25 - Insight Inteligência

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25 - Insight Inteligência
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UDN
MARCUS FIGUEIREDO
CIENTISTA POLÍTICO
L
A
R
O
T
I
E
L
E
O
C
A
PIT
“
convite ao
,
ROUBA
MAS faz”
ABRIL • MAIO • JUNHO 2004
25
O
I N S I G H T
s resultados de uma pesquisa nacional realizada
pelo Ibope, dois meses
antes das eleições para
as prefeituras de 2000,
merecem ser reexaminados hoje, no momento em que os partidos, os
políticos e a mídia se preparam para mais um pleito municipal. Essa pesquisa trata de tema central no debate pré-eleitoral: qual o interesse da população na disputa municipal e
por que ela se mobiliza para votar nos governantes e legisladores de suas cidades, apesar da má fama dos políticos?
A maioria (51%) declara que não votaria se o voto não
fosse obrigatório. Dentre os que não votariam voluntariamente, uma parte poderia ser cativada pela disputa e participaria do processo. Outra parcela certamente preferiria ir
à praia ou ficar em casa. O fato é que a grande maioria
comparece e vota. Nas duas últimas eleições municipais,
em 1996 e em 2000, tivemos uma taxa média nacional de
abstenção de 18,3% e 15%, respectivamente.
INTELIGÊNCIA
Além da abstenção, temos ainda a anulação do voto como
forma de declaração de desinteresse. Tomando os resultados dessa pesquisa do Ibope, verificamos que 22% declararam que anularam seus votos em alguma eleição para prefeito. Este patamar é histórico e, salvo erros de preenchimento das antigas cédulas, é um ato de vontade do eleitor:
dos que disseram ter anulado o voto nada menos do que
91% declararam também que não se arrependeram de têlo feito! Trata-se, portanto, de um contingente expressivo
que tem razões consistentes para não eleger um candidato.
Em números redondos, podemos esperar que cerca de
um terço do eleitorado deixará de escolher os futuros governantes de suas cidades. Obviamente, como nos mostra
a história eleitoral, há maior incidência de votos brancos e
nulos na escolha dos vereadores do que na escolha de
prefeitos.
M
as o fato é que as eleições municipais mobilizam o eleitorado. Segundo essa pesquisa,
nas eleições de 2000 a parcela da população que declarou ter pouco interesse na eleição do prefeito e dos vereadores de sua cidade era pequena: 24% e 30%, respectivamente. Este mesmo quadro se
repete quando indagados sobre a sua vontade de participar
na eleição municipal: enquanto 28% dizem não ter nenhuma vontade de votar para prefeito, 32% fazem a mesma
declaração sobre a vontade de votar para vereador. Isto
equivale a dizer que, pelo menos, 70% do eleitorado nacional estão interessados e dispostos a participarem da escolha
dos governantes municipais.
TABELA
Preferência pelo tipo de prefeito por renda familiar (%)
FAIXA DE RENDA
“ROUBA,
MAS FAZ”
NÃO ROUBA,
MAS FAZ MENOS
OUTRAS
RESPOSTAS / NO
TOTAL
Até 1 SM
54
37
9
100
De 1 a 2
54
36
10
100
De 2 a 5
48
41
12
100
De 5 a 10
40
42
17
100
Mais de10 SM
32
45
22
100
Fonte: Pesquisa Ibope, 1 a 7 de julho de 2000; amostra nacional de 2.000 entrevistas
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INTELIGÊNCIA
A
O interesse e a vontade de participar, contudo, variam
de acordo com o tamanho da cidade. A parcela da população propensa a não votar é maior nas capitais e nas cidades
periféricas do que nas cidades do interior. Há desde explicações sociológicas e econômicas, que afirmam que o desinteresse decorre da baixa capacidade de intervenção dos
governos municipais, que é menor ainda nas cidades maiores, afetando pouco a vida das pessoas, até explicações políticas, segundo as quais, seja por razões históricas ou por
causa da mídia, as pessoas das grandes cidades dão mais
importância à política nacional do que à local. Isto ocorre
especialmente em se tratando de questões de segurança,
inflação, política econômica etc. Nesses casos, de fato, a
capacidade real de intervenção imediata das prefeituras e
dos vereadores é relativamente menor do que a dos governos estadual e federal.
E
mbora plausíveis, estas explicações não se sustentam nos resultados obtidos nessa pesquisa: a maioria dos eleitores brasileiros acha que o trabalho
dos vereadores tem importância na sua vida, independentemente do tamanho da cidade. Os resultados são
os seguintes: os eleitores das cidades pequenas (até 20 mil
eleitores), das cidades médias (de 20 a 100 mil eleitores) e
das cidades grandes (com mais de 100 mil eleitores) declararam que o trabalho dos vereadores tem importância no
seu dia-a-dia na proporção de 55%, 54% e 54%, respectivamente, contra 47%, 45% e 43% que responderam que o
trabalho dos vereadores tem pouca ou nenhuma importante
para o seu dia-a-dia.
No entanto, paradoxalmente, 49% dos eleitores dizem
que o resultado de uma eleição para prefeito não afeta em
nada a sua vida pessoal! Isto é, praticamente, a metade do
eleitorado nacional declara que o trabalho do prefeito eleito
afeta pouco ou nada a sua vida pessoal. Este padrão de
resposta se mantém inalterado nos municípios pequenos
(50%), médios (51%) e grandes (47%).
lém disso, nada menos do que 68% do eleitorado nacional acham que os vereadores são menos honestos do que a maioria da população
que eles devem representar. No que se refere
à escolha dos prefeitos a população prefere os eficientes
aos honestos. Ante a opção por um “prefeito que não seja
tão honesto, mas resolva os problemas do município” e “um
prefeito totalmente honesto, mesmo que não seja tão eficiente”, 47% escolhem a primeira alternativa contra 40% que
ficam com a segunda.
A razão cínica que sustenta, e faz perdurar, a cultura do
“rouba, mas faz”, embora moralmente condenável, é politicamente compreensível e tem seu fundamento no nível de
carência do eleitorado (veja a tabela).
Estes dados revelam uma situação dramática: a maioria
absoluta da população mais carente do eleitorado está disposta a “pagar um pedágio” para obter os benefícios públicos que lhes deveriam ser oferecidos por direito!
Que os eleitores não sejam culpados por sua razão cínica na hora da decisão eleitoral. Eles assim agem porque a
sua história assim lhes ensinou e não têm tempo para esperar a redenção moral da humanidade para verem atendidas suas necessidades.
Cabe aos políticos do tipo “não roubam” demonstrar que
são capazes de aumentar sua eficiência e provar que “não
roubando” esses benefícios virão em maior quantidade e
qualidade no tempo necessário.
Cabe aos meios de comunicação demonstrar a esses eleitores que eles são vítimas dos políticos do tipo “rouba, mas
faz” e que esse jogo cínico só faz perpetuar este círculo
vicioso.
Este é um paradoxo para a nossa democracia: aqueles
que mais precisam de políticas públicas seriamente geridas
são os mesmos que ainda não acreditam que os políticos honestos sejam mais capazes de produzi-las. É claro que são.
e - m a i l :
m f i g u e i r e d o @ i u p e r j . b r
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INTELIGÊNCIA
CADA VIZINHO CUIDA
ANTONIO SEGUI / UPDATE ART MAGAZINE
O
GOVERNO DO QUE É PÚBLICO
DO QUE É SEU;
CADA
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PMDB
VIZINHO CUIDA
DO QUE É SEU;
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O
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GOVERNO DO QUE É PÚBLICO
CADA
VIZINHO CUIDA DO QUE É SEU;
Alberto CIENTISTA
Almeida
POLÍTICO
O GOVERNO
DO QUE É
PÚBLICO
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O
pensamento sociológico e antropológico brasileiro é quase unânime em apontar o caráter patrimonialista da política brasileira,
que se apropria privadamente do que é publico. Ainda que as
causas deste fenômeno possam ser variadas — institucionais,
econômicas ou culturais —, é possível fazer uma comparação
das práticas políticas nacionais com o critério liberal de ação pública.
Na ótica liberal, o espaço público é delimitado em oposição ao espaço privado.
Isso implica em duas lógicas diferentes de atuação: gerir a coisa pública demanda
impessoalismo, regras gerais e universais, transparência, e, como conseqüência,
utilização do espaço público e em particular dos recursos obtidos por meio de impostos. Os recursos privados, na doutrina liberal, não estariam sujeitos a tais exigências, pois são geridos única e exclusivamente de acordo com os interesses privados de quem os têm.
Para os objetivos de uma pesquisa de opinião, interessa saber se o patrimonialismo — prática comum atribuída aos políticos e àqueles que tomam decisões quanto ao
uso dos recursos públicos — está restrito a uma elite ou é algo mais amplo e que tem
apoio social. Oliveira Vianna, um dos pioneiros no tema da cultura patrimonialista,
apontou o “complexo cultural” brasileiro caracterizado pelo espírito ausente de solidariedade e apolítico em oposição ao complexo cultural democrático europeu, no
qual o povo se reunia em assembléias para deliberar sobre os assuntos que lhe
diziam respeito.
N
a mesma vertente de análise, encontramos autores da importância de Sérgio Buarque de Holanda e Roberto Da Matta identificando o caráter democrático de tais formas de pensar. O primeiro, ao apontar que no Brasil uma
ética personalista, intimista, afetiva e sentimentalista, sobrepujava a sua inimiga liberal: uma ética impessoal, racional e eficaz; e o segundo, ao chamar a atenção para
o fato de que muitas vezes “a casa” englobava “a rua”. A rua é o ambiente público:
na maioria das vezes inóspito, autoritário e desolador. A casa é o ambiente privado do
sentimento e do afeto da família e do que é familiar. A rua é o espaço público de
regras impessoais e a casa o espaço privado do particularismo. Toda vez que a casa
engloba a rua a conseqüência é a utilização privada do que é púbico.
Em que pese a enorme importância de tais noções no pensamento social brasileiro, e em especial da noção de patrimonialismo, tais conceitos nunca foram mensura-
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PMDB
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dos no Brasil por meio de pesquisas de opinião. Medir junto à opinião pública não é
constatar o óbvio, mas testar a hipótese de que há uma “cultura patrimonialista”, e
detectar como esta percepção de cultura varia conforme a população.
As perguntas desenvolvidas (quadro 1) medem a concepção de que o público
é de todos e o privado/particular diz respeito a cada indivíduo. Analisando-se as
perguntas pode ser notado que a noção de público que elas procuram captar vai
além do público como sinônimo de algo do governo ou governamental. Público é
tudo o que não diz respeito, ou não pertence, exclusivamente, ao indivíduo em
questão.
QUADRO 1
Perguntas para medir o patrimonialismo
AGORA EU VOU LER VÁRIAS FRASES E PARA CADA FRASE EU GOSTARIA QUE O(A) SR(A) DISSESSE SE
CONCORDA MUITO, CONCORDA UM POUCO, DISCORDA UM POUCO OU DISCORDA MUITO.
a) Cada pessoa deve cuidar somente do que é seu, e o governo cuida do que é
público.
b) Se alguém se sente incomodado pelo vizinho o melhor é não reclamar.
c) Se alguém é eleito para um cargo público deve usar o cargo como se fosse sua
propriedade particular em seu benefício.
d) Já que o governo não cuida do que é público, então também nenhuma pessoa
deve cuidar do que é público.
e) A pessoa que dá uma festa com som alto não se preocupa com os vizinhos.
f) Ninguém deve usar as ruas e calçadas para vender produtos.
g) A pessoa que constrói uma casa em um terreno público abandonado não se preocupa com o que é público.
h) Um funcionário que trabalha em uma empresa não deve usar o telefone do trabalho para fazer um serviço por fora.
i) Alguém que recebe dinheiro do governo brasileiro para ir estudar no estrangeiro,
depois de concluir os estudos tem que voltar para trabalhar no Brasil.
Este é o caso das regras de “boa vizinhança” sintetizadas na situação de “festa
com o som alto” (letra e). Na situação patrimonialista, incomodar o vizinho com o
som alto não é problema de quem dá a festa, mas sim um problema do vizinho (tal
como no velho ditado “os incomodados que se mudem”). O espaço público do ponto
de vista de quem dá a festa é formado pelo bem-estar dos vizinhos. Desconsiderar
isto é tratar o público como se fosse privado. Talvez isto explique por que os países
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mais antipatrimonialistas do mundo, os da tradição anglo-saxã, sejam tão silenciosos
e as festas (quando ocorrem) terminem tão cedo.
Uma outra observação importante em relação as nove perguntas da bateria sobre
patriomonialismo é que elas mesclam situações gerais com situações específicas a
segmentos de maior renda (estudar no exterior) e de menor renda (itens f, g). E
também situações mais próximas, que dizem respeito à maioria das pessoas, e situações mais distantes. Isto é importante porque é freqüente que a aceitação de práticas
patrimonialistas encontrem justificativas contextuais, algo do tipo “porque a situação
era de muita dificuldade/penúria foi necessário fazer assim”. Além disso, há uma
tendência de maior tolerância com práticas clientelistas quando elas nos favorecem
(estão mais próximas) do que quando estão mais distantes e assim favorecem a outras
pessoas (item c). Ao mesclar estas situações é possível captar a variação completa —
desde situações de maior até as de menor dificuldade/penúria, das mais próximas às
mais distantes — da aceitação social do patrimonialismo.
TABELA 1
A aceitação social do patrimonialismo pela população brasileira
DISCORDA CONCORDA
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PMDB
1) Cada pessoa deve cuidar somente do que é seu,
e o governo cuida do que é público
25
74
2) Ninguém deve usar as ruas e calçadas para vender produtos
60
39
3) A pessoa que constrói uma casa em terreno público
abandonado não se preocupa com o que é público
51
48
4) A pessoa que dá uma festa com som alto não
se preocupa com os vizinhos
51
48
5) Se alguém se sente incomodado pelo vizinho
o melhor é não reclamar
50
49
6) Um funcionário que trabalha em uma empresa não deve
usar o telefone do trabalho para fazer um serviço por fora
42
57
7) Alguém que recebe dinheiro do governo brasileiro para
ir estudar no estrangeiro, depois de concluir os estudos tem
que voltar para trabalhar no Brasil
30
70
8) Já que o governo não cuida do que é público, então
também nenhuma pessoa deve cuidar do que é público
81
18
9) Se alguém é eleito para um cargo público deve usar o cargo
como se fosse sua propriedade particular em seu benefício
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Nas situações 1, 5, 8 e 9 aqueles que respondem “concorda” são os que consideram que o espaço público tende a ser uma extensão do espaço particular e privado.
Já nas situações 2, 3, 4, 6 e 7 esta mesma visão de mundo é compartilhada pelos que
respondem “discorda”. As situações da tabela 1 estão hierarquizadas da mais para a
menos patrimonialista.
Na primeira delas, 74% da população brasileira acham que “cada pessoa deve
cuidar somente do que é seu, e o governo cuida do que é público”. Na segunda
situação, o percentual de respostas a favor de uma visão de mundo patrimonialista
é de 60%: são as pessoas que discordam de que “ninguém deve usar as ruas e
calçadas para vender produtos”. Esta proporção diminui sucessivamente para 51%
nas situações 3 e 4 (são os que discordam), 49% na situação 5 (concordam), 42%
e 30% nas situações 6 e 7 (discordam) e finalmente, 18% e 17% nas últimas duas
situações (concordam).
A aceitação social do patrimonialismo é muito grande. A situação mais extrema,
aquela na qual alguém se utiliza de um cargo público como se fosse sua propriedade particular, é tolerada por 17% da população brasileira! Considerando-se a gravidade da situação é possível dizer que 17% é uma proporção bastante elevada. No
extremo oposto, cerca de ¾ da população brasileira afirmam não considerar que o
que é público merece ser cuidado por todos. A extensão desta forma de pensar
para a esfera dos tributos implica em considerar os recursos advindos dos impostos
como algo do governo e não de toda a população. Trata-se do oposto da visão
republicana que advoga que o que é público é de todos e, portanto, deve ser zelado
por todos.
V
ale assinalar que, considerando-se as situações concretas, a população tende a ser mais patrimonialista naquelas em que há maior carência material
(vendedor ambulante e construção de casa em terreno público) do que nas
outras duas situações de menor carência (trabalhar em uma empresa e estudar no
exterior). Este resultado fornece uma clara indicação de que há uma relação entre
situação material e visão de mundo quanto ao patrimonialismo. O apoio social ao
patrimonialismo é maior quando se trata de oferecer condições de melhorias às
pessoas mais desfavorecidas.
Os dados das tabelas 2 a 7 vão mostrar que — tomando-se apenas as quatro
situações nas quais a discordância é maior1 — é possível perceber que o Brasil está
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dividido entre, de um lado, aquelas que moram em capitais, são mais jovens, têm
escolaridade mais elevada e fazem parte da população economicamente ativa (PEA),
e, de outro, os que moram em cidades que não são capitais, no Nordeste, são mais
velhos e com escolaridade mais baixa e não fazem parte da PEA. Foram identificadas
diferenças importantes entre homens e mulheres apenas em duas das quatro situações selecionadas.
TABELA 2
Quem mora nas capitais tende a ser menos patrimonialista
do que quem mora fora das capitais
CADA PESSOA DEVE
SE ALGUÉM SE
CUIDAR SOMENTE
DO QUE É SEU, E
O GOVERNO CUIDA
DO QUE É PÚBLICO
SENTE INCOMODADO
PELO VIZINHO O
MELHOR É NÃO
RECLAMAR
SE ALGUÉM É ELEITO
PARA UM CARGO PÚBLICO
DEVE USAR O CARGO
COMO SE FOSSE SUA
PROPRIEDADE PARTICULAR
EM SEU BENEFÍCIO
JÁ QUE O GOVERNO
NÃO CUIDA DO QUE É
PÚBLICO, ENTÃO
TAMBÉM NENHUMA
PESSOA DEVE CUIDAR
DO QUE É PÚBLICO
DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA
Outras cidades 23
77
48
52
81
19
79
21
Capital
67
57
43
90
10
88
12
33
É bastante evidente que as pessoas que moram em capitais são menos favoráveis
ao patrimonialismo do que aquelas que moram em outras cidades. Nas quatro situações a diferença aproximada é de 10%, isto é, a proporção das pessoas que apóiam
a utilização privada de recursos públicos é 10% maior nas cidades que não são
capitais. As diferenças entre estes dois segmentos não devem, todavia, mascarar a
ampla aceitação do patrimonialismo. Isto fica claramente indicado pelos resultados da
primeira situação (cada pessoa deve cuidar somente do que é seu, e o governo cuida
do que é público).
A
análise desta primeira situação para os dados que se seguem nas tabelas 3
a 7 vai sustentar esta mesma conclusão. Para cada segmento estudado, seja
ele faixa de idade, de escolaridade, ou região do país, o apoio ao ponto de
vista patrimonialista será sempre da ordem de 70% do segmento. Trata-se de um
número muito grande. A única exceção é para aqueles que têm o curso superior
completo (tabela 7) cuja proporção de apoio ao patrimonialismo cai para 53%.
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PMDB
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TABELA 3
Os habitantes do Nordeste são mais patrimonialistas
do que as pessoas que moram nas demais capitais do Brasil
CADA PESSOA DEVE
SE ALGUÉM SE
CUIDAR SOMENTE
DO QUE É SEU, E
O GOVERNO CUIDA
DO QUE É PÚBLICO
SENTE INCOMODADO
PELO VIZINHO O
MELHOR É NÃO
RECLAMAR
SE ALGUÉM É ELEITO
PARA UM CARGO PÚBLICO
DEVE USAR O CARGO
COMO SE FOSSE SUA
PROPRIEDADE PARTICULAR
EM SEU BENEFÍCIO
JÁ QUE O GOVERNO
NÃO CUIDA DO QUE É
PÚBLICO, ENTÃO
TAMBÉM NENHUMA
PESSOA DEVE CUIDAR
DO QUE É PÚBLICO
DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA
Norte
30
70
49
51
75
25
81
19
Centro-Oeste
30
70
54
46
91
9
86
14
Nordeste
23
77
41
59
75
25
70
30
Sudeste
25
75
55
45
86
14
86
14
Sul
28
72
55
45
88
12
88
12
Os resultados da PESB mostram claramente que em todas as quatro situações
a proporção dos que defendem um ponto de vista patrimonialista é maior no
Nordeste. Destaca-se a quarta situação (já que o governo não cuida do que é
público, então também nenhuma pessoa deve cuidar do que é público) para a
qual a proporção do apoio social ao patrimonialismo é mais de duas vezes maior
no Nordeste (30%) do que nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul (14%, 14% e
12% respectivamente).
N
a primeira situação, a principal diferença relevante é entre o Nordeste e as
demais regiões. Na segunda situação há outras diferenças importantes.
Não apenas o Nordeste é mais patrimonialista, mas também os habitantes
das regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul são menos patrimonialistas do que a média
nacional. Na terceira situação notam-se também diferenças relevantes que vão além
da situação do Nordeste. Os menos patrimonialistas são os habitantes das regiões
Centro-Oeste, seguidos de Sudeste, Sul e Norte.
Fica bastante evidente que em uma hierarquia das populações das cinco grandes
regiões do Brasil têm-se os nordestinos no extremo mais patrimonialista, seguidos dos
habitantes da Região Norte, depois os moradores do Sudeste e por fim Centro-Oeste
e Sul empatados no extremo menos patrimonialista.
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TABELA 4
Quem mora nas capitais tende a ser menos patrimonialista
do que quem mora fora das capitais
CADA PESSOA DEVE CUIDAR SOMENTE
DO QUE É SEU, E O GOVERNO
SE ALGUÉM É ELEITO PARA UM CARGO PÚBLICO
DEVE USAR O CARGO COMO SE FOSSE SUA
PROPRIEDADE PARTICULAR EM SEU BENEFÍCIO
CUIDA DO QUE É PÚBLICO
DISCORDA
CONCORDA
DISCORDA
CONCORDA
Masculino
22
78
81
19
Feminino
29
71
85
15
A pesquisa identificou algumas diferenças entre homens e mulheres. Ainda que
não se apliquem às quatro situações selecionadas, nota-se que os homens tendem a
ser um pouco mais patrimonialistas do que as mulheres.
TABELA 5
Os mais velhos tendem a ser mais patrimonialistas do que os mais jovens
CADA PESSOA DEVE
SE ALGUÉM SE
CUIDAR SOMENTE
DO QUE É SEU, E
O GOVERNO CUIDA
DO QUE É PÚBLICO
SENTE INCOMODADO
PELO VIZINHO O
MELHOR É NÃO
RECLAMAR
SE ALGUÉM É ELEITO
PARA UM CARGO PÚBLICO
DEVE USAR O CARGO
COMO SE FOSSE SUA
PROPRIEDADE PARTICULAR
EM SEU BENEFÍCIO
JÁ QUE O GOVERNO
NÃO CUIDA DO QUE É
PÚBLICO, ENTÃO
TAMBÉM NENHUMA
PESSOA DEVE CUIDAR
DO QUE É PÚBLICO
DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA
18 a 24
29
71
61
39
84
16
88
12
25 a 34
26
74
53
47
89
11
86
14
35 a 44
27
73
54
46
82
18
81
19
45 a 59
25
75
45
55
82
18
80
20
60 ou mais
17
83
36
64
76
24
68
32
O apoio social ao patrimonialismo varia muito de acordo com a idade. Na primeira situação (cada pessoa deve cuidar somente do que é seu, e o governo cuida do
que é público) a única diferença relevante é entre as pessoas acima de 60 anos e as
demais faixas de idade consideradas em conjunto. Na segunda situação (se alguém
se sente incomodado pelo vizinho o melhor é não reclamar) há muitas diferenças
relevantes. Os mais jovens são claramente menos patrimonialistas (39% para as pessoas de 18 a 24 anos) e esta proporção vai aumentando gradativamente até atingir o
máximo na faixa de idade mais elevada (64%).
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Na terceira situação (se alguém é eleito para um cargo público deve usar o cargo
como se fosse sua propriedade particular em seu benefício), há duas variações muito
relevantes: as pessoas da faixa de 25 a 34 são as que mais se opõem a ela e as
pessoas acima de 60 anos são as que mais apóiam (24%) a alternativa patrimonialista. Por fim, na quarta situação há um crescimento monotônico do apoio social ao
patrimonialismo dos mais jovens para os mais velhos.
TABELA 6
As pessoas que fazem parte da População Economicamente Ativa (PEA) tendem
a ser menos patrimonialistas do que as pessoas que não fazem parte da PEA
CADA PESSOA DEVE
SE ALGUÉM SE
CUIDAR SOMENTE
DO QUE É SEU, E
O GOVERNO CUIDA
DO QUE É PÚBLICO
SENTE INCOMODADO
PELO VIZINHO O
MELHOR É NÃO
RECLAMAR
SE ALGUÉM É ELEITO
PARA UM CARGO PÚBLICO
DEVE USAR O CARGO
COMO SE FOSSE SUA
PROPRIEDADE PARTICULAR
EM SEU BENEFÍCIO
JÁ QUE O GOVERNO
NÃO CUIDA DO QUE É
PÚBLICO, ENTÃO
TAMBÉM NENHUMA
PESSOA DEVE CUIDAR
DO QUE É PÚBLICO
DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA
Não PEA
23
77
45
55
79
21
77
23
PEA
27
73
53
47
85
15
84
16
Os dados da tabela 6 revelam claramente que as pessoas que trabalham são
menos patrimonialistas do que aqueles que não fazem parte da PEA. Isto pode ser
verificado em todas as quatro situações analisadas.
TABELA 7
As pessoas de escolaridade mais alta tendem a ser menos patrimonialistas
do que as pessoas de escolaridade mais baixa
CADA PESSOA DEVE
SE ALGUÉM SE
CUIDAR SOMENTE
DO QUE É SEU, E
O GOVERNO CUIDA
DO QUE É PÚBLICO
SENTE INCOMODADO
PELO VIZINHO O
MELHOR É NÃO
RECLAMAR
SE ALGUÉM É ELEITO
PARA UM CARGO PÚBLICO
DEVE USAR O CARGO
COMO SE FOSSE SUA
PROPRIEDADE PARTICULAR
EM SEU BENEFÍCIO
JÁ QUE O GOVERNO
NÃO CUIDA DO QUE É
PÚBLICO, ENTÃO
TAMBÉM NENHUMA
PESSOA DEVE CUIDAR
DO QUE É PÚBLICO
DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA DISCORDA CONCORDA
Analfabeto
20
80
27
73
60
40
50
50
Até 4ª série
15
85
37
63
69
31
67
33
De 5ª à 8ª série 20
80
45
55
83
17
82
18
2º grau
31
69
62
38
95
5
95
5
Superior ou +
47
53
78
22
97
3
98
2
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INTELIGÊNCIA
Dentre todas as variáveis analisadas anteriormente nada se compara às diferenças existentes entre as faixas de escolaridade. Fica bastante evidente que existe uma
grande distância entre as visões de mundo dos dois extremos de escolaridade —
analfabetos e pessoas que têm o grau superior completo. As diferenças mais pronunciadas entre tais faixas ocorrem na terceira e quarta situações, ainda que também
sejam grandes nas duas primeiras situações.
Na terceira situação a proporção de analfabetos que apóia o patrimonialismo
(40%) é aproximadamente 13 vezes maior do que esta mesma proporção na faixa
superior completo. Na quarta situação há proporcionalmente 25 vezes mais analfabetos defensores de uma visão de mundo patrimonialista do que na faixa de superior
completo! Nos dois casos trata-se de uma diferença muito grande nas visões de mundo de diferentes grupos sociais e por isso mesmo raramente encontrada em pesquisas de opinão.
U
ma outra variação que merece destaque diz respeito ao ponto de inflexão
representado pela faixa de escolaridade de segundo grau completo. Nas
quatro situações as variações mais significativas do ponto de vista estatístico
ocorre quando se passa do primário para o segundo grau completo. Não está se
afirmando que as mudanças de opinião entre as demais faixas não sejam relevantes,
mas apenas que a mudança mais significativa ocorre entre estas duas faixas. É possível, portanto, afirmar que, no longo prazo, a visão de mundo patrimonialista ficará
mais fraca no Brasil em função do aumento da escolaridade média da população e
em particular em função da ampliação do ensino médio.
O APOIO SOCIAL AO PATRIMONIALISMO E À CORRUPÇÃO
O conceito de patrimonialismo é o próprio cerne da noção de corrupção. Isto
significa que quanto mais uma pessoa acha correto e defende valores patrimonialistas, mais ela tenderá a ser tolerante em relação à corrupção e práticas correlatas.
