aqui meu terreiro de Umbanda, em oitenta e três eu abri meu
terreiro de candomblé. Em 1983 eu recebi meu Deká, a feitura do meu primeiro barco
foi minha obrigação de Deká, eu abri meu terreiro com três anos e meio de santo, eu
recebi meu Deká em 27 de agosto de oitenta e três.
AL - A sua ida pra Salvador como acontece?
PE - Como que eu fiz, nessa época eu era exator, e fui pra Salvador com uma amiga
pra procurar o terreiro dessa mãe de santo, que sonhava com ela, com o terreiro dela,
aponto de contar detalhes que as pessoas achavam que eu já tinha ido lá e conhecia o
lugar. Só que eu não conhecia nada, quando nós conseguimos chegar lá, ficou a
duvida, será que é essa a mulher.
AL - E o que te levou pro Candomblé, a curiosidade ou a necessidade?
PE - Eu acho que ambas as coisas; a curiosidade porque eu queria saber das coisas, e
a necessidade porque eu sentia que tava faltando alguma coisa.
Ai eu fui conhecer candomblé, ai ela mandou alguém ir conosco pegou a nossa roupa,
e nos recolheu, pra fazer todas aquelas coisas, você sabe, mandou Zeringuê que era
filha dela (filha biológica), com Cutámiã e Lessemavulo nos levar no mar, nos trouxe
e já nos recolheu.
AL - Já começou o processo de iniciação?
PE - Já começou o processo. E quando terminou eu voltei pra cá, em oitenta e três ela
veio dar minha obrigação de Deká, abrir o meu terreiro.
AL - Nessa vinda de Mãe Bebé quantos filhos foram iniciados nesse primeiro barco?
PE - Bom até então eu não sabia quantos Yaôs podiam ser iniciados, eu tinha na
época, porque foi assim quando falou foi pra Bahia aquilo se transformou num
chamariz, que a Bahia era o centro da macumba, e a coisa já tava assim mais ligth, já
podia apresentar, apesar das perseguições, tinha policiais que vinham em meu
terreiro assistia os trabalhos, tinha público, até o governador veio no meu terreiro em
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público, então já não era aquela coisa escondida, já não tinha mais necessidade de
disfarçar a situação, tanto é que este governador veio aqui.
Então no meu primeiro barco foi assim, eu tinha trinta e três desenvolventes em
minha casa, e os trinta e três queriam raspar porque o pai de santo era raspado, eles
também queriam, eu não vou dizer que eles não sentiram a mesma coisa que eu senti
quando eu fui pra Salvador, então eu falei pra minha mãe (nessa época eu falava com
minha mãe quase todos os dias), por telefone, desde oitenta e dois a gente se falava
todos os dias, quando eu não telefonava ficava até zangada. Ai eu falei minha mãe, eu
estou com esses trinta e três filhos pra recolher pra raspa como é que eu faço?
Qualquer coisa eles podem ir a Salvador e raspar o santo. E ela me disse não meu
filho você marca um dia, vamos marca uma época e eu vou raspa eles aí. Pra mim que
era leigo, mais como eu tinha visto o pai do Jorge fazer isso com Jorge ainda de Kelê,
eu falei ta bom eu já tenho mais de três anos de santo acho que não vai ter problema
dela vim raspa os filho, ela veio final de julho, e todo mundo era pobre, humilde gente
simples, como eu disse das pessoas que me acolheram, que me acolheram e me deram
o aprendizado que eu tenho hoje. Eu paguei as passagens dela dos ogãs, dos irmãos de
santo que vinha ajudar, que na realidade eu nada sabia, eu paguei eles, que realidade
eu não sabia como ajuda, eu passei pouco tempo em Salvador, então não tinha como
eu saber.
