Aproximações à Teoria Crítica Feminista

Transcrição

Aproximações à Teoria Crítica Feminista
Boletim do Programa de Formação N° 1 – Ano 1 – Junho 2014
APROXIMAÇÕES
À TEORIA CRÍTICA
FEMINISTA
Rosa Cobo Bedía
Rosa Cobo Bedía
Professora de Sociologia e Diretora do Centro de Estudos de
Gênero e Feministas da Universidade da Coruña. Sua linha de
investigação principal é a teoria feminista e a sociologia do
gênero. Em 2011 publicou o livro “Hacia una nueva política
sexual”.
© Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres – CLADEM
Programa de Formação
Jr. Estados Unidos No 1295 Dpto. 702 Lima 11, Peru
Telefax: (511) 463-5898
Email: [email protected]
Página web: www.cladem.org
Autora:
Rosa Cobo Bedía
Editora:
María Edit Oviedo
Responsável do Programa de Formação
Coordenação da edição:
Verónica Aparcana
Tradução:
Valéria Pandjiarjian
Desenho e Diagramação:
Orietta Guitérrez
Primeira edição (original: espanhol)
Elaborado: abril 2014
Edição em português, junho 2014
A elaboração do presente documento foi possível graças ao apoio do Ministério de Relações
Exteriores da Holanda, através do projeto FLOW.
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Índice
Apresentação
4
Introdução
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PRIMEIRA PARTE
1.- Categorias fundamentais do paradigma feminista: gênero e
patriarcado
2.- Século XVIII: A Ilustração europeia e o paradigma da igualdade. A
Ilustração patriarcal e a Ilustração feminista: Mary Wollstonecraft e
Vindicação dos direitos da mulher
3.- Século XIX: O movimento sufragista na Europa e América. Debates
entre marxismo e feminismo. Stuart Mill e Harriet Taylor: A sujeição
das mulheres
4.- Século XX: O segundo sexo de Simone de Beauvoir e A mística
feminina de Betty Friedan. O surgimento do feminismo radical
norte-americano: Kate Millett e Shulamith Firestone. Feminismo da
Diferença
5.- Século XXI: Novas correntes feministas: feminismo pós-moderno,
feminismo multiculturalista e teoria queer
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21
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SEGUNDA PARTE
O feminismo na América Latina, América Central e no Caribe. Os inícios do
feminismo. Debates feministas na América Latina.
Reflexões finais
Bibliografia
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48
50
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Rosa Cobo Bedía
Apresentação
Desde o Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM), como organização regional feminista, há mais de 26 anos articulamos pessoas e organizações da América Latina e do Caribe e, a partir de um enfoque jurídico-político, buscamos
aportar à transformação social e à construção de democracias radicais, desde uma perspectiva
de interseccionalidade, que reconhece a diversidade cultural, étnico-racial, sexual e social, para
o pleno exercício e desfrute dos direitos humanos das mulheres.
A rede surge a partir da iniciativa de um grupo de companheiras visionárias feministas latino-americanas, da Ásia e África, reunidas em Nairobi durante a Terceira Conferência Mundial sobre
a Mulher, na qual se realiza um encontro sobre as mulheres, o direito e o desenvolvimento.
Com o status consultivo perante a ONU, OEA e UNESCO, e o resultado do reconhecimento do
trabalho que desenvolvemos na região, fomos laureadas com o Prêmio Gruber em reconhecimento ao trabalho e compromisso na promoção e defesa da liberdade sexual e reprodutiva
das mulheres e com o Prêmio de Direitos Humanos Rei da Espanha, em sua Terceira Edição.
No marco do Projeto “Aprofundando as estratégias para a execução e justiça no cumprimento
dos direitos das mulheres a uma vida livre de violência e ao acesso à Justiça na América Latina e no
Caribe”, apoiado pelo Ministério de Relações Exteriores da Holanda através do Projeto Fundos
Flow, nos propusemos aprofundar na defesa, e promover a exigibilidade e justiciabilidade dos
direitos humanos das mulheres na América Latina e no Caribe.
Com uma visão feminista e crítica do direito, através do litígio internacional, do monitoramento
dos Estados e do fortalecimento da capacidade das associadas para a análise e argumentação político-jurídica, o acordo de agendas e o desenho de estratégias e cursos de ação para
atuação política local e regional, contribuímos para denunciar os mecanismos e dispositivos
do sistema patriarcal que criam e reproduzem os espaços de subordinação, discriminação e
opressão das mulheres na região.
Desde o Programa de Formação, com o objetivo de contribuir ao debate, ao aprofundamento
das argumentações jurídico-político-feministas e aportar à construção de novos conhecimentos, propusemo-nos recuperar as reflexões e interpretações teóricas, históricas e políticas sobre cinco temas chaves para o fortalecimento do trabalho jurídico-político do CLADEM através
de cinco boletins temáticos que serão difundidos entre as associadas e organizações aliadas
da rede.
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Aproximações à Teoria Crítica Feminista
Nesta oportunidade, apresentamos o primeiro boletim que aborda o tema de ¨Aproximações
à teoria crítica feminista¨, percorrendo algumas interrogantes que nos temos feito enquanto
rede, com a intencionalidade de recuperar os processos históricos do feminismo, as premissas
conceituais, os principais aportes do feminismo à construção como categoria política da modernidade, assim como os desafios para o movimento feminista frente ao contexto histórico da
América Latina e do Caribe.
Esperamos que este aporte de Rosa Cobo, a quem agradecemos suas reflexões e o generoso
compartilhar de seus conhecimentos, contribua para nutrir à reflexão teórica político-jurídica
feminista e aporte ao aprofundamento das estratégias políticas que permita incidir nos centros
do poder e do direito, interconectando os planos internacional, regional e local para a defesa,
promoção e exigibilidade dos direitos das mulheres.
Com este esforço esperamos, como rede, alentar a repensar sobre os desafios que temos como
parte do movimento feminista, e apostas que devemos fazer para aprofundar as alianças estratégicas com vistas à construção de uma agenda mais inclusiva, diversa e articulada, plural e
democrática, com diversos movimentos sociais, que nos permita integrar na agenda de luta as
múltiplas discriminações com o objetivo de acabar com a desigualdade e a falta de liberdade,
autonomia e igualdade das mulheres, a fim de que os direitos humanos conquistados sejam
uma realidade na vida cotidiana das mulheres na América Latina e no Caribe.
Elba Beatriz Núñez Ibáñez
Coordenadora Regional
CLADEM
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Rosa Cobo Bedía
Introdução
Nesta publicação faz-se uma breve síntese da história do feminismo, de seus debates e suas
discussões, desde sua origem no século XVIII até o século XXI, centrada basicamente nos continentes europeu e americano. Nas sociedades civis americanas e europeias – como também nas
de outros continentes – ocorreram ações políticas protagonizadas pelo movimento feminista
com o objetivo de acabar com a desigualdade e a falta de liberdade e autonomia das mulheres.
E nas universidades e instituições acadêmicas desses continentes foram elaboradas teorias e
cunhadas categorias com o objeto de explicar as causas da opressão das mulheres e os mecanismos que possibilitam sua reprodução.
Neste texto nos aproximaremos cronologicamente – XVIII-XXI − a teorias, conceitos e alguns
acontecimentos políticos protagonizados pelo movimento feminista. Entre os conceitos fundamentais do feminismo, as categorias de gênero e patriarcado, como parte indiscutível do
paradigma feminista, serão o ponto de partida deste texto. Esta publicação finaliza com a bibliografia consultada para a elaboração deste trabalho.
O resultado destes três séculos de práticas políticas feministas traduziu-se em mudanças culturais e políticas para muitas mulheres. No entanto, a própria existência desta publicação deixa
claro que são muitas as mulheres que não se beneficiaram dessas mudanças. As lutas feministas transformaram o rosto de muitas sociedades e a vida de muitas mulheres, mas a ausência
do feminismo em diversas regiões do mundo se faz notar em termos de menores espaços de
liberdade, autonomia e igualdade para as mulheres dessas sociedades, nas quais o feminismo
não pôde, por diversos motivos, germinar. Por isso, neste começo de século o feminismo é mais
necessário que nunca. A pobreza e as velhas e novas formas de violência patriarcal exigem um
fortalecimento moral e político do feminismo em escala global.
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PRIMEIRA
PARTE
Rosa Cobo Bedía
1.Categorias Fundamentais do Paradigma Feminista
O conceito de gênero
A teoria feminista, em seus três séculos de história, configurou-se como um marco de interpretação da realidade que visibiliza o gênero como uma estrutura de poder. Celia Amorós assim
o explica: “Neste sentido, pode se dizer que a teoria feminista constitui um paradigma, um
marco interpretativo que determina a visibilidade e a constituição como fatos relevantes de
fenômenos que não são pertinentes nem significativos desde outras orientações da atenção.”1
8
1
AMORÓS, CELIA. “El punto de vista feminista como crítica”, in Carmen Bernabé (Dir.), Cambio de paradigma, género y eclesiología,
Verbo Divino, Navarra, 1998, p. 22.
Aproximações à Teoria Crítica Feminista
Dito em outros termos, os paradigmas e marcos de interpretação são modelos conceituais que
aplicam uma visão intelectual específica sobre a sociedade e utilizam certos conceitos a fim
de iluminar algumas dimensões da sociedade que não se podem identificar a partir de outros
marcos interpretativos da realidade social.
Assim, a teoria feminista revela todas aquelas estruturas e mecanismos ideológicos que reproduzem a discriminação ou exclusão das mulheres dos diferentes âmbitos da sociedade.
Da mesma forma que o marxismo deixou claro a existência de classes sociais com interesses
divergentes e identificou analiticamente algumas estruturas econômicas e tramas institucionais inerentes ao capitalismo, realidades que depois traduziu em conceitos − classe social ou
mais-valia −, o feminismo desenvolveu uma visão intelectual e política sobre certas dimensões
da realidade que outras teorias não haviam sido capazes de conceitualizar. Neste sentido, os
conceitos de violência de gênero, assédio sexual, feminícidio, gênero, patriarcado ou androcentrismo, entre outros, foram cunhados pelo feminismo. Em definitivo, o que este marco de
interpretação da realidade manifesta é a existência de um sistema social no qual os varões
ocupam uma posição social hegemônica e as mulheres uma posição subordinada.
A categoria de gênero, assim como outras noções cunhadas para dar conta da posição social
de desvantagem das mulheres ao largo da história, forma parte de um corpus conceitual, de
caráter transdisciplinar, e de um conjunto de argumentos construídos já há três séculos, cujo
objetivo foi revelar os mecanismos e dispositivos que criam e reproduzem os espaços de subordinação, discriminação e opressão das mulheres em cada sociedade.
É neste contexto que a categoria de gênero adquire sentido. De fato, este conceito é cunhado
no ano de 1975 pela antropóloga feminista Gayle Rubin, e desde esse momento irá se converter em uma das categorias centrais da teoria feminista.
Desde então até agora, essa categoria se desenvolveu em várias direções, e falaremos de algumas delas neste texto. Em primeiro lugar, o uso mais generalizado do conceito de gênero
refere-se à existência de uma normatividade feminina edificada sobre o sexo como fato anatômico. O significado dessa categoria alude às prescrições que as mulheres têm nas sociedades
patriarcais. Ser mulher significa assumir um modo de estar no mundo no qual a maternidade, os cuidados, o trabalho doméstico, a heterossexualidade e a ausência de poder são características constitutivas do gênero feminino. Estas atribuições práticas vão acompanhadas
de estruturas simbólicas acordes com essas práticas, de tal modo que cada sociedade produz
um modo específico de ser mulher que, coativamente, persuade as mulheres a aceitarem esse
modelo normativo.
Em segundo lugar, essa normatividade feminina repousa sobre um sistema social em que o
gênero é um princípio de hierarquização que designa espaços e distribui recursos a varões e
mulheres. Dito de outra forma, as normatividades masculina e feminina se inscrevem em espaços sociais marcados pela divisão sexual do trabalho. O espaço público-político foi desenhado
pelos varões e para os varões, enquanto o espaço privado-doméstico foi criado pelos varões
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Rosa Cobo Bedía
para as mulheres. O conjunto de espaços institucionais e simbólicos sobre os quais se assentam
as normatividades de gênero é o que a teoria feminista denomina patriarcado.
O gênero opera como uma estrutura de poder, da mesma forma que a classe, a raça ou a cultura. As sociedades estão organizadas a partir de determinadas lógicas sociais de domínio. Pois
bem, o gênero é uma categoria que dá conta de uma forma de organizar hierarquicamente
as relações entre homens e mulheres em cada sociedade. O conceito de gênero identifica os
espaços materiais e simbólicos nos quais as mulheres têm uma posição de desvantagem social.
Pois bem, tal e como aponta Lidia Cirillo,2 o gênero não é um conceito estático, mas dinâmico.
A desigualdade de gênero e seus mecanismos de reprodução não são estáticos nem imutáveis,
modificam-se historicamente em função de distintos processos sociais, entre eles, a capacidade das mulheres para se articularem como um sujeito coletivo e persuadirem a sociedade da
justiça de suas vindicações políticas. Da mesma forma, há que destacar que as diferenças de
gênero não são só históricas mas também culturais. A religião, a raça, o pertencimento étnicocultural e outras variáveis influem notavelmente na organização social das relações de gênero.
Em terceiro lugar, o gênero converteu-se em um parâmetro científico necessário nas ciências
sociais. De fato, o feminismo tem utilizado o conceito de gênero nestes últimos trinta anos
como uma variável de análise que alarga os limites da objetividade científica. A irrupção dessa
variável nas ciências sociais provocou mudanças que já parecem irreversíveis. A introdução do
enfoque feminista nas ciências sociais teve como consequência a crise de seus paradigmas e
a redefinição de muitas de suas categorias. Seyla Benhabib explica que, quando as mulheres
entram para formar parte das ciências sociais, seja como objeto de investigação ou como investigadoras, movem-se os paradigmas estabelecidos e questiona-se a definição do âmbito de
objetos do paradigma de investigação, suas unidades de medida, seus métodos de verificação,
a suposta neutralidade de sua terminologia teórica ou as pretensões de universalidade de seus
modelos e metáforas.3 Por isso, tal e como adverte Amorós, há que se fazer do feminismo um
referencial necessário, se não se quer ter uma visão distorcida do mundo, nem uma consciência
enviesada de nossa espécie. Neste sentido, o gênero é uma categoria de análise necessária,
pois amplia os limites da objetividade científica ao mostrar espaços que são cegos para outros
paradigmas teóricos.
2 CIRILLO, Lidia (2005). “Virtualidades pedagógicas del feminismo para la izquierda”, in Revista Internacional de Filosofía Política
(UNED-Madrid/UAM-México), nº 25, 2005, p. 42 e ss.