Neste sentido, os dados da PESB permitem concluir que as pessoas de escolaridade
mais baixa aceitam mais a corrupção do que as que têm o grau superior completo. A
população do Nordeste convive melhor com a corrupção do que os habitantes da
Região Sul. Os mais velhos ficam menos indignados do que os mais jovens em relação aos escândalos de corrupção.
38
PMDB
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INTELIGÊNCIA
Tão importante quanto essa conclusão é o fato de que a PESB permitiu mapear e
identificar o forte apoio social ao patrimonialismo e à corrupção. Os dados são muito
claros e nos permitem concluir que a corrupção não é um fenômeno circunscrito a
uma elite política sem ética e perversa. Os valores patrimonialistas são fortemente
arraigados junto à população brasileira. A elite política, todos sabemos, não apenas
vem da população mas também tem que prestar contas a ela. Que tipo de pressão
sofre um político eleito em grande parte por pessoas que formam os 17% que consideram correto usar um cargo público como se fosse sua propriedade particular em
seu próprio benefício? Alguns podem argumentar se tratar de um caso extremo.
Assim, o eleitor que concorda que o governo cuide do que é público enquanto ele
se dedica exclusivamente ao que é seu, está dando, na prática, uma carta-branca aos
governantes. Para o eleitor, a própria noção de representação não vai muito além da
escolha livre de um político para fazer o que bem entender. Esta visão de mundo
encontra apoio em nada mais nada menos do que 74% da população brasileira. O
resultado é que a margem de manobra dos políticos é muito maior do que seria em
um contexto social no qual o apoio ao patrimonialismo fosse menor. Portanto, não
surpreende que a corrupção e as práticas a ela assemelhadas sejam tão comuns.
e
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NOTA
1. Estas situações foram selecionadas depois de realizada uma análise estatística que permitiu identificar quais das 9 situações da bateria de perguntas sobre o patrimonialismo eram as que mais
diferenciavam a população.
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a áspera
SIMBOLOGIA
PEDRO PAULO DE OLIVEIRA
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SOCIÓLOGO
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do MACHO
moderno
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l
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eonardo (Leo para os íntimos) é um intelectual em ascensão. Convidado para falar numa
conferência sobre gênero e violência (ele é
especialista em crimes urbanos) depara-se
com um inusitado questionamento: uma jovem negra, militante feminista, lhe pergunta
à queima-roupa: o que você vê quando se
olha no espelho todos os dias? Atônito, responde: um ser humano. Ao que a jovem replica: pois eu me vejo todos os dias como
uma mulher, negra, pobre e lésbica. Pugna sublimada e
deslocada do ringue físico por argumentos e raciocínios
mentais.
José (Zé para todos) está desempregado e vai até o boteco instalado na esquina da favela esperar que algo aconteça, após ter dado um murro em sua companheira por esta
perguntar-lhe sobre cinco reais que sumiram da gaveta.
Pugna real, com ringue aberto e com direito a dores musculares, sangue e violência explícita. Sentado nos degraus da
escada que fica ao lado do bar, ouvindo ainda os gritos de
incapaz, frouxo e outros adjetivos nada edificantes, ele pensa naquela dose e no time do coração que à noite disputa
uma vaga na Libertadores.
Dois homens, duas trajetórias, e naquela tarde, dois contratempos: ambos questionados por mulheres. Num caso, um
constrangimento será diluído pelas discussões acadêmicas e
pode voltar a ser tema de conversas com o terapeuta. Noutro, uma sensação de insatisfação que será diluída na cachaça e na expectativa de vitória de um símbolo masculino onde
o objetivo é meter a bola lá entre as traves adversárias.
Seria possível dizer que eles vivenciam dois tipos diferentes de masculinidade? Penso que esta não é a melhor
estratégia para refletirmos sobre o assunto. Talvez fosse
melhor apontar perspectivas diferenciadas possibilitadas pela
condição de classe e situação cultural para a vivência masculina.
Até bem pouco (três ou quatro décadas), ser homem era
algo em si positivo. O nascimento de um bebê masculino
representava para muitas famílias um bom começo (desconfio que em muitos lares ainda ocorre o mesmo). Ser um
varão era, de saída, um cacife (físico, bioanatômico) pessoal, considerável. Os símbolos sociais positivos estavam ao
lado do ser masculino. E isto tem uma história.
44
PV
INTELIGÊNCIA
A modernidade elegeu como modelo glorificado a díade
soldado/trabalhador. Ao invés do apenas brutalizado cavaleiro medieval, a sociedade burguesa transformou essa díade em um de seus ícones de valor social bastante alto.
O soldado era formado, ao contrário da legião de mercenários, como aquele agente masculino devotado à pátria pronto para proteger os Estados nacionais emergentes. O trabalhador, por sua vez, encarnava os ideais de
serenidade, agente industrioso e laborioso, responsável
pai de família. Esse símbolo foi alvo de “investimento”
(palavra adequada na modernidade capitalista) por todas
as instituições que emergiram naquele instante: igrejas,
Estados, ciência, direito etc.
u
m fato, que mais parece uma anedota, ilustra bem como as ciências participaram do culto ao macho que a modernidade assistiu e nele insistiu. Londa Schiebinger mostra num de seus trabalhos como os anatomistas do século XVIII descreviam os
esqueletos das mulheres com pélvis e crânio menores do
que os dos homens. Esse tipo de descrição, que não se
baseava em nenhuma análise efetiva do esqueleto feminino, servia para ratificar a idéia segundo a qual o cérebro
masculino era mais propenso a se desenvolver intelectualmente do que o feminino. Qual não foi a surpresa desses
cientistas quando se verificou o inverso, ou seja, que, estatisticamente falando, havia em média mulheres com crânios maiores do que os dos homens. Independentemente da
inexatidão de observação do material de análise, os cientistas rapidamente se apressaram a reorganizar os argumentos para que se mantivesse a idéia de uma superioridade masculina, associando então o crânio maior das mulheres com a insuficiência cognitiva e a infância, pois bastava uma observação direta para verificar que são os bebês aqueles que possuem maiores crânios relativamente
ao resto de seu corpo.1
o
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utro exemplo. As leis e todo o aparato
jurídico de alguma forma sempre forneceram apoio ao que se pode chamar
de dominação masculina no campo das
relações de gênero. No código napoleônico, artigo 213,
havia a explicitação, em forma de lei, da seguinte prescrição: o homem deve à sua mulher proteção, ao passo que
ela deve a ele respeito e obediência.2 Neste singelo enunciado legal está estabelecido o regime de assimetria entre os
gêneros, atribuindo-se ao dominador a função de proteger
enquanto se relega ao submisso a explícita ordenação da
obediência e sujeição. Mais próximo de nós temos o caso do
nosso Código Civil em que até muito recentemente era possível verificar claramente a existência de leis atribuindo ao
homem uma série de prerrogativas em que a mulher aparecia de modo subordinado e inferiorizado. Muitas outras
esferas da vida social apoiaram a idéia de supremacia simbólica do homem em relação à mulher, que se manteve
durante toda a modernidade. Em vista de tais apoios, o masculino emergirá como um símbolo de superioridade quando
comparado ao feminino.
A mudança nesta dinâmica de domínio masculino
vai começar a ser delineada em função de transformações socioculturais que são desencadeados após
a Segunda Guerra Mundial. A expansão capitalista irá aos poucos, mas também muitas vezes de
modo célere, desconstruindo hierarquias sedimentadas por práticas consuetudinárias durante muitas
décadas e gerações. Dentre tantas alterações, a
inclusão de mulheres no mercado de trabalho terá
um efeito decisivo para os novos rumos que guiarão as relações entre os sexos, causando impactos em muitas outras esferas da sociabilidade
contemporânea. É comum ouvir-se falar da
importância que o movimento feminista
teve para as mudanças sociais, mas qua-
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se não se fala sobre as condições macroestruturais que possibilitaram a emergência desse e também de outros movimentos que já foram de modo bastante feliz classificados
como as “políticas de identidade”. Cria-se a partir dessa omissão a idéia de que tais mudanças são fruto de um voluntarismo militante responsável em última análise pelas transformações, o que expressa uma ingenuidade de análise e favorece a mistificação em voga da ação livre, homóloga à
idéia do self-made man tão congenial ao capitalismo.
O machismo e qualquer outra forma de dominação arbitrária que aparece legitimada pela naturalização das diferenças bioanatômicas transformadas
em essências imutáveis, podem e devem ser combatidos e criticados. O interessante é perceber
como esse macho até então valorizado em sua
posição de domínio deve ser agora liberado
dos essencialismos tradicionais para, entre outras coisas, se transformar no agente consumista que aumenta as vendas das indústrias de cosméticos, modas e fitness. Tudo
o que tem a ver com a diferença é
extremamente valoroso para a diversificação e libertação de hábitos ossificados pelas tradições,
que podem obstar a flexibilização das práticas de consumo. Essa visão que associa
a imbricação entre interes-
46
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agressividade impulsiva, entre outros pares possíveis, que
se não são antagônicos, certamente não são complementares), ela aparece como algo que se imiscui e se imbrica
com outras dimensões da vida social. Seguindo a linha de
raciocínio de Pierre Bourdieu3, o masculino, enquanto símbolo social que se opõe ao feminino, vincula-se à imagem do dominante, ativo, penetrante, forte, pesado, hard,
grande, duro etc. Já ao símbolo do feminino ficam reservadas as imagens do passivo, penetrado, fraco, leve, soft,
pequeno, delicado, oscilante etc. Uma homologia complementar em que às imagens de dominação associamse características assumidas como masculinas, ao passo
que as imagens de subordinação relacionam-se com o
feminino.
ses de mercado com o diferencialismo identitário tão bem
explicitado pelas políticas de identidade é condenada pela
militância como retrógrada e assim submerge nas palavras
de ordem que resistem a qualquer análise distanciada do
clamor panfletário. Mas esse movimento diferencialista favorece e muito a idéia de um homem soft que não deve se
prender à cartilha moderna do soldado/trabalhador, macho inquestionável, pois acima de qualquer suspeita.
As mudanças socioculturais possibilitaram a emergência de movimentos que ousaram questionar a naturalidade
da dominação masculina a ponto de se anunciar uma crise
da masculinidade. Mas será que os símbolos associados ao
masculino estão realmente em crise? Acho que se deve
amenizar a força dessa tese e ver em que circunstâncias
ele pode ou não fazer algum sentido.
Os símbolos sociais são o repertório constituído culturalmente que fomentam a constituição de fantasias subjetivas responsáveis pela formação de identidades pessoais. A masculinidade pode ser vista como um grande símbolo. Ainda que seja composta por elementos contraditórios quando analisados em separado (responsabilidade e
ousadia, ou capacidade de raciocínio lógico / formal e
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e
sta visão sumária aponta para a complexidade da vida social em que os
símbolos de gênero associam-se com
imagens que carregam prejulgamentos e favorecem juízos favoráveis e depreciativos de acordo com uma associação que não se
explicita de modo claro, mas que funciona pela reiteração contínua em diversas situações de interação entre os
agentes. Assim associar a idéia de que a França é a pátria dos perfumes e da moda, contrasta com uma visão
em que a Alemanha é um país de determinação e força,
operando nesta comparação conteúdos de gênero imbricados com modelos estereotipados, assumidos na representação de modo não totalmente clara e consciente que
os agentes fazem destes países. Isso vale também para
inúmeras outras realidades.
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INTELIGÊNCIA
de homem ou então representar papel de cavalheiro em
A conexão entre as representações assumidas pelos agentes e os símbolos cultivados só é possível porque há um trabalho histórico contínuo e reiterado que procura naturalizar
o arbitrário (a dominação de um gênero sobre o outro).
a
masculinidade se mantém como símbolo apropriado pelos varões porque
constitui um elemento positivo de construção identitária e é reatualizada nas
vivências e interações entre eles. Atos
tão distintos e isolados como dar um murro na mesa e gritar
durante uma partida de truco, engajar-se em brincadeiras
ou situações violentas (brigas, troca de insultos, aplicação de
castigos), flertar dizendo palavras pouco refinadas no ouvido de mulheres na rua, promover tumultos e atos de vandalismo aos bandos e em lugares públicos, estádios de futebol,
assumir uma postura corporal mais rígida em situações em
que se queira mostrar-se inabalável, negar-se a assumir alguns sentimentos tidos como não masculinos, reagir a desafios lançados por outros homens, desafiar outros homens,
debochar e zombar de colegas por comportamentos e atitudes supostamente pouco masculinas, promover rachas, contar
piadas e lançar invectivas e anátemas contra mulheres e
pessoas homo-orientadas, bater e surrar estas mesmas pessoas, vangloriar-se de conquistas sexuais (verdadeiras ou
fantasiosas) junto a outros homens, fazer uso de substâncias
tóxicas ou álcool no intuito de se mostrar respeitável frente a
uma platéia, dar cavalo-de-pau com carro ou moto para se
fazer notar por outros, segurar nos genitais em público de
modo aparentemente displicente, envolver-se em situações
de risco para vanglória imediata ou posterior, assumir de
maneira exibicionista responsabilidades tidas como típicas
situações específicas; todas essas atitudes, além de muitas
outras, enquadram-se dentro daquilo que chamo de vivências interacionais da masculinidade. São acionadas dentro
de contextos específicos, expressam simbolicamente valores, afetam e influenciam outras vivências (dos próprios e
de outros agentes) e efetivam uma dupla constituição: participam do processo reiterado de configuração da identidade
subjetiva, ao mesmo tempo em que reatualizam (“vivificam”)
e mantêm o horizonte simbólico que avaliza tais vivências.
Partindo do pressuposto de que todo agente busca sempre melhorar sua posição social ou ao menos manter aquela em que se encontra por considerá-la adequada, se pensarmos o masculino como um símbolo positivo que estimula
uma apropriação e incorporação de suas prescrições comportamentais como signo de honra e prestígio, será interessante verificar a possibilidade de conversão da atitude masculina como sinal de distinção positiva.
Uma vez naturalizada pelo trabalho histórico das instituições e dos agentes como algo positivo e bom, os símbolos
da masculinidade e suas prescrições comportamentais configuram o ser masculino como o dever-ser socialmente esperado e sancionado, passível de atribuir aos que a ele aderem, na formulação historicamente caracterizada como normal e, portanto, como norma comportamental, os símbolos
do prestígio. Aos que não seguirem estas normas reservase-lhes um destino social estigmatizado e vexatório, marcado pelo desprezo dirigido àqueles seres vistos como inferiores e anormais. Ser um varão nos moldes tradicionais do
soldado/trabalhador deve constituir a meta a ser perseguida
para que se possa auferir os lucros simbólicos de se pertencer à categoria dos humanos prestigiados. Todas estas construções e conexões operam de modo pouco visível e de forma não consciente na vida dos agentes.
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A partir das transformações já comentadas é que se
pôde aventar a possibilidade de se questionar tais prescrições, buscando impedir a conversão imediata entre comportamento masculino sancionado e o prestígio, a dignidade, a honra. Agora podemos voltar aos nossos personagens iniciais.
Leo é um agente de classe média, intelectual. Sua posição de classe lhe permite relativizar os lucros que ele pode
retirar de sua condição masculina. Ele pode ser reconhecido por ser branco, de classe média, professor etc. Suas
marcas invisíveis são a condição de ser humano privilegiado. Suas conquistas não são imputadas ao seu corpo físico,
mas à sua capacidade intelectual. Nem mesmo seus combates são físicos. Com relação à masculinidade, as demandas para corresponder a uma imagem de macho integral,
se a ele chegarem como opressivas, poderão ser compartilhadas com um terapeuta e compor matéria de jornais e
revistas sobre a crise da masculinidade.
Já para Zé, abandonar a masculinidade, vista por alguns homens softs como opressiva, é abrir mão de uma das
poucas possibilidades de poder simbólico que ele ainda tem
acesso, a única coisa que está invisível para ele no espelho,
ser homem, ainda que esta masculinidade tenha como centro o seu corpo: proezas sexuais, esportes viris e masculinos,
trabalho braçal etc. De resto ele só vê ali naquele espelho,
excluída sua masculinidade, a pobreza, o desemprego, o
alcoolismo. O poder de ser macho, de ter, em tese, algum
poder sobre as mulheres, poder desclassificá-las ou tomálas como alvo de assédio ou chacotas. Na realidade uma
caricatura de poder, mas ainda assim algum poder.
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O machão incondicional não desapareceu e nem tão cedo
vai desaparecer de cena, pois a taxa de conversão entre
masculinidade e poder simbólico ainda anda alta nas interações moduladas por estruturas mentais e subjetivas bem alinhadas com este câmbio. Em função disso pode até mesmo
seduzir esses agentes de classe média impregnados por uma
fantasia de violência que lhes compense algum déficit imaginário de poder, ou seja, alguma impotência, caso dos pitboys de plantão e outros descompensados.
Quando ouvirmos falar de crise da masculinidade, saibamos, de antemão, que isto é mais um assunto que cai
bem ao gosto da classe média, aquela mesma que pode,
dependendo de conjunturas favoráveis, fazer essa taxa de
conversão ser um pouco depreciada, isto porque os agentes
masculinos deste segmento podem lançar mão de outras
características e trunfos pessoais para adquirir no mercado
dos bens simbólicos o prestígio e a dignidade que os homens
de classe popular jamais poderão acionar. Reféns de seu
corpo, sempre e cada vez mais masculino e brutalizado,
vivem da mão para a boca e se agarram às poucas migalhas de poder simbólico que sua condição masculina ainda
pode lhes reservar.
e - m a i l :
p p o l i v e i r a @ i u p e r j . b r
NOTAS
1. SCHIEBINGER, L. Skeletons in the closet: the first illustration of the
female skeleton in Eighteenth-Century anatomy.
In: GALLAGHER; LAQUEUR (Eds.). The making of the modern body:
sexuality and society in the Nineteenth-Century. Berkeley: University of
California Press, 1987.
2. MOSSE, George. The image of man. The creation of modern masculinity, p. 54.
3. BOURDIEU, P. La domination masculine, 1998.
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PPS
INTELIGÊNCIA
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A HORA E A VEZ DE
(FALECIDO)
O
AMERICANO
TRANQÜILO
ISABEL LUSTOSA
SOCIÓLOGA
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D
as imagens impressionantes que apareceram na
imprensa sobre os maus-tratos que os americanos
andam infligindo aos iraquianos nada mais apavorante do que aquela de um homem nu, tentando se proteger ou cobrir suas intimidades dos cães ferozes que soldados atiçam contra ele. Ou outra, parecida, de um sujeito
vestido, sentado, e imobilizado pelo pavor, com o pescoço
ferido pelo que poderia ter sido uma mordida, sendo ameaçado também por um cão.
Essas imagens remetem à violência e se assemelham
àquela cena de 1984, de George Orwell, onde para fazer o
protagonista abdicar de seu amor por uma mulher não-aprovado pelo Big Brother, uma ratazana faminta é colocada em
uma espécie de máscara presa ao seu rosto. E ele abdica
mesmo.
As outras fotos, de corpos nus, empilhados ou simulando
atos sexuais, ou ainda de um corpo despido, coberto de excrementos, com os braços abertos, remetem à violação maior
da dignidade humana. Do desrespeito aos valores do povo
conquistado. As notícias que as acompanham, de violência
sexual, de gente sendo obrigada a tirar sua comida de vasos
sanitários, ou sendo obrigada a amaldiçoar seu deus, são
notícias da degradação, notícias de uma guerra suja. Tão ou
mais suja do que foi a guerra do Vietnã, cujas imagens de
violência e barbárie voltam hoje às páginas dos jornais, fazendo pendant com as do Iraque e impondo a inevitável
comparação.
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Mas o que mais desconcerta, nas terríveis fotos de hoje,
é a carinha marota daquela soldado de 21 anos que arrasta
um iraquiano nu pela coleira, ou que sorri, levantando o
dedo em sinal positivo diante do corpo morto e desfigurado
pela tortura de um outro prisioneiro.
Aquela carinha risonha é a carinha das crianças e mocinhas americanas das séries que nos acostumamos a ver na
nossa infância, é o mesmo sorriso da Jeannie é um gênio, é
a mesma simpatia apple-pie da Doris Day, é a cara boa,
saudável e bem alimentada da América que aprendemos a
amar através das propagandas dos sabonetes e dentifrícios
da Gessy Lever, dos seriados da sessão da tarde, dos desenhos de Norman Rockwell e dos adoráveis filmes de Frank
Capra.
Por isso, talvez seja uma hora boa para reler O americano tranqüilo, de Grahan Greene. Para os que têm menos
tempo, no ano passado foi lançada uma versão para o cinema — The Quiet American, dirigido por Philip Noyce, já nas
locadoras de vídeo — que, mesmo não sendo um grande
filme, mesmo não tendo conseguido captar em sua essência
mais sutil, o espírito cool, desencantado e irônico de Greene, vale a pena ver.
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A
história se passa na Saigon de 1952, em meio ao
conflito pela libertação do domínio francês. O protagonista é o jornalista inglês, Thomas Fowler, um
homem de meia-idade, correspondente do London Times,
que se deixara esquecer na Indochina, entre uma garrafa
de uísque, umas tragadas de ópio e uma bela oriental:
Phuong. A chegada de Alden Pyle dos EUA, um jovem idealista, militante da política norte-americana de ajuda aos países em desenvolvimento, altera a situação. Aproximando-se
de Fowler, com aquela simplicidade e a boa-fé tão típicas de
seus compatriotas, o rapaz se choca com o desencantado
cinismo com que Fowler conduz sua vida. Movido pelo mesmo espírito salvacionista que o levara à Indochina o rapaz
decide conquistar a namorada de Fowler prometendo casar-se com ela e levá-la para a América. Fowler era casado
na Inglaterra e sua mulher, de quem já vivia separado, lhe
recusava o divórcio. A história desse triângulo amoroso se
desenrola em meio a uma série de revelações sobre a verdadeira missão de Pyle. Esta era muito menos inocente do
que ele quis levar Fowler a acreditar.
O americano tranqüilo foi escrito em 1953, bem antes
do que nós costumamos considerar como a guerra do Vietnã propriamente dita. A guerra dos americanos no Vietnã
veio suceder à guerra que os antigos colonizadores franceses combateram lá durante mais de dez anos, sacrificando
nela o melhor de sua força militar. A guerra dos americanos
que nos vem sendo revelada pelo seu cinema desde o Amargo regresso, passando pelo Nascido em 4 de julho e por
Apocalipse now estava começando justamente quando lá
chegou Greene para trabalhar como correspondente da
revista Life, em 1952.
O livro — e o filme — mostram o momento exato em
que a presença americana começou a superar a presença
francesa na Indochina. Através das desventuras do seu alter
ego, Greene revela e denuncia as entranhas do processo, a
perversa estratégia americana para convencer o mundo do
perigo que representava o avanço comunista no Extremo
Oriente. É o começo da grande armação para fazer com
que a opinião pública mundial apoiasse a intensificação da
presença americana no Vietnã. Para tanto era aceitável
criar notícias falsas mesmo à custa de dezenas de vidas inocentes. Assim é que a trama e Pyle, O americano tranqüilo,
revelam suas reais dimensões na cena dramática da bomba
explodida numa praça central de Saigon.
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O
que vem depois está nos livros de história. O
que torna o livro/filme tão atual é a repetição da
mesma estratégia — com recursos mais sofisticados — agora no Oriente Médio. É a maneira como Greene conseguiu estabelecer uma associação tão inteligente
entre a lógica dessa estratégia e a imagem que os americanos têm de si e de seu papel no mundo. Em Greene também os velhos ideais da democracia americana que hoje
vêm sendo novamente agitados, já funcionam de forma a
sofismar os mesmos interesses econômicos. O interessante
para se pensar é como esse discurso consegue ainda convencer o mesmo eleitorado branco que ainda votará em
Bush nas próximas eleições.
O espírito do bom-meninismo, na expressão de Raymond
Aron, já havia sido identificado por Alexis de Tocqueville em
seu A democracia na América (1835). Espírito eivado de
boas-intenções e pouco afeito a críticas, está na essência de
uma identidade nacional de classe média, onde predominam os interesses de conservação do bem-estar, da propriedade e do trabalho e que refletem-se na produção cinematográfica a que nós — americanos de outra estirpe —
temos tido acesso.
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A América resplandece de ideais humanitários e de ações
grandiosas em meio às ilustrações de Norman Rockwell, onde
os semblantes rosados e sorridentes de um povo simples e
feliz nos encantam e sensibilizam. Nos filmes de Frank Capra, com Jonh Doe — o homem comum deste povo comum
— que levanta as massas rumo ao fascinante ideal da solidariedade entre vizinhos de bairro, ou em “Mr. Smith goes
to Washington”, em que o superchefe dos escoteiros chega
ao Senado — como senador, vale acrescentar — para lutar
por um campo nacional de escoteiros. É claro que, tanto o
momento fundador desses ideais, quanto a renascença deles no New Deal de Roosevelt, tão bem resignificados nos
filmes de Capra e nos desenhos de Rockwell, estão longe,
assim como está longe a época da inocência. Ou talvez esta
tenha sido sempre representada de maneira hipócrita, nessa arte genialmente bondosa, edulcorada, adorável como o
sorriso de Doris Day. Representação idealizada de um mundo yankee, onde não havia lugar para índios, negros ou
chicanos. Algo que, agora, assusta ao professor Samuel
Huntington a se perguntar, em seu último livro, “quem somos nós?” (eles, os americanos, não os chicanos, negros ou
índios).
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Sem jamais se adaptar, sem jamais se casar realmente,
sinceramente, com o lugar, e com alguém do lugar, são
sempre estrangeiros, expatriados, gente de lugar nenhum.
Acabam por se ligar a alguma bela nativa, cujas opções
afetivas são orientadas pelos dramáticos problemas de sobrevivência e que nada entendem do que se passa com aquele estrangeiro que apenas por acaso lhes caiu nas graças. E
para aquele estrangeiro esse amor irreal, amor de desesperançado, amor utilitário sem qualquer comunicação de
espírito, se transforma numa espécie de último bote a que
ele se agarra para não se afundar de vez.
Se o protagonista é sempre o mesmo, se a situação de
inglês deserdado pela pátria, de inglês que, como Fowler
E
m O americano tranqüilo, Greene conseguiu reunir
em um personagem a pureza das verdades democráticas, a simplicidade da fé inquebrantável na família e na liberdade em luta num mundo em que o torpe
regime comunista tentava pôr suas garras. É nesse insight
realmente genial de Greene que o filme falha. Falha pois
não consegue dar conta dessa imensidade de sentidos que a
idéia de americano tranqüilo trás em si. Na Indochina, Greene pôde perceber as dimensões da verdadeira bomba-relógio, que se escondia na mentalidade expressa nos tantos
filmes de papais sabe tudo, lassie, enfim, todos aqueles adoráveis lares americanos para os quais o personagem que
justifica o título do livro sonhava um dia voltar.
Ninguém melhor do que Michael Caine para viver Thomas Fowler, mais um dos típicos europeus encongainé como
dizem os franceses, da galeria de Greene. Tipo do europeu
destruído, fracassado, que os azares da fortuna acabaram
por levar a algum lugar nos trópicos, onde vão cozinhar no
álcool, sob o sol escaldante, ou no calor úmido da selva, as
suas frustrações de europeu gorado, de branco que não
deu certo. E, como não existe pecado do lado de baixo do
Equador, encontram na desordem, na corrupção, no contexto político e social meio safado das republiquetas latinas e
orientais o ambiente propício para a sua própria desordem
e corrupção interna.
mesmo diz: gosta de Londres, mas prefere saber que ela
está lá e ele cá; se o tipo de envolvimento amoroso desses
personagens tem também muitas semelhanças, a situação
do Vietnã tal como a apresenta é única. No entanto, ao longo desse tempo vimos assistindo aos desdobramentos tão
previsíveis da guerra do Iraque e em que o Vietnã e toda a
sorte de ignomínias a ele associadas vêm sendo resgatada
pela imprensa, fica cada vez mais atual a leitura que Graham
Greene fez do espírito da América em seu genial O americano tranqüilo. Só que, agora, os americanos não casam
com os nativos. Torturam.
e-mail:
[email protected]
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EGON SCHIELE
Recordação
da casa dos vivos
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PL
Eloí Calage
JORNALISTA
D
esata, filha!
Foi o que ele me disse, o olhar confiante, mostrando as mãos amarradas à cama.
O enfermeiro intervém:
— Precisa ficar contido. Uma fração de segundo,
a senhora se distrai e ele arranca os tubos. De manhã, na hora do banho, enfermeira e acompanhante
cuidando dele... arrancou o soro... tá vendo? Vai sofrer se tivermos que pegar a veia dele de novo. Foi
sedado agora, vai dormir.
Ele insiste:
— Desata, filha!
Manchas roxas marcam as mãos, os braços, a testa e o peito do meu pai, os olhos suplicantes voltados
para a porta. Acaricio suas mãos amarradas, meu corpo se sacode num soluço sem lágrimas. Ele fecha os
olhos, não quer ver choro, quer ir para casa, o tempo
todo pede para ir para casa, já está há mais de 90
dias no hospital.
