25 - Insight Inteligência
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25 - Insight Inteligência
24 UDN MARCUS FIGUEIREDO CIENTISTA POLÍTICO L A R O T I E L E O C A PIT “ convite ao , ROUBA MAS faz” ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 25 O I N S I G H T s resultados de uma pesquisa nacional realizada pelo Ibope, dois meses antes das eleições para as prefeituras de 2000, merecem ser reexaminados hoje, no momento em que os partidos, os políticos e a mídia se preparam para mais um pleito municipal. Essa pesquisa trata de tema central no debate pré-eleitoral: qual o interesse da população na disputa municipal e por que ela se mobiliza para votar nos governantes e legisladores de suas cidades, apesar da má fama dos políticos? A maioria (51%) declara que não votaria se o voto não fosse obrigatório. Dentre os que não votariam voluntariamente, uma parte poderia ser cativada pela disputa e participaria do processo. Outra parcela certamente preferiria ir à praia ou ficar em casa. O fato é que a grande maioria comparece e vota. Nas duas últimas eleições municipais, em 1996 e em 2000, tivemos uma taxa média nacional de abstenção de 18,3% e 15%, respectivamente. INTELIGÊNCIA Além da abstenção, temos ainda a anulação do voto como forma de declaração de desinteresse. Tomando os resultados dessa pesquisa do Ibope, verificamos que 22% declararam que anularam seus votos em alguma eleição para prefeito. Este patamar é histórico e, salvo erros de preenchimento das antigas cédulas, é um ato de vontade do eleitor: dos que disseram ter anulado o voto nada menos do que 91% declararam também que não se arrependeram de têlo feito! Trata-se, portanto, de um contingente expressivo que tem razões consistentes para não eleger um candidato. Em números redondos, podemos esperar que cerca de um terço do eleitorado deixará de escolher os futuros governantes de suas cidades. Obviamente, como nos mostra a história eleitoral, há maior incidência de votos brancos e nulos na escolha dos vereadores do que na escolha de prefeitos. M as o fato é que as eleições municipais mobilizam o eleitorado. Segundo essa pesquisa, nas eleições de 2000 a parcela da população que declarou ter pouco interesse na eleição do prefeito e dos vereadores de sua cidade era pequena: 24% e 30%, respectivamente. Este mesmo quadro se repete quando indagados sobre a sua vontade de participar na eleição municipal: enquanto 28% dizem não ter nenhuma vontade de votar para prefeito, 32% fazem a mesma declaração sobre a vontade de votar para vereador. Isto equivale a dizer que, pelo menos, 70% do eleitorado nacional estão interessados e dispostos a participarem da escolha dos governantes municipais. TABELA Preferência pelo tipo de prefeito por renda familiar (%) FAIXA DE RENDA “ROUBA, MAS FAZ” NÃO ROUBA, MAS FAZ MENOS OUTRAS RESPOSTAS / NO TOTAL Até 1 SM 54 37 9 100 De 1 a 2 54 36 10 100 De 2 a 5 48 41 12 100 De 5 a 10 40 42 17 100 Mais de10 SM 32 45 22 100 Fonte: Pesquisa Ibope, 1 a 7 de julho de 2000; amostra nacional de 2.000 entrevistas 26 UDN I N S I G H T INTELIGÊNCIA A O interesse e a vontade de participar, contudo, variam de acordo com o tamanho da cidade. A parcela da população propensa a não votar é maior nas capitais e nas cidades periféricas do que nas cidades do interior. Há desde explicações sociológicas e econômicas, que afirmam que o desinteresse decorre da baixa capacidade de intervenção dos governos municipais, que é menor ainda nas cidades maiores, afetando pouco a vida das pessoas, até explicações políticas, segundo as quais, seja por razões históricas ou por causa da mídia, as pessoas das grandes cidades dão mais importância à política nacional do que à local. Isto ocorre especialmente em se tratando de questões de segurança, inflação, política econômica etc. Nesses casos, de fato, a capacidade real de intervenção imediata das prefeituras e dos vereadores é relativamente menor do que a dos governos estadual e federal. E mbora plausíveis, estas explicações não se sustentam nos resultados obtidos nessa pesquisa: a maioria dos eleitores brasileiros acha que o trabalho dos vereadores tem importância na sua vida, independentemente do tamanho da cidade. Os resultados são os seguintes: os eleitores das cidades pequenas (até 20 mil eleitores), das cidades médias (de 20 a 100 mil eleitores) e das cidades grandes (com mais de 100 mil eleitores) declararam que o trabalho dos vereadores tem importância no seu dia-a-dia na proporção de 55%, 54% e 54%, respectivamente, contra 47%, 45% e 43% que responderam que o trabalho dos vereadores tem pouca ou nenhuma importante para o seu dia-a-dia. No entanto, paradoxalmente, 49% dos eleitores dizem que o resultado de uma eleição para prefeito não afeta em nada a sua vida pessoal! Isto é, praticamente, a metade do eleitorado nacional declara que o trabalho do prefeito eleito afeta pouco ou nada a sua vida pessoal. Este padrão de resposta se mantém inalterado nos municípios pequenos (50%), médios (51%) e grandes (47%). lém disso, nada menos do que 68% do eleitorado nacional acham que os vereadores são menos honestos do que a maioria da população que eles devem representar. No que se refere à escolha dos prefeitos a população prefere os eficientes aos honestos. Ante a opção por um “prefeito que não seja tão honesto, mas resolva os problemas do município” e “um prefeito totalmente honesto, mesmo que não seja tão eficiente”, 47% escolhem a primeira alternativa contra 40% que ficam com a segunda. A razão cínica que sustenta, e faz perdurar, a cultura do “rouba, mas faz”, embora moralmente condenável, é politicamente compreensível e tem seu fundamento no nível de carência do eleitorado (veja a tabela). Estes dados revelam uma situação dramática: a maioria absoluta da população mais carente do eleitorado está disposta a “pagar um pedágio” para obter os benefícios públicos que lhes deveriam ser oferecidos por direito! Que os eleitores não sejam culpados por sua razão cínica na hora da decisão eleitoral. Eles assim agem porque a sua história assim lhes ensinou e não têm tempo para esperar a redenção moral da humanidade para verem atendidas suas necessidades. Cabe aos políticos do tipo “não roubam” demonstrar que são capazes de aumentar sua eficiência e provar que “não roubando” esses benefícios virão em maior quantidade e qualidade no tempo necessário. Cabe aos meios de comunicação demonstrar a esses eleitores que eles são vítimas dos políticos do tipo “rouba, mas faz” e que esse jogo cínico só faz perpetuar este círculo vicioso. Este é um paradoxo para a nossa democracia: aqueles que mais precisam de políticas públicas seriamente geridas são os mesmos que ainda não acreditam que os políticos honestos sejam mais capazes de produzi-las. É claro que são. e - m a i l : m f i g u e i r e d o @ i u p e r j . b r ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 27 I N S I G H T INTELIGÊNCIA CADA VIZINHO CUIDA ANTONIO SEGUI / UPDATE ART MAGAZINE O GOVERNO DO QUE É PÚBLICO DO QUE É SEU; CADA 28 PMDB VIZINHO CUIDA DO QUE É SEU; I N S I G H T O INTELIGÊNCIA GOVERNO DO QUE É PÚBLICO CADA VIZINHO CUIDA DO QUE É SEU; Alberto CIENTISTA Almeida POLÍTICO O GOVERNO DO QUE É PÚBLICO ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 29 I N S I G H T INTELIGÊNCIA O pensamento sociológico e antropológico brasileiro é quase unânime em apontar o caráter patrimonialista da política brasileira, que se apropria privadamente do que é publico. Ainda que as causas deste fenômeno possam ser variadas — institucionais, econômicas ou culturais —, é possível fazer uma comparação das práticas políticas nacionais com o critério liberal de ação pública. Na ótica liberal, o espaço público é delimitado em oposição ao espaço privado. Isso implica em duas lógicas diferentes de atuação: gerir a coisa pública demanda impessoalismo, regras gerais e universais, transparência, e, como conseqüência, utilização do espaço público e em particular dos recursos obtidos por meio de impostos. Os recursos privados, na doutrina liberal, não estariam sujeitos a tais exigências, pois são geridos única e exclusivamente de acordo com os interesses privados de quem os têm. Para os objetivos de uma pesquisa de opinião, interessa saber se o patrimonialismo — prática comum atribuída aos políticos e àqueles que tomam decisões quanto ao uso dos recursos públicos — está restrito a uma elite ou é algo mais amplo e que tem apoio social. Oliveira Vianna, um dos pioneiros no tema da cultura patrimonialista, apontou o “complexo cultural” brasileiro caracterizado pelo espírito ausente de solidariedade e apolítico em oposição ao complexo cultural democrático europeu, no qual o povo se reunia em assembléias para deliberar sobre os assuntos que lhe diziam respeito. N a mesma vertente de análise, encontramos autores da importância de Sérgio Buarque de Holanda e Roberto Da Matta identificando o caráter democrático de tais formas de pensar. O primeiro, ao apontar que no Brasil uma ética personalista, intimista, afetiva e sentimentalista, sobrepujava a sua inimiga liberal: uma ética impessoal, racional e eficaz; e o segundo, ao chamar a atenção para o fato de que muitas vezes “a casa” englobava “a rua”. A rua é o ambiente público: na maioria das vezes inóspito, autoritário e desolador. A casa é o ambiente privado do sentimento e do afeto da família e do que é familiar. A rua é o espaço público de regras impessoais e a casa o espaço privado do particularismo. Toda vez que a casa engloba a rua a conseqüência é a utilização privada do que é púbico. Em que pese a enorme importância de tais noções no pensamento social brasileiro, e em especial da noção de patrimonialismo, tais conceitos nunca foram mensura- 30 PMDB I N S I G H T INTELIGÊNCIA dos no Brasil por meio de pesquisas de opinião. Medir junto à opinião pública não é constatar o óbvio, mas testar a hipótese de que há uma “cultura patrimonialista”, e detectar como esta percepção de cultura varia conforme a população. As perguntas desenvolvidas (quadro 1) medem a concepção de que o público é de todos e o privado/particular diz respeito a cada indivíduo. Analisando-se as perguntas pode ser notado que a noção de público que elas procuram captar vai além do público como sinônimo de algo do governo ou governamental. Público é tudo o que não diz respeito, ou não pertence, exclusivamente, ao indivíduo em questão. QUADRO 1 Perguntas para medir o patrimonialismo AGORA EU VOU LER VÁRIAS FRASES E PARA CADA FRASE EU GOSTARIA QUE O(A) SR(A) DISSESSE SE CONCORDA MUITO, CONCORDA UM POUCO, DISCORDA UM POUCO OU DISCORDA MUITO. a) Cada pessoa deve cuidar somente do que é seu, e o governo cuida do que é público. b) Se alguém se sente incomodado pelo vizinho o melhor é não reclamar. c) Se alguém é eleito para um cargo público deve usar o cargo como se fosse sua propriedade particular em seu benefício. d) Já que o governo não cuida do que é público, então também nenhuma pessoa deve cuidar do que é público. e) A pessoa que dá uma festa com som alto não se preocupa com os vizinhos. f) Ninguém deve usar as ruas e calçadas para vender produtos. g) A pessoa que constrói uma casa em um terreno público abandonado não se preocupa com o que é público. h) Um funcionário que trabalha em uma empresa não deve usar o telefone do trabalho para fazer um serviço por fora. i) Alguém que recebe dinheiro do governo brasileiro para ir estudar no estrangeiro, depois de concluir os estudos tem que voltar para trabalhar no Brasil. Este é o caso das regras de “boa vizinhança” sintetizadas na situação de “festa com o som alto” (letra e). Na situação patrimonialista, incomodar o vizinho com o som alto não é problema de quem dá a festa, mas sim um problema do vizinho (tal como no velho ditado “os incomodados que se mudem”). O espaço público do ponto de vista de quem dá a festa é formado pelo bem-estar dos vizinhos. Desconsiderar isto é tratar o público como se fosse privado. Talvez isto explique por que os países ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 31 I N S I G H T INTELIGÊNCIA mais antipatrimonialistas do mundo, os da tradição anglo-saxã, sejam tão silenciosos e as festas (quando ocorrem) terminem tão cedo. Uma outra observação importante em relação as nove perguntas da bateria sobre patriomonialismo é que elas mesclam situações gerais com situações específicas a segmentos de maior renda (estudar no exterior) e de menor renda (itens f, g). E também situações mais próximas, que dizem respeito à maioria das pessoas, e situações mais distantes. Isto é importante porque é freqüente que a aceitação de práticas patrimonialistas encontrem justificativas contextuais, algo do tipo “porque a situação era de muita dificuldade/penúria foi necessário fazer assim”. Além disso, há uma tendência de maior tolerância com práticas clientelistas quando elas nos favorecem (estão mais próximas) do que quando estão mais distantes e assim favorecem a outras pessoas (item c). Ao mesclar estas situações é possível captar a variação completa — desde situações de maior até as de menor dificuldade/penúria, das mais próximas às mais distantes — da aceitação social do patrimonialismo. TABELA 1 A aceitação social do patrimonialismo pela população brasileira DISCORDA CONCORDA 32 PMDB 1) Cada pessoa deve cuidar somente do que é seu, e o governo cuida do que é público 25 74 2) Ninguém deve usar as ruas e calçadas para vender produtos 60 39 3) A pessoa que constrói uma casa em terreno público abandonado não se preocupa com o que é público 51 48 4) A pessoa que dá uma festa com som alto não se preocupa com os vizinhos 51 48 5) Se alguém se sente incomodado pelo vizinho o melhor é não reclamar 50 49 6) Um funcionário que trabalha em uma empresa não deve usar o telefone do trabalho para fazer um serviço por fora 42 57 7) Alguém que recebe dinheiro do governo brasileiro para ir estudar no estrangeiro, depois de concluir os estudos tem que voltar para trabalhar no Brasil 30 70 8) Já que o governo não cuida do que é público, então também nenhuma pessoa deve cuidar do que é público 81 18 9) Se alguém é eleito para um cargo público deve usar o cargo como se fosse sua propriedade particular em seu benefício 83 17 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Nas situações 1, 5, 8 e 9 aqueles que respondem “concorda” são os que consideram que o espaço público tende a ser uma extensão do espaço particular e privado. Já nas situações 2, 3, 4, 6 e 7 esta mesma visão de mundo é compartilhada pelos que respondem “discorda”. As situações da tabela 1 estão hierarquizadas da mais para a menos patrimonialista. Na primeira delas, 74% da população brasileira acham que “cada pessoa deve cuidar somente do que é seu, e o governo cuida do que é público”. Na segunda situação, o percentual de respostas a favor de uma visão de mundo patrimonialista é de 60%: são as pessoas que discordam de que “ninguém deve usar as ruas e calçadas para vender produtos”. Esta proporção diminui sucessivamente para 51% nas situações 3 e 4 (são os que discordam), 49% na situação 5 (concordam), 42% e 30% nas situações 6 e 7 (discordam) e finalmente, 18% e 17% nas últimas duas situações (concordam). A aceitação social do patrimonialismo é muito grande. A situação mais extrema, aquela na qual alguém se utiliza de um cargo público como se fosse sua propriedade particular, é tolerada por 17% da população brasileira! Considerando-se a gravidade da situação é possível dizer que 17% é uma proporção bastante elevada. No extremo oposto, cerca de ¾ da população brasileira afirmam não considerar que o que é público merece ser cuidado por todos. A extensão desta forma de pensar para a esfera dos tributos implica em considerar os recursos advindos dos impostos como algo do governo e não de toda a população. Trata-se do oposto da visão republicana que advoga que o que é público é de todos e, portanto, deve ser zelado por todos. V ale assinalar que, considerando-se as situações concretas, a população tende a ser mais patrimonialista naquelas em que há maior carência material (vendedor ambulante e construção de casa em terreno público) do que nas outras duas situações de menor carência (trabalhar em uma empresa e estudar no exterior). Este resultado fornece uma clara indicação de que há uma relação entre situação material e visão de mundo quanto ao patrimonialismo. O apoio social ao patrimonialismo é maior quando se trata de oferecer condições de melhorias às pessoas mais desfavorecidas. Os dados das tabelas 2 a 7 vão mostrar que — tomando-se apenas as quatro situações nas quais a discordância é maior1 — é possível perceber que o Brasil está ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 33 I N S I G H T INTELIGÊNCIA dividido entre, de um lado, aquelas que moram em capitais, são mais jovens, têm escolaridade mais elevada e fazem parte da população economicamente ativa (PEA), e, de outro, os que moram em cidades que não são capitais, no Nordeste, são mais velhos e com escolaridade mais baixa e não fazem parte da PEA. Foram identificadas diferenças importantes entre homens e mulheres apenas em duas das quatro situações selecionadas. TABELA 2 Quem mora nas capitais tende a ser menos patrimonialista do que quem mora fora das capitais CADA PESSOA DEVE SE ALGUÉM SE CUIDAR SOMENTE DO QUE É SEU, E O GOVERNO CUIDA DO QUE É PÚBLICO SENTE INCOMODADO PELO VIZINHO O MELHOR É NÃO RECLAMAR SE ALGUÉM É ELEITO PARA UM CARGO PÚBLICO DEVE USAR O CARGO COMO SE FOSSE SUA PROPRIEDADE PARTICULAR EM SEU BENEFÍCIO JÁ QUE O GOVERNO NÃO CUIDA DO QUE É PÚBLICO, ENTÃO TAMBÉM NENHUMA PESSOA DEVE CUIDAR DO QUE É PÚBLICO DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA Outras cidades 23 77 48 52 81 19 79 21 Capital 67 57 43 90 10 88 12 33 É bastante evidente que as pessoas que moram em capitais são menos favoráveis ao patrimonialismo do que aquelas que moram em outras cidades. Nas quatro situações a diferença aproximada é de 10%, isto é, a proporção das pessoas que apóiam a utilização privada de recursos públicos é 10% maior nas cidades que não são capitais. As diferenças entre estes dois segmentos não devem, todavia, mascarar a ampla aceitação do patrimonialismo. Isto fica claramente indicado pelos resultados da primeira situação (cada pessoa deve cuidar somente do que é seu, e o governo cuida do que é público). A análise desta primeira situação para os dados que se seguem nas tabelas 3 a 7 vai sustentar esta mesma conclusão. Para cada segmento estudado, seja ele faixa de idade, de escolaridade, ou região do país, o apoio ao ponto de vista patrimonialista será sempre da ordem de 70% do segmento. Trata-se de um número muito grande. A única exceção é para aqueles que têm o curso superior completo (tabela 7) cuja proporção de apoio ao patrimonialismo cai para 53%. 34 PMDB I N S I G H T INTELIGÊNCIA TABELA 3 Os habitantes do Nordeste são mais patrimonialistas do que as pessoas que moram nas demais capitais do Brasil CADA PESSOA DEVE SE ALGUÉM SE CUIDAR SOMENTE DO QUE É SEU, E O GOVERNO CUIDA DO QUE É PÚBLICO SENTE INCOMODADO PELO VIZINHO O MELHOR É NÃO RECLAMAR SE ALGUÉM É ELEITO PARA UM CARGO PÚBLICO DEVE USAR O CARGO COMO SE FOSSE SUA PROPRIEDADE PARTICULAR EM SEU BENEFÍCIO JÁ QUE O GOVERNO NÃO CUIDA DO QUE É PÚBLICO, ENTÃO TAMBÉM NENHUMA PESSOA DEVE CUIDAR DO QUE É PÚBLICO DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA Norte 30 70 49 51 75 25 81 19 Centro-Oeste 30 70 54 46 91 9 86 14 Nordeste 23 77 41 59 75 25 70 30 Sudeste 25 75 55 45 86 14 86 14 Sul 28 72 55 45 88 12 88 12 Os resultados da PESB mostram claramente que em todas as quatro situações a proporção dos que defendem um ponto de vista patrimonialista é maior no Nordeste. Destaca-se a quarta situação (já que o governo não cuida do que é público, então também nenhuma pessoa deve cuidar do que é público) para a qual a proporção do apoio social ao patrimonialismo é mais de duas vezes maior no Nordeste (30%) do que nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul (14%, 14% e 12% respectivamente). N a primeira situação, a principal diferença relevante é entre o Nordeste e as demais regiões. Na segunda situação há outras diferenças importantes. Não apenas o Nordeste é mais patrimonialista, mas também os habitantes das regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul são menos patrimonialistas do que a média nacional. Na terceira situação notam-se também diferenças relevantes que vão além da situação do Nordeste. Os menos patrimonialistas são os habitantes das regiões Centro-Oeste, seguidos de Sudeste, Sul e Norte. Fica bastante evidente que em uma hierarquia das populações das cinco grandes regiões do Brasil têm-se os nordestinos no extremo mais patrimonialista, seguidos dos habitantes da Região Norte, depois os moradores do Sudeste e por fim Centro-Oeste e Sul empatados no extremo menos patrimonialista. ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 35 I N S I G H T INTELIGÊNCIA TABELA 4 Quem mora nas capitais tende a ser menos patrimonialista do que quem mora fora das capitais CADA PESSOA DEVE CUIDAR SOMENTE DO QUE É SEU, E O GOVERNO SE ALGUÉM É ELEITO PARA UM CARGO PÚBLICO DEVE USAR O CARGO COMO SE FOSSE SUA PROPRIEDADE PARTICULAR EM SEU BENEFÍCIO CUIDA DO QUE É PÚBLICO DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA Masculino 22 78 81 19 Feminino 29 71 85 15 A pesquisa identificou algumas diferenças entre homens e mulheres. Ainda que não se apliquem às quatro situações selecionadas, nota-se que os homens tendem a ser um pouco mais patrimonialistas do que as mulheres. TABELA 5 Os mais velhos tendem a ser mais patrimonialistas do que os mais jovens CADA PESSOA DEVE SE ALGUÉM SE CUIDAR SOMENTE DO QUE É SEU, E O GOVERNO CUIDA DO QUE É PÚBLICO SENTE INCOMODADO PELO VIZINHO O MELHOR É NÃO RECLAMAR SE ALGUÉM É ELEITO PARA UM CARGO PÚBLICO DEVE USAR O CARGO COMO SE FOSSE SUA PROPRIEDADE PARTICULAR EM SEU BENEFÍCIO JÁ QUE O GOVERNO NÃO CUIDA DO QUE É PÚBLICO, ENTÃO TAMBÉM NENHUMA PESSOA DEVE CUIDAR DO QUE É PÚBLICO DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA 18 a 24 29 71 61 39 84 16 88 12 25 a 34 26 74 53 47 89 11 86 14 35 a 44 27 73 54 46 82 18 81 19 45 a 59 25 75 45 55 82 18 80 20 60 ou mais 17 83 36 64 76 24 68 32 O apoio social ao patrimonialismo varia muito de acordo com a idade. Na primeira situação (cada pessoa deve cuidar somente do que é seu, e o governo cuida do que é público) a única diferença relevante é entre as pessoas acima de 60 anos e as demais faixas de idade consideradas em conjunto. Na segunda situação (se alguém se sente incomodado pelo vizinho o melhor é não reclamar) há muitas diferenças relevantes. Os mais jovens são claramente menos patrimonialistas (39% para as pessoas de 18 a 24 anos) e esta proporção vai aumentando gradativamente até atingir o máximo na faixa de idade mais elevada (64%). 36 PMDB I N S I G H T INTELIGÊNCIA Na terceira situação (se alguém é eleito para um cargo público deve usar o cargo como se fosse sua propriedade particular em seu benefício), há duas variações muito relevantes: as pessoas da faixa de 25 a 34 são as que mais se opõem a ela e as pessoas acima de 60 anos são as que mais apóiam (24%) a alternativa patrimonialista. Por fim, na quarta situação há um crescimento monotônico do apoio social ao patrimonialismo dos mais jovens para os mais velhos. TABELA 6 As pessoas que fazem parte da População Economicamente Ativa (PEA) tendem a ser menos patrimonialistas do que as pessoas que não fazem parte da PEA CADA PESSOA DEVE SE ALGUÉM SE CUIDAR SOMENTE DO QUE É SEU, E O GOVERNO CUIDA DO QUE É PÚBLICO SENTE INCOMODADO PELO VIZINHO O MELHOR É NÃO RECLAMAR SE ALGUÉM É ELEITO PARA UM CARGO PÚBLICO DEVE USAR O CARGO COMO SE FOSSE SUA PROPRIEDADE PARTICULAR EM SEU BENEFÍCIO JÁ QUE O GOVERNO NÃO CUIDA DO QUE É PÚBLICO, ENTÃO TAMBÉM NENHUMA PESSOA DEVE CUIDAR DO QUE É PÚBLICO DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA Não PEA 23 77 45 55 79 21 77 23 PEA 27 73 53 47 85 15 84 16 Os dados da tabela 6 revelam claramente que as pessoas que trabalham são menos patrimonialistas do que aqueles que não fazem parte da PEA. Isto pode ser verificado em todas as quatro situações analisadas. TABELA 7 As pessoas de escolaridade mais alta tendem a ser menos patrimonialistas do que as pessoas de escolaridade mais baixa CADA PESSOA DEVE SE ALGUÉM SE CUIDAR SOMENTE DO QUE É SEU, E O GOVERNO CUIDA DO QUE É PÚBLICO SENTE INCOMODADO PELO VIZINHO O MELHOR É NÃO RECLAMAR SE ALGUÉM É ELEITO PARA UM CARGO PÚBLICO DEVE USAR O CARGO COMO SE FOSSE SUA PROPRIEDADE PARTICULAR EM SEU BENEFÍCIO JÁ QUE O GOVERNO NÃO CUIDA DO QUE É PÚBLICO, ENTÃO TAMBÉM NENHUMA PESSOA DEVE CUIDAR DO QUE É PÚBLICO DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA Analfabeto 20 80 27 73 60 40 50 50 Até 4ª série 15 85 37 63 69 31 67 33 De 5ª à 8ª série 20 80 45 55 83 17 82 18 2º grau 31 69 62 38 95 5 95 5 Superior ou + 47 53 78 22 97 3 98 2 ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 37 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Dentre todas as variáveis analisadas anteriormente nada se compara às diferenças existentes entre as faixas de escolaridade. Fica bastante evidente que existe uma grande distância entre as visões de mundo dos dois extremos de escolaridade — analfabetos e pessoas que têm o grau superior completo. As diferenças mais pronunciadas entre tais faixas ocorrem na terceira e quarta situações, ainda que também sejam grandes nas duas primeiras situações. Na terceira situação a proporção de analfabetos que apóia o patrimonialismo (40%) é aproximadamente 13 vezes maior do que esta mesma proporção na faixa superior completo. Na quarta situação há proporcionalmente 25 vezes mais analfabetos defensores de uma visão de mundo patrimonialista do que na faixa de superior completo! Nos dois casos trata-se de uma diferença muito grande nas visões de mundo de diferentes grupos sociais e por isso mesmo raramente encontrada em pesquisas de opinão. U ma outra variação que merece destaque diz respeito ao ponto de inflexão representado pela faixa de escolaridade de segundo grau completo. Nas quatro situações as variações mais significativas do ponto de vista estatístico ocorre quando se passa do primário para o segundo grau completo. Não está se afirmando que as mudanças de opinião entre as demais faixas não sejam relevantes, mas apenas que a mudança mais significativa ocorre entre estas duas faixas. É possível, portanto, afirmar que, no longo prazo, a visão de mundo patrimonialista ficará mais fraca no Brasil em função do aumento da escolaridade média da população e em particular em função da ampliação do ensino médio. O APOIO SOCIAL AO PATRIMONIALISMO E À CORRUPÇÃO O conceito de patrimonialismo é o próprio cerne da noção de corrupção. Isto significa que quanto mais uma pessoa acha correto e defende valores patrimonialistas, mais ela tenderá a ser tolerante em relação à corrupção e práticas correlatas. Neste sentido, os dados da PESB permitem concluir que as pessoas de escolaridade mais baixa aceitam mais a corrupção do que as que têm o grau superior completo. A população do Nordeste convive melhor com a corrupção do que os habitantes da Região Sul. Os mais velhos ficam menos indignados do que os mais jovens em relação aos escândalos de corrupção. 38 PMDB I N S I G H T INTELIGÊNCIA Tão importante quanto essa conclusão é o fato de que a PESB permitiu mapear e identificar o forte apoio social ao patrimonialismo e à corrupção. Os dados são muito claros e nos permitem concluir que a corrupção não é um fenômeno circunscrito a uma elite política sem ética e perversa. Os valores patrimonialistas são fortemente arraigados junto à população brasileira. A elite política, todos sabemos, não apenas vem da população mas também tem que prestar contas a ela. Que tipo de pressão sofre um político eleito em grande parte por pessoas que formam os 17% que consideram correto usar um cargo público como se fosse sua propriedade particular em seu próprio benefício? Alguns podem argumentar se tratar de um caso extremo. Assim, o eleitor que concorda que o governo cuide do que é público enquanto ele se dedica exclusivamente ao que é seu, está dando, na prática, uma carta-branca aos governantes. Para o eleitor, a própria noção de representação não vai muito além da escolha livre de um político para fazer o que bem entender. Esta visão de mundo encontra apoio em nada mais nada menos do que 74% da população brasileira. O resultado é que a margem de manobra dos políticos é muito maior do que seria em um contexto social no qual o apoio ao patrimonialismo fosse menor. Portanto, não surpreende que a corrupção e as práticas a ela assemelhadas sejam tão comuns. e - m a i l : a a l m e i d a @ f g v . b r NOTA 1. Estas situações foram selecionadas depois de realizada uma análise estatística que permitiu identificar quais das 9 situações da bateria de perguntas sobre o patrimonialismo eram as que mais diferenciavam a população. ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 39 I N S I G H T INTELIGÊNCIA a áspera SIMBOLOGIA PEDRO PAULO DE OLIVEIRA 42 PV SOCIÓLOGO I N S I G H T INTELIGÊNCIA do MACHO moderno ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 43 l I N S I G H T eonardo (Leo para os íntimos) é um intelectual em ascensão. Convidado para falar numa conferência sobre gênero e violência (ele é especialista em crimes urbanos) depara-se com um inusitado questionamento: uma jovem negra, militante feminista, lhe pergunta à queima-roupa: o que você vê quando se olha no espelho todos os dias? Atônito, responde: um ser humano. Ao que a jovem replica: pois eu me vejo todos os dias como uma mulher, negra, pobre e lésbica. Pugna sublimada e deslocada do ringue físico por argumentos e raciocínios mentais. José (Zé para todos) está desempregado e vai até o boteco instalado na esquina da favela esperar que algo aconteça, após ter dado um murro em sua companheira por esta perguntar-lhe sobre cinco reais que sumiram da gaveta. Pugna real, com ringue aberto e com direito a dores musculares, sangue e violência explícita. Sentado nos degraus da escada que fica ao lado do bar, ouvindo ainda os gritos de incapaz, frouxo e outros adjetivos nada edificantes, ele pensa naquela dose e no time do coração que à noite disputa uma vaga na Libertadores. Dois homens, duas trajetórias, e naquela tarde, dois contratempos: ambos questionados por mulheres. Num caso, um constrangimento será diluído pelas discussões acadêmicas e pode voltar a ser tema de conversas com o terapeuta. Noutro, uma sensação de insatisfação que será diluída na cachaça e na expectativa de vitória de um símbolo masculino onde o objetivo é meter a bola lá entre as traves adversárias. Seria possível dizer que eles vivenciam dois tipos diferentes de masculinidade? Penso que esta não é a melhor estratégia para refletirmos sobre o assunto. Talvez fosse melhor apontar perspectivas diferenciadas possibilitadas pela condição de classe e situação cultural para a vivência masculina. Até bem pouco (três ou quatro décadas), ser homem era algo em si positivo. O nascimento de um bebê masculino representava para muitas famílias um bom começo (desconfio que em muitos lares ainda ocorre o mesmo). Ser um varão era, de saída, um cacife (físico, bioanatômico) pessoal, considerável. Os símbolos sociais positivos estavam ao lado do ser masculino. E isto tem uma história. 44 PV INTELIGÊNCIA A modernidade elegeu como modelo glorificado a díade soldado/trabalhador. Ao invés do apenas brutalizado cavaleiro medieval, a sociedade burguesa transformou essa díade em um de seus ícones de valor social bastante alto. O soldado era formado, ao contrário da legião de mercenários, como aquele agente masculino devotado à pátria pronto para proteger os Estados nacionais emergentes. O trabalhador, por sua vez, encarnava os ideais de serenidade, agente industrioso e laborioso, responsável pai de família. Esse símbolo foi alvo de “investimento” (palavra adequada na modernidade capitalista) por todas as instituições que emergiram naquele instante: igrejas, Estados, ciência, direito etc. u m fato, que mais parece uma anedota, ilustra bem como as ciências participaram do culto ao macho que a modernidade assistiu e nele insistiu. Londa Schiebinger mostra num de seus trabalhos como os anatomistas do século XVIII descreviam os esqueletos das mulheres com pélvis e crânio menores do que os dos homens. Esse tipo de descrição, que não se baseava em nenhuma análise efetiva do esqueleto feminino, servia para ratificar a idéia segundo a qual o cérebro masculino era mais propenso a se desenvolver intelectualmente do que o feminino. Qual não foi a surpresa desses cientistas quando se verificou o inverso, ou seja, que, estatisticamente falando, havia em média mulheres com crânios maiores do que os dos homens. Independentemente da inexatidão de observação do material de análise, os cientistas rapidamente se apressaram a reorganizar os argumentos para que se mantivesse a idéia de uma superioridade masculina, associando então o crânio maior das mulheres com a insuficiência cognitiva e a infância, pois bastava uma observação direta para verificar que são os bebês aqueles que possuem maiores crânios relativamente ao resto de seu corpo.1 o I N S I G H T INTELIGÊNCIA utro exemplo. As leis e todo o aparato jurídico de alguma forma sempre forneceram apoio ao que se pode chamar de dominação masculina no campo das relações de gênero. No código napoleônico, artigo 213, havia a explicitação, em forma de lei, da seguinte prescrição: o homem deve à sua mulher proteção, ao passo que ela deve a ele respeito e obediência.2 Neste singelo enunciado legal está estabelecido o regime de assimetria entre os gêneros, atribuindo-se ao dominador a função de proteger enquanto se relega ao submisso a explícita ordenação da obediência e sujeição. Mais próximo de nós temos o caso do nosso Código Civil em que até muito recentemente era possível verificar claramente a existência de leis atribuindo ao homem uma série de prerrogativas em que a mulher aparecia de modo subordinado e inferiorizado. Muitas outras esferas da vida social apoiaram a idéia de supremacia simbólica do homem em relação à mulher, que se manteve durante toda a modernidade. Em vista de tais apoios, o masculino emergirá como um símbolo de superioridade quando comparado ao feminino. A mudança nesta dinâmica de domínio masculino vai começar a ser delineada em função de transformações socioculturais que são desencadeados após a Segunda Guerra Mundial. A expansão capitalista irá aos poucos, mas também muitas vezes de modo célere, desconstruindo hierarquias sedimentadas por práticas consuetudinárias durante muitas décadas e gerações. Dentre tantas alterações, a inclusão de mulheres no mercado de trabalho terá um efeito decisivo para os novos rumos que guiarão as relações entre os sexos, causando impactos em muitas outras esferas da sociabilidade contemporânea. É comum ouvir-se falar da importância que o movimento feminista teve para as mudanças sociais, mas qua- ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 45 I N S I G H T INTELIGÊNCIA se não se fala sobre as condições macroestruturais que possibilitaram a emergência desse e também de outros movimentos que já foram de modo bastante feliz classificados como as “políticas de identidade”. Cria-se a partir dessa omissão a idéia de que tais mudanças são fruto de um voluntarismo militante responsável em última análise pelas transformações, o que expressa uma ingenuidade de análise e favorece a mistificação em voga da ação livre, homóloga à idéia do self-made man tão congenial ao capitalismo. O machismo e qualquer outra forma de dominação arbitrária que aparece legitimada pela naturalização das diferenças bioanatômicas transformadas em essências imutáveis, podem e devem ser combatidos e criticados. O interessante é perceber como esse macho até então valorizado em sua posição de domínio deve ser agora liberado dos essencialismos tradicionais para, entre outras coisas, se transformar no agente consumista que aumenta as vendas das indústrias de cosméticos, modas e fitness. Tudo o que tem a ver com a diferença é extremamente valoroso para a diversificação e libertação de hábitos ossificados pelas tradições, que podem obstar a flexibilização das práticas de consumo. Essa visão que associa a imbricação entre interes- 46 PV I N S I G H T INTELIGÊNCIA agressividade impulsiva, entre outros pares possíveis, que se não são antagônicos, certamente não são complementares), ela aparece como algo que se imiscui e se imbrica com outras dimensões da vida social. Seguindo a linha de raciocínio de Pierre Bourdieu3, o masculino, enquanto símbolo social que se opõe ao feminino, vincula-se à imagem do dominante, ativo, penetrante, forte, pesado, hard, grande, duro etc. Já ao símbolo do feminino ficam reservadas as imagens do passivo, penetrado, fraco, leve, soft, pequeno, delicado, oscilante etc. Uma homologia complementar em que às imagens de dominação associamse características assumidas como masculinas, ao passo que as imagens de subordinação relacionam-se com o feminino. ses de mercado com o diferencialismo identitário tão bem explicitado pelas políticas de identidade é condenada pela militância como retrógrada e assim submerge nas palavras de ordem que resistem a qualquer análise distanciada do clamor panfletário. Mas esse movimento diferencialista favorece e muito a idéia de um homem soft que não deve se prender à cartilha moderna do soldado/trabalhador, macho inquestionável, pois acima de qualquer suspeita. As mudanças socioculturais possibilitaram a emergência de movimentos que ousaram questionar a naturalidade da dominação masculina a ponto de se anunciar uma crise da masculinidade. Mas será que os símbolos associados ao masculino estão realmente em crise? Acho que se deve amenizar a força dessa tese e ver em que circunstâncias ele pode ou não fazer algum sentido. Os símbolos sociais são o repertório constituído culturalmente que fomentam a constituição de fantasias subjetivas responsáveis pela formação de identidades pessoais. A masculinidade pode ser vista como um grande símbolo. Ainda que seja composta por elementos contraditórios quando analisados em separado (responsabilidade e ousadia, ou capacidade de raciocínio lógico / formal e 48 PV e sta visão sumária aponta para a complexidade da vida social em que os símbolos de gênero associam-se com imagens que carregam prejulgamentos e favorecem juízos favoráveis e depreciativos de acordo com uma associação que não se explicita de modo claro, mas que funciona pela reiteração contínua em diversas situações de interação entre os agentes. Assim associar a idéia de que a França é a pátria dos perfumes e da moda, contrasta com uma visão em que a Alemanha é um país de determinação e força, operando nesta comparação conteúdos de gênero imbricados com modelos estereotipados, assumidos na representação de modo não totalmente clara e consciente que os agentes fazem destes países. Isso vale também para inúmeras outras realidades. I N S I G H T INTELIGÊNCIA de homem ou então representar papel de cavalheiro em A conexão entre as representações assumidas pelos agentes e os símbolos cultivados só é possível porque há um trabalho histórico contínuo e reiterado que procura naturalizar o arbitrário (a dominação de um gênero sobre o outro). a masculinidade se mantém como símbolo apropriado pelos varões porque constitui um elemento positivo de construção identitária e é reatualizada nas vivências e interações entre eles. Atos tão distintos e isolados como dar um murro na mesa e gritar durante uma partida de truco, engajar-se em brincadeiras ou situações violentas (brigas, troca de insultos, aplicação de castigos), flertar dizendo palavras pouco refinadas no ouvido de mulheres na rua, promover tumultos e atos de vandalismo aos bandos e em lugares públicos, estádios de futebol, assumir uma postura corporal mais rígida em situações em que se queira mostrar-se inabalável, negar-se a assumir alguns sentimentos tidos como não masculinos, reagir a desafios lançados por outros homens, desafiar outros homens, debochar e zombar de colegas por comportamentos e atitudes supostamente pouco masculinas, promover rachas, contar piadas e lançar invectivas e anátemas contra mulheres e pessoas homo-orientadas, bater e surrar estas mesmas pessoas, vangloriar-se de conquistas sexuais (verdadeiras ou fantasiosas) junto a outros homens, fazer uso de substâncias tóxicas ou álcool no intuito de se mostrar respeitável frente a uma platéia, dar cavalo-de-pau com carro ou moto para se fazer notar por outros, segurar nos genitais em público de modo aparentemente displicente, envolver-se em situações de risco para vanglória imediata ou posterior, assumir de maneira exibicionista responsabilidades tidas como típicas situações específicas; todas essas atitudes, além de muitas outras, enquadram-se dentro daquilo que chamo de vivências interacionais da masculinidade. São acionadas dentro de contextos específicos, expressam simbolicamente valores, afetam e influenciam outras vivências (dos próprios e de outros agentes) e efetivam uma dupla constituição: participam do processo reiterado de configuração da identidade subjetiva, ao mesmo tempo em que reatualizam (“vivificam”) e mantêm o horizonte simbólico que avaliza tais vivências. Partindo do pressuposto de que todo agente busca sempre melhorar sua posição social ou ao menos manter aquela em que se encontra por considerá-la adequada, se pensarmos o masculino como um símbolo positivo que estimula uma apropriação e incorporação de suas prescrições comportamentais como signo de honra e prestígio, será interessante verificar a possibilidade de conversão da atitude masculina como sinal de distinção positiva. Uma vez naturalizada pelo trabalho histórico das instituições e dos agentes como algo positivo e bom, os símbolos da masculinidade e suas prescrições comportamentais configuram o ser masculino como o dever-ser socialmente esperado e sancionado, passível de atribuir aos que a ele aderem, na formulação historicamente caracterizada como normal e, portanto, como norma comportamental, os símbolos do prestígio. Aos que não seguirem estas normas reservase-lhes um destino social estigmatizado e vexatório, marcado pelo desprezo dirigido àqueles seres vistos como inferiores e anormais. Ser um varão nos moldes tradicionais do soldado/trabalhador deve constituir a meta a ser perseguida para que se possa auferir os lucros simbólicos de se pertencer à categoria dos humanos prestigiados. Todas estas construções e conexões operam de modo pouco visível e de forma não consciente na vida dos agentes. ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 49 I N S I G H T A partir das transformações já comentadas é que se pôde aventar a possibilidade de se questionar tais prescrições, buscando impedir a conversão imediata entre comportamento masculino sancionado e o prestígio, a dignidade, a honra. Agora podemos voltar aos nossos personagens iniciais. Leo é um agente de classe média, intelectual. Sua posição de classe lhe permite relativizar os lucros que ele pode retirar de sua condição masculina. Ele pode ser reconhecido por ser branco, de classe média, professor etc. Suas marcas invisíveis são a condição de ser humano privilegiado. Suas conquistas não são imputadas ao seu corpo físico, mas à sua capacidade intelectual. Nem mesmo seus combates são físicos. Com relação à masculinidade, as demandas para corresponder a uma imagem de macho integral, se a ele chegarem como opressivas, poderão ser compartilhadas com um terapeuta e compor matéria de jornais e revistas sobre a crise da masculinidade. Já para Zé, abandonar a masculinidade, vista por alguns homens softs como opressiva, é abrir mão de uma das poucas possibilidades de poder simbólico que ele ainda tem acesso, a única coisa que está invisível para ele no espelho, ser homem, ainda que esta masculinidade tenha como centro o seu corpo: proezas sexuais, esportes viris e masculinos, trabalho braçal etc. De resto ele só vê ali naquele espelho, excluída sua masculinidade, a pobreza, o desemprego, o alcoolismo. O poder de ser macho, de ter, em tese, algum poder sobre as mulheres, poder desclassificá-las ou tomálas como alvo de assédio ou chacotas. Na realidade uma caricatura de poder, mas ainda assim algum poder. 50 PV INTELIGÊNCIA O machão incondicional não desapareceu e nem tão cedo vai desaparecer de cena, pois a taxa de conversão entre masculinidade e poder simbólico ainda anda alta nas interações moduladas por estruturas mentais e subjetivas bem alinhadas com este câmbio. Em função disso pode até mesmo seduzir esses agentes de classe média impregnados por uma fantasia de violência que lhes compense algum déficit imaginário de poder, ou seja, alguma impotência, caso dos pitboys de plantão e outros descompensados. Quando ouvirmos falar de crise da masculinidade, saibamos, de antemão, que isto é mais um assunto que cai bem ao gosto da classe média, aquela mesma que pode, dependendo de conjunturas favoráveis, fazer essa taxa de conversão ser um pouco depreciada, isto porque os agentes masculinos deste segmento podem lançar mão de outras características e trunfos pessoais para adquirir no mercado dos bens simbólicos o prestígio e a dignidade que os homens de classe popular jamais poderão acionar. Reféns de seu corpo, sempre e cada vez mais masculino e brutalizado, vivem da mão para a boca e se agarram às poucas migalhas de poder simbólico que sua condição masculina ainda pode lhes reservar. e - m a i l : p p o l i v e i r a @ i u p e r j . b r NOTAS 1. SCHIEBINGER, L. Skeletons in the closet: the first illustration of the female skeleton in Eighteenth-Century anatomy. In: GALLAGHER; LAQUEUR (Eds.). The making of the modern body: sexuality and society in the Nineteenth-Century. Berkeley: University of California Press, 1987. 2. MOSSE, George. The image of man. The creation of modern masculinity, p. 54. 3. BOURDIEU, P. La domination masculine, 1998. I N S I G H T 52 PPS INTELIGÊNCIA I N S I G H T INTELIGÊNCIA A HORA E A VEZ DE (FALECIDO) O AMERICANO TRANQÜILO ISABEL LUSTOSA SOCIÓLOGA ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 53 I N S I G H T D as imagens impressionantes que apareceram na imprensa sobre os maus-tratos que os americanos andam infligindo aos iraquianos nada mais apavorante do que aquela de um homem nu, tentando se proteger ou cobrir suas intimidades dos cães ferozes que soldados atiçam contra ele. Ou outra, parecida, de um sujeito vestido, sentado, e imobilizado pelo pavor, com o pescoço ferido pelo que poderia ter sido uma mordida, sendo ameaçado também por um cão. Essas imagens remetem à violência e se assemelham àquela cena de 1984, de George Orwell, onde para fazer o protagonista abdicar de seu amor por uma mulher não-aprovado pelo Big Brother, uma ratazana faminta é colocada em uma espécie de máscara presa ao seu rosto. E ele abdica mesmo. As outras fotos, de corpos nus, empilhados ou simulando atos sexuais, ou ainda de um corpo despido, coberto de excrementos, com os braços abertos, remetem à violação maior da dignidade humana. Do desrespeito aos valores do povo conquistado. As notícias que as acompanham, de violência sexual, de gente sendo obrigada a tirar sua comida de vasos sanitários, ou sendo obrigada a amaldiçoar seu deus, são notícias da degradação, notícias de uma guerra suja. Tão ou mais suja do que foi a guerra do Vietnã, cujas imagens de violência e barbárie voltam hoje às páginas dos jornais, fazendo pendant com as do Iraque e impondo a inevitável comparação. 54 PPS INTELIGÊNCIA Mas o que mais desconcerta, nas terríveis fotos de hoje, é a carinha marota daquela soldado de 21 anos que arrasta um iraquiano nu pela coleira, ou que sorri, levantando o dedo em sinal positivo diante do corpo morto e desfigurado pela tortura de um outro prisioneiro. Aquela carinha risonha é a carinha das crianças e mocinhas americanas das séries que nos acostumamos a ver na nossa infância, é o mesmo sorriso da Jeannie é um gênio, é a mesma simpatia apple-pie da Doris Day, é a cara boa, saudável e bem alimentada da América que aprendemos a amar através das propagandas dos sabonetes e dentifrícios da Gessy Lever, dos seriados da sessão da tarde, dos desenhos de Norman Rockwell e dos adoráveis filmes de Frank Capra. Por isso, talvez seja uma hora boa para reler O americano tranqüilo, de Grahan Greene. Para os que têm menos tempo, no ano passado foi lançada uma versão para o cinema — The Quiet American, dirigido por Philip Noyce, já nas locadoras de vídeo — que, mesmo não sendo um grande filme, mesmo não tendo conseguido captar em sua essência mais sutil, o espírito cool, desencantado e irônico de Greene, vale a pena ver. I N S I G H T INTELIGÊNCIA A história se passa na Saigon de 1952, em meio ao conflito pela libertação do domínio francês. O protagonista é o jornalista inglês, Thomas Fowler, um homem de meia-idade, correspondente do London Times, que se deixara esquecer na Indochina, entre uma garrafa de uísque, umas tragadas de ópio e uma bela oriental: Phuong. A chegada de Alden Pyle dos EUA, um jovem idealista, militante da política norte-americana de ajuda aos países em desenvolvimento, altera a situação. Aproximando-se de Fowler, com aquela simplicidade e a boa-fé tão típicas de seus compatriotas, o rapaz se choca com o desencantado cinismo com que Fowler conduz sua vida. Movido pelo mesmo espírito salvacionista que o levara à Indochina o rapaz decide conquistar a namorada de Fowler prometendo casar-se com ela e levá-la para a América. Fowler era casado na Inglaterra e sua mulher, de quem já vivia separado, lhe recusava o divórcio. A história desse triângulo amoroso se desenrola em meio a uma série de revelações sobre a verdadeira missão de Pyle. Esta era muito menos inocente do que ele quis levar Fowler a acreditar. O americano tranqüilo foi escrito em 1953, bem antes do que nós costumamos considerar como a guerra do Vietnã propriamente dita. A guerra dos americanos no Vietnã veio suceder à guerra que os antigos colonizadores franceses combateram lá durante mais de dez anos, sacrificando nela o melhor de sua força militar. A guerra dos americanos que nos vem sendo revelada pelo seu cinema desde o Amargo regresso, passando pelo Nascido em 4 de julho e por Apocalipse now estava começando justamente quando lá chegou Greene para trabalhar como correspondente da revista Life, em 1952. O livro — e o filme — mostram o momento exato em que a presença americana começou a superar a presença francesa na Indochina. Através das desventuras do seu alter ego, Greene revela e denuncia as entranhas do processo, a perversa estratégia americana para convencer o mundo do perigo que representava o avanço comunista no Extremo Oriente. É o começo da grande armação para fazer com que a opinião pública mundial apoiasse a intensificação da presença americana no Vietnã. Para tanto era aceitável criar notícias falsas mesmo à custa de dezenas de vidas inocentes. Assim é que a trama e Pyle, O americano tranqüilo, revelam suas reais dimensões na cena dramática da bomba explodida numa praça central de Saigon. ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 55 I N S I G H T O que vem depois está nos livros de história. O que torna o livro/filme tão atual é a repetição da mesma estratégia — com recursos mais sofisticados — agora no Oriente Médio. É a maneira como Greene conseguiu estabelecer uma associação tão inteligente entre a lógica dessa estratégia e a imagem que os americanos têm de si e de seu papel no mundo. Em Greene também os velhos ideais da democracia americana que hoje vêm sendo novamente agitados, já funcionam de forma a sofismar os mesmos interesses econômicos. O interessante para se pensar é como esse discurso consegue ainda convencer o mesmo eleitorado branco que ainda votará em Bush nas próximas eleições. O espírito do bom-meninismo, na expressão de Raymond Aron, já havia sido identificado por Alexis de Tocqueville em seu A democracia na América (1835). Espírito eivado de boas-intenções e pouco afeito a críticas, está na essência de uma identidade nacional de classe média, onde predominam os interesses de conservação do bem-estar, da propriedade e do trabalho e que refletem-se na produção cinematográfica a que nós — americanos de outra estirpe — temos tido acesso. 58 PPS INTELIGÊNCIA A América resplandece de ideais humanitários e de ações grandiosas em meio às ilustrações de Norman Rockwell, onde os semblantes rosados e sorridentes de um povo simples e feliz nos encantam e sensibilizam. Nos filmes de Frank Capra, com Jonh Doe — o homem comum deste povo comum — que levanta as massas rumo ao fascinante ideal da solidariedade entre vizinhos de bairro, ou em “Mr. Smith goes to Washington”, em que o superchefe dos escoteiros chega ao Senado — como senador, vale acrescentar — para lutar por um campo nacional de escoteiros. É claro que, tanto o momento fundador desses ideais, quanto a renascença deles no New Deal de Roosevelt, tão bem resignificados nos filmes de Capra e nos desenhos de Rockwell, estão longe, assim como está longe a época da inocência. Ou talvez esta tenha sido sempre representada de maneira hipócrita, nessa arte genialmente bondosa, edulcorada, adorável como o sorriso de Doris Day. Representação idealizada de um mundo yankee, onde não havia lugar para índios, negros ou chicanos. Algo que, agora, assusta ao professor Samuel Huntington a se perguntar, em seu último livro, “quem somos nós?” (eles, os americanos, não os chicanos, negros ou índios). I N S I G H T INTELIGÊNCIA Sem jamais se adaptar, sem jamais se casar realmente, sinceramente, com o lugar, e com alguém do lugar, são sempre estrangeiros, expatriados, gente de lugar nenhum. Acabam por se ligar a alguma bela nativa, cujas opções afetivas são orientadas pelos dramáticos problemas de sobrevivência e que nada entendem do que se passa com aquele estrangeiro que apenas por acaso lhes caiu nas graças. E para aquele estrangeiro esse amor irreal, amor de desesperançado, amor utilitário sem qualquer comunicação de espírito, se transforma numa espécie de último bote a que ele se agarra para não se afundar de vez. Se o protagonista é sempre o mesmo, se a situação de inglês deserdado pela pátria, de inglês que, como Fowler E m O americano tranqüilo, Greene conseguiu reunir em um personagem a pureza das verdades democráticas, a simplicidade da fé inquebrantável na família e na liberdade em luta num mundo em que o torpe regime comunista tentava pôr suas garras. É nesse insight realmente genial de Greene que o filme falha. Falha pois não consegue dar conta dessa imensidade de sentidos que a idéia de americano tranqüilo trás em si. Na Indochina, Greene pôde perceber as dimensões da verdadeira bomba-relógio, que se escondia na mentalidade expressa nos tantos filmes de papais sabe tudo, lassie, enfim, todos aqueles adoráveis lares americanos para os quais o personagem que justifica o título do livro sonhava um dia voltar. Ninguém melhor do que Michael Caine para viver Thomas Fowler, mais um dos típicos europeus encongainé como dizem os franceses, da galeria de Greene. Tipo do europeu destruído, fracassado, que os azares da fortuna acabaram por levar a algum lugar nos trópicos, onde vão cozinhar no álcool, sob o sol escaldante, ou no calor úmido da selva, as suas frustrações de europeu gorado, de branco que não deu certo. E, como não existe pecado do lado de baixo do Equador, encontram na desordem, na corrupção, no contexto político e social meio safado das republiquetas latinas e orientais o ambiente propício para a sua própria desordem e corrupção interna. mesmo diz: gosta de Londres, mas prefere saber que ela está lá e ele cá; se o tipo de envolvimento amoroso desses personagens tem também muitas semelhanças, a situação do Vietnã tal como a apresenta é única. No entanto, ao longo desse tempo vimos assistindo aos desdobramentos tão previsíveis da guerra do Iraque e em que o Vietnã e toda a sorte de ignomínias a ele associadas vêm sendo resgatada pela imprensa, fica cada vez mais atual a leitura que Graham Greene fez do espírito da América em seu genial O americano tranqüilo. Só que, agora, os americanos não casam com os nativos. Torturam. e-mail: [email protected] ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 59 EGON SCHIELE Recordação da casa dos vivos 60 PL Eloí Calage JORNALISTA D esata, filha! Foi o que ele me disse, o olhar confiante, mostrando as mãos amarradas à cama. O enfermeiro intervém: — Precisa ficar contido. Uma fração de segundo, a senhora se distrai e ele arranca os tubos. De manhã, na hora do banho, enfermeira e acompanhante cuidando dele... arrancou o soro... tá vendo? Vai sofrer se tivermos que pegar a veia dele de novo. Foi sedado agora, vai dormir. Ele insiste: — Desata, filha! Manchas roxas marcam as mãos, os braços, a testa e o peito do meu pai, os olhos suplicantes voltados para a porta. Acaricio suas mãos amarradas, meu corpo se sacode num soluço sem lágrimas. Ele fecha os olhos, não quer ver choro, quer ir para casa, o tempo todo pede para ir para casa, já está há mais de 90 dias no hospital. — Desata, filha! Mas isso foi há dias, quando ainda era possível entender a palavra dele. Agora, só Roseli, sua acompanhante preferida, e eu, conseguimos adivinhar o que ele diz. O mal de Parkinson está destruindo a flexibilidade da musculatura do seu aparelho fonador. A língua ressecada, dura, dentro da boca sem dentes, o quanto ele lutou para continuar usando a dentadura! Mas o mal é galopante, agora fala por grunhidos, alimenta-se por tubos. ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 61 I N S I G H T R INTELIGÊNCIA oseli me telefona do hospital. Com muita dificuldade, o colocou na cadeira, para dar banho. “De repente, dona Eloí, ele ficou todo duro, esticado, escorregando... Mas fique tranqüila, a enfermeira e eu conseguimos segurar e ele não caiu. Agora tá descansando. Mas se ele ficar assim, dona Eloí, nem vai poder entrar no carro... só de ambulância...” Foi a mesma coisa comigo, ontem, eu vi. O corpo nu, enrijecido e inclinado, sem dobrar joelhos nem flexionar a cintura, todo feito de ossos. Mas muita força nas mãos, que se firmavam como garras no metal da cadeira, os olhos arregalados, consciência, felizmente conseguia equilibrar o peso do crânio. E aquela santa enfermeira que o segurou firme pelos sovacos, enquanto eu me abaixava e o amparava sob as coxas. 