10
3 BENHABIB, Seyla. “Una revisión del debate sobre las mujeres y la teoría moral”, in Isegoría. Revista de Filosofía Moral y Política
(CSIC), nº 6, 1992, p. 38.
Aproximações à Teoria Crítica Feminista
O conceito de patriarcado
No ano de 1969, no contexto do feminismo radical, uma de suas feministas mais célebres, Kate
Millett, escreveu um livro que se converteu por mérito próprio em um clássico da teoria feminista: Política sexual. Neste famoso texto, Millett cunhará o termo patriarcado com um significado feminista. Com efeito, definirá o patriarcado como um sistema de domínio masculino
que utiliza um conjunto de estratagemas para manter subordinadas as mulheres4 e, ademais,
revelará seu caráter global: “Embora a instituição do patriarcado seja uma constante social tão
profundamente arraigada que se manifesta em todas as formas políticas, sociais e econômicas,
já se trate das castas e classes ou do feudalismo e da burocracia, e também nas principais religiões, mostra, não obstante, uma notável diversidade, tanto histórica como geográfica.”5 Há
que destacar que a própria Millett confere a esse conceito um significado sociológico e histórico, muito distante, portanto, de qualquer conteúdo essencialista.
O patriarcado, portanto, não é uma unidade ontológica6 nem uma invariante alheia à história,
mas uma antiga e perdurável construção social, cujo traço mais significativo é sua universalidade. Também há que destacar seu caráter adaptativo, ao extremo de se constituir em estrutura
central de todo tipo de sociedades, sejam tradicionais ou modernas, do norte ou do sul, ricas
ou pobres. Nem as distintas religiões, nem as diferentes formas de Estado, nem os distintos
tipos de economia, nem as diversas culturas, organizações sociais, formas raciais ou outro tipo
de estruturas são um obstáculo na formação das sociedades patriarcais. Ao revés, em alguns
casos, como é o das religiões, convertem-se em fontes inesgotáveis de sexismo.
É que em todas as sociedades e comunidades – desde as mais próximas até as mais distantes − o controle dos recursos econômicos, políticos, culturais, de autoridade ou de autonomia
pessoal, entre outros, estão em mãos masculinas. Contudo, o patriarcado não é uma estrutura
imutável e fixa que se incrusta da mesma forma em todas as sociedades. Ao contrário, sua
imensa capacidade de adaptação adquire dimensões quase fusionais em cada sociedade; de
fato, não se podem analisar as estruturas sociais ou as instituições de cada sociedade sem levar em consideração que em todas elas os traços patriarcais têm um caráter estrutural. Daí a
natureza androcêntrica de toda construção social, seja esta simbólica ou material. E os varões,
como genérico hegemônico, definiram ideologicamente e fabricaram materialmente todas as
formas sociais na medida de seus interesses como genérico dominante. O patriarcado, em cada
sociedade, como o capitalismo, é um sistema que articula e organiza as relações de gênero a
partir de diversas variáveis, como a religião, a cultura, a raça, o desenvolvimento econômico ou
a organização política, entre outras.
O patriarcado se assenta em um sistema de pactos entre os varões, a partir do qual se assegura
a hegemonia sobre as mulheres. É um sistema de práticas simbólicas e materiais que estabe4 MILLETT, KATE. Política sexual, Cátedra, Madrid, 1995, p. 67.
5 Op. cit., p. 71.
6 AMORÓS, CELIA. La gran diferencia y sus pequeñas consecuencias… para las luchas de las mujeres. Ver Capítulo 3: Para una teoría
nominalista del patriarcado, Madrid, 2005, pp. 111-135.
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Rosa Cobo Bedía
lece hierarquias e, como assinala Celia Amorós, implanta espaços.7 E não só isso, pois também
classifica as práticas em anômicas e normais, e indica e distribui o alcance e a força das vozes
que se hão de ouvir. Todo sistema de dominação, para sê-lo e para reproduzir sua hegemonia,
deve ter a força e o poder suficiente para produzir as definições sociais. Em outros termos, os
sistemas de dominação o são porque os dominadores possuem o poder da heterodesignação
sobre os dominados, o da autodesignação sobre si mesmos e o da designação sobre as realidades práticas e simbólicas sobre as quais se assenta seu domínio.
Dito em outras palavras, o patriarcado é um sistema de domínio dos varões sobre as mulheres,
cuja trama está organizada em torno a esse objetivo. As sociedades patriarcais estão articuladas de forma tal que sua rede simbólica e todas suas estruturas sociais têm como finalidade
reproduzir esse sistema social. Durkheim explicou com muita clareza que, na ‘natureza’ das
sociedades está a possibilidade permanente de sua dissolução. Para evitar a fragmentação e
a ruptura social há que construir estruturas e mecanismos institucionais, econômicos, religiosos, culturais e socializadores - entre outros - que reproduzam com a máxima coesão social
essa trama social patriarcal tão pacientemente construída. Pois bem, as sociedades patriarcais
possuem mecanismos e dispositivos para evitar sua dissolução e reproduzir as instâncias de
domínio. O poder socializador que emana do imaginário simbólico patriarcal é necessário para
que esta estrutura de domínio se reproduza ‘consensualmente’. Quando o consenso se rompe
entram em cena diversas modalidades de violência.
12
7 AMORÓS, CELIA, op. cit. Ver Capítulo 3.
Aproximações à Teoria Crítica Feminista
2.Século XVIII: A Ilustração Europeia e o
Paradigma da Igualdade. A Ilustração
Patriarcal e a Ilustração Feminista: Mary
Wollstonecraft e Vindicação dos Direitos
da Mulher
Primeira onda feminista
O feminismo não é um movimento social surgido ao calor da revolução de maio de 68. Pelo
contrário, tem um sólido passado de quase três séculos, pleno de lutas por conquistar novos
espaços de liberdade e igualdade para as mulheres. Sua data de nascimento remonta-se ao século XVII, quando François Poullain de la Barre, no ano de 1673, publicou um livro, De l´égalité
des sexes, no qual sustentava que a subordinação das mulheres não tinha sua origem na natureza, mas na sociedade. Um século mais tarde, as mulheres da Revolução Francesa se articularam politicamente para reclamar os direitos de cidadania que os varões já possuiam. Em 1792,
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Rosa Cobo Bedía
a inglesa Mary Wollstonecraft publicou Vindicação dos Direitos da Mulher, em que denunciava
que a sujeição das mulheres não era o resultado de uma natureza inferior à masculina mas de
preconceitos e tradições que se remontavam à noite dos tempos.8
Por trás da obra desses dois autores encontra-se o princípio ético e político da igualdade. Esses
livros de Poullain de la Barre e de Mary Wollstonecraft, ademais de serem as atas fundacionais
do feminismo, deixam claro que o gênero, como construção social, longe de ser uma invenção
recente, foi descoberto na época ilustrada. Também revelam que, sobre esse descobrimento, o
caráter coativo do gênero, edificou-se criticamente o feminismo. Essas obras inauguram uma
tradição intelectual de impugnação moral da sujeição das mulheres e de luta contra o preconceito, e se inscrevem em um discurso mais amplo sobre a igualdade. A singularidade dessas
reflexões radica em que, pela primeira vez na história do pensamento moderno se fala, com
a linguagem da época, de uma desigualdade não tematizada até então, a dos gêneros, e se
aponta a uma ainda indefinida estrutura de dominação masculina como responsável por uma
das desigualdades medulares da sociedade moderna.
Até o século das Luzes – século XVIII – havia-se conceituado as mulheres ou como inferiores
ou como excelentes em relação aos varões. O discurso da inferioridade das mulheres pode rastrear-se desde a filosofia grega, ainda que seu momento culminante de virulência misógina se
encontre na Escolástica e, sobretudo, na Patrística, ou seja, nos escritos dos padres da igreja.
Pois bem, esse discurso foi construído sobre a base de uma ontologia diferente para cada sexo,
em que a diferença sexual é definida no sentido de inferioridade feminina e de superioridade
masculina. Para esse discurso, a subordinação social das mulheres tem sua gênese em uma natureza inferior à masculina.9 Por sua parte, o discurso da excelência ressalta, contudo, a ‘superioridade’ moral das mulheres em relação aos varões. O paradoxo desse discurso é que se origina
precisamente naquilo que as subordina: sua designação ao espaço doméstico, sua separação
do âmbito público-político e sua ‘inclinação natural’ à maternidade. O significativo desta argumentação é que a excelência se assenta em uma concepção do feminino que foi o resultado
da hierarquia genérica patriarcal e que se resume no exercício das tarefas de cuidados e na
capacidade de ter sentimentos afetivos e empáticos por parte das mulheres em relação aos
outros seres humanos.10
No entanto, junto a esses discursos que heterodesignam as mulheres como inferiores ou excelsas em relação aos varões, aparece um discurso no qual as mulheres se queixam dos abusos
masculinos. Este discurso, denominado memorial de agravos por Amorós, faz-se explícito em A
cidade das damas,11 escrito em 1405. Amorós adverte que este “é um gênero antigo e recorrente
ao longo da história do patriarcado: periodicamente, as mulheres expõem suas queixas ante os
8 COBO, ROSA. “Política feminista y democracia paritaria”, in Leviatán, Madrid, 2000, pp. 85-99. Me embasei nesse artigo para elaborar
alguns aspectos do presente texto.
9 As análises mais relevantes que se realizaram em língua espanhola sobre a diferença sexual e sobre o feminismo da diferença podem
se encontrar em Celia Amorós, La gran diferencia y sus pequeñas consecuencias… para las luchas de las mujeres, Cátedra, Madrid,
2005 e Luisa Posada Kubissa, Sexo y esencia, Horas y horas, Madrid, 1998.
14
10 COBO, ROSA. “El género en las ciencias sociales”, in Cuadernos de Trabajo Social, vol. 18, Ed. Universidad Complutense, 2005,
Madrid, p. 251.
11 PIZAN, CHRISTINE DE, La ciudad de las damas, Ed. Siruela, Madrid, 1995.
Aproximações à Teoria Crítica Feminista
abusos de poder do qual dão mostra certos varões, insultando-as verbalmente na literatura misógina ou maltratando-as até fisicamente.”12
O século XVIII supõe um ponto de inflexão nesses discursos, pois a ideia de igualdade se alçará
como o princípio político articulador das sociedades modernas e como o princípio ético que
propõe que a igualdade é um bem em si mesma e para qual devem tender todas as relações
sociais. A ideia de igualdade repousa sobre a de universalidade, que por sua vez é um dos
conceitos centrais da modernidade. Fundamenta-se na ideia de que nós, todos os indivíduos,
possuímos uma razão que nos empurra irremissivelmente à liberdade, que nos libera da pesada tarefa de aceitar passivamente um destino não escolhido e nos conduz pelos sinuosos caminhos da emancipação individual e coletiva. A universalidade abre o caminho para a igualdade
ao revelar que de uma razão comum a todos os indivíduos derivam-se os mesmos direitos
para todos os sujeitos. O universalismo moderno repousa sobre uma ideologia individualista
que defende a autonomia e a liberdade do indivíduo, emancipado das crenças religiosas e das
dependências coletivas.13
O paradigma da igualdade é a resposta à rígida sociedade estamental da Baixa Idade Média.
Defende o mérito e o esforço individual e abre o caminho à mobilidade social. E não só isso,
pois também fabrica a ideia de sujeito e indivíduo como alternativa à supremacia social das
entidades coletivas que eram os estamentos. Esta potente ideia ética e política é assumida de
imediato por algumas mulheres em seus discursos intelectuais e em suas práticas políticas. O
resultado de tudo isso é a construção de um incipiente feminismo que se distanciará da queixa
como elemento central do ‘memorial de agravos’ e assumirá a ‘vindicação’ como a medula política básica do discurso feminista.14 Celia Amorós adverte sobre a necessidade de não confundir o memorial de agravos com a vindicação, pois, como ela mesma ressalta, a queixa manifesta
o mal-estar que produzem os excessos de violência contra as mulheres e a vindicação aponta
diretamente à deslegitimação do sistema de domínio dos varões sobre as mulheres em suas
múltiplas dimensões. Dito de outra forma, a vindicação não se conforma com reclamar recursos ou direitos formais, senão que exige a transformação das estruturas e estratificações que
produzem desigualdade. A vindicação, por exemplo, não termina na reclamação de igualdade
salarial para mulheres e homens mas também exige o fim da estrutura sexista do mercado de
trabalho. A ideia fundamental que se há de destacar, é que o feminismo germina no campo da
igualdade, pois, de um lado, reivindica que os efeitos desse princípio se apliquem às mulheres,
e, de outro, converte-se em uma fonte permanente de interpelação às teorias e aos pensadores
que excluem as mulheres da igualdade.
Mary Wollstonecraft representa o nó entre feminismo e igualdade no século XVIII. Essa pensadora britânica, que publicou em 1792 Vindicação dos direitos da mulher, reivindica os direitos
das mulheres no marco do paradigma da igualdade. A obra de Mary Wollstonecraft é a obra
12 AMORÓS, CELIA. La gran diferencia y sus pequeñas consecuencias… para las luchas de las mujeres, Ed. Cátedra, col. Feminismos,
Madrid, 2002, p. 290.
13 COBO, ROSA. “El género en las ciencias sociales”, op. cit., p. 252.
14 AMORÓS, CELIA. La gran diferencia y sus pequeñas consecuencias… para las luchas de las mujeres, op. cit., pp. 285-302.
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Rosa Cobo Bedía
de uma pensadora ilustrada que assume apaixonadamente os princípios teóricos, éticos e políticos do racionalismo ilustrado: razão, universalidade, virtude ou igualdade são a linguagem
conceitual a partir da qual ela levanta o edifício de seu discurso intelectual e político. O aspecto
fundamental de Vindicação dos direitos da mulher é a educação e a socialização, apesar de se
apresentar como uma obra de debate político.
Vindicação dos direitos da mulher é um livro extraordinário e cheio de sólidos argumentos sobre
a igualdade entre homens e mulheres, no qual a autora interpela com inteligentes explicações a quem defende a inferioridade das mulheres. Nesse livro se fundamentam, a partir dos
grandes argumentos ilustrados, a igualdade entre homens e mulheres e a exigência de uma
só e única educação para ambos os sexos, ao tempo em que se questionam os preconceitos
que justificam a inferioridade das mulheres. Toda a argumentação de Wollstonecraft sobre a
educação “vinha a confluir no que constitui o verdadeiro objeto de reflexão da obra: o caráter
artificial (arbitrário), social e culturalmente construído, das diferenças de valor e função entre os
sexos.”15. Dito em outros termos, Wollstonecraft analisará a educação do Antigo Regime como
uma arma perigosa e imoral dos homens para oprimir as mulheres e reclamará uma educação
orientada a dotar de conteúdo moral esses seres racionais que são as mulheres.