— Desata, filha!
Mas isso foi há dias, quando ainda era possível
entender a palavra dele. Agora, só Roseli, sua acompanhante preferida, e eu, conseguimos adivinhar o
que ele diz. O mal de Parkinson está destruindo a
flexibilidade da musculatura do seu aparelho fonador.
A língua ressecada, dura, dentro da boca sem dentes,
o quanto ele lutou para continuar usando a dentadura! Mas o mal é galopante, agora fala por grunhidos,
alimenta-se por tubos.
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oseli me telefona do hospital. Com muita dificuldade, o colocou
na cadeira, para dar banho. “De repente, dona Eloí, ele ficou todo duro, esticado,
escorregando... Mas fique tranqüila, a enfermeira e eu conseguimos segurar e ele
não caiu. Agora tá descansando. Mas se ele ficar assim, dona Eloí, nem vai poder
entrar no carro... só de ambulância...”
Foi a mesma coisa comigo, ontem, eu vi. O corpo nu, enrijecido e inclinado, sem
dobrar joelhos nem flexionar a cintura, todo feito de ossos. Mas muita força nas mãos,
que se firmavam como garras no metal da cadeira, os olhos arregalados, consciência,
felizmente conseguia equilibrar o peso do crânio. E aquela santa enfermeira que o segurou firme pelos sovacos, enquanto eu me abaixava e o amparava sob as coxas.
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V
oltei agora de mais um turno no hospital.
Falei com a neurologista que me disse nem pensar
em alta, deve ter havido um engano. A enfermeirachefe também não sabia, e é contra porque está
convicta de que ele não tem condições, precisaria
quase um hospital em casa para cuidá-lo e ela é
uma pessoa sensata.
Coisa de rotina: eu com ânsias de vômito enormes e segurando a mão dele, enquanto o enfermeiro trabalha com o aspirador, para que não se
sufoque com o catarro. Ele perdeu a capacidade de
salivar, a saliva é produzida, mas ele não engole,
vai amontoando na boca, o catarro também. Depois, o banho de água morna, com o chuveirinho.
Ele no banheiro, sentado numa cadeira especial,
que tem um furo no meio do assento.
Estranho segurar o pau do meu pai, lavá-lo. “Essa
secreção clarinha tem de ser bem retirada, é cancerígena”, me ensina o auxiliar de enfermagem,
perguntando se tenho filhos homens. Dois, respondo. Ele dá graças a Deus por ter feito o curso técnico, sabe limpar muito bem o próprio pau, que chama de bilau. “Faça assim, ó, com a mão”. Pedi luvas. “Claro”, disse ele, por detrás da máscara. Nossos olhares se encontram no espelho, ele sereno,
eu aflita.
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o banho, despertou um pouco. Antes, estava na dormideira. Mesmo podendo mexer braços e pernas já está alheio ao que acontece, deixa-se levar,
lavar, injetar, deixa-se. Hoje não sei dizer se me reconheceu. Houve expressão de
sorriso no olhar, mas ele sorri pra maioria dos que se aproximam da cama. É uma
coisa impressionante o quanto o sorriso dele é semelhante ao do Mario Quintana já no
fim da vida. O Mario sempre dizia que o modelo da Mona Lisa tinha sido um rapaz
sem dentes. Ele e o pai, mesmo velhos, me lembram daquele sorriso. Uma força
tremenda no olhar. Entendi uma única expressão dele: dor de cabeça. Transmiti à
enfermeira-chefe.
No caso do pai, para dar um analgésico às vezes é preciso que os vários médicos
se comuniquem, para descobrir o remédio que, ajudando numa área, não esculhambe a outra. O pai está na clínica médica, dividindo o quarto com um paciente renal,
que faz hemodiálise, um homem mais jovem, rústico e surdo como uma pedra, um
camponês do século treze. Não ajuda nem atrapalha. Como pode andar, às vezes
chega mais perto, pra prosear.
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INTELIGÊNCIA
O
pai está aos cuidados principais de três especialistas: pneumologista, urologista e neurologista. Pode
ser que um deles tenha falado em alta, sem avisar aos outros, sei lá. Mas, pelo que vi, ele está floxo das urina (cor de
manteiga, espessa), dos polmão e também do célebro, já
que não consegue falar nem engolir. Eu tou mal dium tudo,
me esforçando pra melhorar. Acho esquisito quando me
falam em passagem, prefiro dizer morte mesmo e ele está
morrendo, como uma vela que se vai gastando. Há velas
que queimam por igual, a chama no meio, firme. Às vezes
— especialmente se bate um ventinho — gastam mais de
um lado do que do outro, a chama treme, parece que vai
se apagar. Mas, em segundos, já está firme de novo, e
aquela vela vai queimando até o último pedacinho da cera,
só se apaga no fim. Assim é o pai e ainda tem muito o que
apagar. Ninguém sorri daquele jeito — mesmo que seja
dois segundos em 48 horas — se não tem mais chama.
Uma vez, no tempo da infância, apartando uma briga
entre um amigo e um bêbado, me ensinou: se o Roque
matasse o outro, ficava sujo, e também não é direito derrubar uma árvore por causa dum pé de capim. Meu pai é
uma árvore velha e frondosa, o machado ainda o vai golpear muitas vezes até que caia.
Acho que foi o Lacan quem escreveu que Deus existe e
é uma criança louca, a paisagem da cidade vai ficado embaçada por detrás das lágrimas que despencam dos meus
olhos cansados.
No hospital, estava certa de que é impossível mantê-lo
em casa, por difícil que seja esta esquizofrenia casa/hospital. Já mais serena, não sei de nada. Mas preciso avisar que
não irei buscar a cadeira de rodas que minha irmã providenciou, ia ser mais triste ainda levar a cadeira para casa,
já que o pai não teve alta.
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DOMINIQUE RENSON / UPDATE ART MAGAZINE
RITUAIS DE SACRIFÍCIO
ANDREA LESSA
ARQUEÓLOGA BIOQUÍMICA
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E O ESTADO SUB JUDICE
DO CORPO HUMANO
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INTELIGÊNCIA
A
partir da década de 30 do século passado,
quando o antropólogo Marcel Mauss publicou o livro As técnicas corporais, os estudiosos começaram a perceber que o corpo
humano representava muito mais do que um
dado biológico e que não se reduzia a uma propriedade
individual, mas materializava uma expressão simbólica e
particular de cada sociedade. As mais diversas práticas realizadas sobre o corpo passaram a ser alvo de reflexões sobre o ethos social. Essa visão de mundo de cada sociedade
seria a base para uma diversidade de costumes e de dimensões que variam desde o prazer, o embelezamento, a veneração, até o sofrimento, as mutilações e muitas outras formas de violência física.
Apesar desta concepção do corpo ser relativamente recente, estudiosos e leigos sempre se sentiram atraídos pelas
formas com que o corpo pode ser utilizado para se legitimar
as relações com o mundo sobrenatural e as relações que
mantêm a ordem social dentro de cada grupo. Cronistas dos
séculos XVI e XVII se esmeravam em registrar detalhadamente rituais indígenas em que o corpo era visto como um
instrumento de aproximação dos homens com as divindades
ou de reconhecimento de qualidades enaltecedoras como
força, coragem e bravura.
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Muitos desses rituais tinham como expressão máxima a
dor, o sacrifício e a morte tanto de inimigos como de aliados, e eram vistos pelos cronistas e viajantes que os presenciavam simplesmente como práticas selvagens de povos primitivos. Podemos citar exemplos que caracterizam de forma
clara a ferocidade de grupos que utilizavam seus próprios
corpos e os dos inimigos para apaziguar as forças naturais e
sobrenaturais. Mas, mais do que a ferocidade que envolve
essas práticas, devemos perceber a sua força e a sua intricada relação na organização social de grupos cuja identidade se legitima de maneira fortemente dualista, nos quais as
diferenças com o outro, humano ou não, são muitas vezes
mediadas através do corpo físico: fazendo-o sangrar, conservando-o como amuleto ou troféu, ou devorando-o.
Os índios Jívaro da Amazônia equatoriana, motivados
pelo sentimento de vingança e busca de poder, capturavam
cabeças de inimigos, enquanto estes dormiam, para serem
reduzidas durante um complexo ritual. A cabeça permanecia alguns dias imersa em um extrato vegetal para garantir
a sua conservação. Em seguida era feita a retirada do cérebro, dos olhos e da língua, e a cabeça preenchida com areia
e seixos quentes que eram continuamente substituídos durante um lento processo. Ao final, a cabeça podia ficar reduzida até a metade de seu tamanho, conservando, no entanto, seus traços fisionômicos. A simbologia deste ritual está
na necessidade de vencer o inimigo não apenas no plano
físico, mas vencer também a sua alma e expulsá-la para
sempre.
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O
s Tupinambá, por sua vez, ficaram conhecidos pela sua permanente hostilidade contra
quaisquer grupos que ocupassem territórios
vizinhos aos diversos nichos ecológicos ocupados por eles. Essa hostilidade era traduzida em constantes e ferozes confrontos bélicos, onde os inimigos jamais poderiam ser poupados. Aprisionar, sacrificar
e ingerir o maior número possível de inimigos durante cerimônias rituais possuía um significado mágico que se sobrepunha aos aspectos políticos ou econômicos. Toda a tribo
participava do banquete, que era repartido seguindo-se uma
simbologia própria: as mulheres e as crianças, por exemplo, comiam um mingau feito com as vísceras da vítima. O
cérebro e a língua eram reservados apenas para as crianças. Mas o ato antropofágico não era a única forma de fazer do corpo humano um veículo de comunicação social e
com os espíritos dos antepassados e dos ancestrais míticos.
Para cada vítima capturada, os guerreiros faziam dolorosas
incisões nos próprios corpos, as quais simbolizavam sua coragem, poder e prestígio.
Podemos imaginar a forte impressão que esses costumes, inimagináveis entre sociedades urbanas nos dias atuais
ou passados, causaram nos antigos cronistas. No caso específico da América do Sul, os conquistadores europeus empenharam-se em desestruturar toda a concepção mágicoreligiosa das populações ameríndias, impondo-lhes o Cristianismo como crença e proibindo práticas moralmente condenáveis dentro da sua lógica etnocentrista. Como sabemos,
a cultura ocidental triunfou sobre o continente e, com exceção de pequenas ilhas preservadas, a aculturação ocorreu
em maior ou menor grau nas sociedades que interagiram
com o homem branco.
Mas, principalmente no que se refere aos assuntos espirituais, não devemos menosprezar a força da tradição, a
qual pode preservar costumes que caminham na contramão
da trajetória sociocultural das populações urbanas atuais.
Costumes esses que, apesar de serem muitas vezes condenados pela sociedade e de terem sofrido um sincretismo
adaptativo, ainda guardam elementos tradicionais muito antigos, que nos ajudam a embarcar numa viagem na máquina do tempo. É o que veremos a seguir, em um estudo com
material pré-histórico o qual aponta para a sobrevivência de
um sacrifício ritual por pelo menos 1.200 anos.
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D
O deserto de Atacama está localizado no extremo sul do
altiplano andino, ao norte do atual território do Chile, onde
floresceu por mais de dois milênios a cultura atacamenha. A
domesticação de camelídeos, o cultivo de um número limitado de espécies vegetais devido à extrema aridez da região
e, principalmente, o intercâmbio de produtos através das
caravanas de llamas caracterizavam as mais importantes
atividades desenvolvidas no oásis de San Pedro de Atacama.
Sua situação geográfica estratégica assegurou aos atacamenhos, por longo tempo, hegemonia nesse sistema de
trocas que percorria extensas rotas de tráfego. Por este motivo, tornaram-se especialmente importantes nos processos
de expansão territorial desenvolvidos por outros grupos como
Tiwanaku e Inca, os quais, em diferentes períodos, acabaram por estender sua influência ideológica, política e econômica até o oásis de Atacama.
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esde a década de 50, muitos cemitérios
pré-históricos foram escavados no oásis de
San Pedro de Atacama. Neste período, no
entanto, os arqueólogos empregavam uma
metodologia de escavação bastante distinta da atual, muitas vezes recuperando apenas os crânios
dos esqueletos encontrados.
Um desses cemitérios, o de Coyo Oriente, forneceu uma
amostra de 239 indivíduos de todas as idades e ambos os
sexos. Como parte de um projeto que estuda a questão da
violência entre os grupos pré-históricos que habitavam o oásis
de San Pedro de Atacama, foram analisados todos os crânios adultos deste sítio atualmente disponíveis no acervo do
Instituto de Investigaciones Arqueológicas y Museu Pe. Le
Paige, num total de 226 indivíduos.
O sítio Coyo Oriente foi situado cronologicamente em
1190 ± 70 BP ou 790 AD. Esta datação confirmou a localização temporal do sítio na denominada Fase Coyo (± 500
a 900 a.D.), feita a partir da análise dos acompanhamentos
funerários. Durante este período, se intensificaram as relações entre San Pedro de Atacama e a Federação Tiwanaku,
localizada às margens do Lago Titikaka no altiplano Boliviano. A influência ideológica de Tiwanaku, percebida através
das complexas oferendas funerárias, deixou algumas conseqüências sobre a região, como um notável aumento da
estratificação social; o fortalecimento do poder dos Xamãs e
incremento do uso de alucinógenos; a intensificação das atividades de mineração e metalurgia; além de um aumento
de violência física intra e intergrupal associada à tensão social, observada durante um estudo anterior com material
proveniente de outro cemitério desta fase, Solcor-3.
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F
oram analisados os traumas agudos associados
à violência representados pelas fraturas em depressão no crânio e pelas fraturas por esmagamento na face, sendo as fraturas nasais incluídas em uma categoria isolada por apresentar
um significado biocultural distinto das demais fraturas na face.
Outros sinais de violência, como a presença de pontas de
flechas ou fraturas em outros conjuntos de ossos com associação biomecânica a lutas corpo-a-corpo não foram consideradas uma vez que a amostra está representada apenas
por crânios.
Os resultados mostraram um total de 12,2% de homens
e 9,9% de mulheres com lesões associadas à violência. Ao
contrário do observado no estudo anterior em Solcor-3, as
lesões que apresentam prevalências mais altas são as de
ossos nasais, principalmente entre os homens (10,4%). Observa-se, para este segmento, uma concentração destas lesões não letais na região nasal, em oposição a uma prevalência mais baixa de lesões no crânio (1,6%), e à ausência
de lesões na face.
INTELIGÊNCIA
Esta concentração de fraturas na região nasal entre os
homens, sugere que os golpes foram desferidos segundo
regras específicas de ataque, uma vez que, durante combates corpo-a-corpo ou à distância, os golpes são desferidos
de forma aleatória, portanto a probabilidade de um golpe
atingir o crânio e a face é muito maior do que de atingir
especificamente a região nasal, que apresenta uma área
muito menor. Esta concentração de fraturas não-letais, além
dos indivíduos não apresentarem outras lesões no crânio ou
na face, sugeriram que os golpes foram desferidos durante
lutas rituais.
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E
sta hipótese ganhou força quando inserida dentro do contexto cultural desta fase, quando os
oásis atacamenhos encontravam-se sob forte
influência ideológica de Tiwanaku. Esta influência pode ser claramente observada em vários cemitérios desta fase, estando sempre representada através do complexo aparato cerimonial-religioso relacionado
com a inalação de alucinógenos. No caso específico de Coyo
Oriente, ossos pirogravados, tubos, colheres e principalmente
tabletas apresentam a típica iconografia Tiwanakota, principalmente os temas centrais e secundários da Porta do Sol.
Relatos de cronistas e estudos etnográficos com grupos
Aymaras que ainda vivem às margens do Lago Titikaka e
em outras regiões da Bolívia, bem como com grupos Quechua que vivem em outras regiões andinas e no passado
também receberam influência direta de Tiwanaku, registram a prática de lutas rituais, chamadas nos dois idiomas de
Tinku, as quais persistem até os dias atuais.
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PFL
INTELIGÊNCIA
De uma forma geral, essas batalhas rituais eram travadas entre aldeias ou ayllus vizinhos, a fim de assegurar o
ciclo reprodutivo, com uma colheita abundante e a procriação dos animais. Os homens, após ingestão de bebidas alcoólicas, posicionavam-se em uma planície mantendo uma
distância de aproximadamente 30 metros, e começavam
um combate à distância utilizando armas de arremesso como
fundas para lançamento de pedras e boleaderas. Após uma
pausa, o segundo tempo de luta acontecia com um combate
corpo-a-corpo, quando os participantes utilizavam luvas reforçadas com ferro. Fotos e documentários atuais mostram
a utilização de um gorro protetor que se estende pela lateral
do rosto, além de mostrar como são desferidos uma série
de socos, com ambas as mãos, que atingem principalmente
a região do nariz.
O objetivo desta luta ritual, tanto no passado como no
presente, é oferecer sangue e pelo menos uma vida à terra
e à Pachamama, para garantir boas colheitas durante o ano.
Por isso, quando em 1982 houve uma forte seca no norte
de Potosí, os campesinos alegaram que isto acontecia, sem
dúvidas, porque durante o Tinku do ano anterior pouco sangue havia sido derramado e ninguém havia morrido. Ainda
hoje, este ritual é conhecido pela sua violência, sendo repudiado por parte da população boliviana. Apesar desta resistência, este ano o clímax do ritual Tinku aconteceu no dia 4
de maio, após dois dias de preparação. Na praça da cidade
de Macha, conhecida como a capital do Tinku, 60 comunidades campesinas se reuniram vestidos com os trajes típicos
para a ocasião, e mais uma vez ofereceram seu sangue e
seus corpos à Pachamama. O resultado foram 37 feridos,
uma morte, e a alegria dos campesinos por haverem cumprido com sua obrigação na milenar tarefa de apaziguar os
deuses. Tudo registrado pelas câmeras fotográficas da imprensa e de turistas.
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INTELIGÊNCIA
A
É claro que hoje em dia o ritual sofreu algumas alterações na sua forma, com a participação eventual das mulheres e a não-ocorrência das lutas à distância. Uma representação do ritual acontece na famosa festa de carnaval da
cidade de Oruro, presenciada por milhares de turistas todos
os anos, e que possivelmente tem como objetivo maior a
conservação e a divulgação da tradição, e não o derramamento de sangue propriamente dito.
inda que hoje boa parte da população boliviana condene o ritual Tinku como uma prática violenta, é preciso entendê-lo também
como um documento de identidade social,
uma vez que isola cada grupo do outro,
enquanto, ao mesmo tempo, os une na responsabilidade
comum pelo bem-estar coletivo. O efeito psicológico que
este, bem como outros rituais, exerce sobre seus praticantes, nos obriga a uma reflexão sobre o conceito de violência
física utilizado pelos estudiosos, formulado dentro do arcabouço teórico-metodológico das ciências sociais e humanas.
Se, como colocado no início deste texto, o corpo humano
materializa uma expressão simbólica particular de cada sociedade, a interpretação para as suas formas de utilização
também deve ser particularizada e relativizada segundo o
ethos que o inventou.
O alcance deste ritual ao longo do tempo e no espaço,
por outro lado, merece uma reflexão sobre a sua importância no papel de mediador entre o mundo natural e o mundo
sobrenatural. Esta é, sem dúvida, uma das dimensões mais
marcantes e mais intrigantes que o corpo humano pode representar.
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FOTOS: ADRIANA LORETE
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INTELIGÊNCIA
Caderno de
reminiscências
Miriam Leitão
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SURPRESA
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Festa do avesso
Não vou dizer que não houve festa.
Festa houve.
Mas tão rara e magra
que se perdeu no bloco de tristeza
granítica da cidade.
Errado dizer que não houve bandeiras.
Elas salpicavam raras
com suas três cores pálidas
certas janelas.
Mas nada que agitasse
o mar de casas fechadas e mudas,
de bandeiras recolhidas.
Houve gritos de vitória.
Vagos, breves.
Mas não incomodaram o silêncio
o longo, o vasto silêncio
da nação toda
derrotada.
É feio desfazer vitória alheia.
Vitória houve.
Mas murcha e sem contágio,
sem mágica, sem raça.
Comemoração houve.
Ouvi rumores.
Ela uniu adversários antigos,
num pacto de desforra
de velhos derrotados,
onde mais se aclamou o gol que não houve,
as bolas perdidas,
as faltas,
o passe desfeito,
o atraso, a retranca.
Uma festa do avesso.
Nada parecido com aquela alegria majoritária
que arrasta descrentes,
que ecoa, contagia e domina.
A festa do amor rasgado e louco
da alucinada certeza
dessa gente rubra e negra
Rio, 26 de junho de 95
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INTELIGÊNCIA
Volta
Que me importa a taxa de câmbio,
a ata do Copom
e a alíquota do imposto de renda,
se meus pés seguem trilhando trilhas de passados presentes?
Que me importa saber a última declaração
do último mais poderoso da República,
se reis, papas e guerreiros lutaram guerras fatais
que me aprisionam pelos séculos?
Que me importa a comparação entre i-p-c-a e i-g-p-d-i,
se sigo os passos de Hemingway pela velha Paris
e sei que ali bem perto da Cardinal Lemoine tem um liceu
para o qual há mil e quinhentos anos o sol também se levanta?
Que me importa, poeta querido,
o tempo presente,
a vida presente,
o homem presente?
Se o passado é minha matéria,
se sou cavaleiro no salão Ladislau,
prisioneira da torre Dalibor e ainda toco violino em troca da
vida de cada dia,
se salto da rotunda de São Vito para arcos góticos,
se atravesso incansável a Karluv Most
e fico à espreita na torre,
se discuto a física da metamorfose na casa do Unicórnio,
se ouço ainda a voz de Jan Huss na Capela de Belém
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SURPRESA
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INTELIGÊNCIA
e que por ela vale a pena
a Constância
e o fogo ardente da paixão.
Se sei que da praça St.Michel
posso tomar Paris,
se na Stare Mesto resisto
e mais resistirei
ao poder irracional e obscuro
que aprisiona a palavra,
se estou em algum ponto
entre St. Michel e Stare Mesto,
que me importa?
A aceleração da inflação,
a base monetária,
a desvalorização?
Que me importam fatos sem traços na
História?
Se arrebatada e louca de paixão,
sigo perdida nos becos
medievais, modernos, contemporâneos,
onde se lutou
pela vida presente?
25
de novembro de 2002
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INTELIGÊNCIA
Inútil espera
A vida passou tão depressa
que ainda sinto o cheiro da casa onde nasci.
Que ainda tremo de frio e medo na sala de aula.
Ainda espero os natais.
Ainda sonho com o menino bonito
que fingi rejeitar no primeiro jogo feminino.
Jogo perdido como tantos outros.
A vida passou tão depressa que ainda sinto as primeiras sensações.
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SURPRESA
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INTELIGÊNCIA
O beijo,
o desejo,
a aflição,
a dor.
Ainda sonho os sonhos desvairados de revolução,
heroísmo e liberdade.
Vejo a parede branca da prisão
no momento que pensei morrer,
que pensei o último.
Ainda sinto a sensação de que iria morrer,
de susto, ou de bala, aos vinte.
A vida passou tão depressa que ainda vejo meus
filhos pequenos,
meus e doces meninos,
inteligentes e frágeis, meus.
Ainda sangro as dores.
Ainda amo os que amei.
Ainda quero velhos quereres.
Ainda magoam as traições.
Ainda espero
a vida que passou.
Março de 2003
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INTELIGÊNCIA
Dominicais
Domingo de manhã, íamos todos juntos
para a escola dominical.
A roupa mais bonita
e limpa
o capricho da mãe
de tantos filhos.
O orgulho de engomar e passar pela noite de sábado
para exibir domingo de manhã.
Na escola, todos juntos
quem sabe mais
do Gênesis e do Habacuque
de Joel depois de Oséias
de Ruth e de Ester
a terna e a bela.
Quem sabe mais
dos sonhos de José
da sorte de cada sete
dos sete e mais sete
do labor de Jacó
do amor, o grande amor
de Raquel,
mãe de José,
que lia
os sonhos do rei.
80
SURPRESA
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INTELIGÊNCIA
Dos salmos dos pastores
das dores
louvores.
Quem sabe mais
do testamento, o segundo,
da herança, o primeiro.
Remidos,
quem sabe mais
de epístolas e de Efésios
de coros e de Corintios
dos filhos dos Filisteus
dos Atos dos Hebreus.
E dos Colossenses
dos Tessalonicenses
dos censos
e incensos de Belém.
Do Cântico dos Cânticos
Antigos Cantares
aos conselhos de Salomão
“Sobre tudo o que se deve guardar
guarde o seu coração.”
Quem sabe a entrada
da estrada de Damasco.
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Quem viu os ramos dos reis
quem viu os milagres de Deus
quem viu as preces, profetas
quem sabe parábolas
do vinho e do pão
bem aventurados são.
Quem viu as dores finais
e o aviso
do eclipse
de Apocalipse.
Domingo íamos todos juntos
sábios e crentes
juntos
famintos
para a mesa de almoço.
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SURPRESA
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Que parte do frango fica com que parte da fome
que nos atingia em partes iguais?
Domingo todos juntos no quintal
dos brinquedos e medos
toda casa mineira tem quintal,
todo quintal mineiro tem pombo, verdura e goiaba,
só um quintal é aquele
com uma casa fechada
mal assombrada,
no fechado da casa tinha escuro e vulto,
tinha susto nos menores,
tinha gritos e avisos fatais.
Domingo íamos todos juntos
passo a passo
todos juntos
até ser tarde demais
para ser domingo
tarde para irmos juntos
tarde para todos nós.
Domingo não iremos mais
não vamos juntos
é tarde demais.
São Paulo, 23 de outubro de 2003
ABRIL • MAIO • JUNHO 2004
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INTELIGÊNCIA
Moinho
Minha mãe se eu te contasse
o que andou por aqui.
Depois daquele dia,
veio a busca.
Te procuramos
por todos os sítios,
por todas as estradas,
por velhos casarões.
Te procuramos em vilas marianas,
em casas nemas,
te vimos em cada tacho de cobre,
em cada boi no pasto,
em cada mingau de couve,
em cada fogão de lenha.
Fizemos fazendas de te encantar,
plantamos flores, frutos,
vastos verdes,
quisemos batizar com seu nome
todas as meninas nascidas.
Minha mãe, se eu te contasse
de cada dor que doeu.
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SURPRESA
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INTELIGÊNCIA
Recuamos
nas voltas que o mundo dá,
quando a água bate na pá
vira a roda
liga o engenho
move o pilão
no bate-bate
do moinho,
batida seca, repetida,
pedra contra pedra,
esmagando o grão,
girando o tempo
passado, tão passado,
que de ver nunca se viu.
Minha mãe se eu te contasse
das batidas da pedra mó
e da saudade que dá.
[email protected]
Villa Mariana, 1993
ABRIL • MAIO • JUNHO 2004
85
I N S I G H T
86
PDT
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I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Cesar Caldeira
ADVOGADO
ABRIL • MAIO • JUNHO 2004
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INTELIGÊNCIA
“Acontece que meu coração ficou frio.”
Acontece, Cartola
I
Sinal fechado. Pancadas na janela do carro tiram minha atenção da letra e voz do
Cartola. Um revolver está apontado para meu rosto. Um negro nervoso grita e sacode a
arma. Presto mais atenção na arma: não era de brinquedo. Com a mão, peço calma.
O sinal continua vermelho. O carro da frente parado. Lentamente abaixo a janela.
— Estou sem dinheiro. Mas tenho esse gravador — mostro a peça.
— Sai do carro! Deixa tudo aí! Me dá os documentos.
— Está quase sem gasolina...
— Quer morrer? Sai daí!
Na calçada uma senhora parou com suas sacolas nas mãos. Levantei devagar.
— Os documentos estão no porta-luva — disse enquanto andava para trás do carro.
O sinal estava abrindo. O carro parte pulando para um trânsito congestionado.
— Meu carro foi roubado agora naquele sinal ali. Alguém me empresta um celular para
chamar a Polícia?
— Vai ao orelhão e disca 190 — disse o rapaz negro que tomava chope com os amigos
no botequim em frente.
A secretária eletrônica respondeu. Logo depois uma voz feminina atendeu.
— Um bandido armado levou agora meu carro na esquina da Rua Corrêa Dutra com
Bento Lisboa. É um Renault Clio prata; está faltando a calota do pneu traseiro no lado do
carona. Pede para cercar no Largo do Machado imediatamente. O trânsito está engarrafado por aqui...
— Calma. É preciso o senhor se identificar. Preciso anotar a ocorrência.
— Minha senhora, o bandido não sabe dirigir meu carro, está nervoso. A gasolina está
na reserva. Avisa à Polícia, depois a gente completa o boletim. É uma emergência.