62 PL I N S I G H T INTELIGÊNCIA V oltei agora de mais um turno no hospital. Falei com a neurologista que me disse nem pensar em alta, deve ter havido um engano. A enfermeirachefe também não sabia, e é contra porque está convicta de que ele não tem condições, precisaria quase um hospital em casa para cuidá-lo e ela é uma pessoa sensata. Coisa de rotina: eu com ânsias de vômito enormes e segurando a mão dele, enquanto o enfermeiro trabalha com o aspirador, para que não se sufoque com o catarro. Ele perdeu a capacidade de salivar, a saliva é produzida, mas ele não engole, vai amontoando na boca, o catarro também. Depois, o banho de água morna, com o chuveirinho. Ele no banheiro, sentado numa cadeira especial, que tem um furo no meio do assento. Estranho segurar o pau do meu pai, lavá-lo. “Essa secreção clarinha tem de ser bem retirada, é cancerígena”, me ensina o auxiliar de enfermagem, perguntando se tenho filhos homens. Dois, respondo. Ele dá graças a Deus por ter feito o curso técnico, sabe limpar muito bem o próprio pau, que chama de bilau. “Faça assim, ó, com a mão”. Pedi luvas. “Claro”, disse ele, por detrás da máscara. Nossos olhares se encontram no espelho, ele sereno, eu aflita. ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 63 I N S I G H T N INTELIGÊNCIA o banho, despertou um pouco. Antes, estava na dormideira. Mesmo podendo mexer braços e pernas já está alheio ao que acontece, deixa-se levar, lavar, injetar, deixa-se. Hoje não sei dizer se me reconheceu. Houve expressão de sorriso no olhar, mas ele sorri pra maioria dos que se aproximam da cama. É uma coisa impressionante o quanto o sorriso dele é semelhante ao do Mario Quintana já no fim da vida. O Mario sempre dizia que o modelo da Mona Lisa tinha sido um rapaz sem dentes. Ele e o pai, mesmo velhos, me lembram daquele sorriso. Uma força tremenda no olhar. Entendi uma única expressão dele: dor de cabeça. Transmiti à enfermeira-chefe. No caso do pai, para dar um analgésico às vezes é preciso que os vários médicos se comuniquem, para descobrir o remédio que, ajudando numa área, não esculhambe a outra. O pai está na clínica médica, dividindo o quarto com um paciente renal, que faz hemodiálise, um homem mais jovem, rústico e surdo como uma pedra, um camponês do século treze. Não ajuda nem atrapalha. Como pode andar, às vezes chega mais perto, pra prosear. 64 PL I N S I G H T INTELIGÊNCIA O pai está aos cuidados principais de três especialistas: pneumologista, urologista e neurologista. Pode ser que um deles tenha falado em alta, sem avisar aos outros, sei lá. Mas, pelo que vi, ele está floxo das urina (cor de manteiga, espessa), dos polmão e também do célebro, já que não consegue falar nem engolir. Eu tou mal dium tudo, me esforçando pra melhorar. Acho esquisito quando me falam em passagem, prefiro dizer morte mesmo e ele está morrendo, como uma vela que se vai gastando. Há velas que queimam por igual, a chama no meio, firme. Às vezes — especialmente se bate um ventinho — gastam mais de um lado do que do outro, a chama treme, parece que vai se apagar. Mas, em segundos, já está firme de novo, e aquela vela vai queimando até o último pedacinho da cera, só se apaga no fim. Assim é o pai e ainda tem muito o que apagar. Ninguém sorri daquele jeito — mesmo que seja dois segundos em 48 horas — se não tem mais chama. Uma vez, no tempo da infância, apartando uma briga entre um amigo e um bêbado, me ensinou: se o Roque matasse o outro, ficava sujo, e também não é direito derrubar uma árvore por causa dum pé de capim. Meu pai é uma árvore velha e frondosa, o machado ainda o vai golpear muitas vezes até que caia. Acho que foi o Lacan quem escreveu que Deus existe e é uma criança louca, a paisagem da cidade vai ficado embaçada por detrás das lágrimas que despencam dos meus olhos cansados. No hospital, estava certa de que é impossível mantê-lo em casa, por difícil que seja esta esquizofrenia casa/hospital. Já mais serena, não sei de nada. Mas preciso avisar que não irei buscar a cadeira de rodas que minha irmã providenciou, ia ser mais triste ainda levar a cadeira para casa, já que o pai não teve alta. e - m a i l : c a l a g e e l o i @ i g . c o m . b r ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 65 DOMINIQUE RENSON / UPDATE ART MAGAZINE RITUAIS DE SACRIFÍCIO ANDREA LESSA ARQUEÓLOGA BIOQUÍMICA 66 PFL E O ESTADO SUB JUDICE DO CORPO HUMANO ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 67 I N S I G H T INTELIGÊNCIA A partir da década de 30 do século passado, quando o antropólogo Marcel Mauss publicou o livro As técnicas corporais, os estudiosos começaram a perceber que o corpo humano representava muito mais do que um dado biológico e que não se reduzia a uma propriedade individual, mas materializava uma expressão simbólica e particular de cada sociedade. As mais diversas práticas realizadas sobre o corpo passaram a ser alvo de reflexões sobre o ethos social. Essa visão de mundo de cada sociedade seria a base para uma diversidade de costumes e de dimensões que variam desde o prazer, o embelezamento, a veneração, até o sofrimento, as mutilações e muitas outras formas de violência física. Apesar desta concepção do corpo ser relativamente recente, estudiosos e leigos sempre se sentiram atraídos pelas formas com que o corpo pode ser utilizado para se legitimar as relações com o mundo sobrenatural e as relações que mantêm a ordem social dentro de cada grupo. Cronistas dos séculos XVI e XVII se esmeravam em registrar detalhadamente rituais indígenas em que o corpo era visto como um instrumento de aproximação dos homens com as divindades ou de reconhecimento de qualidades enaltecedoras como força, coragem e bravura. 68 Muitos desses rituais tinham como expressão máxima a dor, o sacrifício e a morte tanto de inimigos como de aliados, e eram vistos pelos cronistas e viajantes que os presenciavam simplesmente como práticas selvagens de povos primitivos. Podemos citar exemplos que caracterizam de forma clara a ferocidade de grupos que utilizavam seus próprios corpos e os dos inimigos para apaziguar as forças naturais e sobrenaturais. Mas, mais do que a ferocidade que envolve essas práticas, devemos perceber a sua força e a sua intricada relação na organização social de grupos cuja identidade se legitima de maneira fortemente dualista, nos quais as diferenças com o outro, humano ou não, são muitas vezes mediadas através do corpo físico: fazendo-o sangrar, conservando-o como amuleto ou troféu, ou devorando-o. Os índios Jívaro da Amazônia equatoriana, motivados pelo sentimento de vingança e busca de poder, capturavam cabeças de inimigos, enquanto estes dormiam, para serem reduzidas durante um complexo ritual. A cabeça permanecia alguns dias imersa em um extrato vegetal para garantir a sua conservação. Em seguida era feita a retirada do cérebro, dos olhos e da língua, e a cabeça preenchida com areia e seixos quentes que eram continuamente substituídos durante um lento processo. Ao final, a cabeça podia ficar reduzida até a metade de seu tamanho, conservando, no entanto, seus traços fisionômicos. A simbologia deste ritual está na necessidade de vencer o inimigo não apenas no plano físico, mas vencer também a sua alma e expulsá-la para sempre. I N S I G H T INTELIGÊNCIA O s Tupinambá, por sua vez, ficaram conhecidos pela sua permanente hostilidade contra quaisquer grupos que ocupassem territórios vizinhos aos diversos nichos ecológicos ocupados por eles. Essa hostilidade era traduzida em constantes e ferozes confrontos bélicos, onde os inimigos jamais poderiam ser poupados. Aprisionar, sacrificar e ingerir o maior número possível de inimigos durante cerimônias rituais possuía um significado mágico que se sobrepunha aos aspectos políticos ou econômicos. Toda a tribo participava do banquete, que era repartido seguindo-se uma simbologia própria: as mulheres e as crianças, por exemplo, comiam um mingau feito com as vísceras da vítima. O cérebro e a língua eram reservados apenas para as crianças. Mas o ato antropofágico não era a única forma de fazer do corpo humano um veículo de comunicação social e com os espíritos dos antepassados e dos ancestrais míticos. Para cada vítima capturada, os guerreiros faziam dolorosas incisões nos próprios corpos, as quais simbolizavam sua coragem, poder e prestígio. Podemos imaginar a forte impressão que esses costumes, inimagináveis entre sociedades urbanas nos dias atuais ou passados, causaram nos antigos cronistas. No caso específico da América do Sul, os conquistadores europeus empenharam-se em desestruturar toda a concepção mágicoreligiosa das populações ameríndias, impondo-lhes o Cristianismo como crença e proibindo práticas moralmente condenáveis dentro da sua lógica etnocentrista. Como sabemos, a cultura ocidental triunfou sobre o continente e, com exceção de pequenas ilhas preservadas, a aculturação ocorreu em maior ou menor grau nas sociedades que interagiram com o homem branco. Mas, principalmente no que se refere aos assuntos espirituais, não devemos menosprezar a força da tradição, a qual pode preservar costumes que caminham na contramão da trajetória sociocultural das populações urbanas atuais. Costumes esses que, apesar de serem muitas vezes condenados pela sociedade e de terem sofrido um sincretismo adaptativo, ainda guardam elementos tradicionais muito antigos, que nos ajudam a embarcar numa viagem na máquina do tempo. É o que veremos a seguir, em um estudo com material pré-histórico o qual aponta para a sobrevivência de um sacrifício ritual por pelo menos 1.200 anos. ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 69 I N S I G H T INTELIGÊNCIA D O deserto de Atacama está localizado no extremo sul do altiplano andino, ao norte do atual território do Chile, onde floresceu por mais de dois milênios a cultura atacamenha. A domesticação de camelídeos, o cultivo de um número limitado de espécies vegetais devido à extrema aridez da região e, principalmente, o intercâmbio de produtos através das caravanas de llamas caracterizavam as mais importantes atividades desenvolvidas no oásis de San Pedro de Atacama. Sua situação geográfica estratégica assegurou aos atacamenhos, por longo tempo, hegemonia nesse sistema de trocas que percorria extensas rotas de tráfego. Por este motivo, tornaram-se especialmente importantes nos processos de expansão territorial desenvolvidos por outros grupos como Tiwanaku e Inca, os quais, em diferentes períodos, acabaram por estender sua influência ideológica, política e econômica até o oásis de Atacama. 70 PFL esde a década de 50, muitos cemitérios pré-históricos foram escavados no oásis de San Pedro de Atacama. Neste período, no entanto, os arqueólogos empregavam uma metodologia de escavação bastante distinta da atual, muitas vezes recuperando apenas os crânios dos esqueletos encontrados. Um desses cemitérios, o de Coyo Oriente, forneceu uma amostra de 239 indivíduos de todas as idades e ambos os sexos. Como parte de um projeto que estuda a questão da violência entre os grupos pré-históricos que habitavam o oásis de San Pedro de Atacama, foram analisados todos os crânios adultos deste sítio atualmente disponíveis no acervo do Instituto de Investigaciones Arqueológicas y Museu Pe. Le Paige, num total de 226 indivíduos. O sítio Coyo Oriente foi situado cronologicamente em 1190 ± 70 BP ou 790 AD. Esta datação confirmou a localização temporal do sítio na denominada Fase Coyo (± 500 a 900 a.D.), feita a partir da análise dos acompanhamentos funerários. Durante este período, se intensificaram as relações entre San Pedro de Atacama e a Federação Tiwanaku, localizada às margens do Lago Titikaka no altiplano Boliviano. A influência ideológica de Tiwanaku, percebida através das complexas oferendas funerárias, deixou algumas conseqüências sobre a região, como um notável aumento da estratificação social; o fortalecimento do poder dos Xamãs e incremento do uso de alucinógenos; a intensificação das atividades de mineração e metalurgia; além de um aumento de violência física intra e intergrupal associada à tensão social, observada durante um estudo anterior com material proveniente de outro cemitério desta fase, Solcor-3. I N S I G H T F oram analisados os traumas agudos associados à violência representados pelas fraturas em depressão no crânio e pelas fraturas por esmagamento na face, sendo as fraturas nasais incluídas em uma categoria isolada por apresentar um significado biocultural distinto das demais fraturas na face. Outros sinais de violência, como a presença de pontas de flechas ou fraturas em outros conjuntos de ossos com associação biomecânica a lutas corpo-a-corpo não foram consideradas uma vez que a amostra está representada apenas por crânios. Os resultados mostraram um total de 12,2% de homens e 9,9% de mulheres com lesões associadas à violência. Ao contrário do observado no estudo anterior em Solcor-3, as lesões que apresentam prevalências mais altas são as de ossos nasais, principalmente entre os homens (10,4%). Observa-se, para este segmento, uma concentração destas lesões não letais na região nasal, em oposição a uma prevalência mais baixa de lesões no crânio (1,6%), e à ausência de lesões na face. INTELIGÊNCIA Esta concentração de fraturas na região nasal entre os homens, sugere que os golpes foram desferidos segundo regras específicas de ataque, uma vez que, durante combates corpo-a-corpo ou à distância, os golpes são desferidos de forma aleatória, portanto a probabilidade de um golpe atingir o crânio e a face é muito maior do que de atingir especificamente a região nasal, que apresenta uma área muito menor. Esta concentração de fraturas não-letais, além dos indivíduos não apresentarem outras lesões no crânio ou na face, sugeriram que os golpes foram desferidos durante lutas rituais. ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 71 I N S I G H T E sta hipótese ganhou força quando inserida dentro do contexto cultural desta fase, quando os oásis atacamenhos encontravam-se sob forte influência ideológica de Tiwanaku. Esta influência pode ser claramente observada em vários cemitérios desta fase, estando sempre representada através do complexo aparato cerimonial-religioso relacionado com a inalação de alucinógenos. No caso específico de Coyo Oriente, ossos pirogravados, tubos, colheres e principalmente tabletas apresentam a típica iconografia Tiwanakota, principalmente os temas centrais e secundários da Porta do Sol. Relatos de cronistas e estudos etnográficos com grupos Aymaras que ainda vivem às margens do Lago Titikaka e em outras regiões da Bolívia, bem como com grupos Quechua que vivem em outras regiões andinas e no passado também receberam influência direta de Tiwanaku, registram a prática de lutas rituais, chamadas nos dois idiomas de Tinku, as quais persistem até os dias atuais. 72 PFL INTELIGÊNCIA De uma forma geral, essas batalhas rituais eram travadas entre aldeias ou ayllus vizinhos, a fim de assegurar o ciclo reprodutivo, com uma colheita abundante e a procriação dos animais. Os homens, após ingestão de bebidas alcoólicas, posicionavam-se em uma planície mantendo uma distância de aproximadamente 30 metros, e começavam um combate à distância utilizando armas de arremesso como fundas para lançamento de pedras e boleaderas. Após uma pausa, o segundo tempo de luta acontecia com um combate corpo-a-corpo, quando os participantes utilizavam luvas reforçadas com ferro. Fotos e documentários atuais mostram a utilização de um gorro protetor que se estende pela lateral do rosto, além de mostrar como são desferidos uma série de socos, com ambas as mãos, que atingem principalmente a região do nariz. O objetivo desta luta ritual, tanto no passado como no presente, é oferecer sangue e pelo menos uma vida à terra e à Pachamama, para garantir boas colheitas durante o ano. Por isso, quando em 1982 houve uma forte seca no norte de Potosí, os campesinos alegaram que isto acontecia, sem dúvidas, porque durante o Tinku do ano anterior pouco sangue havia sido derramado e ninguém havia morrido. Ainda hoje, este ritual é conhecido pela sua violência, sendo repudiado por parte da população boliviana. Apesar desta resistência, este ano o clímax do ritual Tinku aconteceu no dia 4 de maio, após dois dias de preparação. Na praça da cidade de Macha, conhecida como a capital do Tinku, 60 comunidades campesinas se reuniram vestidos com os trajes típicos para a ocasião, e mais uma vez ofereceram seu sangue e seus corpos à Pachamama. O resultado foram 37 feridos, uma morte, e a alegria dos campesinos por haverem cumprido com sua obrigação na milenar tarefa de apaziguar os deuses. Tudo registrado pelas câmeras fotográficas da imprensa e de turistas. I N S I G H T INTELIGÊNCIA A É claro que hoje em dia o ritual sofreu algumas alterações na sua forma, com a participação eventual das mulheres e a não-ocorrência das lutas à distância. Uma representação do ritual acontece na famosa festa de carnaval da cidade de Oruro, presenciada por milhares de turistas todos os anos, e que possivelmente tem como objetivo maior a conservação e a divulgação da tradição, e não o derramamento de sangue propriamente dito. inda que hoje boa parte da população boliviana condene o ritual Tinku como uma prática violenta, é preciso entendê-lo também como um documento de identidade social, uma vez que isola cada grupo do outro, enquanto, ao mesmo tempo, os une na responsabilidade comum pelo bem-estar coletivo. O efeito psicológico que este, bem como outros rituais, exerce sobre seus praticantes, nos obriga a uma reflexão sobre o conceito de violência física utilizado pelos estudiosos, formulado dentro do arcabouço teórico-metodológico das ciências sociais e humanas. Se, como colocado no início deste texto, o corpo humano materializa uma expressão simbólica particular de cada sociedade, a interpretação para as suas formas de utilização também deve ser particularizada e relativizada segundo o ethos que o inventou. O alcance deste ritual ao longo do tempo e no espaço, por outro lado, merece uma reflexão sobre a sua importância no papel de mediador entre o mundo natural e o mundo sobrenatural. Esta é, sem dúvida, uma das dimensões mais marcantes e mais intrigantes que o corpo humano pode representar. e - m a i l : l e s s a @ e n s p . f i o c r u z . b r ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 73 FOTOS: ADRIANA LORETE I N S I G H T INTELIGÊNCIA Caderno de reminiscências Miriam Leitão 74 SURPRESA I N S I G H T INTELIGÊNCIA Festa do avesso Não vou dizer que não houve festa. Festa houve. Mas tão rara e magra que se perdeu no bloco de tristeza granítica da cidade. Errado dizer que não houve bandeiras. Elas salpicavam raras com suas três cores pálidas certas janelas. Mas nada que agitasse o mar de casas fechadas e mudas, de bandeiras recolhidas. Houve gritos de vitória. Vagos, breves. Mas não incomodaram o silêncio o longo, o vasto silêncio da nação toda derrotada. É feio desfazer vitória alheia. Vitória houve. Mas murcha e sem contágio, sem mágica, sem raça. Comemoração houve. Ouvi rumores. Ela uniu adversários antigos, num pacto de desforra de velhos derrotados, onde mais se aclamou o gol que não houve, as bolas perdidas, as faltas, o passe desfeito, o atraso, a retranca. Uma festa do avesso. Nada parecido com aquela alegria majoritária que arrasta descrentes, que ecoa, contagia e domina. A festa do amor rasgado e louco da alucinada certeza dessa gente rubra e negra Rio, 26 de junho de 95 ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 75 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Volta Que me importa a taxa de câmbio, a ata do Copom e a alíquota do imposto de renda, se meus pés seguem trilhando trilhas de passados presentes? Que me importa saber a última declaração do último mais poderoso da República, se reis, papas e guerreiros lutaram guerras fatais que me aprisionam pelos séculos? Que me importa a comparação entre i-p-c-a e i-g-p-d-i, se sigo os passos de Hemingway pela velha Paris e sei que ali bem perto da Cardinal Lemoine tem um liceu para o qual há mil e quinhentos anos o sol também se levanta? Que me importa, poeta querido, o tempo presente, a vida presente, o homem presente? Se o passado é minha matéria, se sou cavaleiro no salão Ladislau, prisioneira da torre Dalibor e ainda toco violino em troca da vida de cada dia, se salto da rotunda de São Vito para arcos góticos, se atravesso incansável a Karluv Most e fico à espreita na torre, se discuto a física da metamorfose na casa do Unicórnio, se ouço ainda a voz de Jan Huss na Capela de Belém 76 SURPRESA I N S I G H T INTELIGÊNCIA e que por ela vale a pena a Constância e o fogo ardente da paixão. Se sei que da praça St.Michel posso tomar Paris, se na Stare Mesto resisto e mais resistirei ao poder irracional e obscuro que aprisiona a palavra, se estou em algum ponto entre St. Michel e Stare Mesto, que me importa? A aceleração da inflação, a base monetária, a desvalorização? Que me importam fatos sem traços na História? Se arrebatada e louca de paixão, sigo perdida nos becos medievais, modernos, contemporâneos, onde se lutou pela vida presente? 25 de novembro de 2002 ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 77 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Inútil espera A vida passou tão depressa que ainda sinto o cheiro da casa onde nasci. Que ainda tremo de frio e medo na sala de aula. Ainda espero os natais. Ainda sonho com o menino bonito que fingi rejeitar no primeiro jogo feminino. Jogo perdido como tantos outros. A vida passou tão depressa que ainda sinto as primeiras sensações. 78 SURPRESA I N S I G H T INTELIGÊNCIA O beijo, o desejo, a aflição, a dor. Ainda sonho os sonhos desvairados de revolução, heroísmo e liberdade. Vejo a parede branca da prisão no momento que pensei morrer, que pensei o último. Ainda sinto a sensação de que iria morrer, de susto, ou de bala, aos vinte. A vida passou tão depressa que ainda vejo meus filhos pequenos, meus e doces meninos, inteligentes e frágeis, meus. Ainda sangro as dores. Ainda amo os que amei. Ainda quero velhos quereres. Ainda magoam as traições. Ainda espero a vida que passou. Março de 2003 ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 79 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Dominicais Domingo de manhã, íamos todos juntos para a escola dominical. A roupa mais bonita e limpa o capricho da mãe de tantos filhos. O orgulho de engomar e passar pela noite de sábado para exibir domingo de manhã. Na escola, todos juntos quem sabe mais do Gênesis e do Habacuque de Joel depois de Oséias de Ruth e de Ester a terna e a bela. Quem sabe mais dos sonhos de José da sorte de cada sete dos sete e mais sete do labor de Jacó do amor, o grande amor de Raquel, mãe de José, que lia os sonhos do rei. 80 SURPRESA I N S I G H T INTELIGÊNCIA Dos salmos dos pastores das dores louvores. Quem sabe mais do testamento, o segundo, da herança, o primeiro. Remidos, quem sabe mais de epístolas e de Efésios de coros e de Corintios dos filhos dos Filisteus dos Atos dos Hebreus. E dos Colossenses dos Tessalonicenses dos censos e incensos de Belém. Do Cântico dos Cânticos Antigos Cantares aos conselhos de Salomão “Sobre tudo o que se deve guardar guarde o seu coração.” Quem sabe a entrada da estrada de Damasco. ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 81 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Quem viu os ramos dos reis quem viu os milagres de Deus quem viu as preces, profetas quem sabe parábolas do vinho e do pão bem aventurados são. Quem viu as dores finais e o aviso do eclipse de Apocalipse. Domingo íamos todos juntos sábios e crentes juntos famintos para a mesa de almoço. 82 SURPRESA I N S I G H T INTELIGÊNCIA Que parte do frango fica com que parte da fome que nos atingia em partes iguais? Domingo todos juntos no quintal dos brinquedos e medos toda casa mineira tem quintal, todo quintal mineiro tem pombo, verdura e goiaba, só um quintal é aquele com uma casa fechada mal assombrada, no fechado da casa tinha escuro e vulto, tinha susto nos menores, tinha gritos e avisos fatais. Domingo íamos todos juntos passo a passo todos juntos até ser tarde demais para ser domingo tarde para irmos juntos tarde para todos nós. Domingo não iremos mais não vamos juntos é tarde demais. São Paulo, 23 de outubro de 2003 ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 83 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Moinho Minha mãe se eu te contasse o que andou por aqui. Depois daquele dia, veio a busca. Te procuramos por todos os sítios, por todas as estradas, por velhos casarões. Te procuramos em vilas marianas, em casas nemas, te vimos em cada tacho de cobre, em cada boi no pasto, em cada mingau de couve, em cada fogão de lenha. Fizemos fazendas de te encantar, plantamos flores, frutos, vastos verdes, quisemos batizar com seu nome todas as meninas nascidas. Minha mãe, se eu te contasse de cada dor que doeu. 84 SURPRESA I N S I G H T INTELIGÊNCIA Recuamos nas voltas que o mundo dá, quando a água bate na pá vira a roda liga o engenho move o pilão no bate-bate do moinho, batida seca, repetida, pedra contra pedra, esmagando o grão, girando o tempo passado, tão passado, que de ver nunca se viu. Minha mãe se eu te contasse das batidas da pedra mó e da saudade que dá. [email protected] Villa Mariana, 1993 ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 85 I N S I G H T 86 PDT INTELIGÊNCIA I N S I G H T INTELIGÊNCIA Cesar Caldeira ADVOGADO ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 87 I N S I G H T INTELIGÊNCIA “Acontece que meu coração ficou frio.” Acontece, Cartola I Sinal fechado. Pancadas na janela do carro tiram minha atenção da letra e voz do Cartola. Um revolver está apontado para meu rosto. Um negro nervoso grita e sacode a arma. Presto mais atenção na arma: não era de brinquedo. Com a mão, peço calma. O sinal continua vermelho. O carro da frente parado. Lentamente abaixo a janela. — Estou sem dinheiro. Mas tenho esse gravador — mostro a peça. — Sai do carro! Deixa tudo aí! Me dá os documentos. — Está quase sem gasolina... — Quer morrer? Sai daí! Na calçada uma senhora parou com suas sacolas nas mãos. Levantei devagar. — Os documentos estão no porta-luva — disse enquanto andava para trás do carro. O sinal estava abrindo. O carro parte pulando para um trânsito congestionado. — Meu carro foi roubado agora naquele sinal ali. Alguém me empresta um celular para chamar a Polícia? — Vai ao orelhão e disca 190 — disse o rapaz negro que tomava chope com os amigos no botequim em frente. A secretária eletrônica respondeu. Logo depois uma voz feminina atendeu. — Um bandido armado levou agora meu carro na esquina da Rua Corrêa Dutra com Bento Lisboa. É um Renault Clio prata; está faltando a calota do pneu traseiro no lado do carona. Pede para cercar no Largo do Machado imediatamente. O trânsito está engarrafado por aqui... — Calma. É preciso o senhor se identificar. Preciso anotar a ocorrência. — Minha senhora, o bandido não sabe dirigir meu carro, está nervoso. A gasolina está na reserva. Avisa à Polícia, depois a gente completa o boletim. É uma emergência. — Não é possível. É um procedimento. Temos que pegar as informações. Ficamos uns cinco minutos no telefone. Parecia uma eternidade. Fui andando para a “Delegacia Legal” do Catete. Ainda tentava me acalmar quando cheguei ao guichê de atendimento. Um casal conversava com a funcionária. 88 PDT I N S I G H T INTELIGÊNCIA — O meu carro foi roubado agora. O bandido estava armado. — O senhor já comunicou ao 190? — Já. Quero registrar a ocorrência. — Vamos mandar logo a notícia para o Cecopol — disse a atendente. — Vou chamar o inspetor. — Tem água? — Não. Comecei a contar o caso para o casal. O senhor se ofereceu para buscar um refrigerante ou água para mim no botequim em frente. O inspetor apareceu na janela. Precisava dos meus dados pessoais e informações sobre o carro. Entreguei os documentos do carro e a carteira de motorista. — Pelo menos consegui salvar esses documentos do assaltante. Ficaram no bolso da minha calça. — Menos um transtorno — o rapaz tentou me consolar. Sentei num banco. Estava com a boca seca, muito tenso. O inspetor veio me chamar para prestar a queixa. — O senhor lembraria do assaltante? Temos um livro com fotos e retratos falados. — Vamos ver — entrei na sala de atendimento. Comecei a descrever o assaltante para o policial. Depois folheei o livro. Separei três fotos. Dentre estas indiquei um rosto que mais se assemelhava ao do assaltante. Tinha deparado com o criminoso fazia uns quarenta minutos. No livro havia uma anotação: suspeito de roubo de veículo. — É esse? — Parece com esse rosto — respondi. Enquanto o inspetor preenchia o formulário no computador, eu fazia perguntas. — Acha que o carro vai ser recuperado? — É provável. O seu carro não vai para o “corte”. — O quê? ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 89 I N S I G H T INTELIGÊNCIA — O seu carro não costuma ser roubado para desmanche. Não é comum o roubo de Renault Clio. Pelo que o senhor descreveu, parecia que o assaltante estava tentando fugir da área. — E as minhas coisas, vou recuperar? Tinha um cavaquinho, um violão clássico japonês e partituras do Cartola no carro. Estava saindo de uma aula de música no Museu da República. — Acho difícil que o cavaquinho e o violão fiquem no carro. — Mas que bandido em fuga sai com violão e cavaquinho nas mãos? Pedi para listar os principais objetos que estavam no carro. Tinha de cadeira de praia até trabalhos de alunos na Faculdade de Direito. — Eu também estou estudando Direito, na Gama Filho. O senhor dá aula de quê? Entramos numa conversa paralela. O inspetor concluiu. — Se os trabalhos não aparecerem o senhor vai dar dez para todos os alunos, não é? — Talvez não. Vou pedir um aditamento para incluir novos suspeitos nesse registro de ocorrência. Tem muito roubo de carros aqui no Catete? — Na circunscrição dessa Delegacia foram em torno de quatrocentos casos de roubos e furtos de veículos no ano passado. — Mais de um caso por dia! — O senhor tem seguro? — Tenho. — Qual a empresa de seguros? — Não me lembro. Mudei para essa nova companhia recentemente porque era mais barata. O telefone da seguradora ficou no porta-luvas. Depois eu trago o nome. Vou precisar dar um jeito de entrar em casa pois as chaves estavam no mesmo chaveiro. Fiz bobagem. — Por precaução, o senhor deve mudar a fechadura. O programa do computador travou. Veio um outro inspetor ajudar. — Não acredito ainda que meu carro foi roubado no sinal da Corrêa Dutra. — Olha, uma senhora foi assaltada às oito da manhã ali na esquina. Os bandidos estão ousados. Ainda tem gente que fica falando em direitos humanos... — Se tivesse mais policiamento ostensivo... — Como? O senhor viu aquela nossa viatura em frente da Delegacia? Não tem motor. A outra, está com os pneus carecas. Não dá para correr atrás de bandidos. Está um perigo. Eu moro em Bangu. Lá é pior ainda. Não dá para sair de casa à noite. — É. Meu carro foi roubado às oito e trinta da noite numa rua movimentada, perto de dois botequins cheios. — Hoje é véspera de feriado, Semana Santa. Os criminosos vão para a pista, tentar fazer um ganho. O senhor deu azar. 90 PDT I N S I G H T INTELIGÊNCIA Quem me vê sorrindo Pensa que estou alegre O meu sorriso é por consolação. Quem me vê sorrindo, Cartola II — Boa noite. Os senhores sabem como posso encontrar um chaveiro agora? Meu carro foi roubado junto com as chaves de casa. Os dois policiais militares que estavam ao lado de uma patrulha no Largo do Machado, mencionaram o Rio Sul. — Nada mais perto? Um deles foi ver um caderno no carro. Fiquei conversando com o outro. — O policial na DP me disse que é provável que meu carro, um Renault Clio, seja recuperado. O que o senhor acha, ele está certo? — Não é um carro para corte como o Volkswagen.1 Pode ser que alguém tenha feito encomenda... — Aí seria muito azar, não é? — Comecei a descrever o roubo. — Parece que o assaltante estava em fuga. Alguém na boca pode também ter mandado pegar um carro para desova. Na mala do Clio cabem dois presuntos. — É meio sinistro. Porém, ainda assim o carro reapareceria. Lavou, está como se fosse novo. O PM riu. — O senhor tem seguro? — Tenho. Por quê? — Porque as seguradoras dão um percentual sobre o valor do veículo para os policiais que o encontram. Assim que é feita a ocorrência do roubo ou furto de carro segurado, a notícia já vai para alguns policiais que começam a procurar o veículo nas suas áreas. É sempre um ganho extra. Para a seguradora é também bom negócio; evita pagar a perda total. — E o meu cavaquinho, o violão e as partituras do Cartola? — Ah! O senhor é músico? — Não, sou professor de Direito. Toco violão e piano. Estou estudando cavaquinho. — Eu também toco cavaquinho. E tiro som de teclado. Grande Cartola! ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 91 I N S I G H T INTELIGÊNCIA — Olha, estou tentando tocar cavaquinho. Acho muito difícil. Estudei música. Leio partitura. Pedi ao meu professor de cavaquinho para fazer as anotações do ritmo para a mão direita. Estamos a duas aulas tentando marcar o tempo forte e localizar o sincopado. — Doutor, é tchum, tchum, tchum, tchac, tchac ... O policial — um negão de dois metros — já estava simulando um cavaquinho nos braços e imitando o som da batida. Na hora do sincopado, dava uma ginga. — Aí é que está o problema. O meu professor também faz isso. Na hora do sincopado, ginga. Digo para ele: não adianta gingar. Coloca aí no papel como se eu fosse um aluno japonês. — Não dá. O doutor tem que ir para a pista. Lá em Marechal Hermes a gente arma tenda e fica tocando. É fácil aprender. — Quem sabe. E então, vou recuperar meu carro com o cavaquinho? — De jeito nenhum. O outro policial já havia ligado para um chaveiro, que chegou de carro. Lá fomos nós para Laranjeiras. No caminho o chaveiro me perguntou como o policial o encontrou. — Leu um caderno. Deu uns telefonemas. E você apareceu. Quase mágica. O chaveiro ficou ressabiado. Eu também. Chamei o segurança da rua. E o síndico do meu prédio. Ia agora tentar evitar um achaque. Em um minuto o chaveiro abriu minha inexpugnável porta com um ferrinho. — Cento e vinte reais, doutor. — Tenho cem trocado. Cuidado com o cachorro do prédio que é feroz e está solto. — Está bem. Pelo menos, o moço levou o dinheiro trocado para o guarda. Quando, afinal, entrei em casa não conseguia ter sono. Era muita adrenalina. Liguei a Internet: pude acompanhar a “guerra da Rocinha” que estava em andamento.2 92 PDT I N S I G H T INTELIGÊNCIA Bate outra vez com esperanças o meu coração As rosas não falam. Cartola III Sexta-feira da Paixão. Dormi pouco. Acordei várias vezes. Revólver na cabeça e casa vulnerável geram angústia individual. Resolvi sair para caminhar. Antes passei numa clínica para medir a pressão. — Treze por nove. O senhor está muito bem para quem esteve fazem poucas horas ameaçado de morte — comenta a enfermeira. — Tomei remédio hoje pela manhã. Este encobrimento de sintomas parece ser um triunfo da medicina. Tive que conversar com a médica. Contei o que passei na noite anterior. Ela me disse que compreendia muito bem aquilo tudo porque também já tinha enfrentado situações semelhantes. Contou um caso terrível: ficou sob a mira de armas de bandidos durante horas quando era recém-formada. Havia pego uma van que foi assaltada e levada para uma favela. Fiquei mais assustado. E a doutora reviveu as penosas emoções vividas. Quando voltei ao meu caso, ela pegou o celular para tentar encontrar um amigo policial que trabalhava na Delegacia de Roubos e Furtos. Queria pedir para salvar os meus pertences de uma eventual depenação pela própria Polícia. Agradeci muito. Saí com uma receita de calmante fitoterápico. Depois de rememorar aquela situação passada, a médica merecia também duas drágeas de oito em oito horas. Essas violências nos aprisionam para sempre. Depois da caminhada, retornei cansado para casa ainda pensando no roubo. Na secretária eletrônica estava um recado gravado. O meu carro já estava na 5ª DP. O auto estava batido. Todos os acessórios, cd player, cavaquinho, violão e as partituras do Cartola também se foram. Chamei a assistência mecânica da seguradora para verificar se podia sair com o carro. Quando o mecânico o examinou , concluiu: — É só lataria. E o kit-polícia que eles sempre levam quando o carro é recuperado fica na delegacia. É assim, doutor. Um inspetor me chamou para fazer o auto de recuperação. 94 I N S I G H T INTELIGÊNCIA — Já tinha até me preparado psicologicamente para perder o cavaquinho e o violão. Mas acho estranho que um vagabundo leve o livro do Hely Lopes Meirelles. — Doutor, o carro foi encontrado na Lapa. Estava com as portas abertas, luzes vermelhas acesas e as chaves dentro. Eram quase duas horas da manhã. Tudo pode acontecer. O senhor tem seguro? — Tenho. — A delegada colocou uma exigência para retirar o veículo do sistema onde aparece como carro roubado. É preciso levar para fazer uma perícia. É para ver se o chassis não foi raspado durante o período que esteve roubado. — Está bem. Não tem perícia técnica para descobrir quem roubou o carro e os seus acessórios? Eu identifiquei através de uma foto um suspeito do roubo. Se não tiver qualquer perícia para colher as impressões digitais existentes e confrontá-las com as do suspeito qualquer advogado derruba o testemunho da vítima do roubo, não é? — O doutor tem razão. — Então, pede também perícia técnica para identificar o autor do delito. O mecânico que esteve aí sugeriu que na batida da frente pode ter sangue de alguém atropelado. Vocês verificaram isso? — Doutor, espera um pouquinho que eu vou conversar com a delegada. — Ela vai entender. Afinal nós queremos que esse bandido não continue a roubar carros, ameaçar pessoas com armas. Da próxima vez pode ser um parente do senhor, da delegada, do policial militar que encontrou o veículo. Todos nós estamos à mercê desses bandidos que roubam carros e acessórios de carros roubados. O inspetor voltou vinte minutos depois com um pedido mais amplo de perícia técnica. — O senhor pode ir agora mesmo na Rua Pedro I fazer a perícia técnica. Depois daremos baixa do registro do carro roubado no sistema. Pode levar como depositário o carro. O pátio do Instituto Carlos Éboli estava praticamente vazio. Nenhum funcionário estava à vista. Bati na porta. Nenhuma resposta. Bati mais forte. Nada. Resolvi dar a volta no prédio. Alguém gritou. — O que é? — Era um senhor de bermudas. Parecia que tinha acordado. — A delegada da 5ª DP solicita neste ofício que se faça uma perícia técnica. É para coletar as impressões digitais no meu carro que foi roubado e recuperado pela Polícia. — O quê? Até o secretário de Segurança Pública sabe que o Instituto não tem material para fazer perícia técnica. Aqui falta tudo. Quando é muita pressão para fazer perícia nós temos que pedir material a um professor da UFRJ. Ele quebra o galho. — Por favor, o senhor pode responder a esse ofício? Pode dizer que não tem condições materiais de cumprir a tarefa de realizar a perícia técnica. Eu levo esta resposta para a delegada. 96 PDT I N S I G H T INTELIGÊNCIA — Não vou fazer ofício. O pessoal da delegacia sabe qual é a situação aqui. Outra coisa: aqui não se faz essa perícia do chassis. — O perito escreveu na última página do ofício o endereço correto. Voltei para a delegacia. Já eram quatro horas da tarde. Pedi para falar com a delegada. Repassei as informações do perito e dei seu nome e telefone. — Vou ligar para ele — disse a jovem delegada. Outro inspetor veio conversar comigo. Fomos até o carro. Ele fez considerações sobre a batida. Afirmou que fora perito e que não havia sangue no pára-choque. Parecia disposto a manter apenas a perícia do chassis. Eu voltaria na segunda-feira, depois do feriadão, com um ofício confirmando que o chassis não sofrera tentativa de alteração. Já estava dentro do carro, pronto para sair, quando fui chamado de volta à delegacia. A delegada insistiu que se tentasse fazer a perícia técnica das impressões digitais e, se possível, de DNA para verificar se alguém havia sido ferido. Novos ofícios foram feitos. Ao me despedir da delegada, comentei: — Já sabemos as respostas a esses ofícios. Não é possível fazer a perícia técnica solicitada. Portanto, não poderemos incriminar qualquer suspeito de roubo do meu carro ou de seus acessórios, se é que foram feitos pela mesma pessoa. Como a pronta resposta da polícia militar para cercar um carro que acabou de ser roubado também não é possível, o autor do roubo não pode ser preso em flagrante delito. — O perito me informou que talvez fosse possível fazer a perícia das impressões digitais se ainda restasse algum material no Instituto. O nosso inspetor disse que há indicação de impressões digitais nos vidros. Só se poderia ver isso na segunda-feira, porque, apesar do Instituto ter que funcionar 24 horas, a perícia técnica não está funcionando assim. — Pois é. Eu vou levar o meu carro agora para casa debaixo dessa chuva. Que Deus proteja essas impressões digitais, da chuva e do zelador do meu prédio, que costuma lavar os carros no fim de semana. Feliz Páscoa! ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 97 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Alegria era o que faltava em mim. Uma esperança vaga eu já encontrei. Alegria. Cartola. IV Parei no primeiro posto de gasolina que encontrei. — Por favor, cinqüenta reais da gasolina comum. Vi com certa apreensão que havia um envelope com meu endereço residencial no chão do carro. Tenho que trocar a fechadura, como disse o policial. Por via das dúvidas. Quando olhei para o atendente do posto de gasolina, ele estava com a mão no vidro do carro. — Rapaz, você vai acabar preso por ter roubado esse carro só porque colocou a mão nessa janela agora. e-mail: cesarcaldeira@ globo.com NOTAS 1. Segundo o deputado estadual Carlos Minc, que aprovou uma lei rigorosa sobre o controle dos ferrosvelhos no Rio de Janeiro, as investigações realizadas no Rio indicam que delegados da Polícia Civil controlavam o desmanche de carros através de parentes e testas-de-ferro. Nomes de policiais militares e rodoviários eram mencionados nos livros caixa-dois dos ferros-velhos que foram fechados na época da repressão. Nas anotações constava que esses policiais recebiam propinas e almoço. Cf. MINC, Carlos. “Crime organizado e política de segurança pública no Rio de Janeiro”, revista Archè, nº 19, 1998, p. 194-195. 2. Na madrugada da Sexta-feira Santa um grupo fortemente armado faz uma blitz na Avenida Niemeyer e assalta carros para invadir a Rocinha. Na ação, a mineira Telma Veloso é assassinada com um tiro de fuzil. O grupo segue para a Rocinha e, numa troca de tiros com a Polícia, mata Fabiana e Wellington. Durante o dia, a Polícia ocupa os acessos da Rocinha e do Vidigal e prende cinco traficantes. Durante a noite, começa uma nova troca de tiros e dois policiais do BOPE morrem. Manchetes dos jornais durante a Semana Santa indicam a gravidade da situação de insegurança pública. “Guerra do tráfico mata 5 e impõe terror na Zona Sul”, O Globo, 10/04/2004, p. 1; “Polícia caça traficantes na mata e moradores fogem da Rocinha”, O Globo, 11/04/2004. p. 1; “O Iraque é aqui”, Jornal do Brasil, 11/04/2004, p. 1; “Rocinha e Vidigal podem ser contidas por muros”, O Globo, 12/04/2004, p. 1. 98 PDT I N S I G H T 100 PTB INTELIGÊNCIA I N S I G H T INTELIGÊNCIA ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 101 I N S I G H T O 8, o 9 e o 3, respectivamente, ya-ku-sa, formam uma seqüência numérica péssima em um jogo de cartas japonês, inventado por não-se-sabe-quem nos confins do arquipélago nipônico. Só sabemos que o jogo é muito antigo e, indubitavelmente, 8, 9 e 3 configuram uma mão ruim mesmo, talvez a pior delas. Os jogadores profissionais de estrada que abundavam no velho Japão, cujo linguajar era repleto de gírias e jargões, logo cunharam o termo yakuza para apelidar o típico perdedor, alvo de todos os deboches e pilhérias. Com o tempo, a expressão foi mudando de sentido. O termo, antes pejorativo e humilhante, passou a ser usado para designar genericamente os membros individuais ou mesmo quadrilhas inteiras que integram o mundo do crime organizado japonês. No outro lado do mar, as Tríades chinesas prosperam, e estendem seus tentáculos por toda a parte para onde é levado o povo chinês em sua espalhada diáspora. Sua vasta organização sobreviveu aos golpes dos imperadores manchu, à perseguição das autoridades ocidentais, que por anos partilharam e exploraram desavergonhadamente o país, às matreirices do generalíssimo Chiang Kai-Shek, as agruras da ocupação japonesa e à rude repressão vez por outra praticada pelo governo da República Popular da China. Mas a sobrevivência das quadrilhas chinesas deve-se também ao fato da existência de “um lado escuro da lua”, isto é, a possibilidade sempre presente de colaborar e de encher de dinheiro as diferentes autoridades que controlaram a política chinesa ao longo das eras. Os curtos períodos de repressão violenta são medeados por longos momentos de corrupção desenfreada e parceria escusa entre as Tríades e as autoridades políticas e empresariais oportunistas e venais. E que o leitor não pense que a coleção de adjetivos aqui exposta revela algum tipo de cândido moralismo de nossa parte. Estamos simplesmente descrevendo as regras do jogo conforme o mesmo é jogado. O termo “Tríade”, simbolicamente, está relacionado com os elementos fundamentais do universo, cuja harmonia os quadrilheiros chineses alegam respeitar e preservar: o Céu, a Terra e o Homem. Já na Rússia muitos observadores acreditam que o desenvolvimento do crime organizado deveu-se, essencialmente, ao colapso da autoridade soviética e a transição tumultu102 PTB INTELIGÊNCIA ada e descuidada do planejamento apertado do socialismo para o cenário de economia de mercado do capitalismo. Nada mais falso. Embora o ambiente do “salve-se quem puder” do novo capitalismo tenha se prestado como terreno fértil para o florescimento da “Rússia de todos os crimes”, as estruturas das quadrilhas organizadas modernas datam do período stalinista, mais precisamente dos campos de prisioneiros da Sibéria. É de notório conhecimento que o camarada Stálin jamais descuidou do povoamento dos campos. Mesmo o czar mais rigoroso e autoritário dos velhos tempos coraria de inveja se pudesse testemunhar o denodo emprestado pelo “Líder Genial dos Povos” e o “Melhor Amigo das Crianças”, não só em povoar os campos antigos, como também em abrir uma enorme quantidade de novos estabelecimentos. A expansão do refrigerador siberiano contou com o concurso dos hóspedes de sempre: criminosos de todos os tipos, desajustados sociais e dissidentes políticos. Com o tempo, foi se estabelecendo uma hierarquia entre os prisioneiros, e no topo da mesma se instalaram os criminosos comuns. Estes, sustentados pelo beneplácito das autoridades políticas e dos guardas dos campos, passaram a controlar todo o sistema de recebimento e distribuição de correspondência e produtos que os familiares dos presos enviavam para os parentes internados nos campos. Alguns, com o intuito de agir com maior segurança no controle deste mercado negro, resolveram estruturar organizações: denominaram a si mesmos, vor-v-zakone, ou “Ladrões que obedecem ao código”. U ma vez soltos e de volta às grandes cidades levavam consigo a semente da organização criminosa. Se forem capazes de controlar o mercado negro dos campos, nada impedia que fizessem o mesmo nas cidades. Com a morte de Stálin, milhões de prisioneiros deixaram os campos, sendo alguns deles seguramente vor-v-zakone. Empenharam-se na formação de quadrilhas especializadas na venda de produtos importados contrabandeados e extorsão, estando sempre apaniguados com autoridades do partido, da polícia e do Estado. O que aconteceu após o colapso da União Soviética em 1991, nada mais foi do que uma ampliação — extraordinária, é verdade — da situação anterior. Neste ensaio, levantamos alguns elementos essenciais acerca do que se conhece da estrutura e das ações típicas das quadrilhas do crime organizado do Japão, China e Rússia. A questão se reveste de interesse para nós, brasileiros, pois se fala muito do problema do crime organizado em I N S I G H T nosso país. Mas, ao compararmos o que conhecemos de nossa situação frente ao que se dá no Oriente, cujas quadrilhas dispõem de sofisticada hierarquização interna e capacidade de projetar seus “negócios” no panorama internacional, o problema por aqui aparenta ser menos grave, e tudo nos leva a crer que, mais do que um crime realmente organizado, o que temos de fato é uma sociedade civil e um poder de Estado muito desorganizados. Contudo isso, por enquanto, não passa de uma ligeira impressão. Ya-Ku-sa Uma das particularidades das quadrilhas do Extremo Oriente, tanto as japonesas quanto às chinesas, é que os bandidos gostam de contar elaboradas histórias sobre suas origens e as mesmas, com freqüência, caem no gosto popular. Os quadrilheiros yakuza, por exemplo, apreciam a história de Chobei Banzuiin. Para entendermos o mote, é necessário um pouco de história do Japão primeiro. No início do século XVII, o clã guerreiro 7Tokugawa vence todos os seus adversários e seu líder, Tokugawa Ieiasu, torna-se o chefe militar supremo — o Xógun — de todo o país. Na época, o imperador residia em uma verdadeira “cidade de bonecas” em Kioto, isolado de tudo e de todos, sendo portanto o seu poder algo meramente ornamental. A autoridade de fato pertencia ao Xógun, e os Tokugawa conseguiram exercê-la inteiramente. O problema foi que sob a égide do Xógun todas as guerras civis cessaram, e por volta de 500 mil samurais — sem contar com seus familiares — viram-se repentinamente desempregados. Chobei Banzuiin pertencia a uma família samurai. Como não tinha mais nem senhor para servir — tornara-se um ronin — nem um estipêndio para prover o seu sustento, obrigou-se a inventar um meio de ganhar a vida. Chobei, um sujeito muito observador, notou logo que os Tokugawa desejavam dotar sua cidade principal, Iedo — a moderna Tóquio, de construções dignas de sua nova posição. Percebeu que o Xógun precisaria de mão-de-obra e imaginou um meio de se tornar um importante recrutador. Próximo a Iedo corria a grande estrada Tokaido, que cortava os importantes campos de arroz controlados pelos Tokugawa. A estrada vivia cheia de transeuntes. Chobei montou uma INTELIGÊNCIA banca de jogo à beira da via e isso atraiu uma grande quantidade de viandantes. Em meio ao entusiasmo e a turbamulta das partidas de cartas, Chobei recrutava muitos deles para as obras do Xógun. Uma vez engajados no trabalho, quando chegava a época de perceberem seus salários, lá estava Chobei com a banca de jogo montada novamente para ganhar os salários de todos eles. Chobei Banzuiin tornou-se um dos personagens prediletos dos contos populares japoneses. Sua figura, esperta, maliciosa e manhosa, aparece no teatro, em obras literárias e até mesmo em desenhos animados e histórias em quadrinhos. Os bandidos yakuza, ao alegarem seus vínculos com Chobei, não ludibriam totalmente o público acerca da história de suas origens. De fato os especialistas no assunto afirmam que uma das raízes prováveis dos yakuza são os grupos de jogadores ambulantes denominados bakuto. A segunda possibilidade — que não exclui a anterior — é que as modernas quadrilhas derivam dos grupos de vendedores em barracas — barraqueiros — chamados tekiya. O fato é que mesmo nos dias de hoje, sindicatos yakuza controlam os jogos de azar, o comércio em barracas, empresas de entretenimento e também as lojas de jogos eletrônicos. Finalmente, afirma-se que a outra grande fonte de recrutamento do yakuza eram os burakumin, integrantes dos grupos sociais considerados pelos demais japoneses como “não-humanos”. Estes burakumin viviam em aldeias próprias e dedicavam-se a trabalhos rejeitados pelos demais japoneses, como, por exemplo, o de curtidores de couro de animais. Um modo de escapar da condição de burakumin era o de renunciar à comunidade original, abandonar a aldeia e tornar-se um ambulante — um bakuto ou mesmo um tekiya. O entendimento da hierarquia que governa as quadrilhas yakuza nos remete necessariamente a conceitos do Japão medieval. Para tanto, solicitamos a indulgência do leitor quanto ao fato de passarmos por cima do eternamente renovado debate teórico acerca da conveniência ou não de aplicarmos um conceito ocidental como “feudalismo” para a experiência histórica não-ocidental japonesa. Partilhamos assumidamente a posição de que isso é possível e optamos por poupar a vista do leitor de uma longa argumentação. Não devemos nos admirar também com o fato de conceitos identificados como arcaicos ainda manifestarem-se fortemente no Japão moderno. Uma das peculiaridades da transição nipônica para o capitalismo foi a ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 103 I N S I G H T intensa preocupação por parte da liderança política em preservar o caráter cultural da nação ao máximo. Isto posto, determinados conceitos importantes vigentes nas relações feudais japonesas mantiveram-se intocados dentro do pacote de modernização. No caso dos yakuza, devemos dar atenção a dois pares de conceitos que constituem a vértebra interna de organização hierárquica das quadrilhas. O primeiro par é integrado pela relação oyabunkobun. O segundo, é formado pelos conceitos de giri e ninjo. No par inicial, oyabun é o termo normalmente usado para designar o chefe do bando. Trata-se de uma espécie de “pai” ou “suserano” de todos os integrantes da quadrilha. Os membros do bando, no momento em que são admitidos, participam de um complexo ritual em que, trajando quimonos negros, bebem sakê com o oyabun à sombra de um altar Shintô, a tradicional religião japonesa. Diante de testemunhas sua aceitação depende do juramento de fidelidade ao oyabun e as regras da quadrilha. Estabelece-se uma relação de estreito vínculo do kobun para com seu oyabun. A obediência prestada ao oyabun deve ser absoluta, sem reservas. Quanto ao segundo par, giri-ninjo, os especialistas são unânimes em afirmar que uma tradução correta que revele o verdadeiro sentido desses conceitos é impossível de ser obtida. O mais próximo que podemos chegar é pensar em giri como o senso do dever, uma obrigação, e ninjo, como um sentimento de lealdade, uma emoção oriunda da entrega absoluta a tal lealdade. O elo entre os kobun e seus oyabun é essencialmente firmado na crença do giri-ninjo. As faltas do primeiro (o kobun) podem ser punidas até com a morte. Uma outra maneira de castigo pode tomar a forma de sua exclusão definitiva da quadrilha. Nesse caso, o oyabun envia uma correspondência aos seus pares, chefes de outras quadrilhas, alertando que o sujeito em questão foi afastado e solicitando educadamente que ninguém o acolha. Finalmente, existe o famoso ritual de decepar uma parte do dedo mínimo. Um kobun desejoso de demonstrar sua vergonha em relação a alguma falha, decepa um pedaço do dedo mínimo e o oferece enrolado em um tecido de seda ao oyabun. De acordo com os yakusa, este ritual era 106 PTB INTELIGÊNCIA praticado pelos velhos samurais e representava uma grande demonstração de sacrifício. Sem um pedaço do dedo mínimo da mão direita, o samurai jamais poderia empunhar a espada corretamente. A verdade é que existe uma coleção de histórias sobre as quadrilhas yakuza que tenta lhes emprestar uma aura mística que propositadamente alimenta a imaginação popular. O mito de tentarem reproduzir os códigos de honra dos samurais, o apreço ao giri-ninjo, o culto à imagem sagrada do imperador, o ritual do corte voluntário do dedo e o hábito de cobrirem todo o corpo com elaboradas — e dolorosas — tatuagens seriam alguns deles. Porém, o que não pode ser deixado de lado em meio a toda essa simbologia, é que os yakuza são bandidos e muito perigosos. Enumerar uma lista das atividades criminosas das quadrilhas dá uma idéia de com quem estamos lidando. Os principais ramos de atuação das quadrilhas yakuza são os seguintes: Tráfico de drogas – inaugurado durante a Segunda Guer- ra Mundial com o início do uso de anfetaminas no Japão. Hoje em dia, as gangues da yakuza mantêm laços com centros produtores de heroína e cocaína em Burma, Tailândia, Vietnã e Coréia do Norte. Prostituição – não só dentro do Japão, mas também na Austrália, Havaí, Vancouver e São Francisco. Junto às quadrilhas russas, os yakuza mantêm entusiasmados convênios em que os primeiros atuam como recrutadores de mulheres eslavas jovens, loiras e de olhos claros para satisfazerem os apetites de empresários japoneses levados por agências de turismo controladas pela yakuza para noitadas animadas em Vladvostok. As Tríades em Hong Kong e Xangai, por exemplo, combinados com os russos e a yakuza, promovem idêntico negócio. Comércio de pornografia Jogos de azar Controle de lojas de jogos eletrônicos Agiotagem Extorsão – é uma das ações típicas de quadrilhas yakuza, especialmente no setor empresarial-corporativo. Nesse ramo, atuam as quadrilhas Keizai yakuza — gangues econômicas que efetuam as práticas de sokaiya. De modo geral, as quadrilhas ameaçam as diretorias das empresas de invadir as reuniões de acionistas e transtornar todo o processo de deliberação. Podem ainda ameaçar os executivos ou diretores das grandes corporações com campanhas difamatórias contra a empresa ou visando denegrir a imagem dos dirigentes — I N S I G H T articulando meras acusações caluniosas, ou mesmo revelando fatos verdadeiros obscuros e inconfessáveis da vida dos executivos obtidos mediante minuciosa investigação. Intimidação – igualmente uma importante atividade das quadrilhas. Digna de nota é a ação das jiageya — quadrilhas que atuam especialmente na área de venda de imóveis. Em síntese, as gangues obrigam um determinado proprietário a vender seu terreno. O cidadão sofre todos os tipos de intimidação até que, finalmente, resolve alienar-se de seu bem. Acredita-se que, em larga medida, quadrilhas yakuza estavam por trás da onda de valorização exagerada de imóveis, uma das causas da grande crise econômica japonesa ao longo da década de 90. Contrabando – incluindo o tráfico de armas e munições. D evemos ainda destacar a atuação dos bandos yakuza na atividade política. As quadrilhas sempre se manifestam como organizações imbuídas de um ardente patriotismo, zelosas para com as tradições japonesas e adeptas do culto à divindade do imperador. Em outras palavras, os yakuza facilmente identificam-se com posições políticas de extrema-direita e anticomunistas. Durante a ocupação aliada após a Segunda Guerra Mundial, e com o subseqüente avanço da Guerra Fria, logo as autoridades de ocupação norteamericanas, setores do empresariado e também da agremiação política que viria a se tornar dominante no Japão, o PDL (Partido Democrático Liberal) não tardaram a utilizar os talentos dos yakuza. As gangues foram acionadas para práticas patrióticas tais como, a de perseguir socialistas e comunistas, atacar sindicalistas e organizar movimentos de furagreves. Espancamentos, intimidações e até mesmo assassinatos eram acompanhados de longe por uma polícia impassível a todas as ilegalidades e abusos. Um dos mais rumorosos casos envolvendo a yakuza, lideranças empresariais e altos personagens do governo japonês, veio a lume entre 1974 e 1976, quando uma investigação empreendida pelo Congresso dos Estados Unidos descobriu que a empresa de aviação Lockheed vencia concorrências para a venda de aeronaves no Japão, distribuindo propinas para políticos do PDL, dentre eles, o primeiroministro Kakuei Tanaka. O caso alcançou proporções inquietantes quando se descobriu que o encarregado da distribuição dos gordos subornos era nada mais nada menos do que Yoshio Kodama. Este personagem era um velho colaborador do governo militarista japonês durante a guerra. Prestou bons serviços na organização da exploração dos recur- INTELIGÊNCIA sos da China e, invariavelmente, obtinha ajuda das gangues da yakuza para praticar ações escusas — especialmente assassinatos e sabotagens — na China, Mandchúria e Coréia. Terminada a guerra, foi preso pelas autoridades norte-americanas e classificado como “prisioneiro político classe A”. Em 1949, com a elevação da temperatura da Guerra Fria, foi solto, e uma vez “livre como um pássaro”, resolveu reativar seus contatos com as quadrilhas, desta vez para servir às finalidades das forças de ocupação e do PDL. Kodama era uma espécie de lorde de todos os oyabuns do Japão. Embora não fosse ligado diretamente a nenhuma quadrilha, dispunha quando desejasse do auxílio de todas, especialmente a mais poderosa delas, a Yamaguchi-gumi, radicada principalmente na cidade de Kobe e que, segundo as autoridades, possuía mais de 60 mil integrantes. A interação entre o PDL e as quadrilhas da yakuza sempre foi um fator que dificultou a implementação de processos de investigação das atividades criminosas das gangues. Ao mesmo tempo, grupos yakuza controlam inúmeras atividades legais, tais como empresas de construção civil, cassinos, boates e restaurantes. Grupos yakuza estão presentes em sindicatos trabalhistas e quadrilhas de origem coreanas radicadas no Japão que dominam o sistema de recrutamento de mão-de-obra desta nacionalidade. Para policiais de outros países, era muito intrigante ir ao Japão e constatar, além de uma embaraçosa relutância da polícia japonesa em prestar informações, que as sedes das quadrilhas são devidamente assinaladas com vistosos estandartes onde se pode ler o nome da gangue. Seus membros, regularmente, ostentam broches de lapela com o símbolo do bando. Somente em 1991, a Dieta — Parlamento do Japão — aprovou uma lei estabelecendo que qualquer organização seria considerada criminosa, caso contivesse nos seus quadros mais de 4% de seus membros incluídos na categoria de boryokudan — isto é, pessoas violentas possuidoras de registro na polícia. A lei boryokudan passaria a ter efeito em março de 1992. De um modo geral, os analistas entendem a lei boryokudan um passo tímido em face aos perigos que as organizações yakuza representam. ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 107 I N S I G H T As quadrilhas protestaram vivamente contra a lei. Esposas e filhos de bandidos yakuza promoveram manifestações públicas de protesto. Já a gangue Yamagushi-gumi providenciou a publicação de um livro intitulado “Como burlar a lei”, fartamente distribuído entre seus membros e com exemplares ricamente encadernados enviados para os oyabun das quadrilhas coirmãs. Poderíamos preencher páginas e páginas, escrever livros inteiros — que na verdade já foram escritos em grande número — discutindo a estrutura, os crimes e as ramificações das quadrilhas yakuza do Japão moderno. Deixemos, porém, a yakuza de lado e falemos da organização e das ações das Tríades chinesas. O céu, a terra e o homem No ano de 1998, o governo da República da Ucrânia anunciou que venderia um porta-aviões inacabado para uma “empresa privada de reputação idônea”. A dita firma denominava-se “Agência Turística e Diversões Chong Lot Limitada”. Tratava-se de uma empresa cuja sede estava situada na Cidade do Nome de Deus de Macau, naquela data, ainda sob administração portuguesa. O preço era de ocasião: 20 milhões de dólares e o porta-aviões, cujos projetistas imaginaram que um dia seria um dos orgulhos da Frota Soviética do Mar Negro, deslocava 67.000 toneladas e tinha 306 metros de cumprimento. Milhares de olhos arregalaram-se de espanto diante do inusitado daquela compra. Que diabos faria a “Agência Turística e Diversões Chong Lot” com tão majestosa belonave? Mesmo aceitando que sua área de pouso e decolagens poderia se transformar em uma formidável pista de dança, e seus hangares internos podiam ser convertidos em várias boates ostentando diferenciados ambientes, 20 milhões de dólares era muito dinheiro. Além do mais, seria impossível atracar tal Leviatã ao largo do litoral de Macau. As águas não tinham profundidade suficiente. Algumas investigações deram conta que a Agência Turística e Diversões Chong Lot era uma empresa de entretenimento que pertencia a uma Tríade de Macau. O testa-deferro da operação era Chen Kai-kit, personagem tradicionalmente conectado com as quadrilhas de Macau e HongKong, que mantinha estreitas relações com a família do velho líder da China Popular, Deng Xiaoping, e que já fora recebido para jantar pelos Clintons na Casa Branca. Como estava fora de cogitação imaginar que as Tríades de Macau esperassem incrementar seu arsenal com um porta-aviões, 108 PTB INTELIGÊNCIA os investigadores chegaram a conclusão unânime que por trás da ação da gangue estava o anseio do governo da República Popular da China em obter um porta-aviões soviético último tipo sem ter de aparecer abertamente na transação e prestar muitas explicações. Os vínculos secretos entre poderes governamentais e a ação das Tríades podem ser percebidos como um padrão na história da China. A velhíssima sociedade chinesa cultiva antigo hábito de constituir sociedades secretas. Tais grupos podem se reunir em torno de diferentes finalidades: ao longo da história tivemos sociedades secretas dedicadas à religião, à política, organizando minorias étnicas do país e também sociedades secretas criminosas, denominadas “Tríades”. As crenças populares sustentam que as Tríades são muito antigas, e que as quadrilhas que estruturaram o crime organizado moderno datam do século XVII. Seu surgimento estaria articulado com o desejo de resistência da etnia majoritária han contra a opressão da dinastia estrangeira Manchú. Contudo, as primeiras notícias acerca de grandes quadrilhas organizadas datam de um processo de 1767, ano em que as autoridades imperiais prenderam e interrogaram bandidos que afirmavam pertencer a uma organização secreta denominada Tiandihui. Já o termo “Triade” aparece pela primeira vez na obra do Doutor William Milne, um inglês residente em Hong-Kong, em 1821. A palavra tem relação com o caráter sagrado do número 3, que representa os elementos fundamentais do universo, o céu, a terra e o homem. Sabe-se que as quadrilhas se estruturam a partir de uma elaborada hierarquia interna. Não é possível afirmar que as denominações dos postos-chave sejam os mesmos para todas as gangues, mas algumas delas se organizam do seguinte modo: o chefe é conhecido como Shan Zhu, o Mestre da Montanha; é secundado pelo Fu Shan Zhu, o Deputado do Mestre. Abaixo deles estão o Primeiro Irmão Mais Velho e o Segundo Irmão Mais Velho. Completam a hierarquia do alto escalão elementos denominados o Mestre do Incenso e o Vanguardista. Abaixo deles existem os “Sandálias de Palha”, encarregados do ramo de comunicações, o Mastro Vermelho, responsável pelo setor de segurança, o Leque de I N S I G H T Papel Branco, que lida com as funções financeiras e os grupos de base, que seriam os “soldados”. A aceitação de um novo membro acontece durante um elaborado ritual em que o noviço se compromete com os 36 juramentos da Tríade. De acordo com documento emitido pelo IBGE, contendo uma análise do crime organizado no mundo, as principais Tríades em ação hoje em dia são: A Sun Yee On de Hong-Kong, com aproximadamente 64 mil membros A 14K de Hong-Kong, com 30 mil integrantes A Federação Wo de Hong-Kong, com 28 mil bandidos A United Bamboo de Taiwan, com 20 mil integrantes O Bando dos 4 Mares de Taiwan, com cerca de 5 mil membros O Grande Círculo da China continental, cujo número de integrantes é ignorado. As atividades criminosas das Tríades são vastas e se espalham por boa parte do mundo. Praticam o tráfico de drogas, extorsão, controlam a prostituição, recrutamento e imigração ilegal de trabalhadores, jogo, lavagem de dinheiro e agiotagem. Na China, operam em Hong-Kong, Macau, Taiwan e nas áreas econômicas especiais do sul do país. No resto do mundo, operam na Indonésia, Filipinas, Austrália, Canadá, América do Sul, Grã-Bretanha, França e nas grandes cidades dos Estados Unidos. Hoje em dia mantêm estreitas relações com os yakuza e as quadrilhas da Rússia. As autoridades suspeitam que vários desses grupos operam em redes permanentes, estabelecendo uma verdadeira divisão racional do trabalho criminoso em termos planetários. Não é difícil de acreditar que os bandos chineses, com suas operações instaladas em tantas áreas diferentes do mundo, tenham assumido a vanguarda na organização de tais redes. Medo e Segurança em uma Rússia Quase Anárquica “Na Rússia, o medo substitui, isto é, paralisa o pensamento. Este sentimento quando reina só, apenas pode produzir aparências de civilização. Onde a liberdade falta, faltam a alma e a verdade.” (Marquês de Custine in A Rússia em 1839) Em novembro de 1989, com a queda do Muro de Berlim marcou-se um período de aceleradas mudanças nos países comunistas. A Rússia, parte principal da União Sovié- INTELIGÊNCIA tica e ponto nevrálgico desses acontecimentos, foi obrigada a lidar com mudanças que afetaram todas as esferas de convivência humana. Com a distensão acelerada, os russos viram ruir o imponente aparato estatal e a sociedade civil se defrontou com o sumiço do Estado onipresente. O termo sumiço aqui pode parecer exagerado, mas dada a magnitude dessa mudança não nos parece fora de contexto. Dentre as muitas mudanças que ocorreram nesse contexto, a que mais nos importa nesse momento é o fortalecimento do crime organizado como um agente socialmente relevante. A impressão que o Ocidente tem é que com a queda do Estado soviético e as medidas “liberalizantes” de Boris Yeltsin nasceu, quase que por geração espontânea, uma máfia russa que ocupou o vácuo estatal. Além de serem os novos vilões dos filmes de James Bond, os mafiosos russos se espalharam pelo mundo e tornaram-se notórios pelas incríveis fortunas rapidamente amealhadas. As razões do surgimento dessa máfia Enganam-se aqueles que atribuem o surgimento do crime organizado ao colapso soviético. Os Vor-v-zakone, ou simplesmente Vory, são uma das gangues mais antigas da Rússia. Criminosos que se identificam por um código de ética semelhante à Omertá e têm seu início rastreado até a década de 1930, esse forte grupo é caracterizado por uma atitude de total rebeldia contra o governo (primeiro o soviético e depois o republicano/democrático) e por ser de alta capacidade adaptativa. Os Vory guardam algumas semelhanças com o Comando Vermelho no Rio de Janeiro pela sua forte presença nos presídios e por manipularem o sistema carcerário habilmente, estabelecendo redes de informação e até atos administrativos intramuros. Outra semelhança significativa entre ambos os grupos é o maciço recrutamento de jovens para preencher suas fileiras dada a alta rotatividade dos membros de suas estruturas. Os Vory são também extremamente religiosos e idealizam figuras femininas como a matriarca e santas ortodoxas, apesar de não serem ligados a nenhum grupo religioso nem terem um histórico de respeitar os direitos femininos. Podemos ver os Vory como um caso emblemático de uma estrutura que já ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 109 I N S I G H T existia, mas encontrou condições extremamente propícias ao seu crescimento na década de 1990. A partir desse período o custo de manutenção do aparato repressivo estatal havia se tornado impraticável, o que fez com que o governo começasse a enxugar a Polícia, o Exército e os serviços de inteligência. Em 1991, a KGB teve seus quadros reduzidos de 36.000 para 2.800 funcionários enquanto o Exército dispensou 25.000 pessoas por razões políticas, anunciou-se à época que cerca de 40.000 soldados seriam dispensados por ano. Como conseqüência desse enxugamento, houve uma grande oferta de mão-de-obra treinada na violência. Junte-se a isso vários ex-atletas (halterofilistas, boxeadores e judocas) que perderam seu financiamento estatal e não desertaram, tem-se mais um contingente bastante razoável de músculos. O fácil acesso a armas de fogo foi mais um componente dessa complexa equação. Lembre-se de que, historicamente, nunca foi difícil comprar armamentos na Rússia, tanto pela via legal como pela ilegal. Além da legislação pouco eficiente sobre o assunto, problemas econômicos levaram boa parte dos proprietários a pôr suas armas à venda no mercado negro. Com a debilitação do Exército, roubos a depósitos militares foram se tornando cada vez mais freqüentes. Some-se a tudo isso a considerável produção de manufaturas “caseiras”, que também ajudaram a abastecer esse voraz mercado, e obtém-se uma combinação explosiva. O fim dos fortíssimos organismos de coerção do Estado soviético fez com que houvesse um grande mercado na Rússia capitalista para a venda de segurança. Existem outras particularidades da sociedade soviética que são grandes estímulos à ilegalidade e que são fatores de estímulo ao surgimento de um submundo do crime que se locupleta nas ausências do governo. Os erros na transição para uma economia de mercado Tendo em vista o processo de abertura da economia russa, especialmente analisando as ações do governo, o que se percebe é que os dirigentes políticos julgavam suficiente 110 PTB INTELIGÊNCIA empreender processos de privatização, como uma forma de transição para uma economia de mercado. Décadas de planificação, ausência de competição e forte presença estatal não podem ser revertidas tão simplesmente. Medidas estruturais, que seriam de extrema relevância, não foram tomadas o que fez da Rússia uma combinação bizarra de Estado fraco e forte ao mesmo tempo. Os direitos de propriedade são um aspecto fundamental de qualquer sociedade. Saber que sua propriedade será protegida é um fator de segurança crucial para que se possa despender energia em outras coisas que não a proteção dos bens. Em qualquer Estado forte existe extrema clareza em relação ao que pertence a quem, mesmo que pertença ao Estado. O governo russo é fraco por demonstrar total omissão nesse sentido. A Justiça até mostra sinais de eficiência nos trâmites processuais, mas no momento que se precisa pôr em prática as decisões, o processo é tão pouco confiável e letárgico que se criou dentro da Federação Russa um ethos paralelo. Por que razão se deve recorrer ao governo quando grupos privados podem resolver os seus problemas de forma mais eficiente e com um custo menor? O crescimento dos grupos privados de proteção é inversamente proporcional à presença do aparelho coercitivo do Estado. Não se trata aqui de defendermos um Estado no qual a segurança se sobrepõe às outras funções do Estado. Porém, permitir a proliferação de grupos privados na escala que a Rússia permitiu é extremamente perigoso por uma simples razão: nem sempre eles protegem atividades lícitas. A definição de máfia, por exemplo, compreende a substituição do Estado na venda de serviços de proteção tanto para atividades legalizadas quanto para as atividades marginais. P aradoxalmente, o Estado russo é excessivamente forte. Forte nas taxas que impõe aos seus cidadãos, desestimulando por completo qualquer atividade produtiva; nas suas relações pouco definidas com as concessões de bens públicos e na relação extremamente promíscua entre poder público e grandes empresas. Um exemplo claro é o caso do atual prefeito de Moscou que conseguiu fazer de sua esposa uma das maiores milionárias da capital russa graças aos generosos contratos entre a prefeitura e a empreiteira que ela possui. O grau de descrença em relação aos políticos é tão grande que Iuri Lusko se mantém na prefeitura há 12 anos graças a uma política no melhor estilo “rouba mas faz”. A revista Veja nos dá uma amostra de como funciona a relação poder público/iniciativa privada: I N S I G H T “...Luskov administra a cidade como se fosse sua propriedade particular. Graças à herança do comunismo, a prefeitura é dona da maior parte da rede hoteleira e tem sociedade em lojas e restaurantes, inclusive 20% das lanchonetes McDonald’s. Também é proprietária dos principais imóveis da cidade.”1 Realmente é impossível um Estado fraco ter tantas participações assim na iniciativa privada. Se fizermos uma análise dos maiores milionários russos na atualidade quase todos estão de alguma forma associados ao governo russo e as acusações de corrupção são freqüentes. O presidente Vladimir Putin já foi acusado de usar a máquina estatal para favorecer seus aliados e perseguir seus desafetos. Dentro de certos termos esse quadro ainda lembra o do PCUS dada à quase necessidade de altas de conexões burocráticas para se empreender algum negócio vantajoso. Curioso é o fato dessa dinâmica não se aplicar apenas às grandes esferas, tais como concessões de petróleo, mineração e telecomunicações. Em seu livro “The Russian Mafia”, o acadêmico Federico Varese entrevistou vários moradores da cidade de Perm e nos fornece um detalhado estudo das diferentes formas de atuação do crime organizado. Perm serve como uma espécie de microcosmo do crime organizado dada a sua localização portuária, a alta taxa de ex-presidiários residentes2. Donos de pequenos estabelecimentos reportaram a importância de qualquer homem de negócios ter uma “Krysha”, proteção. Desde microempresários até magnatas multimilionários, todos precisam de algum tipo de proteção extra. É de crucial importância acentuar que essa proteção extra não se faz forçosa por uma questão de importância do serviço. Em um número significativo dos casos ela é fruto da coerção do próprio protetor, seja ela velada ou explicitamente violenta. Estrutura da Segurança Privada Com as medidas de redução da força policial, o governo russo permitiu que empresas constituíssem forças privadas que acabaram por se tornar pequenos exércitos armados. A pessoa que estivesse em busca de proteção na Rússia poderia recorrer aos seguintes expedientes: 112 PTB INTELIGÊNCIA PROTEÇÃO ESTATAL VENDIDA PRIVADAMENTE Em face dos baixíssimos salários que estava conseguindo pagar e em vias de assistir a uma debandada de seus funcionários de segurança, o governo russo autorizou seus agentes a oferecerem segurança privada em adição aos seus cargos públicos. Com isso policiais passaram a trabalhar como guarda-costas em suas horas extras e a Polícia começou a se tornar seletiva na prestação de um serviço que deveria ser público e uniformemente prestado. Esse mecanismo se revelou extremamente perverso uma vez que deixou vulneráveis à ação criminosa justamente aqueles que possuíam menos meios de arcar com proteção privada. FIRMAS DE SEGURANÇA PRIVADA Com a grande demanda por segurança privada, a Rússia viu florescer um grande mercado. Estima-se que em 1999 existiam 6.775 firmas de segurança oficiais que se somavam a outras 4.612 que estavam ligadas a somente um cliente. Estimativas conservadoras apontavam 196.266 pessoas trabalhando como agentes de segurança licenciados, mas as estimativas da Duma atingiam a cifra de 800.000. Isso sem contar as inúmeras empresas clandestinas que abundaram nessa área. Além da grande demanda por serviços, as leis russas foram dando mais poder a essas empresas, seja abrindo mais espaço para a atuação delas, seja permitindo a utilização de armas mais possantes. Nesse tipo de firma, os serviços normalmente se situam além da legalidade, o que acaba por tornar a distinção das firmas entre legais e ilegais algo um tanto quanto complexo de ser feito. INTERNALIZAÇÃO DA PROTEÇÃO O processo de internalização da proteção foi uma conseqüência direta do maior poder dado às firmas particulares. O que aconteceu nas grandes empresas, como as multinacionais e as gigantes petrolíferas, foi que se tornou mais vantajoso criar uma espécie de milícia própria ao invés de ter que recorrer a serviços terceirizados e menos confiáveis. BANDITSKAYA KRYSHA Por Banditskaya Krysha podemos compreender todo o crime organizado. Isto é, organizações criminosas que têm como objetivo atingir uma situação de preponderância no submundo; instituindo uma forma de atuação monopolística na venda de uma commodity. No caso russo, a commodity I N S I G H T fundamental é segurança. Quando a situação econômica direciona o mercado para a informalidade, as pessoas que compõem esse mercado estão saindo da alçada de controle do governo e entrando, especialmente no caso Russo, em um ambiente desregulamentado. Na clandestinidade, elas se tornam mais passíveis de chantagem e de coerção. Caso não existissem formas de proteção, configurar-se-ia o que os americanos chamam de cenário dog eat dog, aquele ambiente onde não existem regras e prevalece a lei do mais forte. Por mais estranho que isso possa soar, o crime organizado possui uma função social ao evitar que isso ocorra de forma plena. A Banditskaya como Estado Paralelo Temos que tomar muito cuidado ao caracterizar os criminosos russos. Há que se fugir dos estereótipos que são ótimos para criar imagens, mas fogem por completo da verdade. Nenhum poder pode atingir o status que o crime organizado atingiu se não for de alguma forma considerado legítimo. Os mafiosos na Rússia atual não são piratas predadores irracionais e beberrões. Ou melhor, até podem ser; mas exercem um papel duplo. A exemplo do que acontece nos morros cariocas, o relacionamento da bandidagem com a comunidade é permeado por investimentos e inclusive relações de parceria usando capital do crime organizado. Os gangsters russos, em alguns casos, investem em caridade, emprestam dinheiro a juros mais baixos que os bancos e com menos burocracia, auxiliam comerciantes a praticarem evasão fiscal e ofertam serviços a preços mais vantajosos que os de mercado. Em troca, recebem parte dos lucros ou uma cota mensal fixa. Eles podem agir também como uma espécie de Poder Judiciário paralelo, atuando na resolução de conflitos comerciais e contratuais. Efetivamente, o único mecanismo eficiente de disputas entre homens de negócio é a Strelka, que é basicamente cada um acionando sua Krysha e deixando que elas resolvam o assunto. Apesar de não ser composto de relações exclusivamente capitalistas, este é um mercado tão atraente que já se estimou o número de mafiosos em 3 milhões de pessoas, divididas em aproximadamente 5.700 gangues. Com tantos atores competindo, podemos imaginar a ferocidade com que é praticada a concorrência. INTELIGÊNCIA Banditismo na Fronteira – a Sibéria e Vladvostok e a conexão das quadrilhas russas com as Tríades e a Yakuza Uma das mais importantes providências do governo soviético foi promover o povoamento e o aproveitamento dos recursos naturais da Sibéria. Milhões de famílias de todos os cantos do império soviético lá se instalaram atraídas por estímulos governamentais. Com a queda da URSS e o enfraquecimento político e financeiro do Estado, os estímulos desapareceram e a ordem também. Ao longo da década de 90, as regiões da Sibéria e de Vladvostok converteramse em “Terras de Pioneiros” muito similares àquelas descritas na literatura e no cinema norte-americanos sobre westerns. O colapso da autoridade soviética significou a desarticulação do sistema de distribuição e abastecimento de gêneros, o desemprego para centenas de milhares de pessoas e o enfraquecimento do aparato de segurança. A ausência da “lei e da ordem” conformou o terreno fértil, não só para a prosperidade das gangues organizadas russas, como também para que estas tivessem a oportunidade de, a partir de bases fortemente estabelecidas na Sibéria e em Vladvostok, estabelecer estreitas relações com os demais grupos criminosos do Extremo Oriente, notadamente as Tríades e os yakuza. Neste sentido, a Grande Fronteira Russa tornou-se o território de ação e abrigo de muitas quadrilhas. A população comum teve de se adaptar a tal universo. Daí a cena das avozinhas russas (babushkas) com seus lenços regulamentares cobrindo as cabeças vendendo canabis para obter dinheiro para a compra de batatas e açúcar para suas famílias. A Banditskaya e o Estado Freqüentemente quando se quer falar de crime organizado, especialmente quando a organização criminosa em questão é extremamente poderosa, utiliza-se a expressão “Estado paralelo”. Tal expressão transmite a idéia de que ambas estruturas (Estado e organização criminosa) agem em campos separados, sem, no entanto, se cruzarem. No caso russo, nada poderia ser mais ilusório. Na verdade as trajetórias do Estado russo e do crime organizado se cruzam em tantos pontos que se formos citar pontualmente cada escândalo publicado nos últimos 14 anos poderíamos escrever vários volumes. O fato é que se tornou comum uma relação de reciprocidade entre ambas as organizações em diversos níveis. Especificamente na região de Perm, objeto ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 113 I N S I G H T de estudo do livro de Federico Varese intitulado “The Russian Máfia”, líderes mafiosos e políticos são constantemente vistos em festas e cerimônias públicas juntos. N o nível nacional, um político em especial é notório por suas relações abertas com a ilegalidade. Vladimir Zhirinovsky, líder do Partido Liberal Democrata da Rússia (PLDR), é o que tem adotado mais abertamente uma atitude de aproximação com o mundo do crime. Ele tem se notabilizado por atrair figuras sombrias para seu partido e declarar publicamente que uma aproximação com as estruturas criminosas poderia ser extremamente benéfica para o país. Os quadros do PLDR estão recheados de membros acusados de roubo, extorsão e evasão fiscal; além de inúmeros ex-presidiários. Porém, no nível nacional o caso mais preocupante de indícios de ação do crime organizado foi o do general nacionalista Alexander Lebed. Concorrente de Bóris Yeltsin quando este tentava sua reeleição, Lebed acabou se tornando chefe do Conselho de Segurança graças a uma coligação entre os partidos de ambos. Uma de suas primeiras medidas foi anunciar vigorosas medidas anticrime. Lebed propunha um aumento de 18.600 policiais, 1.000 novos fiscais de tributos, 650 novos juízes, a construção de quatro novos presídios e a criação de um programa de proteção à testemunha. Poucas semanas, depois duas bombas explodiram em Moscou em dias seguidos. Menos de um mês após o atentado, Lebed foi demitido. Coincidência ou não, logo em seguida as medidas que ele havia proposto foram abandonadas. Ao deixar a política nacional, Lebed ainda viria a se eleger governador de Krasnöyarsk, na Sibéria, mas, após reiteradamente acusar os empresários locais de corrupção, faleceu em um trágico acidente de helicóptero em 2002. Devemos, entretanto, fugir de uma generalização que se refira a toda a elite política russa como corrupta e ressaltar que apenas fragmentos da elite política estão associados a algumas gangues. Na verdade, segundo aponta Varese: “Um pacto entre fragmentos da elite política e organizações criminais estabelecidas pode ser do interesse de ambos. Este pacto garantiria aos líderes políticos um grau de estabilidade no submundo e removeria barreiras para a penetração dos criminosos na sociedade. Também poderiam ser garantidos aos políticos fáceis e rápidos resultados na luta contra o crime. Algumas gangues seriam perseguidas separadamente, deixando a maior parte das gangues, as “certificadas”, em paz.” 114 PTB INTELIGÊNCIA Não se pode dizer que o crime tem um papel importante ao ponto de ditar os rumos político-econômicos do país. No entanto, negligenciar a importância de tal elemento da sociedade é impossível dado o impacto que ele é capaz de causar seja em termos econômicos, sociais ou até mesmo políticos. Finalmente, devemos nos perguntar algo que é crucial: a máfia russa é um mal para a sociedade daquele país? Obviamente que organizações criminosas são danosas a qualquer ordenamento que pretenda sustentar um Estado de direito democrático. Entretanto, o que vemos é a criminalidade exercendo papéis claramente estatais como provendo segurança e resolvendo conflitos; além de investir em comunidades mais pobres através de obras assistenciais. O grande problema, além das gangues que agem de forma realmente predatória, é que no mundo do crime o grande instrumento de relacionamento é a violência. Isso cria um ambiente de incertezas e incoerências. Em adição a isso, podemos assinalar que não existem direitos universais. No submundo do crime, as relações são primariamente pautadas por interesse, o que relativiza o valor das vidas humanas, passando estas a serem o “preço que se tem que pagar” para se atingir os objetivos perseguidos. Por mais injustos que possam ser, ordenamentos jurídicos democráticos possuem uma carga de valor moral que é superior ao “pragmatismo” das gangues. Crime e redes criminosas É indubitável que a organização das quadrilhas que operam tendo como base os países do Extremo Oriente é espantosa. Suas hierarquias internas, processos de tomada de decisão e a capacidade de atuar simultaneamente em diversas áreas são dignos de nota. No mesmo plano, outro dado importante a enfatizar é a sua longevidade. Embora não sejam tão antigas quanto propalam, tanto na China como na Rússia e no Japão, existem quadrilhas que atuam ininterruptamente desde a década de 30 do século passado. Entre elas, há alguns padrões de atuação comuns. Sua existência depende ou da fraqueza do aparato estatal de proteção da sociedade ou da capacidade de interagirem com as autoridades por intermé- I N S I G H T dio de vínculos regulares de corrupção. Os três grupos citados são capazes de esticar suas operações no panorama internacional. Como muitas vezes operam em ramos semelhantes, podem optar pelo estabelecimento de redes de colaboração mútua, certamente uma escolha muito mais racional do que a velha guerra entre quadrilhas. Usam e abusam dos meios viabilizados pela moderna tecnologia do mundo globalizado. Transferem capitais pela rede bancária, controlam empresas de investimentos, usam dos meios de transporte para transferir armas, prostitutas, trabalhadores ilegais e contrabando de todas as espécies de um lado para outro dos oceanos e continentes. O fato é que nem mesmo toda esta sofisticação é uma novidade para essas gangues. Sua verdadeira fonte de poder se constitui no momento em que conseguem cristalizar suas organizações e hierarquias internas. Assim, seu relacionamento com as mudanças e humores do “mundo exterior”, passa a ser apenas um problema de adaptação ao meio, ação que muitas vezes consiste em saber lidar com INTELIGÊNCIA novas situações governamentais, acolher novas possibilidades tecnológicas ou enxergar diferentes oportunidades de negócios. e - m a i l : e - m a i l : s c a l e r c i o @ l i n k . c o m . b r p p o l i v e i r a @ i u p e r j . b r NOTAS 1. Revista Veja, Número 22, 2 de Junho de 2004. 