Ainda que o tema da educação e da socialização ocupe a maioria das argumentações de Vindicação dos direitos da mulher, também pode se encontrar outra polêmica de caráter político.
De fato, Wollstonecraft manifestará a coerência entre a exclusão das mulheres do âmbito da
razão e sua exclusão dos direitos civis e políticos. Duas exclusões inseparáveis que têm uma
causa: “… a tirania dos homens…”.16 A autora britânica destacará que a exclusão das mulheres
dos direitos civis e políticos manifesta a tirania dos homens e o debilitamento da moral.17 A
tirania masculina que priva as mulheres da razão, da virtude e dos direitos políticos se concretiza em uma aristocracia masculina que as oprime tal como a aristocracia oprime ao povo. Em
Wollstonecraft, pode-se observar o uso crítico feminista que faz dos princípios ilustrados. Tal
e como registrou Celia Amorós, toma as abstrações ilustradas que haviam sido pensadas para
questionar outras realidades sociais e as utiliza para impugnar a sujeição das mulheres, o que
prova as possibilidades universalizadoras de tais abstrações fora do campo em que se haviam
produzido e para o qual haviam sido pensadas.
Mary Wollstonecraft vindica a possibilidade de discutir e debater sem condições de nenhum
tipo com os varões e de impugnar um sistema social que desemboca na opressão das mulheres: “Cabe esperar, neste século das luzes, que o direito divino dos maridos, como o direito
divino dos reis, possa e deva se contestar sem perigo.”18 Mas interpelar o tirano não é suficiente, há que se imaginar uma sociedade livre e sem tiranos, com igualdade, pois “quanta maior
igualdade exista entre os homens, maior virtude e felicidade reinarão na sociedade.”19 Em de15 BURDIEL, ISABEL. “Introducción”, in Vindicación de los derechos de la mulher, Cátedra, Col. Feminismos, Madrid, 1994, p. 59.
16 Op. cit., p. 127.
17 Op. cit., p. 111.
16
18 Ibidem, p. 160.
19 Ibidem, p. 122.
Aproximações à Teoria Crítica Feminista
finitivo, Vindicação dos direitos da mulher é o texto fundacional do feminismo, que inaugura a
vindicação feminista.
O primeiro feminismo teórico que se desenvolveu no século XVIII e os primeiros grupos de
mulheres que se articularam durante a Revolução Francesa terminaram, praticamente, com o
fim da Revolução e com a derrota da França e a restauração do poder absoluto na Europa. Há
que acrescentar também que, na última época do processo revolucionário, com Robespierre,
utilizaram-se políticas repressivas contra as mulheres feministas, às quais pouco depois se somou a própria repressão que ocorreu com a restauração das monarquias absolutas.
Neste ponto é necessário fazer uma reflexão em torno à origem europeia da primeira onda
feminista. Nos últimos anos tem-se utilizado esta origem histórica para acusar o feminismo
de etnocêntrico. Contudo, é preciso assinalar que a origem geográfica, política e cultural de
uma teoria ou de uma prática política que tem como objetivo ampliar os direitos da metade
da humanidade sem distinção racial, sexual ou cultural não pode ficar invalidada por sua origem. Os movimentos sociais e as construções teóricas não devem ser interpelados por seu
lugar de origem mas pelos princípios políticos que defendem. Desde este ponto de vista, os
princípios que o feminismo preconiza têm um caráter universal, pois sua aplicação são para
todas as mulheres. A teoria feminista e o movimento feminista se
produzem incipientemente na Europa, no contexto das
três grandes ilustrações, a francesa, a inglesa e a
alemã, e no marco político do estado-nação.
Entretanto, a segunda onda feminista irá
se desenvolver sobretudo no continente
americano e na Inglaterra.
17
Rosa Cobo Bedía
3.Século XIX: O Movimento Sufragista
na Europa e América. Debates entre
Marxismo e Feminismo. Stuart Mill e
Harriet Taylor: A Sujeição da Mulher
Segunda onda feminista
O movimento sufragista
Quase meio século de silêncio precederá o ressurgimento do feminismo no século XIX. E quando tudo fazia supor que o feminismo ilustrado havia sido um episódio isolado, tanto em sua
dimensão intelectual como social, reaparece nos EUA e na Inglaterra com um discurso e uma
prática política herdeiros diretos do feminismo ilustrado da Revolução Francesa. O certo é que
com este reaparecimento, o feminismo se converterá pela primeira vez na história em um movimento de massas.
18
A ata fundacional do movimento sufragista se
produz com a Declaração de Sentimentos ou Declaração de Seneca Falls, em 1848. Neste pequeno povoado do estado de Nova York, um grupo
de mulheres feministas norte-americanas exigiu que as mulheres pudessem exercer os direitos que tinham os varões, seguindo o modelo
de declaração de independência dos EUA. Neste emocionante texto, as mulheres norte-americanas reclamam aqueles direitos formulados
como universais pelos teóricos da Ilustração e
que haviam sido usurpados e negados às mu-
Aproximações à Teoria Crítica Feminista
lheres. Exigiam para si mesmas os mesmos direitos que os varões já haviam conseguido.20 Há
que ressaltar que neste manifesto ressonam os ecos de Vindicação dos direitos da mulher, de
Mary Wollstonecraft.
Contudo, para compreender melhor o movimento sufragista há que se levar em consideração
dois fatos que precederam a formação desse movimento: o primeiro deles é que uma parte das
mulheres que militaram ativamente na luta sufragista participaram previamente no segundo
grande despertar, um movimento de renascimento religioso que lhes possibilitou tomar a palavra nas comunidades religiosas e ler as sagradas escrituras. A participação dessas mulheres na
leitura e reinterpretação das Sagradas Escrituras converteu-se em uma fonte de ampliação da
subjetividade. Essa participação em um movimento coletivo, tal e como foram as comunidades
religiosas, serviu também como uma preparação para sua militância posterior em comunidades de caráter político. O segundo fato é que aquelas primeiras mulheres sufragistas que proclamaram o decálogo de direitos de Seneca Falls haviam exercido o ativismo junto aos varões
negros em sua luta pelo voto. Quando se consolidou a possibilidade do voto para os homens
negros, as mulheres, em justa reciprocidade, pediram-lhes colaboração política para conquistar o mesmo direito político para elas, o do sufrágio. A resposta da comunidade de varões negros foi negativa: não queriam arriscar seu precário direito ao voto implicando-se ativamente
na luta pelo voto feminino, pois a luta pelo sufrágio das mulheres se considerava politicamente
ainda mais arriscada que a deles.
O movimento sufragista se arraiga naquelas sociedades em que se havia desenvolvido a revolução industrial, em espaços urbanos, de religião protestante e em sociedades firmemente assentadas sobre a ideologia liberal. EUA, primeiro, e Inglaterra, depois, serão as primeiras
sociedades nas quais irá se arraigar um dos movimentos sociais que deixou as marcas mais
visíveis e mais contribuiu para fazer do mundo uma comunidade moral.
Esse movimento se articulará politicamente em torno ao direito ao voto, mas o corpo central
de suas reivindicações são o direito à propriedade, à educação, ao acesso às profissões ou à
liberdade para se organizar e falar em público. De outro lado, a crítica ao matrimônio, na medida em que significa a ‘morte civil’ das mulheres, a crítica às leis discriminatórias que regulam
o pátrio poder ou a exigência do divórcio são outras reclamações sufragistas. Em definitivo, o
feminismo do século XIX torna-se mais abertamente político e suas conquistas alargarão a democracia ao ampliar as margens de liberdade e igualdade das mulheres. O livro de John Suart
Mill e Harriet Taylor, A sujeição da mulher, foi um texto relevante para o sufragismo. Inscreve-se
na tradição liberal e utilitarista.
Durante mais de meio século as mulheres lutaram pelo voto com todas as armas a seu alcance,
salvo a da violência. O sufragismo colocou em prática ações políticas imaginativas mas sempre
pacíficas, que depois foram copiadas por outros movimentos sociais (concentrações, manifestações, gravação da palavra sufrágio nos campos de cricket, acorrentamento nas grades do pa20 MIYARES, ALICIA. “El sufragismo”, in Celia Amorós e Ana de Miguel, Teoría feminista: de la Ilustración a la globalización, Minerva
Ediciones, Madrid, 2005.
19
Rosa Cobo Bedía
lácio do primeiro-ministro britânico ou do parlamento, greves de fome ou atear fogo ao corpo
nos hipódromos para chamar atenção sobre o direito ao voto, entre outros).
A última época do sufragismo, nos últimos anos do século XIX e primeros do século XX, está
profundamente marcada por um viés mais radical que enfatizará a reivindicação de autonomia sexual para as mulheres e a crítica à moral patriarcal inerente à instituição do matrimônio.
Dessa forma, preparará o terreno ao feminismo radical dos anos setenta do século XX, que
colocará as relações familiares, sexuais e reprodutivas no centro mesmo do novo cenário histórico feminista. O movimento sufragista não foi homogêneo ideologicamente em suas sete
décadas de existência.
Retrospectivamente, observa-se que no sufragismo se consolidam duas correntes de ideias e
de práxis política, uma moderada, cujas raízes políticas e demandas são fortemente liberais, e
outra mais radical, que colocará no cenário político sufragista algumas das reivindicações políticas que demandará o feminismo radical dos anos setenta do século XX.
De outro lado, o setor mais radical do movimento sufragista se acercou à ideologia socialista
e, dessa forma, estabeleceu as bases de um movimento feminista mais amplo e inclusivo no
qual as mulheres operárias e as de classe média, que sentiam como uma carga insuportável os
privilégios masculinos, fizeram uma aliança frente às leis e aos usos e costumes patriarcais. Susan B. Anthony e Elizabeth Cadi Stanton são as sufragistas que mais se aproximaram a posições
radicais e socialistas. Não se limitaram a criticar o matrimônio mas também pediram que os
tribunais de justiça tivessem uma composição que hoje denominaríamos com o termo de paritária. A última etapa do movimento sufragista incluiu vindicações políticas radicais nas quais se
coloca a sexualidade na agenda feminista, pois a crítica à dupla moral sexual e à reivindicação
da liberdade sexual entram no marco reivindicativo sufragista.
O movimento sufragista finaliza com a Primeira Guerra Mundial e, a partir desse momento, o
direito ao voto começa a ser uma realidade em algumas sociedades. Na primeira metade do século XX, milhões de mulheres votarão em diferentes regiões do mundo. O êxito do sufragismo
foi inquestionável, pois o direito à educação, ao exercício de diversas profissões, à propriedade
ou ao divórcio, entre outros, converteram-se em uma realidade para millhões de mulheres.
20
Aproximações à Teoria Crítica Feminista
4.Século XX: O Segundo Sexo de Simone
de Beauvoir e A Mística Feminina
de Betty Friedan. O Surgimento do
Feminismo Radical Norte-americano: Kate
Millet e Shulamith Firestone. Feminismo
da Diferença
A terceira onda feminista
O feminismo da igualdade de Simone de Beauvoir
Depois da longa luta do sufragismo instala-se outro período de silêncio na história do feminismo. De fato, desde a Primeira Guerra Mundial até o ano de 1949, no qual a francesa
Simone de Beauvoir publica O segundo sexo, o feminismo permaneceu submerso recuperando a energia que empregaria mais tarde, a partir dos anos 60. Na história da tradição
21
Rosa Cobo Bedía
feminista, O segundo sexo ocupa um lugar central, pois está concebido como um estudo
totalizador da condição das mulheres nas sociedades ocidentais. Ademais, é um texto herdeiro do feminismo ilustrado e sua proposta normativa se inscreve em um discurso radical
da igualdade.
Simone de Beauvoir analisará a subordinação das mulheres a partir da hermenêutica existencialista. Suas contribuições foram tantas, e sua sombra tão alargada, que os feminismos posteriores ou bem reivindicaram sua obra ou bem a interpelaram, mas ninguém permaneceu
alheio às suas análises. Um de seus argumentos fundamentais para explicar a opressão das
mulheres o realizará através dos conceitos de natureza e cultura. As mulheres foram definidas
como natureza e os varões como cultura. A natureza é o mundo da imanência, o dado, a repetição, a vida, aquilo que surge naturalmente e não deixa marcas na vida social. A cultura é o
mundo da transcendência, a criação da vida social e política, a criação de mundos simbólicos.
A vida natural frente à vida política. As mulheres frente aos homens. As mulheres criam vida
biológica e os varões criam vida social e política. E essa vida social e política é constituída como
sentido e como valor, pois transcende à repetição da vida biológica. Criar vida social e política
e criar ideias supõe riscos, que às vezes se concretizam em guerras e lutas. É aí que se arrisca a
vida, e nesse risco concretiza-se a transcendência. E depois a humanidade estimou que o que
tem valor é a cultura e o que não o tem é a natureza. As mulheres ficaram neste último espaço
e suas tareas e funções foram privadas de valor. Essa é a origem da opressão das mulheres,
valora-se o masculino e priva-se de valor o feminino. Por isso, o cânone do humano é o varão
e as mulheres serão pura alteridade. Simone de Beauvoir as definirá como ‘a outra’, o que está
fora do cânon do bom, do valioso.
Ademais, Simone de Beauvoir afirmará que o gênero é uma construção social. Sua afirmação
de que ‘não se nasce mulher, torna-se’ ilustra esta ideia que foi tão relevante para as análises
feministas. Há que se destacar, neste sentido, que a escritora francesa não aceita essências do
feminino nem do masculino. Ademais, analisa a maternidade como uma armadilha para as mulheres, no sentido de que sua crítica não é às mulheres que decidem ter filhos, mas à ideologia
que as empurra a tê-los em umas condições de aberta subordinação. Também considerará que
o trabalho remunerado e a socialização do trabalho doméstico são as condições de possibilidade para a emancipação das mulheres.21
O feminismo liberal de Betty Friedan
Em 1963, nos EUA, uma psicóloga feminista, Betty Friedan, escreverá um livro, A mística feminina, em cujas análises milhões de mulheres ocidentais poderão se reconhecer. Em seu célebre
livro, Betty Friedan tratará de entender porquê as mulheres aceitaram ser expulsas do merca21 LÓPEZ PARDINAS, TERESA. “El feminismo existencialista de Simone de Beauvoir”, in Celia Amorós e Ana de Miguel (Eds.), Teoría
Feminista: de la Ilustración a la globalización, Tomo 1, Madrid, 205, pp. 335-365.