O que aconteceu, ela veio, mais Cassendê veio antes, Cassendê é meu irmão de santo,
ele veio de São Paulo, Cassendê é paulista, e quando eu raspei meu santo ele já era
pai-de-santo, e ficou muito meu amigo, ele tinha terreiro em Campo Grande, aí ele
me disse, -Olha Edézio sua mãe de santo vai vim com seu santo de lá. E minha mãede-santo veio e trouxe o meu santo, e -falou ta aqui, e eu não sabia nem como
arrumava, porque eu ia dava obrigação voltava, eu achei que ela ia fazer como o pai
do meu amigo, mais ela foi muito mais humana comigo e muito mais sábia porque,
ela veio esperou eu arrumar tudo, viu o que eu tinha de espaço né, e ela foi me
dizendo como que podia fazer, faça assim e do jeito que ela me mandou fazer eu fiz.
E quando tava tudo pronto ela veio e me disse, meu filho não pode raspa trinta e três,
mais minha mãe a senhora disse que podia e eles estão aí, tem mais gente querendo
conhecer a senhora. Porque quando ficaram sabendo que ela viria a noticia correu, e
eu que não gostava da coisa, mandei anunciar no rádio, o radialista morava aqui perto
na cidade alta, ele me cobrou o terço (possivelmente o triplo), mais foi o terço que
valeu, olha toda hora falava que Mãe Bebé estava vindo a Cuiabá a mãe-de-santo de
Edézio, encheu de gente querendo conhecer minha mãe.
Foi um rebuliço de gente, você sabe como é a preparação pra recolher,éaquele
movimento. E ela preparou os trinta três pra recolher, mais me disse que só podia
recolher dezesseis, mais que não podia desfazer de ninguém, o santo trouxe, o santo
vai selecionar, nós não podemos selecionar, pra você vê a sabedoria da velha, ela
disse –eu vou falar que não vou recolher mais ninguém hoje, e aquele que o santo
escolher vai ficar bolado por aqui mesmo, aquele que o santo realmente quiser vai
ficar por aqui, o mínimo possível é o que nós vamos pedir.
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Ela me ensinou como fazer o pedido, como fazer esse pedido no meu roncó, e eu fiz,
e foi ficando detardezinha e o povo que era mais renitente, eles foram ficando, a
num vai mais recolhe mesmo e quem quiser ir pode ir, nós já vamos dormir , ta todo
mundo cansado meus irmão foram se acomodando no barracão colando esteiras e
foram dormir, e os doze que ficaram foram raspado no primeiro barco,foram ficando,
foram deitando, meu padrinho eu vou ficar por aqui.
Porque antes pai-de-santo não existia aqui era padrinho madrinha de Umbanda, hoje
em dia todo mundo é pai-de-santo, mesmo que for Umbanda.
Então ela me perguntou –meu filho ficou dezesseis, eu respondi que ficaram doze, aí
fomos todos pro barracão, os meus irmãos que tavam dormindo, acordaram,
acordaram os ogãns, e fomos bolar os doze, e foi num tiro só, primeiro não bolava
nunca, cantava, cantava e nada, ai eu fui no meu ronco, e falei, o mau pai o senhor
não trouxe minha mãe de tão longe pra ela ficar desmoralizada e fazer isso comigo,
me fez gastar tanto, e fiz o pedido novamente que ela tinha me ensinado antes, e
quando eu fui entrando no barracão que eu fui saldando meu santo, foi todo mundo
caindo, ficou difícil pra saber até quem bolou primeiro, eu coloquei Sud na frente de
Deise, porque Sud é de Oxossi e Deise de Iansã, mas podia por Catuezô que era o
ultimo como primeiro, porque bolou todos juntos praticamente, então como foi feito,
obedecemos a ordem do Xirê dos Orixás. A saída foi vinte e oito de Agosto.
AL - Neste momento o Muzenza dofonitinho de Oxossi pergunta ao pai-de-santo se
ele se lembra das diginas dos Iaôs do primeiro barco; que é respondida prontamente.
PE - Sim quer ver: Talazinguê (Oxossi), Lumivê (Iansã), Azonoê, Nuarê, Diressu
(Quisanga), Zazulê, Mineuam (Iemanjá), Londiri, Catuezô (Omulú), Iananguê
AL - Como se chamava o seu terreiro antes do contato direto com o Candomblé,
antesde ser “Ilê D´ifá”?
