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Aonde foi parar a crise dos derivativos?
Há dois anos podíamos perceber a formação de uma tempestade sem
precedentes em Wall Street, centro nervoso do mercado financeiro mundial. Os
sinais de desequilíbrio e de uma catástrofe iminente se intensificavam nos
radares dos especialistas. Finalmente, em setembro de 2008, o impensável
aconteceu, veio ao chão o gigante Lehman Brothers. Junto com ele foram
varridos do mapa da elite financeira, ao menos da maneira como conhecíamos,
ícones como: Merrill Lynch, Washington Mutual, AIG, Bear Stearns, Wachovia,
Fannie Mae e Freddie Mac entre outros.
No Brasil, um dos principais efeitos de tais acontecimentos foi o deslocamento
imediato do mercado de câmbio. O dólar, que seguia por meses com
baixíssima volatilidade, em torno de R$ 1,60, subitamente disparou atingindo o
pico de R$ 2,50 nos meses subsequentes. Tal desequilíbrio desorganizou,
embora momentaneamente, a lógica das operações de proteção, via
derivativos, realizadas entre empresas e bancos.
Tanto o ambiente de bolsa como o de balcão, onde as negociações são
bilaterais, houve intensa necessidade de ajustes de forma a reduzir o risco de
contraparte. Em bolsa, isso ocorreu via alteração do patamar de ajustes diários;
e, em balcão, via verificações, espécie de ajuste contratual definidos entre os
bancos e seus clientes.
Algumas grandes empresas haviam avançado muito além das operações de
hedge propriamente ditas e se alavancaram de forma insustentável no novo
cenário. Na esteira do pânico criado pela divulgação dos imensos problemas
que enfrentavam essas empresas, dezenas de outras, menores, passaram a
alegar que os contratos firmados com os bancos em um momento de baixa
volatilidade haviam se tornado inviáveis. Não fosse o movimento firme e
determinado do Banco Central (BC), o fantasma do rompimento unilateral de
contratos teria colocado por terra anos de desenvolvimento institucional. Todo
esse debate no Brasil foi perigosamente impulsionado pelos acontecimentos
nos EUA.
A despeito de os veículos de securitização de créditos duvidosos terem sido os
principais instrumentos de disseminação da crise, um tipo especial de
derivativos, os de crédito, foram largamente utilizados como suporte dessas
operações. Impactados pela crise, eminentes políticos americanos iniciaram
uma cruzada de demonização dos derivativos de balcão, não negociados em
bolsa. Na verdade uma simplificação do problema, uma vez que os derivativos
de crédito constituíam apenas uma parte menor do total do valor dos
derivativos de balcão no mundo à época. (Volume total de derivativos de
balcão em julho de 2008: US$ 684 trilhões em comparação com algo em torno
de US$ 57 trilhões de "credit defaul swap").
Ocorre que na Europa e Estados Unidos, diferentemente do Brasil, os
derivativos de balcão são contratos bilaterais, sem nenhum tipo de registro
centralizado e em muitos casos não se subordinavam a nenhum tipo de
regulação.
Dois anos depois, para decepção daqueles que previam o caos, o sistema
financeiro brasileiro está bem. A exigência de registro de todas as operações
entre bancos e seus clientes em ambiente autorizado pelo BC, BM&FBovespa
e Cetip, provou-se extremamente benéfica, trazendo alto grau de transparência
e sobretudo resiliência ao sistema como um todo. Vale mencionar que a
primeira resolução exigindo o registro data de 1994, portanto muito a frente do
mercado internacional.
Ainda assim o mercado não parou. Buscando diminuir as brechas existentes
nos derivativos diretamente contratados no exterior, O Banco Central produziu
três normas importantes em tempo mínimo - Circular 3.474 e as Resoluções
3.824 e 3.833. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) publicou a Instrução
475 aprimorando a apresentação de informações sobre instrumentos
financeiros por parte das empresas. E, no âmbito da Febraban, um grupo de
profissionais, entre os quais me incluo, conceberam e implementaram a Central
de Exposição de Derivativos (CED), algo ainda hoje impensável nos Estado
Unidos e Europa.
Nos Estados Unidos, onde desde a crise a tendência é de forçar a migração de
todos derivativos de balcão para o ambiente de bolsa, o presidente Obama só
conseguiu aprovar a proposta de reforma do sistema financeiro - Dodd-Frank
Act - no último 21 de Julho. O documento preconiza a migração dos derivativos
de balcão para o ambiente de bolsas bem como a separação nos bancos de
algumas atividades relacionadas com derivativos em empresas afiliadas.
Tal regulação deve ser detalhada até julho de 2011, mas antigas questões
permanecem em aberto, tais como que tipo de derivativo pode ser considerado
padronizado e, portanto passível de migrar para ambiente de contraparte
central? Como deverão ser as plataformas de negociação eletrônicas de
derivativos não padronizados? O que caracteriza um swap-dealer e quanto
capital será requerido?, para citar apenas algumas questões que têm tirado o
sono dos legisladores nos últimos dois anos.
Na Europa, por sua vez, um grupo de multinacionais alertou a Comissão
Europeia quanto aos riscos da padronização dos derivativos de balcão e da
exigência de sua negociação via centrais contrapartes. Além da falta de
customização necessária em operações complexas, a gestão de caixa das
empresas seria comprometida pela necessidade dos ajustes e margens diárias
inerentes a uma operação de uma entidade de contraparte central. No extremo,
o comprometimento do capital de giro pode prejudicar a própria capacidade de
investimento produtivo das empresas.
De qualquer forma, enquanto os números voltam a crescer - o valor de
derivativos de balcão no mundo alcançou o patamar pré-crise em julho de
2009, com US$ 614 trilhões - ficamos cada vez mais distantes de uma
regulação global, capaz de evitar arbitragens regulatórias e aumentar a
transparência dos mercados.
No Brasil, temos que evoluir, principalmente no que diz respeito à capacitação
dos profissionais em empresas não financeiras e aprimoramento dos processos
de governança corporativa, mas não podemos deixar de mencionar o elevado
grau de maturidade dos agentes participantes do mercado financeiro, que em
meio a mais severa crise dos últimos 50 anos, foram capazes de engendrar
soluções tão inovadoras como a Central de Exposição de Derivativos.
Jorge Sant'Anna – "Head" de reengenharia do Citi e ex-diretor
superintendente da Cetip. Artigo publicado no jornal Valor Econômico em
01/11/2010.