22
Aproximações à Teoria Crítica Feminista
do de trabalho ao finalizar a Segunda Guerra Mundial e porquê aceitaram ser mães e esposas
no contexto da família que hoje denominamos patriarcal. O pano de fundo deste livro é uma
ampla bibliografia nos Estados Unidos que mostra o crescimento de diversas patologias entre
as mulheres: ansiedade, alcoolismo, suicídio, neuroses… O texto de Friedan tentará explorar as
causas do aumento desses mal-estares entre as mulheres. E encontrará uma explicação alternativa à da psicologia e à psiquiatria dominante, as quais consideravam que essas patologias
eram inerentes à natureza das mulheres. ‘O problema que não tem nome’, tal e como o denominava Betty Friedan, radicava em que as mulheres foram empurradas a aceitar uma identidade, a de esposa e mãe, que não haviam escolhido e, por isso, não era o resultado de uma
eleição livre, mas imposta.22 Essa identidade converteu-se em fonte inesgotável de mal-estar
para as mulheres.
Betty Friedan analisa a vida das mulheres norte-americanas dos anos 60 desde a perspectiva
ideológica do feminismo liberal. A autora norte-americana não alude em sua obra à existência
de um sistema de domínio masculino que obstaculiza a liberdade das mulheres e lhes impede
o acesso a espaços de igualdade. Ao contrário, ela estima que as leis são um poderoso instrumento para alcançar a igualdade de direitos com os varões. Em seu seguinte livro, A segunda
fase, escrito em 1981, dará uma guinada ideológica em direção à social democracia e verá nas
medidas de ação afirmativa a alternativa à desigualdade e discriminação das mulheres.
Há que se destacar que a obra de Betty Friedan engancha com a corrente liberal do movimento
sufragista. Neste sentido, pode se considerar que no marco da tradição intelectual feminista e
também no da prática política há uma linha, desde o século XVIII até nossos dias, que tem um
nervo fortemente liberal. Contudo, essa tradição feminista liberal fez contribuições significativas às lutas das mulheres. Pois bem, neste momento de globalização neoliberal o feminismo
liberal não pode oferecer respostas nem à desigualdade nem à violência contra as mulheres.
Feminismo e marxismo
O feminismo, como já se disse, é uma tradição intelectual e um movimento social cujo
nascimento data do século XVIII, enquanto que o marxismo aparece na cena intelectual
e social em meados do século XIX. Não convém esquecer que quando surge o marxismo,
o feminismo tinha quase um século de existência. Ambas teorias e ambos movimentos
sociais têm elementos em comum e diferenças profundas. A semelhança mais notável
é que ambos analisam a sociedade na perspectiva de sistemas de domínio. O marxismo
considera que no fundamento da sociedade existe um sistema de domínio econômico, o
capitalismo, baseado em um sistema de exploração econômica pelo qual os burgueses
22 JIMENEZ PERONA, ÁNGELES. “El feminismo liberal estadounidense de posguerra: Betty Friedan y la refundación del feminismo
liberal”, in Celia Amorós e Ana de Miguel (Eds.), Teoría Feminista: de la Ilustración a la globalización, op. cit., pp. 15-34.
23
Rosa Cobo Bedía
exploram os operários ou, os empresários, os trabalhadores. O feminismo, por sua vez,
estima que na base da sociedade existem estruturas patriarcais que colocam os varões
em uma posição de domínio e as mulheres em uma posição de subordinação. O marxismo
se constrói como teoria e como movimento ao redor da variável classe e o feminismo em
torno à variável gênero.
As diferenças entre marxismo e feminismo são significativas. De fato, o marxismo deu provas constantes ao largo da história de sua falta de compreensão política quanto à opressão das mulheres. Razões teóricas, políticas e estratégicas estiveram no fundamento dessa
incompreensão. O marxismo teve a grandeza de desvelar o domínio capitalista, mas esta
teoria não foi construída para identificar analítica e politicamente o domínio masculino.
Ademais, tal e como assinalava Poulain de la Barre, os varões são juiz e parte ao mesmo
tempo. É difícil que aqueles que estão em uma posição de hegemonia conceitualizem
teorias e ponham em funcionamento práticas políticas para se privarem de seus privilégios. Por outra parte, o marxismo sempre teve medo de que as mulheres que participaram
ativamente no movimento sufragista no século XIX e no feminismo no século XX lhes arrancassem segmentos de uma base social a qual consideravam que pertencia à esquerda.
Entretanto, e apesar de tudo, no marxismo, no socialismo e no anarquismo militaram mulheres que entenderam a luta das mulheres, ainda que isso não significasse que algumas
delas se agregaram ao feminismo. De fato, Rosa Luxemburgo, Flora Tristán, Alejandra
Kollontay, Clara Zetkin ou Emma Goldman foram mulheres com sensibilidade feminista e
que em alguns casos tiveram a convicção de que a opressão das mulheres era distinta e
complementária à opressão de classe.
Em todo caso, o marxismo sempre manteve uma forte vinculação entre a opressão das
mulheres e o capitalismo. Para essa teoria, a opressão das mulheres beneficia o capitalismo. Contudo, há que reconhecer a insuficiência do marxismo na hora de dar conta da subordinação das mulheres. O segredo está no não reconhecimento por parte do marxismo
da existência de um sistema de domínio patriarcal. Nos anos 60-70, sobretudo nos EUA,
aparecem mulheres feministas que se definem também como socialistas. Essas feministas
enfocarão a insuficiência do marxismo para entender ‘a questão da mulher’ e destacarão a
cegueira do feminismo para compreender a opressão de classe. O resultado, nas palavras
de Heidi Hartman, é o de um desgraçado matrimônio entre feminismo e marxismo. Essas
teóricas irão proporão um sistema dual para analisar a condição das mulheres e reivindicarão o aparato conceitual do marxismo e o do feminismo para dar conta da subordinação
das mulheres nas sociedades capitalistas.
O feminismo do século XXI, ante a brutal arremetida neoliberal, tem uma necessidade
imperiosa de identificar a política sexual do neoliberalismo e detectar os mecanismos capitalistas que empobrecem e são causa da exploração econômica das mulheres. Trazer
materiais críticos do socialismo é crucial para entender a opressão das mulheres em sua
24
Aproximações à Teoria Crítica Feminista
complexidade e para desvelar o pacto entre patriarcado e capitalismo que faz das mulheres as ‘trabalhadoras idôneas’: as que têm salários mais baixos, em muitos casos, salários
de pobreza, as que têm menos direitos, as que trabalham na economia informal, a tempo
parcial, com horários de 12 e 14 horas diárias.
O feminismo marxista aportou à história da tradição feminista uma visão chave, sem a
qual não teríamos os materiais teóricos que possibilitam entender a exploração econômica das mulheres no mercado global. Poderíamos entender o trabalho das mulheres nas
maquilas sem estudar a política sexual do neoliberalismo? Em outros termos, um feminismo que não coloca no centro de sua agenda política a questão da economia política neste
momento histórico está condenado a não oferecer respostas à opressão das mulheres.
O feminismo radical dos 70
A partir dos anos sessenta, o século XX foi testemunha de uma nova onda feminista de
marcado caráter político. De fato, o feminismo radical faz sua aparição em todo o continente americano, na Europa e em outras partes do mundo, no contexto de maio de 68. O
pano de fundo é a formação de uma nova esquerda distante do comunismo ortodoxo, as
lutas da comunidade negra pelos direitos civis nos EUA, o aparecimento dos novos movimentos sociais como alternativa aos partidos políticos e, sobretudo, a criação de uma cultura política articulada em torno à crítica às instituições repressivas da modernidade. Maio
de 68 é um momento histórico de otimismo e de um grande desejo de mudança social.
De fato, esta revolução que percorre muitas regiões do mundo mudou o rosto de muitas
sociedades, e essas mudanças humanizaram, sem dúvida, essas sociedades.
No marco do surgimento dos novos movimentos sociais, o feminismo encontra uma terra
fértil na qual germinar. E pela segunda vez na história, depois do sufragismo, o feminismo se converterá em um movimento de massas. Se maio de 68 mudou o rosto de muitas
sociedades, o feminismo mudou não só o imaginário sobre as mulheres mas introduziu
mudanças sociais, políticas e econômicas nessas mesmas sociedades. O feminismo radical
marca o início de um processo de conquista de direitos que hoje estão em retrocesso.
Maio de 68 é um momento de avanço, de progresso e de lutas políticas das mulheres. Esse
feminismo se articulará novamente ao redor do princípio ético e político da igualdade.
Simone de Beauvoir será uma referência teórica e política como também o setor radical
do movimento sufragista.
A influência do feminismo radical será larga e profunda e seus efeitos se farão sentir durante mais de três décadas. De fato, este ressurgimento do feminismo impregnou as mentalidades, permeou valores sociais, transtornou os paradigmas dominantes das ciências
sociais e obrigou alguns Estados a aplicar políticas de igualdade. A influência do feminismo foi tão significativa como exasperante a falta de direitos das mulheres.
25
Rosa Cobo Bedía
O aspecto mais importante do feminismo radical foi mostrar o caráter político das relações
que ocorrem no âmbito doméstico-familiar. O livro mais célebre do feminismo radical, já
um clássico indiscutível da literatura feminista, é a Política sexual23 de Kate Millett. A tese
central deste livro é que o pessoal é político. Dito em outros termos, o que Millett quer
argumentar é que a subordinação das mulheres não se susenta só em sua exclusão das
instituições políticas e dos poderes fáticos ou na exploração econômica que ocorre no
mercado de trabalho, senão que tem raízes muito profundas e aparentemente invisíveis
que tornam muito difícil desmontar as estruturas de opressão das mulheres. Essas profundas raízes se encontram na família patriarcal, nas relações de casal e em todas as tarefas
de cuidados e reprodutivas que as mulheres desenvolvem gratuitamente no âmbito familiar. Dito em outros termos, a família não é um espaço de afeto e cuidados, presidido pela
simetria e reciprocidade entre varões e mulheres, mas uma instituição patriarcal na qual
se assenta a divisão sexual do trabalho, escondem-se as relações de poder entre homens
e mulheres detrás do amor e dos cuidados e, em muitos casos, desenvolve-se a violência
e o abuso sexual masculino contra as mulheres. E todas essas práticas não são aspectos
íntimos e privados dos casais ou das famílias, como nos contaram, mas relações políticas
baseadas na exploração e subordinação das mulheres. E não só isso, pois o feminismo do
último terço do século XX politizará ainda mais o âmbito doméstico-familiar, ao apontar a
violência da qual são objeto muitas mulheres e ao desvelar a exploração econômica que
supõem os trabalhos reprodutivos ocorridos no espaço privado-doméstico.
Entretanto, as análises de Millett não acabam no desenvolvimento dessa ideia, senão que
conceitua para o feminismo a categoria de patriarcado, tal e como explicamos mais acima. A partir dos anos 70, este conceito ocupará o lugar central do marco interpretativo
feminista e será muito útil para entender as causas e os mecanismos que reproduzem a
opressão das mulheres. Com essa categoria poderemos entender que as sociedades estão
edificadas sobre estruturas políticas, econômicas e culturais que consagram a hegemonia
dos varões sobre as mulheres.
As lutas civis da população negra nos EUA colocam a questão da raça em um âmbito fortemente político e as análises de Kate Millett manifestarão que a raça, como o gênero, é
uma estrutura de poder. Há que registrar que o feminismo radical abarca a opressão racial
e a opressão de classe. A obra de Shulamith Firestone, A dialética do sexo, o outro grande
clássico do feminismo radical, utilizará categorias marxistas para explicar a opressão das
mulheres e suas análises deixarão claro que a classe sexual é uma estrutura de poder.
Em outros termos, o feminismo dos anos 70 explora os mecanismos de poder patriarcal
que oprimem as mulheres, mas não sustentará que essa opressão é única, senão que está
articulada com outras opressões. De fato, a classe, a raça e o colonialismo são catego-
26
23 Ver um dos livros de teoria feminista mais relevantes do século XX: KATE MILLETT, La política sexual, Ed. Cátedra, col. Feminismos,
Madrid, 1995.
Aproximações à Teoria Crítica Feminista
rias que transitam pelo feminismo radical, mas, sobretudo, pela obra de Kate Millett. Por
isso, o feminismo radical porá as bases para que depois outros feminismos argumentem
sobre a necessidade de identificar analítica e politicamente o cruzamento de opressões
nas vidas das mulheres e incluam na agenda feminista a reflexão crítica sobre o passado
colonial dos países europeus e sua influência na conformação das estruturas materiais e
simbólicas dos países colonizados. A feminista norte-americana propõe uma política de
coalizão para entrar em outra fase histórica não presidida por opressões: “A transmutação
que uma coalizão dos diversos grupos despossuídos (os negros, os jovens, as mulheres e
os pobres) trataria de impor aos valores fundamentais constituiria o ponto de arranque de
uma verdadeira revolução assentada sobre a abolição das categorias e papéis instituídos
(tanto sexuais como de qualquer outra índole).”24
Algumas reflexões sobre o feminismo da diferença
Depois do feminismo radical, começa a se fazer presente uma nova análise que interpela
criticamente a igualdade e coloca no centro do cenário feminista a diferença. O movimento feminista e a teoria feminista, desde seus inícios, experimentaram a tensão entre a
igualdade e a diferença, 25 entre a queixa e a vindicação, entre a separação e a plena inclusão no público e no político. Contudo, a igualdade foi o paradigma político predominante
no feminismo até que a finais dos anos setenta cristaliza uma posição teórica e política
favorável à diferença. Nesses anos, inicia-se um debate ontológico no seio do feminismo
acerca da ‘natureza’ dos gêneros e um debate político sobre questões político-estratégicas. Existe algum elemento ontológico que determine maneiras de ser diferentes para
mulheres e varões? Ou a diferença entre ambos os gêneros é uma construção sociocultural
produzida pela hierarquia patriarcal? As mulheres deveriam lutar pelo poder e pela igualdade utilizando os recursos e as instituições já existentes na sociedade?
Ao redor desse dilema brotam três argumentos no seio do feminismo. Os dois primeros
celebram a diferença entre varões e mulheres, enquanto que o terceiro a examina criticamente e vindica a igualdade. O primeiro deles defende uma essência do feminino com
traços próprios, distante das realidades sociais. O segundo considera intelectualmente impossível demostrar uma ontologia ou essência do feminino, mas apresenta outra possibilidade que ao fim cumpre o mesmo propósito: pode e deve se preservar a ‘natureza’ feminina que se foi construindo ao largo da história e que, em definitivo, confirma nossa excelência moral. Estas feministas da diferença apelam à moralidade das mulheres, diferente à
dos varões, e provavelmente vinculada às tarefas de cuidados que têm desempenhado ao
longo dos séculos. Luisa Posada Kubissa assim o explica: o feminismo da diferença “ape24 MILLETT, KATE. Política sexual, Ed. Cátedra, Col. Feminismos, Madrid, 1995, p. 609.