— Não é possível. É um procedimento. Temos que pegar as informações.
Ficamos uns cinco minutos no telefone. Parecia uma eternidade.
Fui andando para a “Delegacia Legal” do Catete. Ainda tentava me acalmar quando
cheguei ao guichê de atendimento. Um casal conversava com a funcionária.
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INTELIGÊNCIA
— O meu carro foi roubado agora. O bandido estava armado.
— O senhor já comunicou ao 190?
— Já. Quero registrar a ocorrência.
— Vamos mandar logo a notícia para o Cecopol — disse a atendente. — Vou chamar o inspetor.
— Tem água?
— Não.
Comecei a contar o caso para o casal. O senhor se ofereceu para buscar um refrigerante ou água para mim no botequim em frente.
O inspetor apareceu na janela. Precisava dos meus dados pessoais e informações
sobre o carro.
Entreguei os documentos do carro e a carteira de motorista.
— Pelo menos consegui salvar esses documentos do assaltante. Ficaram no bolso da
minha calça.
— Menos um transtorno — o rapaz tentou me consolar.
Sentei num banco. Estava com a boca seca, muito tenso. O inspetor veio me chamar
para prestar a queixa.
— O senhor lembraria do assaltante? Temos um livro com fotos e retratos falados.
— Vamos ver — entrei na sala de atendimento.
Comecei a descrever o assaltante para o policial. Depois folheei o livro. Separei três
fotos. Dentre estas indiquei um rosto que mais se assemelhava ao do assaltante. Tinha
deparado com o criminoso fazia uns quarenta minutos. No livro havia uma anotação:
suspeito de roubo de veículo.
— É esse?
— Parece com esse rosto — respondi.
Enquanto o inspetor preenchia o formulário no computador, eu fazia perguntas.
— Acha que o carro vai ser recuperado?
— É provável. O seu carro não vai para o “corte”.
— O quê?
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INTELIGÊNCIA
— O seu carro não costuma ser roubado para desmanche. Não é comum
o roubo de Renault Clio. Pelo que o senhor descreveu, parecia que o assaltante
estava tentando fugir da área.
— E as minhas coisas, vou recuperar? Tinha um cavaquinho, um violão
clássico japonês e partituras do Cartola no carro. Estava saindo de uma aula de
música no Museu da República.
— Acho difícil que o cavaquinho e o violão fiquem no carro.
— Mas que bandido em fuga sai com violão e cavaquinho nas mãos?
Pedi para listar os principais objetos que estavam no carro. Tinha de cadeira
de praia até trabalhos de alunos na Faculdade de Direito.
— Eu também estou estudando Direito, na Gama Filho. O senhor dá aula
de quê?
Entramos numa conversa paralela. O inspetor concluiu.
— Se os trabalhos não aparecerem o senhor vai dar dez para todos os
alunos, não é?
— Talvez não. Vou pedir um aditamento para incluir novos suspeitos nesse
registro de ocorrência. Tem muito roubo de carros aqui no Catete?
— Na circunscrição dessa Delegacia foram em torno de quatrocentos casos
de roubos e furtos de veículos no ano passado.
— Mais de um caso por dia!
— O senhor tem seguro?
— Tenho.
— Qual a empresa de seguros?
— Não me lembro. Mudei para essa nova companhia recentemente porque era mais barata. O telefone da seguradora ficou no porta-luvas. Depois eu
trago o nome. Vou precisar dar um jeito de entrar em casa pois as chaves
estavam no mesmo chaveiro. Fiz bobagem.
— Por precaução, o senhor deve mudar a fechadura.
O programa do computador travou. Veio um outro inspetor ajudar.
— Não acredito ainda que meu carro foi roubado no sinal da Corrêa Dutra.
— Olha, uma senhora foi assaltada às oito da manhã ali na esquina. Os
bandidos estão ousados. Ainda tem gente que fica falando em direitos humanos...
— Se tivesse mais policiamento ostensivo...
— Como? O senhor viu aquela nossa viatura em frente da Delegacia? Não
tem motor. A outra, está com os pneus carecas. Não dá para correr atrás de
bandidos. Está um perigo. Eu moro em Bangu. Lá é pior ainda. Não dá para
sair de casa à noite.
— É. Meu carro foi roubado às oito e trinta da noite numa rua movimentada, perto de dois botequins cheios.
— Hoje é véspera de feriado, Semana Santa. Os criminosos vão para a
pista, tentar fazer um ganho. O senhor deu azar.
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INTELIGÊNCIA
Quem me vê sorrindo
Pensa que estou alegre
O meu sorriso é por consolação.
Quem me vê sorrindo, Cartola
II
— Boa noite. Os senhores sabem como posso encontrar um chaveiro agora? Meu
carro foi roubado junto com as chaves de casa.
Os dois policiais militares que estavam ao lado de uma patrulha no Largo do Machado,
mencionaram o Rio Sul.
— Nada mais perto?
Um deles foi ver um caderno no carro. Fiquei conversando com o outro.
— O policial na DP me disse que é provável que meu carro, um Renault Clio, seja
recuperado. O que o senhor acha, ele está certo?
— Não é um carro para corte como o Volkswagen.1 Pode ser que alguém tenha feito
encomenda...
— Aí seria muito azar, não é? — Comecei a descrever o roubo.
— Parece que o assaltante estava em fuga. Alguém na boca pode também ter mandado pegar um carro para desova. Na mala do Clio cabem dois presuntos.
— É meio sinistro. Porém, ainda assim o carro reapareceria. Lavou, está como se fosse
novo.
O PM riu.
— O senhor tem seguro?
— Tenho. Por quê?
— Porque as seguradoras dão um percentual sobre o valor do veículo para os policiais
que o encontram. Assim que é feita a ocorrência do roubo ou furto de carro segurado, a
notícia já vai para alguns policiais que começam a procurar o veículo nas suas áreas. É
sempre um ganho extra. Para a seguradora é também bom negócio; evita pagar a perda
total.
— E o meu cavaquinho, o violão e as partituras do Cartola?
— Ah! O senhor é músico?
— Não, sou professor de Direito. Toco violão e piano. Estou estudando cavaquinho.
— Eu também toco cavaquinho. E tiro som de teclado. Grande Cartola!
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— Olha, estou tentando tocar cavaquinho. Acho muito difícil. Estudei música. Leio partitura.
Pedi ao meu professor de cavaquinho para fazer as anotações do ritmo para a mão direita.
Estamos a duas aulas tentando marcar o tempo forte e localizar o sincopado.
— Doutor, é tchum, tchum, tchum, tchac, tchac ... O policial — um negão de dois metros
— já estava simulando um cavaquinho nos braços e imitando o som da batida. Na hora do
sincopado, dava uma ginga.
— Aí é que está o problema. O meu professor também faz isso. Na hora do sincopado,
ginga. Digo para ele: não adianta gingar. Coloca aí no papel como se eu fosse um aluno
japonês.
— Não dá. O doutor tem que ir para a pista. Lá em Marechal Hermes a gente arma tenda
e fica tocando. É fácil aprender.
— Quem sabe. E então, vou recuperar meu carro com o cavaquinho?
— De jeito nenhum.
O outro policial já havia ligado para um chaveiro, que chegou de carro. Lá fomos nós para
Laranjeiras. No caminho o chaveiro me perguntou como o policial o encontrou.
— Leu um caderno. Deu uns telefonemas. E você apareceu. Quase mágica.
O chaveiro ficou ressabiado. Eu também. Chamei o segurança da rua. E o síndico do meu
prédio. Ia agora tentar evitar um achaque.
Em um minuto o chaveiro abriu minha inexpugnável porta com um ferrinho.
— Cento e vinte reais, doutor.
— Tenho cem trocado. Cuidado com o cachorro do prédio que é feroz e está solto.
— Está bem.
Pelo menos, o moço levou o dinheiro trocado para o guarda.
Quando, afinal, entrei em casa não conseguia ter sono. Era muita adrenalina. Liguei a
Internet: pude acompanhar a “guerra da Rocinha” que estava em andamento.2
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INTELIGÊNCIA
Bate outra vez
com esperanças o meu coração
As rosas não falam. Cartola
III
Sexta-feira da Paixão.
Dormi pouco. Acordei várias vezes. Revólver na cabeça e casa vulnerável geram
angústia individual. Resolvi sair para caminhar. Antes passei numa clínica para medir
a pressão.
— Treze por nove. O senhor está muito bem para quem esteve fazem poucas
horas ameaçado de morte — comenta a enfermeira.
— Tomei remédio hoje pela manhã. Este encobrimento de sintomas parece ser
um triunfo da medicina.
Tive que conversar com a médica. Contei o que passei na noite anterior. Ela me
disse que compreendia muito bem aquilo tudo porque também já tinha enfrentado
situações semelhantes. Contou um caso terrível: ficou sob a mira de armas de bandidos durante horas quando era recém-formada. Havia pego uma van que foi assaltada e levada para uma favela. Fiquei mais assustado. E a doutora reviveu as penosas
emoções vividas. Quando voltei ao meu caso, ela pegou o celular para tentar encontrar um amigo policial que trabalhava na Delegacia de Roubos e Furtos. Queria pedir
para salvar os meus pertences de uma eventual depenação pela própria Polícia.
Agradeci muito. Saí com uma receita de calmante fitoterápico. Depois de rememorar
aquela situação passada, a médica merecia também duas drágeas de oito em oito
horas. Essas violências nos aprisionam para sempre.
Depois da caminhada, retornei cansado para casa ainda pensando no roubo. Na
secretária eletrônica estava um recado gravado. O meu carro já estava na 5ª DP.
O auto estava batido. Todos os acessórios, cd player, cavaquinho, violão e as
partituras do Cartola também se foram.
Chamei a assistência mecânica da seguradora para verificar se podia sair com o
carro. Quando o mecânico o examinou , concluiu:
— É só lataria. E o kit-polícia que eles sempre levam quando o carro é recuperado fica na delegacia. É assim, doutor.
Um inspetor me chamou para fazer o auto de recuperação.
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INTELIGÊNCIA
— Já tinha até me preparado psicologicamente para perder o cavaquinho e o violão.
Mas acho estranho que um vagabundo leve o livro do Hely Lopes Meirelles.
— Doutor, o carro foi encontrado na Lapa. Estava com as portas abertas, luzes vermelhas acesas e as chaves dentro. Eram quase duas horas da manhã. Tudo pode acontecer. O
senhor tem seguro?
— Tenho.
— A delegada colocou uma exigência para retirar o veículo do sistema onde aparece
como carro roubado. É preciso levar para fazer uma perícia. É para ver se o chassis não foi
raspado durante o período que esteve roubado.
— Está bem. Não tem perícia técnica para descobrir quem roubou o carro e os seus
acessórios? Eu identifiquei através de uma foto um suspeito do roubo. Se não tiver qualquer
perícia para colher as impressões digitais existentes e confrontá-las com as do suspeito
qualquer advogado derruba o testemunho da vítima do roubo, não é?
— O doutor tem razão.
— Então, pede também perícia técnica para identificar o autor do delito. O mecânico
que esteve aí sugeriu que na batida da frente pode ter sangue de alguém atropelado. Vocês
verificaram isso?
— Doutor, espera um pouquinho que eu vou conversar com a delegada.
— Ela vai entender. Afinal nós queremos que esse bandido não continue a roubar carros, ameaçar pessoas com armas. Da próxima vez pode ser um parente do senhor, da
delegada, do policial militar que encontrou o veículo. Todos nós estamos à mercê desses
bandidos que roubam carros e acessórios de carros roubados.
O inspetor voltou vinte minutos depois com um pedido mais amplo de perícia técnica.
— O senhor pode ir agora mesmo na Rua Pedro I fazer a perícia técnica. Depois daremos baixa do registro do carro roubado no sistema. Pode levar como depositário o carro.
O pátio do Instituto Carlos Éboli estava praticamente vazio. Nenhum funcionário estava à
vista. Bati na porta. Nenhuma resposta. Bati mais forte. Nada. Resolvi dar a volta no prédio.
Alguém gritou.
— O que é? — Era um senhor de bermudas. Parecia que tinha acordado.
— A delegada da 5ª DP solicita neste ofício que se faça uma perícia técnica. É para
coletar as impressões digitais no meu carro que foi roubado e recuperado pela Polícia.
— O quê? Até o secretário de Segurança Pública sabe que o Instituto não tem material
para fazer perícia técnica. Aqui falta tudo. Quando é muita pressão para fazer perícia nós
temos que pedir material a um professor da UFRJ. Ele quebra o galho.
— Por favor, o senhor pode responder a esse ofício? Pode dizer que não tem condições
materiais de cumprir a tarefa de realizar a perícia técnica. Eu levo esta resposta para a
delegada.
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— Não vou fazer ofício. O pessoal da delegacia sabe qual é a situação aqui. Outra
coisa: aqui não se faz essa perícia do chassis. — O perito escreveu na última página do
ofício o endereço correto.
Voltei para a delegacia. Já eram quatro horas da tarde. Pedi para falar com a delegada. Repassei as informações do perito e dei seu nome e telefone.
— Vou ligar para ele — disse a jovem delegada.
Outro inspetor veio conversar comigo. Fomos até o carro. Ele fez considerações sobre
a batida. Afirmou que fora perito e que não havia sangue no pára-choque. Parecia
disposto a manter apenas a perícia do chassis. Eu voltaria na segunda-feira, depois do
feriadão, com um ofício confirmando que o chassis não sofrera tentativa de alteração.
Já estava dentro do carro, pronto para sair, quando fui chamado de volta à delegacia.
A delegada insistiu que se tentasse fazer a perícia técnica das impressões digitais e, se
possível, de DNA para verificar se alguém havia sido ferido.
Novos ofícios foram feitos. Ao me despedir da delegada, comentei:
— Já sabemos as respostas a esses ofícios. Não é possível fazer a perícia técnica
solicitada. Portanto, não poderemos incriminar qualquer suspeito de roubo do meu carro
ou de seus acessórios, se é que foram feitos pela mesma pessoa. Como a pronta resposta
da polícia militar para cercar um carro que acabou de ser roubado também não é possível, o autor do roubo não pode ser preso em flagrante delito.
— O perito me informou que talvez fosse possível fazer a perícia das impressões
digitais se ainda restasse algum material no Instituto. O nosso inspetor disse que há indicação de impressões digitais nos vidros. Só se poderia ver isso na segunda-feira, porque,
apesar do Instituto ter que funcionar 24 horas, a perícia técnica não está funcionando
assim.
— Pois é. Eu vou levar o meu carro agora para casa debaixo dessa chuva. Que Deus
proteja essas impressões digitais, da chuva e do zelador do meu prédio, que costuma
lavar os carros no fim de semana. Feliz Páscoa!
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Alegria era o que faltava em mim.
Uma esperança vaga eu já encontrei.
Alegria. Cartola.
IV
Parei no primeiro posto de gasolina que encontrei.
— Por favor, cinqüenta reais da gasolina comum.
Vi com certa apreensão que havia um envelope com meu endereço residencial no
chão do carro. Tenho que trocar a fechadura, como disse o policial. Por via das dúvidas.
Quando olhei para o atendente do posto de gasolina, ele estava com a mão no
vidro do carro.
— Rapaz, você vai acabar preso por ter roubado esse carro só porque colocou a
mão nessa janela agora.
e-mail:
cesarcaldeira@ globo.com
NOTAS
1. Segundo o deputado estadual Carlos Minc, que aprovou uma lei rigorosa sobre o controle dos ferrosvelhos no Rio de Janeiro, as investigações realizadas no Rio indicam que delegados da Polícia Civil
controlavam o desmanche de carros através de parentes e testas-de-ferro. Nomes de policiais militares
e rodoviários eram mencionados nos livros caixa-dois dos ferros-velhos que foram fechados na época
da repressão. Nas anotações constava que esses policiais recebiam propinas e almoço. Cf. MINC,
Carlos. “Crime organizado e política de segurança pública no Rio de Janeiro”, revista Archè, nº 19,
1998, p. 194-195.
2. Na madrugada da Sexta-feira Santa um grupo fortemente armado faz uma blitz na Avenida Niemeyer e assalta carros para invadir a Rocinha. Na ação, a mineira Telma Veloso é assassinada com um
tiro de fuzil. O grupo segue para a Rocinha e, numa troca de tiros com a Polícia, mata Fabiana e
Wellington. Durante o dia, a Polícia ocupa os acessos da Rocinha e do Vidigal e prende cinco traficantes.
Durante a noite, começa uma nova troca de tiros e dois policiais do BOPE morrem. Manchetes dos
jornais durante a Semana Santa indicam a gravidade da situação de insegurança pública. “Guerra do
tráfico mata 5 e impõe terror na Zona Sul”, O Globo, 10/04/2004, p. 1; “Polícia caça traficantes na
mata e moradores fogem da Rocinha”, O Globo, 11/04/2004. p. 1; “O Iraque é aqui”, Jornal do Brasil,
11/04/2004, p. 1; “Rocinha e Vidigal podem ser contidas por muros”, O Globo, 12/04/2004, p. 1.
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O 8, o 9 e o 3, respectivamente, ya-ku-sa, formam uma
seqüência numérica péssima em
um jogo de cartas japonês, inventado por não-se-sabe-quem
nos confins do arquipélago nipônico. Só sabemos que o jogo é
muito antigo e, indubitavelmente, 8, 9 e 3 configuram uma mão
ruim mesmo, talvez a pior delas. Os jogadores profissionais de
estrada que abundavam no velho Japão, cujo linguajar era repleto de gírias e jargões,
logo cunharam o termo yakuza para apelidar o típico perdedor, alvo de todos os deboches e pilhérias. Com o tempo,
a expressão foi mudando de sentido. O termo, antes pejorativo e humilhante, passou a ser usado para designar genericamente os membros individuais ou mesmo quadrilhas inteiras que integram o mundo do crime organizado japonês.
No outro lado do mar, as Tríades chinesas prosperam, e
estendem seus tentáculos por toda a parte para onde é levado o povo chinês em sua espalhada diáspora. Sua vasta organização sobreviveu aos golpes dos imperadores manchu,
à perseguição das autoridades ocidentais, que por anos partilharam e exploraram desavergonhadamente o país, às
matreirices do generalíssimo Chiang Kai-Shek, as agruras
da ocupação japonesa e à rude repressão vez por outra
praticada pelo governo da República Popular da China. Mas
a sobrevivência das quadrilhas chinesas deve-se também ao
fato da existência de “um lado escuro da lua”, isto é, a possibilidade sempre presente de colaborar e de encher de dinheiro as diferentes autoridades que controlaram a política
chinesa ao longo das eras. Os curtos períodos de repressão
violenta são medeados por longos momentos de corrupção
desenfreada e parceria escusa entre as Tríades e as autoridades políticas e empresariais oportunistas e venais. E que o
leitor não pense que a coleção de adjetivos aqui exposta
revela algum tipo de cândido moralismo de nossa parte.
Estamos simplesmente descrevendo as regras do jogo conforme o mesmo é jogado. O termo “Tríade”, simbolicamente, está relacionado com os elementos fundamentais do universo, cuja harmonia os quadrilheiros chineses alegam respeitar e preservar: o Céu, a Terra e o Homem.
Já na Rússia muitos observadores acreditam que o desenvolvimento do crime organizado deveu-se, essencialmente, ao colapso da autoridade soviética e a transição tumultu102 PTB
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ada e descuidada do planejamento apertado do socialismo
para o cenário de economia de mercado do capitalismo.
Nada mais falso. Embora o ambiente do “salve-se quem
puder” do novo capitalismo tenha se prestado como terreno
fértil para o florescimento da “Rússia de todos os crimes”, as
estruturas das quadrilhas organizadas modernas datam do
período stalinista, mais precisamente dos campos de prisioneiros da Sibéria. É de notório conhecimento que o camarada Stálin jamais descuidou do povoamento dos campos. Mesmo o czar mais rigoroso e autoritário dos velhos tempos
coraria de inveja se pudesse testemunhar o denodo emprestado pelo “Líder Genial dos Povos” e o “Melhor Amigo
das Crianças”, não só em povoar os campos antigos, como
também em abrir uma enorme quantidade de novos estabelecimentos. A expansão do refrigerador siberiano contou
com o concurso dos hóspedes de sempre: criminosos de
todos os tipos, desajustados sociais e dissidentes políticos. Com
o tempo, foi se estabelecendo uma hierarquia entre os prisioneiros, e no topo da mesma se instalaram os criminosos
comuns. Estes, sustentados pelo beneplácito das autoridades
políticas e dos guardas dos campos, passaram a controlar
todo o sistema de recebimento e distribuição de correspondência e produtos que os familiares dos presos enviavam
para os parentes internados nos campos. Alguns, com o intuito de agir com maior segurança no controle deste mercado negro, resolveram estruturar organizações: denominaram a si mesmos, vor-v-zakone, ou “Ladrões que obedecem
ao código”.
U
ma vez soltos e de volta às grandes cidades levavam
consigo a semente da organização criminosa. Se forem capazes de controlar o mercado negro dos campos,
nada impedia que fizessem o mesmo nas cidades. Com a
morte de Stálin, milhões de prisioneiros deixaram os campos, sendo alguns deles seguramente vor-v-zakone. Empenharam-se na formação de quadrilhas especializadas na
venda de produtos importados contrabandeados e extorsão,
estando sempre apaniguados com autoridades do partido,
da polícia e do Estado. O que aconteceu após o colapso da
União Soviética em 1991, nada mais foi do que uma ampliação — extraordinária, é verdade — da situação anterior.
Neste ensaio, levantamos alguns elementos essenciais
acerca do que se conhece da estrutura e das ações típicas
das quadrilhas do crime organizado do Japão, China e Rússia. A questão se reveste de interesse para nós, brasileiros,
pois se fala muito do problema do crime organizado em
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nosso país. Mas, ao compararmos o que conhecemos de
nossa situação frente ao que se dá no Oriente, cujas quadrilhas dispõem de sofisticada hierarquização interna e capacidade de projetar seus “negócios” no panorama internacional, o problema por aqui aparenta ser menos grave, e tudo
nos leva a crer que, mais do que um crime realmente organizado, o que temos de fato é uma sociedade civil e um
poder de Estado muito desorganizados. Contudo isso, por
enquanto, não passa de uma ligeira impressão.
Ya-Ku-sa
Uma das particularidades
das quadrilhas do Extremo Oriente, tanto as japonesas quanto
às chinesas, é que os bandidos
gostam de contar elaboradas
histórias sobre suas origens e as
mesmas, com freqüência, caem
no gosto popular. Os quadrilheiros yakuza, por exemplo, apreciam a história de Chobei Banzuiin. Para entendermos o mote, é necessário um pouco
de história do Japão primeiro. No início do século XVII, o
clã guerreiro 7Tokugawa vence todos os seus adversários e
seu líder, Tokugawa Ieiasu, torna-se o chefe militar supremo — o Xógun — de todo o país. Na época, o imperador
residia em uma verdadeira “cidade de bonecas” em Kioto,
isolado de tudo e de todos, sendo portanto o seu poder
algo meramente ornamental.
A autoridade de fato pertencia ao Xógun, e os Tokugawa conseguiram exercê-la inteiramente. O problema foi
que sob a égide do Xógun todas as guerras civis cessaram,
e por volta de 500 mil samurais — sem contar com seus
familiares — viram-se repentinamente desempregados.
Chobei Banzuiin pertencia a uma família samurai. Como
não tinha mais nem senhor para servir — tornara-se um
ronin — nem um estipêndio para prover o seu sustento,
obrigou-se a inventar um meio de ganhar a vida. Chobei,
um sujeito muito observador, notou logo que os Tokugawa
desejavam dotar sua cidade principal, Iedo — a moderna
Tóquio, de construções dignas de sua nova posição. Percebeu que o Xógun precisaria de mão-de-obra e imaginou
um meio de se tornar um importante recrutador. Próximo
a Iedo corria a grande estrada Tokaido, que cortava os
importantes campos de arroz controlados pelos Tokugawa.
A estrada vivia cheia de transeuntes. Chobei montou uma
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banca de jogo à beira da via e isso atraiu uma grande
quantidade de viandantes. Em meio ao entusiasmo e a turbamulta das partidas de cartas, Chobei recrutava muitos
deles para as obras do Xógun. Uma vez engajados no trabalho, quando chegava a época de perceberem seus salários, lá estava Chobei com a banca de jogo montada novamente para ganhar os salários de todos eles.
Chobei Banzuiin tornou-se um dos personagens prediletos dos contos populares japoneses. Sua figura, esperta,
maliciosa e manhosa, aparece no teatro, em obras literárias e até mesmo em desenhos animados e histórias em quadrinhos. Os bandidos yakuza, ao alegarem seus vínculos
com Chobei, não ludibriam totalmente o público acerca da
história de suas origens. De fato os especialistas no assunto
afirmam que uma das raízes prováveis dos yakuza são os
grupos de jogadores ambulantes denominados bakuto. A
segunda possibilidade — que não exclui a anterior — é
que as modernas quadrilhas derivam dos grupos de vendedores em barracas — barraqueiros — chamados tekiya.
O fato é que mesmo nos dias de hoje, sindicatos yakuza
controlam os jogos de azar, o comércio em barracas, empresas de entretenimento e também as lojas de jogos eletrônicos. Finalmente, afirma-se que a outra grande fonte
de recrutamento do yakuza eram os burakumin, integrantes dos grupos sociais considerados pelos demais japoneses como “não-humanos”. Estes burakumin viviam em aldeias próprias e dedicavam-se a trabalhos rejeitados pelos
demais japoneses, como, por exemplo, o de curtidores de
couro de animais. Um modo de escapar da condição de
burakumin era o de renunciar à comunidade original, abandonar a aldeia e tornar-se um ambulante — um bakuto ou
mesmo um tekiya.
O
entendimento da hierarquia que governa as quadrilhas yakuza nos remete necessariamente a conceitos
do Japão medieval. Para tanto, solicitamos a indulgência do
leitor quanto ao fato de passarmos por cima do eternamente
renovado debate teórico acerca da conveniência ou não de
aplicarmos um conceito ocidental como “feudalismo” para
a experiência histórica não-ocidental japonesa. Partilhamos
assumidamente a posição de que isso é possível e optamos
por poupar a vista do leitor de uma longa argumentação.
Não devemos nos admirar também com o fato de
conceitos identificados como arcaicos ainda manifestarem-se fortemente no Japão moderno. Uma das peculiaridades da transição nipônica para o capitalismo foi a
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intensa preocupação por parte da liderança política em
preservar o caráter cultural da nação ao máximo. Isto
posto, determinados conceitos importantes vigentes nas
relações feudais japonesas mantiveram-se intocados dentro do pacote de modernização.
No caso dos yakuza, devemos
dar atenção a dois pares de conceitos que constituem a vértebra
interna de organização hierárquica das quadrilhas. O primeiro par
é integrado pela relação oyabunkobun. O segundo, é formado
pelos conceitos de giri e ninjo. No
par inicial, oyabun é o termo normalmente usado para designar o
chefe do bando. Trata-se de uma espécie de “pai” ou “suserano” de todos os integrantes da quadrilha. Os membros do
bando, no momento em que são admitidos, participam de
um complexo ritual em que, trajando quimonos negros, bebem sakê com o oyabun à sombra de um altar Shintô, a
tradicional religião japonesa. Diante de testemunhas sua
aceitação depende do juramento de fidelidade ao oyabun e
as regras da quadrilha. Estabelece-se uma relação de estreito vínculo do kobun para com seu oyabun. A obediência
prestada ao oyabun deve ser absoluta, sem reservas.
Quanto ao segundo par, giri-ninjo, os especialistas são
unânimes em afirmar que uma tradução correta que revele
o verdadeiro sentido desses conceitos é impossível de ser
obtida. O mais próximo que podemos chegar é pensar em
giri como o senso do dever, uma obrigação, e ninjo, como
um sentimento de lealdade, uma emoção oriunda da entrega absoluta a tal lealdade. O elo entre os kobun e seus oyabun é essencialmente firmado na crença do giri-ninjo.
As faltas do primeiro (o kobun) podem ser punidas até
com a morte. Uma outra maneira de castigo pode tomar a
forma de sua exclusão definitiva da quadrilha. Nesse caso,
o oyabun envia uma correspondência aos seus pares, chefes de outras quadrilhas, alertando que o sujeito em questão foi afastado e solicitando educadamente que ninguém
o acolha.
Finalmente, existe o famoso ritual de decepar uma parte
do dedo mínimo. Um kobun desejoso de demonstrar sua
vergonha em relação a alguma falha, decepa um pedaço
do dedo mínimo e o oferece enrolado em um tecido de
seda ao oyabun. De acordo com os yakusa, este ritual era
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INTELIGÊNCIA
praticado pelos velhos samurais e representava uma grande
demonstração de sacrifício. Sem um pedaço do dedo mínimo da mão direita, o samurai jamais poderia empunhar a
espada corretamente.