2. Uma lei da antiga União Soviética não permitia que os ex-presidiários voltassem a morar na sua cidade de origem, boa parte se instalava nos locais onde cumpriu pena e Perm é pródiga pela altíssima concentração de casas de detenção. BIBLIOGRAFIA LINTNER, Bertil. Blood Brothers: The criminal underworld of Asia. New York, Palgrave MacMillan, 2002. KAPLAN, David e DUBRO, Alice. Yakuza Rio de Janeiro, Record, 1986 VARESE, Federico. The Russian Mafia. New York, Oxford University Press, 2001. ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 115 FOTOS: MARCELO CARNAVAL I N S I G H T 116 PSDB INTELIGÊNCIA I N S I G H T INTELIGÊNCIA CLÁUDIO CORDOVIL JORNALISTA ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 117 O I N S I G H T arguto leitor que folheia este exemplar de Inteligência não deve estar acreditando no que seus olhos agora vêem: “Mais um artigo sobre transgênicos? Não agüento mais!”. Mas se o autor destas linhas puder contar com o beneplácito de sua paciência, ambos sairão ganhando. Poder-se-ia dizer, parafraseando o iconoclasta Nietzsche, que este é um artigo para acabar com tudo o que já se leu na mídia nacional sobre o tema. Isto porque aqui pretendemos dissecar este estranho fenômeno envolvido na comunicação de riscos sobre transgênicos, com base em literatura internacional: o de que quanto mais informação se recebe sobre o tema, menos conhecimento adquirimos. A controvérsia instalada sobre os transgênicos, de fato, acaba com qualquer aspiração utópica de ‘sociedade de informação’ e abala conceitos caros à sociedade civil, como aqueles de ‘transparência’ e ‘fato’. Se tiver chegado a este parágrafo por ter decidido domar seu enfado, vai poder constatar que vamos abordar aqui tema totalmente inédito no debate público nacional sobre a questão. E isto é surpreendente, dada a quantidade de árvores que já foram derrubadas para que pudéssemos ler algo novo sobre o assunto. Acreditamos que, ao se falar de transgênicos, o certo não é tratar de riscos, mas sim de incerteza científica. E isso faz toda diferença, como se verá a seguir. 118 PSDB INTELIGÊNCIA Além disso, a polêmica sobre transgênicos representa um divisor de águas na relação entre público e inovação tecnológica, fato que deveria preocupar qualquer governante interessado em trazer cobres adicionais para o país. Conseqüência direta desta reflexão aqui proposta é pôr a divulgação científica — o esforço de simplificação para tornar acessíveis aos não-especialistas os conhecimentos científicos —, em sua hora da verdade. Em última análise, trata-se aqui das conflituosas relações entre saber e democracia, iluminadas pela controvérsia mundial sobre alimentos transgênicos1. É importante ressaltar que no Brasil, salvo engano, simplesmente inexistem pesquisas qualitativas a respeito das percepções públicas de alimentos e plantações transgênicas. Predominam as pesquisas quantitativas, que não são o melhor modo de se apreender o fenômeno social. Desconhecem-se assim, em larga medida, as motivações subjacentes às atitudes de consumidores e cidadãos brasileiros com relação a esta questão. Pesquisas qualitativas são fundamentais para analisar os pontos de vista do público em geral, ou seja, dos atores sociais não diretamente envolvidos na controvérsia. Na ausência destas, o público geral fica refém das idealizações, pressuposições e influências de grupos de interesse, sejam eles compostos por cientistas, empresários ou agentes governamentais. I N S I G H T Diante desta ausência total de pesquisas qualitativas, alguns dados merecem ser ressaltados, para começo de conversa. Pesquisa do Ibope, realizada em dezembro de 2003, com dois mil consultados em todo o Brasil, revelou que 73% dos brasileiros acreditavam que os transgênicos deveriam ser proibidos “até que se esclarecesse melhor todas as dúvidas quanto a seus riscos”. Em dezembro de 2002, segundo o mesmo Ibope, 65% dos brasileiros tinham a mesma posição. Há que se destacar que 2003 foi ano de intensos debates e muita cobertura midiática sobre transgênicos, dada toda a discussão sobre a liberação da soja geneticamente modificada no Rio Grande do Sul. Em termos de evolução da preferência por transgênicos e não-transgênicos, a pesquisa do Ibope de 2003 revelou que 74% dos brasileiros preferiam os alimentos não-transgênicos. Em dezembro de 2002, este número era de 71%. Observa-se no caso uma relação inversa entre provisão de informação e confiança. À medida que o tempo passa e a cobertura vive seu auge, aumenta a resistência do público a esta nova tecnologia. E não há que se alegar uma suposta qualificação crítica da cobertura. Estudos nacionais de longa duração sobre a cobertura jornalística a respeito do tema, até onde sabemos, inexistem. No entanto, pesquisa realizada por Luísa Massarani et al. (2003) revelou que, no período entre junho de 2000 e maio de 2001, foram publicadas 751 matérias sobre En- INTELIGÊNCIA genharia Genética, nos cinco maiores jornais do país2. Destas, 54,2% apresentaram uma postura favorável em relação ao tema e 15,7%, uma posição desfavorável. As matérias ditas ‘imparciais’, sem posicionamento explícito (que revelassem prós e contras da tecnologia), representaram 30,1% do total. Segundo o mesmo estudo, o assunto ‘Transgênicos’ foi o terceiro mais abordado no tema ‘Engenharia Genética’. Esteve à frente de temas como ‘Clonagem’, ‘Terapia Genética’, ‘Propriedade Intelectual’, ‘Reprodução Assistida’ e ‘Manipulação Genética em Embriões’, dentre outros. P esquisas do gênero realizadas na Europa revelaram que nos 12 maiores países europeus avaliados “a cobertura [de biotecnologia] é bastante positiva”3. O mesmo acontece na mídia nor- te-americana. Análise que cobriu 30 anos de cobertura jornalística da revista Newsweek e do New York Times (1970-1999), a respeito deste tema, concluiu que, “com relação ao tom (...) nossos achados coincidem com os de estudos anteriores: a cobertura de biotecnologia tem sido exemplificada por uma ausência surpreendente de reportagens sobre controvérsias, com o enfoque nos benefícios sendo maior do que nos riscos potenciais”4. ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 119 I N S I G H T Coloca-se diante de nós agora um mistério. Se a cobertura é fortemente favorável à biotecnologia, por que as resistências aos transgênicos aumentam no decorrer do tempo? Seria esta a demonstração cabal de uma relação conflituosa entre provisão de informação, conhecimento e confiança? A resposta é complexa e multifacetada. Envolve, de início, uma discussão sobre o conceito de incerteza científica e seu tratamento ou omissão na cobertura nacional sobre o tema. Em se tratando de polêmicas contendo novas tecnologias, podemos inferir, a partir das questões ligadas a percepções públicas sobre alimentos transgênicos, que acesso irrestrito à informação e promoção de “transparência”, mandamentos sagrados nos manuais de comunicação empresarial, não são, por si sós, uma panacéia. Têm seu lugar, mas devem possuir seu valor relativizado, como intentamos demonstrar. Enquanto não se constituir no país inteligência social sobre as novas tecnologias em centros acadêmicos ou mesmo na mídia, estaremos condenados a receber muita informação e pouco conhecimento sobre as mesmas, com notáveis conseqüências na qualidade de nossa claudicante democracia. Seremos, no máximo, ilustrados, diletantes receptores das conquistas científicas, a perorar nas mesas de bar sobre vãos conhecimentos extraídos de pós-modernos ‘gabinetes de curiosidades’. SEPARANDO O JOIO DO TRIGO (TRANSGÊNICO) Em primeiro lugar, precisamos estabelecer uma distinção entre risco, incerteza e ignorância científicos. Risco, como definido pela teoria das probabilidades, é incerteza objetivamente probabilizável. Estaremos falando de riscos se as incertezas relativas a acontecimentos forem definidas por uma distribuição de probabilidades objetivas. Já a incerteza ocorre quando falta base empírica ou teórica para atribuir probabilidades a resultados. A ignorância científica se manifesta quando a tomada de decisões se defronta com a constante perspectiva da surpresa. 120 PSDB INTELIGÊNCIA U ma vez reconhecido que a probabilidade de certos resultados não é plenamente quantificável, ou que certas possibilidades podem permanecer inteiramente desconsideradas, estamos diante de uma situação caracterizada mais pela incerteza e pela ignorância científicas do que propriamente pelo risco.Ora, é exatamente disto que se trata quando nos colocamos diante do exame da aceitação ou não de alimentos e plantações transgênicas. No entanto, a mídia só fala de riscos, transformando-os em um fetiche de nosso tempo. Na realidade, para lidar adequadamente com o tema, até do ponto de vista da opinião pública, como se verá adiante, a imprensa deveria estar enfatizando incertezas e ignorância científicas. Esta opção da mídia e dos cientistas (em seus debates públicos) por enquadrar o problema como referindo-se a riscos é uma das principais razões de um certo desconforto da opinião pública com relação à qualidade da cobertura do tema, já expressa por alguns notáveis formadores de opinião. É o caso de Alberto Dines, por exemplo: “No início de outubro começa o plantio, o governo precisa adotar uma política consistente, não há como adiar. E onde entra a mídia nesta história? Não entra. A mídia está de fora do debate, omitiu-se. Em primeiro lugar porque o debate radicalizou-se, ganhou conotação ideológica. Em segundo lugar, porque mais uma vez desvenda-se a carência de jornalistas especializados”. Ou mesmo do jornalista Marcelo Leite: “Está difícil ler coisas sérias sobre alimentos transgênicos, contra ou a favor, em particular na imprensa leiga. Na véspera da tardia decisão do Executivo federal sobre a questão, muita gente que pouco ou nada entendia do riscado se meteu a pontificar sobre biotecnologia. Foi chute e lobby para todo o lado”5. I N S I G H T Agora já estamos em condições de avaliar como a mídia e os cientistas comunicam (ou não) incerteza inerente a novas tecnologias para o público. Também veremos como o público reage à incerteza científica, segundo algumas pesquisas. Este é um campo recente de estudos, com alguns resultados preliminares que estimulam a reflexão. Naturalmente aqui recorremos à literatura internacional, dada a vergonhosa escassez de estudos nacionais já mencionada. O tema é instigante, se nos lembrarmos que o jornalismo é pautado pela noção ortodoxa de ‘fato jornalístico’, que pode ser definido, segundo Michael Schudson, como “asserção sobre o mundo suscetível de validação independente, à margem das influências distorcedoras das diferentes preferências pessoais”. Nesse sentido, investigar como a incerteza subjacente às novas tecnologias é colocada no espartilho do fato jornalístico é tarefa das mais urgentes. Diz respeito à qualidade da democracia que desejamos. Sabendo-se que a imagem da biotecnologia construída pelo público é baseada no que a mídia decide veicular, pode-se imaginar as conseqüências para a democracia da sonegação, depreciação ou atenuação de aspectos de incerteza científica promovida por cientistas e jornalistas. 122 INTELIGÊNCIA COMO OS JORNALISTAS TRATAM A INCERTEZA? Algo que precisa ficar claro desde o início é a de que na busca de certezas, o trabalho cientifico ativamente constrói incertezas. Estas são constitutivas da démarche científica. No entanto, estudos revelam que jornalistas tendem a retratar a ciência como uma atividade mais sólida do que realmente é. Este é um achado robusto em campo de investigações tão recente. Menos ressalvas (caveats) são encontradas em um texto jornalístico quando comparado a um artigo científico sobre o mesmo tema. Além disso, muitas matérias jornalísticas carregam mais certeza sobre prognósticos de pesquisas do que a realidade permite inferir. Carol Weiss e Eleanor Singer6 verificaram que jornalistas tendem a tratar achados provisórios como resultados definitivos. Além disso, versões popularizadas de artigos científicos exageram as pretensões científicas e menosprezam as ressalvas existentes no original. I N S I G H T Tomemos um exemplo esclarecedor. Trata-se de uma conclusão de pesquisadores em artigo publicado na revista Science: “Nós preferimos a hipótese de que as diferenças sexuais nas realizações e na atitude com relação à matemática resultam de habilidade masculina superior, que pode, por sua vez, estar relacionada à maior habilidade matemática masculina para tarefas espaciais7. Na Newsweek ficou assim: “Diferenças sexuais na realização e atitude com relação à matemática resultam da superior habilidade masculina neste campo”. A nálises de conteúdo quantitativas têm documentado uma certa dificuldade dos jornalistas em reproduzir incertezas em reportagens sobre riscos artificiais ou naturais. Em documentários de televisão, a minimização da incerteza científica também se opera. H.M. Collins, em famoso estudo8, chegou a afirmar que a incerteza só é tolerada em documentários de tevê nos casos límbicos da ciência, como o do Santo Sudário de Turim. Collins conclui: “Na tevê, a ciência é apresentada como uma geradora de certeza, quando é conduzida adequadamente. Incertezas e ambigüidades são resultado da incompetência de cientistas, da inadequação do aparato, ou dos limitados testes conduzidos. Incertezas residuais serão eliminadas por testes futuros”. A INCERTEZA NA PRÁTICA DOS CIENTISTAS Os primeiros estudos sobre a comunicação de incertezas científicas, que remontam à década de 80, afirmavam que os cientistas sistematicamente removiam contingências de seu relato com vistas à construção de asserções de verdade em settings públicos. Ao confrontarmos um texto produzido para circulação interna em um laboratório e compará-lo com a versão destinada a uma revista que conta com a revisão por pares, constataremos que uma série de ressalvas (caveats) presentes na versão original terão sido suprimidas na publicação. INTELIGÊNCIA Já na década de 90, outros estudos mostraram que os cientistas também podem criar ativamente incertezas em seus relatos. Trata-se de apontar lacunas no conhecimento anterior àquela publicação, revisar a literatura pregressa no início do texto para mostrar qual a contribuição original que o mesmo pretende realizar. Só desta forma se pode atribuir novidade ao relato apresentado. Assim, podemos concluir que os cientistas em certas circunstâncias podem manusear a seu bel-prazer as incertezas com vistas a adquirir autoridade cognitiva. A situação se complica um pouco quando cientistas se dirigem a não-cientistas em instâncias públicas (que aqui denominaremos “ciência pública”). Nestas circunstâncias, uma versão mais certa da ciência é apresentada pelos cientistas ao público, em comparação com aquela divulgada entre seus pares. Tal estratégia visaria preservar a imagem pública da ciência. De todo modo a incerteza também pode ser manipulada para que se motive a realização de mais pesquisas, num moto-perpétuo que faz a ciência avançar. O fato é que a ocultação ou depreciação da incerteza inerente à démarche científica em settings públicos mistifica a ciência e reduz o âmbito de decisões que o público pode tomar sobre situações que afetam crucialmente suas vidas. As conseqüências nefastas da recusa institucional desta dimensão da incerteza se farão notar especificamente em pesquisas qualitativas internacionais que avaliam a percepção pública de transgênicos. Pode-se observar um gap entre a oferta de informação disponibilizada pelos atores sociais e as reais demandas do público. Um verdadeiro diálogo de surdos onde quem perde é a democracia. O QUE CIDADÃOS E CONSUMIDORES PENSAM DA INCERTEZA CIENTÍFICA? Estamos agora em condições de expor as reais demandas por informações referentes a transgênicos por parte de cidadãos e consumidores, a partir de pesquisas qualitativas internacionais. Antes de comentar estes resultados, convém abordar a metodologia de escolha em estudos de percepção pública a respeito de transgênicos, de acordo com os especialistas. ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 123 I N S I G H T São os grupos focais, cada vez mais empregados no campo dos estudos em ciências sociais interpretativas. É método derivado das pesquisas de mercado. Tem se revelado o melhor para captar dinâmicas sociais de controvérsias. Isto “por permitir aos participantes formularem suas próprias questões, frames e conceitos e buscar suas próprias prioridades em seus próprios termos, em seu próprio vocabulário.”9 São grupos de discussão, estruturados mas flexíveis, contando com três a 12 participantes. Cabe a um moderador dinamizar as discussões e promover a interação dos participantes, a partir de questões dirigidas ao grupo. R estrições ao método são feitas por alguns estudiosos, que acreditam que as amostras envolvidas não sejam representativas da população geral, por conta do pequeno número de participantes. No entanto, seus defensores argumentam que deve se avaliar as relações custo-benefício entre preservar representatividade ou obter visão aprofundada das questões, por parte dos membros do grupo. Para se obter representatividade, neste caso, alguns especialistas recomendam que sejam reproduzidos grupos focais tantas vezes quantas necessárias até que se atinja coincidência de opiniões entre os diversos grupos formados para uma dada pesquisa. Totalmente inexistentes no Brasil no campo dos transgênicos, estes estudos revelam resultados surpreendentes e, em geral, coincidentes em certos aspectos com a literatura internacional. Em novembro de 2000, a Universidade de Lancaster publicou o relatório Wising up: The public and new technologies, que, patrocinado pela Unilever, revelava que “os atuais métodos de provisão de informação de ‘mão única’ [como os adotados pelos veículos de comunicação e assessorias de imprensa] são totalmente inadequados para a tarefa de dar conta das tensões humanas e dinâmicas sociais que devem emergir em relação às novas tecnologias e produtos ao longo das próximas décadas”. O relatório apontava sugestões para minorar o problema, algumas delas pertinentes ao campo da comunicação, que aqui serão comentadas. 124 PSDB INTELIGÊNCIA Os estudos empíricos de base qualitativa reunidos no relatório Wising up revelaram de forma curiosa os descompassos entre a cultura institucional (e suas convicções sobre provisão de informação e transparência) e as reais demandas de informação de consumidores e cidadãos britânicos sobre transgênicos e novas tecnologias. As conclusões do referido estudo problematizam os mitos mais caros da comunicação. Foram realizadas 20 entrevistas com especialistas de informação do setor manufatureiro, do varejo, do governo e das ONGs. Numa segunda etapa, seis grupos de discussão (grupos focais) de amostras significativas do público foram promovidos em duas rodadas de encontros. Buscava-se obter, entre outras coisas, pistas sobre a experiência das pessoas com relação à utilidade das informações fornecidas sobre novas tecnologias. O gap entre os dois públicos envolvidos na pesquisa (provedores de informação e consumidores/cidadãos) foi notável. Enquanto os provedores de informação tendiam a destacar a nobreza do ato de informar em seus relatos, os consumidores-cidadãos acreditavam que toda informação que recebiam desses atores era editorializada e retratava, de alguma forma, ‘a voz do dono’. A despeito destes achados, os provedores de informação entrevistados, seja da indústria ou do governo, não manifestaram qualquer reconhecimento da importância de se estabelecerem “fluxos de informação recíprocos”, que ligassem especialistas ao público e vice-versa. A pesquisa revelou que os consumidores/cidadãos realizavam complexas operações de triangulação de informações para formar suas opiniões sobre o tema. Nestas estratégias, os pontos de vista da rede de pessoas ligadas ao pesquisado desempenhavam papel fundamental. Revela-se aqui uma importante limitação das concepções envolvendo os vínculos do tipo causa-efeito entre provisão de informação e “escolha racional” de consumidores/cidadãos, tidos como dogmas por provedores de informação. I N S I G H T Além disso, o estudo mostrou que os provedores de informação pareciam obstruir, em suas políticas de comunicação, a admissão de que o conhecimento científico de novas tecnologias apresenta limites, fato destacado pelos grupos focais envolvidos no estudo como digno de preocupação. Políticas de comunicação fundadas sobre conhecimento ‘positivo’, sobre a excelência dos ‘fatos’, características da cultura da ‘transparência’ e da ‘franqueza’, revelaram aqui suas limitações. C ríticas também foram apontadas pelos grupos focais sobre a competência do governo em desempenhar um papel independente no trato da questão. Um estreito conluio entre interesses econômicos das grandes corporações e as posturas do governo no âmbito da regulamentação foi sugerido (isto no Reino Unido!). Este aspecto, segundo os responsáveis pela pesquisa, poderia revelar as limitações da ênfase na dimensão consumidora dos cidadãos, subjacentes às estratégias comunicacionais de provedores de informação, no que se refere a novas tecnologias. 126 INTELIGÊNCIA Ficou sugerido nos resultados que o governo falhava em desempenhar um papel controlador suficientemente independente sobre os desenvolvimentos de produtos transgênicos. Além disso, concluiu-se que os atuais arranjos eram inadequados para espelhar valores públicos. Por conta disso, houve um aparente ceticismo sobre a possibilidade de uma maior influência pública sobre tais desdobramentos. Entre as recomendações oferecidas pelos pesquisadores para a promoção de um “entendimento interativo”, envolvendo controvérsias referentes a novas tecnologias, está a de ampliação de horizontes das pesquisas de mercado centradas em psicologia do consumidor. Isto deve ser feito para que elas contemplem a “significação de realidades sociais mais profundas”, com base no aporte de conhecimentos derivados das humanidades e ciências sociais interpretativas. Sugerem também que, já no processo de desenvolvimento de produtos, as expertises sejam ampliadas para que dinâmicas culturais envolvidas nas constituições sociais das tecnologias sejam contempladas. I N S I G H T No campo estrito da comunicação, é mencionada a necessidade de que executivos sejam “mais realistas sobre limites e potencialidades da informação de mão única referente a tecnologias ou produtos polêmicos”. De posse de expectativas mais modestas sobre suas virtudes, este tipo de informação deve ser oferecido não como definitiva, mas refletindo “uma entre muitas das perspectivas fundamentadas, com áreas de incerteza assumidas”. O relatório destaca que, concebidas desta maneira, informação e transparência podem desempenhar um papel mais fundamental. Outro estudo curioso neste aspecto da valorização da incerteza pelo público é o Public Perceptions of Agricultural Biotechnologies in Europe (PABE), financiado pela Comissão das Comunidades Européias. Nos cinco países estudados (Reino Unido, França, Itália, Alemanha e Espanha), observa-se total discrepância entre as impressões de alguns atores sociais sobre as opiniões do público leigo e os achados empíricos do estudo. Nos resultados do levantamento, divulgados em maio de 2002, constatou-se uma semelhança de opiniões nos cinco países investigados. Entre as conclusões, o fato de as pessoas “articularem suas preocupações não sobre riscos (conhecidos, identificáveis), mas sobre efeitos imprevisíveis (desconhecidos da ciência) e a negação institucional dos mesmos” . Brian Wynne, um dos coordenadores do PABE, menciona também um detalhe omitido em certo estudo detalhado sobre o mais importante debate público britânico a respeito do tema, o GM Nation? The Public Debate. Realizado em junho e julho de 2003, contou com mais de 600 encontros locais em inúmeras cidades do Reino Unido e cerca de 20 mil pessoas consultadas. “Foi omitida qualquer referência ao achado de que grande parte da oposição pública aos transgênicos era devida ao comportamento institucional de cientistas, consultores e especialistas do governo — sua negação da ignorância, exageros a respeito do controle científico, definições paternalistas do público e confusão entre fatos e valores — e não primariamente focada em riscos, como presumia a ciência10 . INTELIGÊNCIA E studo conduzido por Frewer et al11 com cerca de 1.100 participantes consultados através de questionários cujas perguntas foram elaboradas após reuniões com grupos focais verificou que: “os tipos de incerteza relacionados a processos científicos eram considerados mais aceitáveis do que aqueles decorrentes da falta de atividade governamental no campo do entendimento das incertezas do risco. (...) O que era inaceitável era a informação sobre a falta de ação do governo ou a ocultação da informação sobre incerteza diante do público”. SOCIEDADE DE RISCO E CRISE DE LEGITIMIDADE Pano de fundo de toda esta problematização acima posta é a idéia partilhada por certas vertentes da teoria social contemporânea de que hoje vivemos em uma ‘sociedade de risco’, na visão de autores como Ulrick Beck e Anthony Giddens. Nela, o risco é o princípio chave da organização societal. Sua emergência põe em campos opostos o desenvolvimento continuado das asserções de experts, para defini-los e controlá-los, e um desencanto crescente com tais análises da parte dos leigos. Longe se vai o tempo dos famosos Trinta Gloriosos com sua fé inconteste no progresso. Hoje, por conta de múltiplas demonstrações de imprevidência, de distância entre o discurso assegurador e uma realidade extremamente incerta, de total opacidade sobre processos de decisão e sobre ações efetivamente implementadas, um real desencantamento com as promessas da ciência se revela. Ainda que concomitante com entusiasmo por certas inovações tecnológicas, notadamente no campo da informação e comunicação. O maior desafio hoje enfrentado pelas democracias é evitar a radical separação entre governantes e sociedade civil. Para Beck, a lógica da distribuição de riquezas que presidia a sociedade industrial até aproximadamente a década de 1970 se faz agora acompanhar pela lógica da distribuição de riscos em escala global. Tais riscos apresentam características singulares, pois são suscitados pela modernização e, de responsabilidade, em sua maior parte, da ciência e da tecnologia, ainda que freqüentemente ignorados pelas mesmas, por conta do tratamento obsoleto e reducionista que dão a estas questões. Segundo Beck, “a ciência é uma das causas, o meio de definição e a fonte de soluções para os riscos”. ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 127 I N S I G H T B eck entende que “a crise ambiental não é uma crise natural, mas sim social”. A visão modernista da ciência como dispositivo de predição e controle perde o sentido diante dos megarriscos de nova natureza enfrentados pela sociedade hodierna, como aqueles representados pela disseminação em larga escala de plantações transgênicas. A autoridade epistêmica para a solução destes riscos de nova ordem deixa de ser monopólio de grupos de especialistas, e passa a ser negociada discursivamente com uma sociedade que se torna cada vez mais autocrítica. Afinal, estamos lidando com incertezas que muitas vezes escapam à competência deliberativa de cientistas. Diante de incertezas desta natureza, as deliberações devem ser políticas, pactuadas com a sociedade, e não apanágio de cientistas e especialistas. Podemos ver aí uma das principais razões da persistência da controvérsia sobre os transgênicos. Se o laboratório onde eles serão verdadeiramente testados é a natureza, necessário se faz pactuar o protocolo destas pesquisas com os cidadãos. Tais movimentos tectônicos societais contemporâneos evidenciam dois fatos: a) A incapacidade da ciência em garantir, em tempo hábil, uma base objetiva certa para a ação pública e b) A existência de um substrato contemporâneo de desconfiança dos cidadãos com relação à gestão pública dos riscos coletivos. São assim problematizados dois dispositivos fundamentais da modernidade: a representação objetiva do mundo formulada pela ciência (a) e a representação política dos cidadãos, materializada pela democracia representativa (b). A partir desta crise de legitimidade contemporânea, novas formas de deliberação democrática, mais inclusivas com relação aos cidadãos, têm sido ensaiadas na Europa com a finalidade de inaugurar um novo pacto envolvendo ciência e sociedade. Entre elas, uma das mais interessantes é o júri de cidadãos, verdadeiros tribunais onde grupos de cidadãos manifestam suas inclinações com relação a determinada tecnologia. São ferramentas importantes para a subsidiar a tomada de decisão de governantes. INTELIGÊNCIA CONCLUSÃO Incertezas no campo das novas tecnologias, que provaelmente jamais serão solucionadas pela ciência, estão sendo sistematicamente omitidas do debate público nacional, com conseqüências preocupantes para a nossa jovem democracia. É o que se vê no caso dos transgênicos. Enquanto o Ocidente assiste ao abalo do estatuto da ciência como única autoridade cognitiva concebível, no Brasil seus próceres divulgam uma imagem da mesma como a de uma atividade não-problemática, onde uma continuidade natural se estabelece entre seus interesses e os da sociedade. Conseqüências nefastas da indiferença a inúmeros estudos sociais contemporâneos a este respeito poderão advir, gerando crises de governabilidade como a que observamos com a liberação da soja transgênica no Rio Grande do Sul em 2003. e-mail: [email protected] NOTAS 1. Este artigo é baseado em dissertação de mestrado recentemente apresentada pelo autor à Escola de Comunicação da UFRJ e intitulada Transgênicos, mídia impressa e divulgação científica: Conflitos entre a incerteza e o fato. 2. O Estado de S. Paulo, Folha de São Paulo, O Globo, Extra e Jornal do Brasil. 3. Gutteling, J.M. et al. Media coverage 1973-1996: trends and dynamics. In: Bauer, M.W. & Gaskell, G. Biotechnology _ The making of a global controversy. Cambridge University Press, London, 2002. 4. Nisbet, M e Lewenstein, B. Biotechnology and the american media: the policy process and the elite press, 1970 to 1999. Science Communication, v. 23, n. 4, p. 359-391, June 2002. 5. Observatório da Imprensa na TV, transmitido em 23.9.2003; Leite, Marcelo. “Patacoadas transgênicas”. In Folha de S. Paulo, 14.9.2003 6. Weiss, C. H. & Singer, E. Reporting of social science in the national media. Russell Sage Foundation. New York, 1988. 7. Id.Ibid. 8. Collins, H.M. Certainty and the Public Understanding of Science: Science on television. Social Studies of Science, v. 17, p. 689-713, 1987. 9. Kitzinger, J. e Barbour, R.S. Introduction: the challenge and promise of focus groups. In: _________. (eds) Developing focus group research: Politics, theory and practice. Sage. London, 1999. 10. Wynne, B. Social aspects of nanotechnology: misunderstanding science? In: Euronanoforum Conference. Trieste, 10-12 dez/03. 11. Frewer, L. et al. Public preferences for informed choice under conditions of risk uncertainty. Public Understanding of Science v. 11, p. 363372, 2002. 128 PSDB I N S I G H T INTELIGÊNCIA Os cruéis MODELOS JURÍdICOS de controle social ROBERTO KANT de LIMA Recentemente, a mídia nos tem bombardeado com inúmeros casos de denúncias de corrupção, envolvendo agentes do governo e empresários. É claro que a corrupção existe, sempre existiu e sempre existirá mas, aparentemente, os mecanismos da sociedade incumbidos de puni-la estão se mostrando mais visíveis. No entanto, como aperfeiçoar esses mecanismos ou, mesmo, fazê-los abandonar a ênfase em seu feitio repressivo e torná-los mais preventivos? Por que não se pensa mais em formas de promover a internalização de regras de comportamento dos funcionários públicos capazes de dotá-los de uma ética burocrática que não esteja fundada na apropriação particularizada de recursos públicos, mas em sua apropriação universalizada pela coletividade? Como promover esta internalização? ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 131 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Este artigo discute alguns aspectos de nosso sistema de controle das atividades burocráticas estatais, que apresenta afinidades e coerências com a organização da produção de verdades judiciárias em nossa sociedade. A exposição faz uso de resultados de pesquisas realizadas pelo autor com sistemas judiciários do Brasil e dos Estados Unidos, sob a orientação do método comparativo, próprio da perspectiva antropológica contemporânea. Meu objetivo aqui é discutir uma possível correlação positiva entre a igualdade jurídica formal, os processos acusatoriais de produção da verdade jurídica e a liberdade de optar pela conveniência de a autoridade atuar — princípio da oportunidade, ou discretion, em inglês — e a possibilidade de controle dos agentes públicos através do acompanhamento, avaliação e responsabilização — accountability, em inglês — de suas opções; e, de outro, a desigualdade jurídica formal, processos inquisitoriais de produção da verdade jurídica, a obrigatoriedade de atuar de determinada forma imposta aos órgãos do Estado e a possibilidade de culpabilização dos agentes públicos em função de seus erros ou omissões que possam ter contrariado essas obrigações. Decorre daí que as estratégias repressivas de controle social próprias das sociedades de desiguais — em que as regras, por definição, não representam a proteção para todos, mas encontram-se externalizadas, isto é, exteriores aos sujeitos — ensejam justificativas aparentemente consistentes para sua violação sistemática pelos indivíduos, enquanto as estratégias preventivas, próprias das sociedades de iguais, em que o controle se faz pela internalização das regras pelos indivíduos, ensejam justificativas consistentes para sua obediência. 132 OAB Em conseqüência, a punição das infrações nos sistemas repressivos, embora amplamente desejada, deve ocorrer, de preferência, em relação aos outros, desiguais, enquanto que nos sistemas disciplinares ou preventivos, anuncia-se como fundamental a imposição do cumprimento de regras para toda a coletividade de iguais, devendo ser exemplarmente punido aquele que, sendo igual, a ela não quer se submeter como o fazem seus pares. Também é meu intuito, à guisa de exemplo, discutir o fato de que, do ponto de vista do ethos da instituição policial — cujo surgimento é geralmente apontado como ponto de inflexão e passagem de modelos de controle social, na sociedade contemporânea, das estratégias jurídicas repressivas para aquelas preventivas — a presença de estruturas funcionais e organizacionais internas fundadas na desigualdade explícita, aliada à predominância de formas de controle social repressivo que lhes são imposta internamente, constitui um paradoxo. Esta estrutura, tal como se reproduz nas polícias brasileiras, tem conseqüências relevantes para a eficiência dos mecanismos de controle da atividade policial, colaborando para que não sejam internalizados positivamente os efeitos da punição dos agentes e autoridades policiais que incorrem em faltas funcionais, usualmente denominadas como desvio de conduta. Iniciarei a discussão explicitando um contraste clássico, mas persistentemente encoberto por nossas tradições jurídicas: de um lado, a associação entre a igualdade formal dos cidadãos, garantida pelo conjunto das liberdades públicas existentes na Constituição e pelo acesso universal aos tribunais, para defendê-las — os direitos civis — e a desigualdade oriunda da participação no mercado, própria das sociedades capitalistas contemporâneas; e, de outro, a desigualdade formal imposta a segmentos de uma sociedade aristocrática e a conseqüente inexistência de um mercado onde os membros da sociedade possam competir livremente, própria das sociedades ocidentais anteriores às revoluções liberais. I N S I G H T INTELIGÊNCIA Há diferenças, do ponto de vista dos fundamentos da desigualdade, nos dois contextos: no Antigo Regime, a igualdade se estabelecia entre os membros do mesmo grupo (estamento) e a desigualdade, entre grupos, estava fundamentada moral e juridicamente no status, afirmando-se jurídica e politicamente um modelo social de cunho piramidal no qual, sendo a base maior do que o topo, a desigualdade está naturalizada; na sociedade republicana, em que se garantiu a igualdade jurídica a todos os cidadãos, vai-se justificar a desigualdade pelas diferenças de performance entre os cidadãos no mercado, já que, teórica e juridicamente, estão dispostos inicialmente na mesma posição, como se todos ocupassem a base de um paralelepípedo, cuja dimensão é a mesma do seu topo. É claro que esta representação tem por efeito naturalizar a igualdade. Assim, é a igualdade jurídica diante da lei e dos tribunais, que vai fornecer a justificativa moral para a desigualdade econômica, política e social na sociedade cujo modelo jurídico-político pode ser representado por um paralelepípedo: a idéia de igualdade diante da lei e dos tribunais justifica a desigualdade de classes nas esferas econômica, política e social, inerente ao mercado. Nas palavras de um autor consagrado da área: “Não obstante, a verdade é que a cidadania, mesmo em suas formas iniciais, constituiu um princípio de igualdade, e que, durante aquele período, era uma instituição em desenvolvimento. Começando do ponto no qual todos os homens eram livres, em teoria, capazes de gozar de direitos, a cidadania se desenvolveu pelo enriquecimento do conjunto de direitos de que eram capazes de gozar. Mas esses direitos não estavam em conflito com as desigualdades da sociedade capitalista; eram, ao contrário, necessários para a manutenção daquela determinada forma de desigualdade. A explicação reside no fato de que a cidadania, nesta fase, se compunha de direitos civis. E os direitos civis eram indispensáveis a uma economia de mercado competitivo. Davam a cada homem, como parte de seu status individual, o poder de participar, como uma unidade independente, na concorrência econômica, e tornaram possível negar-lhes a proteção social com base na suposição de que o homem estava capacitado a proteger a si mesmo.” 1 1. Marshall, Thomas .H. – Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro, Zahar, 1967, pp. 79. ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 133 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Além disso, a sociedade de mercado é representada, nesse formato, como uma sociedade contratual, cujo contrato substituiu uma outra forma de contrato: “O contrato moderno não nasceu do contrato feudal; assinala um novo desenvolvimento a cujo progresso o feudalismo foi um obstáculo que teve que ser afastado. Pois o contrato moderno é essencialmente um acordo entre homens que são livres e iguais em status, embora não necessariamente em poder. O status não foi eliminado do sistema social. O status diferencial, associado com classe, função e família, foi substituído pelo único status uniforme de cidadania, que ofereceu o fundamento da igualdade sobre a qual a estrutura da desigualdade foi edificada.” 2 A definição de sociedade como um contrato entre indivíduos livres traz conseqüências para os modelos de controle social propostos para administrar seus conflitos. Enquanto na sociedade composta de segmentos desiguais — estamentos — a ênfase do modelo de controle social estava na repressão — uma vez que as regras, não sendo iguais para todos, certamente teriam que ser impostas àqueles segmentos a quem prejudicassem — na sociedade de indivíduos livres e iguais, onde as regras valem, igualmente, para todos, e por isso consistem em sua proteção contra o abuso de alguns e, sobretudo, contra o abuso do Estado, a ênfase estará na internalização das regras por todos, produzindose, em conseqüência, sua disciplinarização — ou normalização, como querem alguns autores. Outra conseqüência desta transformação do modelo de sociedade é que surge, com a idéia de mercado, a possibilidade de escolha entre as opções por ele oferecidas, que podem levar a resultados diferenciados as ações de seus componentes. Ora, sabe-se que a desigualdade é um dos princípios organizadores da sociedade brasileira, oriundo da sociedade tradicional dos tempos coloniais que, entranhado na estrutura social, organiza, com freqüência, as relações nas instituições. Não é por acaso que o argumento sobre a igualdade, proferido em discurso de Ruy Barbosa do início do século XX, é freqüentemente citado para justificar a existência de institutos jurídicos legitimadores da desigualdade jurídica em um sistema que se diz republicano e democrático: “A parte da natureza varia ao infinito. Não há, no universo, duas coisas iguais. Muitas se parecem umas às outras. Mas todas entre si diversificam. Os ramos de uma só árvore, as folhas da mesma planta, os traços da polpa de um dedo humano, as gotas do mesmo fluido, os argueiros do mesmo pó, as raias do espectro de um só raio solar ou estelar.Tudo assim, desde os astros, no céu, até aos aljôfares do rocio na relva dos prados. A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, à medida que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem. Esta blasfêmia contra a razão e a fé, contra a civilização e a humanidade, é a filosofia da miséria, proclamada em nome dos direitos do trabalho; e, executada, não faria senão inaugurar, em vez da supremacia do trabalho, a organização da miséria.”3 2. Marshall, Thomas H., op. cit., pp. 79-80, grifos meus). 3. Trecho do discurso de paraninfo “Oração aos Moços”, Faculdade de Direito de São Paulo. Obras Completas de Ruy Barbosa. Rio de Janeiro, Casa de Ruy Barbosa, V. 48, t. 2, 1921, grifos meus. 134 OAB I N S I G H T INTELIGÊNCIA Este discurso, repetido à exaustão pela maioria de nossos juristas, desde sua enunciação pública, claramente opera uma transformação da diversidade da natureza em desigualdade da sociedade para, em seguida, rotular esta desigualdade de natural. Os ideais do princípio de igualdade formal ficam assim neutralizados em nossa cultura jurídica, expressa na prática de profissionais do direito. A situação paradoxal de vivermos em uma sociedade onde o mercado produz constantes desigualdades econômicas, que estão em tensão contínua com o princípio basilar da igualdade de todos perante a lei, não lhes desperta inquietações, porque tal situação de desigualdade é percebida como natural, devendo o mundo do direito reproduzir essa desigualdade para, eventualmente, distribuir também desigualmente o acesso aos bens jurídicos para, assim, fazer justiça. Desta forma, pretende-se resolver esse paradoxo, como se isto fosse possível. Temos bons exemplos no processo penal deste fenômeno, onde privilégios estão a desigualar o tratamento concedido a autores e co-autores dos mesmos delitos tipificados no Código Penal. Conseqüentemente, neste modelo, na ausência de demarcação definida e estruturada em torno de eixos explícitos de legitimação da desigualdade, como em uma sociedade aristocrática, cabe a todos, mas, principalmente, às instituições encarregadas de administrar conflitos no espaço público, em cada caso, aplicar de maneira particular as regras disponíveis — sempre gerais, nunca locais — de acordo com o status de cada um, sob pena de estar cometendo injustiça irreparável ao não se adequar à desigualdade social imposta e implicitamente reconhecida. Desigualdade jurídica esta inconcebível em qualquer República constitucional, mas cuja existência, nesse contexto de ambigüidade em que nossa sociedade se move, goza de confortável invisibilidade. Eis por que a legislação processual penal admite tratamento diferenciado a pessoas que são acusadas de cometer infrações, enquanto estão sendo processadas, não em função das infrações, mas em função da qualidade dessas pessoas, consagrando, inclusive, o acesso à instrução superior completa como um desses elementos de distinção. Esta distinção de tratamento, na prática, significa atribuir a presunção de inocência àqueles que detêm tal privilégio e a presunção da culpa àqueles que não os detêm, pois estes últimos são, ainda enquanto estão sendo processados, alojados em péssimas condições e na companhia, em geral, daqueles que já estão condenados4. 4. Como mostraram os trágicos e recentes acontecimentos das Casas de Custódia de presos comuns que aguardam julgamento em Benfica, bairro do Rio de Janeiro palco de uma chacina entre os presos, que se verificou ao lado de uma instalação de presos especiais, aonde nada de extraordinário aconteceu. Para compreender quão séria é esta questão da desigualdade jurídica, acaba-se de aprovar, em julho de 2001, uma nova regulamentação da prisão especial, denominação jurídica deste instituto. O Executivo, inicialmente motivado a extinguí-la para impedir a aplicação de privilégios a um juiz que se encontrava respondendo a processo criminal, abandonou sua intenção inicial e o assunto — que é claramente inconstitucional — foi apenas regulamentado pelo Congresso, em votação simbólica das lideranças, que incluiu uma nova categoria profissional — os militares em geral — no privilégio! ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 135 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Como já mencionei, estas representações estruturais da sociedade — ora concebida como composta de elementos diferentes e opostos, mas iguais, ora como composta de segmentos internamente semelhantes, mas desiguais e complementares entre si — têm sérias conseqüências para os sistemas de controle social, em particular para os sistemas processuais penais. Pois, além de implicarem ênfases diferenciadas, ora na normalização dos indivíduos visando a prevenção de acontecimentos futuros, a igualdade dos cidadãos — ou dos elementos de um mesmo estamento entre si — enfatiza modelos acusatoriais de processo, que visam estabelecer consensos públicos sobre responsabilidades, enquanto a presunção da desigualdade entre os súditos ou cidadãos, aponta para a necessidade de métodos processuais inquisitoriais, que têm a finalidade de confirmar suspeições sistematicamente construídas para punir as infrações já cometidas. Daí decorrem também dois modos de representar os conflitos: no primeiro modelo, os conflitos que advêm da oposição inevitável de interesses são previsíveis e constitutivos da ordem social; no segundo, fundado na pressuposição de uma sociedade arrumada em rígida hierarquia de segmentos desiguais e complementares — cada coisa em seu lugar — os conflitos são disruptores e ameaçadores da ordem social. De acordo com um processualista penal consagrado, também contemporâneo do início da República5, as características destes métodos podem ser assim resumidas: “1º O sistema acusatório admite, em geral, uma acusação formulada no ingresso da instrução, instrução contraditória, defesa livre e debate público entre o acusador e o acusado, ao passo que o sistema inquisitorial procede a pesquisas antes de qualquer acusação, substitui à defesa o interrogatório do indigitado, ao debate oral e público as confrontações secretas das testemunhas e, em geral, a instrução escrita e secreta às informações verbais. 2º O sistema acusatório, subordinando-se ao método sintético, afirma o fato e, enquanto não o prova, o acusado é presumido inocente; o sistema inquisitório, subordinando-se ao método analítico, não afirma o fato, supõe a sua possibilidade, presume um culpado, busca e colige os indícios e as provas. 3º O sistema acusatório propõe-se a fazer entrar no espírito do juiz a convicção da criminalidade do acusado; o sistema inquisitório propõe-se a fornecer ao juiz indícios suficientes para que a presunção possa ser transformada em realidade. 4º Enfim, um preocupa-se principalmente do interesse individual lesado pelo processo, outro preocupa-se principalmente do interesse público lesado pelo delito” 6 5. Mendes de Almeida Jr., João – O Processo Criminal Brazilairo. Rio de Janeiro, Typografia Baptista de Souza, 1920, 2 vols. 6. Op. cit., 1º vol. pp. 250, grifos meus. 136 OAB I N S I G H T INTELIGÊNCIA Fica clara, portanto, a atribuição de uma função de promoção de justiça social com- Assim, a presença de métodos oficialmente sigilosos de produção da verdade — como no caso do inquérito policial em nossa legislação — próprios de sociedades de desiguais, que querem circunscrever os efeitos da explicitação dos conflitos aos limites de uma estrutura que se representa como fixa e imutável, confirmam a naturalização da desigualdade própria de nossa consciência cultural: as pessoas são consideradas naturalmente desiguais, e o Estado aparece como elemento que deve compensar a desigualdade. A função compensatória do Estado, portanto, não é uma promoção da igualdade para que as partes administrem seus conflitos em público, mas é vista como uma incorporação da desigualdade na fórmula jurídica de administração dos conflitos em público. Esta fórmula era perfeitamente justificável em uma sociedade aristocrática, de desiguais: “O sistema inquisitório contém elementos que não podem ser repelidos, tanto assim que foi, no século XIII a XVIII uma garantia de justiça e liberdade. Quando o homem de condição humilde estava exposto às arbitrariedades dos fortes, ricos e poderosos, não lhe era fácil comparecer ante às justiças senhoriais para acusar sem rebuço, sem constrangimento e sem o temor e a quase certeza da vingança; o Direito Canônico, opondo ao procedimento acusatorial o procedimento inquisitório, foi o protetor da fraqueza perseguida e o adversário da força tirânica; se os abusos desnaturaram a instituição, causando mais tarde males superiores aos benefícios, isso não exige a abolição do sistema e sim a criação de cautelas para o seu aproveitamento. Foi por isso que, desde o século XVIII, as nações em sua maioria trataram de adotar um sistema misto, em que os direitos individuais se harmonizassem com as exigências da defesa social, em que nenhum desses sistemas, quer o inquisitório, quer o acusatório, “fosse entregue a suas próprias tendências.”7 pensatória às avessas — descompensatória? — à justiça criminal: ao invés de promover a igualdade jurídica das partes em seu âmbito, deve supor a sua desigualdade social e promover sua desigualdade jurídica e, sob a justificativa de proteger os mais fracos, arrogar-se a função de antecipar-se aos desequilíbrios de poder entre os litigantes, para administrá-los. Aqui, nada se diz quanto à igualdade jurídica formal das partes, que são dotadas de igual direito de postulação judicial no sistema acusatório. Como que a confirmar o caráter inquisitorial dos procedimentos de produção da verdade judiciária, a Exposição de Motivos que introduz o texto do Código de Processo Penal em vigor explicita ser objetivo do processo judicial criminal, a descoberta da verdade real, ou material, por oposição à verdade formal do processo civil, que consiste em admitir como verdadeiro aquilo que o juiz seleciona do que lhe foi levado pelas partes. No sistema que privilegia verdade real, ao contrário, os juízes podem e devem tomar a iniciativa de trazer aos autos tudo o que pensarem interessar ao processo, para formar o seu livre convencimento examinando a prova dos autos. Assim também, todos os elementos que se encontram registrados, por escrito, nos volumes que formam os processos judiciais — incluindo os inquéritos policiais, de caráter inquisitorial — podem ganhar consistência para a formulação da sentença final. Neste sistema o juiz pode, até, discordar de fatos considerados incontroversos pela acusação e pela defesa, de acordo com autora consagrada da área: “O princípio da verdade real, que foi o mito de um processo penal voltado para a liberdade absoluta do juiz e para a utilização de poderes ilimitados na busca da prova, significa hoje simplesmente a tendência a uma certeza próxima da verdade judicial: uma verdade subtraída à exclusiva influência das partes pelos poderes instrutórios do juiz e uma verdade ética, constitucional e processualmente válida. Isso para os dois tipos de processo, penal e não-penal. E ainda, agora exclusivamente para o processo penal tradicional, uma verdade a ser pesquisada mesmo quando os fatos forem incontroversos”.8 7. Op. cit., 1º vol. pp. 250-251. 8. GRINOVER, Ada Pellegrini. A Iniciativa Instrutória do Juiz no Processo Penal Acusatório. in Revista Brasileira de Ciências Criminais, Ano 7, número 27, jul-set/99, pp. 79, grifo meu ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 137 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Assim, vemos que o modelo de espaço público e de esfera pública da sociedade brasileira é uma mistura explícita de dois modelos para a sociedade, aos quais correspondem, também, dois modelos jurídicos de controle social. O primeiro assemelha-se social e juridicamente a um paralelepípedo, no qual a sociedade se representa como composta de elementos individuais, juridicamente iguais, mas diferentes de fato, que se opõe permanentemente na disputa por recursos escassos, que estão disponíveis a todos, em princípio. A diferença de posição que cada indivíduo apresenta na estrutura do paralelepípedo não decorre de uma distorção do sistema, mas de sua habilidade diferenciada para utilizar eficazmente os recursos disponíveis. As palavras-chave, aqui, são: a igualdade de oportunidades e as escolhas acertadas. Elas é que determinarão os méritos individuais. É necessário, portanto, garantir o acesso universal, isto é, de todos à informação. Sendo assim, só tem validade a informação que está disponível a todos, da mesma forma, em público. A informação universalizada, então, é um mecanismo de normalização da sociedade. Por esta razão, a exigência da publicidade para sua validade representa a garantia de que não haverá abusos que privilegiarão uns ou outros, punindo-se severamente a sua utilização de forma privilegiada. O espaço público, assim, será o espaço coletivo, onde os impulsos individuais devem ser contidos. A igualdade, aqui, está associada à diferença, pois todos têm o igual direito de ver respeitada a sua diferença individual na esfera das normas e das práticas públicas. Neste sentido, há como que um muro entre o espaço público e o espaço privado, que só pode ser transposto através do cumprimento de muitas fórmulas rituais. Esta separação rígida se expressa no conceito de privacidade (privacy, em inglês). 