25 BENHABIB, SEYLA. “Desde las políticas de la identidad al feminismo social: un alegato para los noventa”, in Elena Beltrán e Cristina
Sánchez (Eds.): Las ciudadanas y lo político, Instituto Universitario de Estudios de la Mulher/ Universidad Autónoma, Madrid, 1996, p.
25.
27
Rosa Cobo Bedía
la a uma cultura feminina que haveria sobrevivido como tal nas margens da construção
simbólico-patriarcal.”26 O terceiro argumento parte da premissa de que a identidade feminina é o resultado da estrutura de poder patriarcal. Dito de outra forma, a feminilidade é
uma construção normativa e coativa que reduz a liberdade e autonomia das mulheres. O
feminismo da diferença apela à diferença entre homens e mulheres, tanto no caso de que
creiam que essa diferença é natural ou bem considerem que é construída socialmente. A
diferença para estas autoras tem um caráter constituinte e fundacional ao qual a espécie
humana não pode se subtrarir. E por isso há que preservá-la.
O feminismo da diferença se construirá ao redor da ideia de que entre varões e mulheres
existem diferenças profundas que vão mais além da cultura, as quais provavelmente estão
ancoradas em substratos mais profundos da humanidade masculina e feminina e que de
tudo isso resultam formas de estar no mundo diferentes entre uns e outras. O feminismo
da diferença se constitui ao redor da afirmação dessa diferença que dará lugar a uma ‘cultura do feminino’.
O feminismo da diferença aparece primeiramente nos EUA com o nome de feminismo
cultural e reivindica a existência de valores femininos distintos aos masculinos, inclusive no terreno da moral. Carol Gilligan é a figura de referência desta posição ideológica,
quem argumentará nos anos oitenta que o desenvolvimento moral feminino é distinto
ao masculino. Paralelamente, aparece na Europa, na França, seu correlato, ainda que com
modulações teóricas e políticas específicas, com o nome de feminismo da diferença. A
teórica feminista fundamental é Luce Irigaray, quem sustenta que o gênero não é algo
meramente construído. Para esta filósofa o feminino é o diferente, o não idêntico, o desconhecido, pois o diferente, o feminino, escapa ao discurso logocêntrico e por isso não pode
ser reduzido ao discurso da razão. Para ela, a diferença sexual se converte na ‘diferença’.
Quase ao mesmo tempo, aparece na Itália o pensamento da diferença sexual em torno
à filósofa Luisa Muraro e à Livaria de Mulheres de Milão. O feminismo da diferença na Itália
reflete sobre como fundar uma nova ordem simbólica feminina, e Muraro encontra essa
ordem simbólica na mãe. Explica: “o início buscado está ante meus olhos: é o saber amar
a mãe”. A relação com a mãe é a relação originária e, por isso, superior a qualquer outra.
Luisa Posada explica que parece claro, para Muraro, que a ordem simbólica da mãe e o
saber amar da mãe são princípios constitutivos do ser feminino.
Ambas as perspectivas teóricas, a da diferença e a da igualdade, compartilham a ideia
de que a diferença entre homens e mulheres existe. Contudo, a primeira considera que a
diferença deve converter-se em um paradigma político em torno ao qual se deve organizar a vida social. A diferença não há de ser ignorada, senão reivindicada, e a partir de sua
existência deve construir-se a vida social, política, econômica e cultural. Pelo contrário, o
feminismo da igualdade assume a ideia da diferença como resultado da experiência his-
28
26 POSADA KUBISSA, LUISA. “De la diferencia como identidad: génesis y postulados contemporáneos del pensamento de la diferencia
sexual”, in Araucaria. Revista Iberoamericana de Filosofía, Política y Humanidades, vol. 8, nº 16, Sevilla, 2006.
Aproximações à Teoria Crítica Feminista
tórica, mas considera que a igualdade deve ser o paradigma político em torno ao qual se
constróem as relações sociais entre homens e mulheres.
29
Rosa Cobo Bedía
5.Século XXI: Novas Correntes Feministas:
Feminismo Pós-moderno, Feminismo
Multiculturalista e Teoria Queer
Algumas notas sobre o feminismo pós-moderno
Sem que se houvessem apagado os ecos deste debate que fragmentou perigosamente o movimento feminista, surgiu em meados dos oitenta outro debate que se sobrepôs ao anterior.
De fato, o discurso da diferença se encontra com as argumentações pós-modernas, seguindo o
caminho da interpelação crítica à igualdade que o feminismo da diferença já havia começado.
Como explica Nancy Fraser, o debate dos setenta se desenvolve em torno à diferença de gênero, enquanto que as argumentações pós-modernas dos oitenta se centram nas diferenças entre
mulheres.27 Dois debates e duas fases do movimento feminista. O primero deles enfatizou a diferença de gênero, enquanto que o segundo exaltou as diferenças entre mulheres pertencentes
a distintos coletivos sociais. Esta segunda fase se configura no contexto sociopolítico do que se
denominou políticas da identidade/diferença.
A aliança entre um setor do feminismo e a pós-modernidade supôs uma guinada política e
epistemológica com relação ao feminismo universalista e ilustrado da igualdade. Esta mudança de análise é tematizada por Seyla Benhabib como um choque de paradigmas na teoria feminista contemporânea. A mudança de paradigma para os feminismos pós-modernos se produziu em meados dos oitenta, sob a influência de pensadores franceses como Foucault, Derrida,
Lyotard, Luce Irigaray ou Helene Cixous.
Para a pós-modernidade, as categorias centrais ilustradas não são aceitáveis nem legítimas,
porque não levam em consideração as diferenças. Todas as abstrações são suspeitas, especial30
27 FRASER, NANCY. Iustitia Interrupta. Reflexiones críticas desde la posición postsocialista, Ed. Siglo del Hombre/Universidad de los
Andes, 1997, Bogotá, pp. 229-250.
Aproximações à Teoria Crítica Feminista
mente as ilustradas, porque não são o suficientemente inclusivas com os indivíduos. Nenhuma
delas é capaz de dar conta de ‘toda a realidade’. As abstrações ou ‘exteriores constitutivos’ são
só construções discursivas, que em lugar de explicar a realidade, configuram-na coativamente,
a homogeneizam quando é diversa ou a falsificam ao dotá-la de uma uniformidade que na
verdade é inexistente.
A pós-modernidade propõe a desativação de todas as abstrações modernas decretando sua
inutilidade ou sua perversidade. Esta lógica implacável alcançou dois conceitos centrais da reflexão feminista: gênero e patriarcado. O primero deles, ao aludir a todas as mulheres enquanto gênero, está escamoteando as profundas diferenças que existem entre elas (de classe, de
raça, de sexualidade, de etnia, etc.). A teoria pós-moderna sustenta que os grupos são plurais
e contraditórios. Qualquer grande coletivo - por exemplo, o das mulheres - que se dote de
um marco normativo para atuar como um ator social pode ser coativo com a multiplicidade
de suas diferenças internas e pode aplastar a construção de futuras identidades. Pode-se falar
de mulheres como gênero apesar das abismais diferenças sociais, econômicas, culturais ou
sexuais que existem entre elas? Um só conceito, o de patriarcado, pode dar conta de realidades
diferentes, e inclusive contrárias, como a posição das mulheres brancas e de classe média norte-americanas e as mulheres pobres da África?
As análises pós-modernas são críticas com a categoria de gênero, não só quando com este
conceito se referem ao masculino e ao feminino como construções culturais, senão também
quando o gênero é utilizado como sinônimo do coletivo das mulheres. Vamos examinar brevemente ambas argumentações. Desde as análises pós-modernas se aponta, a propósito do
conceito de gênero, que este não é capaz de representar mais que a um pequeno grupo de
mulheres: aquelas brancas, de classe média que vivem em países ricos. As teorias pós-modernas nos dizem que qualquer ‘nós’ − as mulheres neste caso − resulta politicamente suspeito,
desde o momento em que, por uma parte, tenta criar uma suposta comunidade de opinião,
ideias e interesses onde não há e, por outra, todo ‘nós’ se constrói a partir da exclusão daqueles
que não possuem as características que lhes façam aptos para participar nessa abstração. O
conceito da ‘diferença’ é paradigmático para a pós-modernidade, pois com ele pretende-se colocar em dúvida os falsos conceitos universais que homogeneizam as experiências individuais
e coletivas.
As argumentações pós-modernas que questionam a categoria de gênero reaparecem com o
conceito de patriarcado. A análise feminista acerca do patriarcado se fundamenta na ideia de
que um dos traços estruturais das sociedades existentes é a hierarquização dos gêneros. Pois
bem, a pós-modernidade, em sua guerra declarada às generalizações, critica a noção de patriarcado porque não dá conta do funcionamento da opressão de gênero nos contextos culturais concretos em que existe. É que a pós-modernidade rechaça o conceito de patriarcado por
essencialista, ahistórico e totalizador.28
28 AMORÓS, CELIA. Tiempo de feminismo, op. cit.; ver especialmente “El sujeto del feminismo”: cap. VII.
31
Rosa Cobo Bedía
A pós-modernidade questiona as abstrações ilustradas das quais se serviu a teoria feminista
para interpelar o patriarcado, como o conceito de mulheres, a noção de sujeito político feminista ou a argumentação feminista que considera que em cada sociedade existem estruturas patriarcais que oprimem as mulheres, ademais de uma estrutura transcultural de domínio
masculino. Algumas preguntas se desprendem destas análises: com que conceitos trabalhará o feminismo se prescinde de seu marco interpretativo da realidade social? Se o feminismo
prescinde do sujeito, quem protagonizará as mudanças sociais que pretendem acabar com a
opressão das mulheres? Se assumimos a ideia de que não existe patriarcado, devemos assumir
também que não há uma opressão específica das mulheres? Se a opressão existe, em quais
estruturas a identificamos? A aliança entre o feminismo e a pós-modernidade é complicada,
pois esta última não proporciona chaves teóricas nem políticas na construção de uma teoria
de mudança social. Nem tampouco oferece argumentações sólidas para elaborar um projeto
político de emancipação das mulheres.
Feminismo e multiculturalismo
O multiculturalismo é uma lógica teórica, política e normativa que se desenvolve na década
dos 90 e que fez da exaltação da diferença cultural o núcleo de seus supostos teóricos e práticos. O multiculturalismo proporcionou um marco teórico e político às comunidades culturais
inferiorizadas, e também aos movimentos sociais que deram voz a minorias invisibilizadas e excluídas. Também foi um poderoso aliado na hora de introduzir criticamente na agenda política
a questão colonial e os efeitos que esse fenômeno produziu sobre as mulheres dos países e territórios colonizados e concretamente as mulheres dos povos originários e afrodescendentes.
Um problema de caráter estrutural na América Latina é o derivado do processo de colonização
que ocorreu a partir do século XV por parte da Espanha e de Portugal e outras potências no
Caribe. Esse processo marcou decisivamente as sociedades latino-americanas e do Caribe em
muitos sentidos e de diferentes formas. A realidade social mostra a difícil e assimétrica coexistência entre os povos originários, os afrodescendentes e aqueles que remotamente descendem dos colonizadores. O resultado de tudo isso são sociedades profundamente divididas e
desequilibradas em termos de recursos e direitos entre os diversos setores sociais.
A partir do século XV, a América Latina e o Caribe são submetidos a intensos processos de
colonização por parte da Europa. O caso da América Latina é cronologicamente o primeiro
colonialismo em que se cruzam variáveis diversas: imposição da religião católica, expoliação
econômica, subordinação cultural e políticas que hoje denominamos genocidas com os povos originários. O objetivo dos conquistadores espanhóis foi feito com o poder político, econômico, cultural e religioso e, para isso, foi necessário não só expoliar os povos indígenas de
seus recursos mas também de seus valores religiosos e culturais. Contudo, o que nos interessa
registrar são as marcas e rastros que as relações coloniais deixaram nas sociedades latino-a32
Aproximações à Teoria Crítica Feminista
mericanas e que hoje têm uma presença significativa nas vidas das mulheres e nos debates e
discussões no interior do movimento feminista.
Séculos de conquista, colonialismo e neocolonialismos conformaram no Ocidente uma ideologia da superioridade frente ao resto do mundo.29 Esta ideologia da supremacia ocidental
edificou-se ao longo dos séculos silenciosamente. De uma forma aparentemente invisível, o
Ocidente construiu a figura do ‘outro’: estranho, pouco civilizado, em definitivo, inferior. De
fato, hoje o elemento indígena arrasta o subtexto do atraso. E esse subtexto se instalou no
imaginário coletivo de tal forma que o originário parece ser um corpo estranho que ameaça
desagregar as sociedades latino-americanas em que vivem essas comunidades, apesar de que
já se encontravam aí quando chegaram os colonizadores. E não só as comunidades culturais
originárias carregam o subtexto do atraso. As comunidades afrodescendentes carregam também o estereótipo fortemente arraigado no imaginário coletivo de certo déficit civilizatório. Os
povos originários, de um lado, e as populações afrodescendentes, de outro, são componentes
fundamentais da diversidade cultural na América Latina e no Caribe e, ao mesmo tempo, receptores da desigualdade e da invisibilidade cultural.
A ideia que quisera desenvolver é que as mulheres, sem exceção, tanto as das comunidades inferiorizadas como as que descendem dos colonizadores, foram construídas como as ‘outras’: as
outras dos brancos e dos mestiços, as outras dos varões indígenas e as dos afrodescendentes.
De fato, as elites masculinas das comunidades culturais dos povos originários e afrodescendentes, apesar da legitimidade de suas vindicações políticas em termos de direitos e recursos,
mostram uma significativa cegueira frente às práticas culturais patriarcais no interior de suas
comunidades. Aida Hernández Castillo, em referência às mulheres indígenas mexicanas, explica que “as mulheres indígenas organizadas se deram a tarefa de conciliar estas duas reivindicações. Por um lado, defendem perante o Estado a necessidade de reconhecer o direito de
autodeterminação dos povos indígenas; por outro, travam uma luta dentro de suas próprias
comunidades e organizações por repensar criticamente seus próprios sistemas normativos.”30
Dito de outra forma, a posição de subordinação das comunidades inferiorizadas cultural e economicamente não justifica que os varões dessas comunidades criem ou reforçem práticas de
domínio sobre as mulheres. É legítimo, portanto, que as comunidades demandem direitos e
igualdade às elites dominantes das sociedades às que pertencem, e a mesma legitimidade
lhes assiste às mulheres quando reclamam direitos e o fim da discriminação aos varões de seu
grupo.