A verdade é que existe uma coleção de histórias sobre as
quadrilhas yakuza que tenta lhes emprestar uma aura mística que propositadamente alimenta a imaginação popular. O
mito de tentarem reproduzir os códigos de honra dos samurais, o apreço ao giri-ninjo, o culto à imagem sagrada do
imperador, o ritual do corte voluntário do dedo e o hábito de
cobrirem todo o corpo com elaboradas — e dolorosas —
tatuagens seriam alguns deles. Porém, o que não pode ser
deixado de lado em meio a toda essa simbologia, é que os
yakuza são bandidos e muito perigosos. Enumerar uma lista
das atividades criminosas das quadrilhas dá uma idéia de
com quem estamos lidando.
Os principais ramos de atuação das quadrilhas yakuza
são os seguintes:
ƒ Tráfico de drogas – inaugurado durante a Segunda Guer-
ra Mundial com o início do uso de anfetaminas no Japão.
Hoje em dia, as gangues da yakuza mantêm laços com centros produtores de heroína e cocaína em Burma, Tailândia,
Vietnã e Coréia do Norte.
ƒ Prostituição – não só dentro do Japão, mas também na
Austrália, Havaí, Vancouver e São Francisco. Junto às quadrilhas russas, os yakuza mantêm entusiasmados convênios
em que os primeiros atuam como recrutadores de mulheres
eslavas jovens, loiras e de olhos claros para satisfazerem os
apetites de empresários japoneses levados por agências de
turismo controladas pela yakuza para noitadas animadas em
Vladvostok. As Tríades em Hong Kong e Xangai, por exemplo, combinados com os russos e a yakuza, promovem idêntico negócio.
ƒ Comércio de pornografia
ƒ Jogos de azar
ƒ Controle de lojas de jogos eletrônicos
ƒ Agiotagem
ƒ Extorsão – é uma das ações típicas de quadrilhas yakuza,
especialmente no setor empresarial-corporativo. Nesse ramo,
atuam as quadrilhas Keizai yakuza — gangues econômicas
que efetuam as práticas de sokaiya. De modo geral, as quadrilhas ameaçam as diretorias das empresas de invadir as
reuniões de acionistas e transtornar todo o processo de deliberação. Podem ainda ameaçar os executivos ou diretores
das grandes corporações com campanhas difamatórias contra
a empresa ou visando denegrir a imagem dos dirigentes —
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articulando meras acusações caluniosas, ou mesmo revelando fatos verdadeiros obscuros e inconfessáveis da vida
dos executivos obtidos mediante minuciosa investigação.
ƒ Intimidação – igualmente uma importante atividade das
quadrilhas. Digna de nota é a ação das jiageya — quadrilhas que atuam especialmente na área de venda de imóveis. Em síntese, as gangues obrigam um determinado proprietário a vender seu terreno. O cidadão sofre todos os
tipos de intimidação até que, finalmente, resolve alienar-se
de seu bem. Acredita-se que, em larga medida, quadrilhas
yakuza estavam por trás da onda de valorização exagerada
de imóveis, uma das causas da grande crise econômica japonesa ao longo da década de 90.
ƒ Contrabando – incluindo o tráfico de armas e munições.
D
evemos ainda destacar a atuação dos bandos yakuza
na atividade política. As quadrilhas sempre se manifestam como organizações imbuídas de um ardente patriotismo, zelosas para com as tradições japonesas e adeptas do
culto à divindade do imperador. Em outras palavras, os yakuza facilmente identificam-se com posições políticas de extrema-direita e anticomunistas. Durante a ocupação aliada após
a Segunda Guerra Mundial, e com o subseqüente avanço
da Guerra Fria, logo as autoridades de ocupação norteamericanas, setores do empresariado e também da agremiação política que viria a se tornar dominante no Japão, o
PDL (Partido Democrático Liberal) não tardaram a utilizar os
talentos dos yakuza. As gangues foram acionadas para práticas patrióticas tais como, a de perseguir socialistas e comunistas, atacar sindicalistas e organizar movimentos de furagreves. Espancamentos, intimidações e até mesmo assassinatos eram acompanhados de longe por uma polícia impassível a todas as ilegalidades e abusos.
Um dos mais rumorosos casos envolvendo a yakuza, lideranças empresariais e altos personagens do governo japonês, veio a lume entre 1974 e 1976, quando uma investigação empreendida pelo Congresso dos Estados Unidos
descobriu que a empresa de aviação Lockheed vencia concorrências para a venda de aeronaves no Japão, distribuindo propinas para políticos do PDL, dentre eles, o primeiroministro Kakuei Tanaka. O caso alcançou proporções inquietantes quando se descobriu que o encarregado da distribuição dos gordos subornos era nada mais nada menos do
que Yoshio Kodama. Este personagem era um velho colaborador do governo militarista japonês durante a guerra. Prestou bons serviços na organização da exploração dos recur-
INTELIGÊNCIA
sos da China e, invariavelmente, obtinha ajuda das gangues
da yakuza para praticar ações escusas — especialmente assassinatos e sabotagens — na China, Mandchúria e Coréia.
Terminada a guerra, foi preso pelas autoridades norte-americanas e classificado como “prisioneiro político classe A”.
Em 1949, com a elevação da temperatura da Guerra Fria,
foi solto, e uma vez “livre como um pássaro”, resolveu reativar seus contatos com as quadrilhas, desta vez para servir
às finalidades das forças de ocupação e do PDL. Kodama
era uma espécie de lorde de todos os oyabuns do Japão.
Embora não fosse ligado diretamente a nenhuma quadrilha,
dispunha quando desejasse do auxílio de todas, especialmente a mais poderosa delas, a Yamaguchi-gumi, radicada
principalmente na cidade de Kobe e que, segundo as autoridades, possuía mais de 60 mil integrantes.
A interação entre o PDL e as quadrilhas da yakuza sempre foi um fator que dificultou a implementação de processos de investigação das atividades criminosas das gangues.
Ao mesmo tempo, grupos yakuza controlam inúmeras atividades legais, tais como empresas de construção civil, cassinos, boates e restaurantes. Grupos yakuza estão presentes
em sindicatos trabalhistas e quadrilhas de origem coreanas
radicadas no Japão que dominam o sistema de recrutamento de mão-de-obra desta nacionalidade.
Para policiais de outros países, era muito intrigante ir ao
Japão e constatar, além de uma
embaraçosa relutância da polícia japonesa em prestar informações, que as sedes das quadrilhas são devidamente assinaladas com vistosos estandartes
onde se pode ler o nome da
gangue. Seus membros, regularmente, ostentam broches de
lapela com o símbolo do bando. Somente em 1991, a Dieta — Parlamento do Japão —
aprovou uma lei estabelecendo que qualquer organização
seria considerada criminosa, caso contivesse nos seus quadros mais de 4% de seus membros incluídos na categoria de
boryokudan — isto é, pessoas violentas possuidoras de registro na polícia. A lei boryokudan passaria a ter efeito em
março de 1992. De um modo geral, os analistas entendem
a lei boryokudan um passo tímido em face aos perigos que
as organizações yakuza representam.
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As quadrilhas protestaram vivamente contra a lei. Esposas e filhos de bandidos yakuza promoveram manifestações
públicas de protesto. Já a gangue Yamagushi-gumi providenciou a publicação de um livro intitulado “Como burlar a
lei”, fartamente distribuído entre seus membros e com exemplares ricamente encadernados enviados para os oyabun
das quadrilhas coirmãs.
Poderíamos preencher páginas e páginas, escrever livros inteiros — que na verdade já foram escritos em grande
número — discutindo a estrutura, os crimes e as ramificações das quadrilhas yakuza do Japão moderno. Deixemos,
porém, a yakuza de lado e falemos da organização e das
ações das Tríades chinesas.
O céu, a terra e o homem
No ano de 1998, o governo da República da Ucrânia
anunciou que venderia um porta-aviões inacabado para uma
“empresa privada de reputação idônea”. A dita firma denominava-se “Agência Turística e Diversões Chong Lot Limitada”. Tratava-se de uma empresa cuja sede estava situada
na Cidade do Nome de Deus de Macau, naquela data, ainda sob administração portuguesa. O preço era de ocasião:
20 milhões de dólares e o porta-aviões, cujos projetistas
imaginaram que um dia seria um dos orgulhos da Frota
Soviética do Mar Negro, deslocava 67.000 toneladas e tinha 306 metros de cumprimento. Milhares de olhos arregalaram-se de espanto diante do inusitado daquela compra.
Que diabos faria a “Agência Turística e Diversões Chong
Lot” com tão majestosa belonave? Mesmo aceitando que
sua área de pouso e decolagens poderia se transformar em
uma formidável pista de dança, e seus hangares internos
podiam ser convertidos em várias boates ostentando diferenciados ambientes, 20 milhões de dólares era muito dinheiro. Além do mais, seria impossível atracar tal Leviatã ao
largo do litoral de Macau. As águas não tinham profundidade suficiente.
Algumas investigações deram conta que a Agência Turística e Diversões Chong Lot era uma empresa de entretenimento que pertencia a uma Tríade de Macau. O testa-deferro da operação era Chen Kai-kit, personagem tradicionalmente conectado com as quadrilhas de Macau e HongKong, que mantinha estreitas relações com a família do velho líder da China Popular, Deng Xiaoping, e que já fora
recebido para jantar pelos Clintons na Casa Branca. Como
estava fora de cogitação imaginar que as Tríades de Macau
esperassem incrementar seu arsenal com um porta-aviões,
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INTELIGÊNCIA
os investigadores chegaram a conclusão unânime que por
trás da ação da gangue estava o anseio do governo da República Popular da China em obter um porta-aviões soviético último tipo sem ter de aparecer abertamente na transação e prestar muitas explicações.
Os vínculos secretos entre poderes governamentais e a
ação das Tríades podem ser percebidos como um padrão
na história da China. A velhíssima sociedade chinesa cultiva
antigo hábito de constituir sociedades secretas. Tais grupos
podem se reunir em torno de diferentes finalidades: ao longo da história tivemos sociedades secretas dedicadas à religião, à política, organizando minorias étnicas do país e também sociedades secretas criminosas, denominadas “Tríades”.
As crenças populares sustentam que as Tríades são muito
antigas, e que as quadrilhas que estruturaram o crime organizado moderno datam do século XVII. Seu surgimento estaria articulado com o desejo de resistência da etnia majoritária han contra a opressão da dinastia estrangeira Manchú.
Contudo, as primeiras notícias acerca de grandes quadrilhas organizadas datam de um processo de 1767, ano em
que as autoridades imperiais prenderam e interrogaram
bandidos que afirmavam pertencer a uma organização secreta denominada Tiandihui.
Já o termo “Triade” aparece
pela primeira vez na obra do
Doutor William Milne, um inglês
residente em Hong-Kong, em
1821. A palavra tem relação
com o caráter sagrado do número 3, que representa os elementos fundamentais do universo, o céu, a terra e o homem.
Sabe-se que as quadrilhas se
estruturam a partir de uma elaborada hierarquia interna. Não é possível afirmar que as
denominações dos postos-chave sejam os mesmos para todas as gangues, mas algumas delas se organizam do seguinte modo: o chefe é conhecido como Shan Zhu, o Mestre
da Montanha; é secundado pelo Fu Shan Zhu, o Deputado
do Mestre. Abaixo deles estão o Primeiro Irmão Mais Velho
e o Segundo Irmão Mais Velho. Completam a hierarquia do
alto escalão elementos denominados o Mestre do Incenso e
o Vanguardista. Abaixo deles existem os “Sandálias de Palha”, encarregados do ramo de comunicações, o Mastro
Vermelho, responsável pelo setor de segurança, o Leque de
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Papel Branco, que lida com as funções financeiras e os grupos de base, que seriam os “soldados”. A aceitação de um
novo membro acontece durante um elaborado ritual em que
o noviço se compromete com os 36 juramentos da Tríade.
De acordo com documento emitido pelo IBGE, contendo
uma análise do crime organizado no mundo, as principais
Tríades em ação hoje em dia são:
ƒ A Sun Yee On de Hong-Kong, com aproximadamente
64 mil membros
ƒ A 14K de Hong-Kong, com 30 mil integrantes
ƒ A Federação Wo de Hong-Kong, com 28 mil bandidos
ƒ A United Bamboo de Taiwan, com 20 mil integrantes
ƒ O Bando dos 4 Mares de Taiwan, com cerca de 5 mil
membros
ƒ O Grande Círculo da China continental, cujo número de
integrantes é ignorado.
As atividades criminosas das Tríades são vastas e se espalham por boa parte do mundo. Praticam o tráfico de
drogas, extorsão, controlam a prostituição, recrutamento e
imigração ilegal de trabalhadores, jogo, lavagem de dinheiro e agiotagem. Na China, operam em Hong-Kong,
Macau, Taiwan e nas áreas econômicas especiais do sul do
país. No resto do mundo, operam na Indonésia, Filipinas,
Austrália, Canadá, América do Sul, Grã-Bretanha, França
e nas grandes cidades dos Estados Unidos. Hoje em dia
mantêm estreitas relações com os yakuza e as quadrilhas
da Rússia. As autoridades suspeitam que vários desses grupos operam em redes permanentes, estabelecendo uma
verdadeira divisão racional do trabalho criminoso em termos planetários. Não é difícil de acreditar que os bandos
chineses, com suas operações instaladas em tantas áreas
diferentes do mundo, tenham assumido a vanguarda na
organização de tais redes.
Medo e Segurança em uma
Rússia Quase Anárquica
“Na Rússia, o medo substitui, isto é, paralisa o pensamento. Este sentimento quando reina só, apenas pode produzir aparências de civilização. Onde a liberdade falta, faltam a alma e a verdade.”
(Marquês de Custine in A Rússia em 1839)
Em novembro de 1989, com a queda do Muro de Berlim marcou-se um período de aceleradas mudanças nos
países comunistas. A Rússia, parte principal da União Sovié-
INTELIGÊNCIA
tica e ponto nevrálgico desses acontecimentos, foi obrigada
a lidar com mudanças que afetaram todas as esferas de
convivência humana. Com a distensão acelerada, os russos
viram ruir o imponente aparato estatal e a sociedade civil se
defrontou com o sumiço do Estado onipresente. O termo
sumiço aqui pode parecer exagerado, mas dada a magnitude dessa mudança não nos parece fora de contexto.
Dentre as muitas mudanças
que ocorreram nesse contexto, a
que mais nos importa nesse momento é o fortalecimento do crime organizado como um agente
socialmente relevante. A impressão que o Ocidente tem é que
com a queda do Estado soviético
e as medidas “liberalizantes” de
Boris Yeltsin nasceu, quase que
por geração espontânea, uma máfia russa que ocupou o
vácuo estatal. Além de serem os novos vilões dos filmes de
James Bond, os mafiosos russos se espalharam pelo mundo
e tornaram-se notórios pelas incríveis fortunas rapidamente
amealhadas.
As razões do surgimento dessa máfia
Enganam-se aqueles que atribuem o surgimento do crime organizado ao colapso soviético. Os Vor-v-zakone, ou
simplesmente Vory, são uma das gangues mais antigas da
Rússia. Criminosos que se identificam por um código de ética semelhante à Omertá e têm seu início rastreado até a
década de 1930, esse forte grupo é caracterizado por uma
atitude de total rebeldia contra o governo (primeiro o soviético e depois o republicano/democrático) e por ser de alta
capacidade adaptativa. Os Vory guardam algumas semelhanças com o Comando Vermelho no Rio de Janeiro pela
sua forte presença nos presídios e por manipularem o sistema carcerário habilmente, estabelecendo redes de informação e até atos administrativos intramuros. Outra semelhança significativa entre ambos os grupos é o maciço recrutamento de jovens para preencher suas fileiras dada a
alta rotatividade dos membros de suas estruturas. Os Vory
são também extremamente religiosos e idealizam figuras
femininas como a matriarca e santas ortodoxas, apesar de
não serem ligados a nenhum grupo religioso nem terem um
histórico de respeitar os direitos femininos. Podemos ver os
Vory como um caso emblemático de uma estrutura que já
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existia, mas encontrou condições extremamente propícias
ao seu crescimento na década de 1990.
A partir desse período o custo de manutenção do aparato repressivo estatal havia se tornado impraticável, o que fez
com que o governo começasse a enxugar a Polícia, o Exército e os serviços de inteligência. Em 1991, a KGB teve seus
quadros reduzidos de 36.000 para 2.800 funcionários enquanto o Exército dispensou 25.000 pessoas por razões
políticas, anunciou-se à época que cerca de 40.000 soldados seriam dispensados por ano. Como conseqüência desse
enxugamento, houve uma grande oferta de mão-de-obra
treinada na violência. Junte-se a isso vários ex-atletas (halterofilistas, boxeadores e judocas) que perderam seu financiamento estatal e não desertaram, tem-se mais um contingente bastante razoável de músculos.
O fácil acesso a armas de
fogo foi mais um componente
dessa complexa equação. Lembre-se de que, historicamente,
nunca foi difícil comprar armamentos na Rússia, tanto pela via
legal como pela ilegal. Além da
legislação pouco eficiente sobre
o assunto, problemas econômicos levaram boa parte dos proprietários a pôr suas armas à
venda no mercado negro. Com
a debilitação do Exército, roubos a depósitos militares foram
se tornando cada vez mais freqüentes. Some-se a tudo isso
a considerável produção de manufaturas “caseiras”, que
também ajudaram a abastecer esse voraz mercado, e obtém-se uma combinação explosiva.
O fim dos fortíssimos organismos de coerção do Estado
soviético fez com que houvesse um grande mercado na Rússia
capitalista para a venda de segurança. Existem outras particularidades da sociedade soviética que são grandes estímulos à ilegalidade e que são fatores de estímulo ao surgimento de um submundo do crime que se locupleta nas ausências
do governo.
Os erros na transição para
uma economia de mercado
Tendo em vista o processo de abertura da economia russa, especialmente analisando as ações do governo, o que se
percebe é que os dirigentes políticos julgavam suficiente
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INTELIGÊNCIA
empreender processos de privatização, como uma forma
de transição para uma economia de mercado. Décadas de
planificação, ausência de competição e forte presença estatal não podem ser revertidas tão simplesmente. Medidas
estruturais, que seriam de extrema relevância, não foram
tomadas o que fez da Rússia uma combinação bizarra de
Estado fraco e forte ao mesmo tempo.
Os direitos de propriedade são um aspecto fundamental
de qualquer sociedade. Saber que sua propriedade será
protegida é um fator de segurança crucial para que se possa despender energia em outras coisas que não a proteção
dos bens. Em qualquer Estado forte existe extrema clareza
em relação ao que pertence a quem, mesmo que pertença
ao Estado. O governo russo é fraco por demonstrar total
omissão nesse sentido. A Justiça até mostra sinais de eficiência nos trâmites processuais, mas no momento que se precisa pôr em prática as decisões, o processo é tão pouco confiável e letárgico que se criou dentro da Federação Russa
um ethos paralelo. Por que razão se deve recorrer ao governo quando grupos privados podem resolver os seus problemas de forma mais eficiente e com um custo menor? O
crescimento dos grupos privados de proteção é inversamente proporcional à presença do aparelho coercitivo do Estado. Não se trata aqui de defendermos um Estado no qual a
segurança se sobrepõe às outras funções do Estado. Porém,
permitir a proliferação de grupos privados na escala que a
Rússia permitiu é extremamente perigoso por uma simples
razão: nem sempre eles protegem atividades lícitas. A definição de máfia, por exemplo, compreende a substituição do
Estado na venda de serviços de proteção tanto para atividades legalizadas quanto para as atividades marginais.
P
aradoxalmente, o Estado russo é excessivamente forte. Forte nas taxas que impõe aos seus cidadãos, desestimulando por completo qualquer atividade produtiva; nas
suas relações pouco definidas com as concessões de bens
públicos e na relação extremamente promíscua entre poder
público e grandes empresas. Um exemplo claro é o caso do
atual prefeito de Moscou que conseguiu fazer de sua esposa
uma das maiores milionárias da capital russa graças aos
generosos contratos entre a prefeitura e a empreiteira que
ela possui. O grau de descrença em relação aos políticos é
tão grande que Iuri Lusko se mantém na prefeitura há 12
anos graças a uma política no melhor estilo “rouba mas faz”.
A revista Veja nos dá uma amostra de como funciona a relação poder público/iniciativa privada:
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“...Luskov administra a cidade como se fosse sua propriedade particular. Graças à herança do comunismo, a prefeitura é dona da maior parte da rede hoteleira e tem sociedade
em lojas e restaurantes, inclusive 20% das lanchonetes
McDonald’s. Também é proprietária dos principais imóveis
da cidade.”1
Realmente é impossível um
Estado fraco ter tantas participações assim na iniciativa privada.
Se fizermos uma análise dos
maiores milionários russos na
atualidade quase todos estão de
alguma forma associados ao governo russo e as acusações de
corrupção são freqüentes. O presidente Vladimir Putin já foi acusado de usar a máquina estatal
para favorecer seus aliados e perseguir seus desafetos. Dentro de certos termos esse quadro ainda lembra o do PCUS
dada à quase necessidade de altas de conexões burocráticas para se empreender algum negócio vantajoso. Curioso
é o fato dessa dinâmica não se aplicar apenas às grandes
esferas, tais como concessões de petróleo, mineração e telecomunicações. Em seu livro “The Russian Mafia”, o acadêmico Federico Varese entrevistou vários moradores da
cidade de Perm e nos fornece um detalhado estudo das diferentes formas de atuação do crime organizado. Perm serve como uma espécie de microcosmo do crime organizado
dada a sua localização portuária, a alta taxa de ex-presidiários residentes2. Donos de pequenos estabelecimentos reportaram a importância de qualquer homem de negócios
ter uma “Krysha”, proteção. Desde microempresários até
magnatas multimilionários, todos precisam de algum tipo de
proteção extra. É de crucial importância acentuar que essa
proteção extra não se faz forçosa por uma questão de importância do serviço. Em um número significativo dos casos
ela é fruto da coerção do próprio protetor, seja ela velada
ou explicitamente violenta.
Estrutura da Segurança Privada
Com as medidas de redução da força policial, o governo
russo permitiu que empresas constituíssem forças privadas
que acabaram por se tornar pequenos exércitos armados. A
pessoa que estivesse em busca de proteção na Rússia poderia recorrer aos seguintes expedientes:
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INTELIGÊNCIA
PROTEÇÃO ESTATAL VENDIDA PRIVADAMENTE
Em face dos baixíssimos salários que estava conseguindo
pagar e em vias de assistir a uma debandada de seus funcionários de segurança, o governo russo autorizou seus agentes a oferecerem segurança privada em adição aos seus
cargos públicos. Com isso policiais passaram a trabalhar como
guarda-costas em suas horas extras e a Polícia começou a
se tornar seletiva na prestação de um serviço que deveria
ser público e uniformemente prestado. Esse mecanismo se
revelou extremamente perverso uma vez que deixou vulneráveis à ação criminosa justamente aqueles que possuíam
menos meios de arcar com proteção privada.
FIRMAS DE SEGURANÇA PRIVADA
Com a grande demanda por segurança privada, a Rússia viu florescer um grande mercado. Estima-se que em
1999 existiam 6.775 firmas de segurança oficiais que se
somavam a outras 4.612 que estavam ligadas a somente
um cliente. Estimativas conservadoras apontavam 196.266
pessoas trabalhando como agentes de segurança licenciados, mas as estimativas da Duma atingiam a cifra de
800.000. Isso sem contar as inúmeras empresas clandestinas que abundaram nessa área. Além da grande demanda por serviços, as leis russas foram dando mais poder a
essas empresas, seja abrindo mais espaço para a atuação
delas, seja permitindo a utilização de armas mais possantes. Nesse tipo de firma, os serviços normalmente se situam além da legalidade, o que acaba por tornar a distinção
das firmas entre legais e ilegais algo um tanto quanto complexo de ser feito.
INTERNALIZAÇÃO DA PROTEÇÃO
O processo de internalização da proteção foi uma conseqüência direta do maior poder dado às firmas particulares. O que aconteceu nas grandes empresas, como as
multinacionais e as gigantes petrolíferas, foi que se tornou mais vantajoso criar uma espécie de milícia própria
ao invés de ter que recorrer a serviços terceirizados e
menos confiáveis.
BANDITSKAYA KRYSHA
Por Banditskaya Krysha podemos compreender todo o
crime organizado. Isto é, organizações criminosas que têm
como objetivo atingir uma situação de preponderância no
submundo; instituindo uma forma de atuação monopolística
na venda de uma commodity. No caso russo, a commodity
I N S I G H T
fundamental é segurança. Quando a situação econômica
direciona o mercado para a informalidade, as pessoas que
compõem esse mercado estão saindo da alçada de controle
do governo e entrando, especialmente no caso Russo, em
um ambiente desregulamentado. Na clandestinidade, elas
se tornam mais passíveis de chantagem e de coerção. Caso
não existissem formas de proteção, configurar-se-ia o que
os americanos chamam de cenário dog eat dog, aquele
ambiente onde não existem regras e prevalece a lei do mais
forte. Por mais estranho que isso possa soar, o crime organizado possui uma função social ao evitar que isso ocorra de
forma plena.
A Banditskaya como
Estado Paralelo
Temos que tomar muito cuidado ao caracterizar os criminosos
russos. Há que se fugir dos estereótipos que são ótimos para criar
imagens, mas fogem por completo da verdade. Nenhum poder
pode atingir o status que o crime
organizado atingiu se não for de
alguma forma considerado legítimo. Os mafiosos na Rússia
atual não são piratas predadores irracionais e beberrões.
Ou melhor, até podem ser; mas exercem um papel duplo. A
exemplo do que acontece nos morros cariocas, o relacionamento da bandidagem com a comunidade é permeado por
investimentos e inclusive relações de parceria usando capital do crime organizado. Os gangsters russos, em alguns
casos, investem em caridade, emprestam dinheiro a juros
mais baixos que os bancos e com menos burocracia, auxiliam comerciantes a praticarem evasão fiscal e ofertam serviços a preços mais vantajosos que os de mercado. Em troca, recebem parte dos lucros ou uma cota mensal fixa. Eles
podem agir também como uma espécie de Poder Judiciário
paralelo, atuando na resolução de conflitos comerciais e
contratuais. Efetivamente, o único mecanismo eficiente de
disputas entre homens de negócio é a Strelka, que é basicamente cada um acionando sua Krysha e deixando que elas
resolvam o assunto. Apesar de não ser composto de relações exclusivamente capitalistas, este é um mercado tão atraente que já se estimou o número de mafiosos em 3 milhões
de pessoas, divididas em aproximadamente 5.700 gangues.
Com tantos atores competindo, podemos imaginar a ferocidade com que é praticada a concorrência.
INTELIGÊNCIA
Banditismo na Fronteira – a Sibéria
e Vladvostok e a conexão das quadrilhas
russas com as Tríades e a Yakuza
Uma das mais importantes providências do governo soviético foi promover o povoamento e o aproveitamento dos
recursos naturais da Sibéria. Milhões de famílias de todos
os cantos do império soviético lá se instalaram atraídas por
estímulos governamentais. Com a queda da URSS e o enfraquecimento político e financeiro do Estado, os estímulos
desapareceram e a ordem também. Ao longo da década
de 90, as regiões da Sibéria e de Vladvostok converteramse em “Terras de Pioneiros” muito similares àquelas descritas na literatura e no cinema norte-americanos sobre
westerns. O colapso da autoridade soviética significou a
desarticulação do sistema de distribuição e abastecimento
de gêneros, o desemprego para centenas de milhares de
pessoas e o enfraquecimento do aparato de segurança. A
ausência da “lei e da ordem” conformou o terreno fértil,
não só para a prosperidade das gangues organizadas russas, como também para que estas tivessem a oportunidade
de, a partir de bases fortemente estabelecidas na Sibéria e
em Vladvostok, estabelecer estreitas relações com os demais grupos criminosos do Extremo Oriente, notadamente
as Tríades e os yakuza.
Neste sentido, a Grande Fronteira Russa tornou-se o
território de ação e abrigo de muitas quadrilhas. A população comum teve de se adaptar a tal universo. Daí a cena
das avozinhas russas (babushkas) com seus lenços regulamentares cobrindo as cabeças vendendo canabis para obter dinheiro para a compra de batatas e açúcar para suas
famílias.