138 OAB I N S I G H T O tratamento dado aos conflitos, no modelo igualitário de sociedade, consiste em considerá-los previsíveis e apreendê-los através de acusações públicas, que enfatizam a explicitação dos conflitos e a negociação de sua resolução, para possibilitar um mínimo de ordem necessária ao convívio social. Sua administração requer sucessivas barganhas, em que todos perdem um pouco para que a sua resolução seja possível através de construções, preferencialmente consensuais, de verdades coletivas. Por isso, há ênfase na estabilidade e previsibilidade dos procedimentos, mais no que no conteúdo das regras. Finalmente, as regras que regem o espaço público no modelo igualitário são sempre consideradas como regras de um universo específico e determinado, localizado. Daí decorrem outras duas regras próprias deste modelo: as regras são presumidamente consensuais, o que implica que todos sabem o que elas querem dizer, o que faz sua compreensão ser literal; e aplicam-se a todos os que pertencem àquele universo da mesma maneira, isto é, de maneira universal. Ao governo, com seus instrumentos, assim como às instituições encarregadas de administrar conflitos, cabe promover a igualdade de oportunidades e a sua resolução sistemática, zelando pela previsibilidade da vida social. A igualdade prevalece sobre a liberdade. INTELIGÊNCIA Quanto ao segundo modelo, o de formato piramidal, pode-se dizer que ali se enfatiza e naturaliza a desigualdade, pela própria constituição do modelo: sendo o topo da figura menor que a base, está claro que deverá haver mecanismos de exclusão para determinar quem está em cima e quem está em baixo da estrutura social. Presume-se a sociedade como constituída de segmentos desiguais e complementares entre si, que não se opõem no espaço público. Aqui a diferença está associada à desigualdade e a semelhança à igualdade entre os pares, uma vez que a igualdade é um fenômeno que só ocorre entre os membros de um mesmo patamar da pirâmide. Daí decorre que os recursos não estão acessíveis a todos da mesma maneira e a informação de acesso particularizado é valorizada publicamente, pois indica que seu possuidor está mais próximo ao topo da pirâmide que os demais: a informação, que está acessível a todos, de nada vale. Assim, a informação privilegiada, obtida por meios sigilosos e apropriada em benefício particular, é valorizada positivamente. Os conflitos, nesse modelo, significam uma inconformidade com a ordem estabelecida, uma desarrumação da ordem, uma tentativa de ruptura institucional. Devem, assim, ser evitados ou suprimidos a todo custo, pois representam uma ameaça à paz social. Aqueles que ousaram provocá-los e explicitá-los devem ser punidos publicamente. A sua administração deve ser feita através da repressão, visando sua extinção ou forçando-se a conciliação entre as partes em litígio. ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 139 I N S I G H T INTELIGÊNCIA O espaço público não é um espaço construído consensualmente por uma coletividade, mas um espaço definido previamente, cujas regras são desconhecidas da maioria de seus componentes. Não é à toa que, muitas vezes, associa-se a categoria público com a categoria estatal, ao invés de associá-la à categoria de coletivo. Também não é sem razão que o espaço público é concebido como passível de apropriação particular, por aqueles que conhecem a chave dos seus códigos de apropriação. É regido por regras próprias, que vêm de cima para baixo e que são tanto mais legítimas, quanto mais de cima vêm. A informação privilegiada produz efeitos públicos, como é o caso dos inquéritos policiais e dos procedimentos de angariação sigilosa de informações que alimentam o sensacionalismo da imprensa. No modelo da pirâmide, o Estado atua como compensador das desigualdades sociais, que são concebidas como se naturais fossem, através da imposição de regras sempre gerais que, portanto, valem para toda a pirâmide, mas que são aplicadas de maneira particularizada, pois os segmentos da sociedade — que estão, eventualmente, em conflito — são desiguais. É necessária, para este fim, uma interpretação autorizada, que esteja acima dos protagonistas do conflito e tenha conhecimento de coisas que os demais, que estão embaixo, não têm. Quanto mais esotérica essa autoridade, mais particularizado e eficaz o seu conhecimento interpretativo. Só quem está no vértice da pirâmide sabe tudo. O sistema de controle social desta sociedade, portanto, é de suspeição sistemática do conflito, uma vez que este é associado à desordem e, por esta razão, deve ser reprimido. O saber importante é o que está implícito, o que está explícito é considerado banal. A liberdade de cada sujeito, assim, não depende daqueles que lhe são iguais, mas daqueles que ocupam uma posição social superior. A liberdade, neste modelo, prevalece sobre a igualdade: é tanto maior a liberdade do sujeito quanto mais perto do topo da pirâmide ele está ou demonstra estar. 140 OAB A sociedade brasileira, juridicamente, enfatiza alternada e alternativamente os dois modelos, dependendo das circunstâncias e do contexto argumentativo que se deseja estabelecer. Este exercício de pseudoconciliação de paradoxos produz conseqüências: a sociedade brasileira se define jurídica e explicitamente como estruturada em um regime constitucional republicano e democrático, em que todos são iguais perante a lei, o que, em primeira análise, nos leva a poder identificá-la com o modelo igualitário acima descrito (paralelepípedo). No entanto, nosso sistema judiciário possui ênfases inquisitoriais e repressivas, próprias do modelo piramidal e quando confrontado aos princípios constitucionais acusatórios e preventivos, produz ruídos dissonantes. Entretanto, a conciliação de princípios tão paradoxais não causa estranheza, uma vez que o sistema está baseado, tanto na dogmática jurídica, como na hierarquia das normas, e se articula através do princípio do contraditório, cuja função é opor, logicamente, posições contrárias. Pelo contraditório, o problema deve ser resolvido, quando argüido, validando, assim, automaticamente, aquelas normas situadas nos níveis mais altos da hierarquia. Seguindo esta lógica, no topo da hierarquia de normas estão os princípios constitucionais. Estes, aparentemente, parecem implicitamente enfatizar o modelo acusatório, assemelhando-se àquele do due process of law dos EUA. Por exemplo: asseguram a presunção da inocência, o direito à defesa — chamado, no direito brasileiro, de princípio do contraditório — conferindo, entretanto, um outro direito, denominado de ampla defesa, pelo qual os acusados podem e devem usar todos os recursos e meios de prova possíveis em sua defesa. Ao acusado é permitido mentir. I N S I G H T Ora, este sistema traz em si alguns paradoxos. O primeiro é que não é um due process of law — expressão traduzida em português de forma demasiado livre como devido processo legal — pois esta instituição jurídico-política dos EUA é uma opção do acusado, a quem é devido — due — pelo Estado, um determinado procedimento judicial, em condições estipuladas pelas quinta e sexta emendas constitucionais. Estas incluem, entre outros, o direito a um speedy trial — um julgamento rápido, o que não existe em nosso sistema de julgamentos obrigatórios e de temporalidade própria. Outra característica é que, não havendo no processo nem exclusionary rules (regras de exclusão das evidências levadas a juízo) — a não ser, depois da Constituição de 1988, aquelas que proíbem a produção de provas por meios ilícitos — nem hierarquia de provas, que separem os fatos provados daqueles que não o foram, dentro de um processo probatório progressivo e seqüencial — evidence, fact, proof — tudo, literalmente, pode ser alegado em defesa, ou em acusação. Este método de produção de verdade jurídica produz uma parafernália de meros indícios, tanto mais ampla, quanto mais abundantes forem os recursos do acusado e dos acusadores. Finalmente, ao assegurar, constitucionalmente, o direito do acusado não se auto-incriminar (direito ao silêncio), no Brasil não se criminaliza, como no direito anglo-americano, a mentira dita pelo réu em sua defesa, o que implica não haver a possibilidade de acusação e condenação por perjury, mas somente por falsidade de declaração por testemunha: é o crime de falso testemunho. INTELIGÊNCIA Abaixo da Constituição, tem-se o Código de Processo Penal, que regula três formas de produção da verdade: a policial, a judicial e a do Tribunal do Júri. Tais formas encontram-se hierarquizadas no Código da seguinte maneira: (a) o inquérito policial, onde o procedimento da polícia judiciária — e, não, processo — sempre foi, oficialmente, administrativo, não-judicial; o artifício de passar a considerá-lo juridicamente um procedimento e não um processo administrativo permite que continue a ser inquisitorial, não se regendo pelo princípio do contraditório, consagrado pela Constituição9 para todos os processos, tanto administrativos como judiciais; (b) o processo judicial, aplicado à maioria dos crimes e que se inicia, obrigatoriamente, quando há indícios suficientes de que um delito grave foi cometido (materialidade) e que sua autoria é presumida, com a denúncia feita exclusivamente pelo Ministério Público10. Esta denúncia, formulada pelo promotor, baseia-se nas informações registradas no cartório da polícia, nos autos do inquérito policial inquisitorial — que, assim, adquirem fé pública. Valem, portanto, contra terceiros e foram produzidas sem se ouvir previamente o acusado ou seu advogado O processo é iniciado e só então aparece a oportunidade de defesa. Este processo é regulado pelo princípio do contraditório, até a sentença do juiz, que exprime seu convencimento justificado pelo exame do conteúdo dos autos; (c) no julgamento pelo Tribunal do Júri, procedimento que se aplica apenas aos crimes intencionais contra a vida humana e que se inicia por uma sentença judicial proferida por um juiz (pronúncia), após a realização de nova produção de informações, indícios e provas, que se soma àquelas do inquérito policial e da instrução judicial, comum a todos os processos judiciais criminais e também regido pelo contraditório e pela ampla defesa. Este processo exige a presença do réu, inclui um prolongado debate oral, que termina pelo veredito dos jurados, que não podem se comunicar entre si para que não influenciem uns aos outros nas suas tomadas de decisão. 9. Constituição de 1988, arts. V, LV. 10. Constituição de 1988, art. 129, I. ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 141 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Entretanto, como se vê, devido à necessária busca da verdade real, nosso direito constitucional e processual, seguindo a tradição de transformar direitos em deveres — como fez com o alistamento militar e com o direito de voto, entre muitos outros — também faz do júri, não um direito do acusado, renunciável por definição pela lógica do sistema anglo-americano, por exemplo, mas um poder-dever do Estado, ao qual o réu-cidadão tem que se sujeitar, querendo ou não. Uma vez indiciado, denunciado e pronunciado em certos tipos penais — todos envolvendo crimes intencionais contra a vida humana — o réu deve, obrigatoriamente, submeter-se ao julgamento pelo Tribunal do Júri. Esta busca da verdade real também é responsável pelo princípio da obrigatoriedade da persecução penal, a que estão submetidos tanto a Polícia como o Ministério Público, conforme determinação constitucional contida no art. 129, I, uma vez que o mesmo deve atuar sempre que houver suporte probatório mínimo da materialidade do fato criminoso e de sua autoria, como está prescrito nos artigos 24, 42 e 43 do Código de Processo Penal Brasileiro. Acresce a este contraste um outro, referente à seleção excludente, não universal, que não se assemelha ao sistema norteamericano, daqueles que podem ser jurados no Brasil. Os critérios adotados variaram no tempo, indo desde aqueles que se baseavam na renda, até o que se funda no status social, definido através da fidedignidade conhecida, ou supostamente afirmada diante do juiz. Os jurados que, no sistema dos Estados Unidos, cumprem o seu dever de cidadão participando dos julgamentos, no Brasil ganham privilégios jurídicos em função de serviços prestados ao Estado-juiz, como direito à prisão especial e preferência em concorrências públicas. Aquilo que, no sistema norte-americano, é um direito do cidadão-acusado e dever do cidadão-jurado, é atualizado, no direito brasileiro, por um lado, como um dever do acusado de submeter-se, em inapelável sujeição, ao julgamento imposto pelo Estado, no qual este assume o papel de persecutor da verdade real e, por outro lado, converte-se em um privilégio de alguns poucos escolhidos jurados de julgarem seus concidadãos. 142 OAB I N S I G H T Resumindo, no sistema brasileiro, sob a égide de preceitos constitucionais dignos das sociedades igualitárias, articula-se no processo de produção da verdade judiciária, especialmente no processo penal, a pressuposição da desigualdade social, com procedimentos e princípios inquisitoriais de produção da verdade. Tais procedimentos também se caracterizam por uma incorporação bastante flexível de argumentos e dados ao processo, que deixa a decisão sobre sua valoração ao chamado livre convencimento do juiz. Fácil concluir que no sistema processual criminal brasileiro não há processo de formulação consensual de verdade, pois os fatos descritos não são construídos pelo acordo sistemático entre as partes litigantes, mas são fruto das representações obrigatoriamente contraditórias delas, registradas nos autos através das interpretações que as autoridades judiciárias fazem a partir da perspectiva dos participantes — operadores jurídicos, partes ou testemunhas — quando reduzem a termo os atos processuais. Assim, sempre uma tese (posição) perde e a outra ganha: não pode haver consenso. Como a comprovar, lingüisticamente, esta relevante distinção, é usual, entre nós, dizer-se que se vai apurar a verdade dos fatos, expressão que não pode ser vertida, por exemplo, para o inglês, uma vez que nesta língua e nesta cultura, a noção de fato já implica a noção de verdade construída consensualmente. INTELIGÊNCIA O sistema brasileiro atualiza as garantias do acusado no devido processo legal como garantias do Estado, indisponíveis para o cidadão, portanto, para apurar a verdade dos fatos e atribuir culpa e responsabilidade. A forma brasileira de entender a garantia do direito ao processo acaba por retirar da lei seu caráter eminentemente definidor e garantidor dos direitos civis, para transformá-la em instrumento implacável de descoberta da verdade. Esta representação jurídica brasileira do instituto processual se justifica pela pretensa promoção de uma tutela jurídica aos segmentos inferiorizados e debilitados da sociedade, a ser exercida pelo Estado, que tem a função de compensar as desigualdades que são inevitáveis e naturais numa sociedade de desiguais e é auto-encarregado de manter a ordem e de assegurar o cumprimento da lei. Numa sociedade que é concebida como composta de segmentos juridicamente desiguais e complementares, decorre tornar-se legítima, também, a aplicação desigual da lei aos mesmos, para que, como se costuma argüir, não se cometam injustiças. Como conseqüência, entre nós não se enfatiza, no âmbito do processo penal, a aplicação universal da lei — da mesma forma para todos e para cada um. Afastamo-nos assim do cerne do processo social de internalização da lei, cujo resultado seria a normalização da população, ou seja, sua socialização igualitária perante as leis, o direito e os tribunais. Assim, leis, regras e normas são vistas pela sociedade brasileira como algo externo aos indivíduos que, longe de os protegerem, os ameaçam, pois sua aplicação depende de interpretação particularizada, cujos resultados são sempre imprevisíveis, porque são distribuídos formalmente de maneira desigual. Como se vê, a ênfase está depositada no interesse público, identificado como aquele definido pelos funcionários do Estado e o processo tem a função de incrementá-lo, acima dos interesses individuais e/ ou coletivos, através do método inquisitorial. ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 143 I N S I G H T Além disso, o chamado sistema judicial criminal brasileiro se organiza de maneira a sobrepor distintos sistemas de produção da verdade jurídica, que obedecem a princípios distintos e, portanto, desqualificam mutuamente seus produtos, as verdades judiciárias neles produzidas: a prova do inquérito policial deve ser refeita no processo judicial, assim como a da instrução judicial deve ser repetida no Tribunal do Júri, por exemplo. Assim sendo, em cada etapa do processo judicial pode ser conhecida uma verdade diferente da anterior. A esses procedimentos se juntam outros, instituídos pela Lei 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais Criminais, constitucionalmente previstos pela Constituição da República de 1988. Esta instância tem competência para julgar as infrações penais que tiverem pena inicialmente prevista de, no máximo, um ano — agora, de dois anos. São as contravenções penais e os crimes de pequeno potencial ofensivo. Em trabalho recente, divulgam-se dados de pesquisa qualitativa, em que se observa elevado número de renúncias das partes ao processo, estimuladas pelos conciliadores, o que parece confirmar a tradição da conciliação, que opera no sentido de abafar os conflitos, não de solucioná-los ou resolvê-los 11. Aspecto específico e peculiar do processo penal brasileiro poderia ser enfrentado, a partir da ambigüidade do status jurídico referente à atuação da polícia judiciária no inquérito policial, orientada pelos princípios da discricionariedade do direito administrativo, e da obrigatoriedade do processo penal. Nesta matéria, são freqüentes as confusões entre os operadores do sistema sobre o que seja o poder de polícia, atribuído a todos os agentes administrativos do Estado incumbidos da vigilância da sociedade e do cumprimento das normas, e o que se constitui no poder da polícia, associado ao monopólio do uso legítimo e comedido da força física, substantivado no uso de armas compatíveis com essa tarefa. Confunde-se, com freqüência, a discretion atribuída aos policiais e District Atorneys, que são os órgãos acusadores no processo criminal dos Estados Unidos da América, onde é entendida como a faculdade de decidir sobre a oportunidade da propositura da acusação penal, com a discricionariedade brasileira que, neste âmbito, não existe, uma vez que a Polícia e o Ministério Público, no que tange aos crimes de ação pública, estão obrigados a agir, instaurando o inquérito policial ou propondo a ação penal, pelo princípio da obrigatoriedade, como já mencionei. 144 OAB INTELIGÊNCIA A associação do princípio da obrigatoriedade ao princípio da verdade real não admite negociações em torno da verdade, que não será construída consensualmente. No outro sistema, que está baseado na associação entre o princípio da oportunidade e da responsabilização dos agentes públicos, há ênfase na construção consensual da verdade e ao compromisso pessoal do agente público com o exercício da sua função. È assim que tanto o processo — o due process of law — quanto a acusação, no sistema judicial dos Estados Unidos, são opções, respectivamente, do acusado e dos agentes públicos encarregados da persecução penal; ao contrário daqui, aonde tanto o processo quanto a acusação são obrigatórios quando se verificam determinadas circunstâncias12. Ora, entre nós, ao sistema de controle social fundado no princípio da obrigatoriedade também se associa um modelo repressivo de controle social, adequado à administração de uma sociedade onde o mercado e as opções não eram estimulados. Quando não há opções, ou elas se resumem a decidir entre o certo e o errado, o sistema de controle se atualiza através da verificação de erros — fruto de ações e/ ou de omissões — quer dizer, de culpabilizações. Por outro lado, onde há opções, estas representam escolhas que devem ser realizadas com responsabilidade pessoal. Tais escolhas, tendo ou não alcançado os fins desejados, podem ser objeto de avaliação e responsabilização dos agentes que as fizeram, seja para puni-los, seja para premiá-los. 11. Amorim, Maria Stella, Kant de Lima, Roberto e Burgos, Marcelo. Juizados Especiais Criminais, Sistema Judicial e Sociedade no Brasil: ensaios interdisciplinares. Niterói, Intertexto, 2003 12. Ferreira, Marco Aurélio Gonçalves. O Devido Processo Legal: um estudo comparado. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004. I N S I G H T INTELIGÊNCIA Historicamente, a organização judiciária brasileira representou originalmente a forma inspiradora da burocracia colonial portuguesa, que implementava um método de controle de comportamentos de seus agentes baseado num sistema rígido de obrigatoriedades de procedimentos e de punições severas pelo erro na execução de tarefas que lhes eram atribuídas. Esta forma de controle gerava nos agentes da Coroa, de um lado, a propensão para a inércia e, do outro, uma possibilidade permanente de culpabilização por parte das autoridades fiscalizadoras, diante das inevitáveis omissões e erros dos agentes burocráticos. Evidentemente, esta estratégia assegura a permanência de um estado de fragilização permanente entre os quadros da burocracia e a conseqüente formação de lealdades pessoais que neutralizem tais ameaças potenciais, mas permanentes, de punição13. A possibilidade de ação, neste sistema, fica precipuamente incentivada nas circunstâncias em que, ou se tem a proteção de uma autoridade, que se responsabilizará pelas conseqüências da ação requerida e/ou se tem a pretensão de obter vantagens particulares, que compensem, de uma forma ou de outra, os riscos representados pelo agir. Ora, esse foi, comprovadamente, o modelo controle burocrático eficaz e adequado à administração de um império colonial, cuja dimensão, na época, era extraordinária face às restritas possibilidades dos meios de comunicação, que geravam dificuldades imensas para avaliação e controle de resultados das políticas implementadas pelo Reino. Ausente este contexto, no caso do sistema burocrático judiciário criminal contemporâneo, o sistema da obrigatoriedade pode levar, por exemplo, a uma dificuldade no registro e acompanhamento dos procedimentos judiciários criminais, por operar distorções estruturais de difícil avaliação. Assim é que no Rio de Janeiro, a impossibilidade de a polícia cumprir o princípio da obrigatoriedade provoca reação correspondente na figura das verificações preliminares à abertura de inquéritos que, no entanto, são registradas oficiosamente e encapadas como se inquéritos fossem — em autos. O princípio da obrigatoriedade também leva, no âmbito do judiciário, a um desnecessário acúmulo de processos iniciados, mas não concluídos. 13. Schwartz, Stuart B. – Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979. ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 145 I N S I G H T INTELIGÊNCIA Mas, mais do que isto, o princípio da obrigatoriedade como pedra basilar da persecução penal e do acompanhamento e controle dos procedimentos não parece atingir, de forma plena, seus objetivos explícitos. Se todos estão sempre sujeitos a errar quando agem, e a se omitir quando não agem, sem que esta opção de agir ou não agir, seja sua, quando o agente público é punido por ação ou omissão, tende a predominar, entre os operadores, a idéia de que houve uma possível injustiça, pois o operador punido poderia estar somente fazendo aquilo que todos tem que fazer sempre que se põe o sistema burocrático para funcionar ativamente. Assim, teria sido, apenas, pego em um erro, circunstância que pode a qualquer um advir. Isso em muito difere da responsabilização dos agentes no sistema de opções, onde aqueles que não se comportam de acordo as regras ferem a ética profissional: fizeram uma opção deliberada, sendo sua punição o preço que pagam por infringir regras que devem ser universalmente aplicáveis. Para agravar os efeitos não desejados deste sistema de fiscalização e controle na polícia, suas estruturas funcionais são hierarquizadas de maneira excludente, na prática, de tal forma que a diferença de funções vai-se refletindo em uma desigualdade de posições: na polícia militar, por um lado, temos duas entradas na profissão, que correspondem a formações e funções diferenciadas, uma para oficiais outra para praças, sendo que estes dificilmente chegam aos postos mais altos do oficialato; na polícia judiciária, temos várias carreiras, mas a principal distinção — salarial — se verifica entre os delegados e a tiragem — quer dizer, os outros agentes policiais. Essas segmentações são acompanhadas de atribuições de autoridade e de regimes disciplinares diferenciados, o que provoca hiatos de comunicação profissional entre os segmentos das corporações, com prejuízo para todos. O sistema de culpabilização revela-se, assim, extremamente perverso, pois usa dois pesos e duas medidas com operadores que estão encarregados de funções equivalentes. Assim a desigualdade decorre, mais uma vez, da posição do sujeito na hierarquia da carreira e não em razão da responsabilidade pessoal decorrente da função. É claro que tal situação funcional não estimula a aprendizagem e a prática de formas de tratamento universal do público a ser atendido pela instituição. Há outras evidências que apontam para uma ênfase nos modelos repressivos de controle social por parte da polícia. O tipo de formação institucional que os policiais militares e civis recebem é de caráter dogmático e instrucional, seja porque ligada ao direito, seja porque inspirada na formação militar. Esta formação, centrada na obediência aos rígidos cânones da lei e da hierarquia entre os postos, se revela completamente distanciada daquela necessária ao bom desempenho das funções policiais, que consistem em tomar decisões em tempo real, autônomas e independentes, sujeitas à responsabilização posterior, sobre a imprevisível variedade de assuntos que lhes chegam às mãos. 146 OAB I N S I G H T INTELIGÊNCIA Como eu e outros cientistas sociais Finalmente, a questão da presença do Estado no âmbito dos direitos individuais que prima por promover a desigualdade jurídica suportada por cidadãos ditos juridicamente iguais, por definição constitucional, caracteriza uma interpretação do principio da igualdade jurídica própria e específica da sociedade brasileira14. Esta prática, como argumentei, contém uma lógica própria da sociedade vigente no chamado Antigo Regime, não republicano, no qual a idéia de direito não implicava a idéia de universalidade de acesso mas, sim, a idéia de privilégios particulares, próprios de estamentos, que as transformações jurídica e sociais introduzidas pelas revoluções liberais, lideradas pela Revolução Francesa, encarregaram-se de desfazer. Não é de admirar, portanto, que a obediência da lei tenha representação tão negativa no Brasil, sobretudo quando tal desobediência está associada a um sinal de status e de poder. Se no modelo do paralelepípedo a liberdade está submetida à igualdade, no modelo da pirâmide o contrário ocorre: a desigualdade é a medida da liberdade de cada um. Se não é aceita consensualmente, como instrumento de proteção de todos, a lei pode ser vista como arma de opressão de alguns. Entretanto, entre nós, são bastante comuns argumentos justificativos da desobediência da lei e, paradoxalmente, de clamor para que sua aplicação seja feita de forma severa e implacável sobre as faltas — geralmente, alheias — como imperativo da construção de uma ordem social mais justa. Não se cogita desenvolver esforços racionais e pacíficos em favor da necessária aceitação da lei plena e justa, como forma mais adequada aos tempos atuais de conseguir o seu cumprimento. Por outro lado, não parece paradoxal a ninguém o fato de se exigir a sua obediência por todos, de igual maneira, assim como a sua conseqüente internalização pelos cidadãos, embora deveres e direitos nela prescritos sejam desigualmente distribuídos entre eles. temos reiteradamente argumentado em nossos trabalhos, é provável que as dificuldades do Brasil com a efetividade dos instrumentos institucionais de administração de conflitos no espaço público, que se refletem nos problemas que a sociedade brasileira tem enfrentado nas áreas da segurança pública e do acesso à justiça, estejam estreitamente relacionadas à inversão estrutural concedida ao significado atribuído à lei, que, ao invés de representar um mecanismo de proteção de todos, acaba por representar um mecanismo de opressão, por ser aplicada de forma desigual. Suponho, ainda, que a superação do princípio de oportunidade e dos mecanismos de responsabilização pelo sistema de obrigatoriedade/ culpabilidade, seja responsável pelo sentimento geral de impunidade que tradicionalmente se infiltra nas representações de nossa sociedade. A consideração de alternativas que levem em conta os contrastes discutidos aqui e os efeitos desejados e não desejados de cada uma dessas combinações, me parece ser o caminho mais acertado para a formulação de políticas públicas mais eficazes para atender aos anseios contemporâneos de democracia e paz social da sociedade brasileira. Agradeço a leitura atenta e as alterações sugeridas por Regina Lúcia Teixeira Mendes. Algumas das idéias aqui expostas foram previamente discutidas em Amorim, Maria Stella, Kant de Lima, Roberto e Teixeira Mendes, Regina Lúcia. Introdução. In Ensaios sobre a igualdade jurídica: acesso à justiça criminal e direitos de cidadania no Brasil, no prelo. e - m a i l : k a n t @ w e b 4 u . c o m . b r 14. Teixeira Mendes, Regina Lúcia. Princípio da Igualdade à Brasileira: cidadania como instituto jurídico no Brasil. In Revista de Estudos Criminais Ano 4, no. 13. Porto Alegre, TEC, 2004, pp.81-98 ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 147