As culturas, quanto mais herméticas, homogêneas e acossadas se autopercebem, na medida em
que têm concepções fortemente comunitaristas, costumam ser mais coativas com as mulheres
porque costumam apelar à tradição como fonte de legitimação, e a tradição inevitavelmente é
sinônimo de subordinação para elas. E quando a tradição não justifica o suficiente a submissão e
29 BESSIS, SOPHIE. Occidente y los otros. Historia de uma supremacía, Alianza Editorial, Madrid, 2002, capítulos 1, 2 e 3.
30 HERNÁNDEZ CASTILLO, R. AIDA. “Re-pensar el multiculturalismo desde el género. Las luchas por el reconocimento cultural y los
feminismos de la diversidad”, in Revista de estudios de género. La ventana, Universidad de Guadalajara (México), nº 18, 2003, p. 11.
33
Rosa Cobo Bedía
a desigualdade, aparece o fantasma da ‘mulher imaginada’ como fonte de legitimação. Se o modelo da tradição não existe, inventa-se. Este é o exemplo do hijab – o véu sobre a cabeça. Sophie
Bessis o explica a propósito das mulheres árabe-muçulmanas: “o novo contrato de sociedade
que se propõe – ou impõe – às mulheres árabe-muçulmanas tem o estigma de uma regressão,
sem que se possa por outro lado falar de um retorno à tradição.”31
Este exemplo que Bessis coloca para entender o que ocorre com algumas tradições, que têm
uma poderosa dimensão patriarcal, não está ocorrendo somente nos países árabe-muçulmanos mas também em outras partes do planeta. Algumas tradições se eliminam em favor de
outras que estandarizam a marca de gênero, e esse fato para as mulheres de algumas comunidades ou grupos significa assumir uma tradição que não estava em sua memória comunitária. Celia Amorós explica, com muita lucidez, que as mulheres são convertidas em objetos
transacionais entre os varões. Dito de outro modo: por vezes, se persuadem as mulheres e lhes
‘impõem’ formas de se comportar, de se vestir ou formas de comportamento político que respondem a interesses dos varões que travaram alguma luta política e cultural com os varões de
outra cultura ou de outro status. Em outros termos, algumas mulheres, por vezes sem sabê-lo,
são a desculpa de conflitos entre varões de distintas comunidades ou grupos sociais. De fato,
mulheres indígenas reivindicam o direito a transformar aquelas tradições que as oprimem:
“Também temos que pensar o que se tem que fazer novo em nossos costumes, a lei só deveria
proteger e promover os usos e costumes que as mulheres, comunidades e organizações analisem se são boas. Os costumes que tenhamos não devem fazer mal a ninguém.”32
A tradição, o costume ou a religião costumam ser os grandes argumentos para tratar de ocultar
que certas práticas culturais têm uma poderosa dimensão patriarcal. Cecilia Salazar de la Torre
o explica muito bem quando destaca que as mulheres nas comunidades indígenas são, citando Boaventura de Santos, ‘sujeitos pré-contratuais.’’33 De fato, não são sujeitos de pleno direito
da comunidade, nem tampouco do Estado nacional ou plurinacional.
Portanto, a primeira ideia que quisera registrar é que não existe nenhuma cultura, nem as afrodescendentes, nem as originárias, nem as brancas/mestiças, que não façam das mulheres as
depositárias das tradições culturais: “O gorro, o xale, o cobertor são símbolos de ‘proteção’ das
mulheres em minha cultura. A cultura – leia-se os homens – pretende proteger as mulheres. Na
realidade mantém a mulher em papéis rigidamente definidos… A mulher não se sente a salvo
quando sua própria cultura e a cultura branca a criticam; quando os varões de todas as raças as
caçam como uma presa… nossas culturas nos tiram nossa capacidade de atuar…”.34
31 BESSIS, SOPHIE. Los árabes, las mujeres, la libertad, op. cit., p. 64.
32 Memórias do Encontro Oficina “Os direitos das Mulheres em nossos Costumes e Tradições”, San Cristóbal de las Casas, Maio de
1994; citado em AIDA HERNÁNDEZ CASTILLO, “Distintas maneras de ser mujer: ¿Ante la construcción de un nuevo feminismo indígena?”; op. cit.
33 SALAZAR DE LA TORRE, CECILIA. Género, etnia y clase. En busca de nuevas preguntas para la emancipación, Ed. Coordinadora de
la Mujer, La Paz (Bolivia), 2006, p. 35.
34
34 ANZALDÚA, GLORIA, “Movimientos de rebeldía y las culturas que traicionan”, in BELL HOOKS Y OTRAS, Otras inapropiables. Feminismos desde las fronteras, Ed. Traficantes de sueños, Madrid, 2004, pp. 74 e ss.
Aproximações à Teoria Crítica Feminista
O multiculturalismo mais radical fez sua a ideia da ‘mulher’ como a metáfora da cultura, como a
representação material e simbólica da sobrevivência da comunidade cultural. Frente ao medo
do desaparecimento de uma cultura que se considera acossada e exposta à assimilação por
parte da cultura hegemônica, os varões fazem filas em defesa da própria dominação sobre
‘suas mulheres’. E aí, na dominação masculina sobre as mulheres, encontra-se o núcleo intocável e não negociável da permanência de sua comunidade cultural.
A dominação masculina costuma ser convertida pelos varões na pedra de toque de sua cultura
e, por isso, identificam a essência de sua cultura com seus próprios privilégios. De modo que o
controle e propriedade das mulheres por parte dos varões converte-se em um dos elementos
centrais a proteger nas comunidades culturais que se sentem inferiorizadas e submetidas a
processos de mudança social. O que no fundo não é outra coisa que defender o contrato sexual pelo qual os varões originalmente pactuaram as mulheres em propriedade masculina e
em subordinadas sexuais. Pareceria que os varões estão resignados a admitir certas mudanças
culturais, mas se aferram ao contrato sexual, pois este pacto lhes converte em coletivo dominante sobre ‘suas’ mulheres. Assim, ainda que percam ‘poder’ como cultura, seguem conservando-no como genérico masculino.
Desse modo, cria-se essa ‘mulher imaginada’ e sonhada pelos varões, que temem perder sua
identidade cultural e seus privilégios patriarcais. O digno de nota, é que essa ‘mulher imaginada’ é construída como um restabelecimento da tradição, como a volta ao originário e constituinte. Dito em outros termos, as posições multiculturalistas radicais e patriarcais não diferenciam entre patriarcado e cultura, porque a distinção analítica e política de ambas as estruturas
desmascararia os privilégios masculinos que envolvem essa aliança. Gloria Anzaldúa o explica
com muita clareza: “A cultura molda nossas crenças. Percebemos a versão da realidade que
ela comunica. Paradigmas dominantes, conceitos pré-definidos que existem como inquestionáveis, impossíveis de desafiar, nos são transmitidos através da cultura. A cultura, fazem-na
aqueles no poder – homens. Os varões fazem as regras e as leis; as mulheres as transmitem.”35
O feminismo logo se incorporou ao debate sobre o multiculturalismo, sobretudo o feminismo
norte-americano e o feminismo dos países mais pobres, até o extremo de que o multiculturalismo converteu-se em uma lógica teórica e política que deu voz a mulheres feministas que não se
sentiam representadas no movimento. Estas mulheres feministas, que se aproximaram do multiculturalismo, puseram sobre a mesa a necessidade de repensar o projeto político feminista à
luz de estruturas sociais solidamente visibilizadas como a raça, a etnia ou a sexualidade. Dessa
forma, começou uma estreita aliança entre um setor do feminismo e o multiculturalismo que se
traduziu em significativos debates teóricos e importantes lutas políticas.
O feminismo multiculturalista coloca em questão o feminismo, enquanto discurso e práxis,
que não visibiliza as opressões específicas das mulheres marcadas pela raça, classe, etnia ou
orientação sexual. Esse feminismo pôs no centro do cenário político feminista a existência de
35 ANZALDÚA, GLORIA, op. cit., p. 73.
35
Rosa Cobo Bedía
diferenças econômicas, políticas, raciais, sexuais e culturais entre as mulheres, e mostrou que
não se pode construir um projeto feminista representativo se não assume como elemento central de sua análise e de sua prática a questão colonial. Por isso, frente ao metarrelato feminista,
propõe como alternativa a proliferação de microrrelatos.
Essa análise é adequada e necessária, sempre e quando não silenciem o sistema transcultural
de dominação masculina e não contribuam à sacralização das comunidades culturais, raciais
ou sexuais, porque dessa sacralização pode se inferir também um muro de incomunicação
entre nós e elas. E uma coisa é reconhecer as diferenças que nos oprimem, outra muito distinta
é fazer das diferenças fronteiras de incomunicação política. Pode-se afirmar que não existe
uma hegemonia masculina – ou capitalista – que atravessa fronteiras culturais, sociais, econômicas ou raciais? Podem se negar os dados empíricos, os quais registram que não existem
sociedades nas quais as mulheres não são objeto de subordinação? O feminismo tem que ter
a audácia de construir microrrelatos que deem conta das opressões específicas e, ao mesmo
tempo, apostar em um macrorrelato amplo que identifique os elementos de opressão que
compartilhamos todas as mulheres, com independência de seus pertencimentos específicos
a qualquer grupo social. E não só isto, pois também tem que explorar as intersecções e fusões
das distintas formas de opressão que ocorrem em um mesmo sujeito.
Entretanto, um feminismo integrador, inclusivo e atento às opressões específicas – classe, sexualidade, raça, cultura, etc. – com capacidade teórica para produzir categorias que nomeiem
essas realidades, as quais durante tanto tempo não se visibilizaram, e com lucidez política para
enfrentar as novas alianças estabelecidas entre o patriarcado e as elites culturais patriarcais,
tem que se dotar de um discurso teórico e político que transcenda tanto às diferenças indiscriminadas como ao universalismo cego.
O feminismo não pode renunciar à ideia da autonomia e à constituição das mulheres em sujeitos políticos, mas tampouco pode fechar os olhos para a existência de grupos de mulheres
com experiências concretas e específicas de opressão. Contudo, ter uma atitude um pouco relativista e um pouco multiculturalista em relação às culturas e às minorias culturais e/ou raciais,
sempre que as mesmas não vulnerem os direitos humanos e não promovam a desigualdade,
não pode significar a adesão ao relativismo e o afastamento do universalismo. Construir um
universalismo amplo, extenso, autocrítico, que não seja cego às diferenças, que não se deixe
bloquear, segundo o termo de Bessis, pelos interesses das elites patriarcais e que não silencie
as ‘outras’, deve ser um dos objetivos do feminismo do século XXI.
A diversidade cultural e as ideias multiculturalistas são aceitáveis só se ampliam a liberdade e a
igualdade dos indivíduos.36 Por isso, há que discriminar entre as práticas e valores culturais que
estão a serviço de sistemas de dominação e aqueles que não vulneram os direitos individuais.
Esta argumentação desemboca na urgente necessidade de construir coletivamente critérios
éticos universais que retirem legitimidade a todos os valores e as práticas baseados na domina36
36 A este respeito, ver meu artigo: “Multiculturalismo, democracia paritaria y participación política”. In Política y Sociedad (Madrid), nº 32,
1999.
Aproximações à Teoria Crítica Feminista
ção e discriminação. Os direitos humanos são, sem dúvida, o ponto de partida. Esta ética deve
ser suficientemente universal para que não seja uma produção etnocêntrica e se converta no
fundamento de uma comunidade moral.
Feminismo e teoria queer
O origem da teoria queer se encontra na ideia de que o gênero e o sexo são construções culturais e não fatos naturais. Embora a própria origem do feminismo se edifique sobre o descobrimento de que o gênero é uma construção normativa, a teoria queer se embasa fundamentalmente no caráter social do binarismo sexual. Luisa Posada Kubissa o explica assim: “a
materialidade corporal que se apresenta em forma de binarismo sexual não é uma essência
pré-social, senão que se constitui precisamente pela categorização social e cultural.”37 A primeira ideia forte da teoria queer é que não só se constrói socialmente o gênero mas também o
sexo. De fato, desde o próprio feminismo, Monique Wittig destaca também a origem construída do sexo. Antes de que a teoria queer se articulasse em torno a essa afirmação, o feminismo
já havia refletido na mesma direção anos antes. Por isso, precisamente esta teoria reivindica o
legado teórico de Wittig.
O filósofo francês Michel Foucault, referência imprescindível da teoria queer, argumenta sobre
o caráter construído do sexo e aponta que a heterossexualidade se construiu a partir da coação
normativa, deslocando assim outras formas de viver a sexualidade, por exemplo, a homossexualidade. “O resultado é que os seres humanos vão se dividir em dois gêneros diversos entre
si, de maneira que virou produto cultural o que se apresenta como ordem natural. E desse
modo a ordem, simbólica e real, é categorizada em termos de heterossexualidade. Atravessar
essa ordem simbólica e real, detectá-la e trazer à luz sua carga normativa já é parte do trabalho
de desconstrução que a teoria queer se propõe.”38
Judith Butler, filósofa da teoria queer, constrói seu pensamento com o olhar voltado a um coletivo social: o de gays, lésbicas, bissexuais e transsexuais. Argumenta que os gays e lésbicas
questionam o pretendido caráter natural da heterossexualidade, e a existência mesma dos
transsexuais coloca em questão a consideração do sexo como fato natural. A tarefa de Judith
Butler é desconstrutiva e desnormalizadora, pois tenta desconstruir as categorias de sexo, gênero e sexualidade a fim de que as outras formas anormativas de viver a sexualidade alcançem
um status de legitimidade social. Para esta filósofa, pode-se erosionar a prática social heterossexual transgredindo a heterossexualidade normativa. Assim se alcança um dos objetivos de
Butler: a subversão das normas de gênero.
Com efeito, Butler se pregunta sobre a estabilidade do gênero como categoria de análise e
aponta que lhe parece insuficiente o descobrimento que faz o feminismo de que o gênero é
37 POSADA KUBISSA,LUISA. “Teoría queer en contexto español. Reflexiones desde el feminismo”. Inédito. Madrid, 2014.
38 POSADA KUBISSA, LUISA, op. cit.
37
Rosa Cobo Bedía
uma construção social. Esta autora crê que há que seguir trabalhando na ‘desnaturalização’ do
gênero e do sexo para contrarrestar a violência normativa que trazem consigo as morfologias
ideais do sexo.39 A preocupação de Butler é que o masculino e feminino são coletes tão rígidos que violentam os indivíduos que o portam. A Butler, contudo, não lhe parece suficiente a
crítica feminista à hierarquia de gênero; crê que há que ir mais além e se perguntar acerca da
produção do gênero. Esta filósofa, desde sua posição de fundadora da teoria queer, ressalta
que a origem da hierarquia de gênero quiçá tenha que se buscar na necessidade de preservar
e reforçar a hegemonia heterossexual.