A Banditskaya e o Estado
Freqüentemente quando se quer falar de crime organizado, especialmente quando a organização criminosa em
questão é extremamente poderosa, utiliza-se a expressão
“Estado paralelo”. Tal expressão transmite a idéia de que
ambas estruturas (Estado e organização criminosa) agem
em campos separados, sem, no entanto, se cruzarem. No
caso russo, nada poderia ser mais ilusório. Na verdade as
trajetórias do Estado russo e do crime organizado se cruzam
em tantos pontos que se formos citar pontualmente cada
escândalo publicado nos últimos 14 anos poderíamos escrever vários volumes. O fato é que se tornou comum uma
relação de reciprocidade entre ambas as organizações em
diversos níveis. Especificamente na região de Perm, objeto
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I N S I G H T
de estudo do livro de Federico Varese intitulado “The Russian Máfia”, líderes mafiosos e políticos são constantemente
vistos em festas e cerimônias públicas juntos.
N
o nível nacional, um político em especial é notório
por suas relações abertas com a ilegalidade. Vladimir
Zhirinovsky, líder do Partido Liberal Democrata da Rússia
(PLDR), é o que tem adotado mais abertamente uma atitude
de aproximação com o mundo do crime. Ele tem se notabilizado por atrair figuras sombrias para seu partido e declarar publicamente que uma aproximação com as estruturas
criminosas poderia ser extremamente benéfica para o país.
Os quadros do PLDR estão recheados de membros acusados de roubo, extorsão e evasão fiscal; além de inúmeros
ex-presidiários. Porém, no nível nacional o caso mais preocupante de indícios de ação do crime organizado foi o do
general nacionalista Alexander Lebed. Concorrente de Bóris
Yeltsin quando este tentava sua reeleição, Lebed acabou se
tornando chefe do Conselho de Segurança graças a uma
coligação entre os partidos de ambos. Uma de suas primeiras
medidas foi anunciar vigorosas medidas anticrime. Lebed propunha um aumento de 18.600 policiais, 1.000 novos fiscais
de tributos, 650 novos juízes, a construção de quatro novos
presídios e a criação de um programa de proteção à testemunha. Poucas semanas, depois duas bombas explodiram em
Moscou em dias seguidos. Menos de um mês após o atentado, Lebed foi demitido. Coincidência ou não, logo em seguida as medidas que ele havia proposto foram abandonadas.
Ao deixar a política nacional, Lebed ainda viria a se eleger
governador de Krasnöyarsk, na Sibéria, mas, após reiteradamente acusar os empresários locais de corrupção, faleceu
em um trágico acidente de helicóptero em 2002. Devemos,
entretanto, fugir de uma generalização que se refira a toda a
elite política russa como corrupta e ressaltar que apenas fragmentos da elite política estão associados a algumas gangues.
Na verdade, segundo aponta Varese:
“Um pacto entre fragmentos da elite política e organizações criminais estabelecidas pode ser do interesse de ambos. Este pacto garantiria aos líderes políticos um grau de
estabilidade no submundo e removeria barreiras para a penetração dos criminosos na sociedade. Também poderiam
ser garantidos aos políticos fáceis e rápidos resultados na
luta contra o crime. Algumas gangues seriam perseguidas
separadamente, deixando a maior parte das gangues, as
“certificadas”, em paz.”
114 PTB
INTELIGÊNCIA
Não se pode dizer que o crime tem um papel importante ao ponto de ditar os rumos político-econômicos do
país. No entanto, negligenciar a importância de tal elemento da sociedade é impossível dado o impacto que ele é
capaz de causar seja em termos econômicos, sociais ou
até mesmo políticos.
Finalmente, devemos nos perguntar algo que é crucial:
a máfia russa é um mal para a sociedade daquele país?
Obviamente que organizações criminosas são danosas a
qualquer ordenamento que pretenda sustentar um Estado
de direito democrático. Entretanto, o que vemos é a criminalidade exercendo papéis claramente estatais como provendo segurança e resolvendo conflitos; além de investir em
comunidades mais pobres através de obras assistenciais. O
grande problema, além das gangues que agem de forma
realmente predatória, é que no mundo do crime o grande
instrumento de relacionamento é a violência. Isso cria um
ambiente de incertezas e incoerências. Em adição a isso,
podemos assinalar que não existem direitos universais. No
submundo do crime, as relações são primariamente pautadas por interesse, o que relativiza o valor das vidas humanas, passando estas a serem o “preço que se tem que pagar” para se atingir os objetivos perseguidos. Por mais injustos que possam ser, ordenamentos jurídicos democráticos
possuem uma carga de valor moral que é superior ao “pragmatismo” das gangues.
Crime e redes
criminosas
É indubitável que a organização das quadrilhas que operam tendo como base os países
do Extremo Oriente é espantosa. Suas hierarquias internas,
processos de tomada de decisão
e a capacidade de atuar simultaneamente em diversas áreas
são dignos de nota. No mesmo
plano, outro dado importante a
enfatizar é a sua longevidade. Embora não sejam tão antigas quanto propalam, tanto na China como na Rússia e no
Japão, existem quadrilhas que atuam ininterruptamente desde
a década de 30 do século passado. Entre elas, há alguns
padrões de atuação comuns. Sua existência depende ou da
fraqueza do aparato estatal de proteção da sociedade ou da
capacidade de interagirem com as autoridades por intermé-
I N S I G H T
dio de vínculos regulares de corrupção. Os três grupos citados são capazes de esticar suas operações no panorama
internacional. Como muitas vezes operam em ramos semelhantes, podem optar pelo estabelecimento de redes de colaboração mútua, certamente uma escolha muito mais racional do que a velha guerra entre quadrilhas. Usam e abusam dos meios viabilizados pela moderna tecnologia do
mundo globalizado. Transferem capitais pela rede bancária, controlam empresas de investimentos, usam dos meios
de transporte para transferir armas, prostitutas, trabalhadores ilegais e contrabando de todas as espécies de um lado
para outro dos oceanos e continentes.
O fato é que nem mesmo toda esta sofisticação é uma
novidade para essas gangues. Sua verdadeira fonte de poder se constitui no momento em que conseguem cristalizar
suas organizações e hierarquias internas. Assim, seu relacionamento com as mudanças e humores do “mundo exterior”, passa a ser apenas um problema de adaptação ao
meio, ação que muitas vezes consiste em saber lidar com
INTELIGÊNCIA
novas situações governamentais, acolher novas possibilidades tecnológicas ou enxergar diferentes oportunidades
de negócios.
e - m a i l :
e - m a i l :
s c a l e r c i o @ l i n k . c o m . b r
p p o l i v e i r a @ i u p e r j . b r
NOTAS
1. Revista Veja, Número 22, 2 de Junho de 2004.
2. Uma lei da antiga União Soviética não permitia que os ex-presidiários voltassem a morar na sua cidade de origem, boa parte se instalava
nos locais onde cumpriu pena e Perm é pródiga pela altíssima concentração de casas de detenção.
BIBLIOGRAFIA
LINTNER, Bertil. Blood Brothers: The criminal underworld of Asia. New
York, Palgrave MacMillan, 2002.
KAPLAN, David e DUBRO, Alice. Yakuza Rio de Janeiro, Record, 1986
VARESE, Federico. The Russian Mafia. New York, Oxford University
Press, 2001.
ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 115
FOTOS: MARCELO CARNAVAL
I N S I G H T
116 PSDB
INTELIGÊNCIA
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
CLÁUDIO CORDOVIL
JORNALISTA
ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 117
O
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arguto leitor que folheia este exemplar
de Inteligência não deve estar acreditando no que seus olhos agora vêem:
“Mais um artigo sobre transgênicos? Não
agüento mais!”. Mas se o autor destas
linhas puder contar com o beneplácito
de sua paciência, ambos sairão ganhando. Poder-se-ia dizer, parafraseando o iconoclasta Nietzsche, que este é um
artigo para acabar com tudo o que já se leu na mídia nacional sobre o tema. Isto porque aqui pretendemos dissecar
este estranho fenômeno envolvido na comunicação de riscos sobre transgênicos, com base em literatura internacional: o de que quanto mais informação se recebe sobre o
tema, menos conhecimento adquirimos. A controvérsia instalada sobre os transgênicos, de fato, acaba com qualquer
aspiração utópica de ‘sociedade de informação’ e abala
conceitos caros à sociedade civil, como aqueles de ‘transparência’ e ‘fato’.
Se tiver chegado a este parágrafo por ter decidido domar
seu enfado, vai poder constatar que vamos abordar aqui tema
totalmente inédito no debate público nacional sobre a questão. E isto é surpreendente, dada a quantidade de árvores
que já foram derrubadas para que pudéssemos ler algo novo
sobre o assunto. Acreditamos que, ao se falar de transgênicos, o certo não é tratar de riscos, mas sim de incerteza
científica. E isso faz toda diferença, como se verá a seguir.
118 PSDB
INTELIGÊNCIA
Além disso, a polêmica sobre transgênicos representa
um divisor de águas na relação entre público e inovação
tecnológica, fato que deveria preocupar qualquer governante interessado em trazer cobres adicionais para o país.
Conseqüência direta desta reflexão aqui proposta é pôr a
divulgação científica — o esforço de simplificação para tornar acessíveis aos não-especialistas os conhecimentos científicos —, em sua hora da verdade. Em última análise,
trata-se aqui das conflituosas relações entre saber e democracia, iluminadas pela controvérsia mundial sobre alimentos
transgênicos1.
É importante ressaltar que no Brasil, salvo engano, simplesmente inexistem pesquisas qualitativas a respeito das
percepções públicas de alimentos e plantações transgênicas. Predominam as pesquisas quantitativas, que não são o
melhor modo de se apreender o fenômeno social. Desconhecem-se assim, em larga medida, as motivações subjacentes às atitudes de consumidores e cidadãos brasileiros
com relação a esta questão. Pesquisas qualitativas são fundamentais para analisar os pontos de vista do público em
geral, ou seja, dos atores sociais não diretamente envolvidos
na controvérsia. Na ausência destas, o público geral fica
refém das idealizações, pressuposições e influências de grupos de interesse, sejam eles compostos por cientistas, empresários ou agentes governamentais.
I N S I G H T
Diante desta ausência total de pesquisas qualitativas, alguns dados merecem ser ressaltados, para começo de conversa. Pesquisa do Ibope, realizada em dezembro de 2003,
com dois mil consultados em todo o Brasil, revelou que 73%
dos brasileiros acreditavam que os transgênicos deveriam
ser proibidos “até que se esclarecesse melhor todas as dúvidas quanto a seus riscos”. Em dezembro de 2002, segundo
o mesmo Ibope, 65% dos brasileiros tinham a mesma posição. Há que se destacar que 2003 foi ano de intensos debates e muita cobertura midiática sobre transgênicos, dada toda
a discussão sobre a liberação da soja geneticamente modificada no Rio Grande do Sul. Em termos de evolução da preferência por transgênicos e não-transgênicos, a pesquisa do
Ibope de 2003 revelou que 74% dos brasileiros preferiam
os alimentos não-transgênicos. Em dezembro de 2002, este
número era de 71%. Observa-se no caso uma relação inversa entre provisão de informação e confiança. À medida
que o tempo passa e a cobertura vive seu auge, aumenta a
resistência do público a esta nova tecnologia. E não há que
se alegar uma suposta qualificação crítica da cobertura.
Estudos nacionais de longa duração sobre a cobertura
jornalística a respeito do tema, até onde sabemos, inexistem. No entanto, pesquisa realizada por Luísa Massarani et
al. (2003) revelou que, no período entre junho de 2000 e
maio de 2001, foram publicadas 751 matérias sobre En-
INTELIGÊNCIA
genharia Genética, nos cinco maiores jornais do país2.
Destas, 54,2% apresentaram uma postura favorável em
relação ao tema e 15,7%, uma posição desfavorável. As
matérias ditas ‘imparciais’, sem posicionamento explícito
(que revelassem prós e contras da tecnologia), representaram 30,1% do total. Segundo o mesmo estudo, o assunto
‘Transgênicos’ foi o terceiro mais abordado no tema ‘Engenharia Genética’. Esteve à frente de temas como ‘Clonagem’, ‘Terapia Genética’, ‘Propriedade Intelectual’, ‘Reprodução Assistida’ e ‘Manipulação Genética em Embriões’, dentre outros.
P
esquisas do gênero realizadas na Europa revelaram que nos 12 maiores países europeus avaliados “a cobertura [de biotecnologia] é bastante positiva”3. O mesmo acontece na mídia nor-
te-americana. Análise que cobriu 30 anos de
cobertura jornalística da revista Newsweek e do
New York Times (1970-1999), a respeito deste tema, concluiu que, “com relação ao tom (...) nossos achados coincidem com os de estudos anteriores: a cobertura de biotecnologia tem sido exemplificada por uma ausência surpreendente de reportagens sobre controvérsias, com o enfoque
nos benefícios sendo maior do que nos riscos potenciais”4.
ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 119
I N S I G H T
Coloca-se diante de nós agora um mistério. Se a cobertura é fortemente favorável à biotecnologia, por que as
resistências aos transgênicos aumentam no decorrer do tempo? Seria esta a demonstração cabal de uma relação conflituosa entre provisão de informação, conhecimento e confiança? A resposta é complexa e multifacetada. Envolve,
de início, uma discussão sobre o conceito de incerteza científica e seu tratamento ou omissão na cobertura nacional
sobre o tema.
Em se tratando de polêmicas contendo novas tecnologias, podemos inferir, a partir das questões ligadas a percepções públicas sobre alimentos transgênicos, que acesso irrestrito à informação e promoção de “transparência”, mandamentos sagrados nos manuais de comunicação empresarial, não são, por si sós, uma panacéia. Têm seu lugar, mas
devem possuir seu valor relativizado, como intentamos demonstrar.
Enquanto não se constituir no país inteligência social sobre as novas tecnologias em centros acadêmicos ou mesmo
na mídia, estaremos condenados a receber muita informação e pouco conhecimento sobre as mesmas, com notáveis
conseqüências na qualidade de nossa claudicante democracia. Seremos, no máximo, ilustrados, diletantes receptores
das conquistas científicas, a perorar nas mesas de bar sobre
vãos conhecimentos extraídos de pós-modernos ‘gabinetes
de curiosidades’.
SEPARANDO O JOIO DO TRIGO (TRANSGÊNICO)
Em primeiro lugar, precisamos estabelecer uma distinção entre risco, incerteza e ignorância científicos. Risco, como
definido pela teoria das probabilidades, é incerteza objetivamente probabilizável. Estaremos falando de riscos se as
incertezas relativas a acontecimentos forem definidas por
uma distribuição de probabilidades objetivas. Já a incerteza
ocorre quando falta base empírica ou teórica para atribuir
probabilidades a resultados. A ignorância científica se manifesta quando a tomada de decisões se defronta com a constante perspectiva da surpresa.
120 PSDB
INTELIGÊNCIA
U
ma vez reconhecido que a probabilidade
de certos resultados não é plenamente
quantificável, ou que certas possibilidades
podem permanecer inteiramente desconsideradas, estamos diante de uma situação
caracterizada mais pela incerteza e pela
ignorância científicas do que propriamente pelo risco.Ora,
é exatamente disto que se trata quando nos colocamos diante do exame da aceitação ou não de alimentos e plantações transgênicas. No entanto, a mídia só fala de riscos,
transformando-os em um fetiche de nosso tempo.
Na realidade, para lidar adequadamente com o tema,
até do ponto de vista da opinião pública, como se verá adiante, a imprensa deveria estar enfatizando incertezas e ignorância científicas. Esta opção da mídia e dos cientistas (em
seus debates públicos) por enquadrar o problema como referindo-se a riscos é uma das principais razões de um certo
desconforto da opinião pública com relação à qualidade da
cobertura do tema, já expressa por alguns notáveis formadores de opinião.
É o caso de Alberto Dines, por exemplo: “No início de
outubro começa o plantio, o governo precisa adotar uma
política consistente, não há como adiar. E onde entra a
mídia nesta história? Não entra. A mídia está de fora do
debate, omitiu-se. Em primeiro lugar porque o debate radicalizou-se, ganhou conotação ideológica. Em segundo lugar, porque mais uma vez desvenda-se a carência de jornalistas especializados”. Ou mesmo do jornalista Marcelo
Leite: “Está difícil ler coisas sérias sobre alimentos transgênicos, contra ou a favor, em particular na imprensa leiga.
Na véspera da tardia decisão do Executivo federal sobre a
questão, muita gente que pouco ou nada entendia do riscado se meteu a pontificar sobre biotecnologia. Foi chute e
lobby para todo o lado”5.
I N S I G H T
Agora já estamos em condições de avaliar como a mídia
e os cientistas comunicam (ou não) incerteza inerente a novas tecnologias para o público. Também veremos como o
público reage à incerteza científica, segundo algumas pesquisas. Este é um campo recente de estudos, com alguns
resultados preliminares que estimulam a reflexão. Naturalmente aqui recorremos à literatura internacional, dada a
vergonhosa escassez de estudos nacionais já mencionada.
O tema é instigante, se nos lembrarmos que o jornalismo é pautado pela noção ortodoxa de ‘fato jornalístico’, que pode ser definido, segundo Michael Schudson,
como “asserção sobre o mundo suscetível de validação
independente, à margem das influências distorcedoras das
diferentes preferências pessoais”. Nesse sentido, investigar como a incerteza subjacente às novas tecnologias é
colocada no espartilho do fato jornalístico é tarefa das
mais urgentes. Diz respeito à qualidade da democracia
que desejamos. Sabendo-se que a imagem da biotecnologia construída pelo público é baseada no que a mídia
decide veicular, pode-se imaginar as conseqüências para
a democracia da sonegação, depreciação ou atenuação
de aspectos de incerteza científica promovida por cientistas e jornalistas.
122
INTELIGÊNCIA
COMO OS JORNALISTAS TRATAM A INCERTEZA?
Algo que precisa ficar claro desde o início é a de que na
busca de certezas, o trabalho cientifico ativamente constrói
incertezas. Estas são constitutivas da démarche científica. No
entanto, estudos revelam que jornalistas tendem a retratar a
ciência como uma atividade mais sólida do que realmente
é. Este é um achado robusto em campo de investigações tão
recente.
Menos ressalvas (caveats) são encontradas em um texto
jornalístico quando comparado a um artigo científico sobre
o mesmo tema. Além disso, muitas matérias jornalísticas
carregam mais certeza sobre prognósticos de pesquisas do
que a realidade permite inferir.
Carol Weiss e Eleanor Singer6 verificaram que jornalistas tendem a tratar achados provisórios como resultados
definitivos. Além disso, versões popularizadas de artigos científicos exageram as pretensões científicas e menosprezam
as ressalvas existentes no original.
I N S I G H T
Tomemos um exemplo esclarecedor. Trata-se de uma
conclusão de pesquisadores em artigo publicado na revista
Science: “Nós preferimos a hipótese de que as diferenças
sexuais nas realizações e na atitude com relação à matemática resultam de habilidade masculina superior, que pode,
por sua vez, estar relacionada à maior habilidade matemática masculina para tarefas espaciais7. Na Newsweek
ficou assim: “Diferenças sexuais na realização e atitude
com relação à matemática resultam da superior habilidade
masculina neste campo”.
A
nálises de conteúdo quantitativas têm documentado uma certa dificuldade dos jornalistas em reproduzir incertezas em reportagens sobre riscos artificiais ou naturais. Em documentários de televisão, a minimização da incerteza científica também
se opera. H.M. Collins, em famoso estudo8, chegou a afirmar que a incerteza só é tolerada em documentários de
tevê nos casos límbicos da ciência, como o do Santo Sudário de Turim. Collins conclui: “Na tevê, a ciência é apresentada como uma geradora de certeza, quando é conduzida adequadamente. Incertezas e ambigüidades são
resultado da incompetência de cientistas, da inadequação
do aparato, ou dos limitados testes conduzidos. Incertezas
residuais serão eliminadas por testes futuros”.
A INCERTEZA NA PRÁTICA DOS CIENTISTAS
Os primeiros estudos sobre a comunicação de incertezas científicas, que remontam à década de 80, afirmavam
que os cientistas sistematicamente removiam contingências
de seu relato com vistas à construção de asserções de verdade em settings públicos. Ao confrontarmos um texto produzido para circulação interna em um laboratório e compará-lo com a versão destinada a uma revista que conta
com a revisão por pares, constataremos que uma série de
ressalvas (caveats) presentes na versão original terão sido
suprimidas na publicação.
INTELIGÊNCIA
Já na década de 90, outros estudos mostraram que os
cientistas também podem criar ativamente incertezas em seus
relatos. Trata-se de apontar lacunas no conhecimento anterior àquela publicação, revisar a literatura pregressa no início do texto para mostrar qual a contribuição original que o
mesmo pretende realizar. Só desta forma se pode atribuir
novidade ao relato apresentado. Assim, podemos concluir
que os cientistas em certas circunstâncias podem manusear
a seu bel-prazer as incertezas com vistas a adquirir autoridade cognitiva.
A situação se complica um pouco quando cientistas se
dirigem a não-cientistas em instâncias públicas (que aqui
denominaremos “ciência pública”). Nestas circunstâncias,
uma versão mais certa da ciência é apresentada pelos cientistas ao público, em comparação com aquela divulgada entre
seus pares. Tal estratégia visaria preservar a imagem pública da ciência.
De todo modo a incerteza também pode ser manipulada para que se motive a realização de mais pesquisas,
num moto-perpétuo que faz a ciência avançar. O fato é
que a ocultação ou depreciação da incerteza inerente à
démarche científica em settings públicos mistifica a ciência e reduz o âmbito de decisões que o público pode
tomar sobre situações que afetam crucialmente suas vidas. As conseqüências nefastas da recusa institucional
desta dimensão da incerteza se farão notar especificamente em pesquisas qualitativas internacionais que avaliam a percepção pública de transgênicos. Pode-se observar um gap entre a oferta de informação disponibilizada pelos atores sociais e as reais demandas do público. Um verdadeiro diálogo de surdos onde quem perde
é a democracia.
O QUE CIDADÃOS E CONSUMIDORES
PENSAM DA INCERTEZA CIENTÍFICA?
Estamos agora em condições de expor as reais demandas por informações referentes a transgênicos por parte de
cidadãos e consumidores, a partir de pesquisas qualitativas
internacionais. Antes de comentar estes resultados, convém
abordar a metodologia de escolha em estudos de percepção pública a respeito de transgênicos, de acordo com os
especialistas.
ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 123
I N S I G H T
São os grupos focais, cada vez mais empregados no
campo dos estudos em ciências sociais interpretativas. É
método derivado das pesquisas de mercado. Tem se revelado o melhor para captar dinâmicas sociais de controvérsias. Isto “por permitir aos participantes formularem suas
próprias questões, frames e conceitos e buscar suas próprias prioridades em seus próprios termos, em seu próprio
vocabulário.”9
São grupos de discussão, estruturados mas flexíveis, contando com três a 12 participantes. Cabe a um moderador
dinamizar as discussões e promover a interação dos participantes, a partir de questões dirigidas ao grupo.
R
estrições ao método são feitas por alguns estudiosos, que acreditam que as amostras envolvidas não sejam representativas da população geral, por conta do pequeno número
de participantes. No entanto, seus defensores
argumentam que deve se avaliar as relações
custo-benefício entre preservar representatividade ou obter
visão aprofundada das questões, por parte dos membros do
grupo. Para se obter representatividade, neste caso, alguns
especialistas recomendam que sejam reproduzidos grupos
focais tantas vezes quantas necessárias até que se atinja coincidência de opiniões entre os diversos grupos formados
para uma dada pesquisa.
Totalmente inexistentes no Brasil no campo dos transgênicos, estes estudos revelam resultados surpreendentes e,
em geral, coincidentes em certos aspectos com a literatura
internacional.
Em novembro de 2000, a Universidade de Lancaster
publicou o relatório Wising up: The public and new technologies, que, patrocinado pela Unilever, revelava que “os atuais métodos de provisão de informação de ‘mão única’ [como
os adotados pelos veículos de comunicação e assessorias de
imprensa] são totalmente inadequados para a tarefa de dar
conta das tensões humanas e dinâmicas sociais que devem
emergir em relação às novas tecnologias e produtos ao longo das próximas décadas”. O relatório apontava sugestões
para minorar o problema, algumas delas pertinentes ao campo da comunicação, que aqui serão comentadas.
124 PSDB
INTELIGÊNCIA
Os estudos empíricos de base qualitativa reunidos no relatório Wising up revelaram de forma curiosa os descompassos entre a cultura institucional (e suas convicções sobre
provisão de informação e transparência) e as reais demandas de informação de consumidores e cidadãos britânicos
sobre transgênicos e novas tecnologias. As conclusões do
referido estudo problematizam os mitos mais caros da comunicação.
Foram realizadas 20 entrevistas com especialistas de informação do setor manufatureiro, do varejo, do governo e
das ONGs. Numa segunda etapa, seis grupos de discussão
(grupos focais) de amostras significativas do público foram
promovidos em duas rodadas de encontros. Buscava-se obter, entre outras coisas, pistas sobre a experiência das pessoas com relação à utilidade das informações fornecidas sobre
novas tecnologias.
O gap entre os dois públicos envolvidos na pesquisa (provedores de informação e consumidores/cidadãos) foi notável. Enquanto os provedores de informação tendiam a destacar a nobreza do ato de informar em seus relatos, os consumidores-cidadãos acreditavam que toda informação que
recebiam desses atores era editorializada e retratava, de
alguma forma, ‘a voz do dono’.
A despeito destes achados, os provedores de informação
entrevistados, seja da indústria ou do governo, não manifestaram qualquer reconhecimento da importância de se estabelecerem “fluxos de informação recíprocos”, que ligassem
especialistas ao público e vice-versa.
A pesquisa revelou que os consumidores/cidadãos realizavam complexas operações de triangulação de informações para formar suas opiniões sobre o tema. Nestas estratégias, os pontos de vista da rede de pessoas ligadas ao pesquisado desempenhavam papel fundamental. Revela-se aqui
uma importante limitação das concepções envolvendo os vínculos do tipo causa-efeito entre provisão de informação e
“escolha racional” de consumidores/cidadãos, tidos como
dogmas por provedores de informação.
I N S I G H T
Além disso, o estudo mostrou que os provedores de informação pareciam obstruir, em suas políticas de comunicação, a admissão de que o conhecimento científico de novas
tecnologias apresenta limites, fato destacado pelos grupos
focais envolvidos no estudo como digno de preocupação.
Políticas de comunicação fundadas sobre conhecimento ‘positivo’, sobre a excelência dos ‘fatos’, características da cultura da ‘transparência’ e da ‘franqueza’, revelaram aqui
suas limitações.
C
ríticas também foram apontadas pelos grupos focais sobre a competência do governo
em desempenhar um papel independente
no trato da questão. Um estreito conluio entre interesses econômicos das grandes corporações e as posturas do governo no âmbito da regulamentação foi sugerido (isto no Reino Unido!). Este aspecto, segundo os responsáveis pela pesquisa, poderia revelar as limitações da ênfase na dimensão
consumidora dos cidadãos, subjacentes às estratégias comunicacionais de provedores de informação, no que se
refere a novas tecnologias.
126
INTELIGÊNCIA
Ficou sugerido nos resultados que o governo falhava em
desempenhar um papel controlador suficientemente independente sobre os desenvolvimentos de produtos transgênicos. Além disso, concluiu-se que os atuais arranjos eram
inadequados para espelhar valores públicos. Por conta disso, houve um aparente ceticismo sobre a possibilidade de
uma maior influência pública sobre tais desdobramentos.
Entre as recomendações oferecidas pelos pesquisadores
para a promoção de um “entendimento interativo”, envolvendo controvérsias referentes a novas tecnologias, está a
de ampliação de horizontes das pesquisas de mercado centradas em psicologia do consumidor. Isto deve ser feito para
que elas contemplem a “significação de realidades sociais
mais profundas”, com base no aporte de conhecimentos derivados das humanidades e ciências sociais interpretativas.
Sugerem também que, já no processo de desenvolvimento
de produtos, as expertises sejam ampliadas para que dinâmicas culturais envolvidas nas constituições sociais das tecnologias sejam contempladas.
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No campo estrito da comunicação, é mencionada a necessidade de que executivos sejam “mais realistas sobre limites e potencialidades da informação de mão única referente a tecnologias ou produtos polêmicos”. De posse de
expectativas mais modestas sobre suas virtudes, este tipo de
informação deve ser oferecido não como definitiva, mas
refletindo “uma entre muitas das perspectivas fundamentadas, com áreas de incerteza assumidas”. O relatório destaca
que, concebidas desta maneira, informação e transparência
podem desempenhar um papel mais fundamental.
