Reflectindo sobre o valor da música

Transcrição

Reflectindo sobre o valor da música
Reflectindo sobre o valor da música
Michel Gal (Licenciado em música)
Introdução
Certa vez um aluno perguntou ao seu professor de música: “O que é a música?” O
mestre respondeu-lhe: “A música é um fenómeno acústico para o prosaico; um
problema de melodia, harmonia e ritmo para o teórico; e o desdobramento das asas da
alma, o despertar e a realização de todos os sonhos e anseios de quem verdadeiramente
a ama...”1
Falar da música é falar de arte, e falar de arte é falar de Deus.
Deus é um artista; aliás, o maior Artista do universo. Toda a Sua criação respira beleza,
equilíbrio, profusão. Do infinitamente grande ao infinitamente pequeno, a ordem e a
simetria andam juntamente com a exuberante variedade de formas, cores, odores, sons.
O mundo está repleto de sons. Alguns tão potentes como o bramir do mar ou o ribombar
do trovão; outros, suaves como a canção da chuva, ou os trilos dos passarinhos. Cada
animal tem o seu grito, o seu canto. Cercado de sons tão diferentes, o ser humano bem
cedo aprendeu a moldá-los, a fazer música.
Música – voz e instrumentos
O primeiro instrumento musical, o mais belo também porque o mais humano, foi a voz.
Voz terna de uma mãe que embala o seu bebé,
Voz rude dos homens que ritma a sua labuta diária,
Voz do poeta maravilhado diante da natureza,
Voz dos guerreiros, acompanhada de tambores, que multiplica a coragem na batalha,
Voz do namorado que quer conquistar a sua bela,
Voz do crente que louva o seu Deus.
Pouco a pouco, a música ganha em complexidade; a monódia (melodia a uma só voz)
torna-se polifonia a duas ou mais vozes; instrumentos musicais surgem para
acompanhar o canto – Génesis 4:21 fala de Jubal, “pai de todos os que tocam harpa e
órgão” – e vêm enriquecer a harmonia e o ritmo. A música transforma-se numa
verdadeira arte, a “arte de combinar os sons de maneira agradável ao ouvido”.2
Desde então ocupou um lugar de destaque no meio das outras artes. Não só porque foi,
juntamente com a dança, a primeira a aparecer. Mas talvez porque, não sendo tão
objectiva na sua representação do mundo, como a pintura ou a escultura, por exemplo,
ela pode ir mais longe e transmitir mais emoções e sentimentos. É grande o leque de
sentimentos que se podem exprimir através dos sons: do júbilo à resignação, da tristeza
à cólera, do amor à devoção religiosa...
Todavia, a música não se contenta a exprimir sentimentos, ela é capaz de provocar
pulsões, de estimular instintos. Tem uma influência poderosa sobre o corpo e a mente
humanos.
1
Música e corpo
O efeito dos sons sobre o corpo humano foi estudado e verificado por vários cientistas.
O resultado das suas pesquisas é que não existe uma só parte do corpo que não sofra a
influência dos tons musicais.
A digestão, a circulação sanguínea, a respiração, as secreções internas, os músculos, são
afectados pela música.
O ritmo, em particular, tem poderoso efeito sobre as batidas cardíacas. Um “tempo” que
tenha mais ou menos uma pulsação igual à do coração tende a acalmá-lo; um ritmo mais
lento – sobretudo se acompanhado de sons graves – gera uma certa tensão, enquanto
que se for muito acelerado aumenta a cadência das pulsações do coração e, portanto, a
excitação emocional.
Outro factor capital é o volume do som. Sabemos que um som superior a 90 decibéis
põe em risco a saúde humana. Ora, verificou-se que o valor médio de decibéis no meio
das discotecas é de mais de 100. Não nos admiremos, pois, que segundo o
Departamento de Protecção Ambiental dos Estados Unidos, a actual geração de jovens
sofra de patologias auditivas próprias a pessoas de 60 e mais anos...
Música e mente
Desde os tempos imemoriais que os homens conhecem o poder da música sobre a
mente. Eis alguns dos efeitos que ela produz:
O efeito estimulante – Conhecido desde que existem músicas guerreiras e militantes;
levado ao extremo, por levar ao frenesim ou à violência.