O conceito de gênero, na opinião de Butler, desemboca em práticas excludentes, pois não
todas as mulheres se sentem representadas por essa categoria. Como explica Butler, o gênero
não é um significante estável ao não conseguir a aprovação daquelas a quem aspira descrever
e representar. Por isso mesmo, dirá, inclusive concebendo no plural a categoria de mulheres,
converteu-se em um termo problemático e uma causa de impugnação e angústia para as mulheres.40
Pois bem, a tarefa desconstrutiva de Butler tem indubitáveis consequências políticas para o
feminismo. A proposta de Butler de desestabilizar o gênero estende-se a outras abstrações
sobre as quais o feminismo se edificou epistemológica e normativamente. O resultado é uma
radical interpelação ao sujeito político feminista. O sujeito do feminismo está formado por
mulheres ou podem formar parte desse sujeito outros coletivos afins? A proposta de Butler é
“um sujeito em coalizão, que transpassa as fronteiras convencionais da identidade e que tem
como meta política a subversão das normas de gênero. Trata-se de um sujeito que performa
identidades diversas: sexuais, de gênero, étnicas, culturais e sociais. Por isso, para Butler o feminismo já não pode seguir sendo uma perspectiva nem única, nem prioritária desde o ponto
de vista teórico e político, mas há que se aliar com as causas dos transsexuais e interssexuais,
gays e lésbicas antiessencialistas, isto é, com todas as formas de sexualidade alternativas. Desse
modo, o feminismo tornou-se por desconstrução também em outra coisa, em uma sorte
de pós-feminismo que se articula como teoria e política queer.”41 Butler recomenda à teoria feminista que seja autocrítica com os gestos totalizadores do feminismo. A análise
feminista, consistente em identificar o patriarcado como um sistema de dominação
‘é um discurso invertido que imita a estratégia do opressor sem questioná-la, em
lugar de oferecer um conjunto de termos diferente.’42
39 BUTLER, JUDITH. El género en desventaja, Paidós, México, 2001, p. 20.
40 BUTLER, JUDITH, op. cit., p. 39.
38
41 POSADA KUBISSA, LUISA, op. cit.
42 BUTLER, JUDITH, op. cit., p. 47.
Aproximações à Teoria Crítica Feminista
SEGUNDA
PARTE
39
Rosa Cobo Bedía
O Feminismo na América Latina, América Central e no Caribe43
O primeiro feminismo na América Latina e no Caribe
A América Latina também teve sua Ilustração feminista. O venezuelano Francisco de Miranda
(1750-1814) foi um precursor do feminismo e defendeu que as mulheres, “essa metade de indivíduos tinha direito a estar representada no governo.”44 Este ilustrado, precursor também
da Independência latino-americana, a fins do século XVIII reclamou certas formas de sufrágio
para as mulheres, como pode se observar em uma entrevista com o prefeito de Paris: “Por que,
ao menos, não as consultam acerca das leis que lhes concernem mais diretamente, como são
as de matrimônio, divórcio, educação dos filhos?”.45 Com efeito, há que ressaltar que as ideias
ilustradas na América Latina estiveram vinculadas aos processos de independência da colônia.
E nesse marco político é que se observa o surgimento de ideias feministas.
Na segunda metade do século XIX, algumas mulheres iniciaram em certos países da América
Latina as primeiras lutas em favor dos direitos políticos das mulheres. Sirva como exemplo o
caso de El Salvador, em que a Constituição liberal de 1886 otorgou a cidadania às mulheres.
Também o caso do México é interessante, pois um grupo de mulheres incorporou-se ao partido liberal mexicano e se organizou como “As filhas de Anahuac”. Clubes políticos, associações de mulheres em torno a partidos liberais ou ao redor de revistas e outros próximos ao
movimento operário, todos eles de mulheres, floresceram na América Latina, América Central
e no Caribe com reivindicações sufragistas e feministas nos últimos anos do século XIX e nas
primeiras décadas do século XX.
43 Esta parte se pode encontrar em Marta Aparicio García, Begoña Leyra Fatou e Rosario Ortega Serrano (eds.), Cuadernos de género:
Políticas y acciones de género. Materiales de formación, Ed. ICEI/Universidad Complutense, 2009, pp.23-24 e 32-36.
40
44 Citado em LUCILA LUCIANI DE PÉREZ DÍAZ. “Miranda, precursor del feminismo”, Revista Nacional de Cultura, nº 78-79, p. 27, Caracas, 1950.
45 Citado em CARACCIOLO PARRA PÉREZ. “Miranda y la Revolución Francesa”, tomo II, p. 167, Ed. Culturales el Banco del Caribe, Caracas, 1966.
Aproximações à Teoria Crítica Feminista
Por isso deve se questionar o preconceito de que o feminismo é um fenômeno exclusivamente
europeu. A tradição feminista na América Latina não foi certamente poderosa em termos de
mobilização social, nem de influência intelectual, nem de penetração ideológica, mas tampouco o foi na Espana nem na maioria dos países europeus, especialmente naqueles que professavam a fé católica. O sufragismo converteu-se em um movimento de massas só em dois
países, EUA e Inglaterra, que reuniam duas condições exclusivas: haviam realizado a revolução
industrial e suas crenças religiosas eram protestantes. De fato, no sul dos EUA, em que não
havia ocorrido a revolução industrial, não se arraigou o sufragismo. No mesmo sentido, há
que destacar que as mulheres sufragistas norte-americanas do norte haviam participado no
movimento pela abolição da escravidão e em movimentos de renascimento religioso de caráter protestante. Ambos espaços lhes haviam sido de grande utilidade, pois lhes permitiram
tomar a palavra em público e organizar-se nas comunidades religiosas e nos coletivos políticos
abolicionistas.
Nas três primeiras décadas do século XX fundaram-se, em quase todos os países da América
Latina, América Central e do Caribe, associações de mulheres articuladas em torno a reivindicações sufragistas e feministas. Na maioria dos casos, o movimento de mulheres teve como
finalidade imediata reafirmar o papel das mulheres na sociedade, ao reclamar seus direitos cívicos e culturais. Entretanto, há que frisar que as associações de mulheres que se fundaram e os
congressos que se celebraram não tiveram a mesma origem ideológica. No primeiro momento de seu surgimento, as organizações de mulheres e feministas estiveram vinculadas, de um
lado, a objetivos culturais e políticos em que se debatia acerca da falta de direitos das mulheres
e, de outro, a organizações sindicais e populares. À medida que as preocupações ideológicas
se consolidavam nessas sociedades, começavam a germinar outros grupos que tinham um
perfil político feminista muito mais marcado. Esta é uma tendência geral que se confirma, por
exemplo, nos casos do Chile e da Argentina: “Na Argentina as mulheres anarquistas e socialistas promoveram as primeiras organizações de mulheres: a União Gremial Feminina, integrada
basicamente por proletárias; o Centro Socialista Feminino e o Conselho Nacional de Mulheres.
Um passo superior de organização mais autônoma foi a União Feminista Nacional (1918), cujos
objetivos eram a emancipação civil e política da mulher, a elevação de seu nível cultural e o
direito a receber salário igual ao homem pelo mesmo trabalho. Depois criou-se a Liga dos Direitos da Mulher, presidida em 1922 por Julieta Lanteri Renshaw, quem dizia em uma de suas
cartas: ‘ardem fogaréus de emancipação feminina, vencendo rançosos preconceitos e deixando de implorar seus direitos. Estes não se mendigam, conquistam-se.”46
No Chile fundou-se, em 1919, o Conselho Nacional de Mulheres. No ano seguinte, enquanto
mulheres de classe média formaram o Clube de Senhoras, as mulheres de origem operária
formavam na pampa de salitre os ‘Centros Belén de Sárraga’. Assim, o movimento de mulheres
foi se transformando em um movimento feminista com a fundação do Movimento de Emancipação da Mulher Chilena em 1936: “Através de seu jornal A Mulher Nova criticou-se a discrimi-
46 VITALE, LUIS, www.robertexto.com/UniversidaddeChile.
41
Rosa Cobo Bedía
nação da mulher no trabalho e na educação, conseguindo que a mulher pudesse se postular
a cargos públicos. Convidaram as empregadas domésticas a ingressarem em suas filas para
contribuir à organização sindical. Promoveram um projeto de lei de café da manhã escolar
gratuito, criticando a exploração dos menores de idade. O MEMCH conseguiu realizar dois Congressos Nacionais: em 1937 e 1940.”47 Entretanto, na Bolívia (a Federação Operária Feminina
de La Paz, 1927) ou no México (ligado à Revolução funda-se o Primeiro Congresso Feminista,
1917) surgem mais diretamente vinculadas às lutas populares. No México, em Mérida, no marco da revolução, ocorreu o I Congresso Feminista, em que milhares de mulheres indígenas,
camponesas, operárias e de camadas médias reivindicaram tanto a igualdade de direitos entre
homens e mulheres como o socialismo. Na mesma direção, na década de 1920, fundou-se em
Puerto Rico a Associação Feminista Popular.
E do interior das organizações sociais e culturais de mulheres surgiram os primeiros partidos
feministas (Brasil, Uruguai, Chile ou Argentina, entre outros).48 Contudo, associações e partidos feministas logo entraram em crise, o movimento feminista que estava em sua base foi se
desativando paulatinamente, submergido e latente, recuperando novas forças e enchendo-se
de razões e argumentos até desembocar no poderoso ressurgimento do feminismo dos anos
setenta ao longo e ao largo da América Latina, América Central e do Caribe.
Debates feministas na América Latina, América Central e no
Caribe
Não parece adequado falar de feminismo latino-americano, da mesma forma que a definição
de feminismo europeu ou africano não nos devolve uma realidade homogênea. Não é correto
falar de feminismo do Norte nem de feminismo do Sul, como tampouco de feminismo latino-americano ou feminismo europeu como se fosse uma realidade holística e hiper coerente. Neste momento histórico, em que as tecnologias de informação possibilitam que as ideias
circulem aceleradamente, observa-se que em todos os continentes existem debates que são
comuns. As múltiplas opressões contra as mulheres se repetem em quase todas as sociedades
do mundo. Em umas muito mais que em outras, em algumas aparecem fenômenos opressivos
extremamente fortes e em outras muito debilitados, mas a opressão contra as mulheres, longe
de ser um fato isolado e os dados assim confirmam, pode se dizer que é generalizada. Obviamente, isto é compatível com o fato de que os contextos colocam problemas e preocupações
singulares e específicos na agenda política feminista de cada região.
As razões, há que buscá-las na diversidade e complexidade do contexto político, econômico
e cultural que existe na América Latina, América Central e no Caribe. Por isso, precisamente, parece mais atinado falar de debates feministas na América Latina. A complexidade desse
42
47 VITALE, LUIS, op. cit.
48 VITALE, LUIS, www.robertexto.com/UniversidaddeChile.
Aproximações à Teoria Crítica Feminista
contexto possibilita afirmar que o feminismo no centro e no sul do continente americano tem
características que o singularizam frente a discursos e práticas feministas de outras regiões do
mundo. Apesar desta observação, Maruja Barrig49 ressalta que, de todos os movimentos sociais
que surgiram na América Latina a partir dos anos setenta, quiçá o feminista é o que mais semelhança guarda com o europeu.
Entretanto, para entender algo da história deste feminismo é necessário identificar analiticamente algumas características que percorrem este continente desde o México até a Terra do
Fogo. Em primeiro lugar, há que ressaltar que o contexto deste continente está profundamente
marcado pela diversidade cultural derivada de sua história colonial. Este passado de colonização, fundamentalmente espanhola e portuguesa, produziu mestiçagens e segregações, exclusões e mesclas que estão no coração das sociedades latino-americanas e que tiveram efeitos
sociais que hoje se podem rastrear nos debates feministas.
Em segundo lugar, esta região do mundo, assim como outras, caracteriza-se pela desigualdade
econômica e falta de escrúpulos da maioria de suas elites econômicas e políticas. Esta desigualdade tem se alimentado nas últimas décadas das políticas neoliberais que empobreceram a
maioria da população e debilitaram suas escassas classes médias. Um dos efeitos mais sobressalentes foi a feminização da pobreza e a migração de setores de população, com contingentes
significativos de mulheres, a outros países mais ricos que requerem mão de obra barata. E estes
fatos sobrevoam as preocupações e a agenda política do feminismo latino-americano.
Em terceiro lugar, estas políticas econômicas ditadas pelas instituições do capitalismo internacional (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do Comércio,
etc.) estão criando novas dificuldades que se devem somar aos problemas inerentes à crônica
falta de coesão social. As maquilas aparecem como o paradigma da exploração econômica e o
produto mais perverso do capitalismo neoliberal. E a feminização da pobreza e a sobrevivência, nas palavras de Saskia Sassen, é um dos traços que atravessa este continente.
Em quarto lugar, esta debilitada coesão social repousa sobre uma história, na maioria dos países latino-americanos, marcada pela falta de consenso social. As guerras da América Central e
as ditaduras do Cone Sul são uma das amostras mais rotundas de que a maioria das sociedades
latino-americanas não resolveram seus conflitos de maneira consensual. Suas elites econômicas e financeiras, mestiças e brancas, apostaram na violência contra as populações originárias e
as classes populares quando estas reclamavam políticas de redistribuição e de reconhecimento cultural e racial.
A história da América Latina é uma história de guerras e ditaduras na segunda metade do século XX. O genocídio contra os povos indígenas na Guatemala durante 36 anos é paradigmático
do que se pode definir como uma tentativa de extermínio da população originária. E não é
um caso isolado, pois se insere em uma política genocida com aqueles setores de população
49 Esta parte deve muito à exposição documentada de MARUJA BARRIG: “Los malestares del feminismo latinoamericano: una nueva
lectura”. Prepared for delivery at the 1998 meeting of the Latin American Studies Association, The Palmer House Milton Hotel, Chicago,
Illinois, September 24-26, 1998.
43
Rosa Cobo Bedía
originária marcados pelo que os teóricos da superioridade do Ocidente sugerem como déficit
civilizatório.
As sangrentas ditaduras do Cone Sul se configuraram como um instrumento para impor as
políticas econômicas neoliberais. A ditadura de Pinochet no Chile, em 1973, esteve a serviço
de conter os desejos de políticas de redistribuição econômica que as classes populares demandavam. Ao mesmo tempo, essa guerra contra uma grande parte da população deixou o
terreno preparado para aplicar um programa econômico neoliberal. E a experiência no Chile
abriu a porta para ditadura militar da Argentina em 1976. As ditaduras de Paraguai, Uruguai,
Brasil, Bolívia ou Equador, algumas antes que a chilena e outras na mesma época, enviaram à
população a mensagem de que suas elites econômicas nunca permitiriam o acesso das classes
populares ao poder político, nem tampouco tolerariam políticas social-democratas ou socialistas. Ademais, tentaram paralisar as sociedades civis e expulsar os povos originários e afrodescendentes do mapa social e político. Há que se perguntar se os inflamados conflitos teóricos e
políticos intrafeministas não estão relacionados com histórias nacionais e regionais marcadas
pelo conflito.