Outro estudo curioso neste aspecto da valorização da
incerteza pelo público é o Public Perceptions of Agricultural
Biotechnologies in Europe (PABE), financiado pela Comissão
das Comunidades Européias. Nos cinco países estudados
(Reino Unido, França, Itália, Alemanha e Espanha), observa-se total discrepância entre as impressões de alguns atores sociais sobre as opiniões do público leigo e os achados
empíricos do estudo. Nos resultados do levantamento, divulgados em maio de 2002, constatou-se uma semelhança de
opiniões nos cinco países investigados. Entre as conclusões,
o fato de as pessoas “articularem suas preocupações não
sobre riscos (conhecidos, identificáveis), mas sobre efeitos
imprevisíveis (desconhecidos da ciência) e a negação institucional dos mesmos” .
Brian Wynne, um dos coordenadores do PABE, menciona também um detalhe omitido em certo estudo detalhado
sobre o mais importante debate público britânico a respeito
do tema, o GM Nation? The Public Debate. Realizado em
junho e julho de 2003, contou com mais de 600 encontros
locais em inúmeras cidades do Reino Unido e cerca de 20
mil pessoas consultadas. “Foi omitida qualquer referência
ao achado de que grande parte da oposição pública aos
transgênicos era devida ao comportamento institucional de
cientistas, consultores e especialistas do governo — sua negação da ignorância, exageros a respeito do controle científico, definições paternalistas do público e confusão entre fatos e valores — e não primariamente focada em riscos, como
presumia a ciência10 .
INTELIGÊNCIA
E
studo conduzido por Frewer et al11 com cerca
de 1.100 participantes consultados através de
questionários cujas perguntas foram elaboradas
após reuniões com grupos focais verificou que:
“os tipos de incerteza relacionados a processos
científicos eram considerados mais aceitáveis do
que aqueles decorrentes da falta de atividade governamental no campo do entendimento das incertezas do risco. (...)
O que era inaceitável era a informação sobre a falta de
ação do governo ou a ocultação da informação sobre incerteza diante do público”.
SOCIEDADE DE RISCO E CRISE DE LEGITIMIDADE
Pano de fundo de toda esta problematização acima posta
é a idéia partilhada por certas vertentes da teoria social contemporânea de que hoje vivemos em uma ‘sociedade de
risco’, na visão de autores como Ulrick Beck e Anthony Giddens. Nela, o risco é o princípio chave da organização societal. Sua emergência põe em campos opostos o desenvolvimento continuado das asserções de experts, para defini-los
e controlá-los, e um desencanto crescente com tais análises
da parte dos leigos.
Longe se vai o tempo dos famosos Trinta Gloriosos com
sua fé inconteste no progresso. Hoje, por conta de múltiplas
demonstrações de imprevidência, de distância entre o discurso assegurador e uma realidade extremamente incerta,
de total opacidade sobre processos de decisão e sobre ações
efetivamente implementadas, um real desencantamento com
as promessas da ciência se revela. Ainda que concomitante
com entusiasmo por certas inovações tecnológicas, notadamente no campo da informação e comunicação. O maior
desafio hoje enfrentado pelas democracias é evitar a radical
separação entre governantes e sociedade civil.
Para Beck, a lógica da distribuição de riquezas que presidia a sociedade industrial até aproximadamente a década de
1970 se faz agora acompanhar pela lógica da distribuição de
riscos em escala global. Tais riscos apresentam características
singulares, pois são suscitados pela modernização e, de responsabilidade, em sua maior parte, da ciência e da tecnologia, ainda que freqüentemente ignorados pelas mesmas, por
conta do tratamento obsoleto e reducionista que dão a estas
questões. Segundo Beck, “a ciência é uma das causas, o meio
de definição e a fonte de soluções para os riscos”.
ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 127
I N S I G H T
B
eck entende que “a crise ambiental não é uma
crise natural, mas sim social”. A visão modernista da ciência como dispositivo de predição e
controle perde o sentido diante dos megarriscos de nova natureza enfrentados pela sociedade hodierna, como aqueles representados
pela disseminação em larga escala de plantações transgênicas. A autoridade epistêmica para a solução destes riscos de
nova ordem deixa de ser monopólio de grupos de especialistas, e passa a ser negociada discursivamente com uma
sociedade que se torna cada vez mais autocrítica. Afinal,
estamos lidando com incertezas que muitas vezes escapam
à competência deliberativa de cientistas. Diante de incertezas desta natureza, as deliberações devem ser políticas, pactuadas com a sociedade, e não apanágio de cientistas e especialistas. Podemos ver aí uma das principais razões da
persistência da controvérsia sobre os transgênicos. Se o laboratório onde eles serão verdadeiramente testados é a natureza, necessário se faz pactuar o protocolo destas pesquisas com os cidadãos.
Tais movimentos tectônicos societais contemporâneos evidenciam dois fatos: a) A incapacidade da ciência em garantir, em tempo hábil, uma base objetiva certa para a ação
pública e b) A existência de um substrato contemporâneo de
desconfiança dos cidadãos com relação à gestão pública dos
riscos coletivos.
São assim problematizados dois dispositivos fundamentais da modernidade: a representação objetiva do mundo
formulada pela ciência (a) e a representação política dos
cidadãos, materializada pela democracia representativa (b).
A partir desta crise de legitimidade contemporânea, novas formas de deliberação democrática, mais inclusivas com
relação aos cidadãos, têm sido ensaiadas na Europa com a
finalidade de inaugurar um novo pacto envolvendo ciência
e sociedade. Entre elas, uma das mais interessantes é o júri
de cidadãos, verdadeiros tribunais onde grupos de cidadãos
manifestam suas inclinações com relação a determinada tecnologia. São ferramentas importantes para a subsidiar a tomada de decisão de governantes.
INTELIGÊNCIA
CONCLUSÃO
Incertezas no campo das novas tecnologias, que provaelmente jamais serão solucionadas pela ciência, estão sendo sistematicamente omitidas do debate público nacional,
com conseqüências preocupantes para a nossa jovem democracia. É o que se vê no caso dos transgênicos. Enquanto
o Ocidente assiste ao abalo do estatuto da ciência como única autoridade cognitiva concebível, no Brasil seus próceres
divulgam uma imagem da mesma como a de uma atividade
não-problemática, onde uma continuidade natural se estabelece entre seus interesses e os da sociedade. Conseqüências nefastas da indiferença a inúmeros estudos sociais contemporâneos a este respeito poderão advir, gerando crises
de governabilidade como a que observamos com a liberação da soja transgênica no Rio Grande do Sul em 2003.
e-mail:
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NOTAS
1. Este artigo é baseado em dissertação de mestrado recentemente
apresentada pelo autor à Escola de Comunicação da UFRJ e intitulada
Transgênicos, mídia impressa e divulgação científica: Conflitos entre a
incerteza e o fato.
2. O Estado de S. Paulo, Folha de São Paulo, O Globo, Extra e Jornal do Brasil.
3. Gutteling, J.M. et al. Media coverage 1973-1996: trends and dynamics. In: Bauer, M.W. & Gaskell, G. Biotechnology _ The making of a
global controversy. Cambridge University Press, London, 2002.
4. Nisbet, M e Lewenstein, B. Biotechnology and the american media:
the policy process and the elite press, 1970 to 1999. Science Communication, v. 23, n. 4, p. 359-391, June 2002.
5. Observatório da Imprensa na TV, transmitido em 23.9.2003; Leite,
Marcelo. “Patacoadas transgênicas”. In Folha de S. Paulo, 14.9.2003
6. Weiss, C. H. & Singer, E. Reporting of social science in the national
media. Russell Sage Foundation. New York, 1988.
7. Id.Ibid.
8. Collins, H.M. Certainty and the Public Understanding of Science:
Science on television. Social Studies of Science, v. 17, p. 689-713, 1987.
9. Kitzinger, J. e Barbour, R.S. Introduction: the challenge and promise
of focus groups. In: _________. (eds) Developing focus group research:
Politics, theory and practice. Sage. London, 1999.
10. Wynne, B. Social aspects of nanotechnology: misunderstanding science? In: Euronanoforum Conference. Trieste, 10-12 dez/03.
11. Frewer, L. et al. Public preferences for informed choice under conditions of risk uncertainty. Public Understanding of Science v. 11, p. 363372, 2002.
128 PSDB
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Os cruéis
MODELOS
JURÍdICOS
de controle social
ROBERTO KANT de LIMA
Recentemente, a mídia nos tem
bombardeado com inúmeros casos de denúncias de
corrupção, envolvendo agentes do governo e empresários.
É claro que a corrupção existe, sempre existiu e sempre
existirá mas, aparentemente, os mecanismos da sociedade
incumbidos de puni-la estão se mostrando mais visíveis.
No entanto, como aperfeiçoar esses mecanismos ou,
mesmo, fazê-los abandonar a ênfase em seu feitio repressivo e torná-los mais preventivos? Por que não se pensa mais
em formas de promover a internalização de regras de comportamento dos funcionários públicos capazes de dotá-los
de uma ética burocrática que não esteja fundada na apropriação particularizada de recursos públicos, mas em sua
apropriação universalizada pela coletividade? Como promover esta internalização?
ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 131
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Este artigo discute alguns aspectos de
nosso sistema de controle das atividades burocráticas estatais, que apresenta afinidades e coerências com
a organização da produção de verdades judiciárias em nossa sociedade. A exposição faz uso de resultados de pesquisas realizadas pelo autor com sistemas judiciários do Brasil e
dos Estados Unidos, sob a orientação do método comparativo, próprio da perspectiva antropológica contemporânea.
Meu objetivo aqui é discutir uma possível correlação positiva entre a igualdade jurídica formal, os processos acusatoriais de produção da verdade jurídica e a liberdade de
optar pela conveniência de a autoridade atuar — princípio
da oportunidade, ou discretion, em inglês — e a possibilidade de controle dos agentes públicos através do acompanhamento, avaliação e responsabilização — accountability, em
inglês — de suas opções; e, de outro, a desigualdade jurídica formal, processos inquisitoriais de produção da verdade
jurídica, a obrigatoriedade de atuar de determinada forma
imposta aos órgãos do Estado e a possibilidade de culpabilização dos agentes públicos em função de seus erros ou
omissões que possam ter contrariado essas obrigações.
Decorre daí que as estratégias repressivas de controle
social próprias das sociedades de desiguais — em que as
regras, por definição, não representam a proteção para todos, mas encontram-se externalizadas, isto é, exteriores aos
sujeitos — ensejam justificativas aparentemente consistentes
para sua violação sistemática pelos indivíduos, enquanto as
estratégias preventivas, próprias das sociedades de iguais,
em que o controle se faz pela internalização das regras pelos indivíduos, ensejam justificativas consistentes para sua
obediência.
132 OAB
Em conseqüência, a punição das infrações nos sistemas
repressivos, embora amplamente desejada, deve ocorrer,
de preferência, em relação aos outros, desiguais, enquanto
que nos sistemas disciplinares ou preventivos, anuncia-se
como fundamental a imposição do cumprimento de regras
para toda a coletividade de iguais, devendo ser exemplarmente punido aquele que, sendo igual, a ela não quer se
submeter como o fazem seus pares.
Também é meu intuito, à guisa de exemplo, discutir o
fato de que, do ponto de vista do ethos da instituição policial
— cujo surgimento é geralmente apontado como ponto de
inflexão e passagem de modelos de controle social, na sociedade contemporânea, das estratégias jurídicas repressivas
para aquelas preventivas — a presença de estruturas funcionais e organizacionais internas fundadas na desigualdade
explícita, aliada à predominância de formas de controle social repressivo que lhes são imposta internamente, constitui
um paradoxo. Esta estrutura, tal como se reproduz nas polícias brasileiras, tem conseqüências relevantes para a eficiência dos mecanismos de controle da atividade policial, colaborando para que não sejam internalizados positivamente
os efeitos da punição dos agentes e autoridades policiais que
incorrem em faltas funcionais, usualmente denominadas como
desvio de conduta.
Iniciarei a discussão explicitando um contraste clássico,
mas persistentemente encoberto por nossas tradições jurídicas: de um lado, a associação entre a igualdade formal
dos cidadãos, garantida pelo conjunto das liberdades públicas existentes na Constituição e pelo acesso universal aos
tribunais, para defendê-las — os direitos civis — e a desigualdade oriunda da participação no mercado, própria das
sociedades capitalistas contemporâneas; e, de outro, a desigualdade formal imposta a segmentos de uma sociedade
aristocrática e a conseqüente inexistência de um mercado
onde os membros da sociedade possam competir livremente, própria das sociedades ocidentais anteriores às revoluções liberais.
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Há diferenças, do ponto de vista dos fundamentos da desigualdade, nos dois contextos: no Antigo Regime, a igualdade se estabelecia entre os membros do mesmo grupo (estamento) e a desigualdade, entre grupos, estava fundamentada moral e
juridicamente no status, afirmando-se jurídica e politicamente um modelo social de cunho piramidal no qual, sendo a base maior do que o
topo, a desigualdade está naturalizada; na sociedade republicana, em
que se garantiu a igualdade jurídica a todos os cidadãos, vai-se justificar
a desigualdade pelas diferenças de performance entre os cidadãos no
mercado, já que, teórica e juridicamente, estão dispostos inicialmente na
mesma posição, como se todos ocupassem a base de um paralelepípedo, cuja dimensão é a mesma do seu topo. É claro que esta representação tem por efeito naturalizar a igualdade.
Assim, é a igualdade jurídica diante da lei e dos tribunais, que vai
fornecer a justificativa moral para a desigualdade econômica, política e
social na sociedade cujo modelo jurídico-político pode ser representado
por um paralelepípedo: a idéia de igualdade diante da lei e dos tribunais
justifica a desigualdade de classes nas esferas econômica, política e social, inerente ao mercado.
Nas palavras de um autor consagrado da área:
“Não obstante, a verdade é que a cidadania, mesmo em suas formas
iniciais, constituiu um princípio de igualdade, e que, durante aquele período, era uma instituição em desenvolvimento. Começando do ponto no
qual todos os homens eram livres, em teoria, capazes de gozar de direitos, a cidadania se desenvolveu pelo enriquecimento do conjunto de direitos de que eram capazes de gozar. Mas esses direitos não estavam
em conflito com as desigualdades da sociedade capitalista; eram, ao
contrário, necessários para a manutenção daquela determinada forma
de desigualdade. A explicação reside no fato de que a cidadania, nesta
fase, se compunha de direitos civis. E os direitos civis eram indispensáveis a uma economia de mercado competitivo. Davam a cada homem,
como parte de seu status individual, o poder de participar, como uma
unidade independente, na concorrência econômica, e tornaram possível
negar-lhes a proteção social com base na suposição de que o homem
estava capacitado a proteger a si mesmo.” 1
1. Marshall, Thomas .H. – Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro, Zahar, 1967, pp. 79.
ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 133
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INTELIGÊNCIA
Além disso, a sociedade de mercado
é
representada, nesse formato, como uma sociedade contratual, cujo contrato substituiu uma outra forma de contrato:
“O contrato moderno não nasceu do contrato feudal;
assinala um novo desenvolvimento a cujo progresso o feudalismo foi um obstáculo que teve que ser afastado. Pois o
contrato moderno é essencialmente um acordo entre homens
que são livres e iguais em status, embora não necessariamente em poder. O status não foi eliminado do sistema social. O status diferencial, associado com classe, função e família, foi substituído pelo único status uniforme de cidadania, que ofereceu o fundamento da igualdade sobre a qual
a estrutura da desigualdade foi edificada.” 2
A definição de sociedade como um contrato entre indivíduos livres traz conseqüências para os modelos de controle
social propostos para administrar seus conflitos. Enquanto
na sociedade composta de segmentos desiguais — estamentos — a ênfase do modelo de controle social estava na repressão — uma vez que as regras, não sendo iguais para
todos, certamente teriam que ser impostas àqueles segmentos a quem prejudicassem — na sociedade de indivíduos
livres e iguais, onde as regras valem, igualmente, para todos, e por isso consistem em sua proteção contra o abuso de
alguns e, sobretudo, contra o abuso do Estado, a ênfase
estará na internalização das regras por todos, produzindose, em conseqüência, sua disciplinarização — ou normalização, como querem alguns autores. Outra conseqüência
desta transformação do modelo de sociedade é que surge,
com a idéia de mercado, a possibilidade de escolha entre as
opções por ele oferecidas, que podem levar a resultados
diferenciados as ações de seus componentes.
Ora, sabe-se que a desigualdade é um dos princípios
organizadores da sociedade brasileira, oriundo da sociedade tradicional dos tempos coloniais que, entranhado na estrutura social, organiza, com freqüência, as relações nas
instituições. Não é por acaso que o argumento sobre a igualdade, proferido em discurso de Ruy Barbosa do início do
século XX, é freqüentemente citado para justificar a existência de institutos jurídicos legitimadores da desigualdade jurídica em um sistema que se diz republicano e democrático:
“A parte da natureza varia ao infinito. Não há, no universo, duas coisas iguais. Muitas se parecem umas às outras.
Mas todas entre si diversificam. Os ramos de uma só árvore,
as folhas da mesma planta, os traços da polpa de um dedo
humano, as gotas do mesmo fluido, os argueiros do mesmo
pó, as raias do espectro de um só raio solar ou estelar.Tudo
assim, desde os astros, no céu, até aos aljôfares do rocio na
relva dos prados.
A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar
desigualmente aos desiguais, à medida que se desigualam.
Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade
natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais
são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar
com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade,
seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da
criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que
vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem. Esta blasfêmia contra a razão e a fé, contra a
civilização e a humanidade, é a filosofia da miséria, proclamada em nome dos direitos do trabalho; e, executada, não
faria senão inaugurar, em vez da supremacia do trabalho, a
organização da miséria.”3
2. Marshall, Thomas H., op. cit., pp. 79-80, grifos meus).
3. Trecho do discurso de paraninfo “Oração aos Moços”, Faculdade de Direito de
São Paulo. Obras Completas de Ruy Barbosa. Rio de Janeiro, Casa de Ruy
Barbosa, V. 48, t. 2, 1921, grifos meus.
134 OAB
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INTELIGÊNCIA
Este discurso, repetido à exaustão pela maioria de
nossos juristas, desde sua enunciação pública, claramente opera uma transformação da diversidade da natureza em desigualdade da sociedade para, em seguida,
rotular esta desigualdade de natural. Os ideais do princípio de igualdade formal ficam
assim neutralizados em nossa cultura jurídica, expressa na prática de profissionais do
direito. A situação paradoxal de vivermos em uma sociedade onde o mercado produz
constantes desigualdades econômicas, que estão em tensão contínua com o princípio
basilar da igualdade de todos perante a lei, não lhes desperta inquietações, porque tal
situação de desigualdade é percebida como natural, devendo o mundo do direito reproduzir essa desigualdade para, eventualmente, distribuir também desigualmente o
acesso aos bens jurídicos para, assim, fazer justiça. Desta forma, pretende-se resolver
esse paradoxo, como se isto fosse possível. Temos bons exemplos no processo penal
deste fenômeno, onde privilégios estão a desigualar o tratamento concedido a autores
e co-autores dos mesmos delitos tipificados no Código Penal.
Conseqüentemente, neste modelo, na ausência de demarcação definida e estruturada em torno de eixos explícitos de legitimação da desigualdade, como em uma sociedade aristocrática, cabe a todos, mas, principalmente, às instituições encarregadas de
administrar conflitos no espaço público, em cada caso, aplicar de maneira particular as
regras disponíveis — sempre gerais, nunca locais — de acordo com o status de cada
um, sob pena de estar cometendo injustiça irreparável ao não se adequar à desigualdade social imposta e implicitamente reconhecida. Desigualdade jurídica esta inconcebível em qualquer República constitucional, mas cuja existência, nesse contexto de ambigüidade em que nossa sociedade se move, goza de confortável invisibilidade. Eis por
que a legislação processual penal admite tratamento diferenciado a pessoas que são
acusadas de cometer infrações, enquanto estão sendo processadas, não em função das
infrações, mas em função da qualidade dessas pessoas, consagrando, inclusive, o acesso à instrução superior completa como um desses elementos de distinção. Esta distinção
de tratamento, na prática, significa atribuir a presunção de inocência àqueles que detêm tal privilégio e a presunção da culpa àqueles que não os detêm, pois estes últimos
são, ainda enquanto estão sendo processados, alojados em péssimas condições e na
companhia, em geral, daqueles que já estão condenados4.
4. Como mostraram os trágicos e recentes acontecimentos das Casas de Custódia de presos comuns que aguardam
julgamento em Benfica, bairro do Rio de Janeiro palco de uma chacina entre os presos, que se verificou ao lado de
uma instalação de presos especiais, aonde nada de extraordinário aconteceu. Para compreender quão séria é esta
questão da desigualdade jurídica, acaba-se de aprovar, em julho de 2001, uma nova regulamentação da prisão
especial, denominação jurídica deste instituto. O Executivo, inicialmente motivado a extinguí-la para impedir a
aplicação de privilégios a um juiz que se encontrava respondendo a processo criminal, abandonou sua intenção
inicial e o assunto — que é claramente inconstitucional — foi apenas regulamentado pelo Congresso, em votação
simbólica das lideranças, que incluiu uma nova categoria profissional — os militares em geral — no privilégio!
ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 135
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Como já mencionei, estas representações estruturais da
sociedade — ora concebida como composta de elementos diferentes e opostos, mas iguais,
ora como composta de segmentos internamente semelhantes, mas desiguais e complementares
entre si — têm sérias conseqüências para os sistemas de controle social, em particular para os
sistemas processuais penais. Pois, além de implicarem ênfases diferenciadas, ora na normalização dos indivíduos visando a prevenção de acontecimentos futuros, a igualdade dos cidadãos —
ou dos elementos de um mesmo estamento entre si — enfatiza modelos acusatoriais de processo, que visam estabelecer consensos públicos sobre responsabilidades, enquanto a presunção da
desigualdade entre os súditos ou cidadãos, aponta para a necessidade de métodos processuais
inquisitoriais, que têm a finalidade de confirmar suspeições sistematicamente construídas para
punir as infrações já cometidas. Daí decorrem também dois modos de representar os conflitos:
no primeiro modelo, os conflitos que advêm da oposição inevitável de interesses são previsíveis
e constitutivos da ordem social; no segundo, fundado na pressuposição de uma sociedade arrumada em rígida hierarquia de segmentos desiguais e complementares — cada coisa em seu
lugar — os conflitos são disruptores e ameaçadores da ordem social.
De acordo com um processualista penal consagrado, também contemporâneo do início da
República5, as características destes métodos podem ser assim resumidas:
“1º
O sistema acusatório admite, em geral, uma acusação formulada no ingresso da instrução, instrução contraditória, defesa livre e debate público entre o acusador e o acusado, ao
passo que o sistema inquisitorial procede a pesquisas antes de qualquer acusação, substitui à
defesa o interrogatório do indigitado, ao debate oral e público as confrontações secretas das
testemunhas e, em geral, a instrução escrita e secreta às informações verbais.
2º O sistema acusatório, subordinando-se ao método sintético, afirma o fato e, enquanto
não o prova, o acusado é presumido inocente; o sistema inquisitório, subordinando-se ao método analítico, não afirma o fato, supõe a sua possibilidade, presume um culpado, busca e colige os
indícios e as provas.
3º O sistema acusatório propõe-se a fazer entrar no espírito do juiz a convicção da criminalidade do acusado; o sistema inquisitório propõe-se a fornecer ao juiz indícios suficientes para
que a presunção possa ser transformada em realidade.
4º Enfim, um preocupa-se principalmente do interesse individual lesado pelo processo,
outro preocupa-se principalmente do interesse público lesado pelo delito” 6
5. Mendes de Almeida Jr., João – O Processo Criminal Brazilairo. Rio de Janeiro, Typografia Baptista de Souza, 1920, 2 vols.
6. Op. cit., 1º vol. pp. 250, grifos meus.
136 OAB
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INTELIGÊNCIA
Fica clara, portanto, a atribuição de
uma função de promoção de justiça social com-
Assim, a presença de métodos oficialmente sigilosos de
produção da verdade — como no caso do inquérito policial
em nossa legislação — próprios de sociedades de desiguais,
que querem circunscrever os efeitos da explicitação dos conflitos aos limites de uma estrutura que se representa como
fixa e imutável, confirmam a naturalização da desigualdade
própria de nossa consciência cultural: as pessoas são consideradas naturalmente desiguais, e o Estado aparece como
elemento que deve compensar a desigualdade. A função
compensatória do Estado, portanto, não é uma promoção
da igualdade para que as partes administrem seus conflitos
em público, mas é vista como uma incorporação da desigualdade na fórmula jurídica de administração dos conflitos
em público.
Esta fórmula era perfeitamente justificável em uma sociedade aristocrática, de desiguais:
“O sistema inquisitório contém elementos que não podem ser repelidos, tanto assim que foi, no século XIII a XVIII
uma garantia de justiça e liberdade. Quando o homem de
condição humilde estava exposto às arbitrariedades dos fortes, ricos e poderosos, não lhe era fácil comparecer ante às
justiças senhoriais para acusar sem rebuço, sem constrangimento e sem o temor e a quase certeza da vingança; o
Direito Canônico, opondo ao procedimento acusatorial o
procedimento inquisitório, foi o protetor da fraqueza perseguida e o adversário da força tirânica; se os abusos desnaturaram a instituição, causando mais tarde males superiores
aos benefícios, isso não exige a abolição do sistema e sim a
criação de cautelas para o seu aproveitamento. Foi por isso
que, desde o século XVIII, as nações em sua maioria trataram de adotar um sistema misto, em que os direitos individuais se harmonizassem com as exigências da defesa social, em que nenhum desses sistemas, quer o inquisitório, quer
o acusatório, “fosse entregue a suas próprias tendências.”7
pensatória às avessas — descompensatória? — à justiça criminal: ao invés de promover a igualdade jurídica das partes
em seu âmbito, deve supor a sua desigualdade social e promover sua desigualdade jurídica e, sob a justificativa de proteger os mais fracos, arrogar-se a função de antecipar-se
aos desequilíbrios de poder entre os litigantes, para administrá-los. Aqui, nada se diz quanto à igualdade jurídica formal das partes, que são dotadas de igual direito de postulação judicial no sistema acusatório.
Como que a confirmar o caráter inquisitorial dos procedimentos de produção da verdade judiciária, a Exposição de
Motivos que introduz o texto do Código de Processo Penal
em vigor explicita ser objetivo do processo judicial criminal,
a descoberta da verdade real, ou material, por oposição à
verdade formal do processo civil, que consiste em admitir
como verdadeiro aquilo que o juiz seleciona do que lhe foi
levado pelas partes. No sistema que privilegia verdade real,
ao contrário, os juízes podem e devem tomar a iniciativa de
trazer aos autos tudo o que pensarem interessar ao processo, para formar o seu livre convencimento examinando a
prova dos autos. Assim também, todos os elementos que se
encontram registrados, por escrito, nos volumes que formam os processos judiciais — incluindo os inquéritos policiais, de caráter inquisitorial — podem ganhar consistência
para a formulação da sentença final. Neste sistema o juiz
pode, até, discordar de fatos considerados incontroversos
pela acusação e pela defesa, de acordo com autora consagrada da área:
“O princípio da verdade real, que foi o mito de um processo penal voltado para a liberdade absoluta do juiz e para
a utilização de poderes ilimitados na busca da prova, significa hoje simplesmente a tendência a uma certeza próxima
da verdade judicial: uma verdade subtraída à exclusiva influência das partes pelos poderes instrutórios do juiz e uma
verdade ética, constitucional e processualmente válida. Isso
para os dois tipos de processo, penal e não-penal. E ainda,
agora exclusivamente para o processo penal tradicional, uma
verdade a ser pesquisada mesmo quando os fatos forem incontroversos”.8
7. Op. cit., 1º vol. pp. 250-251.
8. GRINOVER, Ada Pellegrini. A Iniciativa Instrutória do Juiz no Processo
Penal Acusatório. in Revista Brasileira de Ciências Criminais, Ano 7, número
27, jul-set/99, pp. 79, grifo meu
ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 137
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Assim, vemos que o modelo de espaço público e de esfera pública
da sociedade brasileira é uma mistura explícita de dois modelos para a sociedade, aos quais
correspondem, também, dois modelos jurídicos de controle social. O primeiro assemelha-se social e
juridicamente a um paralelepípedo, no qual a sociedade se representa como composta de elementos
individuais, juridicamente iguais, mas diferentes de fato, que se opõe permanentemente na disputa por
recursos escassos, que estão disponíveis a todos, em princípio. A diferença de posição que cada indivíduo apresenta na estrutura do paralelepípedo não decorre de uma distorção do sistema, mas de sua
habilidade diferenciada para utilizar eficazmente os recursos disponíveis. As palavras-chave, aqui, são:
a igualdade de oportunidades e as escolhas acertadas. Elas é que determinarão os méritos individuais. É
necessário, portanto, garantir o acesso universal, isto é, de todos à informação. Sendo assim, só tem
validade a informação que está disponível a todos, da mesma forma, em público. A informação universalizada, então, é um mecanismo de normalização da sociedade. Por esta razão, a exigência da publicidade para sua validade representa a garantia de que não haverá abusos que privilegiarão uns ou outros,
punindo-se severamente a sua utilização de forma privilegiada.