O efeito relaxante ou soporífico – O contrário do precedente. Bem conhecido das mães
que querem adormecer os seus bebés (estes, às vezes, ignoram-no!). Levado ao extremo,
pode induzir à hipnose.
O efeito pacificador, ou curativo – Um bom exemplo é David acalmando o rei Saul
com os acordes suaves da sua harpa 3. Hoje, fala-se em musicoterapia.
O efeito angustiante – Certas músicas muito repetitivas ou dissonantes podem gerar
angústia, sobretudo quando se está um pouco “em baixo”. Os filmes de “suspense”
usam e abusam deste efeito.
O efeito “saudade” – Quem nunca sentiu uma certa nostalgia ao ouvir uma música
talvez um pouco triste e docemente romântica? Este sentimento não é desagradável de
todo...
Além destes efeitos sobre a mente, a música desempenha desde sempre duas funções
muito importantes:
A função religiosa – A religião e a música andam muitas vezes juntas, para o melhor
ou para o pior. Dos lancinantes tambores Vodu à Paixão segundo S. Mateus de Bach, a
música tem este efeito de despertar e nutrir sentimentos religiosos no homem. Como diz
Baudelaire: “Mais do que qualquer outra arte, a música é capaz de suscitar em nós o
desejo da plenitude, do divino.”
A função social – A música tem o poder de aproximar as pessoas. A cada ocasião a sua
música: alegre para uma festa, lúgubre para um funeral, íntima para um “tête-à-tête”...
Nos jovens, este papel social da música é mais importante ainda.
2
Qual música?
Será que toda a música é boa para ser ouvida?
Tal como vimos, nem todos os efeitos que ela produz no ser humano são positivos. Há,
portanto, que ser criterioso na escolha do que se deve ouvir. Toda a música que seja
muito repetitiva, com uma intensidade demasiada alta, um ritmo demasiado martelado e
rápido, devia ser excluída. Estas características encontram-se nas músicas favoritas da
maior parte da juventude actual, tais como o “rock”, o “rap”, o “tecno”, etc. Geralmente
ouvidas com o som no limite do suportável, elas veiculam muitas vezes uma ideologia
baseada na violência, no sexo, no consumo de drogas, na rebeldia contra toda a
autoridade e contra Deus.
Espelho do nosso tempo, esta música reflecte a falta de valores e a violência da nossa
sociedade, que oferece poucas perspectivas de vida válidas para os jovens. Mas será o
papel da música tornar o mundo ainda pior ou, pelo contrário, tentar amenizá-lo? Como
afirma Kurt Pahlen:
“A música é, nas mãos dos homens, um feitiço; o seu efeito estende-se desde o
despertar dos mais nobres sentimentos até o desencadeamento dos mais baixos instintos,
desde a concentração devotada até a perda da consciência que parece embriaguez, desde
a veneração religiosa até a mais brutal sensualidade.”4
Saibamos escolher o lado bom da música!
A música, a arte do tempo
À diferença da escultura, da pintura e da arquitectura que requerem espaço, a música
desenvolve-se no tempo. É nos possível, num abrir e fechar de olhos, apreender a beleza
do maior quadro do mundo, ou admirar a grandeza da mais imponente catedral. A mais
curta peça musical exige o nosso tempo. Essa necessidade temporal explica talvez
porque, entre todas as artes, o mundo da música não é o mais fácil de penetrar em
profundidade. Para poder apreciá-la é preciso não só tempo, mas também um mínimo
de cultura musical: não se gosta do que se não conhece.
Nunca é cedo demais para criar o hábito de ouvir boa música. Em Portugal, já se
realizam concertos para bebés de poucos meses, e os resultados são muito
encorajadores: os pequeninos parecem gostar muito da experiência, e os seus pais
também!
Ainda mais cedo, no ventre da sua mãe, o feto é influenciado pelos sons. Ele já tem, a
partir da 24ª semana, o seu aparelho auditivo perfeitamente funcional e ouve múltiplos
sons tanto do seu “universo interior” intra-uterino bem com do “universo exterior”. A
partir dos 8 meses da gravidez o bebé habitua-se a certos ruídos e músicas: uma canção,
a voz da sua mãe... Após o nascimento, ele lembrar-se-á destes experiências musicais,
que serão capazes de o fazer reagir, calmando o seu choro, por exemplo.
Os 5 níveis da comunhão musical
A pergunta que se impõe agora é: ouvir (boa) música, sim, mas de que maneira?