Em quinto lugar, não se pode eludir a rotunda presença na sociedade civil e no poder político
de um catolicismo reativo que estabeleceu interessadas alianças com a direita mais conservadora e neoliberal. De outro lado, o surgimento e consolidação de grupos evangélicos e protestantes em muitas partes da América Latina reforça os valores mais tradicionais e patriarcais de
setores da sociedade civil. As propostas progressistas da teologia da libertação não puderam
neutralizar a influência reativa do cristianismo mais conservador e ultramontano, nem tampouco apostaram na emancipação das mulheres. A carga desta presença religiosa reativa obstaculizou significativamente as vindicações políticas dos grupos feministas e converteu-se em
um dos núcleos ideológicos mais conservadores frente às reivindicações das mulheres.
Em sexto lugar, há que assinalar a crise, em uns casos, e a descomposição, em outros, das instituições políticas em alguns países da América Latina, América Central e do Caribe. A incapacidade ou a falta de vontade das elites políticas mestiças e brancas para desativar a desigualdade econômica e fazer frente à corrupção produziu uma notável deslegitimação de suas
classes políticas e da democracia como sistema político. As classes políticas de alguns países
deste continente não puderam nem souberam neutralizar as elites econômicas, e isto possibilitou que hoje, em algumas sociedades latino-americanas, a desigualdade econômica seja das
maiores do mundo. A facilidade com que as elites políticas e econômicas acudiram à violência,
inspiradas e apoiadas quase sempre pelos EUA, quando estas sociedades mostravam sua desconformidade com a desigualdade, produziu feridas difíceis de suturar. E esta deslegitimação
das instituições quiçá esteja na origem da resistência que um setor do feminismo demonstra
na hora de pactuar com o Estado.
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Em sétimo lugar, é necessário dirigir nossa atenção ao surgimento, nos últimos anos, de opções
políticas indigenistas naquelas sociedades com populações originárias marcadas pela exclusão, falta de respeito social e exploração econômica. Estas opções políticas indigenistas se,
Aproximações à Teoria Crítica Feminista
por uma parte, questionam a legitimidade do poder mestiço e branco, por outra, estão tendo
relações de grande ambivalência com os grupos de mulheres e com o movimento feminista.
Estas opções tampouco escapam às práticas patriarcais que se observam em suas tramas institucionais, civis e culturais.
Em oitavo lugar, em diversas zonas da América Central e do México apareceram novas formas
de violência contra as mulheres, cuja característica principal é o assassinato de mulheres por
parte de um ou vários varões que, em muitos casos, nem sequer as conheciam previamente.
Esses assassinatos coletivos por parte dos varões costumam estar vinculados à economia criminal – narcotráfico, prostituição, tráfico de mulheres e meninas, órgãos, etc. –, a quadrilhas
e bandos ou a agressões sexuais de fim de semana e, em muitos casos, esses feminícidios se
produzem em meio a rituais de tortura. Essa realidade converteu-se em uma das preocupações
predominantes do movimento feminista e em objeto de investigação de teóricas feministas.
Neste sentido, há que ressaltar que as feministas latino-americanas fizeram seu o conceito de
femicídio/feminicídio e o colocaram no centro da agenda política feminista. E através delas
esta categoria entrou na Europa e especialmente na Espanha.
Em nono lugar, as sociedades latino-americanas com mais problemas de exclusão estão vivendo desde os anos oitenta a presença da cooperação internacional e o financiamento de programas de intervenção social com o fim de colaborar na redução da desigualdade e no reforço
da democracia e dos direitos humanos, ali onde mais insistentemente foram vulnerados. Esses
processos de intervenção internacional foram bem recebidos por suas elites progressistas, mas
ao mesmo tempo se lhes criticaram, de um lado, seu desconhecimento do contexto e com
isso os duvidosos efeitos positivos de sua intervenção; e, de outro, que se convertessem em
instrumentos de aplicação de políticas alheias que pouco têm a ver com a história e com os
processos econômicos e culturais que viveram estes países. A relação entre a cooperação internacional e o discurso e a prática política feminista esteve e está na origem de um dos debates
mais singulares, próprios e vivos da América Latina.
Em último lugar, não se pode entender o feminismo latino-americano se não se parte do impacto da ‘ferida colonial’, tanto nas sociedades como no conhecimento. Com efeito, a crítica
à teoria eurocentrada, à modernidade e à colonização se apresenta como interpelação à hegemonia cultural do Ocidente, isto é, à cultura que colonizou a América. A busca por construir
novos conhecimentos latino-americanos e por colocar no centro do cenário feminista novos
sujeitos racializados está no coração de um setor do feminismo latino-americano.
Também há que se levar em consideração as contribuições ao feminismo latino-americano
por parte de numerosas feministas lésbicas que militaram tanto na teoria como no ativismo
político, e introduziram na análise feminista a identificação analítica e política da heterossexualidade como uma instituição crucial na reprodução do patriarcado.
45
Rosa Cobo Bedía
O feminismo latino-americano nas últimas décadas do século XX
e princípios do século XXI
O feminismo latino-americano dos anos setenta forma parte de uma onda feminista que se
estendeu por muitas partes do mundo. Inscreve-se no contexto ideológico de maio de 68 e,
portanto, é urbano, de classe média e ilustrado; e, ademais, nasce vinculado à esquerda. E esta
vinculação foi fonte inesgotável de debates no próprio movimento e de tensões com uma
esquerda que não soube entender politicamente as vindicações feministas e que lhe negou
sistematicamente a especificidade de sua luta política e as propostas de sua autonomia organizativa. E aqui se pode detectar um mal-estar profundo no feminismo dos anos 70 e 80,
que ainda se mantém, ainda que mais debilitado, em um marco mais amplo de debate sobre
a identidade e a estratégia do feminismo. Esta primeira etapa de ressurgimento do feminismo
está profundamente marcada pela politização, traço inerente ao feminismo dos setenta que,
ademais, em alguns países latino-americanos se sobrepõe aos movimentos de resistência às
ditaduras e às guerras.
Depois da intensa politização do feminismo dos anos setenta e começo dos oitenta, as feministas se perguntam como transformar sociedades marcadas pela desigualdade cultural, racial e
econômica e pela violência patriarcal de gênero. E aqui as ONGs aparecem como instrumentos
privilegiados, nos quais se combina trabalho assalariado e militância política. Seguindo a análise de Maruja Barrig, a vinculação das feministas com as ONGs é motivo de preocupação e de
debate no feminismo latino-americano. Com efeito, milhares de feministas latino-americanas
nessas regiões investiram trabalho e militância feminista nas ONGs. Mas não só as feministas,
pois as organizações não governamentais cumpriram a dupla função de servir de estratégia de
trabalho para os profissionais das camadas médias e, ao mesmo tempo, como um espaço para
expressar o compromisso social de mais de uma geração de feministas com suas respectivas
sociedades.
Este processo possibilista se intensifica nos noventa e, como disse Barrig, acentua-se o elemento empresarial das ONGs: resultados, eficácia, desenho, planejamento e avaliação dos programas, prestação de contas aos países doadores, estruturas hierárquicas em seu interior, similares
às de qualquer empresa… Estas organizações viram-se empurradas a transformar seus trabalhos para a sociedade civil em políticas públicas. Um dos efeitos não desejados pelas feministas
foi a despolitização do feminismo e o andamento de um intenso processo de tecnificação do
feminismo.
46
Nos anos noventa, as ONGs de mulheres e/ou feministas começam a colaborar no planejamento e aplicação de políticas públicas, e essa colaboração com os Estados provoca tensões no
movimento. Um setor do movimento estima que a colaboração forma parte de uma estratégia possibilista e, dessa maneira, a reforma aparece como via necessária na transformação das
poderosas hierarquias de gênero. Como renunciar àquelas reformas que podem mudar e melhorar a vida de milhares de mulheres latino-americanas?, parecem se perguntar as feministas
Aproximações à Teoria Crítica Feminista
das ONGs que colaboram com as instituções. De outro lado, outro setor do feminismo rechaça
a colaboração com estados muito deslegitimados por sua proximidade com as classes ricas e
poderosas dessas regiões. Em suas reflexões detecta-se desconfiança e ceticismo quanto aos
efeitos positivos dessa colaboração e adverte-se contra a despolitização que essas práticas institucionais têm levado para o movimento.
Este processo leva o feminismo latino-americano a um dilema difícil de resolver: de uma parte,
não se podem negar efeitos positivos derivados do trabalho das organizações não governamentais; e, de outra, esta tecnificação do feminismo no marco das ONGs provocou um grande
mal-estar no movimento, porque sua colaboração na reconstrução do tecido social lhes fez
perder capacidade de mobilização política e de denúncia das estruturas patriarcais das sociedades latino-americanas.
Assim, aparece no feminismo latino-americano − e os Encontros Feministas que se têm celebrado na América Latina, América Central e no Caribe dão prova disso − o debate entre quem
defende a colaboração do feminismo com as instituções e quem aposta em uma autonomia do
movimento distante do Estado,50 entre quem aposta nas políticas públicas e quem considera
que estas últimas são fonte de deslegitimação do feminismo. Este setor do feminismo latino
-americano levou ao seio do movimento sua preocupação pelo cruzamento de opressões e
situou no centro de sua agenda política sua preocupação pelos profundos e perversos efeitos
da colonização. E daí, há que se passar a outra crítica: a consideração de que o feminismo
hegemônico está lastrado pela influência ocidental e, por isso, esse movimento de reflexão
urbano e acadêmico diminuiu seu impulso liberador e emancipador. Tal e como afirma Francesca Gargallo,51 não se pode dissociar o patriarcado contemporâneo do racismo, colonialismo
e capitalismo. Assim, as variáveis etnia, raça, orientação sexual ou classe foram introduzidas
no debate político feminista com o propósito de repolitizar o feminismo e de aproximá-lo a
uma sociedade marcada pela diversidade racial, cultural e sexual. Estas preocupações permanecem aí e alimentam o debate feminista. Contudo, estrategicamente parece crucial produzir
espaços de encontro que conduzam a pactos pontuais entre os diversos grupos de mulheres
e o movimento feminista, a fim de tornar possível a criação de uma agenda política feminista
integradora, flexível e inclusiva.
50 O livro de MARGARITA PISANO expressa com muita clareza estas posições: Un cierto desparpajo, Sandra Lidid Editora, Santiago de
Chile, 1996.
51 GARGALLO, FRANCESCA, “Feminismo latinoamericano”, in Revista Venezolana de Estudios de la Mujer, vol. 12, nº 28, Caracas, pp.
17-34.
47
Rosa Cobo Bedía
REFLEXÕES FINAIS
O feminismo, em sua dupla dimensão de movimento social e de tradição intelectual, é um dos
efeitos reflexivos da modernidade que mais contribuiu, nos dois últimos séculos, ao progresso
social e político. O feminismo democratizou aspectos decisivos da sociedade em vários sentidos. De um lado, alargou os limites políticos e econômicos das democracias ao reivindicar para
a metade da sociedade a cidadania social e política. E, de outro, visibilizou aquelas questões
morais e existenciais reprimidas pelas instituições da modernidade patriarcal e as introduziu
no debate público (aborto, sexualidade, reprodução e invisibilidade da economia doméstica,
entre outros). Este processo de ampliação da democracia foi possível porque o feminismo fez
da luta contra a discriminação e das vindicações de igualdade os núcleos de sua identidade.
48
O feminismo, desde sua origem até seu ressurgimento nos anos setenta do século XX, desenvolveu-se como uma crítica moral, política e antropológica à dominação masculina. Daí que
a igualdade tenha sido o paradigma que articulou historicamente as vindicações feministas.
Tal e como apontávamos anteriormente, Celia Amorós define o feminismo como ‘vindicação’,
Aproximações à Teoria Crítica Feminista
entendendo como tal uma crítica política à usurpação que realizaram os varões do que eles
mesmos definiram como o genuinamente humano. O gênero ‘vindicação’ reclama a igualdade
a partir de uma irracionalização do poder patriarcal e uma deslegitimação da divisão sexual
dos papéis.52 O feminismo teve como objetivo desvelar os mecanismos políticos, econômicos
e ideológicos que converteram a diferença anatômica entre homens e mulheres em uma diferença política na perspectiva de dominação e subordinação.
Hoje não se pode falar propriamente de um só feminismo. Coexistem em seu interior distintas
posições teóricas e diferentes estratégias políticas, tal e como sucede em outras teorias críticas
da sociedade e em outros movimentos sociais. Em todo caso, umas e outras tornam explícito
o longo e intenso percurso intelectual e político do feminismo. O feminismo dialogou, e segue
dialogando, com todos os grandes paradigmas teóricos e com todos os grandes movimentos
sociais e políticos contemporâneos. Contudo, a feminização da pobreza e a violência são quiçá
as duas caras mais trágicas para muitas mulheres no mundo. Qualquer discurso feminista tem
que integrar esses dois fenômenos sociais se quer dar conta da complexa realidade social que
nós, as mulheres, vivemos.
O feminismo hoje tem que dar uma guinada em seu discurso político e suas estratégias. Impõese suavizar os debates intrafeministas e trabalhar pela construção de alternativas políticas para
as mulheres. A primeira guinada do feminismo quiçá tenha que ir desde os debates internos
para fora, em direção à sociedade civil. Nós, feministas, temos uma responsabilidade histórica
com as mulheres das sociedades em que vivemos e não podemos abdicar de tal responsabilidade, pois esse é o sentido político do feminismo: construir projetos, realizar críticas e propor
alternativas. A segunda guinada tem que se deslocar para a identificação analítica da política
sexual do capitalismo neoliberal. O capitalismo neoliberal, cujas máximas perversidades são as
maquilas e a indústria da prostituição, é uma fonte inesgotável de empobrecimento e desempoderamento das mulheres. Por isso, devemos colocá-lo no coração da análise crítica feminista
e no centro de nossa prática política. Ademais, a crítica à política sexual do neoliberalismo
pode se converter em um objetivo político que torne possível a construção de um sistema de
afiliações e alianças entre as mulheres. Os pactos feministas contra as estruturas patriarcais são
e devem ser o núcleo do projeto político feminista.
52 AMORÓS, CELIA. Tiempo de feminismo. Sobre feminismo, proyecto ilustrado y postmodernidad, Ed. Cátedra, col. Feminismos, Madrid, 1997, p. 56.
49
Rosa Cobo Bedía
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