PE - Boa pergunta. Eu nunca soube por que mesmo no tempo que eu tocava só
Umbanda já tinha esse nome, lembra que eu te falei que fazia as coisas sem saber o
por que é que eu fazia, entendeu. Quando eu me decidi a mexer com a Umbanda eu já
tinha esse nome em minha cabeça à tempos, eu sabia o significado que eu procurei no
livro, mas não da forma que eu entendo hoje em dia com o conhecimento do
Candomblé, eu sabia que Ifá tinha uma assimilação com o Divino Espírito Santo, isso
na Umbanda tem.
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AL - Depois do terreiro inaugurado, como ficou a mediação entre o Universo
compreendido como Umbanda e o universo do Candomblé, pras coisas da casa
mesmo, o cotidiano?
PE - Bom, quando eu fui pra Salvador e fiz meu santo, passei pro Candomblé ficou o
conflito, porque minha mãe é só Angola, então eu não vou tocar Umbanda vou ficar
só no Candomblé, e parei com a Umbanda, fique só ali atendendo as pessoas, jogando
búzio que no máximo búzio, e o povo que tinha vindo atrás da minha mãe-de-santo e
já tinham gostado, então as glórias e os confetes ficaram pra mim, pra Edézio, então
o que acontece eu passeia gostar do Candomblé e não queria mais saber de
incorporar de preto velho de caboclo, até que aconteceram alguns detalhes, e ai eu
falei não eu tenho que agregar valores e não desagregar, e ai eu passei ter o meu
espaço de Umbanda, onde eu tina feito quarto eu fiz meu Terreiro de Umbanda, e
onde era o barracão de Candomblé ficou só pro Candomblé, aí eu conciliei, todo
sábado eu tocava Umbanda e no Candomblé realizava assim as obrigações e aí todo
mundo queria vê, por que Candomblé era uma novidade em Cuiabá, então o povo
ficou tão incutido com o trabalho no Candomblé que todos os dias tinha matança,
tinha sacodimento, tinha um não sei que pra fazer e não sobrava tempo pra Umbanda,
aí eu vi que eu tava desprezando a minha raiz principal, eu tava desagregando valores
e estava ofendendo aquilo que me fez ser o pai-de-santo que eu estava sendo, eu tava
minorando tudo,tudo vaidade, não só minha mais de outras pessoas, o que aconteceu,
essas pessoas que rasparam o santo comigo que já tinham seus laços de Umbanda
tanto quanto eu só estavam esperando uma brecha pra poder incorporar de caboclo,
então vamos chama o trabalho sábado, sábado todo mundo vinha incorporava e ficou
mais bonito, e hoje tai o terreiro, e eu acho que foi a melhor coisa que eu fiz foi junta
os dois conhecimentos, eu acho que o conhecimento nunca é demais quando se anexa
ao outro, e sempre é pequeno quando está em conflito com o outro, e é o que estava
acontecendo comigo no inicio. Então foi juntando os conhecimento do Candomblé e
da Umbanda que ficou, tanto que posteriormente surgiram grandes idéias, grandes
lutas por causa disso.
AL - Com a junção desses saberes; como ficou a relação do senhor e a sua mãe-desanto?
PE - Continuo tudo normal, por que ela sabia que quando eu raspei santo eu era chefe
de terreiro de Umbanda, continuo a mesma coisa, claro que pra ela eu deveria tocar
apenas o Candomblé, mais ela também vira no caboclo Muringanga que ela trouxe da
Umbanda.
AL - Mais não é da tradição da Nação de Angola?
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PE - Na Bahia existe o candomblé de caboclo mais o caboclo não é de Candomblé, o
caboclo é tipicamente brasileiro. Na Bahia minha mãe toca angola, angola mesmo,
por que quem fez ela veio da África mesmo, eu não to dizendo que meu terreiro não é
africano, mais não tem a origem tão próxima como ela tem. Quando ela foi feita as
idéias a filosofia não tinha sofrido influência nenhuma, então por mais que queiram
falar um monte de coisa eu tiro o chapéu pro Candomblé naquela época, porque todas
as influencias que o Candomblé daquela época teve, foram influencias necessárias
para a sobrevivência dele, eu acho que quando querem tirar isso, as influencias dessa
época está desagregando os valores que eles conseguiram juntar naquela época.

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