O espaço público, assim, será o espaço coletivo, onde os impulsos individuais devem ser contidos. A
igualdade, aqui, está associada à diferença, pois todos têm o igual direito de ver respeitada a sua
diferença individual na esfera das normas e das práticas públicas. Neste sentido, há como que um muro
entre o espaço público e o espaço privado, que só pode ser transposto através do cumprimento de muitas
fórmulas rituais. Esta separação rígida se expressa no conceito de privacidade (privacy, em inglês).
138 OAB
I N S I G H T
O tratamento dado aos conflitos, no modelo igualitário
de sociedade, consiste em considerá-los previsíveis e apreendê-los através de acusações públicas, que enfatizam a
explicitação dos conflitos e a negociação de sua resolução,
para possibilitar um mínimo de ordem necessária ao convívio social. Sua administração requer sucessivas barganhas,
em que todos perdem um pouco para que a sua resolução
seja possível através de construções, preferencialmente consensuais, de verdades coletivas. Por isso, há ênfase na estabilidade e previsibilidade dos procedimentos, mais no que
no conteúdo das regras.
Finalmente, as regras que regem o espaço público no
modelo igualitário são sempre consideradas como regras
de um universo específico e determinado, localizado. Daí
decorrem outras duas regras próprias deste modelo: as regras são presumidamente consensuais, o que implica que
todos sabem o que elas querem dizer, o que faz sua compreensão ser literal; e aplicam-se a todos os que pertencem
àquele universo da mesma maneira, isto é, de maneira universal. Ao governo, com seus instrumentos, assim como às
instituições encarregadas de administrar conflitos, cabe promover a igualdade de oportunidades e a sua resolução sistemática, zelando pela previsibilidade da vida social. A igualdade prevalece sobre a liberdade.
INTELIGÊNCIA
Quanto ao segundo modelo, o de
formato piramidal, pode-se dizer que ali se enfatiza e naturaliza a desigualdade, pela própria constituição
do modelo: sendo o topo da figura menor que a base, está
claro que deverá haver mecanismos de exclusão para determinar quem está em cima e quem está em baixo da estrutura social. Presume-se a sociedade como constituída de
segmentos desiguais e complementares entre si, que não se
opõem no espaço público. Aqui a diferença está associada à
desigualdade e a semelhança à igualdade entre os pares,
uma vez que a igualdade é um fenômeno que só ocorre
entre os membros de um mesmo patamar da pirâmide.
Daí decorre que os recursos não estão acessíveis a todos
da mesma maneira e a informação de acesso particularizado é valorizada publicamente, pois indica que seu possuidor
está mais próximo ao topo da pirâmide que os demais: a
informação, que está acessível a todos, de nada vale. Assim,
a informação privilegiada, obtida por meios sigilosos e apropriada em benefício particular, é valorizada positivamente.
Os conflitos, nesse modelo, significam uma inconformidade com a ordem estabelecida, uma desarrumação da
ordem, uma tentativa de ruptura institucional. Devem, assim, ser evitados ou suprimidos a todo custo, pois representam uma ameaça à paz social. Aqueles que ousaram
provocá-los e explicitá-los devem ser punidos publicamente. A sua administração deve ser feita através da repressão, visando sua extinção ou forçando-se a conciliação entre
as partes em litígio.
ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 139
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INTELIGÊNCIA
O espaço público não é um espaço
construído consensualmente por uma coletividade, mas
um espaço definido previamente, cujas regras são desconhecidas da maioria de seus componentes. Não é à toa que,
muitas vezes, associa-se a categoria público com a categoria estatal, ao invés de associá-la à categoria de coletivo.
Também não é sem razão que o espaço público é concebido
como passível de apropriação particular, por aqueles que
conhecem a chave dos seus códigos de apropriação. É regido por regras próprias, que vêm de cima para baixo e que
são tanto mais legítimas, quanto mais de cima vêm. A informação privilegiada produz efeitos públicos, como é o caso
dos inquéritos policiais e dos procedimentos de angariação
sigilosa de informações que alimentam o sensacionalismo
da imprensa.
No modelo da pirâmide, o Estado atua como compensador das desigualdades sociais, que são concebidas como se
naturais fossem, através da imposição de regras sempre
gerais que, portanto, valem para toda a pirâmide, mas que
são aplicadas de maneira particularizada, pois os segmentos da sociedade — que estão, eventualmente, em conflito
— são desiguais. É necessária, para este fim, uma interpretação autorizada, que esteja acima dos protagonistas do conflito e tenha conhecimento de coisas que os demais, que
estão embaixo, não têm. Quanto mais esotérica essa autoridade, mais particularizado e eficaz o seu conhecimento interpretativo. Só quem está no vértice da pirâmide sabe tudo.
O sistema de controle social desta sociedade, portanto, é de
suspeição sistemática do conflito, uma vez que este é associado à desordem e, por esta razão, deve ser reprimido. O
saber importante é o que está implícito, o que está explícito
é considerado banal. A liberdade de cada sujeito, assim,
não depende daqueles que lhe são iguais, mas daqueles
que ocupam uma posição social superior. A liberdade, neste
modelo, prevalece sobre a igualdade: é tanto maior a liberdade do sujeito quanto mais perto do topo da pirâmide ele
está ou demonstra estar.
140 OAB
A sociedade brasileira, juridicamente, enfatiza alternada e alternativamente os dois modelos, dependendo das circunstâncias e do contexto argumentativo que
se deseja estabelecer. Este exercício de pseudoconciliação
de paradoxos produz conseqüências: a sociedade brasileira
se define jurídica e explicitamente como estruturada em um
regime constitucional republicano e democrático, em que
todos são iguais perante a lei, o que, em primeira análise,
nos leva a poder identificá-la com o modelo igualitário acima descrito (paralelepípedo). No entanto, nosso sistema judiciário possui ênfases inquisitoriais e repressivas, próprias
do modelo piramidal e quando confrontado aos princípios
constitucionais acusatórios e preventivos, produz ruídos dissonantes.
Entretanto, a conciliação de princípios tão paradoxais não
causa estranheza, uma vez que o sistema está baseado, tanto na dogmática jurídica, como na hierarquia das normas, e
se articula através do princípio do contraditório, cuja função
é opor, logicamente, posições contrárias. Pelo contraditório,
o problema deve ser resolvido, quando argüido, validando,
assim, automaticamente, aquelas normas situadas nos níveis
mais altos da hierarquia. Seguindo esta lógica, no topo da
hierarquia de normas estão os princípios constitucionais. Estes, aparentemente, parecem implicitamente enfatizar o
modelo acusatório, assemelhando-se àquele do due process
of law dos EUA. Por exemplo: asseguram a presunção da
inocência, o direito à defesa — chamado, no direito brasileiro, de princípio do contraditório — conferindo, entretanto,
um outro direito, denominado de ampla defesa, pelo qual os
acusados podem e devem usar todos os recursos e meios de
prova possíveis em sua defesa. Ao acusado é permitido mentir.
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Ora, este sistema traz em si alguns paradoxos. O primeiro é que não é um due process of law — expressão
traduzida em português de forma demasiado livre como
devido processo legal — pois esta instituição jurídico-política
dos EUA é uma opção do acusado, a quem é devido — due
— pelo Estado, um determinado procedimento judicial, em
condições estipuladas pelas quinta e sexta emendas constitucionais. Estas incluem, entre outros, o direito a um speedy
trial — um julgamento rápido, o que não existe em nosso
sistema de julgamentos obrigatórios e de temporalidade própria. Outra característica é que, não havendo no processo
nem exclusionary rules (regras de exclusão das evidências
levadas a juízo) — a não ser, depois da Constituição de 1988,
aquelas que proíbem a produção de provas por meios ilícitos — nem hierarquia de provas, que separem os fatos provados daqueles que não o foram, dentro de um processo
probatório progressivo e seqüencial — evidence, fact, proof
— tudo, literalmente, pode ser alegado em defesa, ou em
acusação. Este método de produção de verdade jurídica produz uma parafernália de meros indícios, tanto mais ampla,
quanto mais abundantes forem os recursos do acusado e
dos acusadores. Finalmente, ao assegurar, constitucionalmente, o direito do acusado não se auto-incriminar (direito
ao silêncio), no Brasil não se criminaliza, como no direito
anglo-americano, a mentira dita pelo réu em sua defesa, o
que implica não haver a possibilidade de acusação e condenação por perjury, mas somente por falsidade de declaração por testemunha: é o crime de falso testemunho.
INTELIGÊNCIA
Abaixo da Constituição, tem-se o Código de
Processo Penal, que regula três formas de produção da verdade: a policial, a judicial e a do Tribunal do Júri. Tais formas encontram-se hierarquizadas no Código da seguinte
maneira: (a) o inquérito policial, onde o procedimento da
polícia judiciária — e, não, processo — sempre foi, oficialmente, administrativo, não-judicial; o artifício de passar a
considerá-lo juridicamente um procedimento e não um processo administrativo permite que continue a ser inquisitorial,
não se regendo pelo princípio do contraditório, consagrado
pela Constituição9 para todos os processos, tanto administrativos como judiciais; (b) o processo judicial, aplicado à maioria dos crimes e que se inicia, obrigatoriamente, quando
há indícios suficientes de que um delito grave foi cometido
(materialidade) e que sua autoria é presumida, com a denúncia feita exclusivamente pelo Ministério Público10. Esta
denúncia, formulada pelo promotor, baseia-se nas informações registradas no cartório da polícia, nos autos do inquérito policial inquisitorial — que, assim, adquirem fé pública.
Valem, portanto, contra terceiros e foram produzidas sem
se ouvir previamente o acusado ou seu advogado O processo é iniciado e só então aparece a oportunidade de defesa.
Este processo é regulado pelo princípio do contraditório, até
a sentença do juiz, que exprime seu convencimento justificado pelo exame do conteúdo dos autos; (c) no julgamento
pelo Tribunal do Júri, procedimento que se aplica apenas
aos crimes intencionais contra a vida humana e que se inicia
por uma sentença judicial proferida por um juiz (pronúncia),
após a realização de nova produção de informações, indícios e provas, que se soma àquelas do inquérito policial e da
instrução judicial, comum a todos os processos judiciais criminais e também regido pelo contraditório e pela ampla
defesa. Este processo exige a presença do réu, inclui um
prolongado debate oral, que termina pelo veredito dos jurados, que não podem se comunicar entre si para que não
influenciem uns aos outros nas suas tomadas de decisão.
9. Constituição de 1988, arts. V, LV.
10. Constituição de 1988, art. 129, I.
ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 141
I N S I G H T
INTELIGÊNCIA
Entretanto, como se vê, devido à necessária
busca da verdade real, nosso direito constitucional e processual, seguindo a tradição de transformar direitos em deveres —
como fez com o alistamento militar e com o direito de voto,
entre muitos outros — também faz do júri, não um direito do
acusado, renunciável por definição pela lógica do sistema anglo-americano, por exemplo, mas um poder-dever do Estado,
ao qual o réu-cidadão tem que se sujeitar, querendo ou não.
Uma vez indiciado, denunciado e pronunciado em certos tipos
penais — todos envolvendo crimes intencionais contra a vida
humana — o réu deve, obrigatoriamente, submeter-se ao julgamento pelo Tribunal do Júri.
Esta busca da verdade real também é responsável pelo princípio da obrigatoriedade da persecução penal, a que estão
submetidos tanto a Polícia como o Ministério Público, conforme determinação constitucional contida no art. 129, I, uma
vez que o mesmo deve atuar sempre que houver suporte probatório mínimo da materialidade do fato criminoso e de sua
autoria, como está prescrito nos artigos 24, 42 e 43 do Código de Processo Penal Brasileiro.
Acresce a este contraste um outro, referente à seleção excludente, não universal, que não se assemelha ao sistema norteamericano, daqueles que podem ser jurados no Brasil. Os critérios adotados variaram no tempo, indo desde aqueles que se
baseavam na renda, até o que se funda no status social, definido através da fidedignidade conhecida, ou supostamente afirmada diante do juiz. Os jurados que, no sistema dos Estados
Unidos, cumprem o seu dever de cidadão participando dos
julgamentos, no Brasil ganham privilégios jurídicos em função
de serviços prestados ao Estado-juiz, como direito à prisão especial e preferência em concorrências públicas. Aquilo que,
no sistema norte-americano, é um direito do cidadão-acusado
e dever do cidadão-jurado, é atualizado, no direito brasileiro,
por um lado, como um dever do acusado de submeter-se, em
inapelável sujeição, ao julgamento imposto pelo Estado, no
qual este assume o papel de persecutor da verdade real e, por
outro lado, converte-se em um privilégio de alguns poucos
escolhidos jurados de julgarem seus concidadãos.
142 OAB
I N S I G H T
Resumindo, no sistema brasileiro,
sob
a égide de preceitos constitucionais dignos das sociedades
igualitárias, articula-se no processo de produção da verdade judiciária, especialmente no processo penal, a pressuposição da desigualdade social, com procedimentos e princípios inquisitoriais de produção da verdade. Tais procedimentos também se caracterizam por uma incorporação bastante
flexível de argumentos e dados ao processo, que deixa a
decisão sobre sua valoração ao chamado livre convencimento
do juiz. Fácil concluir que no sistema processual criminal
brasileiro não há processo de formulação consensual de
verdade, pois os fatos descritos não são construídos pelo
acordo sistemático entre as partes litigantes, mas são fruto
das representações obrigatoriamente contraditórias delas,
registradas nos autos através das interpretações que as autoridades judiciárias fazem a partir da perspectiva dos participantes — operadores jurídicos, partes ou testemunhas —
quando reduzem a termo os atos processuais. Assim, sempre uma tese (posição) perde e a outra ganha: não pode
haver consenso. Como a comprovar, lingüisticamente, esta
relevante distinção, é usual, entre nós, dizer-se que se vai
apurar a verdade dos fatos, expressão que não pode ser
vertida, por exemplo, para o inglês, uma vez que nesta língua e nesta cultura, a noção de fato já implica a noção de
verdade construída consensualmente.
INTELIGÊNCIA
O sistema brasileiro atualiza as garantias do acusado no
devido processo legal como garantias do Estado, indisponíveis para o cidadão, portanto, para apurar a verdade dos
fatos e atribuir culpa e responsabilidade. A forma brasileira
de entender a garantia do direito ao processo acaba por
retirar da lei seu caráter eminentemente definidor e garantidor dos direitos civis, para transformá-la em instrumento
implacável de descoberta da verdade. Esta representação
jurídica brasileira do instituto processual se justifica pela pretensa promoção de uma tutela jurídica aos segmentos inferiorizados e debilitados da sociedade, a ser exercida pelo Estado, que tem a função de compensar as desigualdades que
são inevitáveis e naturais numa sociedade de desiguais e é
auto-encarregado de manter a ordem e de assegurar o cumprimento da lei.
Numa sociedade que é concebida como composta de
segmentos juridicamente desiguais e complementares, decorre tornar-se legítima, também, a aplicação desigual da
lei aos mesmos, para que, como se costuma argüir, não se
cometam injustiças. Como conseqüência, entre nós não se
enfatiza, no âmbito do processo penal, a aplicação universal
da lei — da mesma forma para todos e para cada um. Afastamo-nos assim do cerne do processo social de internalização da lei, cujo resultado seria a normalização da população, ou seja, sua socialização igualitária perante as leis, o
direito e os tribunais. Assim, leis, regras e normas são vistas
pela sociedade brasileira como algo externo aos indivíduos
que, longe de os protegerem, os ameaçam, pois sua aplicação depende de interpretação particularizada, cujos resultados são sempre imprevisíveis, porque são distribuídos formalmente de maneira desigual. Como se vê, a ênfase está
depositada no interesse público, identificado como aquele
definido pelos funcionários do Estado e o processo tem a
função de incrementá-lo, acima dos interesses individuais e/
ou coletivos, através do método inquisitorial.
ABRIL • MAIO • JUNHO 2004 143
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Além disso, o chamado sistema judicial criminal brasileiro
se organiza de maneira a sobrepor distintos sistemas de produção da verdade jurídica, que obedecem a princípios distintos e, portanto, desqualificam mutuamente seus produtos, as
verdades judiciárias neles produzidas: a prova do inquérito
policial deve ser refeita no processo judicial, assim como a da
instrução judicial deve ser repetida no Tribunal do Júri, por
exemplo. Assim sendo, em cada etapa do processo judicial
pode ser conhecida uma verdade diferente da anterior.
A esses procedimentos se juntam outros, instituídos pela
Lei 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais Criminais,
constitucionalmente previstos pela Constituição da República
de 1988. Esta instância tem competência para julgar as infrações penais que tiverem pena inicialmente prevista de, no
máximo, um ano — agora, de dois anos. São as contravenções penais e os crimes de pequeno potencial ofensivo. Em
trabalho recente, divulgam-se dados de pesquisa qualitativa,
em que se observa elevado número de renúncias das partes
ao processo, estimuladas pelos conciliadores, o que parece
confirmar a tradição da conciliação, que opera no sentido de
abafar os conflitos, não de solucioná-los ou resolvê-los 11.
Aspecto específico e peculiar do processo penal brasileiro poderia ser enfrentado, a partir da ambigüidade do status jurídico referente à atuação da polícia judiciária no inquérito policial, orientada pelos princípios da discricionariedade do direito administrativo, e da obrigatoriedade do processo penal. Nesta matéria, são freqüentes as confusões entre
os operadores do sistema sobre o que seja o poder de polícia, atribuído a todos os agentes administrativos do Estado
incumbidos da vigilância da sociedade e do cumprimento
das normas, e o que se constitui no poder da polícia, associado ao monopólio do uso legítimo e comedido da força física, substantivado no uso de armas compatíveis com essa
tarefa. Confunde-se, com freqüência, a discretion atribuída
aos policiais e District Atorneys, que são os órgãos acusadores no processo criminal dos Estados Unidos da América,
onde é entendida como a faculdade de decidir sobre a oportunidade da propositura da acusação penal, com a discricionariedade brasileira que, neste âmbito, não existe, uma vez
que a Polícia e o Ministério Público, no que tange aos crimes
de ação pública, estão obrigados a agir, instaurando o inquérito policial ou propondo a ação penal, pelo princípio da
obrigatoriedade, como já mencionei.
144 OAB
INTELIGÊNCIA
A associação do princípio da obrigatoriedade ao princípio da verdade real não admite negociações em
torno da verdade, que não será construída consensualmente. No outro sistema, que está baseado na associação entre
o princípio da oportunidade e da responsabilização dos agentes públicos, há ênfase na construção consensual da verdade e ao compromisso pessoal do agente público com o exercício da sua função. È assim que tanto o processo — o due
process of law — quanto a acusação, no sistema judicial dos
Estados Unidos, são opções, respectivamente, do acusado e
dos agentes públicos encarregados da persecução penal; ao
contrário daqui, aonde tanto o processo quanto a acusação
são obrigatórios quando se verificam determinadas circunstâncias12.
Ora, entre nós, ao sistema de controle social fundado no
princípio da obrigatoriedade também se associa um modelo
repressivo de controle social, adequado à administração de
uma sociedade onde o mercado e as opções não eram estimulados. Quando não há opções, ou elas se resumem a
decidir entre o certo e o errado, o sistema de controle se
atualiza através da verificação de erros — fruto de ações e/
ou de omissões — quer dizer, de culpabilizações. Por outro
lado, onde há opções, estas representam escolhas que devem ser realizadas com responsabilidade pessoal. Tais escolhas, tendo ou não alcançado os fins desejados, podem ser
objeto de avaliação e responsabilização dos agentes que as
fizeram, seja para puni-los, seja para premiá-los.
11. Amorim, Maria Stella, Kant de Lima, Roberto e Burgos, Marcelo. Juizados
Especiais Criminais, Sistema Judicial e Sociedade no Brasil: ensaios interdisciplinares. Niterói, Intertexto, 2003
12. Ferreira, Marco Aurélio Gonçalves. O Devido Processo Legal: um estudo
comparado. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004.
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INTELIGÊNCIA
Historicamente, a organização judiciária brasileira
representou originalmente a forma inspiradora da burocracia colonial portuguesa, que implementava um método de controle de comportamentos de seus agentes baseado num sistema rígido de obrigatoriedades de procedimentos e de punições severas pelo erro na execução de tarefas que lhes eram atribuídas. Esta
forma de controle gerava nos agentes da Coroa, de um lado, a propensão para a
inércia e, do outro, uma possibilidade permanente de culpabilização por parte das
autoridades fiscalizadoras, diante das inevitáveis omissões e erros dos agentes
burocráticos. Evidentemente, esta estratégia assegura a permanência de um estado de fragilização permanente entre os quadros da burocracia e a conseqüente
formação de lealdades pessoais que neutralizem tais ameaças potenciais, mas
permanentes, de punição13.
A possibilidade de ação, neste sistema, fica precipuamente incentivada nas
circunstâncias em que, ou se tem a proteção de uma autoridade, que se responsabilizará pelas conseqüências da ação requerida e/ou se tem a pretensão de
obter vantagens particulares, que compensem, de uma forma ou de outra, os
riscos representados pelo agir. Ora, esse foi, comprovadamente, o modelo controle burocrático eficaz e adequado à administração de um império colonial, cuja
dimensão, na época, era extraordinária face às restritas possibilidades dos meios
de comunicação, que geravam dificuldades imensas para avaliação e controle de
resultados das políticas implementadas pelo Reino.
Ausente este contexto, no caso do sistema burocrático judiciário criminal contemporâneo, o sistema da obrigatoriedade pode levar, por exemplo, a uma dificuldade no registro e acompanhamento dos procedimentos judiciários criminais,
por operar distorções estruturais de difícil avaliação. Assim é que no Rio de Janeiro, a impossibilidade de a polícia cumprir o princípio da obrigatoriedade provoca
reação correspondente na figura das verificações preliminares à abertura de inquéritos que, no entanto, são registradas oficiosamente e encapadas como se
inquéritos fossem — em autos. O princípio da obrigatoriedade também leva, no
âmbito do judiciário, a um desnecessário acúmulo de processos iniciados, mas
não concluídos.
13. Schwartz, Stuart B. – Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979.
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INTELIGÊNCIA
Mas, mais do que isto, o princípio da obrigatoriedade como
pedra basilar da persecução penal e do acompanhamento e controle dos procedimentos não
parece atingir, de forma plena, seus objetivos explícitos. Se todos estão sempre sujeitos a errar
quando agem, e a se omitir quando não agem, sem que esta opção de agir ou não agir, seja
sua, quando o agente público é punido por ação ou omissão, tende a predominar, entre os
operadores, a idéia de que houve uma possível injustiça, pois o operador punido poderia estar
somente fazendo aquilo que todos tem que fazer sempre que se põe o sistema burocrático
para funcionar ativamente. Assim, teria sido, apenas, pego em um erro, circunstância que
pode a qualquer um advir. Isso em muito difere da responsabilização dos agentes no sistema
de opções, onde aqueles que não se comportam de acordo as regras ferem a ética profissional: fizeram uma opção deliberada, sendo sua punição o preço que pagam por infringir
regras que devem ser universalmente aplicáveis.
Para agravar os efeitos não desejados deste sistema de fiscalização e controle na polícia,
suas estruturas funcionais são hierarquizadas de maneira excludente, na prática, de tal forma
que a diferença de funções vai-se refletindo em uma desigualdade de posições: na polícia
militar, por um lado, temos duas entradas na profissão, que correspondem a formações e
funções diferenciadas, uma para oficiais outra para praças, sendo que estes dificilmente chegam aos postos mais altos do oficialato; na polícia judiciária, temos várias carreiras, mas a
principal distinção — salarial — se verifica entre os delegados e a tiragem — quer dizer, os
outros agentes policiais. Essas segmentações são acompanhadas de atribuições de autoridade
e de regimes disciplinares diferenciados, o que provoca hiatos de comunicação profissional
entre os segmentos das corporações, com prejuízo para todos. O sistema de culpabilização
revela-se, assim, extremamente perverso, pois usa dois pesos e duas medidas com operadores que estão encarregados de funções equivalentes. Assim a desigualdade decorre, mais
uma vez, da posição do sujeito na hierarquia da carreira e não em razão da responsabilidade
pessoal decorrente da função. É claro que tal situação funcional não estimula a aprendizagem
e a prática de formas de tratamento universal do público a ser atendido pela instituição.
Há outras evidências que apontam para uma ênfase nos modelos repressivos de controle
social por parte da polícia. O tipo de formação institucional que os policiais militares e civis
recebem é de caráter dogmático e instrucional, seja porque ligada ao direito, seja porque
inspirada na formação militar. Esta formação, centrada na obediência aos rígidos cânones da
lei e da hierarquia entre os postos, se revela completamente distanciada daquela necessária
ao bom desempenho das funções policiais, que consistem em tomar decisões em tempo real,
autônomas e independentes, sujeitas à responsabilização posterior, sobre a imprevisível variedade de assuntos que lhes chegam às mãos.
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INTELIGÊNCIA
Como eu e outros cientistas sociais
Finalmente, a questão da presença do Estado no âmbito
dos direitos individuais que prima por promover a desigualdade jurídica suportada por cidadãos ditos juridicamente
iguais, por definição constitucional, caracteriza uma interpretação do principio da igualdade jurídica própria e específica da sociedade brasileira14. Esta prática, como argumentei, contém uma lógica própria da sociedade vigente no
chamado Antigo Regime, não republicano, no qual a idéia
de direito não implicava a idéia de universalidade de acesso
mas, sim, a idéia de privilégios particulares, próprios de estamentos, que as transformações jurídica e sociais introduzidas pelas revoluções liberais, lideradas pela Revolução Francesa, encarregaram-se de desfazer.
Não é de admirar, portanto, que a obediência da lei tenha representação tão negativa no Brasil, sobretudo quando
tal desobediência está associada a um sinal de status e de
poder. Se no modelo do paralelepípedo a liberdade está
submetida à igualdade, no modelo da pirâmide o contrário
ocorre: a desigualdade é a medida da liberdade de cada
um. Se não é aceita consensualmente, como instrumento de
proteção de todos, a lei pode ser vista como arma de opressão de alguns. Entretanto, entre nós, são bastante comuns
argumentos justificativos da desobediência da lei e, paradoxalmente, de clamor para que sua aplicação seja feita de
forma severa e implacável sobre as faltas — geralmente,
alheias — como imperativo da construção de uma ordem
social mais justa. Não se cogita desenvolver esforços racionais e pacíficos em favor da necessária aceitação da lei plena e justa, como forma mais adequada aos tempos atuais de
conseguir o seu cumprimento. Por outro lado, não parece
paradoxal a ninguém o fato de se exigir a sua obediência
por todos, de igual maneira, assim como a sua conseqüente
internalização pelos cidadãos, embora deveres e direitos nela
prescritos sejam desigualmente distribuídos entre eles.
temos reiteradamente argumentado em nossos trabalhos, é
provável que as dificuldades do Brasil com a efetividade dos
instrumentos institucionais de administração de conflitos no
espaço público, que se refletem nos problemas que a sociedade brasileira tem enfrentado nas áreas da segurança pública e do acesso à justiça, estejam estreitamente relacionadas à inversão estrutural concedida ao significado atribuído
à lei, que, ao invés de representar um mecanismo de proteção de todos, acaba por representar um mecanismo de opressão, por ser aplicada de forma desigual. Suponho, ainda,
que a superação do princípio de oportunidade e dos mecanismos de responsabilização pelo sistema de obrigatoriedade/ culpabilidade, seja responsável pelo sentimento geral
de impunidade que tradicionalmente se infiltra nas representações de nossa sociedade.
A consideração de alternativas que levem em conta os
contrastes discutidos aqui e os efeitos desejados e não desejados de cada uma dessas combinações, me parece ser o
caminho mais acertado para a formulação de políticas públicas mais eficazes para atender aos anseios contemporâneos de democracia e paz social da sociedade brasileira.
Agradeço a leitura atenta e as alterações sugeridas por Regina Lúcia Teixeira
Mendes. Algumas das idéias aqui expostas foram previamente discutidas em
Amorim, Maria Stella, Kant de Lima, Roberto e Teixeira Mendes, Regina
Lúcia. Introdução. In Ensaios sobre a igualdade jurídica: acesso à justiça criminal e direitos de cidadania no Brasil, no prelo.
e - m a i l :
k a n t @ w e b 4 u . c o m . b r
14. Teixeira Mendes, Regina Lúcia. Princípio da Igualdade à Brasileira: cidadania como instituto jurídico no Brasil. In Revista de Estudos Criminais Ano
4, no. 13. Porto Alegre, TEC, 2004, pp.81-98
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