À semelhança dos conhecidos “5 níveis da comunicação”, podemos desfrutar a música a
diferentes níveis, do mais superficial ao mais profundo.
3
O nível 5 é utilizar a música como “ruído de fundo”. Pode ser em casa entre amigos,
num supermercado ou até na igreja. É claro que, nestas condições, não a podemos
apreciar devidamente, ela tem apenas o objectivo de criar ambiente, predispor-nos a
comprar coisas, ou tentar baixar o nível das conversas na igreja (efeito não garantido!).
O nível 4 é atingido quando damos à música a plena atenção que ela merece.
Confortavelmente instalado no nosso sofá favorito, só ou (bem) acompanhado, pomos o
CD de uma música que escolhemos, porque gostamos dela ou porque queremos
descobri-la. Abrimos bem grande os nossos ouvidos... E um mundo de emoções, de
imagens e de sonhos abre-se diante de nós.
Já para o nível 3 é preciso sair de casa, quebrar a rotina, vencer a preguiça, gastar até
um pouco do nosso dinheiro... Estamos agora numa grande sala de concerto, para ouvir
uma orquestra de renome. Podemos sentir a atmosfera eléctrica particular a estes
lugares. Entram os músicos e o maestro, afinam-se os instrumentos... E a magia começa.
Agora, todos os nossos sentidos participam: os olhos seguem atentamente os
instrumentistas e o chefe, os ouvidos estão cheios de sons plenos, potentes, a cortar o
fôlego, ou ao contrário incrivelmente ténues, numa estereofonia impossível de realizar
numa gravação. O entusiasmo dos músicos, a sua inspiração e perfeita sincronização
arrebatam-nos, temos consciência de viver um momento único.
Para atingir o nível 2, é preciso ir mais longe ainda. Para sentir plenamente os
benefícios da música não podemos ficar só do lado dos espectadores. É na prática da
música que conseguimos perceber, realmente, o seu significado mais profundo. Não
estou a falar unicamente de uma prática profissional, mas também amadora, no sentido
forte da palavra – aquele que ama. Pode ser, por exemplo, cantar num coro, ou aprender
um instrumento.
Quem já participou num grupo coral sabe o bem profundo que resulta desta actividade,
tanto a nível físico, mental, espiritual ou social.
Por outro lado, está provado que a aprendizagem de um instrumento contribui para a
formação de uma personalidade e de um carácter equilibrados. Qualidades como a
organização, a concentração, a disciplina, a sensibilidade, desenvolvem-se mais
plenamente com a prática musical.
Chegamos ao nível 1, fim da nossa viagem, ou melhor, começo, porque é a base que
suporta todos os outros níveis e que sem ele, eles nem sequer existiriam. Estamos agora
no coração da música, no instante em que ela é gerada. A este nível, só chegam alguns –
os compositores. Homens geniais, possuidores de um dom especial vindo de Deus, eles
usam os sons, como os poetas as palavras, para criarem obras primas, verdadeiras jóias
da humanidade.
Será a música útil?
Será que poderíamos viver sem música? Com certeza. Ela não é um bem de primeira
necessidade. Poderíamos viver também sem pintura, sem literatura, sem poesia... e, se
calhar, a maior parte do tempo, é o que fazemos. Jesus disse, certa vez: “Nem só de pão
viverá o homem...”5. Embora o contexto fosse outro, e Jesus não falasse aqui de arte, o
sentido profundo é o mesmo: precisamos de nos elevar, de não viver só ao nível carnal,
4
material, ou mesmo intelectual. A nossa alma também precisa ser nutrida; o seu
alimento pode ser a meditação, a contemplação, a poesia, a música...
Afinal , fomos feitos à imagem de Deus, temos esta capacidade de reconhecer a beleza;
mais ainda, temos a capacidade de a criar. E para ser plenamente humanos, diferentes de
qualquer animal, teremos de desenvolver aquelas nossas mais nobres faculdades, o
senso do Bem, do Bom, do Belo.
1
Kurt Pahlen, História Universal da Música, Edições Melhoramentos, São Paulo.
Dicionário Prático Ilustrado Lello.
3
I Samuel 16:14-23.
4
História Universal da Música, Edições Melhoramentos, São Paulo.
5
Mateus 4:4.
2
5